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Aula 18 Poesia Pós-Pessoa (Presença, Neorrealismo, Sophia, Ruy Belo e Jorge de Sena)

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Aula 18

Em torno de mim, o mundo

Ida Alves
Paulo Braz
Aula 18 • Em torno de mim, o mundo

Meta

Apresentar a revista presença e o confronto com o movimento neorrea-


lista, para a discussão, na poesia portuguesa do século XX pós-Pessoa,
de dois eixos fundamentais: a escrita da subjetividade e o engajamento
sociopolítico. Reconhecer a relação poesia e mundo em quatro poetas
portugueses, das décadas de 1940 a 1960.

Objetivos

Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de:


1. definir a importância da revista presença no panorama literário por-
tuguês de inícios do século XX e de seu idealizador, José Régio;
2. determinar o papel do Neorrealismo como manifestação de consci-
ência política, com um projeto de transformação histórica, destacan-
do-se a poesia de Carlos de Oliveira;
3. comparar a escrita intimista e autorreflexiva da geração de presença
com a poesia de engajamento e intervenção do Neorrealismo;
4. relacionar as repercussões provenientes desse quadro histórico-lite-
rário à poesia de caráter testemunhal produzida pelos poetas Sophia
de M. B. Andresen, Jorge de Sena e Ruy Belo, no período das décadas
de 1940 a 1960.

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LIteratura Portuguesa II

Introdução:
repensar o modernismo

Antes de começarmos a tratar de alguns dos mais importantes poe-


tas do século XX português, devemos voltar um bocado no tempo.
Relembrar aqueles que discutiram o modernismo em Portugal. De
fato, quando falamos de modernismo em terras lusitanas, a primeira
referência que nos vem à mente possivelmente é Fernando Pessoa e
os poetas da geração de Orpheu. Foram eles, propriamente, que con-
seguiram estabelecer o espírito da modernidade estética em Portugal,
dando a forma mais bem acabada para o sentido de revolução cultural
que pairava no ar. Você ainda se lembra da aula em que abordamos
“Almas indisciplinadas”, não é mesmo?
Enfim, a atmosfera revolucionária e o desejo do novo marcaram os dois
números publicados da revista que inaugurou o modernismo em Portu-
gal. Já sabemos que Orpheu deixou marcas indeléveis na cultura portu-
guesa, legando uma herança que atravessou décadas a influenciar toda a
poesia produzida nesse país.

Figura 18.1: Orpheu, fascículo n.2,


Abril–Maio–Junho de 1915.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/
Revista_Orpheu

Mas por que começamos esta aula com esse regresso no tempo? Muito
simples: desejamos que você relembre a importância de Orpheu para
relacioná-la agora a uma outra revista moderna que foi muito forte na
primeira metade do século XX, em Portugal. Trata-se da revista presença
(assim mesmo, em minúsculas), que começou a ser publicada em 1927.

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Aula 18 • Em torno de mim, o mundo

Desde o princípio, com uma proposta diferenciada comparativamente à


Orpheu, presença tinha como propósito ser uma revista de arte e crítica
(era assim seu subtítulo). O ensaísta Eduardo Lourenço denominou-a
como “contrarrevolução do modernismo português”.

Revista presença e sua atuação

Eduardo Lourenço, em conhecido ensaio crítico chamado justamen-


te “presença ou a contrarrevolução do modernismo português”, discute a
relação existente entre Orpheu e presença. Para ele, as duas revistas tute-
lares do modernismo português apresentam algumas zonas de contato,
mas características fortemente distintas.
Se, por um lado, Orpheu representou uma verdadeira transformação
do paradigma daquilo que se compreendia por poesia em Portugal, por
outro, presença não conseguiu alcançar a amplitude revolucionária da-
quela, pois se constituiu, sobretudo, como discurso de crítica literária
e de divulgação de artistas, sem demonstrar um projeto mais forte de
transformação da própria linguagem estética ou dos caminhos literários
até então seguidos. Nas palavras de Lourenço:

A poesia não é o que diz, mas o que é, segundo uma fórmula cé-
lebre. “Cântico Negro” fala de loucura, invoca audácias extremas,
sugere complexidades, anuncia desumanidade. Mas a audácia
poética real está nas imagens fulgurantes de “Saudação”, nas va-
gas luminosas da “Ode Marítima”, espelho de uma complexidade
e de uma desumanidade tão irrefutáveis que perto delas a mea-
da psicológica de Régio parece um brinquedo de criança. A sua
simples existência mostra uma “loucura” vertiginosa, em estado
puro, tão diferente da aludida por Régio como uma bomba ex-
plodindo, de um discurso de anarquista. Tal é, aliás, em termos
metafóricos, o abismo que separa, em geral, Orpheu de presença
(LOURENÇO, 1987, p. 152).

As referências feitas neste fragmento são, respectivamente, a José Ré-


gio (poeta e crítico que esteve à frente da revista presença durante alguns
anos) e Álvaro de Campos (heterônimo futurista de Fernando Pessoa).
A dissonância assinalada entre estas duas poéticas e metaforizada na
curiosa comparação entre um discurso de anarquista e uma bomba ex-
plodindo é sintomática daquilo que Lourenço demarcará como a di-
ferença fundamental entre tais grupos. A violência e radicalidade da

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LIteratura Portuguesa II

poesia de Orpheu compreende um discurso da crise, não somente diz


o vazio existencial da ausência de Deus, mas é este próprio vazio. Por
outro lado, a postura dos presencistas consiste numa atitude de caráter
psicologizante (ao menos segundo a crítica de Lourenço); a vertigem da
dissolução das unidades de sentido no mundo é apenas enunciada, sem
que dela se faça a substância da própria matéria poética. Por isso, para
Lourenço, a denominação de “Segundo modernismo” para a geração
dos presencistas parece indevida, na medida em que estes não cons-
tituem necessariamente uma continuidade em relação aos de Orpheu.
Portanto, parece-lhe mais adequada a ideia de uma contrarrevolução.
Como veremos, em presença, há a constituição de uma escrita in-
timista, “em torno de mim”. O interesse dos poetas dessa geração era
investigar as obscuras profundezas do eu como modo de se lançar numa
viagem de autoconhecimento, o que refletia a forte influência que os
estudos de psicanálise freudiana tiveram no pensamento desses poetas.
Todavia, a configuração subjetiva que, anos antes, havia aberto espaço
para experimentos de violenta desagregação, nos versos de um José Ré-
gio, por exemplo, parecia retomar uma dicção não muito distinta do que
faziam os pós-românticos. Examine o poema “Baile de máscaras”, de
Régio, para compreender melhor o que estamos explicando:

Contínua tentativa fracassando,


Minha vida é uma série de atitudes.
Minhas rugas mais fundas que taludes, Talude
Quantas máscaras, já, vos fui colando? Declive, rampa, escarpa.

Mas sempre, atrás de Mim, me vou buscando


Meus verdadeiros vícios e virtudes.
(– E é a ver se te encontras, ou te iludes, Entrudo
Que bailas nesse entrudo miserando...) miserando
Baile de máscaras
deplorável, carnaval de
Encontrar-me? iludir-me? ai que o não sei!
tristezas, digno de dó.
Sei mas é ter no rosto ensanguentado
O rol de quantas máscaras usei...

