Esta tese analisa as atividades da Brazil Railway Company no sul do Brasil entre 1906 e 1916, especificamente a instalação da empresa madeireira Lumber na região do Contestado em Santa Catarina e seu papel no conflito armado ocorrido na área. A pesquisa utilizou fontes primárias como documentos da empresa e depoimentos de trabalhadores para compreender como a chegada da ferrovia e da indústria madeireira influenciaram a região e contribuíram para a eclosão da guerra pelo domínio territorial.
Esta tese analisa as atividades da Brazil Railway Company no sul do Brasil entre 1906 e 1916, especificamente a instalação da empresa madeireira Lumber na região do Contestado em Santa Catarina e seu papel no conflito armado ocorrido na área. A pesquisa utilizou fontes primárias como documentos da empresa e depoimentos de trabalhadores para compreender como a chegada da ferrovia e da indústria madeireira influenciaram a região e contribuíram para a eclosão da guerra pelo domínio territorial.
Esta tese analisa as atividades da Brazil Railway Company no sul do Brasil entre 1906 e 1916, especificamente a instalação da empresa madeireira Lumber na região do Contestado em Santa Catarina e seu papel no conflito armado ocorrido na área. A pesquisa utilizou fontes primárias como documentos da empresa e depoimentos de trabalhadores para compreender como a chegada da ferrovia e da indústria madeireira influenciaram a região e contribuíram para a eclosão da guerra pelo domínio territorial.
Esta tese analisa as atividades da Brazil Railway Company no sul do Brasil entre 1906 e 1916, especificamente a instalação da empresa madeireira Lumber na região do Contestado em Santa Catarina e seu papel no conflito armado ocorrido na área. A pesquisa utilizou fontes primárias como documentos da empresa e depoimentos de trabalhadores para compreender como a chegada da ferrovia e da indústria madeireira influenciaram a região e contribuíram para a eclosão da guerra pelo domínio territorial.
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DELMIR JOS VALENTINI
ATIVIDADES DA BRAZIL RAILWAY COMPANY NO SUL DO BRASIL:
A NSTALAO DA LUMBER E A GUERRA NA REGO DO CONTESTADO (1906 1916)
Tese apresentada ao Programa de Ps Graduao em Histria, da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Histria
Orientadora: Profa. Dra. Nncia Santoro de Constantino
Porto AIegre 2009
Dados Internacionais de CataIogao na PubIicao (CIP)
Bibliotecria Responsvel: Salete Maria Sartori, CRB 10/1363
V161a Valentini, Delmir Jos Atividades da Brazil Railway Company no sul do Brasil: a instalao da Lumber e a guerra na regio do contestado: 1906-1916 / Delmir Jos Valentini. Porto Alegre, 2009. 301 f.
Tese (Doutorado em Histria) Fac. de Filosofia e Cincias Humanas, PUCRS. Orientadora: Prof. Dr. Nncia Santoro de Constantino
1. Brasil Histria. 2. Santa Catarina Histria Contestado. 3. Ferrovias Histria. 4. Santa Catarina Colonizao. . Constantino, Nncia Santoro de. . Ttulo. CDD 981.056 981.64
DELMIR JOS VALENTINI
ATIVIDADES DA BRAZIL RAILWAY COMPANY NO SUL DO BRASIL: A INSTALAO DA LUMBER E A GUERRA NA REGIO DO CONTESTADO (1906 - 1916)
Tese apresentada ao Programa de Ps Graduao em Histria, da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Histria
Aprovada em 12 de janeiro de 2009
Profa. Dra. Nncia Santoro de Constantino Orientadora
Profa. Dra. Marli Auras UFSC
Profa. Dra. Claudia Musa Fay PUC-RS
Profa. Dra. Maria Letcia M. Ferreira - UFPEL
Profa. Dra. Heliane Mller de Souza Nunes PUCRS/FACE
minha esposa dianara e aos meus filhos Ricardo Eusbio, Naiara Letcia e Gustavo Eurico que dividem comigo sonhos e desafios, lutas e dificuldades, ternura e carinho. AGRADECIMENTOS
Se no houver frutos, valeu a beleza das flores... Se no houver flores, valeu a sombra das folhas... Se no houver folhas, valeu a inteno da semente... Henfil
Pelos resultados, acreditamos que o esforo para realizao desta obra foi de relevncia, mas s chegamos ao final graas aos colaboradores e incentivadores que nos acompanharam nesta jornada. Juntos, conclumos esta pesquisa: ela , pois, o resultado de esforo coletivo. Seria impossvel realiz-la sem auxlios to significativos de tantas pessoas. Agradeo minha orientadora, Professora Doutora Nncia Santoro de Constantino, que, com carinho, realizou uma firme, tranqila e competente orientao. Ao historiador Todd A. Diacon, que sempre foi solcito em nos atender e tambm disps de sua sabedoria e de sua experincia para nos acompanhar pelos arquivos nos Estados Unidos, na University of Tennessee Space nstitute e tambm encaminhou documentos imprescindveis para esta pesquisa. PUC, atravs da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas e do Programa de Ps-Graduao em Histria, que nos acolheu com os projetos de Mestrado e Doutorado. Ao Coordenador do Programa, Dr. Helder da Silveira Gordim, aos demais docentes e aos colegas Vera Lcia Maciel Barroso, Ana Maria Sosa Gonzalez, smael Vanini, Nilson Mariano e tambm a Carla e ao Davi. Entre os autores, colaboradores e incentivadores deste estudo, minha gratido: ao Romrio Jos Borelli, que disps de seu arquivo e sempre me incentivou; ao Sergio Campos e Silvia, que me acolheram quando da busca de documentos em arquivos do Rio de Janeiro; ao Prof. Dr. Paulo Roberto Seda, da UERJ, que conseguiu raras publicaes; ao Dr. Mario Csar Brinhosa, que garimpou importantes documentos em So Paulo; ao Joo Pedro Carneiro e Adriana Selau Gonzaga, que realizaram o trabalho de correo gramatical; ao Ludimar Pegoraro, que disps de sua experincia acadmica; Jozette Dambrowski, que indicou vrios 6 depoentes e que acompanhou entrevistas, gravando, fotografando e auxiliando; ao Joeli Laba, que disponibilizou o seu rico acervo fotogrfico; ao Professor Nilton Joo Preveda e Professora Ana Rita Dourado, que colocaram disposio seus conhecimentos; ao Arcngelo Marangoni, Juliano Rossi, Jos Carlos Radin, ns, Elis, Gislaine, Liliane, Mrcio e Fagundes pela ajuda; ao Fernando Tokarski, que disps de seu acervo fotogrfico; ao Vicente Telles e ao vair Fuzinato (Pinduca), parceiros em diversos trabalhos, comprometidos com a Histria do Contestado; a Ezequiel Teodoro da Silva, Milton Cleber Amador, Solange, Noeli, Sandra, Samira, Leandro, Carlinhos e demais colegas e acadmicos de Concrdia, pelas agradveis interlocues; a Paulo Pinheiro Machado, Mrcia Janete Espig, Tnia Welter, Suzana Cesco, Miguel Xavier, Almir Rosa, Celso Martins, Pedro Spautz, vone De Geroni, Eunice Nodari, Rita Pietrowski Peixe, Antonio Pedro Tessaro, Gilson Nachtigal, Aldair Goetten de Moraes, Lia Dalfr e Alexandre Assis Tomporoski, pelas trocas de experincia. Maria ns Morona Ramos, pela ajuda na transcrio das entrevistas; ao Sylvio Back, Zeca Pires, Maria Emlia e van de S, da produo do documentrio Contestado: restos mortais, que tambm contriburam para este trabalho; ao Gerson Witte, que criou bela charge; ao Airton Leite, que contornou os meus tropeos na nformtica; ao pesquisador Onofre Berton, que disponibilizou o Memorial da Lumber; ao Csar Pacheco e Agla, de Trs Barras, Santa Catarina, que dividiram comigo interessantes histrias da Lumber; ao Geraldo Rosa, Silse, Edgar, Aldo, Salete, Julio, professores e acadmicos de Histria de Curitibanos, pela convivncia e pela confiana; ao Frei Evaldo Valdir de Freitas, ao Gentil Schiavenin e ao Pedro Felisbino de Taquaruu, pela amizade e pela confiana; aos colegas de Histria: Silvino Scolaro, Pedro Oliveira, Joo Augusto, Julio Corrente, Antnio Claudino e Maria de Ftima, pela convivncia e aos colegas da Escola de Educao Bsica Dante Mosconi e do Colgio de Aplicao, que acompanharam as entrevistas. Meu agradecimento especial s trabalhadoras, aos trabalhadores da Lumber e aos seus descendentes que dispuseram de tempo e de pacincia para contar interessantes histrias. Com carinho, agradecemos a acolhida em suas casas, os relatos de memrias, os documentos e as fotografias que disponibilizaram, assim como a indicao de pessoas conhecidas para tambm participarem da pesquisa. Ao nomin-los, estendemos agradecimentos aos seus familiares: Miguel Jaskuf, Jucy Varela, Tercia Oswalda de Oliveira, Marta Gura Kalempa, Valdomiro Noga, Luiza Shelemberguer Sczcherbowski, Abigail Pacheco Bishop, Ladislau Olcha, Helma Bishop Cordeiro, Pedro Moskwen (in memoriam), Leopoldo Padilha, Jos Kraus Sobrinho, Lauro Dobrochinski, Mario Manoel Joaquim, Jos Moyses, Ninpha Ferreira de Oliveira, Cely Ferreira Tramujas e Elvino Moreira. Ao Assis, do Cartrio de Lebon Rgis; ao Nelcir Tesser, do Arquivo Histrico de Caador; Patrcia e Caroline, do Museu Histrico e Antropolgico de Caador; Giovania Glria Nunes e a Adalberto Ribeiro da Silva, do Arquivo Pblico do Estado de Santa Catarina; a Carlos Alberto Cavalheiro, da Biblioteca Pblica de Santa Catarina; a Cansio Miguel Morch, da Biblioteca Pblica do Paran; a Roseli Pereira Lima do Arquivo Pblico do Paran; a Alain Nascimento, do Cartrio de Paz da Comarca de Curitibanos-SC; a Fernando Tokarski, do Arquivo Municipal de Canoinhas; a Clia de Marco, da Biblioteca Primo Tedesco da UnC-Caador-SC e a Jozette Dambrowski, da Associao Cultural Pe. Toms Pieters de Matos Costa- SC. Finalmente, minha gratido famlia Valentini. Aos meus pais, Guerino Valentini (in memoriam) e Assunta Zanco Valentini, aos meus irmos Dirceu, Terezinha e Delci que, embora com dificuldades, em um dia de vero da penltima dcada do sculo XX, encaminharam-me para cursar o Segundo Grau no Seminrio Diocesano de Chapec, Santa Catarina. Agradeo a convivncia e o carinho de Nilda, Moacir, Marlene, os sobrinhos: Dircela, Keila, Pedro, Gssica, Jorge Diego, Diana, Karine, Laura, Dirceu Junior, Jonathan e Giovani. famlia De Castro: Neir, Oflia, Valdemir, Jaqueline, Everaldo, Marizete e os sobrinhos: Franciele, Vernica, Aline Tabita, Ronaldo, Oberdan e Ana Carolina. Aos meus filhos Gustavo, Naiara e Ricardo, boas sementes, e esposa dianara, por tantas folhas, flores e frutos.
RESUMO
VALENTN , Delmir Jos. Atividades da Brazil Railway Company no SuI do BrasiI: a instalao da Lumber e a Guerra na Regio do Contestado (1906-1916). Porto Alegre: PUCRS, 2009. 301 f. Tese (Doutorado em Histria) Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. Programa de Ps-Graduao em Histria, Porto Alegre, 2009.
Esta tese analisa a atuao da Brazil Railway Company, holding criada por Percival Farquhar em 1906 nos Estados Unidos e que atuou na Regio do Contestado nos ramos ferrovirio, madeireiro e colonizador. Atravs da subsidiria Southern Brazil Lumber & Colonization Company, a Brazil Railway instalou um grande complexo madeireiro extrativo exportador e promoveu a colonizao de terras concedidas ou compradas, estabelecendo imigrantes e colonos nas reas desmatadas. Durante o perodo de 1906 a 1916, a Regio do Contestado passou por um processo de profundas transformaes, que provocaram mudanas econmicas, sociais, culturais, polticas e ambientais. Estas mudanas foram fatores decisivos na deflagrao da luta armada desencadeada em 1912, que se estendeu at 1916 e foi denominada de Guerra do Contestado. A ecloso da Guerra do Contestado abordada no contexto das transformaes ocorridas com a inaugurao da ferrovia So Paulo-Rio Grande, que cortou verticalmente a Regio do Contestado em 1910, o incio das atividades madeireiras e colonizadoras da Southern Brazil Lumber & Colonization Company em 1911 e a conseqente ocupao das terras para projetos de colonizao. Os antigos moradores da Regio do Contestado, muitos dos quais posseiros que ocupavam as terras devolutas que foram concedidas a Brazil Railway Company, revoltaram-se e destruram estaes ferrovirias, queimaram a madeireira da Lumber de Calmon e atacaram os colonos instalados pela Companhia no Rio das Antas. A Guerra do Contestado deixou um saldo de, aproximadamente, 8.000 mortos, a grande maioria, sertanejos pobres que viviam na Regio do Contestado. Este estudo foi elaborado a partir de uma pesquisa documental fundamentada nos arquivos pblicos e particulares, nas bibliografias sobre o tema e, tambm, atravs da histria oral, a partir de entrevistas realizadas com antigos trabalhadores da Southern Brazil Lumber & Colonization Company e seus descendentes.
Palavras-chave: 1. Histria do Brasil Histria de Santa Catarina Histria do Contestado. 2. Ferrovias Madeireiras Colonizao - Guerra do Contestado.
ABSTRACT
VALENTN , Delmir Jos. Atividades da Brazil Railway Company no SuI do BrasiI: A instalao da Lumber e a Guerra na Regio do Contestado (1906-1916). Porto Alegre: PUCRS, 2009. 301 f. Tese (Doutorado em Histria) Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. Programa de Ps-Graduao em Histria, Porto Alegre, 2009.
This thesis analyzes the performance of Brazil Railway Company, holding company created by Percival Farquhar in 1906 in the United States and it acted in the Region of Contestado at railway, timbering and colonizing branches. Through the subsidiary Southern Brazil Lumber & Colonization Company, Brazil Railway installed a large timber complex extractive exporter and promoted the colonization of land granted or acquired setting immigrants and settlers in deforested areas. During the period from 1906 to 1916 the Region of Contestado went through a process of profound transformations that provoked economic, social, cultural, political and environmental changes. These changes were crucial factors in the outbreak of armed struggle unleashed in 1912 which was extended until 1916 and it was named the Contestado War. The outbreak of the Contestado war is addressed in the context of changes occurred with the opening of the railroad Sao Paulo-Rio Grande, which cut vertically the Region of Contestado in 1910 and it was the beginning of timbering and colonizing activities of Southern Brazil Lumber & Colonization Company in 1911 and the consequent occupation of land for projects of colonization. Former residents of the Contestado Region, many of them, settlers who occupied the vacant lands that were granted to Brazil Railway Company, revolted and destroyed railway stations, burned the timber Lumber of Calmon and attacked the settlers installed by the Company in Rio das Antas. The war of Contestado left a balance of approximately eight thousand deaths, the vast majority, poor country people who lived in the Contestado Region. The study was compiled from a documentary research based on public and private archives, bibliographies on the subject, and also through oral history from interviews with former employees of the Southern Brazil Lumber & Colonization Company and their descendants.
Keywords: 1. History of Brazil - History of Santa Catarina State - History of Contestado. 2. Rail - Timbering - Colonization - War of Contestado.
LISTA DE FIGURAS
Figura n. 01: Nh Emdia cabocla curandeira ............................................. 36 Figura n. 02: Caminho das tropas ................................................................... 40 Figura n. 03: Caboclo da Regio do Contestado............................................. 43 Figura n. 04: Monge Joo Maria...................................................................... 49 Figura n. 05: Acordo de limites assinado em 20 de outubro de 1916.............. 54 Figura n. 06: A construo da ponte sobre o Rio guau ................................ 57 Figura n. 07: Construo da ferrovia no Vale do Rio do Peixe ........................ 59 Figura n. 08: Ponte sobre o Rio Uruguai ......................................................... 60 Figura n. 09: Ervateiro ..................................................................................... 62 Figura n. 10: Pinheiro remanescente da Floresta da Epagri de Caador, Santa Catarina..................................................................................................
66 Figura n. 11: mbuia gigante ........................................................................... 68 Figura n. 12: Charge de Cecil Rhodes sobre a frica...................................... 71 Figura n. 13: Percival Farquhar ....................................................................... 75 Figura n. 14: Ao da Brazil Railway Company ............................................. 76 Figura n. 15: Ao do Porto do Par assinada por Percival Farquhar............. 83 Figura n. 16: Casa dos trabalhadores na construo da Ferrovia Madeira- Mamor.............................................................................................................
97 Figura n. 17: Ramal So Francisco ................................................................. 106 Figura n. 18: Mapa, ferrovias e principais cidades ......................................... 108 Figura n. 19: Mapa dos municpios e das colnias do Vale do Rio do Peixe... 116 Figura n. 20: Vilas, cidades e colnias prximas ferrovia ............................. 117 Figura n. 21: Concesses de terras e colonizao .......................................... 120 Figura n. 22: Colnias e fazendas no Oeste Catarinense ............................... 123 Figura n. 23: Escritrio da colonizadora Lumber ............................................. 128 11 Figura n. 24: Estufa de secagem de madeira .................................................. 131 Figura n. 25: Complexo industrial madeireiro instalado na Regio do Contestado em Trs Barras ...........................................................................
136 Figura n. 26: Serraria da Fazenda So Roque, complexo madeireiro extrativo da Lumber .........................................................................................
139 Figura n. 27: Transporte ferrovirio de toras para a serraria ......................... 149 Figura n. 28: Escritrio central da Lumber, hoje, Comando do Campo de nstrues do Exrcito Brasileiro .....................................................................
154 Figura n. 29: Cidade-empresa da Lumber em Trs Barras ............................. 157 Figura n. 30: Comemorao de 04 de julho .................................................... 159 Fugura n. 31: Escritrio central da Lumber em Trs Barras ........................... 164 Figura n. 32: nstalaes industriais da Lumber em Trs Barras .................... 170 Figura n. 33: Caldeira ...................................................................................... 173 Figura n. 34: Locomvel usado para o transporte das casas dos operrios ... 174 Figura n. 35: Derrubada de pinheiros .............................................................. 176 Figura n. 36: Toras amontoadas para recolhimento ....................................... 177 Figura n. 37: Guinchos e donkey's que arrastavam e que carregavam toras. 178 Figura n. 38: Vista externa das toras na entrada da esteira ......................... 180 Figura n. 39: Vista interna da serraria ............................................................. 182 Figura n. 40: Tcnica de empilhao ............................................................... 183 Figura n. 41: Afiao das serras ...................................................................... 185 Figura n. 42: Estao Ferroviria, atual Museu de Trs Barras ...................... 186 Figura n. 43: Armazm .................................................................................... 188 Figura n. 44: Hospital ....................................................................................... 190 Figura n. 45: Cinema ....................................................................................... 194 Figura n. 46: Defesa da Lumber ...................................................................... 204 Figura n. 47: Procisso .................................................................................... 208 12 Figura n. 48: Tropas na Regio do Contestado .............................................. 209 Figura n. 49: Acampamento militar .................................................................. 211 Figura n. 50: Croquis do Exrcito ................................................................... 212 Figura n. 51: Croquis das reas adjacentes da maior cidade santa ................ 213 Figura n. 52: Rendio de caboclos na Guerra do Contestado ...................... 215 Figura n. 53: Escombros da serraria da Lumber na Fazenda So Roque ...... 220 Figura n. 54: Local do combate que vitimou o Capito Mattos da Costa ....... 224 Figura n. 55: Charge n. 01 de O MaIho............................................................ 230 Figura n. 56: Charge n. 02 de O MaIho ........................................................ 231 Figura n. 57: Aviao militar no Contestado .................................................... 233 Figura n. 58: Priso de Adeodato .................................................................... 236
LISTA DE QUADROS
Quadro n. 01: Exportao de pinho do Brasil ................................................. 67 Quadro n. 02: Antiga fazenda Jaguariava ou Barra Mansa dividida em lotes e propores ..........................................................................
134 Quadro n. 03: Resultados comerciais da Lumber (1916 1939) ................... 140 Quadro n. 04: Produo e custo da madeira .................................................. 150 Quadro n. 05: Custo da estocagem de madeira .............................................. 151 Quadro n. 06: Pagamento no-reclamado pelos operrios da Lumber ......... 161 Quadro n. 07: Trabalhadores que atuavam na floresta .................................. 162 Quadro n. 08: Propriedades adquiridas pela Lumber entre 1909 a 1912 ...... 166
LISTA DE SIGLAS
BRC Brazil Railway Company SBL&CC Southern Brazil Lumber & Colonization Company EFSPRG Estrada de Ferro So Paulo Rio Grande EFMM Estrada de Ferro Madeira-Mamor BCPC Brazil Cattle and Packing Company SRC Sorocaba Railway Company CMEF Companhia Mogiana de Estradas de Ferro URC Uruguai Railway Company FOM Floresta Ombrfilo Mista CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior PUCRS Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul FFCH Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas PPGH Programa de Pesquisa e Ps-Graduao UERJ - Universidade Estadual do Rio de Janeiro UNCAMP Universidade de Campinas APRJB Arquivo Pblico de Romrio Jos Borelli BPESC Biblioteca Pblica do Estado de Santa Catarina APESC Arquivo Pblico do Estado de Santa Catarina BPP Biblioteca Pblica do Paran APP Arquivo Pblico do Paran ANRJ Arquivo Nacional do Rio de Janeiro APMC Arquivo Pblico Municipal de Canoinhas APDWR Arquivo Pblico Doutor Waldemar Rupp MHTB Museu Histrico de Trs Barras CM Campo de nstrues Marechal Hermes CEOM Centro de Organizao da Memria Sciocultural do Oeste Catarinense 15 APMC Arquivo Pblico Municipal de Caador AEL Arquivo Edgard Leuenroth MHARC Museu Histrico e Antropolgico da Regio do Contestado ACPTP Associao Cultural Padre Toms Pieters CPCC Cartrio de Paz da Comarca de Curitibanos CPVLR Cartrio de Paz da Vila de Lebon Rgis FOM floresta ombrfila mista BDF nstituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal NP nstituto Nacional do Pinho BAMA nstituto Brasileiro do Meio Ambiente DH ndice de Desenvolvimento Humano ONU Organizao das Naes Unidas
SUMRIO
INTRODUO .........................................................................................................19 1 O SERTO SUL-BRASILEIRO.............................................................................29 1.1 A FLORESTA OMBRFILA MISTA ..............................................................30 1.1.1 Araucria e campo ..............................................................................31 1.1.2 Araucria e associaes pioneiras ....................................................31 1.1.3 Araucria e caneIa Iageana (Ocotea Pulchella) ................................32 1.1.4 Araucria e imbuia (Ocotea Porosa) ..................................................33 1.2 NDIOS, ESPANHIS, PORTUGUESES E CABOCLOS NO SUL DO BRASIL ..........................................................................................................35 1.3 AVENTUREIROS, BANDEIRANTES E TROPEIROS NOS CAMINHOS DO SUL .....................................................................................38 1.4 MONGES, PROFETAS, EREMITAS E CURANDEIROS DO SERTO ........43 1.5 EPOPIA DE DISPUTAS NO ACERTO DOS LIMITES ENTRE SANTA CATARINA E PARAN ....................................................................51 1.6 A CONSTRUO DA FERROVIA SO PAULO-RIO GRANDE..................56 1.7 A EXTRAO DA ERVA-MATE E DA MADEIRA NO SERTO CONTESTADO ..............................................................................................61 2 AS EMPRESAS ESTRANGEIRAS NO BRASIL NO INCIO DO SCULO XX E O PROGRAMA FARQUHAR ......................................................................70 2.1 AS EMPRESAS ESTRANGEIRAS NO BRASIL NO INCIO DO SCULO XX ...................................................................................................70 2.2 PERCIVAL FARQUHAR, O "FARA AMERICANO" EM CUBA E NA GUATEMALA.................................................................................................72 2.3 PERCIVAL FARQUHAR EM CAPITAIS BRASILEIRAS ...............................79 2.4 PROJETOS NA AMAZNIA .........................................................................82 2.5 A BRAZIL RAILWAY COMPANY E O PROGRAMA FARQUHAR ...............85 2.5.1 Brazil Land, Cattle and Packing Company ........................................87 2.5.2 Porto e Barra do Rio Grande do SuI e Porto do Rio de Janeiro ..................................................................................................90 2.5.3 Cie. Auxilliaire des Chemins de Fer du Brsil ...................................93 2.5.4 A Uruguay Railway Company e a Antofogasta Railway Company ...............................................................................................94 2.5.5 A Estrada de Ferro Madeira-Mamor .................................................95 2.5.6 Ferrovias no Sudeste ........................................................................100 17 2.5.7 A Estrada de Ferro So PauIo-Rio Grande ......................................103 2.6 O INCIO DE DUAS GUERRAS E O FIM DO PROGRAMA FARQUHAR .................................................................................................109 3 A BRAZIL RAILWAY COMPANY NO SUL DO BRASIL: COLONIZAO E EXTRAO MADEIREIRA ............................................................................115 3.1 COLONIZAO E EXTRAO MADEIREIRA NA FLORESTA OMBRFILA MISTA DA REGIO DO CONTESTADO ..............................115 3.2 A BRAZIL DEVELOPMENT & COLONIZATION COMPANY .....................117 3.2.1 Terras devoIutas, concesses paranaenses e catarinenses para a Brazil Railway Company no incio do scuIo XX .................120 3.2.2 Demarcao, venda das terras e instaIao dos coIonos nas dcadas de 1910 e 1920 .....................................................................123 3.3 A SOUTHERN BRAZIL LUMBER & COLONIZATION COMPANY ............127 3.4 ESCRITRIOS E DEPSITOS DA LUMBER .............................................131 3.4.1 So PauIo ...........................................................................................132 3.4.2 Paran.................................................................................................133 3.4.2.1 Guarapuava ..................................................................................... 134 3.4.2.2 Jaguariava ...................................................................................... 134 3.4.2.3 Paranagu ....................................................................................... 134 3.4.3 Santa Catarina ...................................................................................135 3.4.3.1 Trs Barras ...................................................................................... 136 3.4.3.2 Fazenda So Roque (Calmon) ........................................................ 138 3.4.3.3 So Francisco .................................................................................. 139 3.5 RESULTADOS COMERCIAIS DA SOUTHERN BRAZIL LUMBER & COLONIZATION COMPANY .......................................................................140 3.6 A NACIONALIZAO DA SOUTHERN BRAZIL LUMBER & COLONIZATION COMPANY .......................................................................142 3.7 A EXPLORAO MADEIREIRA DA SOUTHERN BRAZIL LUMBER & COLONIZATION COMPANY INCORPORADA .......................................147 3.8 A EXTINO DA SOUTHERN BRAZIL LUMBER & COLONIZATION COMPANY INCORPORADA E A CRIAO DO CAMPO DE INSTRUES DO EXRCITO ....................................................................153 4 A CIDADE-EMPRESA E O AMERICAN WAY OF LIFE NA REGIO DO CONTESTADO ..................................................................................................156 4.1 A CIDADE-EMPRESA AMERICANA EM TRS BARRAS .........................156 4.1.1 Administrao e escritrio ...............................................................164 4.1.2 InstaIaes, depsitos e Iimpeza .....................................................168 4.1.3 CaIdeiras, seo fora, Iuz e gua ...................................................172 4.1.4 Seo de matas, fazendas, coIonizao e departamento IegaI .....175 4.1.5 Engenho de serrar, Iaminadeira e anexos .......................................179 4.1.6 Mesa de cIassificao, seo de empiIhao e de fabricao de caixas .............................................................................................181 4.1.7 Seo de carpintaria e marcenaria ..................................................184 4.1.8 Oficina mecnica e anexos ...............................................................185 4.2 O AMERICAN WAY OF LIFE ......................................................................187 4.2.1 Armazm ............................................................................................187 4.2.2 HospitaI e farmcia ............................................................................189 4.2.3 Posto de puericuItura e escoIa poIonesa ........................................191 4.2.4 Cinema, cassino, restaurante e hoteI ..............................................192 18 4.3 FOTOGRAFIAS DA LUMBER .....................................................................196 4.3.1 CIaro Gustavo Jansson .....................................................................197 4.3.2 Luz Sczcherbowski ..........................................................................199 4.4 NARRATIVAS DE MEMRIAS ...................................................................200 5 A ATUAO DA BRAZIL RAILWAY COMPANY E A GUERRA DO CONTESTADO ..................................................................................................202 5.1 A FERROVIA SO PAULO-RIO GRANDE: TRANSFORMAES ...........202 5.2 A GUERRA DO CONTESTADO ..................................................................203 5.3 O CAPITO JOO TEIXEIRA MATTOS DA COSTA .................................216 5.3.1 Os ataques s estaes e s madeireiras da Brazil Railway Company .............................................................................................219 5.4 PROPOSTA DE PAZ ...................................................................................225 5.4.1 Os ataques aos coIonos imigrantes da Southern Brazil Lumber & Colonization Company .....................................................226 5.5 EM NOME DO MONGE ...............................................................................233 5.6 A COLONIZAO E OS DESCENDENTES DE IMIGRANTES APS A GUERRA DO CONTESTADO ..................................................................240 CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................243 BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................256 FONTES DE PESQUISA ........................................................................................264 ANEXOS ................................................................................................................273
INTRODUO
Aps estudos elaborados no Programa de Mestrado, no final da dcada de 1990, dissertando sobre memrias de sertanejos e a Guerra do Contestado, com o ingresso no Programa de Doutorado na PUC-RS, em 2005, iniciou-se uma nova busca, enfocando-se o contexto do desencadeamento da Guerra na Regio do Contestado. Trata-se de um estudo sobre a Guerra do Contestado, com pesquisa fundamentada em farta documentao escrita, oral e visual, que aborda a insero das companhias estrangeiras que mudaram o curso da Histria da Regio do Contestado. Trs episdios protagonizados pelos sertanejos rebeldes, no ano de 1914, chamaram a ateno e despertaram o interesse pela busca de entendimentos do contexto histrico que envolveu os ataques contra a companhia estrangeira. No presente estudo, analisa-se o contexto histrico da atuao da Brazil Railway Company na Regio do Contestado 1 , com a construo de ferrovias que atravessaram as terras disputadas pelos Estados de Santa Catarina e Paran e a instalao da Southern Brazil Lumber & Colonization Company para a explorao comercial madeireira e para a colonizao destas terras. Com efeito, foram eventos que tiveram influncia direta no desencadeamento de um grave conflito na regio de atuao destas companhias em vastas reas de terras localizadas entre os Rios guau, ao Norte, e Uruguai, ao Sul. Na segunda dcada do sculo XX, especialmente entre os anos de 1910 e 1916, vrios acontecimentos significativos ocorreram na Regio do Contestado. Em 1910, aps a construo da ponte sobre o Rio Uruguai, inaugurou-se a ferrovia So Paulo-Rio Grande, que cortou verticalmente as terras contestadas, ao ligar o Sul com o Centro do Pas, quebrando o isolamento secular dos moradores da regio. Em novembro de 1911, foi instalada a maior serraria da Amrica do Sul em plena floresta ombrfila mista, situada proximamente aos trilhos da ferrovia So
1 Regio do Contestado a denominao utilizada na descrio da vasta rea de terras que foi alvo de disputas jurdicas entre Paran e Santa Catarina na longa e fastidiosa formatao dos limites dos Estados Sulinos; alm das disputas internas, envolveu a contestao da Argentina na Questo de Palmas, arbitrada em favor do Brasil pelo Presidente Grover Cleveland em 1895. No incio do sculo XX, a Regio foi alvo da Campanha no Contestado desencadeada pelo Exrcito brasileiro, no conflito que mais tarde ficou conhecido como Guerra do Contestado.
