Entrevista Sophia Escrevemos para Não Nos Afogarmos No Kaos
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aprender um poema para dizer no Natal e ela não quis que eu ficasse atrás...
Fui «um fenómeno», a recitar a Nau Catrineta, toda. Mas há mais encontros,
encontros fundamentais com a poesia: a recitação da Magnífica, nas noites
de trovoada, por exemplo. Quando éramos um pouco mais velhos, tínhamos
uma governanta que nessas noites queimava alecrim, acendia uma vela e
rezava. Era um ambiente misto de religião e magia... E de certa forma
nessas noites de temporal nasceram muitas coisas. Inclusivamente, uma
certa preocupação social e humana ou a minha primeira consciência da
dureza da vida dos outros, porque essa governanta dizia: «Agora andam os
pescadores no mar, vamos rezar para que eles cheguem a terra.» E essa
sensação dos homens, nos barcos, a lutar contra uma tempestade de que
os ecos... Batiam as janelas, as portadas de madeira. Havia temporais
terríveis nesse tempo! Eu vivia no Porto, para os lados do mar, num sítio
chamado Campo Alegre, e chegavam-nos os ventos do mar, o vento Sul, e
as portadas batiam, às vezes abria-se uma janela de par em par e tinha-se a
impressão visual, dentro de casa, de um mar completamente louco, em que
os barcos... E essa visão do pescador que tinha de chegar à praia e podia
ser devorado pelas ondas... E ao mesmo tempo as palavras da Magnífica
criavam uma espécie de espaço de salvação e de esplendor no meio do
temporal, no meio do caos...
— Ela surge também n'«0 Jantar do Bispo» onde o conteúdo social é
central...
— Sim porque a Magnífica é um poema que, como todos os grandes
poemas, tem todos os conteúdos. Penso muitas vezes que a Magnífica é
talvez o mais belo poema que existe — se isso se pode dizer. É um poema
que «anuncia», que não canta apenas a terra como Homero. Entre dois
mundos, na encruzilhada da história, uma mulher levanta-se e diz — o
poema de salvação.
Transparências
— O texto do «Retrato de Mónica» continua assim: «O amor é oferecido
raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais.
Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso
aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos
os dias». Poesia, amor, santidade — que linha os delimita? Que há neles para
serem enunciados e anunciados em conjunto?
— São três coisas inacessíveis a Mónica, em primeiro lugar. Depois... É
evidente que não são a mesma coisa. Lembro-me de que quando cheguei à
Grécia, pela primeira vez, parámos no golfo de Corinto e o que me ocorreu
foi: «Meu Deus, obrigada por ter nascido!» Quando cheguei a Portugal fui ler
por acaso uma vida de São Francisco de Assis que tinha sido da minha mãe.
A certa altura encontro uma frase de Santa Clara de Assis que à hora da
morte diz exactamente a mesma coisa, embora numa linguagem diferente,
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franciscana. À hora da morte. Isto pode dizer-se à hora da morte, pode
dizer- -se a meio da vida e, se quiser, há um instante em que o regozijo em
frente da beleza do Universo une, une todas as coisas e o que é poético é
também religioso... Mas... o facto de alguém se regozijar com a beleza do
Universo não é propriamente a santidade. Não, a santidade é outra coisa
muito mais complicada — ou não será mais complicada, mas mais simples e
muito mais difícil...
— A Sophia em todo o caso canta o terreno, a «exalação das coisas», a
exalação do seu próprio ser, o seu encontro com as coisas e Deus é para si
«a ausência das ausências»...
— O que eu penso é que a poesia exige uma certa transparência como o
amor exige uma certa transparência e como a santidade exige uma certa
transparência. São transparências de natureza diferente e, sobretudo, a
poesia é uma transparência em relação ao Universo, o amor éuma
transparência entre duas pessoas e a santidade é uma transparência total,
como que em todos os planos. Mas eu não saberia definir a santidade...
— Porquê?
— A santidade às vezes é uma arte de morrer. A santidade assusta-me um
pouco e até Cristo se assusta: «Se este cálice puder ser afastado...» Eu não
gosto muito de falar de santidade, tenho a sensação de... tocar numa coisa
para que não...
