Palavra - Unidade Lexical - Margarida Basilio PDF
Palavra - Unidade Lexical - Margarida Basilio PDF
Palavra - Unidade Lexical - Margarida Basilio PDF
Em torno da palavra
como unidade
lexical: Palavras e
composies Margarida Basilio*
Abstract
1 Dadas as enormes dificuldades na definicao de palavra, a caracterizao acima tem apenas o objetivo
de esclarecer o objeto que estamos considerando neste trabalho; a possibilidade de uma real
definio do termo est longe de constituir um projeto vivel a curto prazo.
2 V. Hockett, 1954. Neste modelo, a flexo ajuda a delimitar a palavra; por outro lado, apenas a partir
10 3
do sec. XIX a morfologia comea a abarcar tambm a derivao.
V. Bloomfield, 1926.
ou mais palavras, como encontramos nas gramticas normativas, mas como Em torno da palavra
como unidade
uma construo que contm dois ou mais radicais. Assim, poderamos lexical: palavras e
composies
considerar que, enquanto formadores de palavras compostas, os radicais
correspondentes seriam presos. Por outro lado, existe no ingls, acompanhando Margarida Baslio
as construes compostas, todo um fenmeno de acentuao que interfere
na situao da palavra composta.4
Entretanto, patente a no aplicabilidade da definio para os
compostos do portugus. Tomemos um caso como sof-cama. Podemos
realmente dizer que sof-cama uma forma mnima como forma livre?
Ou seja, podemos dizer que sof-cama no se subdivide em duas formas
livres, sof e cama? Na medida em que um sof-cama (e navio-escola, carta-
bilhete, carta-bomba, bomba-relgio, etc.) designa algo caracterizado ao mesmo
tempo na primeira parte e na segunda parte da composio, no podemos
dizer que a forma, enquanto parte da composio, se caracteriza de modo
diferente, como presa, ou que apresenta uma mudana dramtica de significado.
A questo seguinte a de se o problema da definio de palavra, ou
do conceito de palavra composta. Do ponto de vista histrico, o problema
maior deriva provavelmente do descompasso entre a definio tradicional de
composto, em que o conceito de palavra pressuposto, e a necessidade de
um critrio definidor de palavra gramatical dentro do quadro estruturalista.
Aparentemente, a razo de podermos conviver com relativo conforto neste
descompasso se relaciona com o fato de que palavra no apenas uma
unidade morfolgica, mas sobretudo como unidade lexical: o lxico
via de regra definido como o conjunto de palavras de uma lngua.
Assim, conceptualizamos os compostos como conjuntos de palavras que
funcionam lexicalmente como uma palavra s.
Neste trabalho pretendo abordar alguns casos problemticos em torno
da palavra como unidade lexical e observar a necessidade de distinguirmos
as dimenses morfolgica e lexical da palavra, alm da dimenso grfica, que
no podemos deixar de mencionar, dada a importncia quase exclusiva dada
lngua escrita pela gramtica normativa.
Consideremos, em primeiro lugar, a conhecida discusso da gramtica
normativa sobre a situao da prefixao. A maior parte dos gramticos
normativos considera a prefixao como parte da derivao, embora sempre
com alguma marca de hesitao, por causa da origem histrica preposicional
de muitos prefixos.5 Assim, alm da emergncia da questo sincronia/diacronia,
temos dubiedade pelo fato de preposies serem, entre outras coisas, palavras
grficas embora obviamente no sejam radicais.
Ainda na prefixao, bastante complexa a situao de elementos
marcadores de dimenso, tais como mini-, multi-, maxi-, mega-, etc.; tais elementos
so, na realidade, difceis de nomear, dada a incerteza sobre se seriam prefixos
ou radicais. Neste caso se verificam problemas derivados do descompasso
entre uma viso tradicional e uma viso estruturalista de fenmenos
morfolgicos.
4
5
Idem.
Para uma anlise mais extensa desta discusso, v. Basilio, 1989. 11
Veredas, revista de
estudos lingsticos
Consideremos, por exemplo, a situao de mini-, que aparece em
Juiz de Fora, construes como mini-saia, mini-loja, etc. A rigor, temos a raiz min-, presente
v. 4, n. 2
p. 9 a 18 em formas como menos, menor, minoria, minuto, mincia, mnimo, diminuir,
etc.. Mas mini-, na forma usada hoje em dia, desconhecido em latim; parece
provir de uma reduo de mnimo ou miniatura, e uma formao recente , de
certo modo internacionalizada; formas como mini-saia aparecem a partir da
dcada de sessenta.6 Trata-se de um formativo que s ocorre prefixado, o que
nos levaria a consider-lo como prefixo; no entanto, o fato de conter o radical
min- d margem a diferentes anlises. Cunhado mais ou menos ao mesmo
tempo em oposio a mini-, o formativo maxi- apresenta caractersticas anlogas.