20 Paulo-Rio Grande. Mais tarde, foi concluda uma ligao ferroviria horizontal, ligando a grande madeireira ao Porto de So Francisco, Santa Catarina. niciou-se, assim, a maior predao de pinheiro j efetuada no Hemisfrio Sul 2 . No ano de 1912, um grupo de sertanejos, liderados por um curandeiro de ervas, enfrentou a Fora de Segurana do Estado do Paran 3 . A batalha que vitimou os dois comandantes, soldados e caboclos, foi denominada de Combate do rani deste modo, o estopim da Guerra do Contestado estava aceso. Em 1913, iniciaram-se as hostilidades com combates entre foras pblicas estaduais, o Exrcito republicano brasileiro e os vaqueanos recrutados na regio contra os caboclos dos redutos ou das cidades santas. No ano seguinte, trs episdios foram protagonizados pelos sertanejos rebeldes e chamaram a ateno das autoridades. No incio do ms de setembro, um grupo de caboclos, armados, incendiou uma das serrarias da Lumber, em Calmon, transformando em cinzas grandes pilhas de madeiras serradas e toda a maquinaria da companhia estrangeira. No dia seguinte, o mesmo grupo atacou a estao ferroviria da Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande, onde o Capito do Exrcito brasileiro, Joo Teixeira Mattos da Costa, foi morto. Em novembro de 1914, os caboclos atacaram a Colnia de Rio das Antas, instalada pela Lumber - houve mortandade de ambos os lados. Nesta investigao de estudos e de anlise da Brazil Railway Company na Regio do Contestado, partiu-se da seguinte questo: a atuao da Brazil Railway Company com a concluso da ferrovia So Paulo-Rio Grande e a instalao da Southern Brazil Lumber & Colonization Company foram fatores decisivos no desencadeamento da Guerra na Regio do Contestado? Neste sentido, procurou-se contextualizar as transformaes protagonizadas pelo impacto da chegada e pela ao do capital internacional na regio, ao se iniciarem as atividades empresariais, no serto catarinense, no incio do sculo XX. Eullia Lobo (1997) destacou o desenvolvimento desse assunto no campo da Histria empresarial, ao exemplificar com diversos autores que trabalharam em diferentes fontes, entre outras: atas de reunies, dirios e livros de Contabilidade, fichas de operrios e relatrios anuais (LOBO, p. 220). Tais fontes so limitadas
2 Araucria, memria em extino. Direo: Sylvio Back. Produo UFPR-Curitiba, 1984. 3 Joo Gualberto e Jos Maria foram os comandantes que protagonizaram o enfrentamento da Fora Pblica do Paran e os sertanejos que rumaram de Taquaruu para os Campos do rani. Descrio mais detalhada na pgina 109 e seguintes. 21 porque nem todas so preservadas em arquivos, sendo comum as empresas destrurem os documentos mais antigos ou deixarem-nos sem qualquer critrio de classificao, acumular em depsitos (LOBO, loc. cit.). Diversos autores debruaram-se nos estudos das empresas (entre outros, citados por Eullia Lobo) Warren Dean estudou a industrializao de So Paulo e a origem da burguesia, ao analisar os processos em que um grande nmero de imigrantes se converteu de importadores a industriais (LOBO, p. 227). necessrio frisar agora que o caso da Lumber, se comparado com outras empresas do mesmo perodo, apresenta peculiaridades que a distingue das demais. Pode-se observar alguma similaridade, apenas no modelo de construo das vilas operrias, em Trs Barras, com a construo da cidade-empresa americana. O conceito de empresa aqui empregado acrescido de indstria, ou seja, empresa industrial caracterizada pela vinculao s exportaes, originada da inverso de capital empregado por investidores estrangeiros e pertencente a um grupo econmico que atuava em diversos setores. No caso da Brazil Railway Company, este grupo atuava nos transportes, nas vias de comunicao, na construo de ferrovias, de portos e de atividades extrativas e colonizadoras. Diferentemente dos processos de desenvolvimento da indstria brasileira de outras regies, a singular empresa industrial (Lumber), instalada na Regio do Contestado, provocou mudanas significativas na conjuntura social. importante referir Cardoso (1987), ao afirmar que em uma crise pode haver ou no uma situao revolucionria. Desta forma, os elementos da crise que desencadearam a Guerra do Contestado, encontram elementos da Histria Social aqui entendida como Histria do homem e de seu grupo social, em suma: uma Histria da sociedade em movimento (bid., p. 349) e que se faz necessrio considerar os aspectos da Histria econmica, poltica e cultural. Eric Hobsbawm analisou conquistas e perspectivas das pesquisas da Histria Social e props uma Histria da Sociedade para expressar melhor sntese. Na escola dos Annales, Febvre tambm expressava que a Histria Social pela evoluo da metodologia, manifesta vocao de sntese, ser indispensvel colocar os requisitos metodolgicos necessrios para levar a bom termo tal vocao (apud CARDOSO, p. 349-350). 22 Outra questo que se coloca aqui : tambm entendendo que se torna impossvel dissociar fatores econmicos, polticos e culturais das transformaes da conjuntura na Histria da Sociedade daquele grupo humano que foi alcanado pelos trilhos da ferrovia So Paulo Rio Grande, as transformaes que ocorreram na Regio do Contestado com a atuao das empresas da Brazil Railway Company foram decisivas na deflagrao da crise que levou luta armada? Ainda, o estudo da Histria desta sociedade pode ajudar a responder a esta e a outras indagaes a partir dos dados levantados sobre a empresa industrial, como: quem eram os trabalhadores da Lumber e de onde vieram? Quanta madeira a Lumber beneficiou e para onde destinava? A atuao das empresas estrangeiras gerou desentendimentos com os moradores antigos da regio? Por que os sertanejos rebeldes atacaram as estaes, a madeireira e a colnia de imigrantes da Lumber? O conflito armado, desencadeado na Regio do Contestado, entre os anos de 1912 e 1916, j foi objeto de estudos historiogrficos, e a temtica j foi tratada em diversos aspectos e prismas diferenciados. Os escritos militares destacaram a Campanha do Contestado, em que as foras federais combateram o elemento pernicioso que perturbava a ordem (CARVALHO, 1916; D'ASSUMPO, 1917 e 1918; SOARES, 1920 e 1931). Socilogos debruaram-se sobre a temtica nas dcadas de 1950, 1960 e 1970, lanando olhares sobre os aspectos messinicos do movimento (PERERA DE QUEROZ, 1957; VNHAS DE QUEROZ, 1966; MONTERO, 1974). Historiadores catarinenses destacaram o contexto histrico do movimento e os sertanejos descritos como irmos organizados (CABRAL, 1960; AURAS, 1984). Recentemente novas pesquisas foram elaboradas e a Guerra do Contestado, cada vez mais, vem despertando interesses e novos olhares so lanados (MACHADO, 2004; MARTNS, 2007). A identificao e a localizao da bibliografia pertinente, o fichamento das referncias e dos dados de interesse do foco de estudo facilitaram a posterior utilizao na redao do texto final. De acordo com Stumpf, a pesquisa bibliogrfica pode ser a etapa fundamental e primeira de uma pesquisa que utiliza dados empricos, quando seu produto recebe a denominao de Referencial Terico, Reviso de Literatura ou similar(STUMPF, 2005, p. 51). Em busca do referencial terico das publicaes existentes, a maior parte j era conhecida; contudo, sobre a Brazil Railway Company e sobre as suas 23 subsidirias, pouca e parcial era a bibliografia. No entanto, duas obras tornaram-se fundamentais: Millenarian Vision, Capitalist Reality Brazil's Contestado Rebellion, 1912-1916, escrita pelo brasilianista Todd A. Diacon, e Farquhar, o ltimo tit: um empreendedor na Amrica Latina, de Charles A. Gauld, que somaram grande contribuio a este estudo. As fontes documentais da Lumber aqui utilizadas confirmam as dificuldades relatadas por Eullia Lobo, pois a maior parte do acervo documental foi disponibilizado pelo historiador Romrio Jos Borelli, atravs do seu arquivo particular, adquirido h muitos anos, quando o destino dos papis velhos era a fogueira. Em seu depoimento, um antigo trabalhador 4 da Lumber detalhou como queimava os papis velhos nas habituais limpezas. Nas duas caixas disponibilizadas, entre outros papis, encontravam-se: relatrios de atividades, dezenas de comunicaes, planos de venda dos lotes rurais das propriedades incorporadas (Livro 117, p. 238), relaes nominativas de terrenos medidos, demarcados e divididos para o requerimento de compra pelos posseiros em terras devolutas (p. 145), o movimento do escritrio em So Francisco (p. 262), a aquisio de pinhais (p. 258), a descrio de patrimnio de diversas fazendas, a descrio dos quadros de organizao dos trabalhadores nas categorias, atribuies e misteres e um resumo histrico da empresa antes da incorporao (304 p.). Havia ainda trs livros grandes, (40 x 60cm) relativos a pagamentos da Southern Brazil Lumber and Colonization Company, onde esto nominados os trabalhadores com os respectivos vencimentos, Uncaimed Hages 1910. Outro livro registra ordenados no- reclamados, comeando em 1914, todos os meses dos anos seguintes at o ltimo registro do incio da dcada de 1940. Por fim, foram analisados centenas de documentos avulsos diversos que pertenceram ao contador da Lumber, depois que esta foi incorporada. A pesquisa documental prosseguiu com um levantamento no Arquivo Histrico do Rio de Janeiro, onde foi possvel encontrar, ler e fazer cpias de documentos oficiais, boa parte doados pela famlia de Percival Farquhar, e tambm artigos de jornais da poca. O documento mais esclarecedor foi um resumo do Programa Farquhar onde esto descritas as empresas do grupo, as subsidirias, as linhas ferrovirias no Brasil e no exterior, os portos, os aspectos administrativos, as
4 Ladislau Olcha, Entrevista concedida em 02/02/2007, Canoinhas, Santa Catarina. 24 projees e as perspectivas quanto aos investimentos. No Programa Farquhar, foi possvel contato com os seguintes documentos oferecidos por Charles A. Gauld, sobre a Brazil Railway Company: 1) Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande e Sorocabana; 2) A administrao da So Paulo Rio Grande e da Sorocabana. Ligao das duas redes. Construo das duas linhas das suas concesses. O estabelecimento, nas regies atravessadas, de indstrias no intuito de mostrar o caminho, demonstrando-se na prtica a possibilidade de se estabelecerem indstrias similares e outras; 3) Empresas subsidirias, organizadas com o propsito de fomentar o desenvolvimento das regies atravessadas pelas suas linhas e, que todas foram incorporadas com capitais fornecidos pela Brazil Railway Company (Southern Brazil Lumber Company, Southern Brazil Colonization Company, Brazil Land, Cattle and Packing Company); 4) Cie. Auxilliaire des Chemins de Fer du Brsil, 3.000 Km de linhas frreas no Estado do Rio Grande do Sul; 5) Porto e Barra do Rio Grande do Sul; 6) Companhia Paulista de Estradas de Ferro, 1.500 Km Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, 2.000 Km; 7) Uruguay Railway Company, estendendo-se de Montevidu at Rivera, na fronteira com o Rio Grande do Sul, e diversos ramais no interior daquela Repblica; 8) Antofogasta Railway Company; 9) Madeira Mamor Railway Company 365 Km; 10) Estabelecimentos dos tipos e dos modelos de locomotivas e vages, freios e engates, etc. para toda a rede da Brazil Railway Company; 11) Razes que motivaram a interrupo do Programa da Brazil Railway Company. Com a pesquisa documental encaminhada, surgiu o momento de trilhar a metodologia da Histria Oral, empregada nesta anlise como forma de preencher lacunas (FERRERA, 1994) e de registrar memrias de antigos trabalhadores da Lumber ou de seus descendentes. A Histria Oral, entendida como metodologia, funcionou como ponto de convergncia entre a viso de mundo e a produo histrica (CONSTANTNO, 1998). A Histria Oral constitui-se em metodologia, utilizada para a construo de narrativas e de estudos que se referem Histria do tempo presente e que privilegiam as memrias dos depoentes. Para Meihy (1996, p. 51-52), a Histria Oral temtica abrange um assunto especfico e preestabelecido e envolve verses dos fatos presenciados pelo entrevistado. 25 Neste estudo, o planejamento de uma metodologia atravs da Histria Oral foi possibitado pela existncia de inmeros antigos trabalhadores e de seus descendentes que haviam trabalhado na Lumber. Prximo do local onde a empresa industrial americana funcionou at a dcada de 1940, foi possvel localizar vrios depoentes. Em Canoinhas, Dona Trcia Oswalda de Oliveira, filha do mdico da Lumber, foi a primeira entrevistada e indicou Marta Gura Kalempa, Valdomiro Noga e Luiza Shelemberguer Sczcherbowski. Em Trs Barras, conversamos com Abigail Pacheco Bishop, Ladislau Olcha, Jos Kraus Sobrinho e Leopoldo Padilha. Em Curitiba, encontramos a filha de um dos ltimos diretores da Lumber, Dona Helma Bishop Cordeiro. Em Unio da Vitria, ainda no Paran, conversamos com Mario Manoel Joaquim. Em Porto Unio, Santa Catarina, foram depoentes os senhores Jos Moyses, Lauro Dobrochinski e Pedro Moskwen (este ltimo faleceu em setembro). Em Florianpolis, conversamos com Cely Ferreira Tramujas e Ninpha Ferreira de Oliveira. Em tapema, Santa Catarina, com Jucy Varella e em Caador, Santa Catarina, com Miguel Jascuf e Elvino Moreira. Aps o contato inicial com a identificao, com a devida explicao dos propsitos da pesquisa e, geralmente, acompanhado por algum conhecido do depoente, solicitava-se a entrevista que era gravada para posterior transcrio e confirmao. As entrevistas foram realizadas em pocas de frias escolares. Alm das 18 entrevistas realizadas com antigos trabalhadores da Lumber ou de seus descendentes, tambm foram utilizadas mais 09 entrevistas realizadas pelo falecido antroplogo Toms Pieters e, ainda, outras 21 realizadas durante a realizao da pesquisa para a elaborao de Dissertao de Mestrado. Ainda sobre isso, o processo de elaborao da pesquisa oral constituiu-se em uma trajetria na qual um roteiro, com aproximadamente dez itens gerais e mais trinta especficos (Anexos 18 e 19), norteou o depoimento dos 18 antigos trabalhadores ou descendentes diretos com atuao na Lumber. Foram entrevistados os trabalhadores das matas, do escritrio, os operadores de mquinas e os descendentes de trabalhadores que exerceram atividades na companhia. Aps o trabalho de transcrio das entrevistas, os depoimentos orais, em seu conjunto, constituram-se em importante fonte documental para a anlise, para a comparao com outras fontes e para a utilizao na construo das narrativas, especialmente, no Captulo 4, que destacou o cotidiano da madeireira e 26 colonizadora de Trs Barras. Esta fonte forneceu ricos elementos com relatos de memrias de operrios que tambm fizeram Histria e que registraram as suas representaes sobre as experincias vividas e recordadas. A existncia de farto e de excelente material visual propiciou a utilizao deste recurso para complementar as narrativas textuais. Os fotgrafos foram destacados como produtores de importante fonte documental e as imagens foram usadas como documento de estudo do contexto histrico, possibilitando abordagens e percepes sobre a produo, sobre a autoria e sobre os diferentes sentidos atribudos ao objeto fotografado. O testemunho de imagens permite uma viso contempornea daquele mundo(...) apiam as evidncias dos documentos escritos e orais (BURKE, 2004). Embora os documentos escritos estejam mais ligados ao cotidiano da Histria, a utilizao de imagens como fonte de pesquisa, de leitura e de vises do passado, possibilita novas abordagens, snteses interessantes ou um olhar expansivo sobre o tema estudado, como afirmou Gaskell; destacou ainda, uma Hermenutica visual nas significaes culturais com codificaes no contexto da sua produo e das conseqentes decodificaes posteriores. Prossegue o referido autor: a fotografia o meio visual em que os acontecimentos passados so com freqncia tornados mais acessveis pela resposta emocional do momento (GASKELL, 2002, p. 265). Suzana Cesco assevera que a natureza passou a figurar como smbolo de progresso desde que dominada, domesticada e a fotografia foi usada para dar visibilidade, tornar pblicas as formas de dominar a natureza e de organizar os espaos sociais (CESCO, 2005). A referida autora exemplifica isso, ao citar as propagandas desencadeadas pelas companhias colonizadoras nas velhas colnias de imigrantes do Rio Grande do Sul para atrair compradores para as terras desbravadas com a utilizao de impresso de programas e de manuais de colonizao. Neste estudo, a existncia de fotografias, que evidenciam os processos industriais, as instalaes, os trabalhadores e o ambiente interno e externo da grande madeireira, traduziu-se em importante fonte documental. Eullia Lobo salientou a grande utilidade das fontes fotogrficas para o estudo sobre a tecnologia, o processo de trabalho usado e a administrao interna, aqui 27 representado nas fotografias de Claro Gustavo Jansonn, Miguel Karwat e Luiz Szcerbowski. O objeto e o recorte temporal foram necessrios para delimitar o estudo e para evitar a disperso, mantendo centradas as atividades da Brazil Railway Company e as suas subsidirias na Regio do Contestado, entre os anos de 1906 e 1916, e as mudanas que provocaram. Deste modo, as narrativas foram articuladas e distribudas em cinco captulos. O primeiro destacou o ambiente natural de riquezas exuberantes expressas na floresta ombrfila mista (KLEN, 1984). Fez-se tambm a contextualizao da histrica Regio do Contestado; a descrio dos aspectos da religiosidade e da cultura popular com a presena de monges, curandeiros e benzedores; a acirrada disputa pela jurisdio sobre o territrio e a construo da ferrovia So Paulo Rio Grande como primeira ligao vertical entre o Sul e o Centro do Pas; o avano extrativo estratgico feito pela Brazil Railway Company sobre a floresta das araucrias, provocando mudanas profundas na regio. O segundo captulo contextualizou a chegada das empresas estrangeiras no Brasil no incio do sculo XX, ao enfatizar o Programa Farquhar. A atuao do maior empresrio de servios pblicos na Histria nacional (GASPAR, apud GAULD 2005), foi destacada com a trajetria de Percival Farquhar, passando pela Amrica Central e, depois, atuando primeiramente no Rio de Janeiro (Capital) e nas demais regies brasileiras. Destacou-se a ecloso de duas guerras e o fim do Programa Farquhar na segunda dcada do sculo XX. O terceiro captulo abordou a atuao da gigante Brazil Railway Company nas atividades colonizadoras e de extrao comercial da madeira, no Sul do Pas, nas primeiras duas dcadas do sculo XX. Destacaram-se as concesses de terras para o projeto colonizador e as atividades precedentes de explorao comercial da madeira antes do estabelecimento dos imigrantes. Ressaltou-se, ainda, a histrica trajetria da Southern Brazil Lumber & Colonization Company na Regio do Contestado, como subsidiria da Brazil Railway Company. O quarto captulo frisou a instalao da cidade-empresa americana em plena floresta ombrfila mista, com a sua gigantesca estrutura de empresa industrial nos ramos madeireiro e colonizador. Abordou atividades e ofcios, modos de vida aps a 28 instalao da empresa que tinha capacidade para serrar 300 metros cbicos de madeira diariamente (FOLHA DA TARDE, 1912). Registrou os aspectos das memrias dos antigos operrios da Lumber, o cotidiano de vivncias e de experincias do grande nmero de imigrantes que se estabeleceram na Regio do Contestado com sonhos de trabalho e de prosperidade. No ltimo captulo, foram abordadas as abruptas transformaes que ocorreram na Regio e que provocaram a crise que levou luta armada. Mais do que nunca, a ecloso da Guerra do Contestado esteve relacionada diretamente atuao da Brazil Railway Company e s suas subsidirias. Destacou-se a atuao do Capito Mattos da Costa durante os ataques s estaes, madeireira e colnia de imigrantes, as tentativas de pacificao com a oferta de terras aos caboclos, a utilizao pioneira da aviao com finalidades blicas, a liderana de Adeodato no final do conflito e, aps a destruio das cidades santas, o impulso colonizador sobre a Regio do ex-Contestado.
1 O SERTO SUL-BRASILEIRO
[...] tudo coberto de densas matas de araucrias. Neste planalto, essas vigorosas colunas vegetais sobem, aos milhes, de profundos desfiladeiros e trepam as mais ngremes encostas at os pncaros das empinadas coxilhas, floresta escura, silenciosa, grave, que eu poderia chamar com propriedade de floresta negra. Robert Ave Lallemant (1858)
Para estudar a Histria da Southern Brazil Lumber & Colonization Company, necessrio situar o ambiente onde ela se instalou e contextualizar a sua edificao e atuao at o incio da segunda metade do sculo XX. As caractersticas do ambiente, aqui descrito como Serto Sul-brasileiro, esto fundamentadas em estudos feitos por especialistas da rea, que destacaram a Regio do Contestado, em seus aspectos naturais e em sua biodiversidade. Tambm necessrio caracterizar a floresta das araucrias, a histrica ocupao humana, a abertura das trilhas e das veredas primitivas, as disputas pelo domnio deste territrio, a chegada da ferrovia colonizadora, o incio da explorao comercial da madeira e a instalao da Lumber. O estudo destes eventos servir, desta maneira, para o entendimento do processo de mudanas e de transformaes que ocorreram na Regio do Contestado, especialmente, nas primeiras dcadas do sculo XX. Desde o incio da ocupao europia, o Sul do Brasil teve o seu cho disputado e foram constantes as lutas pela jurisdio, pela ocupao e pela colonizao destas terras que possuam riquezas naturais abundantes, expressas principalmente nas grandes florestas homogneas de araucrias ou pinheiro brasileiro, um ecossistema pertencente denominada floresta ombrfila mista 5 que, desde os primeiros contatos, chamou a ateno para a excelente fonte de riqueza
5 FLORESTA OMBRFLA MSTA - FOM a terminologia proposta pelo BGE e adequada a um sistema de classificao da vegetao intertropical que mistura duas florestas distintas: a tropical afrobrasileira e a temperada austrobrasileira (pinhais ou matas de araucria). As condies peculiares no Planalto Meridional Brasileiro, associadas latitude e s altitudes planlticas possibilitam a singular Regio Neotropical (GUERRA et alii, 2003). Klein destacou a floresta ombrfila mista como constituda, principalmente, pelo pinheiro-do-paran ou pinheiro brasileiro (Araucria Angustiflia) que revestia o Planalto Meridional nos trs Estados sulinos (1960, p. 17). 30 natural existente em grandes extenses pelo territrio sulino, de maior incidncia no Paran e em Santa Catarina, porm presente em todo o Brasil Meridional.
1.1 A FLORESTA OMBRFILA MISTA
Os primeiros viajantes europeus que percorreram o Sul do Brasil descreveram a presena de vasta floresta de araucrias e anunciaram a riqueza que fascinou os europeus: o pinheiro como rvore e o pinho como fruto. 6 O naturalista e viajante Saint Hilaire ficou deslumbrado com a ento denominada Araucria Brasiliensis, com seus galhos em desenho de candelabro, com a elevao e elegante majestade de suas formas, sua imobilidade, simetria e o verde escuro de sua folhagem (BACK, 1995). A localizao da floresta de araucria na floresta ombrfila mista no final do sculo XX atingia So Paulo at a divisa de Minas Gerais e o Sul do Rio de Janeiro pela Serra da Mantiqueira, contudo a grande condensao estava numa rea de cerca de 200 mil Km 2 do Sul do Brasil, coberta por densa floresta de araucrias distribudas nos atuais Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paran. Miguel Pedro Guerra indica percentuais de distribuio no Paran (40%), Santa Catarina (31%), Rio Grande do Sul (25%), e como manchas esparsas no Sul de So Paulo (3%), internando-se at o Sul de Minas Gerais e Rio de Janeiro, em reas de altitude elevada (GUERRA, 2003, p. 86) A rea de maior condensao nos trs Estados sulinos descrita por Roberto Klein que identifica o pinheiro-do-paran ou pinheiro-brasileiro (Araucria Angustiflia): e um grande nmero de gneros andinos, que juntamente com outras espcies latifoliadas, formam as caractersticas submatas dos pinhais (KLEN, 1984, p. 17). A floresta ombrfila mista apresentava uma paisagem inconfundvel pelo destaque do pinheiro (Araucria angustiflia), sobressaindo-se acima das demais espcimes, caracterizada por Aujor Luz como uma taa de comprido p. Os
6 Sylvio Back, cineasta catarinense e diretor de cinema, produziu em 1984 o documentrio Araucria: memria da extino, tendo recebido vrios prmios nacionais e internacionais. 31 botnicos Roberto Miguel Klein e Raulino Reitz identificaram quatro diferentes agrupamentos de araucrias em todo Planalto Meridional brasileiro.
1.1.1 Araucria e campo
A principal caracterstica desta formao, segundo Klein, so as florestas de araucrias existentes nos campos de altitude no Sul do Brasil em regies de clima frio e de passado mais seco. Quase sempre em contato com os campos, Sobretudo nos campos situados na borda oriental do Planalto rio- grandense, bem como nos lugares de maiores altitudes do Estado de Santa Catarina, podemos observar densas associaes de pinheiros, formando, por vezes, agrupamentos bastante fechados e cujas copas formam uma cobertura quase contnua e sob as quais se podem encontrar ainda exemplares de todos os portes e idades, desde as plntulas recm- crescidas at aos exemplares prestes a completar o seu ciclo vital (KLEN, 1960, p. 26).
Nos campos de So Joaquim, no Planalto Catarinense, possvel observar os agrupamentos que melhor caracterizaram estas formaes que apresentam os mais variados estgios de desenvolvimento, desde os formados por indivduos jovens e mais isolados, at as matas altas e densas, cujas copas formam uma cobertura quase contnua de cor verde-escura (bid., p. 27). Pela descrio dos locais de incidncia deste tipo de formao, possvel observar que se localizavam em reas em que a atividade da criao de gado e do ciclo do tropeirismo foi pioneira, a saber, no Rio Grande do Sul, nos Campos de Cima da Serra, principalmente Vacaria e Bom Jesus; em Santa Catarina, no Planalto desde So Joaquim, Lages, Curitibanos e Campos Novos; no Paran, nos campos de Palmas, Guarapuava e Ponta Grossa.
1.1.2 Araucria e associaes pioneiras
Araucrias e associaes pioneiras so descritas por Klein como a ocorrncia da araucria junto com outras espcies arbreas em capes nas proximidades de campos abertos, crregos, nascentes, rios, vrzeas de rios 32 maiores. Em altitudes variadas, so descritas formaes que diferem pela incidncia de exemplares em maiores ou menores quantidades. Em qualquer associao, a araucria se sobressai no tamanho, alcanando acima de 30 metros de altura e as demais espcies situam-se logo abaixo, como andares de uma formao complexa, at os arbustos que alcanam poucos metros do cho. Entre tantas espcies que formam com a araucria as associaes pioneiras, o autor destacou, principalmente, as seguintes: aroeirinha (Schinus weinmanniifolius), aroeira salsa (Sch.lentiscifolius, Sch. molle), aroeira, pau de bugre (Lithraea brasilensis) e guaramirim (Myrceugenia euosma) que circundam os capes onde a Araucria angustiflia sempre aparece no centro. Ainda, destacou guaper (Clethra Scabra), pau-para-tudo (Capsicodendron dinisii), guabirobeira (Camponanesia Xanthocarpa), canela lageana (Ocotea pulchella), guaatunga (Casearia decandra), bellangera (Lamanonia), guaraper (Speciosa), guamoinha ou gramimunha (Weinmannia paulliaefolia), camboim (Siphoneugenia reitzii), xaxim (Dicksonia Sellowiana), bracatinga (Mimosa Scabrella), branquilho (Sebastiana Klotzschiana) e a casca d'anta (Drimys brasiliensis). Alm disso, aparecem com menor incidncia nestas formaes o camboat (Matayba elaeagnoides ) e o aoita-cavalo (Luehea divaricata ) (KLEN, 1960, p. 28-32). Enquanto algumas das espcies descritas por Klein ocorrem em grande nmero de agrupamentos, outras so exclusivas de algumas associaes. Deste modo, o xaxim (Dicksonia Sellowiana) pode ser encontrado como submata de agrupamentos densos de araucrias. (...) bastante freqente na borda oriental do Planalto, havendo porm ocorrncias espordicas por quase toda a formao (bid., p. 31).
1.1.3 Araucria e caneIa Iageana (Ocotea Pulchella)
So descritas por Klein como a associao mais comum das matas de araucrias do Sul do Brasil, com a ocorrncia em maior quantidade de lugares. Assim, a alta densidade e o desenvolvimento das copadas sempre maiores da Ocotea pulchella, logo abaixo das altas copadas da Araucria angustiflia, forma 33 um micro-clima por demais sombreado e mido, impedindo o desenvolvimento de outras plantas menores (KLEN, 1960, p. 33). A Araucria angustifolia convive, alm da Ocotea pulchella, com outras espcies arbreas. As principais espcies que aparecem nesta formao so: guaatunga (Casearia Decandra), canela-sebo (Ocotea Puberula), guaraper (Lamanonia Speciosa), gramimunha (Weinmannia Paulliniaefolia), camboat (Matayba Elaeagnoides), aoita-cavalo (Luehea Divaricata), e pessegueiro bravo (Prunus Sellowii), entre outras. Nesta formao, a existncia de grande quantidade de rvores bem formadas leva o referido autor concluso de que quase todos os pinheiros esto na fase adulta ou velhos. Ainda, indicou os lugares onde existiram exuberantes formaes deste tipo: em Santa Catarina, nos municpios de Chapec, rani, Campo Er, Campos Novos, Curitibanos, Lages e So Joaquim; no Paran, nos Campos de Palmas e no Rio Grande do Sul, em So Francisco de Paula, Vacaria e Bom Jesus (bid., p. 34). Constituindo-se em matas fechadas, nestas formaes houve maior dificuldade de penetrao por parte dos descendentes de europeus e o pioneirismo da criao de gado cedeu lugar, mais tarde, para as atividades de extrao madeireira e para a formao de reas agrcolas.
