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TOLENTINO, Bruno. Poemas PDF

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Bruno Tolentino

1
Bruno Lcio de Carvalho Tolentino (Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1940 So Paulo, 27 de
junho de 2007) foi um poeta brasileiro.
Nascido numa tradicional e rica famlia carioca, conviveu desde criana com intelectuais e
escritores, entre eles Ceclia Meireles, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Joo
Cabral de Melo Neto. Primo do crtico literrio brasileiro Antonio Candido e da crtica teatral
Brbara Heliodora, seu av foi conselheiro do Imprio e fundador da Caixa Econmica Federal.
Nesse ambiente familiar, foi instrudo em ingls e francs ao mesmo tempo de sua alfabetizao
no portugus.

Publica em 1963 seu primeiro livro, "Anulao e outros reparos". Com o advento do golpe militar de
1964, muda-se para a Europa a convite do poeta Giuseppe Ungaretti, onde viver 30 anos, tendo
residido na Itlia, Blgica, Inglaterra e Frana. Foi professor de literatura nas universidades de
Oxford, Essex e Bristol e tradutor-intrprete junto Comunidade Econmica Europia. Publica em
1971, em lngua francesa, o livro "Le vrai le vain" e, em 1979, em lngua inglesa, "About the Hunt",
ambos bem recebidos pela crtica literria europia. Sucedeu o poeta e amigo W. H. Auden na
direo da revista literria Oxford Poetry Now.

Em 1987, sob a acusao de porte de drogas, condenado a 11 anos de priso. Cumpriu apenas
pouco mais de um ano da pena, em Dartmoor, no Reino Unido. "Adorei e procurei tirar o mximo
de proveito", foi o que Bruno declarou sobre a experincia, numa entrevista em agosto de 2006.
Aos companheiros de priso, organizou aulas de alfabetizao e de literatura, estas ltimas
nomeadas de "Seminars of Drama and Literature", que, conforme posteriormente relatado por
Bruno, "em cujas sesses avanadas chegaram a comparecer psicanalistas de renome, ao lado de
personalidades do mundo das Letras tais como Harold Carpenter, o estudioso e bigrafo de Pound
e Auden, o dramaturgo Harold Pinter, ou Lady Antonia Fraser".

Tolentino retorna ao Brasil em 1993, publicando, no ano seguinte, o livro "As horas de Katharina",
escrito durante o perodo de 22 anos (1971-1993), ganhando com ele o Prmio Jabuti de melhor
livro de poesia. Em 1995, publica "Os Sapos de Ontem", uma coletnea de textos, artigos e
poemas originados de uma polmica intelectual com os irmos Haroldo de Campos e Augusto de
Campos, que nesse livro sero os principais alvos de sua "lngua ferina entortada pelo vcio da
ironia", frase que Bruno usou durante uma entrevista em que lhe foi pedido "um perfil abrangente
de si mesmo". Ainda em 1995 publica "Os Deuses de Hoje", e, em 1996, "A balada do crcere",
livro nascido da experincia de sua priso pouco menos de dez anos antes. Ainda nesse ano, foi
publicada uma polmica entrevista com Bruno para a Revista Veja[4], onde o poeta critica, entre
outras coisas, a atual situao intelectual do Brasil, o Concretismo, a concepo e aceitao da
letra de msica enquanto poesia e a elevao de msicos populares posio do intelectual.

Bruno ir publicar em 2002 e 2006, respectivamente, os livros que considerou como a culminao
de sua obra potica: "O mundo como Idia", escrito durante 40 anos (1959-1999), e "A imitao do
amanhecer", escrito durante 25 anos (1979-2004). Ambos lhe renderam o Prmio Jabuti, prmio j
alcanado em 1993 com "As horas de Katharina", tornando-o assim o nico escritor a ganhar trs
edies do prmio. Bruno tambm recebeu, por "O mundo como Idia", o Prmio Senador Jos
Ermrio de Morais, prmio nunca antes dado a um escritor, em sesso da Academia Brasileira de
Letras, com saudao proferida pelo acadmico, filsofo, poeta e terico do Direito Miguel Reale,
seu amigo.
Tolentino, que tinha Aids e j havia superado um cncer, esteve internado durante um ms na
Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Emlio Ribas, em So Paulo, onde veio a falecer,
aos 66 anos de idade, vitimado por uma falncia mltipla de rgos, em 27 de junho de 2007.