— Poesia e santidade, de novo se encontram no desenvolvimento de uma
preocupação social e política, presente por exemplo n'«O Jantar do Bispo»...
— Não me obrigue a responder. Eu não gosto muito de falar de santidade...
Não posso, não sou capaz...
O cadáver dos outros
— Como chegou à política e a uma opção socialista? Eu lembro-me de outro
conto exemplar, «O Homem» em que o encontro com o rosto da pobreza e
do abandono tem uma clara conotação religiosa, evangélica...
— Esse encontro com o homem, na rua, foi o meu primeiro conto e tentei
escrevê-lo tal e qual...
— Tal e qual, como?
— Tal e qual como tinha acontecido. Não inventar nada, não compor,
escrever como quem faz um relato. Aconteceu no Porto ao pé da igreja que
fica ao canto da praça, em frente da estação de São Bento. O homem
estava ali, numa esquina. Esse encontro talvez seja o primeiro de que me
lembro. Sim, talvez a emoção dos outros encontros seja através da
Magnífica. Na minha infância havia uma certa miséria não escondida, que
depois desapareceu. Foi arrumada não se sabe para onde. Pelo Estado Novo.
Lembro- -me, por exemplo, de que quando pela primeira vez fui para o
Algarve, nos anos 60, havia pobres a pedir às portas das igrejas. Depois
veio o turismo e desapareceram. Mas essa grande miséria muito patente era
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uma interrogação enorme, um escândalo no meio do mundo e da infância. É
difícil saber que lugar tinha esse escândalo na minha vida. Não tinha um
lugar muito definido. Eram tomadas de consciência repentinas e que ficavam
sem resposta, suspensas...
— Quando chegou a resposta?... porque não cresceu, creio, num meio
politizado?
— Não, a resposta das pessoas que me rodeavam era uma resposta de
generosidade humana. Aliás... resposta, resposta, talvez nunca tenha
encontrado. Mas em determinada altura e por influência de pessoas com
quem convivi, esse escândalo foi-se estruturando e tomando forma mais
definida. O que era só uma indignação ou um espanto ou uma angústia foi-
se transformando numa escolha política. A partir de certo momento pensei
ser necessária uma luta pela justiça que passava pela política, e ainda
penso. É verdade que a política da nossa época é de tal maneira
contraditória, de tal maneira cheia de fraudes, de oportunismos, de
confusões que, neste momento, não se vê resposta clara. Tem que se
procurar um caminho... e esse caminho passa ainda necessariamente pela
política.
Mas eu direi que fundamentalmente o que está na base da minha opção
política é o não aceitar o escândalo. É o não aceitar que haja pessoas
inteiramente sacrificadas. O considerar que não é possível passar por cima
do cadáver dos outros ou por cima de vidas diminuídas e desumanizadas.
25 de Abril:
a poesia está na rua
— A frase «a poesia está na rua» surge numa poesia sua dedicada «aos
militantes do PS», partido em que esteve integrada. É sua esta frase que
mais tarde inspira os cartazes da Vieira da Silva mas que desfila já com a
multidão no 1.º de Maio de 74?
— Antes do 1.º de Maio houve uma reunião na Associação de Escritores
para preparar a manifestação e as frases para o destile. Eu lembro-me de
ter sugerido várias e uma delas «a poesia está na rua». Outras surgiram.
«Ouvir África», por exemplo, levada pelo Luandino Vieira. Era antes da
descolonização e infelizmente não foi seguida porque muitos dos erros da
descolonização, parece-me, se deveram a não ouvir bastante. Muita coisa se
fez em que, para se fazer melhor, se devia ter ouvido antes e muito. Aliás
pouco tempo depois, numa circunstância pública, eu disse que a 25 de Abril
a poesia estava na rua mas tinha sido rapidamente empurrada para dentro
de casa.
— O 25 de Abril surge no entanto nos seus poemas como um momento de
profunda euforia. Vai ser enfim possível «a festa do terrestre na nudez da
alegria que nos veste», através de uma nova limpeza. Limpeza que, como a
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de Lagos, suscita «a nostalgia de um projecto racional limpo e poético».
Projecto político e projecto poético coincidem?
