Transformaçao Fundamental PDF
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Jiddu Krishnamurti
1ª Conferência em Londres
17 de junho de 1955
Krishnamurti: Quase todos nós perseguimos ideais: "o bom", "o belo", "o
verdadeiro", "a não violência" etc. E sabemos porque os perseguimos:
porque esperamos, por meio deles, transformar a nós mesmos. Os ideais
nos servem de alavanca e estimulam-nos a transformar-nos, tornar-nos
mais perfeitos. Este é um fato real, não? Considerai a violência: sou
violento, e por isso tenho o ideal da não violência. Persigo esse ideal, tento
praticá-lo, estou constantemente pensando nele, tentando mudar a mim
mesmo e as tendências do meu pensar, a fim de ajustar-me ao ideal que
para mim mesmo estabeleci. Mas, realizado o ideal, efetuei alguma
transformação real em mim mesmo? Ou não fiz mais do que substituir um
conjunto de palavras por outro? A violência pode ser modificada com um
ideal?
O que importa, sem dúvida, não é o ideal, mas a coisa concreta, o que é, a
compreensão de o que é. O importante, para mim, é compreender o meu
estado de violência, suas fontes, suas causas etc., e não que me esforce para
alcançar um estado de não violência. Não é assim? Não achais que à
maioria de nós é extremamente difícil abandonarmos os nossos ideais,
apagá-los de todo, e nos aplicarmos àquilo que realmente é? Se estais
inteiramente interessados em o que é, há então alguma possibilidade de
aperfeiçoamento pessoal?
Ouvinte: Um ideal não é bom ou mau, conforme o uso que dele se faz?
Podeis comprar coisas boas ou coisas más, com vosso poder, vosso
dinheiro; o mesmo se pode dizer dos ideais.
Krishnamurti: Ainda que não tivésseis sido educado de acordo com certo
padrão de pensamento, não criaríeis ideais, vós mesmo?
Ouvinte: Deu-nos Deus um cérebro para pensar, e com ele criamos ideais
para nos ajudarem a progredir.
Ouvinte: Os ideais não constituem uma via que nos aproxima da luz? Não
somos atraídos para o Alto, mesmo sem o sabermos?
Ouvinte: Não penso assim. Estou perfeitamente satisfeito com o que sou.
Não vejo razão para não estar.
Ouvinte: Não temos ideais porque dentro de todo ente humano arde uma
centelha divina?
Krishnamurti: Senhor, que quer dizer isso? Como podemos sabê-lo? O fato
é que estou descontente com o que sou; tal é o estado da maioria de nós.
Sou feio e desejo tornar-me belo; sou ávido e quero ser não ávido, porque a
avidez traz no seu bojo a dor; sou apegado e desejo ser desapegado, porque
o apego é fonte de sofrimentos. Tudo isso são aspectos da nossa
insatisfação com o que é, não achais? Com nossa insatisfação esperamos
realizar uma mudança, um resultado; queremos apagar toda insatisfação.
Se pudermos, por ora, concentrar-nos só nesta questão, quem sabe se não
chegaremos a compreendê-la toda?
Estou insatisfeito com o que sou. Esta insatisfação não nasceu porque
estou comparando-me com outra coisa? Compreendeis esta pergunta?
Estou insatisfeito comigo mesmo, porque vos vejo feliz, satisfeito. Vós
tendes algo que eu não tenho, e desejo obter esse algo.
Ouvinte: Mas esse impulso não se desfaz logo que transcendemos a nós
mesmos? Isso é como ouvir música: a música nos arrebata a nós mesmos e
às limitações da vida.
Krishnamurti: Ora, meu Senhor! Como pode uma mente que se acha tão
perturbada, tão ansiosa, tão frustrada, que está constantemente exigindo,
desejando - como pode uma mente nesse estado imaginar uma consciência
suprema, ou qualquer desses ideais? Tudo isso pode ser puro absurdo. O
fato real é que eu estou perturbado. Porque não partirmos daí? Estou
insatisfeito; como achar a satisfação? Eis o nosso problema, não achais?