Sobre Bruno Tolentino


Olavo de Carvalho
Dirio do Comrcio (editorial), 04 de julho de 2007

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Quando em 1993 Bruno Tolentino retornou de um exlio voluntrio de quase trinta anos na
Inglaterra, sua obra potica em trs lnguas -- estava completa. S faltava dar-lhe uns ltimos
retoques, organiz-la em volumes e public-la. Vitorioso, seguro de si, reconhecido como igual
pelos maiores -- W. H. Auden e Saint-John Perse entre outros --, o poeta j nada mais tinha a
exigir da vida, ao menos para si mesmo. Voltei para ensinar, dizia. Era o que o Brasil mais
precisava: algum que o sacudisse de um torpor literrio de trs dcadas, que lhe devolvesse o
amor grande arte da palavra, base de toda vida civilizada.

-- Voc vai ser o nosso Matthew Arnold, profetizei, pensando em Culture and Anarchy (1869),
The Study of Poetry (1880) e outros ensaios nos quais tomara corpo, mais perfeitamente ainda
do que nas obras e atitudes do Doutor Samuel Johnson, a figura bem anglo-saxnica do crtico
literrio como educador de um povo.

Na poca eu estava terminando de expor em classe a minha Teoria dos Quatro Discursos, na
qual a Potica e a Retrica eram recolocadas no centro mesmo da filosofia aristotlica (portanto
de toda a cultura ocidental). Uma de suas concluses era a necessidade absoluta de comear toda
educao -- cientfica inclusive -- pelo aprendizado da poesia. O senso do smbolo, da unio
mgica de som e sentido, era o princpio e fonte do conhecimento, e ele s se realizava na poesia
na arte literria em sentido pleno. E era claro que eu no pensava s na educao escolar, mas
na educao do pblico em geral (do cidado, como ento eu ousava dizer, usando um termo
ainda no banalizado e prostitudo pelos programas partidrios). O meio para isso no eram
propriamente as escolas, mas a influncia direta do educador atravs dos jornais, da TV, do rdio,
de grupos de encontro, etc. S um grande poeta que fosse ao mesmo tempo um show man
poderia salvar o Brasil de afundar para sempre no poo da inpcia literria.

S que a vinha a pergunta: Cad o poeta? Nossos melhores escritores estavam octogenrios,
pendurados em bales de oxignio. A gerao seguinte, intoxicada de mitologia poltica to ftil
quanto vaidosa para no mencionar a cocana desconstrucionista --, perdera at mesmo o
sentido elementar da qualidade literria. A vida que poderia ser levava todo o jeito de que no seria
jamais.

De repente, o anjo, sob a forma de uma mulher majestosamente bonita Ktia Medeiros ,
irrompeu na minha sala de aula trazendo pela mo a soluo do problema.

O homem falava pelos cotovelos, mas tambm ouvia com ateno e, por instinto, sabia que
estava ali para fazer o que era preciso fazer. Voltei para ensinar foi a frase mais reconfortante
que ouvi naquele ano de 1993.

No sei quantas noites varamos analisando a situao, esboando planos, recenseando meios e
obstculos, preparando a edio dos seus Sapos de Ontem o primeiro tiro da longa batalha que
espervamos travar e rindo at passar mal s de imaginar a carantonha dos Campos, das
Chaus, dos Gianottis, dos Verssimos, da alta hierarquia inteira da mediocridade nacional, quando
vissem, pela primeira vez em suas pomposas vidas, algum que no os levava nem um pouco a
srio exceto como problemas de sade pblica.