— No 25 de Abril há um momento poético extraordinário. Hoje em dia nós
olhamos para trás e perguntamos a nós próprios se foi a nossa sede de uma
ilusão que criou uma espécie de fantasmagoria. Mas não há dúvida de que
eu me lembro uma cidade de Lisboa sem nenhuma polícia, sem nenhuma
violência. Lembro-me da cidade de Lisboa onde todas as pessoas que
encontrávamos sorriam, lembro-me de ver passar pequenos grupos de
gente nova no Rossio que pareciam pequenos bandos de bailarinos ou
gaivotas, e atravessavam de um lado ao outro da praça. Lembro-me de
bandeiras que dançavam em cima da cabeça das pessoas e das expressões
e dos gestos e das vozes. E tudo isso era um tão bonito e extraordinário
momento poético e como que uma ilha noutro planeta... Talvez tivesse
havido um momento em que, imagino, algo para toda a gente estava para
além da política e que depois a política destroçou, a política tradicional.
Creio que houve um estado de graça. Mas depois o pecado do poder
destruiu esse estado de graça.
O «caso mental português»
— Que fazer agora para atingir «as cidades da equidade» de que fala a
propósito dos labirintos da Vieira da Silva?
— Primeiro saber com realismo que estão longe e não as prometer
demagogicamente para amanhã. Saber que estão longe e que não vão
aparecer por milagre. E saber, até, que não serão a total equidade.
Ficaremos sempre a meio caminho mas será sempre melhor estar mais à
frente. Penso sobretudo que a sociedade em que vivemos é própria de um
mundo que está a acabar. Há um desastre cultural em todo o Ocidente e em
Portugal esse desastre cultural conjuga-se com o «caso mental português».
Ambos se somam e se agravam um ao outro...
— O «caso mental português» que é para si?
— No plano dos factos eu direi que somos um povo que fez o Terreiro do
Paço e o transformou num parque de automóveis. Que somos um povo que
fez as Descobertas e hoje é incapaz de organizar as pescas. Era assim no
tempo do Estado Novo, continua a ser assim e é assustador. Este é um caso
típico de inconsciência cultural com graves consequências económicas. Um
povo empobrece extraordinariamente quando não tem consciência cultural
dos problemas políticos, dos problemas sociais, dos problemas económicos.
— A Sophia é dos raros poetas portugueses com experiência de militância
activa, de banhos de multidão, de comícios. Hoje a sua participação na vida
política é praticamente nula. Como vive o facto de estar retirada?
— Devo dizer que, logo a seguir ao 25 de Abril e mesmo antes, eu falei
muito do lugar do poeta na cidade do homem e pensei que tinha uma certa
obrigação de participação. Hoje em dia o meu desejo profundo é um desejo
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de marginalização para poder fazer o que posso fazer. Aliás, quando estava
na Assembleia Constituinte tive uma experiência importante. Saí um dia
mais cedo e atravessei o Bairro Alto a pé. Na rua havia um pequeno grupo
de crianças a brincar na soleira de uma porta. E chamaram-me e
perguntaram se eu era a Sophia de Mello Breyner Andresen. Eu disse que
sim, mas como é que elas sabiam? Elas responderam que a professora
estava a ler uma história minha na aula e tinham visto um retrato meu.
Fiquei a conversar com as crianças — e pensei, de repente, que escrever era
a minha verdadeira participação política.
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uma sensação de perdição que nos leva a escrever, até para ver onde
estamos, para compreender onde estamos.
— E a poesia é simultaneamente geometria e...
— Geometria mas arrancada a um caos. O poema não é o caos, percebe? O
poema é arrancado ao caos e traz ainda a sua ressonância, os seus ecos. Eu
não sei se é isso que o faz um bom poema. Sei que nos poemas de que eu
gosto há sempre essa dimensão. E as traduções muito bem feitas e
literárias, para mim... são um pouco como as cópias romanas das estátuas
gregas, que eliminaram a imperfeição, o tremor da vida, a respiração...
— Num poema seu o «Kaos onde tudo nascia» é o «palácio do Minotauro»
da infância...