Ouvinte: Estou insatisfeito com o que sou. Se eu soubesse o que sou, seria
muito mais feliz; mas não sei o que sou.
Auditório: Sim.
Auditório: Sim.
Auditório: Sim.
Auditório: Sim.
Ouvinte: Quereis dizer que devemos estar satisfeitos assim como somos?
Krishnamurti: Isto é o que se diz na Índia também: posso ser hindu, leal à
minha pátria, e ao mesmo tempo estar livre para achar Deus? Posso ser
hinduísta, budista ou cristão, e ao mesmo tempo ser livre? É possível isto?
Eu posso ter um passaporte, um pedaço de papel, para viajar; mas isso não
me faz necessariamente hindu. A liberdade, por certo, é de todo
incompatível com qualquer nacionalidade, qualquer tradição. Há o estilo de
vida americano, o estilo de vida inglês, o estilo de vida russo, e o estilo de
vida hindu. Cada um diz "Nosso estilo de vida é o único que convém",
apegando-se tenazmente a esse estilo. E, no entanto, todos falamos de
liberdade e de paz. Acho que tudo isso tem de desaparecer, se desejamos
criar um mundo diferente, um mundo que seja nosso, um mundo sem
comunismo, socialismo, capitalismo, hinduísmo ou cristianismo. A Terra é o
nosso mundo, onde devemos viver, não divididos: viver felizes, livres. Mas
não poderá ser nosso o mundo enquanto existirem ingleses, hindus,
alemães, comunistas etc.; dessa maneira, nunca seremos livres.
Só poderá surgir a liberdade quando formos verdadeiramente religiosos,
quando cada um de nós for realmente um indivíduo, no exato sentido da
palavra. Quando formos religiosamente livres, poderemos então criar um
mundo que será nosso e, por conseguinte, dar aos jovens uma educação
diferente, e não meramente condicioná-los segundo uma determinada
cultura, encaixá-los num determinado sistema, educá-los para serem
comunistas, ateístas, católicos, protestantes ou hinduístas; tais indivíduos
não são livres, e por conseguinte não são verdadeiramente religiosos: estão
simplesmente condicionados; e são causadores de tanta miséria! Está visto
pois que, se desejamos criar um mundo totalmente diferente, faz-se
necessária uma revolução religiosa que não seja retrocesso a certa crença,
nem avanço para certa realização, mas a libertação de todas as tradições,
dogmas, símbolos, crenças, a fim de que cada um seja um verdadeiro
indivíduo, livre para descobrir, para investigar o imensurável.
Um dos mais difíceis problemas parece ser a questão de como operar uma
transformação fundamental em nós mesmos. Pensamos, muitas vezes, que
a transformação do indivíduo não importa e que devemos, antes,
interessar-nos pela "massa", pelo todo. Acho completamente errônea essa
ideia. Eu penso que a transformação deve começar pelo indivíduo - se tal
entidade existe, "o indivíduo". Há necessidade de uma transformação
essencial em vós e em mim. A modificação consciente, como se pode ver,
não constitui transformação. O processo deliberado de automelhoramento,
o cultivo deliberado de determinado padrão ou forma de ação, não produz
a transformação real, porquanto tal modificação será mera projeção do
nosso próprio desejo, nosso próprio fundo - uma reação. Todavia, quase
todos temos muito interesse nesta questão da transformação, visto que
estamos andando às cegas, estamos confusos. E aqueles que refletem
seriamente deviam investigar a fundo esta questão de como promover a
transformação de si próprios.
A dificuldade, ao que me parece, está em compreender o fato de que
qualquer espécie de modificação, feita numa mente condicionada, só pode
produzir um condicionamento diferente, e não uma transformação. Se eu,
como hinduísta ou como cristão, procuro modificar-me dentro desse
padrão, não se efetua nenhuma transformação real, e, sim, apenas um
condicionamento talvez melhor, mais conveniente, mais adequado; mas
fundamentalmente, não há transformação. A meu ver, um dos piores
obstáculos que estamos enfrentando é esta ideia de que podemos
transformar-nos dentro do padrão. Mas, sem dúvida, quando uma mente
condicionada pela sociedade, por uma dada cultura, produz,
conscientemente, alguma modificação dentro do padrão, tal modificação é
ainda um processo de condicionamento. Bem esclarecido isso, acho que
então a nossa investigação, visante a descobrir o que é transformação e
como será possível produzir uma mudança radical em nós mesmos, torna-
se altamente interessante, uma questão vital. Porque a cultura, isto é, a
sociedade que nos rodeia, pode criar uma "religião", porém, nunca
produzirá um homem religioso.