Quando reagiram como reagiram -- com um manifesto de intelectuais, tentando suprir pelo
nmero de assinaturas a falta absoluta de respostas inteligentes --, olhamos um para o outro,
contendo o riso, e conclumos em unssono: Pediram penico.

Nos meses seguintes, voltamos carga, limpando o terreno, furando bales, cortando cabeas,
fazendo um estrago dos diabos. Quando nossos adversrios finalmente se calaram, achamos que
ento haveria espao para o nosso projeto de reeducao literria nacional.

Mas no contvamos com a malcia organizada. Vendo que no poderiam derrotar o poeta,
resolveram assimil-lo, digeri-lo, dilu-lo e neutraliz-lo. Nos anos que se seguiram, cumularam-no

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de prmios, de homenagens, de agrados, de festinhas, de prazeres, tudo sempre entremeado,
claro, de sussurros venenosos --, ao mesmo tempo que lhe sonegavam todos os meios de ao.
Ao homem que deveria no mnimo dirigir um suplemento cultural, uma revista, uma instituio de
ensino, no se deu sequer uma miservel coluna de jornal. Estendiam-lhe um trofu, um
dinheirinho (sabiam que ele precisava), davam-lhe um tapinha nas costas, e o mandavam ir para
casa escrever poesia. Mas ele no tinha mais poesia para escrever. Tinha uma misso a cumprir,
que foi ficando cada vez mais longe, mais longe, at desaparecer no horizonte. J cansado e
doente, ainda tinha a bravura de marcar posio, quando o deixavam falar aqui ou ali, numa
entrevista, numa palestra, numa roda de amigos. Mas sua voz nunca mais teve a presena, o
volume, a autoridade pblica dos primeiros momentos. O professor sem ctedra, o tribuno sem
tribuna, o lutador sem ringue, o soldado sem armas, no morreu em batalha. Morreu de tanto
esperar a chance de lutar. Sua vida no foi perdida, claro. Sua obra potica atravessar os
sculos. Ela a mais esplndida das vitrias, um testemunho vivo da soberania do esprito. No fim
das contas, Bruno Tolentino no perdeu nada. Foi o Brasil que o perdeu e, com ele, se perdeu
novamente a si mesmo.

4
Por que escrevo (excerto)
Bruno Tolentino

Digamos que escrevo para tentar separar


o mundo-como-tal do mundo-como-idia.
Claro? Bem, talvez tenha outras motivaes
menos conscientes, mas no tenho melhor
justificativa para exercer um ofcio to
perigoso... Imaginar-se autor parece-me
tamanha petulncia que desde que me
entendo tento fingir que sirvo para alguma
coisa!
..............................................................

Isto posto, que se atente bem: poeta no


matre penser e jamais pretendi que
escavo e escrevo para tentar configurar
mais uma teoria, antes o fao de modo a
testemunhar de uma resistncia a tentaes
desse tipo, de que tampouco fui poupado.
Mas no complico mais a coisa: confesso
ao leitor que no sei porque inventei de
ser escritor. A no ser que o que ficou
dito acima faa algum sentido...

(Fragmento do encarte do CD
O escritor por ele mesmo, Rio de Janeiro,
Instituto Moreira Salles, 2001)

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O ESPECTRO
Bruno Tolentino

(A Ivan Junqueira)

No h como agarrar-te natureza


quando a asa da noite baixa e faz
a sombra sobre a acha, a lenha presa

luz da labareda que a desfaz;


morres despreparado ou morres bem,
mas passas pela cinza, meu rapaz.

Tudo talvez ressurja mais alm,


mas ao abutre, albatroz, guia ou condor
o vo acaba por pesar e tem

que perder altitude no esplendor:


dos pramos esteira de uma nave
estende-se a amplido, mas sem repor

flego a um corao at que a ave


recolha a asa e pronto, se acabou,
foi-se o que era to doce! To suave

levitou-se e mais nada lembra o vo...


Nada, nem mesmo a terra, eqidistante
do que caiu como do que voltou,

com uma equanimidade impressionante.


