A Morte Do Autor - Roland Barthes PDF
A Morte Do Autor - Roland Barthes PDF
A Morte Do Autor - Roland Barthes PDF
Roland Barthes
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Sem dvida sempre foi assim: desde que um fato contado, para fins intransitivos,
e no para agir diretamente sobre o real, isto , finalmente, fora de qualquer funo que no
seja o exerccio do smbolo, produz-se esse desligamento, a voz perde a sua origem, o autor
entra na sua prpria morte, a escritura comea. Entretanto, o sentimento desse fenmeno
tem sido varivel; nas sociedades etnogrficas, a narrativa nunca assumida por uma
pessoa, mas por um mediador, xam ou recitante, de
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quem, a rigor, se pode admirar a performance (isto , o domnio do cdigo narrativo), mas
nunca o "gnio". O autor uma personagem moderna, produzida sem dvida por nossa
sociedade na medida em que, ao sair da Idade Mdia, com o empirismo ingls, o
racionalismo francs e a f pessoal da Reforma, ela descobriu o prestgio do indivduo ou,
como se diz mais nobremente, da "pessoa humana". Ento lgico que, em matria de
literatura, seja o positivismo, resumo e ponto de chegada da ideologia capitalista, que tenha
concedido a maior importncia "pessoa" do autor. O autor reina ainda nos manuais de
histria literria, nas biografias de escritores, nas entrevistas dos peridicos, e na prpria
conscincia dos literatos, ciosos por juntar, graas ao seu dirio ntimo, a pessoa e a obra; a
imagem da literatura que se pode encontrar na cultura corrente est tiranicamente
centralizada no autor, sua pessoa, sua histria, seus gostos, suas paixes; a crtica consiste
ainda, o mais das vezes, em dizer que a obra de Baudelaire o fracasso do homem
Baudelaire, a de van Gogh a loucura, a de Tchaikovski o seu vcio: a explicao da obra
sempre buscada do lado de quem a produziu, como se, atravs da alegoria mais ou menos
transparente da fico, fosse sempre afinal a voz de uma s e mesma pessoa, o autor, a
entregar a sua "confidncia".
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Apesar de o imprio do Autor ser ainda muito poderoso (a nova crtica muitas vezes
no fez mais do que consolid-lo), sabido que h muito certos escritores vm tentando
abal-lo. Na Frana, Mallarm, sem dvida o primeiro, viu e previu em toda a sua
amplitude a necessidade de colocar a prpria lngua no lugar daquele que dela era at ento
considerado proprietrio; para ele, como para ns, a linguagem que fala, no o autor;
escrever , atravs de uma impessoalidade prvia que no se deve em momento algum
confundir com a objetividade castradora do romancista realista , atingir esse ponto onde
s a linguagem age, "performa", e no "eu": toda a potica de Mallarm consiste em
suprimir o autor em proveito da escritura (o que vem a ser, como se ver, devolver ao leitor
o seu lugar). Valry, todo embaraado numa psicologia do Eu, muito edulcorou a teoria
mallarmeana, mas, reportando-se, por gosto do classicismo, retrica, no cessou de
colocar em dvida e em derriso o Autor, acentuou a natureza lingstica e como que
"arriscada" da sua atividade, e reivindicou ao longo de todos os seus
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livros em prosa a favor da condio essencialmente verbal da literatura, face qual todo
recurso interioridade do escritor lhe parecia pura superstio. O prprio Proust, a despeito
do carter aparentemente psicolgico do que chamamos suas anlises, deu-se visivelmente
ao trabalho de emaranhar inexoravelmente, por uma subutilizao extrema, a relao do
escritor com as suas personagens: ao fazer do narrador no aquele que viu ou que sentiu,
nem mesmo aquele que escreve, mas aquele que vai escrever (o jovem do romance mas,
de fato, que idade tem e quem ele? quer escrever, mas no pode, e o romance acaba
quando finalmente a escritura se torna possvel), Proust deu escritura moderna a sua
epopia: mediante uma inverso radical, em lugar de colocar a sua vida no seu romance,
como to freqentemente se diz, ele fez da sua prpria vida uma obra de que o livro foi
como o modelo, de maneira que nos ficasse bem evidente que no Charlus quem imita
Montesquiou, mas que Montesquiou, na sua realidade anedtica, histrica, no mais que
um fragmento secundrio, derivado, de Charlus. O Surrealismo, finalmente, para no sair
dessa pr-histria da modernidade, no podia, sem dvida, atribuir linguagem um lugar
soberano, na medida em que a linguagem sistema, e aquilo que se tinha em mira nesse
movimento era, romanticamente, uma subverso direta dos cdigos alis ilusria, pois
no se pode destruir um cdigo, pode-se apenas "jogar" com ele ; mas recomendando
sempre frustrar bruscamente os sentidos esperados (era a famosa ' 'sacudida'' surrealista),
confiando mo o cuidado de escrever to depressa quanto possvel aquilo que a cabea
mesmo ignora (era a escritura automtica), aceitando o princpio e a experincia de uma
escritura coletiva, o Surrealismo contribuiu para dessacralizar a figura do Autor.