Mais me procuro, pois, mais vou errado.


E aos pés de Mim, um dia, eu cairei,
Como um vestido impuro e remendado!
(RÉGIO, 1985, p. 68)

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Aula 18 • Em torno de mim, o mundo

Antes de tudo, observe que estamos diante de um soneto, portanto,


de um poema escrito de acordo com um modelo formal clássico. Para
além de um universo semântico que ressoa as entonações crepusculares
do fin de siècle, há ainda um demasiado apego a um eu centralizador,
mesmo que dividido. Repete-se a busca por um grande Eu totalizante
e hipoteticamente individual: “Mas sempre, atrás de Mim, me vou bus-
cando / Meus verdadeiros vícios e virtudes. (...) Mais me procuro, pois,
mais vou errado.”
A noção de verdadeiro, por exemplo, para um Pessoa (o poeta do
fingimento), seria, no mínimo, relativizada na relação do sujeito lírico
com a linguagem, a qual é notada como inevitável demarcadora de dis-
tâncias. A própria ideia de um baile de máscaras a reiterar as muitas per-
sonae do eu lírico, neste poema, não consegue alcançar a dimensão de
fratura e esvaziamento que o projeto heteronímico de Pessoa ou mesmo
a poética de Sá-Carneiro (cada um a sua maneira) já havia, anos antes,
elaborado de forma muito mais densa. Sintomaticamente, esse poema
aparece em uma obra intitulada Biografia (1929). O título desse livro de
Régio não só é de um contraste flagrante com a complexidade poética
da “Autopsicografia”, do Pessoa ortônimo, como nos aponta para um
exercício de escrita fundado em um eu autoral.

Visite o site http://www.centrodeestudosregianos.com/, dedicado


à figura e à obra de José Régio. Veja fotos, bibliografia, textos e
mais informações interessantes sobre esse escritor.

Mas atenção: ao se falar de “contrarrevolução”, pode até parecer que


os poetas de presença em nada contribuíram para a poesia portuguesa,
sendo pouco mais do que um atraso na história literária do século XX.
Não é verdade. Essa revista e seus participantes atuaram para compre-
ender a arte moderna (não só a literatura) e a sua contribuição crítica é
de grande relevância para o entendimento dos processos poéticos que
viriam a seguir.

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LIteratura Portuguesa II

Literatura viva

Diferentemente de Orpheu, a revista presença: folha de arte e críti-


ca teve uma vida mais longa no cenário português. Foram dezenas de
números entre 1927 e 1940, os quais tiveram papel importante na de-
terminação de uma perspectiva estética que, nas palavras de José Régio,
visava ao pensamento de uma “literatura viva”. Em meio ao período de
consolidação do Estado Novo, já sob a tutela de António de Oliveira
Salazar, Portugal começava a conhecer os grilhões da opressão política e
da censura e, neste sentido, a afirmação da liberdade criativa como ex-
pressão da subjetividade independente do artista apresentava-se como
um respiradouro, espaço de produção cultural desimpedida por qual-
quer força política autoritária.
Como principais colaboradores da presença, podemos destacar os
nomes de José Régio, João Gaspar Simões – que estiveram à frente da
revista durante toda a sua existência –, Branquinho da Fonseca e Adolfo
Casais Monteiro. É sabido que, além destes nomes, figuras como Miguel
Torga, Vitorino Nemésio e Fernando Pessoa também participaram de
tais publicações, embora apenas episodicamente (o primeiro com mais
frequência que os dois últimos). A revista defendia a ideia de uma “lite-
ratura viva”, aberta a experimentações e liberta de pressões restritivas de
qualquer ordem (seja política, ética ou estética).
Você já sabe, é claro, que quadros de definição de grupos ou escolas
literárias têm meramente um caráter didático, mas é importante com-
preender a força desse periódico coimbrão (a sede era em Coimbra).
Antes de tudo, os presencistas são os primeiros leitores críticos de Or-
pheu. Ou seja, o grupo de escritores ligados à presença buscou com-
preender e explicar, teórica e na prática, os funcionamentos dos me-
canismos criativos da geração de Orpheu, constituindo um espaço de
pioneirismo crítico-analítico relativamente ao modernismo português.
Aliás, ao tratar, sobretudo, desta característica, vale ressaltar a incon-
tornável influência dos presencistas como disseminadores de uma vasta
tradição de poetas-críticos em Portugal.

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Aula 18 • Em torno de mim, o mundo

Figura 18.2: Capa da revista presença.


Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/
Ficheiro:Presen%C3%A7a.jpg

José Régio: o idealizador de presença

A manifestação de uma perspectiva psicológica na escrita dos poetas


de presença, naturalmente, ocorre sob as mais variadas formas. Desta-
camos o caso de José Régio e o forte pendor religioso assumido por sua
lírica, por exemplo, nos Poemas de Deus e do Diabo (1925) – aliás, obra
editada antes mesmo do primeiro volume de presença, mas que já marca
as tendências que seriam seguidas por um dos principais idealizadores
da revista. No já citado poema “Cântico negro”, a afirmação de um eu
lírico insubordinável é sintomática de uma discussão de cunho, não so-
mente moral, mas igualmente estético. O reiterado “Vem por aqui” que
é igualmente repelido pelo eu lírico revela o incondicional desejo de
liberdade promulgado pelo poeta, que não faz concessões de nenhuma
ordem. Leia um fragmento do poema:

“Vem por aqui” – dizem-me alguns com olhos doces,


Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

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LIteratura Portuguesa II

A minha glória é esta:


Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
(...)

Não, não vou por aí! Só vou por onde


Me levam meus próprios passos...

(...)

Como, pois, sereis vós


Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,


Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
(...)

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.


(...)

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!


Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma ordem que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei para onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
(RÉGIO, 1985, p. 50-51)

Esse poema é exemplar da discussão que é o centro de interesse des-


ta aula: a relação eu e mundo. A ideia de afirmação da individualidade
em detrimento de uma noção de coletividade fica evidente em versos
como “A minha glória é esta: / Criar desumanidade! / Não acompanhar
ninguém.”, enquanto a perspectiva de desumanidade a que faz referência
este eu lírico confirma, precisamente, tal expressividade do sujeito sin-

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Aula 18 • Em torno de mim, o mundo

gular, fundador de seus próprios valores éticos e estéticos. No mesmo


sentido, a Loucura reivindicada neste poema é, como contraponto da
razão mais cartesiana, o acesso possível ao Longe, à Miragem, aos abis-
mos espreitados por esse eu, e somente por ele. “Não sei para onde vou
/ – Sei que não vou por aí!”, versos finais do poema, dão a ver o distan-
ciamento instaurado entre o eu e o outro, o qual é determinado numa
dimensão estritamente ontológica (do ser em mim), mas que soará a
outros artistas dos anos 1930 e 1940 como alheamento inconsequente
em relação à situação política e social do Portugal salazarista de então.
Não à toa um outro grupo de escritores se manifestará contra pre-
sença, reivindicando uma arte social, mais engajada politicamente com
os problemas que atravessava, não apenas Portugal, mas toda a Euro-
pa. Esse outro grupo ficará conhecido, na história literária portuguesa,
como o grupo neorrealista.