E caso a interpelassem que diria?
Nada outra vez, ou menos que o ex-amante

fingindo-se impassvel se algum dia


ouve dizer que tudo acaba assim.
Pois foi assim que o espectro da poesia

surgiu-me um belo dia, e veio a mim


assim que eu consegui levar a srio
os canteiros de Kant num jardim

beira Tmisa, ante um cemitrio...


L estivera eu de mo no queixo
a espanar as lombadas do mistrio,

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seguindo a lgica ao seu belo fecho:
afinal, se a equao mais arbitrria
conseguiria amarrar a terra a um eixo,

qualquer cogitao imaginria


no seria nem mais nem menos frgil;
divagaes da hora solitria,

arabescos da mente, sempre gil


ao fazer de um trapzio o seu lugar.
Pois foi ento que, assim como um pressgio

obriga a respirar mais devagar,


mas faz bater mais forte o corao,
eu primeiro senti aquele olhar

antes de perceber a assombrao


que entre o rio, o junquilho e o malmequer
vi caminhar em minha direo.

Atnito, amparei-me a uma mulher,


semidesfalecido: o encapotado
era a cara do Charles Baudelaire

do retrato, cuspido e escarrado!


Ningum via o que estava acontecendo,
em toda aquela gente ali ao lado

ningum notava aquele rosto idntico


corola da rosa corroda
em que Blake encarnara o sofrimento.

E l vinha ele andando! Espavorida


mas alerta, habilssima colmia,
a mente me exigia uma sada

e, assim como o avestruz ante a alcatia,


insistia em no ver: no, no seria,
no podia ser ele, era outra idia

a espumejar na velha alegoria


dos nevoeiros que complicam Londres...
Mas no havia erro! A ventania

havia depenado tanto as frondes


que atirava topzios e safiras
contra o bueiro em brasas do horizonte,

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mas nele havia o ar dessas mentiras
que dizem a verdade: confrontou-me
e num rpido olhar deixou-me em tiras

os trapos da razo era o meu homem!


H mmias que uma vez desembrulhadas
tm escrito na cara o nosso nome.

Carros, nibus, gente nas caladas,


um semforo ao longe, vaga-lume
esttico entre sombras apressadas,

e aquilo a se agitar que nem um cume


de palmeira no ar e andando, andando
e desferindo o olhar como um perfume

de gangrena fatal ensarilhando


o eterno cncer da imaginao
que desorbita a mente como um bando

de morcegos agrava a escurido.


Por fim parou-me ao lado e imaginei
ouvir (talvez sonhasse, talvez no...)

um balbucio familiar e cheio


de ecos aos que andamos pelo canto:
Andaste num vazio sempre alheio,

entre noes apenas e, no entanto,


nunca bastou sequer a consolar-te
tanta fabulao cheia de espanto,

de dor... Buscas o todo parte a parte,


queres as perfeies da geometria,
e ao fim do sonho circular da arte

entregas tudo fantasmagoria,


aos jogos malabares da iluso.
Andas equivocado e nem seria

de surpreender tua equivocao,


porque, se alguma vez desconfiaste
dessa imprudncia, abriste o corao

luz conceitual, o belo traste


que temes porque o adoras e te leva,
como o refm que s do que adoraste,

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de lio em lio mesma treva.
tudo sempre a treva tumultuosa,
no por causa da carne, que se eleva

quando quer estao miraculosa,


mas por causa do olhar que no quer ver
e abisma-se em si mesmo, como a rosa

amada pelo verme e sem poder


de o recusar, tentando resignar-se.
No te resignes mais a conceber

um triunfo de idias, um disfarce


para as caras da morte neste mundo,
uma equao qualquer que a mascarasse,

como o mdico mente ao moribundo


e o coitado a si mesmo: tambm eu
meti-me com paixo nesse infecundo

escrnio de iluses, mas vem do cu


a luz que nos sustm, a que alucina,
a luz conceitual, nasce de um breu.