1.1.4 Araucria e imbuia (Ocotea Porosa)
Araucria e imbuia tambm se destacam pela extenso e pela grande incidncia da Ocotea porosa, descrita por Klein como uma rvore cujos troncos so muito grossos, retorcidos, alcanando a altura de 20 m. A imbuia apresentava gigantes troncos de vrios metros de dimetro nos quais compunham de 70% a 90% da cobertura da submata. Acima, s as copadas das araucrias de porte bastante agigantado e velhos, que levou o referido autor a concluir que esta formao encontrava-se em adiantada fase de substituio (bid., p. 36). Nesta associao, alm da existncia de espcies arbreas de outras formaes, ainda merecem destaque: sapopema (Sloanea Lasiocoma), cedro (Cedrela Fissilis), canela-sebo (Ocotea Puberula), erva-mate (Ilex Paraguariensis), 34 aoita-cavalo (Luehea Divaricata), cana (Ilex Theezans), guaatunga (Casearia Decandra), guabiju (Eugenia Pungens) e outras (KLEN, 1960, p. 37). Araucria e Ocotea Porosa podem ser descritas como a associao que mais caracteriza a rea de interesse madeireiro, j que, alm da araucria, a imbuia, conhecida amplamente na regio, uma rvore de lei 7 de exuberante porte e de excelente valor comercial. Alm da incidncia no Paran, a imbuia tambm ocorre em Santa Catarina, principalmente nos Municpios de Mafra, Porto Unio, Matos Costa, Calmon, Caador e Curitibanos. A imbuia teve largo uso na fabricao de dormentes para assentar os trilhos das ferrovias no incio do sculo XX. Sobre isso, as grandes serrarias do Sindicato Farquhar localizadas nesta formao garantiam duplo objetivo: primeiramente, produzir dormentes para as constantes construes da Brazil Railway Company e, segundo, produzir pinheiro serrado para a exportao. Os estudos de Klein apontam, ainda, caractersticas da araucria em seus limites at o desaparecimento com o avano da mata pluvial que pode ser identificada com a presena da formao nas bordas ou nos extremos, pois predominam os restos de pinhais que se encontram na Mata Pluvial da costa atlntica. Nesta formao, descrita a presena das araucrias que alcanam a mata latifoliada do litoral ou tambm conhecida como Mata Atlntica desde as bordas da Serra Geral e do Mar, tanto em Santa Catarina como no Paran (bid., p. 42). Contudo, como a discusso que estamos propondo no no campo da Botnica, deixamos as polmicas dos limites das araucrias ou ainda a questo do pertencimento da mata da araucria mata atlntica para os especialistas e voltamos floresta ombrfila mista a fim de se estudar a ocupao e a convivncia do homem com o singular ecossistema formador das centenrias araucrias e imbuias.
7 Uma rvore de lei ou madeira de lei caracteriza o entendimento de que as todas as rvores de folhas fazem parte deste grupo. Entre outras rvores de lei esto: cedro, imbuia, loro, canjerana, etc. O pinheiro brasileiro ou pinho no considerado madeira de lei. 35 1.2 NDIOS, ESPANHIS, PORTUGUESES E CABOCLOS NO SUL DO BRASIL
A ocupao humana no Sul do Brasil, que antecedeu instalao da Lumber na floresta ombrfila mista, especialmente nas associaes da Araucria angustifolia em maior densidade, descrita com a presena pioneira de antigas comunidades indgenas Xokleng e Kaingang. O antroplogo Silvio Coelho dos Santos assim definiu os indgenas do Sul do Brasil: o Litoral dominado pelos Carij do Grupo Tupi-Guarani; entre o Litoral, o Planalto, nas florestas que cobriam os vales e as serranias, viviam os Xokleng e os Kaigang, do grupo G (SANTOS,1973). A partir do sculo XV, espanhis e portugueses palmilharam, conheceram e deixaram descendentes espalhados nos vastos espaos do Serto Sul-brasileiro. Os antigos moradores da floresta ombrfila mista tinham como base fundamental de alimentao a semente da araucria, ou seja, o pinho. O historiador Sergio Buarque de Holanda fala da importncia dos pinhes da araucria, que davam excelente farinha e que, abundantes outrora no Planalto, chegavam a substituir em certos casos a mandioca. (...) Costumavam cham-los ib, que quer dizer simplesmente fruta, pois era a fruta por excelncia das terras paulistas e sulinas (BUARQUE DE HOLANDA, 1994, p. 58). Tratava-se do alimento fundamental para os grupos humanos e, ao mesmo tempo, para a rica fauna, como a paca (cuniculus paca), a cutia (acuti), o porco do mato (caititu), as queixadas (tayassu pecari), os bandos de papagaio (espcies psitaciformes) que, por sua vez, garantiam a carne para os coletores e para os caadores, principalmente durante o outono e o inverno. importante ressaltar agora que os primeiros contatos dos europeus com os povos indgenas so remotos. J em 1541, lvar Nuez Cabeza de Vaca, capitaneando 250 espanhis, rumou do Litoral catarinense para encontrar Assuno, andando por grandes montanhas e bosques, abrindo caminho por terra muito trabalhosa. O relato que fez sobre o povo que encontrou foi o seguinte: so lavradores que semeiam o milho e a mandioca duas vezes por ano, criam galinhas e patos da mesma maneira que ns na Espanha, possuem muitos papagaios, ocupam uma grande extenso de terra e falam uma s lngua. [...]. gente muito amiga, mas tambm muito guerreira e vingativa (CABEZA DE VACA, 1999, p. 159). 36 Os elementos advindos da mesclagem dos primitivos moradores da floresta ombrfila mista com os pioneiros espanhis e portugueses que palmilharam o Sul do Brasil so remotos e acompanham o processo lento de conhecimento, de povoamento e de ocupao dos espaos ocupados primitivamente pelos grupos indgenas. Na regio do Contestado, so marcantes os traos na cultura do caboclo. Vinhas de Queiroz observa que, pela pobreza e pela economia de subsistncia, o modo de vida dos caboclos era similar ao dos indgenas (VNHAS DE QUEROZ, 1977, p. 35-38). Figura n. 01: Nh Emdia cabocla curandeira
Fonte: D'ALESSO, Vito. CIaro Jansson: o fotgrafo viajante. So Paulo: Dialeto Latin American Documentary, 2003. p. 107 A vida simples, que levava o sertanejo, proporcionava tambm formas simplificadas de religiosidade. Benzedores, curandeiros, puxadores de reza e eremitas faziam parte do universo mgico religioso do povo simples do Serto Contestado um exemplo Emdia que morava em uma gruta em Trs Barras, Santa Catarina. 37 Paulo Pinheiro Machado descreveu os aspectos indgenas presentes no elemento miscigenado e apontou para as origens portuguesas e brasileiras ao afirmar que a gente cabocla, com forte presena negra e indgena, mesclada a alguns grupos familiares de origem paulista e rio-grandense, compunha a principal base da populao trabalhadora da regio (MACHADO, 2004, p. 336). As origens dos moradores que esto no Contestado e que so alcanados pela ferrovia tambm so explicadas como refugiados farroupilhas (1835-1945) e federalistas (1892-1894), ligados a pequenas lavouras de milho, abbora e moranga. Criavam porco solto engordado com pinho e frutos silvestres, colhiam erva-mate e, segundo Walter Fernando Piazza, no tiveram professores, padres e nem mdicos, o que far deste caboclo, matuto, fantico, a grande vtima, pois a Nao Brasileira e os Estados de Santa Catarina e do Paran at ento no solucionaram suas necessidades sociais (PAZZA, 1982, p. 76). Outro estudo importante que tematiza o caboclo foi elaborado por Jaci Poli que caracterizou fases diferentes do processo povoador do Oeste Catarinense. O autor destaca que houve trs fases de ocupao: a fase indgena, a fase cabocla e a fase de colonizao. Caracterizou a fase cabocla como sendo a frente da frente, pois, medida que as comunidades indgenas eram conquistadas, o mestio ocupava temporariamente como posseiro e, em seguida, vinham os colonos para comprar, para pagar e para ocupar definitivamente a terra (POL, 1991, p. 73-110). Cabe referir agora que o processo de ocupao, de povoamento e de colonizao desta vasta rea foi cadenciado rumo fronteira com a Argentina; alm disso, possvel identificar caractersticas diversas, com as diferentes companhias colonizadoras e as dcadas que foram formadas as colnias. Arlene Renk identificou um tempo d'antes quando apenas o caboclo ocupava o cho Contestado e o dividia entre terras de plantar e terras de criar. A populao cabocla, denominada tambm de brasileiros, dedicava-se ao cultivo de pequenas lavouras de subsistncia, criao de animais soltos e, principalmente, extrao da erva-mate. Com a atuao das companhias colonizadoras, a terra passou a ser comercializada e os brasileiros posseiros passaram condio de intrusos (RENK, 1997). Sobre o assunto, necessrio frisar que o pioneirismo do Sindicato Farquhar na extrao comercial da madeira provocou mudanas agudas no mago da cultura dos caboclos que viviam nas denominadas terras devolutas. Warren Dean 38 registrou que o assalto floresta primitiva resultou na sbita e na decisiva destruio das matas. Quanto aos moradores, segundo o referido autor, (...) a incapacidade dos caboclos pioneiros, dedicados subsistncia, de transformar seus direitos de ocupantes em ttulos de propriedade e de passar para a pequena produo (...), fez com que continuassem abandonados, justamente aqueles que eram capazes de conviver com a floresta sem destru-la (DEAN, 1996).
1.3 AVENTUREIROS, BANDEIRANTES E TROPEIROS NOS CAMINHOS DO SUL
Os primeiros contatos dos europeus com os povos indgenas so remotos. Conforme Costa Pereira, os portugueses Aleixo Garcia e Pero Lobo foram os primeiros a penetrar nos Sertes do Sul, em busca de metais preciosos. Depararam- se com as florestas de pinheiros; porm, em meio de tantos perigos e obcecados pela ambio dos metais preciosos, teriam tido olhos para ver a magnificncia e a exuberncia de uma flora to variada e ainda desconhecida (PERERA, 1943, p. 34). Por parte dos espanhis, o mais remoto contato registrado a passagem de lvar Nuez, cujos relatos tambm destacam a regio com as serras altas, as colinas suaves, os enormes taquarais, os campos interminveis, as cataratas estrondantes, os rios extensos e caudalosos, as florestas bastas e copadas que no permitem enxergar o cu [...] (PERERA, loc. cit.). Ao comentar sobre as conferas, aquele autor fez uma descrio indita e destacou a abundncia dos pinheiros: [...] estas rvores so to grossas, que quatro homens juntos no lhes abarcam o tronco. So elevadssimas, direitas e timas para mastros de navios. Os frutos so volumosos, e as bagas do tamanho das glandes. A casca semelhante das castanhas, mas o gosto difere do sabor das da Espanha. Os ndios fabricam farinha desse fruto (PERERA, 1943, p. 60).
Mais tarde, os bandeirantes paulistas, no caminho das Misses dos padres jesutas do Rio Grande do Sul, tambm atravessaram a regio; entretanto, ao contrrio dos espanhis, cortaram verticalmente a floresta das conferas. Apesar disso, as primeiras incurses dos bandeirantes datam do sculo XV, quando, a p, seguiram velhas trilhas indgenas; no entanto, principalmente pelas vias fluviais, galgaram os espaos que confluam nos aldeamentos dos ndios Guarani, na 39 conhecida regio missioneira do Rio Grande do Sul. Nicolau Barreto, Manoel Preto, Lzaro da Costa, Pedro Vaz de Barros, Raposos Tavares, Francisco Bueno, Ferno Dias Pais so destacados por Costa Pereira como uma falange de homens audazes e temveis (bid., p. 35): E as araucrias que, na sua nudez e na sua impassibilidade milenar, assistiram invaso dos seus domnios por homens de outros climas, matana e ao apresamento de seus primeiros habitantes, seriam mais tarde as vtimas preferidas de outros invasores, dos seus novos donos, dos que iriam ali fixar-se, dos fundadores e povoadores de vilas e cidades (PERERA, 1943, p. 37).
O movimento dos bandeirantes, na faina da escravido vermelha, apesar de despovoador, resultou em incurses com abertura de veredas, de trilhas e de contato com as vastas reas de campos e tambm com a da floresta ombrfila mista
8 . Todavia foi com o ciclo do tropeirismo que a referida floresta catarinense foi conhecida, uma vez que o seu interior foi cortado pelos caminhos dos tropeiros que, todos os anos, cruzavam por estas trilhas e veredas rumo a Sorocaba, tangendo milhares de cabeas de gado, muares e cavalares que abasteciam o centro do Pas, ao fornecer alimentos e o conjunto necessrio para os meios de transporte da poca. No incio do sculo XV, os paulistas abriram uma trilha para as tropas que partiam de Viamo, nas proximidades de Porto Alegre; aqueles, por seu turno, cortavam todo o Planalto Catarinense, atravessando os Campos de Lages e os Campos Gerais Paranaenses at Sorocaba. Neste sentido, o itinerrio do caminho das tropas do Rio Grande do Sul at So Paulo comeou a ser esboado j nas primeiras dcadas do sculo XV por Francisco de Souza e Faria, porm o tropeiro, comerciante e sertanista Cristvo Pereira de Abreu, que vai possibilitar a abertura desses caminhos, ao transportar a primeira tropa de animais em 1731, repete o feito em 1733 e, em 1737, consolidou a Estrada Real de Viamo. Essas estradas viabilizaram o ciclo do tropeirismo, que uniu os quatro Estados sulinos, to importante para o seu desenvolvimento econmico e para o seu povoamento (RODERJAN, 1992, p. 57).
8 Entre os anos de 1654 e 1661, os bandeirantes fundaram a Vila de Sorocaba (STRAFORN, 2001, p. 41). 40 Aps a abertura da Estrada Real de Viamo, o surgimento das povoaes ao longo do caminho foi apenas uma conseqncia da promissora atividade. At a Coroa Portuguesa no mediu esforos para incentivar essa atividade no Sul do Brasil, pois, alm de contemplar seus objetivos expansionistas, tambm se mostrava importante reserva de capital, caso necessitasse (STRAFORN, 2001, p. 55). De fato, necessitou, porque em 1756 a Coroa criou um novo imposto sobre cada cabea de gado, sobre os cavalos e sobre os muares para ser utilizado na reconstruo da cidade de Lisboa que foi destruda por um terremoto no ano anterior. Figura n. 02: Caminho das tropas
Fonte: lustrao e mapa com pesquisa e roteiro de Aldair Goetten de Morais e desenho de Luciana Aparecida Kruguer Longhi Os traados da ilustrao acima evidenciam os incipientes caminhos galgados pelos tropeiros pioneiros. Sobre os caminhos, hoje est estendida a BR 116, ligando as reas do Sul com o Centro do Pas. Destaca-se aqui a cidade de 41 Sorocaba que foi a confluncia da maior parte das tropas que passaram, tangidas, pelo cho catarinense. Deve-se observar agora que a criao de registros para a cobrana de taxas sobre cada animal semovente 9 propiciou o surgimento de importantes pontos que se estruturaram para oferecer mercadorias, objetos de uso dos tropeiros, casas de pasto e de abrigo em locais de intervalos das longas viagens - como exemplo, tem- se a prpria Vila de Sorocaba, em que, aps ser ponto de registro, aumentou a populao e transformou-se na maior feira de gado, de muares e de cavalares da Colnia. Straforini destacou ainda o registro gacho de Santa Vitria, na divisa com Santa Catarina: o primeiro registro surgiu em 1732 no Rio Negro, taxando todos os animais (cavalar e vacum) que saam das Provncias de Santa Catarina e Rio Grande do Sul com destino aos centros consumidores no Brasil Central (STRAFORN, 2001, p. 54). O Rio Negro, destacado como ponto de registro, localizava-se nas proximidades da rea que Percival Farquhar, tempos depois, escolheu para instalar uma grande serraria, a Lumber de Trs Barras. Esse Rio um dos afluentes do guau; antes da concluso da ferrovia, foi utilizado como meio de transporte em pequenos barcos que conduziam a madeira serrada at o Rio guau e deste alcanava os trilhos, por onde a madeira era escoada at o seu destino. 10
O historiador Oswaldo Rodrigues Cabral relatou que o caminho das tropas lanou a presena do aventureiro paulista ao longo das vilas e dos povoados que se formaram entre registros, pousos e pontos de convergncia de trajetos secundrios: Arrojados aos perigos da caa ao bugre, este aventureiro nem se fixou, nem continuou errante, levantou uma espcie de pouso duradouro (CABRAL, 1960, p. 86). Com efeito, a presena e a ocupao de espaos anteriormente dominados pelos aborgenes locais e mestios no foi pacfica e os constantes ataques dos conhecidos bugres provocaram reaes violentas dos recm- chegados contra os moradores mais antigos.
9 Semoventes: animais que andam ou se movem por si prprios, tangidos pelos tropeiros. 10 O povoado que surgiu prximo ao Rio Negro, passou a se chamar Mafra, em Santa Catarina. Foi elevado a condio de Municpio atravs da Lei n. 1.147 de 25 de agosto de 1917. Trs Barras e Mafra esto a uma distncia de 50 Km. 42 Em 1836 foi criada a Companhia de Pedestres, composta de soldados e civis que tinham por objetivo evitar os ataques indgenas. As dificuldades levaram os tropeiros em 1870 atitude extrema de apelar para os bugreiros que, segundo Slvio Coelho dos Santos, incursionavam as matas, caando e matando indiscriminadamente estes povoadores primitivos. Ainda sobre o tema, o processo de ocupao e de desenvolvimento dos povoados ao longo do caminho das tropas estendeu-se por mais de dois sculos e houve, ao mesmo tempo, um movimento povoador e despovoador (SANTOS, 1983). At o sculo XX, o caminho das tropas foi a artria principal de circulao entre o Sul e o Sudeste. Mesmo diante do esgotamento das minas no Centro do Pas, as atividades com a expanso do caf em So Paulo no dispensaram o constante comrcio dos muares, dos cavalares e do gado com o Sul do Brasil. Somente com a construo da ferrovia So Paulo Rio Grande, projetada ainda no final do Segundo Reinado, o velho caminho das tropas perdeu importncia e um meio mais gil de transporte transformou bruscamente a vida dos antigos povoados e dos povoadores. A construo da ferrovia colonizadora, planejada pelo Governo brasileiro, poderia seguir o trajeto dos tropeiros e, com certeza, seria construda com maior facilidade, com menos custos, com mais rapidez e pelo caminho menos acidentado. No foi o que aconteceu, pois, no final do sculo XX, o Brasil e a Argentina protagonizaram uma fastidiosa contenda por causa das fronteiras entre os dois pases. Heinsfeld destacou o carter geopoltico do Governo brasileiro ao optar por cruzar com os trilhos no local de relevo acidentado, situao que imps grande dificuldade na construo e cortou verticalmente a floresta ombrfila mista pelo Vale do Rio do Peixe, rea at ento de difcil acesso e de escassa povoao (HENSFELD, 1997). Vivendo de forma rudimentar, esparsos no Serto, o caboclo encontrou uma forma bem singular de religiosidade simplificada nas crenas e nos poderes miraculosos dos benzimentos. Curandeiros, benzedores e rezadeiras faziam parte deste universo mgico religioso e no ser difcil reconhecer a importncia dos monges e dos eremitas que perambularam por todo Serto Sul-brasileiro desde a segunda metade do sculo XX.
43 Figura n. 03: Caboclo da Regio do Contestado
Fonte: Foto de Zig Koch - Calendrio da Grfica e Editora POSGRAF
A maioria dos moradores da Regio do Contestado, levava uma vida simples, distante dos povoados e sem qualquer assistncia. Eram os descendentes de indgenas das florestas de araucrias, miscigenados com os primeiros espanhis e portugueses a palmilharem estas terras. De fato, repete-se que a figura dos monges e dos curandeiros tornou-se inseparvel do cotidiano do povo simples do Serto Contestado.
1.4 MONGES, PROFETAS, EREMITAS E CURANDEIROS DO SERTO
A presena de benzedores, rezadores, curandeiros e dos monges, que h muito faziam parte do universo mgico religioso dos moradores do Serto Sul- 44 brasileiro, faz parte do contexto que antecedeu chegada das empresas do grupo liderado por Percival Farquhar. Na Histria da Guerra do Contestado, o Messianismo j foi destacado como fundamental no desencadeamento do conflito. 11 Uma breve descrio dos lderes e da religiosidade simples do sertanejo , pois, imprescindvel para o entendimento da articulao e amlgama que aproximou e que permitiu a convivncia nas cidades santas. Historicamente a presena dos personagens messinicos vem desde a segunda metade do sculo XX, quando um italiano registrou a sua chegada em Sorocaba, que era um importante entreposto de negcios com gado e com muares do Sul do Pas. No h referncias sobre a chegada desse italiano ao Brasil, sabe- se apenas que esteve no Par de onde viajou para o Rio de Janeiro, no Vapor mperatriz, chegando Crte mperial em 19 de agosto de 1844. Em dezembro do mesmo ano, apresentou-se na Cmara Municipal de Sorocaba, na Provncia de So Paulo. Deixou o Termo de Apresentao de Estrangeiros datado de 24 de dezembro de 1844. 12
Em Sorocaba tornou-se conhecido como o monge de panema, que vivia em uma gruta no Morro de Araoiaba. 13 O historiador Osvaldo Rodrigues Cabral assim descreveu Joo Maria de Agostini: Vestia um hbito, talvez franciscano, sobre o qual caam-lhe os cabelos compridos e a barba longa. Dormia sobre uma tbua e alimentava-se de frutos, alm de algumas ddivas dos sitiantes prximos (CABRAL, 1960, p. 109). Sorocaba, na poca, exercia influente papel econmico pela confluncia do eixo tropeiro que conduzia, de diversos pontos do Sul do Brasil: gado, muares e cavalares rumavam de l para os diversos mercados importantes. Na bagagem dos
11 Muitos autores j se debruaram sobre a temtica messinica no Contestado. Maurcio Vinhas de Queiros, em 1966, publicou o clssico Messianismo e conflito social: a Guerra Sertaneja do Contestado 1912-1916. Existem, tambm, vrios estudos recentes como: A presena da Gesta Carolngia no Movimento do Contestado, de Mrcia Janete Espig (1998) e Contestado: o sonho do milnio igualitrio, de vete Ceclia D'Avila Gallo (1999), entre outros. 12 FACHEL, J. F. Monge Joo Maria, recusa dos excIudos. Porto Alegre: UFRGS; Florianpolis: UFSC, 1995. p. 15. O referido autor publica na ntegra o termo de apresentao de Joo Maia d'Agostini. 13 O Morro do Araoiaba localizava-se prximo Fbrica de Ferro de panema em Sorocaba, So Paulo; de l, retiravam minrio para a Siderrgica de panema. Junto a uma gruta, Joo Maria se abrigou (FACHEL, 1995, p. 16). 45 tropeiros que retornavam de Sorocaba, alm do intercmbio mercantil, vinham notcias da fama do Monge Joo Maria, que passava a ser conhecido e admirado. Depois de Sorocaba, ele deslocou-se para o Rio Grande do Sul. A notcia da sua chegada est registrada no Jornal A Federao. O jornalista Felicssimo de Azevedo esteve no lugar denominado Campestre, em Santa Maria da Boca do Monte, hoje no atual Municpio de Santa Maria, Rio Grande do Sul, e noticiou que em janeiro de 1848 apareceu nesta cidade, um italiano com uma longa barba que se estendia at o peito, j um pouco nevada por uns 50 anos de idade, vestido com uma sotaina de saragoa e os ps nus sob uns sapatos rsticos. Era o monge (A Federao, 15.03.1859). De posse de uma imagem de Santo Antnio, Joo Maria erigiu uma pequena capela e suas prticas encontraram grande receptividade, como registrou J. Belm no seguinte trecho: A proverbial hospitalidade da nossa campanha aumentada do sentimento religioso que espargia em torno de si o mstico peregrino fez em breve do homem desconhecido ali chegado, o guia, o inspirador, o conselheiro do povo que parecia espera de algum que lhe alentasse a crena, periclitante falta de uma palavra ungida de f crist. E o monge Joo Maria surgiu nesse momento. No era um sacerdote culto, encarregado de propagar a doutrina de Cristo. Era um indivduo de poucas letras, cuja monomania religiosa o arrastava atravs de montes e vales, levando aos doentes, aos pobres, aos deserdados da fortuna, a resignao para os sofrimentos, a esperana de melhores dias, cultuando a f que remove montanhas. [....] Sua palavra doce, serena, penetra nos coraes daquela gente ingnua, arraiga-se-lhe na alma, e cresce e se vigora como a semente boa lanada em terra frtil. E Joo Maria foi considerado santo (BELEM, l933, p. 174).
Depois de passar no Rio Grande do Sul, Joo Maria esteve em Santa Catarina e no Paran. Em 1956 publicado, no Jornal O Estado do Paran, a notcia da passagem de Joo Maria na Lapa, Paran. Refere-se a um local prximo da Lapa, onde estava uma gruta que o povo o procurava, venerando a cruz e a fonte d'gua l existentes: Nos anos de 1840 a 1850, residiu l, por pouco tempo, um monge que provavelmente foi sacerdote, porque consta que com licena do ento vigrio, Pe. Lus de Carvalho, pregou na Matriz (O Estado do Paran 22 jun. 1956). Existem registros da sua passagem pelo Rio Negro e Mafra, onde a populao assolada por uma epidemia de varola acorreu ao monge, que sugeriu o levantamento de cruzes (LEO, 1929). Esteve tambm em Lages, onde Otaclio 46 Costa registrou que este filho da floresta era peregrino que repousava debaixo de rvores e alimentava-se de ervas (COSTA, 1942, p. 4-6). A carncia de registros mais precisos sugere apenas hipteses de quanto tempo permaneceu em cada lugar que esteve, que caminhos trilhou e que final teve o monge italiano. Alosio de Almeida afirma que o monge faleceu em 1865; Joo Loureno Rodrigues estabelece o ano de 1870 (CABRAL, 1960, p. 139). Envoltas em mistrios esto as circunstncias da morte de Joo Maria de Agostini. Vrias verses circulam e no se sabe at onde vai a veracidade dos fatos narrados (SLVERA, l909). 14 Nunca ficou esclarecido se morreu na gruta de Sorocaba, em Araraquara ou no Paraguai. Desapareceu, portanto, envolto em mistrios. Tal situao no foi distinta em relao ao surgimento de um segundo monge que perambulou pela Regio Sul do Pas, no final do sculo XX, que ficou conhecido pelo nome Joo Maria de Jesus. Para Oswaldo Rodrigues Cabral, o fato de o segundo monge ter tomado o nome do primeiro fez reviver a sua memria, ampliou a rea em que a mesma se tornaria conhecida e tornou uma s pessoa as que eram verdadeiramente duas (CABRAL, 1960, p. 163). Foi somente no ano de 1892 que os padres franciscanos se instalaram em Lages, para atender a todo o Planalto e Oeste Catarinenses, os freis que chegaram da Alemanha para ensinar o Catolicismo para o caboclo do Contestado encontraram prticas religiosas j arraigadas, mas que no eram dos jesutas ou de outra ordem religiosa missionria. Neste cho, os monges j haviam semeado a sua palavra (SNZG, 1939). As crenas e as formas de professar a religiosidade pelos caboclos foi identificada pelo socilogo Duglas Teixeira Monteiro como o Catolicismo Rstico. Um dos primeiros registros sobre Joo Maria de Jesus aparece na obra de ngelo Dourado que assim o descreve: O monge um tipo especial que convm ser conhecido. Caminha s por estes sertes, nada conduz, nada pede. Se chega a uma casa, do-lhe de comer, ele s aceita o que mais frugal e em pequena quantidade; no dorme dentro das casas a no ser nas noites de chuva torrencial. Conversa com os moradores sem ostentao, sem impostura, sua conversa calma,
14 Entre as verses esto a do historiador Cnego Castanho de Almeida que veicula a possibilidade de o monge ter sido morto na sua prpria gruta por algum animal feroz ou por algum desalmado. Baseia-se em um bilhete encontrado no Arquivo da Fbrica de Ferro, discorrendo sobre o desaparecimento do monge. (CABRAL, 1960, p. 140.). Outra verso veiculada tambm por Hemetrio Veloso da Silveira, baseado em notcias de jornais, a de que o monge tenha morrido nos Sertes de Araraquara entre 1906-1907, macrbio e inofensivo (SLVERA, 1909, p. 163). 47 como quem fala para si s, porm todos o ouvem, todos lhe obedecem; sua figura humilde, porm todos o respeitam e estimam. Nunca diz para onde vai, nem quando. Anoitece e no amanhece; raramente, porm, passa por um lugar mais de uma vez. Quer chova, quer os rios estejam transbordando, vai-se. No h canoas e ele passa, ningum sabe dizer como passou (DOURADO, 1977, p. 218-219). 15
Portanto, diferentemente do monge italiano que tinha paradeiros em grutas, Joo Maria de Jesus adotou um estilo itinerante, sendo possveis os registros do seu constante palmilhar desde a regio missioneira do Rio Grande do Sul at o Mato Grosso. Prximo das margens do Rio do Peixe, ngelo Dourado registrou que neste local as pessoas acreditavam em um monge e que seu nome ser lembrado eternamente no meio desse povo que no compreende seno as coisas simples e naturais (DOURADO, 1977, p. 218-219). Em Unio da Vitria esteve em 1896 e sua passagem descrita por Cleto Silva que conta que o peregrino, de sotaque espanhol, andava cumprindo uma promessa e aconselhava os sertanejos. Carregava consigo crucifixo e imagens de santos, costumava acampar onde tinha boa gua e no permitia que o acompanhassem. Conta, ainda, que o profeta aceitava apenas oferendas de alimentos como queijo, leite e verduras. Teria aconselhado os moradores de Unio da Vitria para que plantassem uma cruz no morro mais alto da cidade (SLVA, s/d. p. 67-68). No ano de 1897 esteve prximo a Lages e conversou com Frei Rogrio. O relato do dilogo entre ambos foi descrito por Frei Pedro Sinzig que detalhou ser o monge um homem de seus cinqenta a sessenta anos, de estatura mdia, vestido pobre, mas decentemente. Ao ser indagado pelo Frei Rogrio sobre a sua origem e sobre os seus propsitos, respondeu- Eu nasci no mar - criei-me em Buenos Aires, e faz onze anos que tive um sonho, percebendo nele claramente que devia caminhar pelo mundo durante quatorze anos, sem comer carne nas quartas-feiras, sextas- feiras e sbados, e sem pousar na casa de ningum. Vi-o claramente (SNZG, 1939, p. 157). Sobre a origem do segundo monge, encontramos em Soares a afirmao de que: Segundo pesquisas feitas, seu nome era Atans Marcaf, sendo de origem francesa. Na continuidade, assevera:
15 ngelo Dourado foi mdico das tropas federalistas. No caminho de volta, passando pelo Vale do Rio do Peixe, rumo ao territrio gacho, encontrou-se com Joo Maria de Jesus. 48 Joo Maria a todos atendia bondosamente, receitava, aconselhava o bem, recusava pagamento em dinheiro, apenas recebendo presentes de cavalos, porcos, vacas etc., sendo que mesmo estes distribua entre os seus inmeros afilhados por ele mesmo batizados. [...] A populao sertaneja, ento inculta, porm ordeira, estava vivamente fanatizada pelo velho monge (1931, p. 12-13).
Cabral (1960, p. 163164) procurou identificar semelhanas e distinguir memrias que se forjaram sobre os dois personagens que provocaram confuses de identidades quanto ao primeiro e ao segundo ou at mesmo o considerado verdadeiro entre os dois: Este Joo Maria que, em verdade, o santo, o que reputado como tal pelas nossas populaes sertanejas, no o primeiro, cujos contactos com o povo foram muito rpidos e fugazes. So deste as fotografias que correm - e no as de Agostini, que no as deixou de si; so deste os milagres que se contam e as lendas que se formaram. Este e no o outro, a quantos conseguem distinguir dois monges, que o santo; neste que toda gente acredita, que toda a populao sertaneja venera e de quem correm os prodgios. No serto, no planalto, nos vales, nas coxilhas, todavia, So Joo Maria um s. No houve dois.
A fuso de dois em um ficou envolta em mistrios assim como o desaparecimento deste segundo profeta caboclo. Este ltimo sumiu da mesma forma imprevista como que chegava e partia por todos os lugares que andou e simplesmente desapareceu sem deixar rastro de si. Muitos acreditam que tenha se recolhido para o Morro encantado do Tai; outros, acreditam ter partido para o Mato Grosso onde teria acabado os seus dias; ainda outros afirmam estar enterrado em Lagoa Vermelha, Rio Grande do Sul. Cabral assim o descreveu: De si s deixou posteridade a sua palavra amiga, os seus conselhos e algumas profecias. E o exemplo de uma vida de renncias. Mas, em torno de si, despontaram as lendas, [...] e a sua memria se conserva [...], to viva e to pura como nos primeiros dias [...] (1960, p. 172).