Agora, se posso desviar-me um pouco do assunto, interessa observar a
forte reação que geralmente nos desperta a palavra "religião". Uns gostam
dela, e a simples palavra lhes dá um sentimento de satisfação emocional;
outros a repelem. Mas considero importante descobrir como escutar
corretamente as palavras. Como é que escutamos? Vós ouvis a palavra
"religião", e gostais ou não gostais desta palavra. Esta própria palavra atua
como uma barreira à compreensão mais ampla, à ulterior investigação, por
causa de nossa reação à palavra.
Mas pode-se escutar sem tal reação? Porque, se sabemos escutar sem
reação, sem que nossos preconceitos, nossas peculiaridades,
idiossincrasias, crenças, nos fechem o caminho, poderemos então, parece-
me, ir muito longe. Dificílimo é, porém, desembaraçar-nos de nossos
preconceitos, para darmos atenção completa a algo que se está dizendo. A
atenção se torna estreita, exclusivista, quando meramente concentrada
numa determinada ideia. Os mais de nós temos ideias, certos preconceitos,
e, enquanto pensarmos segundo esta norma, podemos prestar "atenção",
como o chamamos, mas, na realidade, essa atenção é uma forma de
exclusão, que absolutamente não é atenção. O que desejo fazer-vos notar é
que, para escutarmos realmente, devemos estar cônscios de nossos
próprios preconceitos, nossas próprias reações emocionais e neurológicas
a uma determinada palavra, como sejam "Deus", "religião", "amor", etc.,
para nos desembaraçarmos de tais reações. Se soubermos escutar dessa
maneira, escutar atentamente, sem estarmos à procura de uma dada ideia
que confira com a nossa própria ideia, ou lhe seja contrária, acho que então
estas palestras poderão ser frutuosas.
Como dizia, a cultura pode produzir religiões, mas não um homem
religioso. E, em meu sentir, só um homem religioso é capaz de operar uma
radical transformação dentro de si mesmo. Toda mudança, toda alteração,
feita na mente condicionada por uma dada cultura, não constitui uma
transformação real, e, sim, tão só a continuação da mesma coisa com
modificações. Isso me parece bastante óbvio, se refletimos a seu respeito -
isto é, que enquanto eu tiver o padrão hinduísta, cristão, budista, etc.,
qualquer mudança que eu opere dentro desse padrão representará uma
mudança consciente, que faz parte, ainda, do padrão, não sendo, por
conseguinte, transformação nenhuma. Surge aí a questão: posso operar a
transformação por meio do inconsciente? Quer dizer: ou começo,
conscientemente, a alterar o padrão do meu viver, minhas normas de
pensar, a suprimir conscientemente os meus preconceitos - o que, tudo
isso, constitui um processo deliberado de esforço, visando a certo objetivo,
certo ideal; ou procuro operar a modificação, esquadrinhando o
inconsciente. Indubitavelmente esses dois métodos envolvem o problema
do esforço. Vejo que preciso transformar-me - por várias razões, por
"motivos" vários - e, conscientemente, começo a trabalhar neste sentido.
Percebendo então - se reflito a respeito da coisa - que não se realiza uma
verdadeira transformação, ponho-me a esquadrinhar o inconsciente, a
penetrar-lhe as profundezas, na esperança de que, por vários métodos de
análise, me seja possível operar uma mudança, uma modificação, ou um
ajustamento mais profundo.