Um terceiro problema envolvendo a prefixao a situao de prefixos
como pre- e pos-, que apresentam uma verso acentuada pr-, ps-, como em
prefixo e pospor, em oposio a rendimentos pr- e ps-fixados. Embora
tenhamos idntica sequncia segmental relacionada a idntico significado,
observamos ao mesmo tempo uma diferena de acentuao, relacionada a
uma diferena de comportamento: enquanto pre- e pos- com a vogal mdia
tona fechada so realmente formas presas, pr- e ps- com a vogal mdia
aberta e acentuada, j figuram numa rea acinzentada, pois, alm de
conservarem a tonicidade, permitem a coordenao com omisso da base na
primeira forma (pr- e ps-fixado), o que os desqualifica como formas presas,
embora, certamente, no os defina como formas livres.
Um quarto problema ainda nesta rea a situao do elemento no
que modifica substantivos e adjetivos. Alguns autores o consideram como
prefixo; outros incluem formaes com no- entre os compostos.7
Existe uma diferena fonolgica entre o no utilizado na negao do
processo verbal e o no usado na modificao de verbos e adjetivos na fala
coloquial mais rpida, como vemos em frases como num quero, num precisa,
etc. pois a mudana nonum jamais ocorre com o uso lexical do no. Esta
diferena, entretanto, no incide sobre a a situao morfolgica do no como
modificador de substantivos e adjetivos, j que a variao fontica se limita a
usos pr-verbais.
A situao em que mais fcil caracterizar no- como formativo
vocabular a situao em que este elemento se combina com adjetivos, na
formao de adjetivos de classificao binria, como em no-alinhados (pases),
no-saturadas (gorduras), no-contveis (substantivos), no-euclidiana
(geometria) no-arredondadas (vogais), etc. Nestes casos, o elemento no-
se junta ao adjetivo para adicionar-lhe a alterao semntica da negao, de
modo que o adjetivo passa a ser negativo. Assim, por exemplo, substantivos
no-contveis so substantivos subcategorizados por sua propriedade de no
poderem ser contados; e assim por diante. Ou seja, o que define o estatuto
de formativo vocabular do no , fundamentalmente, o escopo: no se trata
de predicar negativamente uma qualidade a um referente, mas de atribuir um
carter negativo ao prprio significado do adjetivo.
6 Mas algumas formas aplicadas a transporte j aparecem com este elemento em ingls no sec. XIX.V.
The Random House Dictionary of the English Language. No Aurlio, registra-se que mini- viria de
12 7
mni(mo).
V., por ex., Alves (1987) e Cunha&Cintra (1985).
Um segundo caso em que a questo do escopo tambm clara, Em torno da palavra
como unidade
definindo a situao vocabular do elemento no-, aquele em que no- se lexical: palavras e
composies
combina com substantivos que tm referente humano, agente ou afetado, de
modo que o todo apresenta uma funo designadora de seres, como em Margarida Baslio
no-fumantes, no-scios, no-pagantes, no-agressor, etc.
Existem casos, por outro lado, em que o uso do no mais
adequadamente analisado como sinttico, apesar do escopo ser nominal.
Considerem-se os exemplos abaixo:
14 discusso os compostos de radicais ou bases presas. Tais compostos(cf. agricultura, radiologia, etc.)
apresentam estruturas peculiares, que no se confundem com sintagmas oracionais.
estabelecer o que distinguiria a palavra composta de outras unidades Em torno da palavra
como unidade
lingusticas que contenham duas ou mais palavras.11 Ou seja, necessrio lexical: palavras e
composies
caracterizar a palavra composta no apenas no fato de conter mais de uma
palavra em sua formao, mas tambm em suas propriedades estruturais de Margarida Baslio
palavra, que a distinguiriam de outras unidades.
Para que possamos depreender essa estrutura, abordaremos um caso
mais ntido, o das formaes V+S, em que S representa o objeto de V e o todo
corresponde a um ser designado pela ao de V sobre S: guarda-roupa, mata-
mosquito, porta-guardanapo, beija-flor, etc. Estas construes ilustram o
mecanismo da composio como processo de expanso lexical no portugus,
dado o fato de que o significado do todo, inteiramente previsvel, vai alm do
significado das partes, sendo uma funo do processo de composio.12
Mais especificamente, temos um processo de composio que forma
estruturas do tipo [[X]v[Y]s]]s, em que o produto um substantivo que designa
um agente ou instrumento caracterizado pela ao do verbo sobre o objeto.
Assim, por exemplo, um mata-mosquito um profissional designado pela
funo do verbo matar sobre o objeto mosquito; um guarda-roupa um
objeto caracterizado pela funo representada pelo processo verbal guardar
em relao ao objeto roupa; e assim por diante.13
Tendo em vista que o aproveitamento da estrutura sinttica V-OD um
processo lexical estvel, formando construes que no apenas apresentam
um significado distinto do de suas partes, mas tambm um comportamente
sinttico diferente do da estrutura sinttica apenas enquanto tal, podemos
registrar com certa facilidade o processo de composio e seus produtos.
Assim, por exemplo, a frase (4) abaixo,
totalmente agramatical.
Vejamos agora a questo do ponto de vista das caractersticas
estruturais dos produtos. Do ponto de vista fonolgico, clara a diferena
de ritmo, acentuao e autonomia fonolgica dos elementos envolvidos
conforme se trate do composto ou da mesma sequncia de palavras numa
situao de no composio, conforme pode ser verificado pela leitura
esclarecida dos exemplos abaixo,
18