A imagem seguinte ilustra vrios elementos do cenrio onde atuaram os monges da Regio do Contestado. possvel observar desde a representao dos povos primitivos, a fauna, a flora, o monge, a chegada da ferrovia e o contexto anterior sua construo, com alteraes profundas no modo de vida dos moradores do Serto Contestado. Ainda sobre o assunto, o primeiro monge no deixou fotografias. A imagem baseada nas fotos de Joo Maria de Jesus; segundo Pinto Soares (1933), chamava-se Atans Marcaf e deixou-se fotografar por Giacomo Geremia, um fotgrafo de Caxias do Sul, Rio Grande do Sul. 49
Figura n. 04: Monge Joo Maria
Fonte: Quadro do artista plstico Jos Cannica de Salto Veloso, Santa Catarina. Acervo do autor
A data do desaparecimento de Joo Maria de Jesus se deu nos primeiros anos do sculo XX. As fotos que deixou foram guardadas com carinho e at hoje encontram zelo e espao garantido junto a imagens de santos e de objetos religiosos. Por todos os lugares por onde passou, o monge representou esperana e conforto para o povo simples do Serto, de modo que at hoje suscita boas lembranas e uma memria carinhosa expressa nas marcas deixadas pelos cruzeiros onde ele rezou e as fontes d'gua onde pousou. O So Joo Maria, como conhecido at hoje, depositrio de f e de esperana; sobre ele, pairam inmeras histrias de feitos extraordinrios. 50 Vrios estudos relatam a trajetria e a influncia dos monges sobre a vida dos moradores do Serto por onde palmilharam estes personagens. Clio Alves de Oliveira dissertou sobre A construo e a permanncia do mito de Joo Maria de Jesus na Regio do Contestado, Santa Catarina, correlacionando as prticas e as crenas que permanecem vivas na atualidade. A mais recente pesquisa de Tnia Welter que escreveu a tese O profeta So Joo Maria continua encantando no meio do povo um estudo dos discursos contemporneos a respeito de Joo Maria em Santa Catarina. As prticas e as marcas da passagem dos dois monges permanecem at hoje: o mistrio que pairou acerca da origem de So Joo Maria parecia acompanhar o cotidiano de incertezas dos sertanejos que se encontravam em situao difcil e que enfrentavam grandes dificuldades. Boatos da presena de um novo monge preencheram o vazio do desaparecimento do velho Joo Maria e exacerbaram a confiana dos sertanejos no curandeiro de ervas que passou a ser denominado Jos Maria. Jos Maria, cujo nome era Miguel Lucena Boaventura, liderou os sertanejos nos agrupamentos que culminaram com o Combate do rani (VNHAS DE QUEROZ, 1977, p. 78-79). As informaes acerca do benzedor e do curandeiro de ervas Jos Maria so contraditrias e, principalmente os jornais, destacam o carter prejudicial da presena e da liderana deste personagem. Vinhas de Queiroz comentou a familiaridade de Jos Maria com o grupo de seguidores: Esse Jos Maria era um tipo cariboca, de cabelos arredios e compridos, barba espessa; vestia-se de brim ordinrio e, como um caboclo qualquer, andava s vezes descalo; quando muito usava tamancos enfiados em meias grossas que lhe prendiam a boca das calas. Tinha dentes escuros de tanto fumar cachimbo. Ostentava um bon de jaguatirica semelhante do velho Joo Maria (bid., p. 79).
Os sertanejos, que tinham esperana em relao volta do velho Joo Maria, enxergaram neste 16 o curandeiro capaz de confortar no momento de dificuldades. A breve trajetria do Jos Maria, liderando os sertanejos, encerrou com a batalha em Banhado Grande, no rani, em 22 de outubro de 1912. Pinheiro Machado chama a ateno para o singular acontecimento em que, mesmo com o
16 Nos autos do processo do Combate do rani da Comarca de Palmas (ano de 1913) o lder religioso assim descrito: o indivduo Jos Maria de Castro Agostinho, o intitulado monge, demasiado conhecido... 51 lder morto, o movimento continuou no ano seguinte e estendeu-se at o ano de 1916. As marcas do forte misticismo aparecem nas crenas na ressurreio do monge e nos lderes de aptides religiosas que coordenaram o movimento na etapa inicial. Em recente estudo, Martins (2007, p. 12) destacou o Combate do rani, marco inicial do Movimento do Contestado, como um episdio repleto de complexas variantes. A ascendncia de Jos Maria sobre um grande grupo de sertanejos, a presena de coronis e a disputa pelas terras, a presena da Brazil Railway atravs da Brazil Development Colonization Company e o incipiente processo de colonizao e, ainda, a velha pendenga das disputas entre Santa Catarina e Paran pelo territrio contestado fazem parte do contexto vivenciado pelos sertanejos no momento da ecloso da Guerra do Contestado.
1.5 EPOPIA DE DISPUTAS NO ACERTO DOS LIMITES ENTRE SANTA CATARINA E PARAN
As histricas disputas por limites que gerou a herana das contestaes evidenciam que o termo Contestado possui um sentido profundo em suas inmeras referncias que so feitas na atualidade e alcana polmica que se estendeu por longas datas e, de certo modo, isso continua latente. Entre os sculos XV e XX, Espanha e Portugal protagonizaram longos litgios pelas terras do Novo Mundo na Amrica do Sul. Os marcos foram-se definindo, comeando com o Tratado de Tordesilhas (1494) e passando pelos Tratados de Madri (1750), Santo ldefonso (1777) e Badajs (1801). No entanto, apesar dos tratados, o histrico de contendas continuou e marcou profundamente a Histria da ocupao europia no Sul do Brasil. Aps a emancipao dos pases sul- americanos, das velhas pendengas, novas disputas ocorreram. 52 Em 1881, Brasil e Argentina levantaram uma questo lindeira 17 que ficou conhecida por Questo de Palmas ou de Misiones. A divisa internacional passava pelos Rios Peperi-Guau e Santo Antnio; porm, alegavam os argentinos que os referidos rios deveriam ser o Chapec e o Jangada (HENSFELD, 1996, p. 54-91). A questo foi solucionada em 1895 com o arbitramento do Presidente norte- americano, Grover Cleveland, concedendo ganho de causa ao Brasil. Santa Catarina e Paran protagonizaram a mais longa disputa de limites estaduais do Brasil que acompanhou o povoamento, a ocupao e tambm o processo de colonizao que alcanou o Extremo Oeste Catarinense. A primeira vila fundada no Planalto Catarinense foi Lages, por iniciativa do Governador da Capitania de So Paulo, o que provocou protestos do Governo do Rio Grande, pois nesta data So Paulo e Rio Grande do Sul faziam limites (PAUWELS, 1926, p. 121). 18 Com a criao da Provncia de Santa Catarina, Lages passou a pertencer nova provncia e foi a primeira que estava distante das vilas e dos povoados do Litoral. Em pleno sculo XV, os portugueses continuavam a ocupar apenas as bordas do mar, eles ainda no se haviam afastado muito da costa (SANTA CATARNA E PARAN, 1909, p. 51). Alm de Lages, a nova Provncia Catarinense considerava que os seus limites geogrficos acompanhavam os Rios guau ao Norte e Uruguai ao Sul, na direo Oeste, at alcanar a Argentina, de modo que, quando comeou a ocupao dos Campos de Palmas, por moradores oriundos da Provncia de So Paulo, o Presidente da Provncia catarinense alegou que as terras pertenciam aos domnios desta Provncia. Sobre o assunto, importante referir que o desconhecimento da regio gerava ainda mais indefinies: vila da Luz escreveu que o Presidente da Provncia catarinense alegou o seguinte: [...] o territrio, que fica ao lado esquerdo do guau, e a Oeste de Lages at chegar linha de demarcao feita pelo Rio Santo Antnio, que corre para o guau e pelo Peperi-Guau, que corre para o Uruguai, faz parte de Santa Catarina, e nele se compreendem os Campos, denominados Novos, j povoados, direita do Canoas, e as vastssimas campinas, denominadas das Palmas, esquerda do guau (VLA DA LUZ, 1952, p. 124).
17 Relativo a linda ou limite. 18 A criao da Provncia de Santa Catarina deu-se pelo Alvar de 12 de fevereiro de 1821. 53
Em 29 de agosto de 1853, Curitiba, que era a quinta comarca de So Paulo, foi elevada categoria de Provncia e recebeu a fastidiosa questo lindeira que continuaria com as disputas e com as contestaes; a situao, por seu turno, piorou quando a rea disputada foi ampliada, pois, alm dos Campos de Palmas, o Rio Negro tambm entrou nas pretenses do Paran. Em sntese, foram anos seguidos de discusses e de tentativas de se firmar jurisdio sobre as terras. Assim, uma provncia alegava a posse e a outra alegava o direito quelas. Mesmo com a Proclamao da Repblica e a com a transformao das Provncias em Estados, nada estava definido. Em 1904, a questo foi levada ao Supremo Tribunal Federal que concedeu ganho de causa a Santa Catarina; o Paran, por sua vez, recorreu da deciso. Em 1910, pela terceira vez, o Supremo Tribunal Federal confirmou em definitivo a sentena em favor de Santa Catarina. Para Cabral: a deciso da alta Corte Judiciria era criticada abertamente pela imprensa paranaense na insinuao de desrespeito s suas determinaes (CABRAL, 1960, p. 58). Neste contexto de hostilidades entre Estados vizinhos, surgiram os primeiros ajuntamentos em torno de Jos Maria e a partida do squito do curandeiro para o rani. A marcha, que cruzou o Rio do Peixe, foi entendida como uma afronta dos catarinenses, no sentido de forarem a execuo da sentena do Supremo Tribunal Federal. Foi somente em 1916 que um acordo colocou um ponto final nas disputas. O Presidente da Repblica, Wenceslau Brs, depois de vrias tentativas frustradas, conseguiu encerrar o agitado litgio. No dia 20 de outubro de 1916, foi solenemente assinado um tratado pelos governadores Filipe Schimidt, de Santa Catarina, e Afonso Camargo, do Paran. Os limites, no territrio contestado, ficaram assim definidos: [...] O Rio Negro, desde suas cabeceiras at a sua foz no Rio guau, e por este at a ponte da estrada de Ferro S. Paulo - Rio Grande; pelos eixos desta ponte e da mesma Estrada de ferro at a sua intercepo com o eixo da estrada de rodagem que atualmente liga a cidade de Porto Unio da Vitria cidade de Palmas; pelo eixo da referida estrada de rodagem at o seu encontro com o Rio Jangada; por este acima at a sua intercepo com a linha divisria das guas dos Rios guau e Uruguai, e por esta linha divisria das ditas guas na direo geral de Oeste at encontrar a linha que liga as cabeceiras dos Rios Santo Antnio e Peperi-Guau, na fronteira Argentina (PAZZA, 1983, p. 597). 54
Figura n. 05: Acordo de limites assinado em 20 de outubro de 1916
Fonte: Museu Histrico e Antropolgico da Regio do Contestado Caador, Santa Catarina
O acordo assinado em 20 de outubro de 1916 marcou, oficialmente, o fim do litgio histrico e das contendas pela Regio do Contestado. Alm da exaltao dos nimos envolvendo as disputas polticas e jurdicas da Regio, outros fatores so fundamentais compreenso do contexto histrico que envolveu a populao sertaneja da Regio do Contestado. De acordo com Cabral, o acordo foi acatado com constrangimento pelas populaes dos dois Estados. Escreve o historiador que (...) quando o acordo foi assinado, (...) sobre os escombros dos redutos ainda pairava o fumo dos incndios. E, no fundo dos vales, beira dos caminhos, na sombra das florestas, cruzes recentes diziam que a terra disputada ainda no consumira os corpos dos que haviam cado na luta (CABRAL, 1960, p. 66). Didaticamente, a data da assinatura do acordo destacada, tambm, como o fim da Guerra do Contestado. No dia 22 de outubro de 1916, o jornal O Estado de Florianpolis publicou um extenso artigo sobre o accordo assinado com a manchete: Assina-se, no Rio, 55 o tratado que pe termo velha pendncia de limites. O referido artigo destacava a solenidade do ato, os discursos do Ministro do nterior e do Governador de Santa Catarina. 19 O tratado seria, ainda, submetido aprovao nas assemblias estaduais. Na distante Regio do Contestado, o trmino da velha pendenga deixou marcas indelveis na memria dos moradores. Foi somente depois do acerto de limites entre Santa Catarina e Paran, atravs do acordo de 20 de outubro de 1916, que ambos os Estados passaram a firmar jurisdio, situao que coube para cada um dos litigantes. Atravs da Lei n. 1.147, de 25 de agosto de 1917, foram criados os Municpios de Mafra, Cruzeiro (hoje Joaaba), Porto Unio e Chapec. O registro da visita do Presidente do Estado de Santa Catarina regio de tantas disputas somente ocorreu em 1929 quando Adolpho Konder empreendeu uma verdadeira aventura pelo ainda desconhecido Oeste Catarinense, registrada por Carlos H. P. Corra nestes termos: somente em 1929, treze anos depois, portanto, da 'catarinensizao' oficial da regio do Contestado at a fronteira com a Argentina, (...) comeava o processo de integrao do Oeste s demais regies de Santa Catarina. Ocasio em que o Presidente do Estado catarinense tambm teve um encontro com Getlio Vargas, futuro Presidente brasileiro (CORRA, 1997, p. 179193). Em 1917, a grande serraria da Lumber em Trs Barras estava em plena produo. Centenas de rvores seculares tombavam para serem transformadas em madeira serrada para exportao, para a fabricao de mveis ou de caixas desarmadas. Os trabalhadores da serraria, em sua grande maioria, eram descendentes de imigrantes e a Southern Brazil Lumber and Colonization Company atuava na venda dos lotes coloniais. O final da campanha do Exrcito no Contestado e a assinatura do acordo de limites marcou o incio de um novo tempo. Os colonos, descendentes de imigrantes europeus, preparavam as malas para subir no trem, no Rio Grande do Sul, e descer em uma das estaes ao longo do Vale do Rio do Peixe. Agora, a Lumber tinha garantias individuais e para as propriedades, como o Diretor Shermann Bishopp exigiu do governo brasileiro. As reas de concesses ao grupo liderado por Percival
19 Entre os participantes da solenidade de assinatura do tratado, estavam alguns deles que depois receberam homenagens de municpios da Regio. Entre outros, destacam-se o Senador Abdon Baptista, os deputados Lebon Rgis e Miguel Calmon, Ministro Paulo Frontin, e outras pessoas de alta representao (Jornal O Estado, 22/10/1916). 56 Farquhar ao longo do traado da ferrovia e as reas adquiridas estavam disponveis para a extrao comercial da madeira e para a colonizao.
1.6 A CONSTRUO DA FERROVIA SO PAULO-RIO GRANDE
A construo da ferrovia que cortou a floresta ombrfila mista, nas terras contestadas, marcou profundamente a Histria da Regio. Dois momentos distintos separam a Histria do Contestado: antes e depois da instalao dos trilhos entre os Rios guau e Uruguai. A ferrovia foi inaugurada no ano de 1910 e, at ento, a Regio era habitada, esparsamente, pelas comunidades indgenas e pelos caboclos e mestios pioneiros. Aps a inaugurao da ferrovia, tudo mudou e teve incio uma nova Histria no Contestado. A construo da ferrovia, ligando So Paulo ao Rio Grande do Sul, ressaltou a preocupao do Governo brasileiro em ocupar as chamadas terras devolutas e o carter geopoltico de tamanha envergadura. O trecho entre os Rios guau e Uruguai, exatamente na rea de maior contestao, esteve a cargo da empresa Brazil Railway Company, controlada pelo norte-americano Percival Farquhar. Os moradores da regio contestada no tinham noo do que o futuro lhes reservava. Desta forma, no dia 23 de setembro de 1906, inaugurou-se, em Porto Unio, a enorme ponte sobre o Rio guau para a passagem dos trilhos que avanavam sobre o territrio contestado. As autoridades, presentes na festa da inaugurao, destacaram a chegada do progresso como um elo de ferro que une esse tempo a uma nova era (BORELL, 2006, p. 64). A ponte com os trilhos sobre o Rio guau perfazia um total de 427 metros de comprimento e, na poca, era a segunda maior ponte brasileira.
57 Figura n. 06: A construo da ponte sobre o Rio guau
Fonte: Acervo do nstituto Histrico e Geogrfico de Santa Catarina
Percival Farquhar, magnata norte-americano, que controlava grandes investimentos mundiais, principalmente em pases da Amrica do Sul, vidos em receber grandes somas em projetos, como a construo de portos, ferrovias, madeireiras e companhias colonizadoras, adquiriu os direitos para completar a construo da linha de tarar - So Paulo at Marcelino Ramos, no Rio Grande do Sul. Este trecho iria ligar o Oeste Catarinense com as outras ferrovias de Percival Farquhar em So Paulo, Paran e Rio Grande do Sul. Juntas, estas ferrovias compreendiam a Brazil Railway Company, uma holding criada por Farquhar em novembro de 1906 (DACON, 2002). Todd A. Diacon 20 conta que, por volta de 1914, esta gigante aparelhagem representava aproximadamente 3.000 milhas de trilhos no Brasil. A Companhia tambm possua significantes interesses de mercados em outras 2.000 milhas. Esse total de 5.000 milhas significava que a Brazil Railway Company, naquela poca, controlava aproximadamente metade de toda a rede de estradas de ferro no Brasil:
20 Todd A. Diacon Professor de Histria na Universidade do Tennesee. autor da obra: Millenarian vision, capitalist reality Brazil's Contestado Rebellion, 1912-1916. 58 Quando a Brazil Railway Company adquiriu os direitos para a linha ferroviria, ela j estava concluda at a cidade de Unio da Vitria, no Paran. Tinha agora o dever de construir as, aproximadamente, 200 milhas restantes (DACON, 2002, p. 47). Vinhas de Queiroz (1977, p. 70-71) escreveu sobre a concesso feita, pelo Governo brasileiro, empresa construtora: A estrada obtivera do Governo Federal uma concesso de terras equivalente a uma superfcie de nove quilmetros para cada lado do eixo, ou igual ao produto da extenso quilomtrica da estrada multiplicado por 18. A rea total assim obtida deveria ser escolhida e demarcada, sem levar em conta sesmarias nem posses, dentro de uma zona de trinta quilmetros, ou seja, quinze para cada lado.
Charles A. Gauld escreveu que o mais doce entre os incentivos da concesso das terras era uma faixa de terra ao longo do comprimento da linha para a colonizao. Os nmeros da Companhia ilustram que esta doao continha 2.248.020 hectares nos Estados de Santa Catarina e Paran. Somente no Paran, o Governo cedeu 1.700.268 hectares para a companhia. Crucial para os planos de desenvolvimento, a Companhia planejava vender estas terras para os colonos que iriam ento usar a ferrovia para embarcar os seus produtos da agricultura. Ainda, a Companhia descreveu a rea includa nesta doao como excessivamente rica, frtil, bem irrigada e que o clima no desagradvel para a raa branca. Em relatrio de Farquhar, escrito em 1909, destacou que no Sul do Brasil o solo muito frtil e prprio para trigo, milho, arroz, algodo, frutas e vegetais de praticamente todos os tipos (GAULD, 1964, p. 210). Em 1907, a Brazil Railway Company partiu de Unio da Vitria rumo a Marcelino Ramos para concluir rapidamente o trecho e da forma mais econmica possvel. Segundo Diacon: De Unio da Vitria um exrcito de mil trabalhadores se movia para o Sul em direo de So Joo - SC. Logo uma cidade de barracas se espalhava sobre o interior para acomodar os trabalhadores. A Companhia encheu grandes armazns, primeiro com as simples barracas de lonas, com comprimentos de trilhos, dormentes, e ferramentas de todas as formas e tamanhos. Enormes escavadeiras a vapor e niveladoras dragavam a terra o que deveria ter sido uma grande diverso para os residentes locais. (DACON, 2002, p. 48).
Em abril de 1908, foi inaugurado o primeiro trecho de 51 km e, um ano depois, completou-se o segundo trecho de 50 km, homenageando-se o Presidente 59 da Repblica, com o nome da nova estao de Presidente Penna, o qual compareceu inaugurao. No entanto, foi necessrio intensificar os trabalhos para a concluso at Marcelino Ramos, no prazo constante no contrato com o governo (dezembro de 1910).
Figura n. 07: Construo da ferrovia no Vale do Rio do Peixe
Fonte: Autor desconhecido. Acervo de Joeli Laba
Para atingir o objetivo rapidamente, o nmero de trabalhadores multiplicou- se de 1.000 para 5.000, de tal sorte que, trabalhando em ritmo acelerado, ao contratar trabalhadores para determinados trechos e ao construir pontes temporrias de madeira ao longo da linha, a Companhia concluiu os trabalhos em dezembro de 1910. Diacon registrou a inaugurao da ferrovia com o seguinte texto: No dia 17 de dezembro de 1910, os oficiais locais e regionais da Brazil Railway Company e a elite da sociedade do Contestado embarcaram no trem alegremente decorado da Brazil Railway em Unio da Vitria. Horas mais tarde, atravessaram a balanante ponte em Marcelino Ramos e a Histria estava feita. Afirmou tambm que talvez os 61 trabalhadores da ferrovia recrutados principalmente nas colnias de imigrao do Paran e, mais tarde, pelos colonos oriundos das colnias do Campesinato ndependente do Rio Grande do Sul.
1.7 A EXTRAO DA ERVA-MATE E DA MADEIRA NO SERTO CONTESTADO
O incipiente processo de extrao comercial da erva-mate e da madeira na floresta ombrfila mista est relacionado aos primeiros passos da ocupao e da colonizao efetiva do territrio contestado. De fato, a dinmica da extrao da erva- mate feita de forma artesanal, sem demanda de grandes investimentos, diz respeito ao arraigado hbito cultural dos moradores da rea de incidncia das rvores que forneciam as folhas e os ramos para a preparao da efuso. A vasta rea de incidncia de erva-mate ou Ilex paraguariensis abrange o norte do Rio Grande do Sul, os planaltos de Santa Catarina e do Paran, o sul do atual Mato Grosso do Sul, o Paraguai e a regio de Misses na Argentina (OLVERA, 2001, p. 70). Para Goularti Filho, desde o Mato Grosso, a provncia de Misiones na Argentina e o Paraguai. Em Santa Catarina a erva-mate concentrava-se no Alto Vale do Rio Uruguai e no planalto norte desde o atual Municpio de Campo Alegre at Xanxer , onde a extrao teve incio no ltimo quartel do sculo XX (GOULART FLHO, 2002, p. 84-85). A evoluo do processo para a extrao comercial da erva-mate e a transformao da atividade em empreendimento industrial de interesse econmico alcanaram o auge econmico no momento que principiou a extrao comercial da madeira e a prpria indstria madeireira ligada aos empreendimentos do Sindicato Farquhar, que tambm atuou no processo da retirada da erva-mate das florestas com fins lucrativos. A erva-mate j foi assunto abordado por muitos historiadores e alcanou espao privilegiado nas narrativas pela sua importncia econmica, principalmente no Estado do Paran. Em Santa Catarina, a sua importncia no diminui com o auge da atividade, sendo pontuado entre a ltima dcada do sculo XX e os primeiros anos do sculo XX, exatamente no momento da chegada da ferrovia e da instalao da Southern Brazil Lumber and Colonization Company. 62 Figura n. 09: Ervateiro
Fonte: D'ALESSO, Vito. CIaro Jansson: o fotgrafo viajante. So Paulo: Dialeto Latin American Documentary, 2003. p. 42.
A existncia de ervais nativos na Regio do Contestado possibilitou as atividades extrativas, exercidas pelos caboclos que, durante o inverno, internavam- se nas matas, manejando com habilidade o faco, para a retirada das folhas e dos galhos, que eram vendidas aos bodegueiros. Goularti Filho tambm ressalta que a erva-mate foi responsvel, em boa medida, pela fixao inicial dos imigrantes de Joinville e de So Bento e pela construo da Estrada Dona Francisca e ramal ferrovirio da EFSPRG, ligando Porto Unio ao Porto de So Francisco (GOULART FLHO, 2002, p. 84). De Joinville, onde foi instalada a Companhia ndustrial para a explorao, o 63 beneficiamento e a exportao da erva-mate, a atividade ampliou-se por toda regio, principalmente onde incidiam os ervais nativos. Atravs do Decreto n. 1273, de 10 de janeiro de 1891, a Companhia ndustrial de Joinville obteve a concesso do Governo para explorarem herva-mate em terrenos devolutos no Estado de Santa Catarina (...) por vinte anos (...) nos municpios de So Bento, Blumenau, Curytibanos, Campos Novos, Tubaro, Lages e So Joaquim (ALMEDA, 1979, p. 30); cabe ainda referir que a Companhia dissolveu-se em 1905 (AURAS, 1984, p. 30-32). No auge, a atividade chegou a representar 30% do valor total das exportaes de Santa Catarina. A extrao da erva-mate no resultou em efetiva ocupao ou povoamento, nem em mudanas significativas, pois a atividade da simples retirada do produto era realizada em reas de fazendas por pees, agregados e posseiros. Marli Auras salienta que homens sem terra construam toscas moradias em reas devolutas e tinham na coleta da erva-mate seu principal ganha-po (AURAS, 1984, p. 31). Os meios de transportes tambm no demandaram transformaes, pois seguiam com a erva cancheada para os centros exportadores, 21 dentro de surres de couro, em rudimentares carros de bois. Ainda no incio do sculo XX, a extrao da erva-mate representava uma importante fonte de renda para o Pas. Os Estados de Santa Catarina e Paran eram os maiores representantes no setor. Sobre isso, Linhares escreve: (...) depois da borracha, era o mate, a mais importante das indstrias extrativas do Brasil, a principal fonte de riqueza do Paran (LNHARES, 1969, p. 302), cuja economia foi fundamental no processo histrico deste Estado. Diferentemente da erva-mate, a extrao comercial da madeira na floresta ombrfila mista do Contestado principiou com as aquisies de grandes reas cobertas de matas nativas, j cortadas pelos trilhos da ferrovia, com a instalao da indstria madeireira que contava com grandes investimentos em capitais na construo de engenhos de serrar, com a utilizao de processos industriais com avanada tecnologia para a poca e com combinaes com outros fatores externos j executados, projetados ou observados pelos olhos de guia de Percival
21 Curitiba, Paranagu, Joinville e So Francisco. 64 Farquhar, que cunhou o pioneirismo da indstria madeireira em pleno Serto Contestado. A instalao dos engenhos de serrar foi acompanhada, necessariamente, pela construo de moradias para os operrios, de edificaes para as casas de comrcio, de necessidades de transporte, de criao de escolas, 22 alm do surgimento de atividades agrcolas para o fornecimento de gneros alimentcios, da necessidade de mo-de-obra especfica em diversas atividades e do processo de urbanizao que fixou moradores a partir da atividade madeireira. O pioneirismo na formao de ncleos e de vilas operrias, que serviram de origem aos povoados e s prsperas cidades, foi destacado pela historiadora Eli Bellani, ao afirmar que a atividade industrial madeireira com intensa destruio das florestas foi a nica opo de vida e sobrevivncia na regio (BELLAN, 1991, p. 216). Tambm observou que a madeira foi o elemento da integrao econmica da regio no plano nacional e tambm internacional. Em estudo sobre as florestas de araucria no Mdio Vale do guau, Miguel Carvalho situou a devastao da floresta ombrfila mista por volta do final do sculo XX e descreveu a existncia de significativa populao indgena, de variadas etnias (...), caboclos com suas pequenas roas de subsistncia e extrao de erva-mate (CARVALHO, 2006, p. 58-59). Carvalho pontuou ainda a arrancada deste processo no Paran, com a construo da Estrada da Graciosa que ligou Curitiba a Antonina em 1891. Na Regio do Contestado, a Histria do pioneirismo da indstria madeireira est ligada construo da ferrovia So Paulo-Rio Grande, que partiu de tarar, So Paulo, at Santa Maria, Rio Grande do Sul, e cortou amplas extenses de matas praticamente inexploradas no interior do Paran, Santa Catarina e Rio Grande do Sul (CARVALHO, 2006, p. 60). O incio dos trabalhos de instalao da Lumber na Regio do Contestado, antecedeu concluso da ferrovia So Paulo-Rio Grande que foi inaugurada em 17 de dezembro de 1910. A edificao do complexo madeireiro prximo ao tronco ferrovirio tambm levou em considerao o volume de madeira comercializvel. Para Reitz e Klein, os pinheirais densos possuam mais de 200 araucrias por
22 Dentro do quadro da Lumber, havia a sala de aula da professora Donina. Mais tarde, tornou-se a escola dos poloneses e, quando foi encampada, criaram o posto de puericultura (Depoimento de Trcia de Oliveira). 65 hectare (RETZ; KLEN; RES, 1979, p. 248). Sendo o pinheiro a rvore mais alta da floresta ombfila mista, segundo os mesmos pesquisadores, aquele atinge de vinte a cinqenta metros de altura e as rvores adultas alcanam de um a dois metros de dimetro com idade mdia de 140 a 200 anos (RETZ; KLEN, 1966). Carlos Pereira Costa chamou a ateno para as propores da quantidade de rvores beneficiadas pela Lumber 23 , pois, no ano de 1941, existiam 1.270 serrarias registradas que beneficiavam pinho em Santa Catarina e a Lumber era a maior de todas. (PERERA, 1943). H lacunas nos dados e a documentao existente no possibilita um eficiente clculo da quantidade de madeira explorada comercialmente pela Lumber entre os anos de 1911 e 1940. 24 possvel uma estimativa, ao se observar a rea coberta pela floresta ombrfila mista e a quantidade de pinheiros distribudos nos aproximadamente 200.000 km 2 de superfcie. Conforme Lago, no ano de 1955, ainda existiam em Santa Catarina 27 milhes de indivduos com dimetro superior a 40 cm, enquanto o Paran deveria possuir 128 milhes e o Rio Grande do Sul apenas 6 milhes (LAGO, 1968).
23 A Lumber foi encampada pelo Governo de Getlio Vargas durante a Segunda Guerra Mundial e continuou as atividades madeireiras at o ano de 1948. 24 Ladislau Olcha em seu depoimento relata que testemunhou a queima de vasto material de arquivo na dcada de 1940. Chamou sua ateno alguns papis timbrados e cheques que eram varridos pelo fogo: Guardei dois no bolso e esto guardados comigo at hoje (LADSLAU OLCHA 02/02/2007). 66 Figura n. 10: Pinheiro remanescente da Floresta da Epagri de Caador, Santa Catarina
Fonte: Arquivo do autor
Estima-se que a araucria da fotografia a quinta maior do mundo. Mede 7,70 cm de circunferncia e 2,45 cm de dimetro. um dos milhares de exemplares da espcie, que se encontra na Floresta Nacional da Estao Experimental da EPAGR de Caador, em Santa Catarina. Retomando o assunto, durante as primeiras dcadas do sculo XX, a grande reserva de pinheiros existente possibilitou a explorao de forma simplificada com a venda das toras inteiras ou das tbuas serradas e de vigamentos, como no caso da 67 Lumber. A introduo de novos processos tcnicos e as demandas do comrcio, tanto interno como externo, possibilitaram os aproveitamentos e a fabricao de uma infinidade de outros produtos como as caixas desarmadas e os mveis inexistentes nos processos iniciais, quando a abundncia de madeira era grande e a madeira serrada constitua-se no principal produto para o fornecimento de material construtivo. Para a possvel anlise do perodo em estudo e do caso da Lumber, o quadro abaixo refere-se ao perodo da exportao da madeira serrada, quando a Lumber colocava grande volume de pinho no comrcio internacional.