E, agora, pergunto a mim mesmo se esse esforço consciente e inconsciente
para me transformar produz de fato transformação. Ou será necessário
ultrapassar, tanto o consciente como o inconsciente, para que possa
produzir-se uma mudança radical? Como sabeis, tanto o desejo consciente
como o impulso inconsciente, para modificar, implicam esforço. Se
examinardes muito profundamente esta questão, vereis que, ao desejarmos
transformar-nos, há sempre aquele que faz o esforço e, também, aquilo que
é estático - a coisa sobre a qual o esforço se exerce. Assim, nesse processo
de se desejar operar modificação - consciente ou inconscientemente - há
sempre pensador e pensamento: aquele que diz "Preciso transformar" e o
estado que ele deseja transformar. Há, pois, dualidade; e estamos sempre,
estamos perenemente procurando lançar uma ponte sobre esse vão por
meio de esforço. Vejo que há em mim, no consciente e no inconsciente, a
entidade que faz esforço, e aquilo que ela deseja modificar. Há uma divisão
entre o que sou e o que desejo ser. Isto significa: divisão entre o pensador e
o pensamento, e daí o conflito. E o pensador está sempre tentando vencer
este conflito, consciente ou inconscientemente. Estamos bem
familiarizados com esse "processo", pois é isso que estamos fazendo
constantemente. Toda nossa estrutura social, nossa estrutura moral, nossos
ajustamentos, etc., baseiam-se em tal "processo". Mas isso produz
transformação? Se não produz, não deve então a transformação ser
operada num nível completamente diferente, que não se acha nem no
campo do consciente nem no campo do inconsciente? Sem dúvida, todo o
campo mental - o consciente e o inconsciente - está condicionado pela
nossa particular cultura. Isto é bastante óbvio. Enquanto eu for hinduísta,
budista, cristão, etc., a própria cultura em que fui criado, educado,
condiciona todo o meu ser. O meu ser total é tanto o consciente como o
inconsciente. No campo do inconsciente se acham todas as tradições, o
resíduo, assim o herdado como o adquirido, de todo o passado do homem, e
eu estou tentando modificar-me no campo do consciente. Tal modificação
só pode ser feita de acordo com meu condicionamento, e, por conseguinte,
nunca produzirá liberdade. É bem óbvio, pois, que a transformação é uma
coisa de todo independente da mente; ela deve estar num nível
completamente diferente, numa diferente profundidade, numa altura
diferente.
Como posso então transformar-me? Percebo, ou pelo menos entrevejo, a
verdade de que uma mudança, uma transformação, deve começar num
nível que a mente, como consciente ou inconsciente, não pode alcançar,
visto que minha consciência, como um todo, está condicionada. Que devo
então fazer? Espero que esteja fazendo claro o problema. Posso enunciá-lo
de maneira diferente: pode a minha mente, tanto a consciente como a
inconsciente, tornar-se livre da sociedade? - sendo sociedade a educação, a
cultura, a norma, os valores, os padrões. Não sendo livre, qualquer
modificação que ela tente efetuar dentro desse estado condicionado, é
sempre limitada e, por conseguinte, não é transformação. Se percebo a
verdade a esse respeito, que deve a mente fazer? Se digo que ela deve
tornar-se quieta, então esse próprio "tornar-se quieta" faz parte do padrão,
é produto do meu desejo de efetuar uma transformação num nível
diferente.
Assim sendo, posso prestar atenção, sem ter motivo algum? Pode a minha
mente existir sem nenhum incentivo, nenhum "motivo" para transformar-
me ou não transformar-me? Porque todo motivo resulta da reação de uma
determinada cultura, produto de um determinado fundo. Pode, então, a
minha mente ficar livre da cultura sob cuja influência fui educado? Esta é,
com efeito, uma questão muito importante. Porque, se a mente não está
livre da cultura em que foi criada, nutrida, o indivíduo, sem dúvida, nunca
estará em paz, nunca terá liberdade. Seus deuses e seus mitos, seus
símbolos e todos os seus empreendimentos são limitados, porque
pertencem ao campo da mente condicionada. Quaisquer esforços que faça,
ou não, dentro deste tão limitado campo são, em verdade, fúteis, no sentido
mais profundo da palavra. Poderá haver melhor decoração da prisão - mais
luz, mais ventilação, mais alimento -, mas é sempre a mesma prisão de uma
determinada cultura. Pode, pois, a mente, tornando-se cônscia de sua
totalidade, e não só das camadas superficiais ou de certas profundidades -
pode a mente alcançar aquele estado em que a transformação não resulta
de esforço consciente ou inconsciente? Se está clara esta questão,
manifesta-se, então, a reação ao problema: como alcançar um tal estado?