Finalmente, fora da prpria literatura (a bem dizer tais distines se tornam superadas), a
lingstica acaba de fornecer para a destruio do Autor um argumento analtico precioso,
mostrando que a enunciao em seu todo um processo vazio que funciona perfeitamente
sem que seja necessrio preench-lo com a pessoa dos interlocutores: lingisticamente, o
autor nunca mais do que aquele que escreve, assim como "eu" outra coisa no seno
aquele que diz "eu": a linguagem conhece um "sujeito", no uma "pessoa", e esse sujeito,
vazio fora da enunciao que o define, basta para "sustentar" a linguagem, isto , para
exauri-la.
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original: o texto um tecido de citaes, sadas dos mil focos da cultura semelhana de
Bouvard e Pcuchet, esses eternos copistas, a uma s vez sublimes e cmicos, e cujo
profundo ridculo designa precisamente a verdade da escritura, o escritor s pode imitar um
gesto sempre anterior, jamais original; seu nico poder est em mesclar as escrituras, em
faz-las contrariar-se umas pelas outras, de modo a nunca se apoiar em apenas uma delas;
quisera ele exprimir-se, pelo menos deveria saber que a "coisa" interior que tem a pretenso
de traduzir no seno um dicionrio todo composto, cujas palavras s se podem explicar
atravs de outras palavras, e isto indefinidamente: aventura que adveio exemplar mente ao
jovem Thomas de Quincey, to versado em grego que, para traduzir nesta lngua morta
idias e imagens absolutamente modernas, diz-nos Baudelaire, "havia criado para si um
dicionrio sempre pronto, muito mais complexo e extenso do que o que resulta da vulgar
pacincia das verses puramente literrias" (Os Parasos Artificiais); sucedendo ao Autor,
o escriptor no possui mais em si paixes, humores, sentimentos, impresses, mas esse
imenso dicionrio de onde retira uma escritura que no pode ter parada: a vida nunca faz
outra coisa seno imitar o livro, e esse mesmo livro no mais que um tecido de signos,
imitao perdida, infinitamente recuada.
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"segredo", isto , um sentido ltimo, libera uma atividade a que se poderia chamar
contrateolgica, propriamente revolucionria, pois a recusa de parar o sentido finalmente
a recusa de Deus e de suas hipstases: a razo, a cincia, a lei.
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Voltemos frase de Balzac. Ningum (isto , nenhuma "pessoa") a diz: sua fonte,
sua voz no o verdadeiro lugar da escritura; a leitura. Outro exemplo bem preciso pode
fazer-nos entender isso: pesquisas recentes (J.-P. Vernant) tornaram patente a natureza
constitutivamente ambgua da tragdia grega; o texto tecido de palavras de duplo sentido
que cada personagem compreende unilateralmente (esse perptuo mal-entendido
precisamente o "trgico"); h, entretanto, algum que ouve cada palavra na sua duplicidade,
e ouve mais, pode-se dizer, a prpria surdez das personagens que falam diante dele: esse
algum precisamente o leitor (ou, no caso, o ouvinte). Assim se desvenda o ser total da
escritura: um texto feito de escrituras mltiplas, oriundas de vrias culturas e que entram
umas com as outras em dilogo, em pardia, em contestao; mas h um lugar onde essa
multiplicidade se rene, e esse lugar no o autor, como se disse at o presente, o leitor: o
leitor o espao mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citaes
de que feita uma escritura; a unidade do texto no est em sua origem, mas no seu
destino, mas esse destino no pode mais ser pessoal: o leitor um homem sem histria, sem
biografia, sem psicologia; ele apenas esse algum que mantm reunidos em um nico
campo todos os traos de que constitudo o escrito. por isso que derrisrio ouvir-se
condenar a nova escritura em nome de um humanismo que hipocritamente se arvora em
campeo dos direitos do leitor. O leitor, jamais a crtica clssica cuidou dele; para ela no
h outro homem na literatura a no ser o que escreve. Estamos comeando a no mais nos
deixar engodar por essas espcies de antfrases com as quais a boa sociedade retruca
soberbamente a favor daquilo que ela precisamente afasta, ignora, sufoca ou destri;
sabemos que, para devolver escritura o seu futuro, preciso inverter o mito: o nascimento
do leitor deve pagar-se com a morte do Autor.
1968, Manteia.