Quadro n. 01: Exportao de pinho do Brasil ANOS TONELADAS 1911 4.412 1912 3.736 1913 11.932 1914 5.809 1915 30.719 1916 71.126 1917 45.713 1918 152.021 1919 71.621 dcada de 1920 950.296 dcada de 1930 1.594.194
Fonte: CARVALHO, Miguel, M. X. O desmatamento das fIorestas de araucria e o Mdio VaIe do Iguau: uma Histria de riqueza madeireira e colonizao. Florianpolis: UFSC, 2006. nstituto Nacional do Pinho. Quadros Estatsticos. Anurio Brasileiro de Economia Florestal. nstituto Nacional do Pinho, 1948, 1958 e 1968.
interessante considerar que o volume exportado abrange todas as indstrias madeireiras da poca, e um possvel comparativo com o Lumber ser facultado com os quadros estatsticos existentes, exclusivos da referida empresa, que sero apresentados mais adiante. Ainda em termos estatsticos, encontra-se em Miguel Pedro Guerra um quadro interessante no que se refere explorao comercial de pinheiros da floresta ombrfila mista. Segundo ele, o intenso processo de explorao predatria fez com 68 que as reservas naturais dessa espcie estejam atualmente limitadas a valores estimados entre 2% a 4% da rea original (GUERRA, 2003, p. 87).
Figura n. 11: mbuia gigante
Fonte: Postal de Luiz Sczherbowski do acervo do nstituto Histrico e Geogrfico de Santa Catarina
No carto postal da Southern Brazil Lumber & Colonization Company, h uma imbuia gigante sendo serrada pelos operrios. importante comentar que os seis homens parecem pequenos diante da exuberante rvore de 2 m de dimetro. Cabe referir agora que a construo da ferrovia, a explorao comercial da madeira e a colonizao das terras no Contestado so temas cruciais para a compreenso da Histria do Contestado, tanto antes, como depois da Guerra do Contestado. No dia 23 de setembro de 1912, o jornal O PAIZ do Rio de Janeiro publicou um artigo destacando que nossos grandes, nobres e acertados esforos foram ter conseguido atrair para o Brasil a ateno dos capitalistas estrangeiros, mostrando-lhes as vantagens que eles poderiam auferir, auxiliando-nos na explorao de nossas inesgotveis e inexploradas riquezas (O PAZ Rio de 69 Janeiro, 23 set. 1912). Com efeito, a chegada pioneira do capital norte-americano no Sul do Brasil encontrou a floresta ombrfila mista de portas abertas. preciso, pois, caracterizar as empresas e a atuao do grupo Farquhar no Contestado; ao dispor de capital equivalente a 100.000 dlares, em 1907, a Brazil Railway Company criou a subsidiria Southern Brazil Lumber & Colonization Company para adquirir as propriedades florestais em Trs Barras, reas ento do Paran. No foi por acidente que uma linha ferroviria atravessou estas terras. A Lumber lucraria com a venda da madeira, com a colonizao, com a ferrovia e com o transporte. , ainda, um assunto que carece de uma descrio do Fara Americano, como o descreveu Charles Gauld 25 ao se referir ao magnata norte-americano Percival Farquhar e de seus investimentos que sero tratados no prximo captulo.
25 Charles A. Gauld na obra Farquhar, o ltimo tit um empreendedor americano na Amrica Latina, descreve a trajetria do edificador da Lumber na Regio do Contestado. Comeou pela formao daquele indivduo, apresentou a sua experincia em empreendimentos internacionais, comentou os seus feitos na Amrica Latina e, principalmente, no Brasil onde atuou na construo de ferrovias, de portos, de colonizadoras e de madeireiras. 2 AS EMPRESAS ESTRANGEIRAS NO BRASIL NO INCIO DO SCULO XX E O PROGRAMA FARQUHAR
BRASL imenso, fantstico, verde, seco e pardacento. Florestas onde o silncio sepulcral. (...) Ouro no cascalho, ouro no cacaueiro, ouro na frondosa copa do ip. Por tudo um tom melanclico. E, depois, a marcha contnua de legies de homens contra as foras hostis da natureza. Roy Nash, 1926.
2.1 AS EMPRESAS ESTRANGEIRAS NO BRASIL NO INCIO DO SCULO XX
As ltimas dcadas do sculo XX ficaram marcadas pela decadncia da Monarquia e pelo declnio da influncia inglesa na economia brasileira. A instalao de 138 empresas estrangeiras, entre os anos de 1905 e 1920, representa uma mostra parcial do poderio econmico do Sindicato Farquhar no Brasil, do avano tecnolgico e cientfico dos Estados Unidos da Amrica e evidencia onde se encontrava o novo eixo econmico mundial. A fase imperialista do capitalismo monopolista marcada pela dcada de 1870 como o princpio da luta entre as grandes potncias pela hegemonia econmica mundial. Este perodo, considerado como a poca clssica do fenmeno imperialista, definido como constitutivo de um sistema capitalista internacional. O desenvolvimento sem precedentes dos movimentos internacionais de capitais e de mercadorias gerou uma tendncia a igualar as taxas de lucros em escala mundial. esta mobilidade internacional dos capitais que tornou possvel um sistema capitalista internacional unificado, porm no homogneo (AMN e VERGAPOULUS, 1997, p. 77). A respeito disso, Paul Singer destaca que houve inverses de capitais dos pases industrializados nos pases no-desenvolvidos. Duas finalidades perseguiam estas inverses: as taxas de juros mais elevadas e o domnio dos mercados internos das economias coloniais. A primeira finalidade torna-se vivel j que se tratava de emprstimos a governos dispostos a pagar taxas de juros e comisses aos intermedirios ou a fazer inverses em obras pblicas como ferrovias, cujos riscos 71 eram eliminados por garantias de juros oferecidas pelo poder concedente. A segunda finalidade era atingida mediante o estabelecimento de subsidirias ferrovias, companhias de navegao, de bondes, de eletricidade e gs, matadouros, madeireiras e colonizadoras - , que naturalmente preferiam importar equipamentos, combustveis e tecnologias do pas em que se situava a matriz (SNGER, 1977, p. 363). O referido autor prossegue o seu raciocnio, explicando que a expanso do capitalismo em diferentes pases passou a dividir mercados tradicionalmente monopolizados pelos ingleses, dando margem ao acirramento de competies entre essas naes. O Brasil, nesse contexto internacional, situou-se como mero fornecedor de matrias-primas e, potencialmente, de grande interesse para os pases investidores. Figura n. 12: Charge de Cecil Rhodes 26 sobre a frica
Fonte: Acervo do Professor Walfrido Soares Jnior
26 Cecil Rhodes (1853-1902), imperialista britnico, expandiu o domnio dos ingleses sobre o continente africano. Os pases da Rodsia do Sul (Zimbbue) e da Rodsia do Norte (Zmbia) faziam parte dos territrios que lhe pertenciam; l, onde explorou a minerao de diamantes e de ouro (GAULD, 2006, p. 57). 72 importante ressaltar que a formao de empresas gigantes decorrente dos avanos do capitalismo que requer a conquista de novos mercados, objetivando no s a exportao de mercadorias para os pases perifricos mas principalmente a exportao de capitais para a manuteno da taxa de lucro elevada. nesse contexto que acontece o estabelecimento do Grupo Farquhar no Brasil, presena esta que se far sentir em amplos setores da Economia brasileira, a partir do incio do sculo XX. O estabelecimento deste grupo deu incio a uma nova tendncia, ou seja, origem de trustes e de cartis, decorrente do grau de desenvolvimento do capitalismo e da conseqente concentrao e centralizao de capital (SNGER, 1977, p. 363). No Brasil, em especial, h matria-prima e mo-de-obra abundantes e baratas, alm de outros incentivos para o sucesso dessa nova etapa do capitalismo, como, por exemplo, os subsdios oferecidos pelo Governo. No caso das ferrovias, a garantia de juros esteve entre 5 e 7% sobre o custo da estrada. Ainda foi facultada s Companhias a obteno do privilgio de concesso das terras marginais s linhas das estradas de ferro, gratuitamente, ao garantir o lucro e eliminar a concorrncia. Embora, efetivamente, as estradas de ferro tenham simbolizado a fase da hegemonia inglesa, no Brasil e no campo internacional, o Grupo Farquhar, estabelecido no Brasil em 1906, pretendeu e obteve o controle do sistema ferrovirio nacional, coerentemente com a sua atuao de truste. Ressalte-se aqui o papel destacado dos investimentos estrangeiros nas chamadas ferrovias de integrao ou estratgicas, a partir do incio do sculo XX, como foi o caso da Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande (SNGER, loc. cit.).
2.2 PERCIVAL FARQUHAR, O "FARA AMERICANO" EM CUBA E NA GUATEMALA
Relatar a trajetria do maior complexo extrativo madeireiro do mundo, instalado em pleno Serto Contestado no incio do sculo XX, tarefa que passa, necessariamente, pela descrio dos projetos do mega empreendedor Percival 73 Farquhar que, alm da Brazil Railway Company, erigiu 38 empresas subsidirias, entre elas a Southern Brazil Lumber & Colonization Company. 27
Personagem controvertido da Histria econmica mundial, odiado por muitos e admirados por outros, que deixou marcas indelveis na Histria brasileira pela ousadia do seu programa e pela presena onipresente e incansvel nos meios polticos e econmicos brasileiros na primeira metade do sculo XX. Descendente de ingleses quacres e presbiterianos escoceses que se estabeleceram, no incio do sculo XV, nas colnias da Amrica do Norte, Percival tinha na sua ascendncia o numeroso grupo religioso da comunidade quacre ou Sociedade dos Amigos que transformara a Filadlfia na mais progressiva cidade do Novo Mundo. 28
Arthur Farquhar, pai de Percival, estabeleceu-se em York, na Pensilvnia, e atuou no ramo da indstria metalrgica, exportando implementos agrcolas e depois mquinas e tratores. 29
Em 1864 nasceu Percival, o segundo dos trs filhos de Arthur Farquhar. A prspera famlia exerceu forte influncia na formao dos filhos pela rigorosa formao graas aos princpios religiosos e tambm pela convivncia do pai no crculo poltico e empresarial da poca tanto em Londres como em Nova York. 30
27 Os dados levantados neste captulo tiveram como fontes principais as pastas do Arquivo Nacional RJ, o Arquivo particular de Romrio Jos Borelli, o Arquivo Pblico do Estado de Santa Catarina e referncias bibliogrficas. 28 Recentemente traduzido para a Lngua Portuguesa, a obra de Charles A. Gauld com o ttulo Farquhar, o ltimo tit um empreendedor americano na Amrica Latina, fornece importantes informaes sobre o quacre americano e a histrica poltica e econmica do perodo. Gauld assim descreve: Quacres (quakers) so membros da Sociedade dos Amigos, nova denominao crist surgida em meados do sculo XV na nglaterra, na poca da Reforma Protestante. Os membros da comunidade crem na comunho direta com Deus, sem intermedirios, e se propem a viver de modo a dar testemunho dessa experincia interior, sob a forma de integridade, simplicidade, pacifismo, igualdade social, etc. (GAULD, 2006, p. 39). Gauld ofereceu ao Arquivo Nacional do Rio de Janeiro uma pasta de documentos de Percival Farquhar e de suas empresas, esta que foi uma importante fonte de pesquisa para este trabalho. Uma descrio dos projetos de Farquhar est no Programa Farquhar, que ser descrito mais adiante. 29 Com a ajuda de sete mecnicos, comeou a produzir implementos agrcolas. Por volta da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), sua empresa empregava 600 homens e gerava anualmente cerca de 1,5 milho de dlares, oriundos da venda mundial de mquinas e motores da dade do Ferro. (bid., p. 32). 30 Alm de conhecer e conviver com grandes empresrios da poca, os Farquhar tambm foram conhecidos dos presidentes desde Abraham Lincoln (1809-1865, adm. 1861-1865) at Herbert Hoover (1874-1964, adm. 1929-1933) (GAULD, loc. cit.). 74 Aps a incipiente experincia nos negcios com o pai, Percival ingressou no Yale College, em 1881, onde concluiu o Bacharelado e, em seguida, especializou-se em Engenharia Mecnica pela Escola Politcnica de Sheffield. importante destacar que, como estudante em Yale, fez o primeiro contato com o ramo ferrovirio, tendo, durante as frias, participado da prospeco para uma estrada de ferro em Minnesota, no ano de 1883 31 (GAULD, 2006, p. 33). Concludos os estudos de Engenharia, Percival foi promovido pelo pai a scio de sua companhia de exportao em Nova York que remetia mquinas agrcolas para a Amrica Latina (bid., p. 34-35). Nesse perodo, tambm freqentou a Faculdade de Direito na Universidade Colmbia. Charles Gauld, bigrafo de Percival, descreveu que este foi aluno excepcional em Matemtica, premiado pela memria espetacular e pela incrvel capacidade de ler depressa e de memorizar as leituras, inclusive sendo aprovado no Exame da Ordem dos Advogados j no primeiro ano; no entanto, ele viria a fazer pouco uso de seus conhecimentos de Engenharia e Direito, mas os considerava extremamente teis para suas atividades financeiras e de desenvolvimento na Amrica Latina (bid., p. 35). Antes de ingressar nos negcios na Amrica Latina, Percival Farquhar tambm incursionou na poltica. Disputou uma cadeira na Legislatura Estadual em 1889 por um distrito republicano de Manhattan, como democrata, e acabou derrotado, entretanto, venceu as campanhas de 1890 e 1892 e trabalhou na Comisso de Atividades Bancrias e na Comisso de Oramento da Assemblia Legislativa e, no seu mandato final, foi presidente da Comisso de Assuntos Militares (bid., p. 36-37). 32
Nas dcadas de 1870, 1880 e incio de 1890, antes do mergulho nos grandes empreendimentos na Amrica Latina, Percival Farquhar teve slida formao em reas do conhecimento nos ramos industrial e empresarial e, principalmente, uma bagagem de experincias no campo social, cultural, militar,
31 Percival teve uma breve experincia como vice-presidente nas empresas privadas de bondes eltricos (Atlantic Coast Electric Railway de Absury Park e a Staten Island Electric Railway) de George Harvey nos subrbios de Nova York e especulou na Bolsa de Valores, no sendo bem sucedido (GAULD, 2006, p. 38). 32 O bigrafo Gauld faz questo de enfatizar que no perodo antecedente sada de Percival para a Amrica Latina foi constante a sua presena na alta sociedade de Nova York, rodeado de milionrios dos grandes negcios de ferrovia, ao, petrleo, etc. 75 religioso, poltico e econmico. Desde cedo, travou contatos com milionrios empreendedores, polticos influentes e futuros investidores que transformaram a Histria da Amrica Latina e do Brasil. Gauld (2006, p. 36-37) destacou que a primeira parada de Percival foi em Cuba, a regio da Amrica Latina mais prxima do corao industrial da Amrica do Norte. Em 1898, Cuba deixou de ser Colnia espanhola e teve na tutela governamental dos Estados Unidos a tarefa de estruturao da lha destruda pela Guerra Hispano-Americana. 33
Figura n. 13: Percival Farquhar
Fonte: GAULD, Charles A. Farquhar, o Itimo tit: um empreendedor americano na Amrica Latina. Trad. de Eliana Nogueira do Vale. So Paulo: Cultura, 2006. p. 2.
Assim, Havana foi o destino de Percival onde: Os Estados Unidos, em repentino surto imperialista, acabavam de arrancar da Espanha suas ltimas possesses coloniais vestgios de um imprio estabelecido [nos dois hemisfrios] entre palmeiras e pinheirais no qual, desde as conquistas de Cortez e Pizarro at os triunfos de Bolvar e San Martn, o sol nunca se punha (GAULD, 2006, p. 44).
Em Cuba, Percival e associados formaram a Cuban Electric Company que foi registrada em 20 de dezembro de 1898, com capital de 1 milho de dlares em aes sem lastro. A Cuban Electric Company foi comprada pela Havana Electric e Farquhar tornou-se o seu diretor. Ainda em Havana, o referido empresrio assumiu
33 Percival desembarcou em Cuba no ano de 1898, interessado na modernizao das decrpitas linhas de bonde de Havana aps a chegada da paz cidade, que exalava sujeira e misria (GAULD, 2006, p. 44). 76 a concesso e as linhas da Ferro Carril Urbano, elas valiam 1 milho de dlares. No entanto, o grande desafio de Farquhar foi a construo da Cuba Railroad, ligando Santa Clara a Santiago (GAULD, 2006, p. 50-52). Cabe referir agora que a construo de ferrovias na Amrica Latina subdesenvolvida era o ponto de partida para a possibilidade de outros grandes projetos como a extrao comercial da madeira e a prpria colonizao 34 . Na condio de grande articulador nos meios econmicos entre os freqentadores de Wall Street, os planos para a construo da ferrovia que teria metade da extenso de Cuba levaram Farquhar a procurar William Van Horne 35 . Em abril de 1900, foi registrada a Cuba Company, tendo Van Horne como Presidente e Farquhar, seu Assistente. Em uma semana foram vendidos os 160 lotes de aes avidamente abocanhadas por 20 pessoas (bid., p. 63). Figura n. 14: Ao da Brazil Railway Company
Fonte: Museu Histrico e Antropolgico da Regio do Contestado
34 Gauld destacou que, no incio do sculo XX, Farquhar havia observado que Cuba e Brasil recebiam da Europa latina um nmero de imigrantes solteiros e cheios de energia que seria suficiente para clarear a populao e fortalecer a economia desses pases caracteristicamente mestios. (GAULD, 2006, p. 75) 35 William Van Horne (1843-1915) foi o poderoso scio de Farquhar. Pioneiro nos transportes ferrovirios, aquele sugeriu que as ferrovias fossem usadas de modo a integrar a comunicao e o transporte, ao instalar os servios telegrficos para operarem juntamente com os servios ferrovirios. Alm de se destacar na sua construo, tambm foi Presidente da Canadian Pacific Railway. 77 Van Horne, com larga experincia na Canadian Pacific, demonstrou diplomacia, ao orientar e acompanhar Farquhar no desenvolvimento dos trabalhos de construo de moradias, dos levantamentos de terras e das demarcaes: Astutos, Van Horne e Farquhar adotaram a prtica, rara entre empresrios americanos na Amrica Latina naquele tempo, de primeiro fazer reverncias. E fazer isso com freqncia. Valeu a pena. Ambos evitaram decididamente os modos e mtodos rudes que predominavam entre os desbravadores e construtores de estradas de ferro americanos (GAULD, 2006, p. 67).
O constante acompanhamento da construo da ferrovia tambm resultou em uma compra, por parte dos empreiteiros ferrovirios, de nove plantaes de cana-de-acar na rota de sua ferrovia, ao norte de Santiago. Para garantir transporte para a ferrovia, construram dois engenhos (bid., p. 50). Em dezembro de 1902, foi inaugurada a ferrovia, cuja viagem inaugural contou com a presena de Farquhar e de Van Horne. Juntos, ainda, construram serrarias no Leste de Cuba, planejaram hotis em vrias cidades e conexes com navios a vapor entre seu debilitado porto de Antilha e Nova York (...). Das experincias desta parceria, Farquhar imitou em grande escala os procedimentos da Van Horne no Brasil, at em pequenos detalhes, como a contratao de um funcionrio da imigrao da Canadian Pacific para acomodar os camponeses europeus nas terras da Brazil Railway (bid., p. 77-78). Aps a experincia em Cuba, no final do ano de 1903, Farquhar estava na Guatemala, onde pretendia obter do Presidente Estrada Cabrera um contrato para finalizar a ligao ferroviria h muito interrompida e deteriorada entre Puerto Barrios, na costa caribenha, e a Cidade da Guatemala, bem como conseguir terras para plantar banana nas baixadas que, embora frteis, eram pntanos sem uso (bid., 2006, p. 89). Na Guatemala, o principal scio e parceiro de Farquhar foi Minor C. Keith 36 , casado com uma filha do Presidente da Costa Rica, dono de grandes concesses de terra com plantaes de banana. Criador da United Fruit, Keith atuava nos ramos de maior investimento por parte de americanos na Amrica Central, a saber, as ferrovias e o cultivo de caf e de banana.
36 Minor C. Keith foi Presidente da Cuban Central Railway (GAULD, 2006, p. 54-83). 78 Tendo como scios Van Horne e Minor C. Keith, Farquhar tinha como desafio a ligao ferroviria entre El Rancho e a Cidade da Guatemala. O Governo da Guatemala j havia construdo parte desta ligao, porm esta j estava deteriorada pelo tempo e deveria ser reformada e concluda nos seus 96 Km restantes. Aps difceis negociaes com o Presidente Estrada Cabrera, em 12 de janeiro de 1904, foi assinado o contrato e a concesso generosa que Farquhar recebeu: O empreendimento recebeu iseno de tarifas, impostos e tambm de interferncia governamental em sua administrao. De olho no comrcio interocenico antes do trmino do Canal do Panam feito por Theodore Roosevelt, Farquhar obteve favores tarifrios especiais, alm de locais valiosos, na capital e em Puerto Barrios, onde instalar os terminais. Na cidade litornea, a ferrovia tinha garantidos mais de 3 quilmetros de frente para o porto. O direito de preferncia permanente para construir linhas secundrias e uma rea de 64 quilmetros eram, na verdade, uma franquia exclusiva [...] (GAULD, 2006, p. 92).
Em 08 de junho de 1904, Keith e Van Horne registraram em Nova Jersey a Guatemala Railway, que construiria a ferrovia com recursos obtidos no Deutsche Bank de Berlim. Com a superviso direta de Farquhar e a presena de experientes engenheiros, tcnicos e trabalhadores americanos, a recuperao e a construo da ferrovia na Guatemala foi concluda rapidamente. Farquhar organizou armazns para vender comida e roupa aos trabalhadores a preo de custo, algo nunca visto na Guatemala. A construo agradou tanto o Presidente Estrada Cabrera que, em contrapartida, assinou um contrato generoso em que a Guatemala Railway Company recebeu trinta quarteires em Puerto Barrios, direito de passagem com 30,5 metros de largura e concesso exclusiva por 99 anos (...). Os barcos de banana poderiam ser carregados dia e noite. Era permitido trazer imigrantes (bid., p. 100). A concluso da linha entre El Rancho e a Cidade da Guatemala garantiu o sucesso da United Fruit em seus 20 mil hectares de bananais prximo a Puerto Barrios. A Guatemala Railway Company, por sua vez, tambm assegurou o transporte necessrio para a sua linha. Farquhar no chegou a trazer imigrantes nem mesmo continuou com a bananicultura na Guatemala: prximo desafio, pois, foi o Brasil que, no dizer do Roy Nash, era: imenso, fantstico, verde (...). Florestas onde o silncio sepulcral (...). A marcha contnua de legies de homens contra as 79 foras hostis da natureza. Farquhar carregou de Cuba e da Guatemala as experincias nas negociaes com os governos dos pases de economia primria e sem estrutura mnima, a convivncia com scios poderosos e influentes, o trabalho com engenheiros ferrovirios, tcnicos e operrios ndios e mestios. Tudo isso foi de grande valia no estabelecimento da sua gigante Brazil Railway Company.
2.3 PERCIVAL FARQUHAR EM CAPITAIS BRASILEIRAS
A primeira vez que Farquhar desembarcou no Rio de Janeiro foi no incio de 1905. Foi recebido pelo advogado Alexander Mackenzie 37 ; ao ser introduzido ao crculo das autoridades de interesse das concesses almejadas, teve imediato contato com Lauro Mller 38 , ento Ministro da ndstria, Viao e Obras Pblicas (GAULD, 2006, p. 106-107). No ano anterior, Farquhar havia criado a Rio de Janeiro Light & Power Company em Nova Jersey. O interesse por investimentos no Rio de Janeiro foi despertado pela situao descrita em relatrios de agentes do pai de Percival que indicavam a situao catica da iluminao pblica, as primitivas e deficitrias usinas particulares de telefonia e o sistema de bondes que, do Palcio do Catete, rumo aos bairros das praias, a trao era feita por mulas adornadas com sininhos (bid., p. 105). O idealizador dos grandes investidores para os negcios de eletricidade, de telefone, de gs e de bondes na, ento capital brasileira, foi Percival Farquhar que buscou auxlio em Frank Pearson 39 , que possua o seu crculo de investidores, de banqueiros, de financiadores; ainda, Alexander Mackenzie comprou o controle da
37 Alexander Mackenzie, advogado e empreendedor canadense que se estabeleceu no Rio de Janeiro, atuou em So Paulo na Tramway e na Light & Power Company. Foi scio de Frank Stark Pearson e Farquhar (GAULD, 2006, p. 107). 38 Lauro Severiano Muller (1863-1926), poltico catarinense, nomeado governador provisrio do Estado de Santa Catarina por Deodoro da Fonseca. Mais tarde foi Presidente de Santa Catarina, Deputado Federal, Senador, Ministro da ndstria, Viao e Obras Pblicas durante a presidncia de Rodrigues Alves (1902-1906) e Ministro das Relaes Exteriores de 1912 at 1917. 39 Frank Stark Pearson (1861-1915), engenheiro da Metropolitan Street Railway Company (o metr de Nova York), atuou na instalao de usina termoeltrica, de trilhos e cabos da Havana Electric Railway e na explorao de servios pblicos na Espanha, Mxico e Brasil. Admirador e scio de Farquhar em gigantescas operaes no Brasil e nos EUA, juntos, ganharam e perderam milhes de dlares(bid., p. 42-56). 80 linha do Jardim Botnico entre 1905 e 1910 aqui no Brasil. Na Europa, Farquhar preparou o terreno para Pearson comprar a Companhia de Gs. Depois, em Berlim, comprou a linha de bonde de Vila sabel e a decrpita empresa de telefonia do Deutsche Bank a Brasilianische Elektricitts Gesellschaft (GAULD, 2006, p. 108). Cabe ressaltar que os incipientes negcios e investimentos idealizados e realizados no Brasil por Percival Farquhar no ocorreram sem ferrenha oposio. Enfrentaram, deste modo, um grupo rival, liderado por Gaffre e Guinle, 40 que j atuavam no fornecimento de eletricidade para as Docas de Santos e tambm tinham interesse em implantar e fornecer eletricidade no Rio de Janeiro. Tambm a imprensa carioca, o Jornal do Comrcio, publicava artigos custicos contra a Light e, ainda, foi necessrio convencer o Ministro Lauro Mller a autorizar a instalao e o funcionamento da empresa no Pas. A autorizao ocorreu com a assinatura do decreto feito pelo Presidente da Repblica em maio de 1905. Houve, assim, a construo da usina da Lage com a maior casa de fora da Amrica Latina. Decolou-se, desta forma, o uso da energia no Brasil que prosperava com as exportaes de caf e borracha: Cresceu o uso comercial e residencial da eletricidade e do gs de cozinha, uma inovao promovida por Pearson com uma grande variedade de foges a gs americanos. Em 1907, a reorganizada companhia de gs tinha 626 quilmetros de encanamentos, que abasteciam 15 mil pontos de iluminao pblica nas ruas e atendiam a 22.325 consumidores residenciais. Naquele ano, a Light fornecia eletricidade para 422 lmpadas de arco voltaico, 104 ventiladores, 240 motores e 5.600 lmpadas instaladas em estabelecimentos comerciais e alguns cinemas pioneiros (bid., p. 115).
Gauld (bid., p. 112-115) tambm destacou que o sistema de telefonia da capital cresceu e, no incio de 1907, cerca de 2.200 linhas se achavam em funcionamento, sendo atendidas no mais pelos ineficientes senhores e rapazes de 1905, mas sim por moas. Quanto aos bondes, havia os estbulos que abrigavam os cavalos para puxar bondes, prximos do Palcio tamaraty, sede do Ministrio das Relaes Exteriores, ao norte do centro. Eles foram transformados em garagem para vages e prdios de escritrios. Com efeito, o sistema de gerenciamento
40 Cndido Gaffre foi fornecedor de eletricidade para as Docas de Santos e do Rio de Janeiro. Eduardo P. Guinle Jr. foi scio de Cndido nos negcios das Docas de Santos. Ficaram ricos com a implantao do porto de caf em Santos (GAULD, 2006, p. 108-110). 81 americano, a eletricidade, os meios de transporte e as campanhas na rea da sade pblica eram traos fortes dos tempos modernos na capital brasileira. Os promissores investimentos, principalmente em energia eltrica na capital brasileira, atravs da Light, levaram Farquhar a atuar tambm em Salvador, onde organizou a Tramway, Light & Power Company, criada em Portland, Maine, no ano de 1905. Gauld descreveu a Bahia Tramway, Light & Power Company, como uma espcie de subproduto da Light do Rio de Janeiro, lanada em sociedade com Pearson e Mackenzie. Comprou a linha de bondes dos alemes na Cidade Baixa, permutou aes para assumir a Bahia Gs Company de um grupo britnico e, ainda, deteve o controle da Compagnie d'Eclairage de Bahia, que detinha a concesso para iluminar a cidade (GAULD, 2006, p. 125-126). Do mesmo modo que no Rio de Janeiro, os negcios liderados por Farquhar foram alvo de fortes contestaes, novamente contando com opositores como a imprensa, Gaffre e os irmos Guinle que tambm tinham interesses nos mesmos servios pblicos. A situao, inflamada pelas crticas e pela opinio pblica, chegou ao auge em outubro de 1909, quando um cego foi morto por um dos bondes de Farquhar. O episdio resultou em violento protesto: A multido, com certa conivncia da polcia, passou ao ataque, danificando ou destruindo dez vages, quatro trailers, cerca de 800 lmpadas a gs e postes de rua, tubulaes de gs e a usina geradora de fora. Um empregado da companhia foi morto e vrios ficaram feridos (bid., p. 127).
Com a imagem arranhada e sem o apoio das autoridades, restou a Farquhar e a seu grupo vender a empresa ao Municpio de Salvador; deste modo, a venda da Tramway, Light & Power Company ocorreu em 1913. Gauld descreveu que o Governo Municipal (Salvador) no completou o pagamento, o que levou Farquhar a fazer um apelo a diplomatas para que inquirissem as autoridades da Bahia sobre os pagamentos devidos a seus antigos acionistas (bid., p. 129).
82 2.4 PROJETOS NA AMAZNIA
Gaffre e os irmos Guinle fizeram fortuna com o Porto de Santos, por onde o Brasil escoava o caf, o carro-chefe das exportaes brasileiras, e que, durante dcadas, foi a grande alavanca econmica do Pas. No contexto da chegada de Percival Farquhar e de seus investimentos, outro produto deu sinais de promissora atividade econmica exportadora: a borracha, oriunda da hvea, uma rvore que tinha como habitat natural a inexpugnvel e gigante floresta amaznica e fornecia o ltex para os emergentes e encantadores automveis. Fabulosos lucros foram auferidos durante o ciclo da borracha e possibilidades de investimentos em tantos setores produtivos da ento desconhecida Amaznia levaram Farquhar a lanar-se em diversos projetos gigantes e desafiadores. Comeou com a construo do Porto do Par, estratgico para as exportaes e para o desencadeamento de outros grandes investimentos, cuja concesso foi adquirida em abril de 1906. Na qualidade de presidente, registrou a concesso da Port of Par em 7 de setembro de 1906, em Portland, Maine, junto com sua holding, a Brazil Railway (GAULD, 2006, p. 132). Sobre isso, o porto do Par foi inaugurado em abril de 1912: O grande e feio porto e o prdio de escritrios da Amazon Navigation, localizado numa importante avenida que nascia no bairro porturio e penetrava na cidade, ainda estavam sendo construdos pela sua empresa Par Construction Company (bid., p. 154).