— É um pouco todo aquele mundo de coisas múltiplas, diversas,
contraditórias, assustadoras que enfrentamos na infância e que não
conseguimos organizar dentro de nós, decifrar, compreender, mas que ao
mesmo tempo são muito ricas. A diferença entre o caos e o mal é que
enquanto o mal é uma negatividade total, um puro princípio de destruição
— do mal não nasce nada —, o caos tem em si uma força de recriação. Em
Hesíodo ao princípio era o caos. E na Bíblia «as trevas que cobriam a lace do
abismo» são ainda o caos, do qual Deus vai tirar o mundo ordenado,
dividindo as águas, dividindo a noite do dia...
— Porquê a Grécia, Sophia? Se é verdade o que escreve: «A paixão nua e
cega dos estios atravessou a minha vida como rios», então essa paixão está
ligada à Grécia...
— A Grécia é um ponto de partida a que justamente é preciso regressar
porque então o homem tentou partir da imanência, partir do seu estar na
terra: estou na terra, sou mortal mas vou tentar viver a minha mortalidade
com o máximo de verdade, o máximo de transparência, o máximo de...
Desde sempre, a dança
— Mantenhamo-nos na terra, portanto. Desde a sua primeira poesia que
canta simultaneamente Apolo e Dyonisos. Mas no segundo caso, o canto
transforma-se em dança. «Bailarina fui», escreve, ao constatar que por
delicadeza perdeu, como Rimbaud, a sua vida. «Evvoe Bakkhos! Os gestos
cantam na dança libertados!» E algures a palavra é «gesto libertado». Desde
quando este interesse pela dança e como?
— Desde sempre. A dança é um elemento dionisíaco ligado ao ritmo e à
despersonalizacão. No poema sobre Bakkhos também se fala de uma
consciência múltipla...
— Chegou a dançar, a aprender bailado?
— Eu vivia no Porto quando era pequena e não havia nenhuma escola de
ballet. Inventava danças sozinha. Anos depois não perdia os bailados que
apareciam. Mas era tarde para aprender. Dançava muito sozinha e, quando
os meus filhos eram pequenos, dançava para eles. Por isso ninguém percebe
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por que razão, no filme do João César Monteiro, a minha filha Maria me
compara com a Isadora Duncan.
— Acha que a sua filha tinha razão, que é uma Isadora Duncan?
— Eu acho que podia ter sido uma bailarina.
— Às vezes ainda dança, Sophia?
— …Muitas vezes imagino bailados e argumentos para bailados.
Há lugares sagrados, sabe?
— A dança e a infância dir-se-ia que na sua poesia se ressuscitam ao mesmo
tempo. Em Creta, «onde o Minotauro reina», havia «uma antiquíssima dança
que se dança em frente de um toiro na antiquíssima juventude do dia». E em
«Palácio» afirma: «Era um dos palácios do Minotauro — o da minha infância
para mim o primeiro... o da minha infância para mim o vermelho». Que foi
essa infância vivida no Porto, na Granja?
— São sítios diferentes e casas muito diferentes. Essa casa vermelha era da
minha avó e não a casa do meu pai e da minha mãe onde eu vivia. A Granja
era a praia onde passava apaixonadamente o Verão, e mesmo quando lá
morava era para mim uma terra prometida. Para mim e para várias pessoas
que... Há lugares sagrados, sabe? Mas isso são coisas que se escrevem nos
contos e nos poemas e que não se dizem numa entrevista. É a casa da
Granja que surge ao poema «Casa branca em frente ao mar», no conto «A
Casa» e n'A Menina do Mar. A Menina do Mar é inspirada numa história que a
minha mãe me contava: nos rochedos morava uma menina muito pequena...
Essa menina representava para mim a felicidade perfeita porque almoçava
no mar, dormia no mar, vivia no mar...
— No mar «onde o caos recomeça — incorruptível». Nadou desde muito
cedo?
— Primeiro aprendi sozinha. Depois houve uma época da minha vida, entre
os 11 e os 18 anos, em que nadava enormes distâncias, para muito longe
de terra. Sentia- -me invulnerável. Mais tarde comecei a ter menos
resistência e a fumar e a sentir uma certa angústia, a não ser capaz de
estar sozinha longe. Hoje quando estou fora de pé tenho a sensação de que
qualquer coisa me vai puxar para baixo...