Atividade 1

Atende ao Objetivo 1

A partir do que foi apresentado até agora, dos sites visitados, explique:
1. Por que o ensaísta Eduardo Lourenço considerou presença uma con-
trarrevolução do modernismo instaurado por Orpheu?
2. A importância de presença para a compreensão do modernismo
português.

Resposta Comentada
Resuma a crítica que Eduardo Lourenço faz à presença sobre seus escri-
tores não apresentarem a mesma linguagem revolucionária que caracte-
rizou Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros. Pen-
se na poética do fingimento pessoano e compare com o sujeito expresso
na poesia de José Régio. Em seguida, levando em conta que os poetas de
presença foram os primeiros leitores de Orpheu, indique a importância

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LIteratura Portuguesa II

da atividade crítica por eles operada no sentido de identificar alguns


elementos fundamentais do primeiro modernismo. De fato, a questão
da alteridade e a atenção a problemas de ordem psicológica investiga-
das pelos poetas de presença tiveram a sua origem na geração anterior,
contudo, seu ponto de vista alcança uma dimensão principalmente te-
mática, enquanto a carga dramática de Orpheu extrapola o mero ques-
tionamento intimista para se tornar uma verdadeira transformação na
linguagem poética ao tratar a subjetividade.

Os neorrealistas: oposição à presença

As intermináveis discussões em torno da questão dos presencistas,


supostamente exaltadores da “arte pela arte”, em oposição aos neorrea-
listas, defensores de uma “arte política”, embora muitas vezes se trans-
formem numa polêmica estéril acerca da realidade histórico-literária
da primeira metade do século XX português, também não deixam de
demarcar pontos interessantes para compreendermos os acontecimen-
tos de então. Ora, de fato, houve um confronto de gerações, em finais
da década de 1930, o qual apontava para um novo grupo de escritores,
artistas, com interesses distintos daqueles que figuravam em presença.
A partir da publicação de dez volumes sob o título de Novo cancioneiro,
em que figurava a produção poética de nomes como Fernando Namora,
Mário Dionísio e (o que se tornaria mais conhecido entre eles) Carlos de
Oliveira, o universo cultural português pode conhecer as manifestações
mais bem acabadas daquilo que se propunha como novo paradigma po-
ético em contraposição aos preceitos da revista de José Régio. Presen-
cistas e neorrealistas trocavam farpas em jornais ou em revistas de arte,
cada qual apontando aos outros os limites ou fraqueza de seus projetos.
Há, sem dúvida, muita polêmica envolvida na questão do Neorrea-
lismo, sobretudo no que diz respeito a uma desqualificação artística das
obras que vieram à luz sob a tutela do dito movimento. Muitos foram
os acusados – e não só pelos seus contemporâneos presencistas, mas
por muitos poetas e ensaístas depois deles – de produzir uma literatura
panfletária, de rasurar qualquer qualidade estética em detrimento da
função política da literatura na sociedade. E, de fato, sob o pressuposto
de uma arte engajada, muita matéria cultural foi posta a serviço de uma
ideologia socialista e/ou de exigências de partido. Todavia, o tempo se-

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Aula 18 • Em torno de mim, o mundo

parou o trigo do joio na avaliação crítica dos escritores neorrealistas.


Um dentre eles, contudo, insubordinou-se radicalmente contra as amar-
ras ideológicas impostas pelos neorrealistas mais ortodoxos, operando
uma notável metamorfose de escrita e fixando-se como um nome in-
contornável da poesia portuguesa. Falamos de Carlos de Oliveira.

Mas, afinal, o que foi exatamente o Neorrealismo em Portugal?


Em linhas gerais, trata-se de um movimento artístico que eclodiu
em princípios dos anos 1930, levantando a bandeira de uma arte
de intenção política com ideário declaradamente socialista, antis-
salazarista e engajada em questões sociais. Literariamente, carac-
terizou-se por uma poética e uma narrativa de maior discursivi-
dade, com uma escrita mais referencial e clara em seus propósitos
de fundo didático, tendo em vista que tinha como público-alvo: o
proletariado e o cidadão de cultura média.
Leia um artigo interessante sobre o Neorrealismo português e sua
relação com o regionalismo brasileiro em: http://docs.paginas.
sapo.pt/literatura_comparada/medeiros1997.pdf

Conheça e explore o Museu do Neorrealismo em Vila França de


Xira, Portugal: http://www.museudoneorealismo.pt/PageGen.
aspx#.UsDZWrQo3ZY
O Neorrealismo foi um movimento que ocorreu em vários países
e em diferentes manifestações artísticas, por exemplo, no cinema.
Consulte o site: http://www.webcine.com.br/historia2.htm e ini-
cie sua leitura sobre o cinema neorrealista.

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LIteratura Portuguesa II

Atividade 2

Atende aos Objetivos 2 e 3

A partir do que foi exposto sobre o Neorrealismo e o que vimos acerca


da geração de presença, destaque as principais divergências entre estes
dois movimentos. Seria produtivo que você lesse o artigo sobre o Ne-
orrealismo português e sua relação com o regionalismo brasileiro ante-
riormente indicado para responder com mais elementos.

Resposta Comentada:
O que caracteriza, fundamentalmente, as divergências entre neorrealis-
tas e presencistas diz respeito a um posicionamento ideológico quanto
à função do artista e sua obra. Enquanto para os poetas de presença a
investigação psicologista e um olhar íntimo sobre o sujeito determina-
va seu modo de estar no mundo, para os neorrealistas, a crítica política
e um posicionamento mais engajado eram condições necessárias de sua
criação. A respectiva contraposição de uma arte de investida individual e
uma arte coletiva, num âmbito muito mais temático do que propriamente
formal, assinala uma diferença radical entre presencistas e neorrealistas.

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Aula 18 • Em torno de mim, o mundo

Carlos de Oliveira: “A minha voz


da morte é a voz da luta”

Figura 18.3: Carlos de Oliveira.


Fonte: http://www.portaldaliteratura.com/autores.
php?autor=228

Carlos de Oliveira nasceu em Belém do Pará, Brasil, no ano de 1921,


filho de pais portugueses emigrantes. Com apenas dois anos, voltou com
sua família para Portugal para viver sua infância numa aldeia próxima
a Cantanhede, região da Gândara, perto de Coimbra. A geografia árida
e infértil dessa região, onde viviam camponeses pobres numa natureza
hostil, foi elemento determinante na formação do escritor que, ao longo
de sua produção, desenvolveu um estilo deveras peculiar. Estreado com
o livro de poemas Turismo (1942), Carlos de Oliveira, ainda neste perío-
do, apresentava fortes vínculos com o ideário neorrealista, embora, des-
de já, revelasse algumas dissonâncias em relação ao restante do grupo.
Sob a crítica de que sua obra atendia a uma expressividade lírica a qual
ia de encontro à estética neorrealista por ser excessivamente pessoal,
Carlos de Oliveira, já em Mão pobre (1945), escrevia versos como os de
“Soneto”, poema de que lemos duas estrofes a seguir:

Acusam-me de mágoa e desalento,


como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.