83 Figura n. 15: Ao do Porto do Par assinada por Percival Farquhar
Fonte: GAULD, Charles A. Farquhar, o Itimo tit: um empreendedor americano na Amrica Latina. Trad. Eliana Nogueira do Vale. So Paulo: Cultura, 2006. p. 1.
importante observar que a fonte dos financiamentos dos projetos de Farquhar eram os bancos europeus que financiavam os investimentos mediante a garantia de pagamentos de juros sobre o capital emprestado pelos governos onde eram feitos aqueles. Por um lado, Farquhar levantava somas astronmicas em bancos de Paris, Bruxelas e Londres e estreitava relaes com banqueiros famosos, principalmente entre os anos de 1907 e 1912. Por outro lado, Farquhar conseguia concesses para os seus projetos de ferrovias e de portos com o intuito do progresso e do desenvolvimento para o governo dos pases onde investia. A respeito disso, no Par, recebeu: Cerca de 800 hectares de terra a leste de Belm, num lugar chamado Val de Ces, e mais 160 hectares de frente para o mar, em Miramar, para instalao de duas docas secas flutuantes construdas na Holanda, com capacidade para 1.800 toneladas cada uma; um estaleiro, uma fundio, oficinas e instalaes para estocagem de petrleo e carvo (GAULD, 2006, p. 137). 84
Planos ambiciosos de Farquhar estenderam os investimentos que, depois do Porto do Par, partiu para as terras, para os negcios com gado, para a colonizao, para a agricultura e para a borracha: A expectativa era de que cada elo da cadeia gerasse lucro, independentemente dos outros, mas todos mantendo relao (bid., p. 143). Um dos grandes investimentos passava pela Amazon Development Company e a Amazon Land Colonization Company, que obteve do governo do Par a concesso de uma rea de 60.000 km 2 ao norte do esturio do Amazonas rea que, mais tarde, tornou-se o territrio do Amap em 1943 e, pela Constituio de 1988, transformou-se em Estado do Amap, com a capital Macap. Em Belm, criou a Companhia de Navegao do Amazonas, que comprou a linha britnica Amazon River Steam Navegation Company; desta forma, monopolizou os transportes fluviais, imprescindveis para recolher o ltex, para distribuir gneros alimentcios e para movimentar trabalhadores que passaram, a partir de 1911, a contar com 12 navios de 1.000 toneladas cada: Farquhar encomendou tambm 14 barcas de 40 a 160 toneladas, com ps traseiras, pedindo profundidades de apenas meio metro a 1 metro para navegar (bid., p. 144). Todo o esforo para a aquisio de barcas e de navios para a duplicao da tonelagem e para as melhorias fluviais obteve como resultado a fila de embarcaes ociosas quando falhou o nervo central da circulao econmica da Amaznia, isto , o ltex das centenrias seringueiras. Assim, a Amazon Navigation Company foi desapropriada pelo Governo brasileiro em abril de 1940. Os barcos fluviais de Farquhar foram teis durante a Segunda Guerra Mundial em programas de emergncia no carregamento de borracha no apoio brasileiro aos americanos. A desapropriao, pois, foi seguida da criao da SNAPP (Servios de Navegao da Amaznia e Administrao do Porto do Par). A idia da cadeia lucrativa no contava com a drstica queda dos preos do ltex provocada pela entrada no mercado mundial das plantaes dos britnicos na sia, sendo uma das causas dos fracassos seguidos dos projetos de Farquhar. A devoluo das terras ao Estado do Par, em 1913, suplantou de vez os planos de 85 plantar seringueiras, de criar gado, de explorar madeira e de promover a colonizao no Norte do Pas.
2.5 A BRAZIL RAILWAY COMPANY E O PROGRAMA FARQUHAR
Considero Farquhar um tipo clssico de construtor de imprios, afirmou Monteiro Lobato na dcada de 1940, referindo-se aos investimentos e tessitura dos empreendimentos relacionados entre si e de difcil entendimento do raciocnio e das aes do mega empreendedor americano. Percorrer todo o emaranhado caminho do seu gil pensamento e conhecer os investimentos no Brasil tarefa para dcadas de estudo, percorrendo arquivos em diversas partes do planeta, principalmente em Londres, Nova orque e Paris, onde constituiu escritrios. A inteno aqui apenas citar o conjunto da obra at encontrarmos o campo de extrao das araucrias da Regio do Contestado e o conflito desencadeado no mesmo contexto. Uma breve descrio dos empreendimentos ter como principal fonte os documentos constantes do Resumo do Programa Percival Farquhar, do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro no ano de 1942. 41
A Brazil Railway Company foi constituda no ano de 1906 para gerir e para administrar um sistema de estradas de ferro na Repblica do Brasil, juntamente com uma poro de outros negcios subsidirios, que muito contribuem para o geral desenvolvimento da empresa. Esta descrio da Brazil Railway Company, realizada ainda na primeira dcada do sculo XX por Reginald Lloyd, j indicava as propores do imprio que comeava a ser construdo e, ao sugerir uma poro de outros negcios subsidirios, ainda no conclua sobre a totalidade desta poro de negcios que ocorreram; contudo, o referido autor deixou claro que o objetivo da Companhia e o trabalho que ela vem executando talvez no tenham, ainda, sido inteiramente compreendidos, prevalecendo a idia de que no se trata apenas de uma companhia tomadora de aes, formada para adquiri-las de um nmero de
41 Arquivo Nacional - Documento 4 - (Resumo do Programa Percival Farquhar, ao organizar a Brazil Railway Company feito e oferecido por Charles A. Gauld em 1942). Descrio das empresas que faziam parte da Brazil Railway Company como subsidirias. Componentes do grupo da BRC ou do tambm denominado Sindicato Farquhar. Arquivos consultados e copiados em janeiro de 1998. 86 negcios, mais ou menos independentes, e que confia seu xito ao lucro que lhe advenha de tais aes (LLOYD, 1913, p. 228). Farquhar foi o principal articulador da Brazil Railway Company. Atravs do Programa Farquhar, possvel reconhecer a confiana no xito ao lucro e as propores do imprio que rapidamente se erigiu. Faziam parte do grupo de Farquhar simples investidores europeus, banqueiros e um grupo de gigantes emprendedores ligados aos desafiadores e aos pioneiros caminhos ferrovirios mundiais. Percival Farquhar, como Presidente da Brazil Railway Company, convidou os seguintes diretores: William Van Horne, ento Presidente da Canadian Pacific Railway Company, uma estrada de ferro de 10.000 milhas, bem sucedida na tentativa de povoar e de desenvolver uma vasta regio de grande fertilidade e distante da costa do Atlntico, entre os Grandes Lagos e as Montanhas Rochosas. Este ltimo tambm era Presidente da Cuba Railway Company (construda em sociedade com Percival Farquhar, destacada anteriormente). Outro colaborador de Farquhar era Minor C. Keith, Vice-Presidente e organizador da United Fruit Company, empresa que possua extensa plantao de banana na Costa Rica, Guatemala, Panam e Colmbia, com 1.200 km de estradas de ferro, possua portos prprios e 120 vapores para os transportes de frutas a Nova Orleans e Nova York. Este ltimo era tambm Presidente da Guatemala Railway Company, cuja construo fora levada a cabo juntamente com Van Horne e Farquhar. Ainda, F.S. Pearson, Vice-Presidente da Rio de Janeiro Tramway, Light & Power Company, empresa em cuja organizao esteve associado a Percival Farquhar. Anteriormente a esse empreendimento, Pearson, Hanson Brothers, de Montreal e Percival Farquhar haviam adquirido as empresas de transportes com trao animal da cidade de Havana, cujas linhas foram eletrificadas, convertendo-se ento na Havana Electric Railway Company (Programa Farquhar ao organizar a Brazil Railway Company). A Brazil Railway Company adquiriu linhas ferrovirias, principalmente no Sul do Brasil e, como no era uma simples tomadora de aes, administrava e tinha control sobre os negcios que formavam o seu sistema. Sobre o campo de atuao da Brazil Railway Company, descreveu Lloyd que o Brasil, como muitas pessoas ainda estavam convencidas, no era apenas uma zona dos trpicos caracterizada como uma estufa de febre amarela. Existem no Brasil, territrios com vrias vezes o 87 tamanho da Frana e que nunca se ouviu falar em febre amarela.(...) Clima temperado, vastas zonas cobertas de densos pinheirais (...), extensas plancies.... O referido autor conclui: O programa geral da Companhia visa ao rpido desenvolvimento de uma regio extraordinariamente frtil e salubre, por muito tempo abandonada. Do progresso material dessa regio, do aumento de sua produo e riqueza, depende o xito da estrada de ferro que, baixando as tarifas, introduzindo imigrantes, estabelecendo colnias, criando novas indstrias e melhorando as comodidades de viagem - identificando-se, de fato, inteiramente, com os objetivos do pas - espera obter adequada retribuio ao seu capital. A Companhia tem largos planos a realizar (LLOYD, 1913, p. 228). Os largos planos da Companhia descritos por Lloyd ficaram explcitos na seqncia, pelos gigantescas subsidirias instaladas pela Brazil Railway Company. A descrio de uma regio extraordinariamente frtil e salubre e os planos de ocupao e de colonizao encontram-se ao longo do trajeto da ferrovia So Paulo- Rio Grande que cortou verticalmente a Regio do Contestado entre os Estados do Paran e Santa Catarina. A descrio de regio abandonada apresenta discordncias quando observada do ponto de vista dos antigos moradores da Regio do Contestado 42 e isso ser objeto de descrio dos prximos captulos. Antes, far-se- uma breve descrio do complexo emaranhado de subsidirias componentes da Brazil Railway Company.
2.5.1 Brazil Land, Cattle and Packing Company
Embora a atividade mais intensa fosse a construo de ferrovias, outros investimentos visavam a fomentar o desenvolvimento das reas abandonadas e a gerar os lucros esperados; deste modo, tinham papis importantes as subsidirias nesse contexto. A Brazil Land, Cattle and Packing Company foi criada por intermdio dos banqueiros Speyer & Company, de Londres, que emitiram debntures conversveis em aes ordinrias. Com o produto dessa emisso, recebido pela Brazil Land, Cattle and Packing Company, em troca de debntures de sua emisso, foram adquiridos 2.800.000 hectares de pastagens situadas em Arapu e Vacaria
42 nteressante estudo sobre as terras pblicas e particulares da Regio do Contestado foi feito por Rosngela Cavallazzi da Silva em sua dissertao de Mestrado, submetida Universidade Federal de Santa Catarina: Terras pblicas e particulares o impacto do capital estrangeiro sobre a institucionalizao da propriedade privada. 88 (Estado de Mato Grosso), na bacia do Rio Paran em Descalvados (Paraguai), as terras da fazenda Paracatu (Minas Gerais) e, ainda, construdo o Packing House 43
em Osasco, nas proximidades de So Paulo (Documentos do P. F 44 . Empresas Subsidirias). Para comandar a Brazil Land, Cattle and Packing Company, foi contratado o experiente Murdo Mackenzie, ento Presidente da Cattle Breeders Association, dos Estados Unidos, e tambm gerente da Matador Cattle Company, no Estado do Texas, empresa que desempenhou o papel de transformar os rebanhos nativos daquela regio de gado magro com longos cornos, em grandes rebanhos de Durahams e Herefords, com duas ou trs vezes mais de peso til por cabea. No Brasil, auxiliado pelo especialista em mestiagem e refinamento de gado nativo, Sr. Burr, Murdo Mackenzie tratou de importar matrizes para o melhoramento gentico (P. F. Empresas Subsidirias, p. 14). Murdo Mackenzie escreveu uma carta, contando a experincia da importao das matrizes e o ceticismo que pairava entre os compatriotas e at entre brasileiros de que o gado nativo no se prestava indstria da carne congelada para a exportao, de forma a justificar o estabelecimento de Packing Houses no Brasil. Duvidavam, pois, de que as pastagens nativas do Brasil se prestassem produo de carne exportvel. Escreveu Mackenzie: Sou um entusiasta da pecuria brasileira pela introduo do sangue Hereford nos rebanhos nativos. Quando assumi a gerncia da Brazil Land, Cattle & Packing Company, em 1912 a minha primeira providncia foi a importao de mais de 900 cabeas de gado Hereford e Shorthorn. Quando os invernistas do pas souberam dessa importao, riram-se da idia e afirmaram que eu no conseguiria trazer viva para o Brasil, nem metade dessa quantidade e, ainda que o conseguisse, outra metade morreria, atacada pelo carrapato pelas febres e pelas condies climticas. (...) Foi um sucesso a importao desse gado, apesar de ser a primeira; mais tarde foi ele remetido do Paran para as nossas invernadas de Arapu e Capo Bonito, no Estado de Mato Grosso. (...) Os bezerros, filhos de vacas zebu e touros Hereford so lindos: tm em geral a cara branca, a cor e a conformao do pai. So vivos e ousados e, no meu entender, vieram provar as possibilidades da pecuria do Brasil (NASH, 1926).
Murdo Mackenzie, juntamente com Burr, alm da orientao na mestiagem e no refinamento do gado nativo, fizeram experincias com as gramneas nativas jaragu e gordura, verificando-se o seu valor nutritivo e a sua superioridade sobre
43 Packing House: matadouro, frigorfico. 44 P. F. (Programa Farquhar). 89 os campos nativos, prestando-se ambas, tanto para criao como para engorda. nstalaram-se banheiras para dar combate aos carrapatos e aos bernes, providncias que se tornaram indispensveis na melhoria dos rebanhos (P. F. Empresas Subsidirias, p. 15). A exemplo do que aconteceu no Texas e na Argentina, o melhoramento gentico do gado, das pastagens e de outros procedimentos possibilitaram a instalao de grandes companhias frigorficas tambm no Brasil. Os criadores e os engordadores de So Paulo, Sul de Mato Grosso e Paran foram notificados de que a companhia pagaria maior preo por quilo pelo gado de maior peso, o que somente se poderia obter com o melhoramento dos rebanhos existentes. A Brazil Land, Cattle and Packing Company, associada em partes iguais a Sulzberger Sons & Company, (Packing Houses estabelecidos em Chicago e Nova orque), construiu um moderno Packing House em Osasco, nas proximidades da cidade de So Paulo, destinado a suprir o consumo interno e a exportao de carne congelada (loc. cit.). A construo do Frigorfico de Osasco foi levada a bom termo at o final por Mr. Patton, experimentado especialista das Packing Houses da Sulzsberger Sons & Company, de Chicago. Patton permaneceu no Brasil at entregar esse frigorfico explorao corrente e plenamente bem sucedida, mais tarde se transformando no Frigorfico Wilson do Brasil (loc. cit.). O frigorfico de Osasco foi construdo nas margens da E.F. Sorocabana, tinha pela frente a faixa de domnio da So Paulo Railway com bitola diferente (de 1m e 60 cm).Tornava-se necessrio que a Sorocabana obtivesse o consentimento dessa estrada para o assentamento de um terceiro trilho na sua linha e a fim de que pudesse circular com os seus carros frigorficos at o Porto de Santos, sem baldeaes - condio essa imperiosa para o transporte de carnes congeladas destinadas exportao (bid., p. 15). Antes do estabelecimento do Frigorfico de Osasco, havia em Chicago a opinio de que o gado brasileiro no se prestava indstria da carne congelada para a exportao, de forma a justificar o estabelecimento de Packing Houses no Brasil e as pastagens nativas do Sul do Brasil no eram boas para a produo de carne exportvel. Depois que o frigorfico de Osasco entrou em funcionamento, a companhia Swift, de Chicago, construiu frigorficos no Estado do Rio Grande do Sul 90 e a companhia Armour, tambm de Chicago, construiu outro em So Paulo (bid., p. 16).
2.5.2 Porto e Barra do Rio Grande do Sul e Porto do Rio de Janeiro
Contando com a experincia da construo do Porto do Par (em andamento), Farquhar aceitou o desafio da execuo das obras destinadas a abrir a Barra e a construir o Porto de Rio Grande. Para a economia do Estado do Rio Grande do Sul e tambm para o Programa Farquhar, era de fundamental importncia o Porto de Rio Grande. As obras do referido Porto estavam sendo projetadas pelo engenheiro Elmer L. Corthell, que j se distinguira, em companhia do engenheiro Ead, nas obras de construo dos Jetties 45 na foz do Rio Mississipi. Aps elaborar um plano e negociar com o Governo brasileiro um contrato para a execuo das obras, Corthell buscou apoio financeiro com Mr. Kobush, Presidente da St. Louis Car Company, de St. Louis, Estados Unidos. Sem o apoio de Kobush, Corthell procurou Farquhar, convidando-o a tomar para si a execuo de seu projeto (P. F. Porto e Barra do Rio Grande do Sul, p. 17). Farquhar obteve do Banque de Paris et dea Pays Bas e da Socit gnrale, de Paris uma emisso de debntures, organizando-se ento a Cie. du Port de Rio Grande do Sul, com o fim de executar as obras do referido Porto, incluindo a construo dos molhes e o canal de acesso para os grandes navios. O contrato para a construo foi negociado com a firma de Londres S. Pearson & Son, com larga experincia em trabalhos desta natureza. Desta maneira, a execuo dos planos era baseada no projeto de Corthell, com dois quebra-mares destinados a concentrar a fora da correnteza dos mares nos limites do canal de acesso Barra, a fim de se manter uma profundidade constante, tal como se procedera nas obras anteriormente executadas por Ead e Corthell, no delta do Rio Mississipi (bid., p. 18). O plano de Corthell previa o estaqueamento na locao dos molhes, suportando a via frrea, ao permitir o assentamento das rochas (pedras) em
45 Jetties: quebra-mars 98 As turmas de engenheiros foram to severamente desfalcadas pela morte dos seus componentes, que os seus sobreviventes regressaram, sem que se conseguisse ultimar o estudo do traado. O desafio da construo da Estrada de Ferro Madeira-Mamor comeou para Farquhar no ano de 1906, quando adquiriu a concesso do engenheiro brasileiro Joaquim Catrambry. Em seguida, Farquhar criou a Madeira-Mamor Railway Company em Portland, Maine, com capital de onze milhes de dlares, dividindo este valor em aes em partes iguais entre a Brazil Railway Company e a Port of Par (GAULD, loc. cit.). Em conseqncia do que j se passara, anteriormente, da pssima reputao da regio, Percival Farquhar no encontrou facilidade para levantar em Londres o dinheiro necessrio s obras de construo. A emisso de 2.000.000 libras da Madeira - Mamor Railway Company, com a garantia da Brazil Railway Company, ficou a cargo do Bank of Scotland, depois de underwritten (garantida) por clientes de Kitcat & Aitken, corretores. O Scotland Bank adiantou imediatamente a soma de 200.000 libras para o incio da construo, sem esperar pela emisso e o underwritten das debntures (P. F. Madeira-Mamor Railway Company, p.25-27). Os passos iniciais se deram com a construo de Porto Velho, cidade- empresa americana, que nasceu para ser o local do comando e da articulao da desafiadora construo. Semelhante construo de Trs Barras, em Santa Catarina, para possibilitar a gigante madeireira do Sul, em Porto Velho, o american way of life incluiu at a construo de quadra de beisebol, gua encanada, esgoto, fbrica de gelo, tinturaria, energia eltrica e iluminao, uma grande estao Marconi sem fio e uma srie de jornaizinhos semanais publicados pelos 85 americanos que ali residiam (GAULD, 2006, p. 182). No comeo, a madeira serrada e at os dormentes chegavam nos navios. Os trabalhadores, na lista das importaes, alcanaram as mais variadas e eclticas origens, pois de todos os cantos do planeta chegavam milhares de trabalhadores para enfrentar a selva amaznica. 49
49 Entre 1909 a 1912, para manter uma mdia de 2.700 homens trabalhando, eram contratados cerca de 8.500 trabalhadores por ano. Malria e beribri provocavam mortes dirias, mesmo com a construo de um hospital e dos esforos de mdicos contratados para atuarem na preveno e na cura dessas enfermidades. Gauld escreveu que um mdico patrulhava a linha numa ambulncia que fedia a desinfetante e morte (GAULD, 2006, p. 182). 99 Percival Farquhar confiou a construo da Madeira-Mamor a R.H. Jekyll e John Randolph. Eram pessoas altamente recomendveis pelas experincias anteriores na construo da parte tropical e pantanosa da Guatemala Railway Company, onde foram perdidas as vidas de 2.000 operrios na construo dos 100 primeiros quilmetros. Os dois construtores referidos acima tambm haviam trabalhado na construo da diviso central da Cuba Railway (P. F. Madeira- Mamor Railway Company, p. 26). O principal motivo de sucesso nesse empreendimento residiu na possibilidade de um servio sanitrio apto a combater a insalubridade da regio. Essa difcil tarefa foi confiada ao Dr. Carl Lovelace, que organizou e dirigiu todos esses servios e permaneceu no local at a concluso dos trabalhos. Foram construdos grandes hospitais, foi institudo o regime obrigatrio do quinino, a cessao de qualquer atividade depois do crepsculo da tarde, etc. Em contrapartida, na construo do Canal do Panam, levada a bom termo pelo prprio Governo dos Estados Unidos, no houve melhor organizao sanitria (bid., p. 26- 27). Em setembro de 1912, foi inaugurada a Estrada de Ferro Madeira-Mamor. O total de dormentes colocados alcanava 615 mil, a um custo de aproximadamente 33 milhes de dlares e havia 3.600 homens enterrados no inferno verde. Da mesma forma que na construo do Porto do Par, a idia da cadeia lucrativa aparece quando, atravs da Estrada de Ferro Madeira-Mamor, Farquhar criou vrias subsidirias: a Guapor Rubber Company foi aberta em 1911, no Maine, para operar no Norte do Mato Grosso; a Madeira-Mamor Trading Company, no Norte da Bolvia e uma Companhia que administrava a fbrica de gelo, a tinturaria e a rede de transportes fluviais. O rompimento da cadeia lucrativa ocorreu antes de estar completa e vrios projetos no saram do papel. Alguns iam alm da Amaznia brasileira e alcanavam a zona petrolfera boliviana. dntico ao eplogo no episdio da construo do Porto do Par, a queda do preo da borracha nocauteou os investimentos de Farquhar. A notvel ferrovia que levava do nada para lugar nenhum estava fadada a ser engolida pela selva. As empresas de Farquhar entraram em recuperao judicial em 1914. Depois de administrada por ingleses at 1931, a emblemtica Ferrovia construda por Farquhar foi nacionalizada e teve o mesmo destino das ferrovias brasileiras de bitolas diferentes, cuja existncia, para 100 um grande nmero de brasileiros, s foi possvel aps um seriado televisionado que contava a histria da Estrada de Ferro Madeira-Mamor chamado Mad Maria (GAULD, 2006, p. 175-201).
2.5.6 Ferrovias no Sudeste
A malha ferroviria da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro e da Sorocabana Railway Company somavam milhares de quilmetros de trilhos na promissora zona cafeeira; alm disso, elas haviam sido construdas guisa dos bons resultados da atividade econmica mais importante das ltimas dcadas do mprio e do perodo da Repblica Velha. Assim, a administrao da Companhia Paulista e da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro era exclusivamente conduzida por brasileiros e ambas demonstravam boas rendas antes da Primeira Guerra Mundial. Alm de situar o caf como principal produto de exportao do Brasil, So Paulo era o Estado que respondia pela maior fatia econmica e constitua-se no centro do desenvolvimento do sistema de trfego para o desenvolvimento e para a interligao ao interland brasileiro, capaz de integrar as demais regies rumo ao Sul, at o Uruguai, ao Mato Grosso at Bolvia e a seus campos petrolferos; havia, tambm, ligaes com o frigorfico de Osasco e, acima de tudo, com os portos brasileiros. No se precisa referir que as ferrovias paulistas, em localizao estratgica, eram de fundamental importncia aos objetivos do Programa Farquhar. A Brazil Railway Company obteve os controles das aes da Companhia Paulista e da Mogiana, por meio de uma emisso levada a cabo pelo Banque de Paris et des Pays Bas e a Socit Gnrale, de Paris, de 86.500.000 francos, ouro em debntures garantidas pelas aes das duas empresas. Esta operao da compra do controle referido foi concluda por Frank G. Egan, ento superintendente da Brazil Railway Company em So Paulo. Foi ultimada a operao com o concurso do Banco Francs-taliano para a Amrica do Sul, e de inteiro acordo e em harmonia com os hbeis administradores das duas companhias, responsveis pelo sucesso de ambas, e que continuaram a exercer as mesmas funes em que se achavam (P. F. Companhia Paulista de Estradas de Ferro/ Companhia Mogiana, p. 20). 101 A Brazil Railway Company props ao Estado de So Paulo o arrendamento da Sorocabana por 60 anos. A esse mesmo tempo, a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil e a So Paulo Railway Company haviam formulado idnticas propostas ao Governo do Estado, parecendo, todavia, que este ltimo preferia a proposta da Brazil Railway Company, tendo em considerao o seu programa de desenvolvimento (P. F. Companhia de Estradas de Ferro Sorocabana, p. 04). A esse mesmo tempo, estava em curso a primeira valorizao do caf, empreendimento levado a cabo pelo Governo de So Paulo. Entretanto, ocorre o pnico financeiro mundial, no decurso da primavera de 1907, e todos os bancos dos Estados Unidos cerraram as suas portas. O Estado de So Paulo possua ento grandes estoques de caf armazenado nos portos do Havre e Hamburgo, empenhados como garantia das quantias levantadas e aplicadas valorizao. Como conseqncia, os preos do caf baixaram vertiginosamente. Os banqueiros que haviam feito emprstimos sobre os cafs armazenados naqueles portos pediam a remessa de margens suplementares, a fim de poderem enfrentar as baixas sucessivas registradas das Bolsas de Havre e Hamburgo. Na falta da remessa desses recursos, declaravam os banqueiros que se viram forados a recorrer venda dos cafs, porm um tal procedimento agravaria o pnico e precipitaria a queda vertical dos preos em todos os mercados do caf (bid., p. 05). Percival Farquhar, sabedor do que se passava, telegrafou de Londres para Alexander Mackenzie, que estava no Rio de Janeiro, pedindo-lhe que informasse imediatamente de que maneira estava sendo o assunto encarado pelo Governo de So Paulo. Alexander Mackenzie telegrafou de So Paulo no dia seguinte, informando que, diante da proposta formulada por Percival Farquhar, o Governo tinha declarado ao Superintendente da So Paulo- Railway Company, a disposio de aceitar o arrendamento da Sorocabana, contanto que a So Paulo Railway Company pudesse emprestar imediatamente ao Estado de So Paulo uma quantia de dinheiro para custear o caf depositado nos armazns do Havre e de Hamburgo, evitando-se assim a sua venda precipitada (loc. cit.). A So Paulo Railway Company possua naquela poca reservas em dinheiro superiores quantia solicitada; ainda, o referido Superintendente havia embarcado no dia anterior em Santos para nglaterra , a fim de realizar a operao . Ao mesmo tempo, Alexander Mackenzie manifestou a sua opinio de que, caso pudesse 102 Percival Farquhar fornecer 2.000.000 de libras, antes da chegada Europa do Superintendente da So Paulo Railway Company, e ante a premncia e a ameaa de se lanar no mercado - a qualquer momento, os seus imensos stocks de caf acumulados -, o Estado aceitaria imediatamente o emprstimo, subordinando a sua aceitao ao arrendamento da Estrada de Ferro Sorocabana, nas condies anteriormente discutidas (bid., p. 06). Percival Farquhar entendeu-se logo a seguir com J. Henry Schroeder & Company de Londres, em considerao s ligaes dessa firma com o Brasil, tendo ouvido em resposta que o crdito do Estado de So Paulo era suficiente para amparar o emprstimo de 2.000.000 de libras, que o valor potencial da Sorocabana era suficientemente conhecido, mas que o pnico ento reinante tornava impraticvel o oferecimento de qualquer emisso ao pblico de Londres. No obstante, propuseram a formao de um sindicato para o fornecimento daquele valor, destinados compra de aes da Sorocabana Railway Company, esta ltima em organizao, retendo em seu poder os 2.000.000 de libras de debntures a serem emitidos pelo Estado de So Paulo, ficando ento reservada uma comisso de 150.000 de libras para Percival Farquhar, ao que este declarou no lhe interessar a operao sob esse aspecto. O seu objetivo nico era, pois, a incluso da Sorocabana na rede da Brazil Railway Company e no o benefcio de uma comisso (loc. cit.). Percival Farquhar partiu na mesma noite para Paris, onde, juntamente com Hector Legru, apresentou a situao Socit Gnrale, ao Banco de Paris et des Pays Bas, e firma Spitner & Cie. , entidades com as quais j mantinha relaes. A Socit Gnrale, que h anos j se encarregava das emisses das debntures de So Paulo-Rio Grande, sob o regime da garantia de juros por quilmetro j aludida, acolheu com simpatia a idia de fortalecer a Brazil Railway Company, j ento de posse da referida Estrada de Ferro, porm declarou no poder lanar os 2.000.000 de libras de debntures do Estado de So Paulo, se no lhe fosse assegurada a cte officelle na Bolsa de Paris, medida essa que dependia do consentimento do governo francs (bid., p. 07). Esse consentimento, no entanto, foi negado por Caillaux, ento Ministro das Finanas, sob a alegao da imoralidade da valorizao do caf, opinio essa geralmente desposada nos principais centros financeiros do mundo. Percival 103 Farquhar sugeriu que, como o objetivo real da operao por parte da Brazil Railway company consistia em obter o arrendamento da Sorocabana, poder-se-ia, com essa finalidade, promover a emisso da quantia em questo por parte da Sorocabana Railway Company, em formao, retendo essa ltima companhia em seu poder as debntures a serem emitidas pelo Estado de So Paulo - este plano foi, pois, adotado. Enquanto se processava a organizao da Sorocabana Railway Company e a ultimao de outros detalhes, Percival Farquhar obteve com os banqueiros franceses j aludidos um adiantamento ao Estado de So Paulo de 200.000 libras; com a Caisse Gnrale des Rapports et des Depts, de Bruxelas, 100.000; com os banqueiros da Brazil Railway Company, em Londres, 200.000, ficando ao mesmo tempo assegurado ao Estado de So Paulo o fornecimento, em breve, dos restantes 1.500.000 libras (loc. cit.). A Brazil Railway Company nomeou o seu representante especial junto ao Conselho de Administrao da Paulista, o engenheiro brasileiro Luiz T. A. Pereira e as trs estradas de ferro, a saber, a Paulista, a Mogiana e a Sorocabana passaram a constituir uma rede ferroviria muito importante; como um prolongamento delas, exercendo a funo de alimentadora, achava-se a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que se estendia do limite extremo da Sorocabana, em Bauru, pelo Sul do Estado de Mato Grosso. De posse do controle das principais fontes de trfego ferrovirio do Estado de So Paulo, e detendo a concesso para construir a linha de Mayrinck at Santos, a posio da Brazil Railway Company assumiu um aspecto de tamanha independncia que se tornou possvel entrar em negociaes com a So Paulo Railway Company e, principalmente, com a Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande (P. F. Companhia Paulista de Estradas de Ferro/ Companhia Mogiana, p. 21).