No sigas mais a falsa peregrina


que rapta a imagem, rouba-lhe o reflexo
e entrega os dois a um jogo que termina

por desfazer de tudo a cada nexo.


A terra provisria e improvidente,
tudo relmpago entre a morte e o sexo,

mas a alma faminta no consente


que lhe mintam! A Idia te convida
mas no recebe nunca e, de repente,

entre a porta da entrada e a da sada


perdes as propores e logo a conta,
o fio da meada e o dom da vida;

fecha-se a ltima jaula e a fera tonta


descobre que agoniza e morre presa.
E no entanto repara: o cisne aponta

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para a altura cantando, e com certeza
essa cano no extremo transfigura
a coisa moritura e a alma surpresa

entre o nmero, o nada e a noite escura...

O ESPRITO DA LETRA
Bruno Tolentino

(Um poema de "A balada do crcere")

Ao p da letra agora, em minha vida


h a morte e uma mulher... E a letra dela,
a primeira, me busca e me martela
ouvido adentro a mesma despedida

outra vez e outra vez, sempre espremida


entre as vogais do amor... Mas como v-la
sem exumar uma vez mais a estrela
que h anos-luz se esbate sem sada,

sem prazo de morrer na luz que treme?!


O mostro que eu matei deixou-me a marca
suas pernas abertas ante a Parca

aparecem-me em tudo: a letra M


a da Medusa que eu amei, a barca
sem amarras, sem remos e sem leme...

O ANJO ANUNCIADOR
Bruno Tolentino

Ouve, Maria, a nossa


(no, no te assustes!) uma luminosa
tarefa: retecer
o pequeno claro que abandonaram,
o lume que anda oculto pela treva!
Porque irs conceber!
Porque a mo, desejosa
e tosca, que O tentara

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reter, ainda que leve,
desfez-se ao toque, assim como uma vez
tocado o sopro se desfaz a avara,
a dura contrao do peito ansiado...
Mas a haste, o jasmim despetalado,
tudo o que ainda resta
dos canteiros do cu aqui na terra,
que um seco vento cresta
e uma longa agonia dilacera.
No entanto a morte h de morrer se tu quiseres,
gota concebida
bendita entre as mulheres
para que houvesse vida
outra vez, e nascesse desse fundo
obscuro do mundo,
o ninho incompreensvel do teu ventre.

No, no toques ainda


nem a fmbria do manto nem o centro
do mistrio que anima a tua tnica:
aguarda, muito sria, a ave mansa
e recebe em teu corpo de criana
a Vernica nica,
a enxurrada de ptalas te abrindo.

Em tumulto reunidas,
as cores da perdida Primavera
vo retornar, viro
numa enchente de asas, aluvio,
prpura, sempre-viva, nascitura
estranheza do amor da criatura,
constelao descendo ao rosto teu:
Ele, O que rene o corao
e o grande anel da esfera,
o fogo, a lngua ardendo, o incndio vivo,
a coluna de luz, o capitel que se perdeu...
Que eu

venho anunciar apenas a um esquivo,


humlimo veludo, a frgil chama
que h de crescer em ti, que hs de ser cama
ao parto do Perfeito, e hs de ser cntaro
e fonte e nfora e gua,
hs de ser lago
em que as sombras se afogam, que naufragam
no imenso, jovem branca como um leno;
hs de conter a lgrima

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do Infinito, o Seu vulto
e os tumultos da luz na travessia
entre a ddiva, a perda e a renncia:
quando de um certo dia
cheio de luz amarga

em que sers enfim a sombra esguia


que O deu luz e que O assistiu morrer...
Atravessa, Maria,
os abismos do ser,
ouve este estranho anncio
e deixa-te invadir para colher,
mais fundo que a razo
e o corpo, o sopro clido, o prenncio
da mais viva alegria:
entreabre-te ao claro
da visita suave,
mas terrvel, terrvel, deixa a ave
do imenso sacrifcio te ofender.

ptala intocada,
hs de sofrer
intensa madrugada
e num lago de luz como afogada
hs de durar suspensa
entre a graa imortal e a dor imensa.