Ora, a própria pergunta "como?" é mais uma barreira. Porque o "como"
implica a busca e a prática de certo sistema, certo método, os "passos" que
se devem dar para se chegar àquela transformação.
Compreendeis? O "como" implica o desejo de alcançar, a ânsia de realizar;
e esta própria tentativa de ser uma coisa deriva de nossa sociedade, que é
aquisitiva, invejosa. E estamos, assim, de novo na armadilha. Nessas
condições, que deve fazer a mente? Percebo a importância da
transformação. E percebo que toda modificação, em qualquer nível da
mente consciente ou inconsciente, não representa transformação nenhuma.
Se compreendo realmente isso, se percebo a verdade respectiva - isto é, que
enquanto existe entidade que faz esforço, o pensador, o "eu", que quer
alcançar um resultado, tem de haver divisão e, portanto, o desejo de efetuar
uma ligação, uma integração dos dois, o que torna inevitável o conflito. Se
percebo tal verdade, que acontece?
Eis o problema: percebo que todo esforço que faço, dentro da esfera do
pensar - a esfera tanto do consciente como do inconsciente - produz
separação, dualidade, e por conseguinte conflito? Se percebo esta verdade,
que acontece? Tenho eu então, tem a mente consciente ou a mente
inconsciente, de fazer alguma coisa? Vede, por favor, que isto não é
nenhuma filosofia oriental de inação, não significa entregar-se a certo
"transe" misterioso. Pelo contrário, requer muita reflexão, penetração,
investigação. Esse estado só pode ser atingido pela compreensão do
consciente e do inconsciente, e não pelo dizermos, apenas: "Pois bem, não
pensarei mais; e então acontecerão coisas". Não acontecerá coisa nenhuma.
Daí a importância do autoconhecimento. Não o autoconhecimento de
acordo com certo filósofo, certo psicanalista, grande ou pequeno, pois isto
será mera imitação; é o mesmo que ler um livro e querer ser o livro; não é
autoconhecimento. Autoconhecimento é o descobrir, de fato, em si mesmo,
o processo do próprio pensar, do próprio sentir, dos próprios motivos e
reações - o verdadeiro estado em que nos achamos, e não um estado
desejado.
Eis porque muito importa tenhamos conhecimento de nós mesmos, como
quer que sejamos: feios, bons, maus, belos, joviais - tudo o que somos;
conhecimento de nosso condicionamento superficial e bem assim do
condicionamento inconsciente, mais profundo, de séculos de tradição, de
anseios, compulsões, imitações; compreensão, experiência direta da
totalidade, pelo autoconhecimento. Acho que então se descobrirá que tanto
a mente consciente como a inconsciente não mais farão movimento algum
para realizar a transformação; mas ocorrerá uma mudança, ocorrerá uma
transformação, num nível de todo diferente, a uma altura e uma
profundidade inatingíveis pela mente consciente e pela mente inconsciente.
A transformação tem de começar aí, e não no nível consciente ou
inconsciente, oriundos de uma cultura. Por esta razão é muito importante
estarmos livres da sociedade, mercê do autoconhecimento. Então, depois
de ter cessado todo esse processo de reconhecimento pela sociedade e
quando a mente já não se preocupa com reformas, deve verificar-se uma
transformação radical, inatingível pela mente consciente ou inconsciente; e,
em virtude dessa transformação, será possível criar uma sociedade
diferente, um Estado diferente. Mas esse Estado, essa sociedade, não
podem ser preconcebidos - deverão surgir das profundezas do
autodescobrimento.