2.5.7 A Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande
No primeiro captulo, a Ferrovia So Paulo-Rio Grande foi destacada nos seus aspectos histricos relacionados ao trecho construdo entre o Rio guau (Unio da Vitria, Paran) e o Rio Uruguai (Marcelino Ramos, Rio Grande do Sul) e as mudanas ocorridas com a chegada do capital estrangeiro na Regio do 104 Contestado. Agora, sero descritos os aspectos relacionados Ferrovia So Paulo- Rio Grande, como subsidiria e componente da Brazil Railway Company, no conjunto de sua construo como integrante do Programa Farquhar e como estratgica ligao do Brasil Meridional. importante destacar que a Ferrovia So Paulo-Rio Grande fazia parte da gigante Brazil Railway Company e, alm da construo do trecho que cortava verticalmente a Regio do Contestado, inclua uma ligao de Porto Unio, Santa Catarina, nas margens do Rio guau at o Porto de So Francisco, diretamente no Oceano Atlntico; ainda, outra linha que tambm entroncava em Porto Unio e ligaria at Foz do guau, Paran, na fronteira do Brasil com o Paraguai e com a Repblica Argentina. A Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande passou a fazer parte da Brazil Railway company com a aquisio de seus ttulos emitidos em 1906 e adquiridos de Roxo Roiz. 50 A companhia gozava da garantia de juros altos por quilmetro, estando j h esse tempo construda a linha de tarar, na divisa do Estado de So Paulo, passando por Jaguariava, estendendo-se at o Porto da Unio da Vitria, na divisa entre os Estados do Paran e Santa Catarina (P. F. Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande, p. 3). As descries encontradas no Programa Farquhar procuram evidenciar a situao antes e depois do controle da Brazil Railway Company. Quando se refere ao perodo das administraes precedentes, h um esforo em destacar que a ferrovia envolvia excessiva quilometragem, significando esbanjamento de dinheiro pblico: O reconhecimento e os estudos definitivos dessas linhas, praticados pelas administraes anteriores da So Paulo-Rio Grande, procuraram sistematicamente os divisores dos vales, os espiges, acentuando-se os vcios j existentes, isto , desmedida extenso quilomtrica visando garantia de juros, sucessivas rampas e contra-rampas e curvas de raio diminudo, como na linha de tarar ao Porto da Unio da Vitria e nas demais estradas construdas no regime da garantia de juros (P.F. Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande, p. 3-4).
50 Antnio Roxo Roiz foi o engenheiro que adquiriu de Teixeira Soares a Estrada de Ferro So Paulo Rio Grande e depois revendeu para Percival Farquhar. Tendo determinado que a EFSPRG seria a espinha dorsal para qualquer sistema ferrovirio destinado a unificar e desenvolver o Sul do Brasil...Teve de pagar 1 milho de dlares ao investidor por 94% das aes (GAULD, 2006, p. 223-225). 105 Ao evidenciar o perodo que antecedeu aquisio da So Paulo-Rio Grande, os relatos que constam no Programa Farquhar tambm evidenciam as estratgias do Governo do Estado de So Paulo que procurava uma soluo natural ligao da cidade de So Paulo rede do Sul. Alm dos trechos concludos, ainda estavam em execuo uma linha de tapetininga at tarar, que completava a ligao pretendida. Existia tambm um projeto de uma linha da mesma rede que ligaria o Vale do Paranapanema e a parte Sul do Estado do Mato Grosso. Nos planos da Brazil Railway Company, os trechos projetados ou em construo seriam todos concludos. Para atingir os objetivos, Farquhar preocupou- se em reunir os mais experientes engenheiros do ramo ferrovirio. A direo geral dos servios ferrovirios da gigante Brazil Railway Company no Brasil foi confiada a John M. Egan, ex-diretor geral da Gergia Central Railroad Company, dos Estados Unidos. Como chefe da locao e da construo das linhas da So Paulo-Rio Grande, ficou o engenheiro B.H. Bryant, que anteriormente empreendera trabalhos muito difceis na locao e na construo de estradas da rede da Mexico Worthwestern Railroad, no Mxico (P. F. Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande, p. 9). Nas trs linhas em projetos ou em execuo no Sul do Brasil, John Egan e Bryant tiveram como sub-chefe o engenheiro brasileiro Guilherme de Capanema: As instrues seguidas por Bryant foram subordinadas ao estudo de linhas condies tcnicas capazes de suportar o trfego econmico de trens pesados. Bryant ultimou esses estudos, fugindo dos espiges, localizando todo o seu traado nos vales, acompanhando o Rio do Peixe, em busca de Marcelino Ramos, nas barrancas do Rio Uruguai, e seguindo o Rio guau, no trecho entre Unio da Vitria e Porto de So Francisco (bid., p. 9). No Programa Farquhar, ressalta-se que as linhas estudadas e construdas por Bryant e por Guilherme de Capanema elevaram a extenso da rede da So Paulo-Rio Grande a 2.500 km, no sem aumentar o custo das novas construes que, forosamente, foram elevadas ao dobro do produto das debntures emitidas no regime de garantia de juros; contudo, a concluso de que seriam meios de transporte econmico, de aquisies definitivas, e muito teriam a contribuir para o futuro desenvolvimento do Brasil. O resultado que as linhas de Porto Unio a Marcelino Ramos, pelo Vale do Rio do Peixe, e do mesmo ponto ao Porto de So Francisco, pelo Vale do guau, foram construdas em excelentes condies tcnicas. 106 A descrio que consta no Programa Farquhar tambm registra que, aps a queda da Brazil Railway Company, as administradoras subseqentes, dirigidas por franceses, nem sempre seguiram os estudos de Bryant e isso trouxe graves conseqncias. Na travessia da serra, na linha de Unio da Vitria a So Francisco, a administrao dos franceses abandonou os estudos de Bryant, piorando irremediavelmente as condies desse ltimo trecho de linha e que, futuramente, demandaria a construo de uma nova linha. Figura n. 17: Ramal So Francisco
Fonte: D'ALESSO, Vito. CIaro Jansson: o fotgrafo viajante. So Paulo: Dialeto Latin American Documentary, 2003. p. 27.
A foto anterior mostra as obras de construo do ramal que ligou a ferrovia So Paulo-Rio Grande em Porto Unio, Santa Catarina, com o porto na cidade de So Francisco do Sul, Santa Catarina, passando por Trs Barras. Ainda sobre o assunto, Renato Nodari fez um interessante estudo sobre a Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande e sobre as causas e conseqncias de sua construo em territrio catarinense 51 . Com uma pesquisa fundamentada nos aspectos econmicos, o autor analisou o contexto que antecedeu construo e as
51 NODAR, Renato. Estrada de Ferro So PauIo - Rio Grande: causas e conseqncias de sua construo em territrio catarinense 1900-1940. Dissertao de Mestrado. Porto Alegre, UFRGS, 1999. 107 transformaes posteriores. Embora no Programa Farquhar existisse um esforo em demonstrar que a construo dirigida por Bryant era de excelente qualidade tcnica, Nodari frisou que a inteno de baratear os custos prejudicou a qualidade da ferrovia inaugurada em 1910. Como a remunerao de juros estava baseada na extenso quilomtrica dos trilhos, evitava-se fazer gastos com grandes aterros e obras de arte, como tneis e pontes. Nodari exemplificou isso, ao apontar que apenas um tnel foi construdo no territrio catarinense, levantado entre as estaes de Rio das Pedras e Pinheiro Preto e poupou em dois quilmetros o trajeto. O referido autor prossegue em seu raciocnio: Outro artifcio empregado pela companhia era alongar o percurso da estrada, pois assim receberia maior titulao de terras em concesso, uma vez que o clculo era feito com base na extenso da linha. Percorrendo-se a ferrovia, comprovam-se tais observaes. (...) Tambm a pressa em concluir a ligao com os trechos j construdos levou a fazer vrias pontes em madeira, de forma provisria, economizando material mais caro, uma vez que as estruturas metlicas eram feitas com material importado da Gr- Bretranha (NODAR, 1999, p. 90). Com a queda da Brazil Railway Company, a outra linha que partiria do entroncamento em Porto Unio para Foz do guau no saiu do projeto, jamais foi, pois, construda. Na construo das linhas do Rio do Peixe e do Rio guau, Bryant contou tambm com mais dois engenheiros brasileiros na sua execuo: Tebyri e Castro Lopes. Nesta linha, ao longo do Vale do Rio do Peixe, em plena Regio do Contestado, os administradores franceses subseqentes se interessaram pelos trabalhos a seu cargo, por sentirem que estavam executando planos subordinados a condies tcnicas econmicas, e contribuindo eficazmente para o progresso (P. F. Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande, p. 10). Observa-se aqui um grande esforo em demonstrar que, sem exceo alguma, as estradas de ferro ento existentes, antes da administrao da Brazil Railway Company, foram todas projetadas pelos divisores (espigo), fugindo sistematicamente dos vales. Com esse procedimento, tornava-se fcil reduzir enormemente o custo de construo, no entanto as estradas resultantes quase nada valiam como instrumentos de transporte. Exemplifica-se isso com o trecho da Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande entre tarar e Jaguariava. Foram construdos 97 km de linha para ligar duas localidades que distam apenas 45 km entre si: De vrios dos seus pontos mais elevados, podemse ver distintamente 6 linhas de trilhos paralelas, subindo e 108 descendo em fortes rampas e contra-rampas os vales e o dorso das colinas (loc. cit.). Dos trs trajetos da So Paulo-Rio Grande, a parte que foi integralmente concluda pela Brazil Railway Company foi o trecho entre o Rio guau e o Rio Uruguai e que completou a linha de tarar, So Paulo at Santa Maria da Boca do Monte, no Rio Grande do Sul. Neste ltimo trecho, de maior interesse deste estudo, descendo o Vale do Rio do Peixe, as estaes foram distribudas em pequenas distncias entre si, pois os objetivos de colonizar e de explorar a madeira seriam facilitados. Figura n. 18: Mapa, ferrovias e principais cidades
Fonte: DACON, Todd A. MiIIenarian vision, capitaIist reaIity - Brazil's Contestado Rebellion, 1912- 1916. 4. ed., Durham and London: Duke University Press, 2002. p. 47. Na imagem anterior, aparecem as principais cidades prximas ao traado da Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande e o ramal que ligava Porto Unio, Santa Catarina, at So Francisco do Sul, no mesmo Estado, passando por Trs Barras, local do estabelecimento do complexo madeireiro e colonizador de Percival Farquhar. Foi, neste sentido, a primeira ligao ferroviria entre o Sul e o Centro do Pas: teve fundamental importncia na integrao econmica, secularmente ocorrida atravs do tropeirismo e, ainda, carregou em seu bojo os projetos de imigrao, de colonizao e de extrao madeireira do Programa Farquhar nas terras compreendidas entre as duas grandes bacias hidrogrficas do Rio guau (ao norte 109 de Santa Catarina) e do Rio Uruguai (ao Sul de Santa Catarina) em plena Regio do Contestado. Chegava-se o momento, conforme os decretos anteriores anunciaram, da explorao e da colonizao das terras. As madeireiras e as colonizadoras da grande Brazil Railway Company sero destacadas no prximo captulo como agentes das grandes transformaes na Regio do Contestado.
2.6 O INCIO DE DUAS GUERRAS E O FIM DO PROGRAMA FARQUHAR
Dois conflitos marcantes do incio do sculo XX se relacionam diretamente com a expanso do capitalismo mundial e com a atuao da Brazil Railway Company no Brasil. No plano interno, houve a revolta dos sertanejos que viviam na floresta ombrfila mista nas terras cortadas pela ferrovia So Paulo-Rio Grande e reas adjacentes, com o desencadeamento do conflito social denominado Guerra do Contestado (1912 a 1916). No plano externo, a Primeira Guerra Mundial (1914 a 1918), evento que, ao eclodir, fechou as torneiras para os investimentos de poupadores europeus, levando a Brazil Railway Company, em expanso acelerada, falncia e queda do imprio erigido por Farquhar. Desta maneira, a ecloso da Guerra do Contestado ocorreu em um contexto de complexas variantes (MARTNS, 2007, p. 12). De fato, a construo da Ferrovia So Paulo-Rio Grande, o incio da colonizao e da extrao comercial da madeira em larga escala aceleraram as transformaes econmicas na Regio do Contestado. O anncio de um novo monge, de forte ascendncia sobre os sertanejos, a presena poltica de coronis e as disputas pelas terras, a institucionalizao da propriedade privada, a valorizao das terras prximas da recm-construda ferrovia e a velha pendenga das disputas entre Santa Catarina e Paran pelo territrio contestado so situaes marcantes que precisam ser analisadas e entendidas no contexto vivenciado nas duas primeiras dcadas do sculo XX. Uma descrio do suposto monge que liderou durante os primeiros ajuntamentos e o grupo que o acompanhou auxiliam, pois, na compreenso das complexas variantes. Segundo Vinhas de Queiroz, ningum sabia onde nasceu Jos Maria e nem mesmo de onde veio. Parecia ter mais de quarenta anos: 110 Vrios autores referem que pertencera s fileiras do Regimento de Segurana do Paran, onde havia chegado ao posto de cabo, antes de desertar. No entanto, mesmo neste particular, no se pode ter absoluta certeza; pelo menos no consta dos arquivos da milcia estadual que nela tenha figurado em algum momento Miguel Lucena Boaventura, uma vez que este era o verdadeiro nome de batismo de Jos Maria. Parece que foi, isto sim, soldado do Exrcito, e andou alistado num batalho rodovirio, encarregado de construir a estrada Guarapuava-Foz do guau. Da que teria desertado (VNHAS DE QUEROZ, 1966, p. 81).
Nos autos do processo do Combate do rani da Comarca de Palmas 52 , aparece o monge denominado Jos Maria de Castro Agostinho. ndependentemente de quem era e de onde veio, os sertanejos que tinham esperana em relao volta do velho Joo Maria, projetaram naquele o curandeiro capaz de confortar no momento de dificuldades. A fama como curandeiro comeou quando curou a mulher de um fazendeiro em Campos Novos. Segundo Paulo Pinheiro Machado, eram poucos os mdicos no Planalto e a Medicina do incio do sculo XX ainda mantinha antigas prticas invasivas, agressivas e dolorosas, como sangrias e purgas, isolamento de pacientes e cirurgias sem anestesia e pouca assepsia, prticas de baixa ou duvidosa eficcia (MACHADO, 2004, p. 177). Com efeito a prtica do curandeiro, alm de indolor e com carter mgico-religioso, estava acessvel ao sertanejo simples. Naquele momento, pouco importava quem era e de onde veio. Jos Maria se tornou o monge milagreiro capaz de liderar os espoliados sertanejos do Contestado. Depois de Jos Maria ter curado a mulher de um fazendeiro em Campos Novos, que havia sido desenganada pelos mdicos, permaneceu por um tempo na mesma propriedade, fazendo prticas de cura para quem o procurasse. Convidado para a festa do Senhor Bom Jesus em Taquaruu, no Municpio de Curitibanos, compareceu e, a exemplo de grande nmero de participantes da festa, permaneceu em Taquaruu aps o evento; muitos, porm, no tinham mais para onde ir. Cabe observar agora que o nmero crescente de pessoas que procurou o local aumentou a fama e o prestgio do monge Jos Maria. Peixoto assim descreveu Taquaruu:
52 Processo aberto no dia 23 de outubro de 1912 na Comarca de Palmas, certificando o combate entre uma horda de fanticos e um contingente da Corporao do Regimento de Segurana do Paran, relatando as 11 mortes e os feridos da Corporao no Combate do rani. A cpia desse processo foi-nos cedida pelo cartorrio Assis. 111 Aos quadros santos, afluram logo as pobres e as ricas gentes que tinham o mal no corpo. Ao novo acampamento do profeta chegaram supersticiosos de todas as distncias. Pelos quarteires do Contestado, a fama do novo monge ganhou vulto e cedo contava defensores de pistola cinta. Curados ou no, todos que cercavam o novo profeta eram seus adeptos decididos. A disciplina se fez necessria entre os elementos dspares que abarracavam em redutos: o poder espiritual por si s no continha as massas e foram institudos o comando do acampamento, o comando da forma, o comando da reza (PEXOTO, 1916, p. 125).
Jos Fraga Fachel (1995, p. 54-55) acentua outros dados referentes a Jos Maria: Era admirador do mperador Carlos Magno. E costumava ler para os caboclos, que o cercavam, o livro: Histria do mperador Carlos Magno e os doze Pares de Frana. Constituiu uma guarda especial, selecionando 24 caboclos que Jos Maria chamou os Pares de Frana. Segundo Cabral, Jos Maria tambm simpatizava com o regime monrquico, imperando uma certa forma deturpada de saudosismo nas pregaes. O historiador esfora-se em evidenciar que os problemas mais graves tinham outras origens, pois aquelas pessoas que rodeavam o monge, na maioria, haviam sido expulsos das terras, haviam ficado sem domiclio certo, sem fontes de trabalho e de renda, resultado da concesso feita So Paulo-Rio Grande (...) (CABRAL, l960, p. 181). importante referir que o grande nmero de pessoas em torno de Jos Maria e a permanncia em Taquaruu acirraram a disputa poltica entre os coronis da Regio. Sentindo-se prejudicado pelo Coronel Almeida, de Campos Novos, o Coronel Albuquerque, de Curitibanos, telegrafou para o seu compadre e Governador de Santa Catarina, Vidal Ramos, comunicando que os fanticos haviam proclamado a Monarquia nos sertes de Taquaruu. O termo Monarquia alarmava a gerao de militares do recm-passado pesadelo de Canudos, as autoridades e a imprensa. O Presidente da Repblica, Marechal Hermes da Fonseca, foi informado de que no Sul se iniciara uma grave sublevao com o intuito de restaurar a monarquia (Jornal Dirio da Tarde, 25.09.1912). Depressa, seguiu um contingente da polcia militar do Estado do Paran para o local, comandado pelo prprio chefe de polcia. Jos Maria, acompanhado de aproximadamente 40 homens, deslocou-se para o Faxinal dos Fabrcios (rani), ento Municpio de Palmas, no Paran. As autoridades deste Estado, sabendo da chegada do grupo em territrio paranaense, julgou tratar-se de manobras do governador catarinense, a fim de guarnecer o 112 Contestado com tropas federais e garantir assim a execuo da sentena do Supremo Tribunal Federal no caso dos limites; ainda, as notcias agitaram o Pas; no Estado do Paran, os nimos inflamaram-se. Neste sentido, a partida de Jos Maria e de seu grupo para o rani foi assimilada como uma invaso de um bando armado de catarinenses na zona litigiosa, para garantir o direito de Santa Catarina (CABRAL, 1960, p. 183). Houve mobilizao do Regimento de Segurana do Paran que, sob o comando de Joo Gualberto Gomes de S Filho, rumou para Palmas. Depois de conferenciar com o Coronel Domingos Soares e de haver tentativas de impedimento do confronto, na madrugada do dia 22 de outubro de 1912, Joo Gualberto comandou o Regimento que atacou Jos Maria e seu grupo no local denominado Banhado Grande. Vinhas de Queiroz assim relatou: Uns a cavalo, outros a p, eles(sertanejos) evitaram ao mximo o tiroteio e atravessando uma funda canhada onde desapareciam da vista das foras legais, caram de supeto, a garrucha e a faco de pau, sobre os soldados. O auge do combate se produziu em torno da metralhadora engasgada. No meio da luta, Jos Maria caiu prostrado por uma bala .Quando j se dispersava, correndo, a fora do Paran, Joo Gualberto - que no pudera montar porque outro lhe fugira com o cavalo - foi cercado e morto por uma pequena multido de caboclos enfurecidos (VNHAS DE QUEROZ, p. 106- 107).
A mortandade de soldados, de caboclos e dos dois comandantes enlutou o serto e ganhou manchetes nacionais. Por algum tempo, ningum ouviu falar em quadro santo, Monarquia, Pares de Frana, exceto em Ressurreio, pois, no prprio local do combate, comeou a cristalizar-se a idia da volta de Jos Maria com o seu exrcito encantado de So Sebastio. De Banhado Grande, os sertanejos carregaram o desgosto pela morte do lder e as armas abandonadas pelos soldados. 53 Eram errantes do novo sculo, como bem os definiu o socilogo Duglas Teixeira Monteiro, gente que andava sem destino e que alimentava a crena na Ressurreio de Jos Maria. Um ano aps a Tragdia do rani, os sertanejos juntaram-se novamente: era o reencantamento do mundo (MONTERO, 1970).
53 Setembrino de Carvalho em seu relatrio descreve que foram abandonadas pelos soldados no rani quarenta carabinas, trs mil cartuchos, a metralhadora e quatro fitas carregadas com duzentos e cinqenta tiros. (SETEMBRNO DE CARVALHO. Fernando. Relatrio apresentado ao General de Diviso Jos Caetano de Faria, Ministro da Guerra - 1915. Rio de Janeiro: mprensa Militar, 1916. p. 3). 113 A Historiografia destacou a liderana de Jos Maria como fundamental na articulao dos sertanejos e mesmo na luta contra as foras oficiais. A origem dos seguidores de Jos Maria pode ser encontrada em estudos do contexto de transformaes do incio do sculo XX. Paulo Pinheiro Machado frisou que alm dos tradicionais habitantes das comunidades mais prximas, havia a presena de muitos sertanejos expulsos pela Lumber e pela Brazil Railway, tanto da costa do rio do Peixe como da Regio do guau (MACHADO, 2006, p. 178). Destacou ainda o quadro de crise social e poltica, principalmente, no que se referia velha questo dos limites entre Santa Catarina e Paran. As estreitas relaes dos fatos com a chegada da Brazil Railway na Regio do Contestado tambm foram descritas por Rosngela Cavallazzi da Silva, quando afirmou que a entrada do capital estrangeiro na regio do Vale do Rio do Peixe, tendo em conta o momento histrico em que ocorreu, as condies internas daquela sociedade e, em virtude das mudanas de todas as ordens que provocou. O Combate do rani marcou, pois, o incio da Guerra do Contestado. Ocorreu em outubro do ano de 1912 e as subsidirias da Brazil Railway, aqui instaladas, contavam com o apoio governamental na defesa do patrimnio e na implantao da nova ordem. Dois anos depois, uma guerra externa solapou, desta vez, todo o imprio de Farquhar. Os desentendimentos na Regio Balcnica ainda em 1912 prenunciaram a crise e a destruio do poder financeiro dos mercados europeus. Foram, assim, os precursores imediatos da ecloso da Grande Guerra de 1914. Com o conflito, cessaram subitamente as emisses pblicas por parte dos banqueiros amigos ou das relaes de Farquhar, impossibilitando a continuidade do programa da Brazil Railway Company. A gigante holding, agora cambaleante e sem sustentao para continuar investindo, ruiu e o controle, anteriormente soberano de Farquhar, agora passou para um administrador da recuperao judicial da Brazil Railway Company. W. Cameron Forbes contou com a colaborao do prprio Faquhar e tinha como maior objetivo reaver as inverses de capital e tentar salvar o que ainda era possvel (Programa Farquhar, p. 28). Depois de quatro anos de Guerra, dois fatores inflexveis, de premente importncia, tornaram impossvel o reincio do programa anteriormente traado e desenvolvido, mesmo que no se levasse em conta o fato de Farquhar ter passado 114 o controle dos seus negcios s mos dos europeus e de todo processo de recuperao judicial. As alteraes produzidas nas Bolsas europia e dos Estados Unidos, relacionadas com o crdito dos ttulos das estradas de ferro em geral, anteriormente Guerra (eram esses ttulos os que maior garantia de renda ofereciam, pois eram os mais preferidos pelas companhias), perderam, contudo, essa posio em conseqncia da queda das rendas lquidas de todas as empresas ferrovirias do mundo. Queda essa que se processou progressivamente at que as rendas de quase todas as estradas desapareceram por completo, em face, principalmente, por causa da concorrncia de automveis e de caminhes, que trafegavam em vias construdas e mantidas gratuitamente pelos Estados, alm de outras razes (bid., p. 28-29). No Brasil, a queda do valor do mil ris, tornou impossvel recuperar qualquer remunerao de capital investido anteriormente. Nos relatos finais do Programa Farquhar, restava ao seu principal idealizador o consolo com a idia de que, do ponto de vista da Economia do Brasil, as obras da Brazil Railway Company ficaram no Pas, em proveito do seu desenvolvimento. O caminho foi traado e o Governo brasileiro poderia retom-lo com vantagem, para bem do pblico. Aps a descrio da trajetria de Percival Farquhar at alcanar a floresta ombrfila mista do Contestado e o imprio erigido pela Brazil Railway Company, faz- se necessrio destacar agora a atuao da subsidiria denominada Southern Brazil Lumber & Colonization Company que comeou a ser construda ainda antes da concluso da ferrovia. Ela estava, pois, no Programa Farquhar dentro da futura cadeia lucrativa (explorao madeireira, venda de terras e de lucros com o transporte). Constitui-se, deste modo, em um estudo imprescindvel no entendimento da sociedade regional e ser descrito no prximo captulo. 3 A BRAZIL RAILWAY COMPANY NO SUL DO BRASIL: COLONIZAO E EXTRAO MADEIREIRA
Farquhar fez um esforo titnico para desenvolver o Sul do Brasil. Charles A. Gauld, 1964
3.1 COLONIZAO E EXTRAO MADEIREIRA NA FLORESTA OMBRFILA MISTA DA REGIO DO CONTESTADO
Aps o estudo do amplo Programa Farquhar com a sua gigante aparelhagem que buscava formar cadeias lucrativas e a interdependncia entre os vrios projetos, focamos a atuao de duas subsidirias da Brazil Railway Company no Sul do Brasil: a Brazil Development & Colonization Company e a Southern Brazil Lumber & Colonization Company. Elas atuaram como apndices da ferrovia So Paulo-Rio Grande e foram instaladas na Regio do Contestado na vspera do desencadeamento da Guerra do Contestado. A colonizadora Brazil Development e a madeireira Lumber protagonizaram as grandes transformaes aps a inaugurao da ferrovia So Paulo-Rio Grande na Regio do Contestado. No Programa Farquhar, est clara a inteno de fixar descendentes de europeus na Regio do Contestado. A atividade cafeeira, no Centro-Oeste, absorveu centenas de milhares de imigrantes. Segundo o prprio Percival Farquhar, era visvel o anseio dos imigrantes de se tornarem proprietrios de terras. No Centro-Oeste, era praticamente impossvel o acesso terra, pois imperava o sistema do colonato, com suas grandes fazendas, e dificuldades de todo tipo transformavam-se em obstculos intransponveis aos colonos que chegaram empobrecidos. Na Regio do Contestado, alm das vastas reas de terras, havia tambm o interesse do Governo brasileiro na ocupao efetiva do territrio. A concesso, por parte do Governo, de grande faixa de terra ao longo das margens dos trilhos, 116 facilitaria os interesses mtuos. A Companhia do Grupo Farquhar iniciou a colonizao com imigrantes poloneses, ucranianos e, mais tarde, em todo o Vale do Rio do Peixe, chegaram italianos, alemes e outros grupos tnicos menores 54 .
Figura n. 19: Mapa dos municpios e das colnias do Vale do Rio do Peixe
Fonte: Arquivo Histrico Dr. Waldemar Rupp. Campos Novos, Santa Catarina
Neste mapa antigo do Municpio de Campos Novos, possvel observar vrias colnias demarcadas na grande faixa de terra ao longo das margens do Rio do Peixe, local onde foram estendidos os trilhos da Ferrovia So Paulo-Rio Grande. Subindo do Rio Grande do Sul, em reas j demarcadas, observam-se as Colnias de Rio do Peixe, Capinzal, Bom Retiro e Colnia do Rio das Antas.
54 interessante observar o elevado nmero de imigrantes poloneses e ucranianos que trabalharam na Lumber. No donkey n. 2, em outubro de 1923, trabalhavam 12 operrios; pelos sobrenomes possvel identificar a origem: Kozak, Scorey, Kozakevicz, Repula, Jankok, Scheuky, Holowka, Sczerbisky, Wiescosky, Maralevicz, Wolk e Budi. 117 3.2 A BRAZIL DEVELOPMENT & COLONIZATION COMPANY
O processo colonizador da Regio do Contestado deu os seus primeiros passos ainda antes da concluso da ferrovia. Atravs do Decreto 6.455, de 16 de abril de 1907, o Ministro Miguel Calmon, da pasta de ndstria, Viao e Obras Pblicas (ligada pasta dos Negcios de Agricultura e Comrcio), expediu o Regulamento de Povoamento do Solo Brasileiro. No relatrio de 1908, o Ministro interpretava os fins do regulamento, dizendo que era preciso visar especialmente introduo de imigrantes agricultores que se proponham estabelecer-se no Pas, criando centros permanentes de trabalho, de riquezas (Programa Farquhar).
Figura n. 20: Vilas, cidades e colnias prximas ferrovia
Fonte: DACON, Todd A. MiIIenarian vision, capitaIist reaIity Brazil's Contestado Rebellion, 1912- 1916. 4. ed. Durham and London: Duke University Press, 2002. p. 53
Alm das principais vilas e cidades, prximas ao traado da Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande, aparecem neste mapa as colnias da Brazil Railway Company e as colnias federais e estaduais instaladas em territrio paranaense. Atravs da Brazil Development & Colonization Company, a Brazil Railway Company planejou a imigrao em larga escala, visando especialmente a elementos europeus para se instalarem nas terras das concesses adquiridas do Governo 118 brasileiro. J existiam centenas de milhares de imigrantes dessa procedncia, trabalhando nas fazendas de caf, nas indstrias manufatureiras e no comrcio de So Paulo. Era conhecido o anseio desses imigrantes por se tornarem proprietrios de suas prprias terras, como j descritos no Programa Farquhar. A inteno se concretizaria, mais tarde, com a criao da Brazil Development & Colonization Company, com sede em Portland, Estados Unidos da Amrica, autorizada a funcionar no Brasil pelo Decreto n. 9.442, de 13 de maro de 1912 (NODAR, 1999. p. 101). Na concesso da Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande, estava inclusa uma larga faixa de terras devolutas para cada lado do eixo de suas linhas, conforme j descrito anteriormente. Essas terras se achavam sob a jurisdio dos Estados, mas sujeitas a reajustamento, em vista da prioridade de direito em benefcio da So Paulo-Rio Grande. Baseando-se nas experincias bem sucedidas de colonizao, por parte da Canadian Pacific Railway Company, e de outras empresas, o Programa Farquhar estabeleceu o seguinte: que os colonos, com os seus prprios recursos, ou provenientes dos seus governos, ou outros quaisquer, pagassem o seu transporte at as colnias; que a companhia demarcaria os lotes cedidos, fornecendo sementes e utenslios agrrios. Tudo deveria ser indenizado pelos colonos, com os produtos de suas colheitas, dentro de determinado perodo de tempo. A Companhia ainda forneceria orientaes tcnicas aos colonos. Alm disso, a companhia criaria mercado para os produtos nas estaes das suas linhas frreas. Este item esclarece o distanciamento mdio entre as diversas estaes ao longo do trajeto no Vale do Rio do Peixe (P. F. Southern Brazil Lumber & Colonization Company, p.12). O Governo italiano foi consultado sobre este programa, por intermdio da Banca Comerciale taliana de Milo, a pedido da sua filial em So Paulo o Banco Francs-taliano para a Amrica do Sul - e expressou a sua concordncia. Ficou tambm resolvido que se mandaria vir ao Brasil, atravs da Brazil Railway Company e da Banca Comerciale, o eminente agrnomo italiano, o Prof. Niccoli, com o propsito de examinar as terras a serem colonizadas, analisar os aspectos agronmicos, estudar o clima, apontar os produtos cultivveis e, posteriormente, mostrar a forma de melhor se conduzir a operao da colonizao em larga escala, tendo-se em vista a convenincia de se tornarem os colonos, ulteriormente, 119 proprietrios das terras de seu cultivo, diferentemente do sistema do colonato do Centro-Oeste brasileiro (loc. cit.). O referido agrnomo esteve no Brasil e examinou as terras dos Estados do Paran, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Aps observaes e estudos pertinentes, escreveu um relatrio, onde se manifestava definitivamente contrrio colonizao em larga escala, por meio de pequenas glebas, constatando os seguintes fatos: a falta de calcrios e nitratos; aps a derrubada das florestas, as terras produziam boas colheitas inicialmente, depois se depauperavam gradativamente e rapidamente. O colono tratava ento de abandonar as suas posses e partia em busca de outro trato de florestas para continuar o desmatamento. Alm disso, destacou a necessidade imperiosa do emprego de fertilizantes, sendo recomendado o uso do esterco produzido pelos animais estabulados, como capaz de produzir efeitos mgicos no aumento das colheitas e na permanncia da fertilidade das terras. Ainda, sugeriu a convenincia de se estabelecerem, inicialmente, em grandes fazendas, em vez de pequenos lotes cedidos aos colonos (P. F. Southern Brazil Lumber & Colonization Company, p. 12-13). Mais tarde, Percival Farquhar solicitou a vinda ao Brasil de Leigh Hunt, fundador da escola agrcola do Estado de owa, a mais bem reputada dos Estados Unidos, e organizador da Suden Plantations Company, destinada ao cultivo do algodo. Mesmo sem ter tido conhecimento do relatrio do agrnomo italiano, Leigh Hunt chegou a concluses idnticas (bid., p. 13). Alm dos obstculos apontados pelos agrnomos, as Companhias da Brazil Railway Company enfrentaram, tambm, dificuldades do ponto de vista poltico, uma vez que a Regio do Contestado esteve em litgio entre os Estados de Santa Catarina e Paran (assunto levantado no primeiro captulo). Santa Catarina no reconhecia os ttulos de posse e as concesses dados pelo Paran a leste do Rio do Peixe: Respeitando-se posses antigas, aps as primeiras demarcaes, chegou-se concluso de que faltavam muitos quilmetros quadrados a serem demarcados. (NODAR, 1999, p. 101).