Mas canta, canta agora


como a fonte borbulha, como a agulha
atravessa o bordado,
canta como essa luz pousa ao teu lado
e te penetra e tece a nova aurora,
a nova Primavera e a tessitura
do ramo que obedece e se oferece
para o mistrio e pela criatura.

Canta a alucinao,
o toque enfim possvel dessa mo
que h de colher para perder e ter
o infinito que nasce do deserto
e a semente que morre se socorre
tudo o que no estertor tentava ser.

Canta a cano do lrio e do alecrim,


essa cano que s e que na treva,
na escurido da carne, andava perto
da imensidade que te invade. E assim

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como o imenso te ampara,
voz to clara
que consolas e elevas,
vem, desperta,
matriz da eternidade e d'O sem-fim,
me de Deus, canta e roga por mim

Os falces
Bruno Tolentino

Dizem-me: deixa estar, deles ainda


te lembrars, porque assim a vida:
agora as trevas, a asa de ouro finda;
erras ao espantar-te que, vencido,

caia cada falco da sua altura_


O sonho que sonhei com o infinito
era promessa ento cada loucura
a cada altura me ser tolhida,

tudo mortal demais, o que eu sei bem.


Contudo aquele jovem os levava
no corao bem postos, eram lava

e vulco, e ningum, e nada vem


dividir-nos, a mim e aos falces meus.
Nunca mais aprendi a dar adeus.

A opinio de Sileno
Bruno Tolentino

Estranho inseto esse,

chamam-no, ao que parece,

homem, pessoa ... Passa

como quem quer voltar,

ave de arribao, mas que arrastasse

pedaos sem valia , como cata

13
de algum modo de uni-los, dar-lhes forma

ou voz, talvez. No eco

para s vezes um pouco, conhecendo,

incapaz de salvar. No tem um rosto,

tem mil cintilaes e uma garganta

incompreensvel, que escurece, e sempre

mais relutante. Cai,

e no raro to perto

que chega a parecer conciliado;

no tarda muito a recobrar o rictus

que o pe aqum das coisas,

muro sob heras secas.

E continua a cavalgada em crculos

que no completa nunca.

Como os troncos mais duros buscam leito,

assim deita-se ele, mas sem fora,

vazio de fragor e alheio terra.

De um murmrio sombrio ficam folhas

novas, iguais s outras,

limando o velho sol. Que nunca inteira

se apaga a chama escura.

14
Mas por que me interrogas

sobre o bicho estrangeiro irmo dos Fados,

como se dele eu visse

mais do que a dor que o cega ou a loucura

que o ordena e vai cumprindo ...?

O Mundo como ideia (fragmentos)


Bruno Tolentino

Canto, filho da luz da zona ardente,

coisas que vi a luz, sempre estrangeira,

tecer no ar e inevitavelmente

ir baixando com modos de redeira

ao tear deste mundo. A vida inteira

vi me escapar a luz do sol cadente,

e essa rosa de sangue na fogueira

que agora arranco s dvidas da mente.

Mente o intelecto que se esquece dela.

Se a pura luz de leste se desdiz,

a cada ocaso h no final feliz

dos nmeros da mente a bagatela

de uma luz de mentira. Contra ela

fui tecendo este canto de aprendiz.

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2

Canto o que amo e amo o que mortal.

A luz que se debate ao horizonte,

a frgil mariposa cor de fonte

que todo o nosso bem e imita um mal,

nossa doce enfermeira terminal

empalidece, cai por trs de um monte,

e a mente sem demora baixa a ponte

e faz entrar a luz conceitual.

Canto para contar daquele instante

quando o que mais amamos chega ao fim

e um belo simulacro delirante

usurpa-lhe o lugar; quando assim

que a arte desfaz da luz agonizante,

convence a muitos, no comove a mim.