Hei-de cantar-vos a beleza um dia,


quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.
(OLIVEIRA, 2003, p. 50)

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LIteratura Portuguesa II

A acusação sofrida pelo eu lírico deste soneto pode ser lida como tes-
temunho do que o próprio Carlos de Oliveira sentiu na pele. Uma poe-
sia carregada de “mágoa e desalento” não servia aos propósitos políticos
do Neorrealismo, quanto mais uma escrita que se empenhasse no labor
estético de construções formais mais complexas e efeitos imagéticos que
desviassem a atenção do leitor. Todavia, o grande contributo desse escri-
tor foi, justamente, o reconhecimento de que a legítima resistência que
poderia exercer contra um tempo de opressão e de carências extremas
se dava exatamente no trabalho da linguagem. A noção de trabalho poé-
tico (aliás, título com que batizou a sua antologia poética) torna-se cara
a Carlos de Oliveira, na medida em que começa a apurar seu exercício
oficinal de composição, submetendo, ainda, seus próprios textos iniciais
a uma vertiginosa metamorfose na década de 1960, ou seja, realizou um
processo de reescrita das obras produzidas de 1940 a 1960, depurando-
-as dos excessos da linguagem neorrealista mais ortodoxa.
O interesse do poeta em cantar a beleza associava-se a um intrínse-
co desejo criativo que reconhecia o quanto a verdadeira revolução em
poesia havia de se dar, antes de tudo, na forma. O marco desta trans-
formação pode ser situado na altura da publicação da sua obra Canta-
ta (1960). Já no título desse livro, o foco de atenção dirige-se a outros
propósitos, porventura mais líricos, embora de maneira alguma tenha
abandonado a postura de resistência que caracterizou seu trabalho des-
de o princípio. Leia a seguir o poema intitulado “Soneto”, de Cantata,
no qual a atenção à linguagem é indiciadora de um veemente desejo de
unir palavra e mundo.

Rudes e breves as palavras pesam


mais do que as lajes ou a vida, tanto,
que levantar a torre do meu canto
é recriar o mundo pedra a pedra;
mina obscura e insondável, quis
acender-te o granito das estrelas
e nestes versos repetir com elas
o milagre das velhas pederneiras;
mas as pedras do fogo transformei-as
nas lousas cegas, áridas, da morte,
o dicionário que me coube em sorte
folheei-o ao rumor do sofrimento:
ó palavras de ferro, ainda sonho
dar-vos a leve têmpera do vento.
(OLIVEIRA, 2003, p. 161)

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Aula 18 • Em torno de mim, o mundo

Observe que, de fato, trata-se de um soneto, todavia, a clássica di-


visão estrófica dá lugar a um único bloco de quatorze versos, o que é já
sintomático da retomada da tradição lírica, mas em diferença. Há uma
violência neste tratamento linguístico que se une à própria noção de
rudeza e brevidade das palavras, indicada pelo eu lírico. A relação de
correspondência entre mundo e linguagem ensaiada por este sujeito
revela uma realidade recriada no poema, reconstruída “pedra a pedra”,
como a assinalar o labor poético como modo de transformação, em
nível simbólico, do real. Este trânsito entre o real e o imaginário deter-
mina, então, uma maneira de assumir um compromisso ético, posto
que o texto se apresenta como abertura, espaço de tensão com o mun-
do, repercutindo a precariedade e a violência da própria vida. A “mina
obscura e insondável” é a sentença demarcadora da indiferenciação
entre mundo e linguagem, ambos termos impossíveis de abarcar em
sua totalidade, logo, apontados como signos da falta, da brevidade.
Embora supostamente reticente quanto à ideia de se vislumbrar uma
realidade de plenitude, o eu lírico não deixa de sonhar um mundo
possível: “ó palavras de ferro, ainda sonho / dar-vos a leve têmpera do
vento” (OLIVEIRA, 2003, p. 161).
Acerca da postura de resistência da escrita de Oliveira, Ida Alves,
leitora especial de sua obra, comenta:

Poetas, romancistas e críticos reconhecem em sua obra uma


aprendizagem ético-estético muito marcante, um momento des-
tacável de compreensão da arte como imprescindível atividade
de um outro saber sobre o homem e sua apreensão de mundo,
estabelecendo-se no trabalho com as palavras, com a literatura,
na sua execução e fruição, um caminho de resistência humanís-
tica (ALVES, 2013, p. 51).

Tal “resistência humanística” de que nos dá parte a ensaísta se pro-


cessa como discurso num nível estrutural da obra de Oliveira. Não se
trata, apenas, de dizer a miséria, denunciar o precário, mas de fazer da
matéria verbal que compõe seus versos a própria manifestação da misé-
ria e da precariedade – o que este poeta constrói de maneira exemplar a
partir de uma linguagem seca, dura, violenta como a vida.
Seu complexo universo poético problematiza tópicos como a ques-
tão social e os problemas existenciais, passando pelo tempo, a morte, a

210
LIteratura Portuguesa II

metamorfose, a infância, a memória, por meio de arranjos que tendem


a unir a matéria da vida à materialidade do texto. Na bela sequência
poemática “Estalactite”, de outro livro, Micropaisagem (1968), lemos os
movimentos milenares de transformação da matéria como imagem da
muito humana contradição entre consciência da finitude e desejo de
eternidade. O gotejar incessante que forma as estalactites apresenta-se
como cristalização do tempo – permanência e transformação –, asso-
ciando-se, ainda, este mesmo processo ao gesto de escrita.

Leia, sobre a obra de Carlos de Oliveira no contexto do Neorrea-


lismo português, um artigo do Professor Benjamin Abdala Júnior
(USP), um dos primeiros estudiosos brasileiros sobre esse escri-
tor português: http://www.letras.puc-rio.br/unidades&nucleos/
catedra/revista/5Sem_06.html
A cineasta portuguesa Margarida Gil filmou Sobre o lado esquerdo
(2007), película inspirada na obra de Carlos de Oliveira. O filme
– que tem argumento de Margarida Gil e do poeta e ensaísta Ma-
nuel Gusmão – promove um passeio pelos textos do poeta, tendo
como fio condutor o incontornável romance Finisterra. Paisagem
e povoamento (1978), último a ser publicado pelo autor e espé-
cie de testamento literário. Lembramos que o escritor faleceu em
1981. Você pode assistir a um fragmento do filme de Margarida
Gil em: http://www.youtube.com/watch?v=R41hKgtvhdk.
Leia sobre estalactites e pense o poema como uma estalactite no
papel. Acesse: http://www.infoescola.com/geologia/estalactites/

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Aula 18 • Em torno de mim, o mundo

Atividade 3

Atende ao Objetivo 3

Leia o poema “Bolor”, de Carlos de Oliveira, e responda à questão proposta:

Os versos
que te digam
a pobreza que somos
o bolor
nas paredes
deste quarto deserto
os rostos a apagar-se
no frémito
do espelho
e o leito desmanchado
o peito aberto
a que chamaste
amor
(OLIVEIRA, 2003, p. 158)

Este poema é do livro Cantata, obra de maturidade de Carlos de Oli-


veira, em que a carga política de seus versos aposta, não num discurso
de denúncia, mas em efeitos poéticos que exercem, na linguagem, um
gesto de resistência. Aponte, no poema, elementos que confirmam tal
perspectiva de leitura, explicando-os.