Assim sendo, o que me parece importante é essa investigação do "eu", de
"mim", para se conhecer o "eu" tal qual é, com suas ambições, invejas,
exigências agressivas, falácias, divisão em "superior" e "inferior" - de tal
maneira que não só seja revelada a mente consciente, mas também a
inconsciente, o repositório da antiga tradição, dos séculos de depósitos de
toda sorte de experiências. O conhecimento da totalidade do "eu" significa
o seu fim. Então a mente, já que não mais está preocupada com a sociedade,
com reconhecimento, com reformas, nem mesmo com a transformação de
si própria, descobre que há uma mudança, uma transformação não
proveniente de um esforço deliberado visante a um resultado.
Krishnamurti: Ora, não é isto que estamos discutindo, é? Parece que não
nos estamos entendendo bem. É por isso que estou incerto quanto à
possibilidade de discutirmos este problema num grupo tão grande. Nós
sabemos - não é verdade? - que estamos apegados. Dependemos de
pessoas, de ideias. Faz parte da natureza do nosso ser o depender de
alguém. E a essa dependência chamamos amor. Agora, pergunto a mim
próprio, e talvez pergunteis também a vós mesmos, se é possível libertar a
mente, psicologicamente, interiormente, de toda dependência, pois percebo
que, por causa da dependência, surgem problemas e mais problemas, um
nunca acabar de problemas. Por essa razão, pergunto a mim mesmo se é
possível ficarmos num estado de percebimento tal que esse próprio
percebimento faça consumir-se o sentimento de dependência, de outrem
ou de uma ideia, de modo que a mente, com o total desaparecimento da
dependência, não mais se veja isolada.
Por exemplo: eu dependo da identificação com um dado grupo; satisfaz-
me intitular-me hinduísta ou cristão; pertencer a uma dada nacionalidade é
muito satisfatório. Eu mesmo, interiormente, sinto-me muito insignificante.
Não sou ninguém, e, assim, se posso chamar-me "alguém", sinto satisfação.
Esta é uma forma de dependência, num nível muito superficial, talvez, mas
que gera o veneno do nacionalismo. E há muitas outras formas, mais
profundas. Pois bem, posso transcender tudo isso, de modo que minha
mente nunca mais dependa, psicologicamente, não tenha dependência de
espécie alguma e não busque nenhuma forma de segurança? Ela não
buscará a segurança se compreendo esse senso de "exclusão", de que estou
cônscio, e a que chamo "solidão" - esse processo egocêntrico de pensar, que
gera o isolamento.
O problema, pois, não é de como nos tornarmos desapegados, de como
libertar-nos de pessoas ou ideias, mas, sim: pode a mente deter esse
processo em que ela se fecha a si mesma por meio de suas próprias
atividades, suas próprias exigências, seus anseios? Enquanto houver a ideia
de "mim", "eu", tem de haver solidão. Atingimos a própria essência do
processo de autoenclausuramento quando descobrimos esse
extraordinário sentimento de solidão. Posso "queimar" tal processo, de
modo que a mente nunca mais busque nenhuma forma de segurança, e não
tenha mais exigências? Isso não pode ser respondido por mim, mas por
cada um de vós. O que posso fazer é só descrever; mas a descrição se torna
simplesmente um obstáculo se não for realmente experimentada. Mas, se
esta descrição vos revela o processo do vosso pensar, então ela própria é
um percebimento de vosso próprio estado. E, nesse caso, posso
permanecer nesse estado? Posso deixar de movimentar-me para longe do
fato da solidão, e permanecer "lá", sem fugir de maneira nenhuma, sem
evitá-la nunca? Ao perceber, compreender que o problema não é a
dependência, mas a solidão, pode a minha mente permanecer imóvel nesse
estado a que chama "solidão"? Isto é dificílimo, porque a mente nunca pode
"ficar" com um fato; ela sempre o traduz, ou o interpreta, ou faz alguma
coisa com relação ao fato; nunca "fica" com o fato.