No contai a ningum que no vos creia

o quanto a luz padece; baste apenas

com colher um coral solto na areia

e confi-lo a um par de mos morenas,

ou alvas como as prolas e as penas

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da pomba vesperal lua cheia;

observai-as, como a manuseia,

como o desfaz, e meditai nas cenas

que outras mos igualmente minerais

teceram, tentadoras, tela a tela,

mas a distncias como a alturas tais

que tudo quanto sofre se rebela:

a pior traio a que se faz

quem vendo a luz sangrar fecha a janela.

............................................................

18

Porque a mo que pintou La Derelitta

na cena mais cruel do Quattrocento

sabia o quanto vale o pensamento

luz das chagas que um pincel imita.

No tratara de pria ou parasita

a dor da criatura: ao sofrimento,

a uma luz de verdade e de visita

aos charcos deste mundo purulento,

o pintor da Beleza, ali, naquela

antiplatnica, ansiosa tela,

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dava enfim estatutos de nobreza;

clamava assim um mundo de verdade

no qual envelhecer, em que a certeza

de morrer no trasse a luz da tarde.

"Ao Divino Assassino"


Bruno Tolentino

(Uma Litania ante o Sagrado Corao, concebida em Paray-le-Maunial,


poca do acidente fatal de Anecy Rocha, sua namorada de 1959-1960,
irm de Glauber Rocha e que faleceu tragicamente num poo de elevador,
aos 35 anos.)

Senhor, Senhor, o Teu anjo terrvel


sempre assim? No tens um refratrio
hora do massacre um mais sensvel

que atrasasse o relgio, o calendrio?


Ao que parece a todos tanto faz
por quem o sino di no campanrio.

Comea a amanhecer e uma vez mais


rebelo-me, mas sei que a minha vida
no tem como ou porque voltar atrs.

Aceito que a mais dura despedida


bem mais que metfora do nada
a que se inclina no cho; que uma ferida

e a papoula sangrenta da alvorada


pertencem ao mundo sobrenatural
tanto quanto uma lgrima enxugada

beira de um caixo. Mas afinal,


Senhor, amas ou no a humanidade?
No fui ao escandaloso funeral

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e imagin-la em Tua eternidade
di demais! Vou passar mais este teste,
sim, mas protesto contra a insanidade

com que arrancas a muque o que nos deste!


Tu sabes que a soberba da famlia
era maior que a dela e eu tinha a peste

pai e me apartavam-me da filha


e o irmozo nem... E hoje, coitados,
como ho de estar? Aqui a maravilha,

as genuflexes.... Os potentados
e os humildes, a nata da esperana,
todos chegam por c meio esfolados,

sangrando como a luz. No s da Frana,


toda a Europa rasteja at aqui
esfolando os joelhos, no se cansa

de ensangentar-se at chegar a Ti,


e ao menos a um pixote do Alm Tejo
restituste a vista: eu quando o vi

solucei mas que o cego e o paraplgico


saiam aos pinotes, que o Teu corao
se escancare e esparrame um privilgio

aqui e outro acol na multido,


s me faz perguntar: E ela? E ela...?
No consigo entender que a um aleijo

concedas tanto enquanto a uma camlia


Tu deixas despencar.... Porque, Senhor?
Olho tudo do vo de uma janela,

mas vejo a porta de um elevador


escancarar-se sobre um outro vo,
um vo sem cho... E a seja l quem for

aqui absurdamente ds a mo!


Me pes trmulo, gago, estupefato,
pasmo, Senhor mas consolado no.

A mesma mo que fez gato e sapato


da minha doce Musa, cura e guia,
cancela as entrelinhas do contrato,

19
Dominus dixit... Mas quem merecia
mais do que uma aucena matinal
um manso desfolhar-se ao fim do dia,

quem mais do que uma flor, Senhor? Igual


nunca se viu nem mesmo entre os crisntemos,
tinha direito a um fim mais natural,

morte numa cama, em casa ao menos...