Resposta Comentada
Partindo do próprio título do poema, podemos relacionar um cam-
po semântico associado à decomposição, como a apontar para uma
realidade sob o signo da morte: bolor, pobreza, deserto, apagamento,
“leito desmanchado”. A noção de falta está intimamente relacionada à
linguagem, também parca, tendo em vista a contenção vocabular do
texto. Deste modo, a consciência histórica inscreve-se num discurso
que diz a própria precariedade da vida e do mundo, reduzindo-se a

212
LIteratura Portuguesa II

um elementar “amor” – palavra que sozinha comporta o último verso


do poema e que, porventura, inscreve um movimento de ambiguidade
entre a esperança e a desilusão.

Repercussões em outros poetas:


sobre ilhas e metamorfoses

Das décadas de 1930 a 1960, muito ocorreu no meio literário portu-


guês e não somente em torno das revistas de arte. Os poetas que agora
estudaremos são exemplos dos que não tiveram envolvimento mais es-
treito com periódicos nem grupos literários, preferindo construir um
caminho independente das bandeiras levantadas por este ou aquele nú-
cleo de artistas. Falaremos de três nomes muito importantes da poesia
portuguesa do século XX: Sophia de Mello Breyner Andresen, Jorge de
Sena e Ruy Belo.
Os dois primeiros estrearam nos anos 1940; o terceiro em 1961. Em-
bora bem diferentes entre si, os três apresentam um sentido agudo de
atenção ao homem e ao seu tempo histórico, defendem uma ética para a
poesia, pois compromissada com a dignidade humana e a liberdade de
habitar o mundo. Vale a pena conhecê-los.

Sophia: “O poeta é um escutador”

Detentora de uma vasta obra, a autora não apenas enveredou pela


poesia, como também escreveu contos, teatro, ensaios críticos e até mes-
mo literatura infantil. Celebrada por seus contemporâneos, sua poesia
deixou marca indelével na cultura portuguesa, não só por apresentar,
constitutivamente, um singular trabalho estético, mas por juntar a este
imenso edifício de beleza poética, que é sua obra, um olhar atento ao
mundo circundante. A produtiva conjugação de rigor e sensibilidade
rítmica projeta sobre suas composições uma claridade surpreendente,
como se das palavras se destacasse a própria coisa significada. Um sen-
tido de harmonia, bem ao modo da cultura clássica, busca, por meio da
justeza da relação do sujeito com o mundo, um equilíbrio possível em
tempos de opressão como os do Salazarismo em que vivia.

213
Aula 18 • Em torno de mim, o mundo

O título desta seção faz uma dupla referência, isto porque a sentença
– retirada de um texto de Sophia – é já uma paráfrase ao verso pessoano:
“O poeta é um fingidor”. Tal fragmento é sintomático, não apenas do
importante aspecto musical presente em sua obra, mas também da re-
lação expectante que a autora de Navegações (1983) impõe ao seu fazer
poético. Sophia empreende em sua escrita uma atenção sobre o mundo
de modo a adivinhar-lhe a transparência, como se estivesse a conhecê-
-lo pela primeira vez, descobrindo-o. “As ondas quebravam uma a uma
/ Eu estava só com a areia e com a espuma / Do mar que cantava só para
mim” (ANDRESEN, 2011, p. 77). Os versos do poema de abertura do
livro Dia do mar (1947) oferecem-nos esta claridade imagética.
Nas palavras do poeta e ensaísta crítico Gastão Cruz, em texto sobre
outro livro da poeta, Dual (1972), lemos o seguinte: “O exercício da lin-
guagem é, por excelência, a forma de estar atento ao mundo, onde cada
coisa nomeada se recorta com clareza e nitidez” (CRUZ, 2008, p. 154).
Este “estar atento ao mundo” indicia a profunda consciência histórica
que a poesia andreseniana acusa.

Ouça em http://www.youtube.com/watch?v=WYT8OzEukZ0
um discurso de Sophia de M. B. Andresen.

Em seu famoso título Navegações, o poema “Lisboa” nos oferece a


força deste movimento de escrita que configura um simultâneo ges-
to ético e estético. “Digo: / “Lisboa” / Quando atravesso – vinda do
sul – o rio / E a cidade a que chego abre-se como se do seu nome
nascesse” (ANDRESEN, 2011, p. 667). A relação de correspondência
entre palavra e ato é não apenas uma forma de conhecimento do real,
mas igualmente um modo de sobre ele intervir– conhece-se Lisboa
dizendo-a, atravessando-a. “Digo o nome da cidade / – Digo para ver”
(ANDRESEN, 2011, p. 667).
No âmbito de uma poesia forjada, em grande medida, em torno de
um universo marítimo e de paisagens exuberantes, insurge a face mais
violenta do real, como se a poeta, ao buscar a maior lucidez para dizer

214
LIteratura Portuguesa II

o mundo, cegasse por excesso de claridade: “Sempre a poesia foi para


mim uma perseguição do real. (...) E se a minha poesia, tendo partido
do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca
atenta” (ANDRESEN, 2011, p. 841). Ora, esta evolução de que nos dá
parte a poeta é exemplar para compreendermos as tensões que con-
tornam sua obra. Uma perspectiva mais estritamente política acaba
por se desenvolver em sua poética, assumindo feições de uma radical
consciência histórica. Talvez seja neste espaço de tensão que se funda-
mente mesmo sua poesia. De fato, há em seus versos um gosto clássico
pelo belo e pelos elementos naturais (o mar, o sol, o vento, a praia), o
que, todavia, não impede, de forma alguma, sua atenção àquilo que a
própria poeta denomina como o real. Para entender melhor esta ques-
tão, leiamos um poema seu:

Exausta fujo as arenas do puro intolerável


Os deuses da destruição sentaram-se ao meu lado
A cidade onde habito é rica de desastres
Embora exista a praia lisa que sonhei
(ANDRESEN, 2011, p. 715).

Neste poema de Ilhas (1989), sintomaticamente intitulado “Tempo


de não”, a noção de recusa, ou resistência, convive com uma paisagem
poética que, embora desolada, aponta para restos de um universo se-
mântico de clássica luminosidade (deuses, praia, sonho). Para Sophia,
conhecer a vida é experimentá-la no que ela tem de concreto. Deste
modo, se se quer revolver a terra, é preciso sujar as mãos.

Em 2007, veio à luz, pela RTP, o documentário O nome das coisas,


de Pedro Clérigo. O filme conta com o testemunho daqueles que
conviveram com a poeta e de leitores críticos de sua obra. Você
pode assistir ao documentário de Pedro Clérigo em http://www.
youtube.com/watch?v=s0MhPfK1OjY. A poeta faleceu em 2004.