— De que outras coisas tem medo, para além de estar sozinha longe?
— Tenho medo de tudo. Só não tenho medo da polícia. Só não tenho medo
da política. De resto, tenho medo de tudo. Tudo é para ter medo! Vivemos
sempre rente à deriva e a destruição corre atrás de nós...
Tua unidade inteira com teu corpo
— E no entanto só o mar, dir-se-ia, reconstitui o «estar-ser-inteiro inicial das
coisas» que os gregos colectivamente restabeleciam através de «gestos
rituais». Algures a inteireza, completude tem outra formulação enigmática,
claríssima: «tua unidade inteira com teu corpo»...
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— É um poema sobre Antinoos. Quando chegamos a uma praia, temos a
impressão de que o mundo nos propõe uma inteireza. O céu, o mar, a
terra... e no entanto essa inteireza esbarra, esfacela-se, divide-se... mas
como se se esfacelasse por razoes que são acidentais e podiam ter sido
evitadas... Como quando fazemos um erro e pensamos que podíamos ter
evitado esse erro. E busca-se constantemente um novo caminho para... Na
medida em que estou na terra tenho que viver em termos de imanência. Há
uma relação com o terrestre em que a homem tem que confiar. O nosso
estar na terra tem um sentido, não é uma ratoeira. Não fazia sentido que o
homem fosse posto numa ratoeira e que o terrestre só o desviasse do seu
destino. É Sócrates quem diz que aquele que procura a verdade se deve
«desembaraçar dos olhos e dos ouvidos». Essa negação do fenómeno, que
aliás se insinua era certos entendimentos do cristianismo, é qualquer coisa
que sempre rejeitei. Não acredito que Deus ponha o homem numa ratoeira,
que lhe dê olhos para o enganar, para que ele se perca... O pecado nasce
sempre no espírito.
— Quando Antinoos morre, Adriano, segundo a Sophia, lamenta-se numa
única frase: «Contigo morreu o meu projecto de viver a condição divina». O
projecto do Auriga consiste também em celebrar em sí mesmo «a ordem
natural do divino»... O que era Antinoos para Adriano?
— Uma relação de amor de Adriano com o Universo em que está... Mas não
me peça que explique o poema. O poema não explica: implica.
— Há dois dos seus primeiros poemas intitulados, um, «Homens à beira-
mar», outro, «Mulheres à beira-mar». As mulheres «têm o corpo feliz de ser
tão seu» e «a boca colada ao horizonte». Os homens «nada trazem consigo»
e os horizontes são-lhes longínquos e o seu corpo «é só um nó de frio»...
— Esses poemas têm a ver com as manhãs da Granja, com as manhãs da
praia. E também com um quadro de Picasso. Há um quadro de Picasso
chamado Mulheres à beira-mar. Ninguém dirá que a pintura do Picasso e a
poesia de Lorca tenham tido uma enorme influência na minha poesia,
sobretudo na época do Coral... E uma das influências do Picasso em mim foi
levar-me a deslocar as imagens. Quanto ao mais, eu penso que há uma
diferença entre o homem e a mulher, e os feminismos não podem... Para
mim o machismo não é considerar que há uma diferença entre o homem e a
mulher, o machismo é tentar fazer um negócio dessa diferença...
— A demagogia é um «capitalismo de palavras», o machismo é um
capitalismo da diferença entre o homem e a mulher?
— Os feminismos são teorias. Eu acho que a teoria na nossa época tem
desempenhado um papel terrível na política, tem desempenhado um papel
terrível na arte, e também na vida... A vida tem sido muito sacrificada à
teoria...
Fernando Pessoa e a teologia do nada
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— Fernando Pessoa como poeta é um representante maior do que é talvez
a divisão do homem moderno. E o «dividido», o «viúvo de si próprio»...