Mas no tinha que ser total o escndalo!
Por que, se nem nos circos mais extremos

Teus mrtires andaram despencando


sobre os lees, se nem o lixo cai
de oito andares aos trancos, Santo Vndalo?!

No vim denunciar o Filho ao Pai


ou o Pai ao Filho, no vim dar razo
aos que recusam e usam cada ai

contra a humildade; vim porque a Paixo


me chamou pelo nome a a alma obedece
e aceita suar sangue como no?

Mas no sei mais unir o rogo prece


do que a elegia ao hino de louvor,
no seu amar-Te assim... Caso soubesse

teria que ficar aqui, Senhor,


aqui, arrebentando-me os joelhos,
esfolando-me todo ante um amor

que vai tornando sempre mais vermelhos,


mais duros os degraus do Teu altar.
Tu, que tudo consertas, dos artelhos

que desentortas e repes a andar


at s pupilas mortas de um garoto,
do cachoupinho que me fez chorar;

Tu, que a este lhe ds a flor no broto


e quele o lrio ptrido do pus;
Tu, que passas por um de quatro e a um outro

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pegas no colo e entregas a Jesus;
Tu que fazes jorrar da rocha fria;
Tu que metaforizas Tua luz

ao ponto de fazer de uma agonia


um puro horror ou a morna mansuetude
que hs de fazer, Senhor, comigo um dia?

Quando eu agonizar, boiar no aude


das lgrimas sem fundo... Quando a fonte
cessar de soluar e uma altitude

imerecida me enxugar a fronte...


Como h de ser, Senhor? Oxal queiras
que a mim me embale a barca de Caronte,

como o fazia a velha Cantareira,


o azul da travessia... A Irrecorrvel
arrasta a cada um de uma maneira

e a quem quer que se abeire ao invisvel


recordas a promessa: aquele a escuta
e este a recusa porque a dor horrvel,

mas, se a todos a ltima permuta


ter sempre o sabor da anulao,
o travo lacrimoso da cicuta,

a ela Tu negaste o prprio cho,


deixaste-a abrir a porta sem querer!
Nunca falou na morte, e com razo,

intua, quem sabe, o que ia ver...


Sentena Tua? Em nome da promessa
no h negar Teu duro amanhecer

mas quando arrancas mais uma cabea


como saber que s Tu, que no mentia
O que ressuscitou? Talvez na pressa,

no pnico de Pedro, eu negue um dia


e trate de escapar, mas hoje no;
hoje sofro com f e, sem poesia,

metrifico uma dor sem soluo,


mas no vim negar nada! Faz efeito
essa dor: faz sangrar, mas faz questo

21
de defender-me como um parapeito
contra a queda e a revolta... Um Botticelli
despedaou-se todo, mas que jeito,

se por Lear enforcam uma Cordlia


e encarceram a Ariel por Calib...?
Alvorece, a manh beata velha

enfia agulhas no Teu cu de l,


antenas s Tuas cenas de TV,
e eu penso, ela morreu... Hoje, amanh,

enquanto Te aprouver e at que d


a palma ao prego e o ltimo verso traa,
vai doer mas Amm! No h porque

amar a morte, mas que venha a Taa,


aceito suar sangue at o final,
como no... Tudo di, menos a graa,

mata, Senhor, que a morte no faz mal!

Do livro: Anulao e Outros Reparos, 1963

Os deuses de hoje
Bruno Tolentino

Nihil obstat

II

preciso que a msica aparente


no vaso harmonizado pelo oleiro
seja perfeitamente consistente
com o gesto interior, seu companheiro

e fazedor. O vaso encerra o cheiro


e os ritmos da terra e da semente
porque antes de ser forma foi primeiro
humildade de barro paciente.

22
Deus, que concebe o cntaro e o separa
da argila lentamente, foi fazendo
do meu aprendizado o Seu compndio

de opacidades cada vez mais claras,


e com silncios sempre mais esplndidos
foi limando, aguando o que escutara.

(1995)

Protegido pela Lei do Direito Autoral


LEI N 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998
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