215
Aula 18 • Em torno de mim, o mundo

Os trabalhos e os dias de Jorge de Sena

A importância de Jorge de Sena (1919–1978) no cenário cultural


português do século XX ultrapassa e muito sua atuação como poeta –
o que é já matéria de espanto, tendo em vista que se trata de um dos
maiores nomes da poesia em português, não só de seu tempo, mas de
sempre. Embora fosse engenheiro de formação, construiu ao longo de
sua vida uma carreira em torno da literatura; além de atuar como poe-
ta, foi também cronista, tradutor, dramaturgo, escreveu contos, ensaios
críticos, deixando-nos ainda teatro, um romance inacabado (Sinais de
fogo) e uma novela (O físico prodigioso).

Assista à entrevista com Jorge de Sena em http://www.youtube.


com/watch?v=EgMqW6VQIcs

À extensa obra de Sena juntam-se, também, os estudos teóricos acer-


ca da obra de Luís de Camões. O autor de A estrutura de Os Lusíadas
foi, inequivocamente, se não o maior, um dos maiores leitores do vate
de todos os tempos. Sua produção ensaísta, nessa área, é de grande im-
portância crítica.
Filiado ao PCP (Partido Comunista Português) – o qual depois vi-
ria a abandonar por discordâncias ideológicas –, Sena se impôs uma
vida de exílio. No final da década de 1950, mudou-se para o Brasil,
onde viveu em Assis e Araraquara, trabalhando como professor de Li-
teratura e onde escreveu a parte mais substancial de sua obra poética e
crítica. Poucos anos após o golpe militar de 1964, Sena mudou-se para
Santa Barbara, nos Estados Unidos, cidade em que viria a morrer, em
1978. Com personalidade forte, de comportamento inflexível perante
as injustiças de seu tempo, manteve sempre uma postura política de-
veras engajada a qual se faz sentir em sua poesia sob a ideia de uma
poética do testemunho.

216
LIteratura Portuguesa II

Poética do testemunho: um bom caminho para compreender a


escrita de Sena é a leitura dos prefácios das antologias poéticas
de sua própria obra. Neles, o poeta desenvolve reflexões variadas
sobre literatura e sobre seu próprio modo de escrever e viver a
poesia. No prefácio à Poesia I (1961), Sena formula a ideia de uma
“poética do testemunho”, a qual aponta para o entendimento da
poesia como movimento transformador do homem e do mundo.
Nas palavras do poeta:

Como um processo testemunhal sempre entendi a poesia, cuja


melhor arte consistirá em dar expressão ao que o mundo (o den-
tro e o fora) nos vai revelando, não apenas de outros mundos si-
multânea e idealmente possíveis, mas, principalmente, de outros
que a nossa vontade de dignidade humana deseja convocar a que
sejam de facto (SENA, 1977, p. 11-12).

Importa destacar deste fragmento os sentidos de “dignidade hu-


mana” e “transformação” a que convoca o processo testemunhal.
As ideias de expectação e vigilância ao seu tempo histórico são
igualmente assinaladas neste prefácio. A conjugação de um gesto
concomitantemente ético e estético na configuração de seu tra-
balho literário estabelece laços, no que diz respeito a veemente
consciência política projetada em seus versos, muito próximos
com a escrita, por exemplo, da sua amiga e companheira de ge-
ração Sophia de Mello Breyner Andresen. Todavia, a poesia de
Sena, diferentemente da de Sophia, é excessiva, transbordante, o
que leva a composições muitas vezes longas.
Interessa-nos ressaltar, sobretudo, o forte pendor humanista des-
ta poesia, o qual é determinado por uma irredutível afirmação
da vida. Sena busca capturar o espírito do tempo por meio de
seus movimentos metamórficos – criação e destruição da vida. A
partir de um gesto testemunhal, o poeta projeta para a eternidade
a angústia da finitude legada às obras dos homens, seres mortais.
É a partir do enfrentamento da morte, da precariedade da vida
humana, que Sena exerce seu gesto político por excelência, pois é
neste âmbito que institui um lugar comum com os homens, seus
iguais em dor e esperança.

217
Aula 18 • Em torno de mim, o mundo

Sem mais demora, vamos ao encontro da obra de Jorge de Sena.


O poema que dá título a este momento da aula é o nosso primeiro
objeto de estudo:

Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro


e principio a escrever como se escrever fosse respirar
o amor que não se esvai enquanto os corpos sabem
de um caminho sem nada para o regresso da vida.

(...)

Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem.


E os convivas que chegam intencionalmente sorriem
e só eu sei porque principiei a escrever no princípio do mundo
e desenhei uma rena para a caçar melhor
e falo da verdade, essa iguaria rara:
este papel, esta mesa, eu apreendendo o que escrevo.
(SENA, 1977, p. 69-70).

O poema “Os trabalhos e os dias”, de Coroa da terra (1946), é exem-


plar para entendermos os princípios da chamada poética do testemunho
de Sena. O texto, que faz referência à obra homônima de Hesíodo, poeta
grego da antiguidade, promove uma coordenação entre os movimentos
do fazer poético e da própria ideia de trabalho. O homem distingue-se
dos demais animais por, dentre outros fatores, ser capaz de transformar
a natureza por meio da produção de objetos de cultura, logo, a correla-
ção estabelecida entre poesia e trabalho institui o labor poético em meio
aos outros modos de fazer, atividade capaz de estabelecer vínculos com
o humano, capaz de criar a noção de comunidade. Para Sena, a poesia é
um grande lugar comum: “Uma corrente me prende à mesa em que os
homens comem.”
A mesa, espaço de comunhão e metonímia do próprio mundo, é
onde o poeta inscreve seu gesto interventor – escrita sobre o papel e
a vida. Neste sentido, a palavra alcança uma esfera de representação
numa interessante ambivalência, entre a referência ficcional e a repre-
sentatividade política. A “verdade” evocada pelo eu lírico é sintomática
desta ambivalência, a qual situa o processo testemunhal como gesto si-
multaneamente inventivo e transformador. Os versos finais do poema
afirmam tal imagem a partir da noção de aprendizado implicado no
movimento de escrita e sua intrínseca carga de experimentação. Deste

218
LIteratura Portuguesa II

modo, vida e linguagem convivem no universo seniano por meio de


tensões que dão a ver seus reivindicados anseios por dignidade humana.
Ao se falar de Sena, não se pode deixar de referir seu livro de po-
esia intitulado Metamorfoses (1963), obra-prima do poeta, a qual re-
colhe vinte poemas acompanhados por vinte imagens de obras de arte
ou objetos da cultura, num jogo de leitura e intersecção sem igual em
literatura portuguesa. O texto de que nos apropriamos para este recor-
te é o poema que encerra tal livro: “A morte, o espaço, a eternidade”.
Neste extenso poema, somos lançados em direção a um radical enfren-
tamento da morte. O apreço pela vida humana proclamado no verso
que principia o poema já nos coloca em face de um sujeito irredutível à
precariedade da existência: “De morte natural nunca ninguém morreu”
(SENA, 1977, p. 139). O encadeamento de negativas que se segue acusa
esta inflexível resistência à morte que se configura como definhamento
do corpo – a morte natural –, pois o homem, como animal de cultura,
carrega consigo um precioso universo simbólico e, com a morte, não
apenas o homem, como todo um mundo (de herança cultural) morre
com ele. A força imperativa deste sujeito lírico se projeta num desejo
de eternidade – anseio exclusivo do ser mortal. Leia o início do poema:

De morte natural nunca ninguém morreu.