— Os primeiros poemas sobre Fernando Pessoa tiveram como ponto de
partida o terem-me pedido uma conferência sobre ele. Ia ficando meia louca
porque escrever em estilo lógico e explicativo é contrário à minha
organização natural. No fim da conferência acabei mesmo um pouco
alucinada, porque li o Pessoa todo ao mesmo tempo e acabei por ouvir
fisicamente as quatro vozes do Fernando Pessoa. Fiquei completamente
cercada. E, dessa espécie de cerco, de insatisfação e de incapacidade de
decifrar o Fernando Pessoa logicamente, nasceram os poemas. É-me um
pouco difícil explicar. Sabe, há um texto sobre Shakespeare assombroso,
que podia ser sobre Fernando Pessoa. É um texto escrito por... por um
desses teólogos do nada...
— …?
— Espere..., o Borges, o Jorge Luís Borges. E, se quiser, eu pertenço a uma
geração que vem depois do Fernando Pessoa e que de cena forma não
aceita essa... essa teologia do nada, e há uma tentativa de um certo
regresso à inteireza. Eu escrevi muito sobre Fernando Pessoa porque
justamente essa capacidade de não ser ninguém me faz uma certa angústia.
Porque a morte não é só decomposição... também pode ser perda de
identidade. Fernando Pessoa perde a identidade em vida, vive uma perda de
identidade. Ele vive com isso, percebe? Ë como se a vida fosse qualquer
coisa que existia mas não era para ser a dele, percebe?
A prioridade,
a evidência da vida
para uma mulher...
— Por isso, Sophia, lhe perguntei se isso tem alguma coisa a ver com o
homem moderno?
— Há uma certa recusa na minha poesia do homem moderno e de uma
cultura que é uma cultura de separação. Mas no Fernando Pessoa há um
ascetismo, uma renúncia... Não é: «Obedece como um cadáver», como
diziam os jesuítas, mas é «escreve como um cadáver». Escreve como um
cadáver, renuncia ao teu eu... e isso é pedido por todas as sagezas, os
jesuítas não faziam mais do que segui-las... O Buda também diz isso... Toda
a gente diz isso, Maria Armanda! Mas é uma sageza contra a qual eu me
rebelo. Talvez uma mulher não possa de nenhuma forma aceitar isso...
— Porquê?
— Ai, não sei. Talvez porque a vida tem uma prioridade, uma evidência que
não pode ser negada...
— O instante que unisse «o dividido», na proposta da Sophia, é o «um-da-
boda» e «as deusas cor de trigo» e «Penélope em seus quartos altos»...
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— Isso quer dizer que é necessário superar a renúncia. Fernando Pessoa é
um poeta que morreu para que a poesia vivesse: «não sou eu que vivo é o
poema que vive em mim». É o que diz São Paulo: «Não sou eu que vivo é o
Cristo que vive em mim». Fernando Pessoa pode dizer isso da poesia... Ele
salvou-se pelos caminhos que escolheu, percorreu o seu caminho como quis
e escreveu aquilo que tinha para escrever. Eu acho que a poesia não é uma
renúncia. O Fernando Pessoa vive a poesia como uma transcendência. Eu
creio numa positividade... Há no Coral um poema chamado «Sibilas» que é
escrito como acusação contra os poetas como o Fernando Pessoa. E há um
verso do Rilke que diz aquilo que procuro: «encontrar um puro domínio
humano entre o rio e a rocha». Eu acredito na unidade, acredito na
possibilidade, mesmo que seja... Toda a minha poesia oscila entre a
confiança nessa unidade e uma espécie de pânico do seu fracasso.
— Eduardo Lourenço diz de si que há «nomes predestinados»: «Sophia-
sabedoria mais funda que o simples saber, conhecimento íntimo, ao mesmo
tempo atónico e luminoso do essencial»... A Sophia tem consciência de
saber algo de «essencial»?
— Diziam-me quando eu era pequena que queria dizer «sagesse» e eu não
gostava dessa tradução do meu nome. «Sagesse» queria dizer, para mim,
ser uma criança muito ajuizada, muito bem comportada, muito sensata —
coisas que eu não achava nada desejáveis... Se eu sei alguma coisa? Não
sei, talvez saiba de uma maneira muito especial. Se sei está na minha
poesia. A máscara é a forma de alguém dizer o que é. Ninguém diz o que
não é. O resto é confessional e a poesia é anticonfessional. Por isso é que
eu não gosto de dar entrevistas.
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