Se a mente puder permanecer com o fato, sem dar nenhuma opinião a
respeito dele, sem traduzi-lo, sem condená-lo, sem evitá-lo, é o fato então
diferente da mente? Existe separação entre o fato e a mente, ou a própria
mente é o fato? Por exemplo, eu estou solitário. Estou cônscio disso, sei o
que significa: é um dos problemas de nossa existência diária, de toda a
nossa existência. E quero estudar, por mim mesmo, esta questão da
dependência, para ver se a mente pode ficar livre, não apenas especulativa,
teórica, ou filosoficamente, mas livre, efetivamente, da dependência.
Porque, se meu amor depende de outra pessoa, não tenho amor. E desejo
descobrir que estado é esse a que chamamos "amor". Ao tentar descobri-lo,
é possível que desapareça completamente a disposição para a dependência,
para a segurança, nas relações, que desapareça toda exigência, todo desejo
de permanência; e posso então ver-me em presença de um fato
completamente diferente. E, assim, pelo investigar, pelo examinar a mim
mesmo, posso chegar àquela coisa a que chamo "solidão". Agora, posso
"ficar" com ela? Com "ficar", quero dizer: não interpretá-la, não avaliá-la,
não condená-la, mas só observar o estado de solidão, sem nenhum
movimento de recuo. E se minha mente é capaz de "ficar" com esse estado,
esse estado é então diferente da minha mente? É possível que a minha
mente esteja, ela própria, solitária, vazia, e que não haja um estado de
vazio, que a mente observa. Minha mente observa a solidão, e a evita, foge
dela. Mas, se não fujo à solidão, há então divisão, há separação, há um
observador que observa a solidão? Ou só há um estado de solidão - a minha
mente vazia, solitária, e não um observador que sabe que há solidão? Acho
importante compreender isso, rapidamente, sem muita "verbalização".
Digo, agora: "Sou invejoso e quero livrar-me da inveja" - temos assim um
observador e uma coisa observada; o observador quer livrar-se daquilo a
que observa. Mas o observador não é a mesma coisa que aquilo que está
sendo observado? Foi a própria mente que criou a inveja, e portanto a
mente nada pode fazer com relação a inveja. A minha mente, pois, observa
a solidão; o pensador está cônscio de achar-se solitário. Mas, se ele "ficar
com isso", em pleno contato com "isso" - quer dizer, não fugir da coisa, não
a traduzir, etc. -, há então alguma diferença entre o observador e aquilo que
está sendo observado? Ou só há um estado único, que é: a própria mente
está solitária, vazia? Isto não quer dizer que a mente se observa como
estando vazia, mas, sim, que ela própria é vazia.
Pode então a mente, percebendo que ela própria é vazia e que toda
tentativa, todo movimento para afastar-se desse vazio, é meramente uma
fuga, uma dependência, pode a mente apartar de si toda dependência, e ser
o que ela é - vazia, solitária, completamente? E nesse estado, não está a
mente livre de toda dependência, todo apego? Notai, por favor, que isto é
uma coisa que tem de ser investigada, e não aceita só porque eu o estou
dizendo. Nenhuma significação tem ela se meramente a aceitais. Mas, se
estais experimentando a coisa enquanto vamos caminhando, vereis que
todo movimento por parte da mente - sendo movimento: avaliação,
condenação, tradução, etc. -, que todo movimento é uma distração que nos
afasta do fato de o que é e cria conflito entre a mente e a coisa observada.
Isto, para irmos mais longe, é realmente uma questão de saber se a mente
pode existir sem esforço, sem dualidade, sem conflito, e ser, portanto, livre.
No momento em que a mente se vê envolvida em conflito, ela não é livre.
Quando não há esforço para ser livre, há liberdade. Pode, pois, a mente
existir sem esforço e, por conseguinte, ser livre?
Krishnamurti: Porque precisamos saber que ela existe? Ela pode não
existir, absolutamente, pode ser ilusão, fantasia minha. Mas pode-se ver
que, enquanto há conflito, a vida é uma calamidade. Compreendendo o
conflito, saberei o que significa "a outra coisa". Ela pode ser uma ilusão,
uma invenção, um truque da mente; mas, se compreendo todo o significado
do conflito, tenho a possibilidade de encontrar algo totalmente diferente.