Não foi para morrer que nós nascemos,
não foi só para a morte que dos tempos
chega até nós esse murmúrio cavo,
inconsolado, uivante, estertorado,
desde que anfíbios viemos a uma praia
e quadrumanos nos erguemos. Não.
Não foi para morrermos que falámos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.
Não foi para morrer que nós sonhámos
ser imortais, ter alma, reviver,
ou que sonhámos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos.
Não foi. (...)

219
Aula 18 • Em torno de mim, o mundo

Leia o poema completo em:


http://www.lerjorgedesena.letras.ufrj.br/antologias/poesia/o-fu-
turo-a-luz-a-eternidade/#morte
Nesse site – Ler Jorge de Sena –, coordenado pela especialista bra-
sileira da obra seniana, a professora Gilda Santos, você terá acesso
a inúmeros materiais de e sobre Jorge de Sena.

A dinâmica metamórfica que movimenta esse poema busca incorpo-


rar a própria experiência da morte no ciclo da vida como modo de al-
cançar, talvez, aquilo que Sophia de Mello Breyner Andresen reconhecia
como a medida da justiça. “A morte é natural na natureza”, vaticina o eu
lírico – “Mas / nós somos o que nega a natureza”. O ímpeto por humani-
dade desencadeado por estes versos é surpreendente, pois rejeita ao ho-
mem a condição de ser mortal, projetando seu fazer (a obra de cultura)
para a eternidade. Há, de fato, uma justiça neste gesto na medida em que
o poema reestabelece a morte no universo humano, posto que somente
o ser mortal é capaz de ansiar o infinito. É neste sentido que o eu lírico
impõe o medo, e sua funcionalidade contra a finitude e o desconhecido,
como força motriz da ação humana no mundo: “Para emergirmos livres
foi que a morte / nos deu um medo que é nosso destino.” Esta destinação
coincide, porventura, com a liberdade, como horizonte de ação num
espaço de incerteza. O destino incerto percorrido por este sujeito o leva,
consequentemente, a uma profunda relação com a experiência ética em
poesia – a qual se configura como ética da poesia de Jorge de Sena.

Ruy Belo: homem de palavra(s)

Chegamos, por fim, aos anos 1960. Há de se destacar, antes de tudo, o


ponto de viragem que representaram estes anos para a poesia portugue-
sa. Foi uma década fundamental para a cultura ocidental, sem dúvida, e,
em Portugal, foi um tempo de fundas transformações. Literariamente,
a década de 1960 começa de forma extraordinária, pois em 1961 sur-
gem grandes escritores e se iniciam propostas literárias de grade força
e significado. Além de Ruy Belo (autor sobre cuja obra agora falaremos

220
LIteratura Portuguesa II

um pouco) e Herberto Helder, tiveram livro publicado pela primeira


vez poetas como os da influente Poesia 61, portanto falamos de no-
mes da altura de um Gastão Cruz, Luiza Neto Jorge e Fiama Hasse Pais
Brandão. Contudo, é preciso assinalar, também, que a produção desses
poetas configura algo como uma convergência das principais correntes
poéticas que foram experimentadas no decorrer desta primeira metade
do século XX, de forma que, na obra desses autores, podemos enxergar
uma espécie de síntese, das mais bem acabadas das proposições esté-
ticas realizadas pelas muitas manifestações de modernidade em Por-
tugal. A própria realidade política vivida por Portugal, na altura, era
de grande conturbação – o país iniciava uma longa guerra colonial em
África, numa última tentativa (aliás, falhada) de manter seus territórios
de além-mar sob a tutela de um, não só falido, mas fantasmático Impé-
rio, enquanto a censura e a repressão política do Estado Novo tornavam
ainda mais espessa a sombra da vigilância e alienação, já em anos agoni-
zantes da ditadura de Salazar.
A autonomia da obra de Ruy Belo mantém considerável distância
relativamente à (mal)dita “literatura engajada”, todavia, isto não quer
dizer que ela seja descompromissada. Pelo contrário, se entendermos,
como nos diz Gastão Cruz, que Ruy Belo “é o mais fascinadamente rea-
lista dos poetas portugueses do século XX” (CRUZ, 2008, p. 213), a ideia
de uma poesia comprometida com o real torna-se mais clara. Contra o
fascismo de Estado, o fascínio do real, Ruy Belo, como veremos, cantou
como poucos o cotidiano, por meio de uma linguagem que se abre ao
prosaico, sem, entretanto, deixar de alcançar efeitos poéticos singularís-
simos. Sua relação com o cotidiano se dá na linguagem que adivinha,
surpresa, a poesia em matéria supostamente corriqueira; tal processo se
manifesta, muitas vezes, a partir de uma vertiginosa reflexão acerca do
tempo e da morte que parecem, subitamente, atravessar o poema.

Feliz aquele que administra sabiamente


a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

Oh! como é triste envelhecer à porta


entretecer nas mãos um coração tardio
(...)
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem

221
Aula 18 • Em torno de mim, o mundo

regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro


É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
(...)
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente


(BELO, 2009, p. 161-162)

No fragmento do poema “A mão no arado”, de O problema da habi-


tação (1962), a força com que nos chega da morte o espanto do tempo
já passado é posta em cena numa paisagem atravessada pelo discurso
lírico melancólico, posto que ciente da inexorabilidade da passagem das
horas e da tristeza advinda deste movimento. Aquilo que o sujeito lírico
designa como o “demorado adeus da nossa condição” pode ser compre-
endido como chave de leitura para a obra de Ruy Belo. A dilacerante
consciência de nossa existência finita move esta poesia em direção a
um afirmativo desejo por humanidade. De fato, “A mão no arado” traz
ressonâncias bíblicas, o que problematiza de forma veemente tanto a
questão humana quanto a ideia de Deus, na poesia deste autor. A mor-
te, um dos tópicos centrais da obra de Ruy Belo, parece ir ao encontro
daquilo que Gastão Cruz afirma acerca do real nos versos do autor de
Homem de palavra(s) (1969). É neste implacável encontro com a condi-
ção humana, junto às pequenas coisas que conformam nosso cotidiano,
que se faz sua poesia.

Vale ressaltar que Ruy Belo teve formação católica, doutorou-se


em Direito Canônico em Roma e foi adepto da ordem religio-
sa Opus Dei, a qual abandonou posteriormente. Deste modo,
a presença do imaginário cristão em sua obra é forte, embora,
ao longo de sua trajetória como poeta, tenha progressivamen-

222
LIteratura Portuguesa II

te dela se afastado. É preciso destacar sua importante atuação


como ensaísta. O livro Na senda da poesia é exemplar da atu-
ação do autor neste gênero. Nele encontramos, além de entre-
vistas concedidas pelo poeta, reflexões as mais variadas sobre
poesia, a sua e a de seus pares.

Da mesma maneira, a consciência crítica mais estritamente política


transparece em sua poesia, por exemplo, em livro denominado País pos-
sível (1973). Lemos no poema “Lugar onde” versos como: “Neste país
sem olhos e sem boca” (...) “Neste país do espaço raso do silêncio e so-
lidão / solidão da vidraça solidão da chuva / país natal dos barcos e do
mar / do preto como cor profissional” (BELO, 2009, p. 503). A leitura do
poema, rente aos acontecimentos históricos de princípios dos anos 1970
em Portugal, leva-nos a observar esta ênfase em assinalar os muitos si-
lenciamentos e interdições a que foram sujeitas as cabeças pensantes de
então. O aniquilamento da memória é a marca fúnebre maior de uma
humanidade já extinta em tempos de repressão. Acerca do assunto, os
versos finais de “Lugar onde” são sintomáticos:

País poema homem


matéria para mais esquecimento
do fundo deste dia solitário e triste
após as sucessivas quebras de calor
antes da morte pequenina celular e muito pessoal
natural como descer da camioneta ao fim da rua
neste país sem olhos e sem boca
(BELO, 2009, p. 503-504)

Observe como a solidão é índice inegável de uma expressão lírica


desolada, consciente do “demorado adeus da nossa condição”. Deste
modo, a noção de poesia que interessa a Ruy Belo parece se aproximar
ainda mais da ideia de responsabilidade, ainda que tal perspectiva de
comunidade forjada no poema de maneira alguma seja desprovida de
sua autonomia.

223
Aula 18 • Em torno de mim, o mundo

Assista a um vídeo sobre Ruy Belo e sua poesia em: http://www.


youtube.com/watch?v=uX1zQboxAAk

A ideia de que o poema é criação de um espaço novo, autônomo, em


revolução, na economia sensível da obra de Ruy Belo, pode nos auxiliar
a compreender suas palavras no ensaio “Poesia nova”:

O poeta serve-se das palavras – melhor seria dizer: serve as pa-


lavras – como o pintor mistura as suas tintas. Escolhe-as pelo
que elas têm de som, de ritmo, pela sua condição social, pela sua
árvore genealógica. Dá-lhes novas ligações e é como se as fizes-
se esquecer a casa dos pais. Aí temos uma palavra novinha em
folha, livre, isenta ainda de qualquer servidão, próxima da fonte,
com o seu peso, a sua densidade, o seu volume, a inaugurar um
espaço que só pode ser poético (BELO, 2002, p. 83).

O poema é o espaço inaugural. A novidade que ele traz está incor-


porada no aspecto lúdico que, da realidade, se lança para uma nova re-
alidade: “A arte nasce da brincadeira, na qual uma pessoa finge dar para
depois não dar. (...) O jogo permite ao homem transpor a realidade e
entrar no reino do maravilhoso.” (BELO, 2002, p. 90). Ora, esta “nova
realidade” de que nos dá parte tem muito a ver com o que pensava Fer-
nando Pessoa acerca de poesia – lembremos, trata-se do poeta do fingi-
mento e dos heterônimos. Em “Da poesia que posso”, poema de Homem
de palavra(s), lemos os versos “(o resto vem no pessoa / Pessoa é o poeta
vivo que me interessa mais)” (BELO, 2009, p. 339). De fato, sente-se
uma forte presença pessoana nos textos de Ruy Belo, herança de uma
modernidade aprendida com o poeta do Orpheu, mas igualmente lega-
da pelos versos de Carlos de Oliveira, Jorge de Sena, Sophia, entre tantos
outros que das palavras que deixaram fizeram o homem e o poeta que a
nós também muito interessa.

224
LIteratura Portuguesa II

Conclusão

Buscamos nesta aula apresentar algumas linhas de força da poesia


portuguesa moderna e contemporânea a partir de alguns de seus princi-
pais nomes. A dualidade imposta entre uma poesia de caráter subjetivo
em oposição a uma poesia de abrangência coletiva perde-se em meio
à riqueza das obras destes poetas que ora conhecemos. Tal perspectiva
redutora de análise, portanto, não dá conta da vasta produção destes
autores, os quais manifestam sua arte em consonância com seu tempo
histórico, sua tradição literária, seus horizontes éticos e políticos.

Atividade Final

Atende ao Objetivo 4

Leia o fragmento de “Arte poética II”, de Sophia de Mello Breyner Andresen:

A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a


sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o
que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma esté-
tica nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma
consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fideli-
dade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me
uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da mi-
nha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem
costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me
que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstina-
ção sem tréguas, densa e compacta (ANDRESEN, 2011, p. 839).

Neste texto, o caráter ensaístico imiscui-se no poético de modo que o eu


lírico apresenta uma voz confundida com a da própria Sophia e o que
pensa a poeta acerca de poesia. A partir desta reflexão acerca da fide-
lidade testemunhal do discurso andreseniano, que pontos de encontro
podemos destacar entre as poéticas de Sophia, Jorge de Sena e Ruy Belo,
no que diz respeito a um enfrentamento do real?

225
Aula 18 • Em torno de mim, o mundo

Resposta Comentada
No texto de Sophia, a poeta constrói seu discurso elencando o que de
sua própria vida a poesia exige, assinalando uma intersecção importante
(entre literatura e real) para compreendermos este processo. A própria
ideia de responsabilidade indicada naquilo que a poesia “pede”, neces-
sita, é um índice relevante neste quesito. Ora, tanto Sophia quanto Sena
e Ruy Belo são poetas que, a sua maneira, investiram numa confluência
entre ética e estética de modo a fazer de suas obras uma abertura pos-
sível relativamente ao mundo e ao outro. O enfrentamento do real ope-
rado por estas distintas poéticas determina-se, seja na noção de justiça
e equilíbrio em Sophia, seja na poética do testemunho em Sena, seja na
afirmação do cotidiano de Ruy Belo, como modo privilegiado de enten-
dimento e transformação do mundo.

Resumo

No âmbito do modernismo português, apresentamos o confronto entre


Orpheu, os objetivos da revista presença e do grupo do Neorrealismo. A
partir da tensão entre sujeito e mundo, formos ao encontro de quatro
poetas fundamentais no contexto das décadas 1940 a 1960: Sophia de
M. B. Andresen, Carlos de Oliveira, Jorge de Sena e Ruy Belo. Sobre es-
ses poetas maiores da literatura portuguesa do século XX, fizemos apre-
sentações breves para despertar seu interesse de leitura.

Informação sobre a próxima aula

Na próxima aula, trataremos de temas-chave da poesia portuguesa do


século XX envolvendo a questão da linguagem e erotismo. Trabalhare-
mos o espaço do corpo, como espaço da existência transformada.

226

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