Minha mente está muito ocupada com o seu conflito, interior e exterior. O
conflito surge inevitavelmente quando há um experimentador que guarda,
que acumula, e por conseguinte sempre está pensando em termos de
tempo, de mais e de menos. Compreendendo isso, estando cônscio disso,
pode apresentar-se um estado que podemos chamar "silêncio", ou qualquer
nome que preferirdes. Mas o problema não é a busca do silêncio, da
tranquilidade, porém, sim, a compreensão do conflito, a compreensão de
mim mesmo em conflito.
Será que respondi à pergunta, que é: como sei que há silêncio? Como o
reconheço? Compreendeis? Enquanto há processo de reconhecimento, não
há silêncio. Em última análise, o processo de reconhecimento é o processo
da mente condicionada. Mas na compreensão de todo o conteúdo da mente
condicionada, a mente se torna quieta, não há um observador que
reconhece achar-se num estado a que ele chama "silêncio". O
reconhecimento da experiência cessou.
Descrição do livro
Conferências em Londres, Inglaterra
1ª Conferência de Londres
Perguntas:
1 - Sou muito "apegado". Como alcançarei o sentimento de liberdade do
apego?
2 - Tendes algo melhor para oferecer do que já sabemos sobre sistemas de
filosofias e as doutrinas dos grandes guias religiosos?
2ª Conferência de Londres
Debates
3ª Conferência de Londres
Perguntas:
1 - Desejo que meu filho seja livre. A verdadeira liberdade é incompatível
com a lealdade à tradição inglesa de vida e educação?
2 - A mente ocidental é exercitada para a contemplação do objeto, e a
mente oriental sobre o sujeito. A primeira conduz à ação e a outra à inação.
Qual a chave da integração dessas duas direções do percebimento, no
indivíduo, que fará surgir uma compreensão total da vida?
3 - Tenho medo à morte. Vivi uma vida de muita riqueza e plenitude, e
agora que já me vou aproximando do fim, toda essa satisfação acabou e
nada me resta senão as crenças religiosas de minha meninice: purgatório,
inferno etc. que me enchem de pavor. Podeis renovar-me a confiança?
4 - Sou jovem e até poucas semanas gozava saúde perfeita. Um acidente
causou-me uma lesão mortal e os médicos me dão poucos meses de vida.
Por que haveria de acontecer-me isso e como irei enfrentar a morte?
4ª Conferência de Londres
Perguntas:
1 - Sou artista e preocupa-me sumamente a técnica de pintar. É possível
que esta preocupação constitua um obstáculo à genuína expressão
criadora?
2 - Depois de ler os vossos livros e ouvir vossas palestras, vejo que existe
outra maneira de viver, completamente diferente, mas não posso achar a
chave que abrirá a porta do meu atravancado habitáculo, libertando-me.
Que devo fazer?
3 - Os sonhos têm uma significação real? Que acontece durante o sono?
5ª Conferência de Londres
Perguntas:
1 - Sou capaz agora de aceitar os problemas que me dizem respeito. Mas
como deixar de sofrer por meus filhos, quando atingidos pelos mesmos
problemas?
2 - Quando se alcança o estado em que a mente se torna tranquila, e não se
tem nenhum problema imediato, que nasce dessa tranquilidade?
3 - Se não tivermos experimentado a tranquilidade completa, como
podemos saber se ela existe?
4 - Concordais com os ensinamentos de Buda?
6ª Conferência de Londres
Perguntas:
1 - Tenho muito interesse no que dizeis, e sinto-me entusiasmado. Que
posso realizar com esse entusiasmo?
2 - Como podemos ter paz neste mundo?
3 - Dizeis que, se pensamos completamente um pensamento, ele não se
enraizará e ficamos livres dele. Quando tal pensamento surge de novo,
como devo proceder?
4 - Pareceis rejeitar a ioga como método para a meditação. Não poderíamos
executar mais facilmente essa coisa difícil se tivéssemos aprendido a
quietar o corpo e a respiração?