120 3.2.1 Terras devolutas, concesses paranaenses e catarinenses para a Brazil Railway Company no incio do sculo XX
A Brazil Railway Company teve participao em todo o processo de colonizao da Regio do Contestado, seja agindo diretamente ao criar colnias atravs das duas subsidirias: Brazil Development Colonization Company e a Southern Brazil Lumber & Colonization Company, seja de forma indireta, atravs de contratos com empresas particulares que assumiam os servios de colonizao das terras obtidas por concesso do Governo Federal (SLVA, 1983, p. 78). Figura n. 21: Concesses de terras e colonizao
Fonte: PAZZA, Walter F. A coIonizao de Santa Catarina. 2. ed. Florianpolis: Lunardelli, 1988. p. 252.
No mapa acima, na vasta rea a leste do Rio do Peixe, podemos observar as glebas onde as subsidirias da Brazil Railway Company atuaram diretamente na colonizao, as glebas repassadas para as colonizadoras particulares e ainda as reas cujos ttulos foram expedidos pelos Governos estaduais. possvel observar as glebas da Southern Brazil Lumber and Colonization Company que alcanaram o Extremo Oeste Catarinense e na Colnia Concrdia. O processo de ocupao e de colonizao ainda incipiente, pois as glebas so enormes e o perodo abrange a primeira dcada do sculo XX. So visveis as 121 reas de concesso do Governo brasileiro pelos servios de construo da ferrovia prestados pela gigante Brazil Railway Company. Alm de duas reas prximas aos limites com a Repblica Argentina em nome da Brazil Development & Colonization Company, tambm existe uma vasta gleba em nome da Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande junto ao traado ferrovirio no baixo Vale do Rio do Peixe, na confluncia do Rio do Peixe com o Rio Uruguai, exatamente onde a Brazil Railway Company instalou os primeiros colonos. Rosngela Silva analisou diversas demandas judiciais e aes que envolvem o processo de colonizao em toda a Regio do Contestado e reas concedidas para a Brazil Railway Company e suas subsidirias. Dentro do perodo inicial, ilustrado no mapa acima, podemos observar que entre os anos de 1908 e 1910, com a construo da ferrovia So Paulo-Rio Grande, inicia-se o povoamento com a chegada dos trabalhadores da ferrovia. No baixo Vale do Rio do Peixe, ainda em 1908, ocorreu o povoamento de Piratuba. No ano de 1909, houve a discriminao das terras devolutas autorizao dada pelo Governo do Paran para medio e demarcao das terras dos lugares Rancho Grande, Rio do Engano, Pepery e Chapec, na poca pertencentes aos Municpios de Palmas e Clevelndia 55 (SLVA, 1983, p. 80). As duas glebas denominadas Rio do Engano e Rancho Grande estavam localizadas entre o Rio Uruguai e Concrdia; em 1910, atravs da Southern Brazil Lumber Company, houve a tentativa de incio de colonizao. Antes de se destacar Pepery e Chapec, localizadas mais ao Extremo-Oeste de Santa Catarina, faz-se necessrio ressaltar as colnias Rio Uruguay, Lageado do Leozinho, Rio Capinzal e Colnia Herval. Eram, pois, reas amplas que abrangiam terras dos atuais municpios catarinenses de Joaaba, Capinzal, Campos Novos e Concrdia. No ano de 1911, a ferrovia So Paulo-Rio Grande j havia iniciado o trfego, e o processo de colonizao ganhou impulso quando o Governo do Estado do Paran, atravs da Secretaria do Estado dos Negcios de Obras Pblicas e Colonizao, expediu o ttulo de revalidao de concesso para a Companhia
55 O nome da localidade de Bela Vista foi mudado para Clevelndia, em homenagem ao rbitro e ao ento Presidente norte-americano Grover Cleveland, que deu sentena favorvel ao Brasil na contenda pelas reas do vasto territrio que abrangia o Extremo-Oeste Catarinense e Sudoeste do Paran, na disputa com a Argentina na denominada Questo de Palmas ou Questo de Misiones. O litgio foi arbitrado favoravelmente ao Brasil no ano de 1895. 122 Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande dos seguintes locais: rea de 371.908.795 m 2 na Colnia Rio Uruguai; rea de 40.399 hectares e 5.495 m 2 no Lageado Leozinho, tambm prximo de Cruzeiro, mais tarde Limeira e hoje Joaaba; na Colnia Rio Capinzal, a Companhia So Paulo-Rio Grande j havia iniciado a diviso dos lotes e a localizao dos imigrantes (SLVA, 1983, p. 80). Subindo o Vale do Rio do Peixe, no Meio-Oeste Catarinense, nas reas amplas que abrangiam terras dos atuais municpios catarinenses de Videira e Caador, estabeleceram-se, tambm, colnias e fazendas, como Bom Retiro, que depois se subdividiu em vrias glebas. interessante frisar que nesta rea foi o Estado de Santa Catarina, atravs da Diretoria de Viao, Terras e Obras Pblicas, que expediu o Termo de Reconhecimento de Direito e Aprovao de Medies das Terras Devolutas, como na rea de 28.405 hectares e 9.103 m 2 de terras devolutas nos lugares de Rio Caador, Rio das Antas e Rio das Pedras (bid., p. 91). Voltando s concesses do Paran, observa-se um movimento intenso prximo ao Rio guau, especialmente nas reas de interesse colonizador e madeireiro. Silva destacou que, entre os anos de 1905 e 1909, sob o domnio da Brazil Railway Company era construdo o ramal So Francisco e intensificado o processo de colonizao. Ainda sobre o assunto, em 1908, o Governo do Paran criou a Comarca de Porto Unio: A Southern Brazil, Lumber Company adquire por compra de Affonso Alves de Camargo e outros o imvel So Roque, rea de 516.912.000 m2 (bid., p. 8691). De interesse fundamental neste estudo, a fazenda So Roque foi o local onde se instalou a segunda madeireira da Brazil Railway Company, queimada pelos sertanejos rebelados durante a Guerra do Contestado, que ser estudada mais adiante, pontuando, alm do interesse colonizador, o interesse madeireiro. O imvel Pepery-Chapec com rea de terra com 1.506.097.000 m 2 , localizado no atual Extremo-Oeste Catarinense, foi expedido por ttulo de domnio para a Companhia Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande, pelo Governo do Estado do Paran, como parte do pagamento das terras do contrato que abrangia at 15 km de cada lado dos trilhos, envolvendo o clculo da extenso quilomtrica e a multiplicao correspondente, j descrito anteriormente; no acerto das medidas, faltaram terras prximas ao traado ferrovirio (bid., p. 93).
123 3.2.2 Demarcao, venda das terras e instalao dos colonos nas dcadas de 1910 e 1920
Aps a inaugurao da ferrovia e das primeiras concesses de terra para a Brazil Railway Company para fins de colonizao, seguiram-se dcadas de intensas negociaes de terra, seja por iniciativa da prpria Brazil Railway Company, atravs de suas subsidirias, cujos projetos constavam no Programa Farquhar, seja por companhias colonizadoras particulares.
Figura n. 22: Colnias e fazendas no Oeste Catarinense
Fonte: Fonte: PAZZA, Walter F. A coIonizao de Santa Catarina. 2. ed. Florianpolis: Lunardelli, 1988. p. 257.
O mapa acima situa o processo colonizador entre os anos de 1910 e 1920. Alm das colnias pertencentes Brazil Railway Company e s suas subsidirias, muitas em pleno processo de assentamento de colonos, ainda existem fazendas que sero adquiridas para fins de colonizao. O Decreto n. 11.648, de 24 de julho de 1915, tornou sem efeito a concesso de terras devolutas. Segundo Nodari, desse modo a Lumber, subsidiria da Brazil Railway, que j explorava as terras da regio 124 foi obrigada a compr-las (NODAR, 1999, p. 9). 56 Ainda, possvel observar uma enorme gleba da Brazil Development & Colonization Company que atravessa, verticalmente, o Extremo-Oeste catarinense. Ao se fazer uma comparao com o mapa anterior, possvel observar a acelerao no processo de colonizao aps a concluso da ferrovia So Paulo-Rio Grande. Diversas empresas colonizadoras foram constitudas e adquiriram terras da Brazil Railway Company, atravs de concesses dos governos estaduais ou mesmo atravs da aquisio feita por fazendeiros que possuam ttulos de propriedade. Silva observou que o fato de as colonizadoras terem origem no Rio Grande do Sul influenciou na procedncia do grupo humano que foi instalado nas colnias do Vale do Rio do Peixe e em todo o Oeste Catarinense. Assim, essencialmente, imigrantes e descendentes de imigrantes, alemes e italianos, na sua maioria, e agricultores gachos, portanto provenientes das chamadas 'velhas colnias', iro colonizar o Meio-Oeste Catarinense (SLVA, 1983, p. 77-78). Deste modo, entre 1915 e 1920, a Southern Brazil Lumber & Colonization Company executou vrios projetos de colonizao. Silva destacou os que seguem: - em 1915, nas proximidades da estao de Herval, mediu 24.000 hectares e os dividiu em 900 lotes coloniais; - em 1916, instalou a Colnia Bom Retiro, atraindo colonos do Rio Grande do Sul; - em 1916, fundou uma colnia com 500 lotes agrcolas em pira. Os colonos, ali instalados, em sua maioria, eram da etnia alem; - em 1917, as colnias de Rancho Grande e Rio do Engano (Colnia Concrdia) medindo, respectivamente 325.702.000 m 2 e 1.073.582.684 m 2 , so concedidas pelo Governo do Paran para a Companhia Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande. Nos anos seguintes, vrias pessoas e empresas colonizadoras atuaram nestas reas com empreendimentos colonizadores.
56 Um exemplo destas compras efetuadas pela Southern Brazil Lumber and Colonization Company ocorreu em 1921 quando, atravs de pagamento em dinheiro e de parte pela construo de estradas de rodagem executadas pela empresa, o Governo do Estado de Santa Catarina concedeu Lumber uma rea de 329.223.847 m 2 do imvel denominado So Sebastio do Bom Retiro, constitudos pelas glebas: Ribeiro, Rio Preto, So Sebastio do Bom Retiro e Escada . A atual localizao envolve parte dos municpios de Canoinhas e Porto Unio (SLVA, 1983, p. 87). 125 Alm da Southern Brazil Lumber & Colonization Company que criou o distrito de Bela Vista, municpio de Cruzeiro, cabe referir os seguintes colonizadores 57 : - Bohdan Miskoszemiski requereu atravs de compra da Brazil Railway Company lotes para 168 famlias, moradores da regio como intrusos, e outros, vindos do Rio Grande do Sul, na Colnia do Rio do Engano; - Joo Serigo, Otto Henrique Fillanann, Alfredo Walter Schreiner, Alfredo Heineck, Hugo Hexsel, Eugenio Zimmermann, Victor Aren e Gustavo Schlichting compraram da Companhia Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande tambm terras no Rio do Engano. Esta rea perfazia 89.208 hectares, divididos em lotes de dez alqueires cada um e foram deduzidos 28,150 hectares, com 750 lotes j vendidos aos sertanejos, constando em um contrato feito entre a Lumber e Jos Fabrcio das Neves - este ltimo, de forte ascendncia sobre os antigos moradores da regio (caboclos), foi figura importante no Combate do rani, o primeiro combate da Guerra do Contestado -; - Manoel dos Passos Maia requereu do Estado de Santa Catarina uma rea de terras devolutas, na extenso de 100.000 hectares, na margem esquerda do Rio Chapec para a colonizao das terras e para a fundao de estabelecimentos industriais no Municpio de Chapec. Mais tarde, Passo Maia e Ernesto Bertaso fundaram a Empresa Bertaso, Maia e Cia. Esta mesma empresa tambm recebeu do Governo de Santa Catarina terras devolutas para a colonizao no Rio do Engano (Cruzeiro), como forma de pagamento pela construo da estrada de rodagem de Goyo-en ao Passo dos ndios (Chapec). Somente esta empresa trouxe aproximadamente 8.000 famlias de colonos do Rio Grande do Sul. As terras eram vendidas com uma entrada de 30% do valor total e o restante em duas prestaes semestrais. Colonizaram assim uma rea de 2.248.259.441 m 2 ; - Theodore Jean Leon Capelle adquiriu da Companhia Estradas de Ferro So Paulo-Rio Grande grandes extenses que abrangiam as reas de Rancho Grande e Rio Uruguay. Excluam-se 2.240 hectares de Jos Fabrcio das
57 Os colonizadores e as reas destacadas a seguir foram retirados de SLVA (1983), da pgina 80 at a 95. 126 Neves. Theodore criou a Empresa Povoadora e Pastoril Theodore Capelle & rmo e atuou ainda nas seguintes reas: Vila do Rio Uruguai 134 hectares, Vila Bela Vista 163 hectares, Chcaras Par 16 hectares e na Volta do Estreito, 1058 hectares. No incio da dcada de 1920, Capelle comprou da Companhia Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande vrias propriedades. No Alto Vale do Rio do Peixe, comprou as propriedades de Rio das Antas e Caador, cujas reas perfaziam 22.383 hectares. Destes, 1.506 hectares j divididos em lotes e 7.851 ainda no-divididos. Consta, ainda, de uma rea de 86 hectares de terras separadas para as vilas; - Sociedade Territorial Mosele, Eberle, Ahrons & Cia, que tambm atuou nas terras de Rio do Engano, em cujas reas foram negociadas por diversas colonizadoras e s foram inteiramente medidas e vendidas em plena dcada de 1930. Dos 1.073.582.648 m 2 resultaram 3.638 lotes rurais, 256 lotes urbanos e 26 chcaras, ocupados por talos e teuto-brasileiros oriundos do Rio Grande do Sul. Enquanto no Extremo-Oeste Catarinense e nas terras do Vale do Rio do Peixe at o Rio Uruguai predominaram os colonos oriundos do Rio Grande do Sul, j, mais ao norte, nas terras prximas e no Vale do Rio guau, outras etnias fizeram parte do processo colonizador. Nas terras concedidas pelo Governo do Estado do Paran, para a Companhia Estradas de Ferro So Paulo-Rio Grande entre as estaes de Legru e So Joo (atual Matos Costa), surgiram vrias colnias, a primeira de rutenos, que foi denominada Nova Galcia. Outras surgiram no Vale do Timb, como Coronel Amazonas, Santa Cruz, So Pedro, So Miguel e Marat. Ucranianos e poloneses aparecem nestas colnias e constituram a maior parte da mo-de-obra nos projetos de extrao madeireira do Programa Farquhar. importante ressaltar tambm que, alm das concesses do Paran, a Brazil Railway Company tambm recebeu concesses de Santa Catarina, como o imvel Rio Saudades, com 913.634.804 m 2 de terras no Oeste Catarinense. A Brazil Railway Company, atravs da subsidiria Southern Brazil Lumber & Colonization Company, transferiu as terras do Rio Saudades para a empresa Bertaso Maia & Cia, para a colonizao. Na dcada de 1930, a empresa foi dissolvida e o scio Ernesto F. Bertaso acrescentou ao antigo patrimnio outras reas de terra, reunindo uma 127 rea de 2.249.259.441 m 2 que foram vendidas aos colonos oriundos do Rio Grande do Sul. 58
3.3 A SOUTHERN BRAZIL LUMBER & COLONIZATION COMPANY
Atravs do Decreto n. 7.426, de 27 de maio de 1909, o Presidente da Repblica, Affonso Augusto Moreira Penna, e o Ministro de Estado da ndstria, Viao e Obras Pblicas, Miguel Calmon du Pin e Almeida, concederam autorizao para a Southern Brazil Lumber Company a fim de funcionar na Repblica, com os devidos estatutos apresentados, mediante a condio de cumprir a legislao em vigor. substituio do nome Southern Brazil Lumber Company para Southern Brazil Lumber & Colonization Company no so esclarecidos devidamente os motivos, apenas, a partir de 1913, sempre que foi citada em documentos oficiais, aparece o nome Southern Brazil Lumber & Colonization Company ou simplesmente Lumber, como igualmente passaremos a chamar. Na mudana do nome da Companhia, o acrscimo da palavra colonizao (colonization) ao de madeira (lumber) parece ter acontecido por razes bvias, j que grandes reas de terra foram adquiridas para fins de explorao madeireira e conseqentemente poderiam ser revendidas aos colonos pela mesma empresa sem precisar recorrer a outra subsidiria do mesmo grupo. Fernando Tokarski descreveu quando ocorreu a autorizao de funcionamento (j instalada e atuando) ou a simples mudana da denominao da Southern Brazil Lumber & Colonization Company : Em 04 de abril de 1913 uma procurao substabelecida ao advogado Marcelino Jos Nogueira Junior, de Curitiba, requeria o legal funcionamento da Southern Brazil Lumber & Colonization Company em Trs Barras, SC. A mesma procurao havia sido encaminhada pelo advogado Frank John Egan, radicado em So Paulo, que recebeu em Paris, a procurao do Vice- Presidente da Southern Brazil Lumber & Colonization Company , para que requeresse ao Governo brasileiro o legal funcionamento da empresa no Brasil. O documento tambm determinava que Egan representasse a empresa em quaisquer outras aes, negcios ou assuntos de interesse da Lumber (TOKARSK, 2006).
58 Alm dos dados extrados de SLVA (1983), tambm foram consultadas as obras de NODAR (1999) e PAZZA (1982). 128 Figura n. 23: Escritrio da colonizadora Lumber
Fonte: Foto do acervo de Joeli Laba
A colonizadora teve atuao destacada aps o processo de industrializao madeireira executado pelas subsidirias da Brazil Railway Company. A placa identifica o escritrio da Southern Brazil Lumber & Colonization Company, empenhado nas vendas de lotes urbanos, chcaras e colnias, na antiga Fazenda So Roque em Calmon, Santa Catarina. nstalada no centro de vastssimo pinheiral, na margem esquerda do Rio Negro, entre os Rios So Joo e Canoinhas, a Southern Brazil Lumber & Colonization Company comeou a ser construda em 1909 e foi concluda no final do ano de 1911. Como em todas as demais subsidirias da Brazil Railway Company, profissionais experientes foram incumbidos na execuo do projeto. A montagem dessa grande serraria e a explorao das florestas, tudo isso foi entregue a Hiram Smith, especialista de reconhecida competncia e que, pouco tempo antes, instalara servios similares por conta da Northwestern Railroad Company, empresa da qual F. S. Pearson era o Presidente. Planejada para ser uma empresa com alto grau de mecanizao e de grandes rendimentos, as mquinas do gigante colosso mecnico vieram dos Estados Unidos, de navio, at o Porto de 129 So Francisco. Deste porto, s foram trazidas at Trs Barras no ano de 1910 quando o ramal ferrovirio, que entroncava com a So Paulo-Rio Grande, em Porto Unio, alcanou a localidade de Saltinho do Canivete (P. F. Southern Brazil Lumber & Colonization Company, p.10-11). Alm da preocupao com a instalao da madeireira, os servios do ramo de colonizao, por indicao de William Van Horne, foram incumbidos a Mr. Cole, profissional que j obtivera grandes sucessos como chefe dos servios de colonizao da Canadian Pacific Railroad Company. Cole foi responsvel pelo estabelecimento de imigrantes poloneses nas diversas colnias margem das linhas da So Paulo-Rio Grande, entre Unio da Vitria e Marcelino Ramos. As terras onde Hiram Smith dirigiu a instalao da Lumber foram compradas da famlia de Benvindo Pacheco, que j estava instalada l desde 1889, e tinha adquirido a rea por concesso, como herdeiros de Jos Teixeira Cordeiro e Lucas Cordeiro: Essas terras eram uma extensa rea inexplorada quando os sertanistas comearam a percorr-la, vo denominando acidentes geogrficos: Bugre, Pardos, Tigre, Duas Barras, que mais tarde passa a se chamar de Trs Barras (Monte Carlo do Rosrio, s/d, p. 6). Trs Barras pertencia, pois, Provncia do Paran. Reginald Lloyd (1913) escreveu que a serraria erigida em Trs Barras comeou a funcionar em 22 de novembro de 1911 e tinha capacidade para serrar mais de 200.000 ps de madeira por dia. Alm da grande madeireira de Trs Barras, outras menores foram sendo construdas na regio. Enquanto o grande engenho de serrar de Trs Barras foi considerado a segunda maior madeireira do mundo, as demais serrarias menores, que foram sendo construdas e que pertenciam ao mesmo grupo, fizeram parte do maior complexo extrativo madeireiro de ento. O local da instalao da Lumber era apropriado: segundo Lloyd, 560.000 acres de terra, densamente coberto de pinheirais. O lucrativo comrcio madeireiro j tinha endereo: Para a madeira, alm dos mercados nacionais, h boa procura em Buenos Aires, sem falar na possibilidade de exportao para a Europa. Clculos baseados sobre resultados j obtidos do um lucro lquido de 90.000 libras para o ano de 1912 e 160.000 libras para 1913. Os lucros tendem ainda a aumentar com o desenvolvimento do negcio. O Brasil importa grande quantidade de madeira, sem falar que a Argentina e o Uruguai importam dos Estados Unidos mais de 80.000 francos de madeira por ano, fato que mostra que a Southern Brazil Lumber & Colonization Company logo encontrar sada para sua produo (LLOYD, 1913, p. 240). 130
Ao descrever a quantidade de terras adquiridas para a construo da madeireira, Maurcio Vinhas de Queiroz e Reginald Lloyd divergem quanto a isso. Para Vinhas de Queiroz a Companhia: comprou 180 mil hectares ao sul dos Rios Negro e guau, prximo a Canoinhas, ao preo de 15 mil-ris ao hectare (QUEROZ, 1981, p. 75). J para Lloyd, a Southern Brazil Lumber & Colonization Company de quem a Brazil Railway Company possua todas as aes (...). Adquiriu uma grande rea de 220.000 hectares de terras cobertas de florestas de pinheiros, nas proximidades de Trs Barras, na linha do Rio guass, da S. Paulo-Rio Grande, entre Unio da Vitria e o porto de So Francisco (LLOYD, 1913, p. 240). Mesmo havendo divergncia da quantidade exata da rea de terras onde a Lumber se instalou, existe unanimidade de que se tratava de uma gigante reserva de pinheiros que garantiu a matria-prima para uma poro de anos. Os registros de contratos de arrendamento de terras para a explorao das araucrias, localizados nos cartrios da regio, ilustram que, aps o esgotamento das reas compradas, a empresa partiu para outras, geralmente comprando o direito da retirada da madeira, que vamos comentar mais adiante. Com a abundncia de matria-prima e com o mercado garantido, a Brazil Railway, atravs da Lumber, investiu nas eficientes tecnologias para a industrializao madeireira, contratou os especialistas nas funes tcnicas, e um grande nmero de imigrantes foram empregados como operrios da gigante madeireira. A qualidade era buscada atravs das experincias e das melhorias constantes, desde a forma mecanizada de se recolher a matria-prima das matas at o empilhamento e o carregamento do produto. Em 1911, foram construdos fornos de secagem de madeira serrada com bons resultados: Um problema da maior importncia para a madeira do Sul do Brasil, a secagem do pinho do Paran, foi resolvido depois de importantes experincias (LLOYD, 1913, p. 220).
131 Figura n. 24: Estufa para a secagem de madeira
Fonte: Foto do acervo de Joeli Laba
Alm das gigantes pilhas de madeira serrada que secavam no ptio aberto, erguidas com tcnica especial para a secagem homognea, a construo de estufas, como se observa nesta imagem, demonstra o grau de mecanizao empregado na Lumber. A idia da cadeia lucrativa ficou evidente nas descries de Lloyd (1913), quando afirmou que a Brazil Railway Company tirar grandes lucros desta empresa com a madeira, sem falar que o transporte da madeira da Lumber de 300 a 1.500 km constituir considervel aumento no trfego ferrovirio - tudo isso refora, pois, as idias constantes no Programa Farquhar; alm disso, os lucros emergiriam de vrias fontes. Mais do que nunca, tudo foi planejado para funcionar de modo sincronizado.
3.4 ESCRITRIOS E DEPSITOS DA LUMBER
O escritrio central da Lumber destacava-se das demais construes na cidade-empresa americana por seu porte imponente de vigorosa edificao, 132 construdo com paredes duplas, com sistema de aquecimento interno, com luxo e conforto em todas as suas dependncias. Nos dias de pagamento, as longas filas comeavam na janelinha de madeira com espessura de duas polegadas e estendiam-se ptio afora. O escritrio era o local que abrigava os dirigentes norte-americanos e os demais funcionrios administrativos. Do escritrio de Trs Barras, seguia a papelada e os demais documentos para outros escritrios espalhados pelo Pas e no exterior. Jucy Varela, 59 antigo funcionrio do escritrio da Lumber, conta que todos os relatrios eram escritos em trs lnguas: portugus, ingls e francs (Depoimento de Jucy Varela). possvel comprovar a veracidade do depoimento, observando-se o relatrio da Southern Brazil Lumber & Colonization Company do ano de 1917, onde constam como despesas gerais os custos de administrao e os escritrios em Londres, Paris e Nova York, alm de So Paulo e Trs Barras (Arquivo Pblico do Estado de Santa Catarina. Relatrio de Custo e Despeza, ano de 1917, p. 10). Alm de escritrios, existiam tambm depsitos espalhados no Sul do Pas e nos pases vizinhos, onde eventualmente a madeira, os mveis e o material de reposio eram guardados. Alm da sede em Trs Barras, no mesmo relatrio de 1917, constam escritrios em So Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Paranagu, Buenos Aires e Montevidu. A maior necessidade de depsitos estava nos portos - porta de entrada, sada e de muita circulao de mercadorias.
3.4.1 So PauIo
As propriedades da Empresa no Estado de So Paulo encontravam-se na zona urbana da capital, situadas na Avenida Higienpolis, Rua da Mooca, Rua Marina Crespi e Rua Orvile Derby, abrangendo a rea total de 0,6309 hectares 60 .
59 Jucy Varela trabalhou no escritrio da Lumber. Foi entrevistado em tapema, Santa Catarina, no ano de 2004 e, em Caador, no ano de 2007. 60 A maioria dos dados descritos neste subttulo foram extrados do Arquivo Particular de Romrio Jos Borelli (Edital de Concorrncia de Venda dos Bens da Lumber publicado no Dirio Oficial pelo Presidente da Comisso Sr. Hortncio de Alcntara Filho). 133 A propriedade da Avenida Higienpolis, n. 698, era constituda de um terreno de 2.000,00 m 2 (20 X 100), onde se achava edificada uma residncia de alvenaria de tijolo no centro de terreno, com dois pavimentos e com poro em nvel inferior ao da rua; tudo era de bom acabamento, dividido no primeiro pavimento em hall, escritrio, trs salas, copa, cozinha e varanda. No segundo pavimento, havia quatro quartos, varanda, banheiro e depsito. Contava ainda com uma garagem de 22,30 m 2
retirada do corpo da casa. Na Rua da Mooca, estavam os n. 2.182 e 2.214; na Rua Marina Crespi, os n. 61 e 77; na Rua Orvile Derby, o n. 82. Apesar de distintas, estas propriedades achavam-se reunidas em trs blocos, destinados explorao industrial e residencial. Um bloco tinha a rea de 2.111,20 m, achando-se ali construdos os prdios de n. 2.128 da Rua Mooca e os de n. 61 e 67 da Rua Marina Crespi, estes destinados explorao industrial, com uma rea de 735,00 e 538,20 m 2 de rea construda. No segundo bloco, com rea de 676,00 m 2 , encontrava-se uma residncia estilo palacete com trs pavimentos, abrangendo uma rea de 240,00 m 2 . No primeiro pavimento, estavam as salas e os quartos; no segundo, varandas, hall, trs salas, quartos, banheiro, copa e cozinha; no terceiro pavimento, um amplo sto. A garagem, construda independente, contava com 36,00 m 2 . No terceiro bloco, estava a edificao da Rua Orvile Derby, n. 82, onde, em uma rea de 1.522,00 m 2 se achava uma construo velha, de um s pavimento, forrada e assoalhada, dividida em duas salas, cozinha e quarto, com a rea de 61,70 m 2 .
3.4.2 Paran
Os atuais limites entre Paran e Santa Catarina no so os mesmos do momento da instalao da Lumber. Trs Barras, onde foi instalada a maior madeireira, na poca, pertencia ao Paran. Somente a partir de 1916, depois de um acordo entre os dois Estados, que Trs Barras passou a pertencer a Santa 134 Catarina (tema descrito no primeiro captulo). Para a descrio do patrimnio da Lumber no Estado do Paran, optamos por deixar Trs Barras junto com as outras serrarias menores, todas no Estado de Santa Catarina. No Paran, o patrimnio da Lumber montava a 2.514,207 m 2 , distribudos em trs sedes: Guarapuava, com 2.170,7880 hectares; Jaguariava, com 343,0250 hectares e Paranagu, com 0,2141 hectares.
3.4.2.1 Guarapuava
Esta era a denominao de uma grande propriedade territorial (897 alqueires), distante 36 km de Prudentpolis e 56 km de Guarapuava. Com rea de terra regularmente acidentada, constitua-se de terras de pastagem, razo da construo de uma casa destinada ao encarregado.
3.4.2.2 Jaguariava Quadro n. 02: Antiga fazenda Jaguariava ou Barra Mansa dividida em lotes e propores nmero do lote medida de cada lote rea total Lotes 28, 29 e 30 480.000,00 m2 cada 1.452.000,00 m2 Lote 59 744.050,00 m2 Lote 71 242.000,00 m2 Lote 78 484.000,00 m2 Lote 81 508.200,00 m2 TOTAL GERAL 3.430.250,00 M2
Fonte: Arquivo particular de Romrio Jos Borelli Nota: A rea total dos lotes era constituda, em sua grande parte, por belas pastagens, servida de estradas de rodagem, prxima do ramal de Paranapanema da Rede Viao Paran-Santa Catarina.
3.4.2.3 Paranagu
Na cidade de Paranagu, havia dois lotes urbanos sob os n. 734 e 735, concedidos pela municipalidade. O lote n. 734 media 28,00 m de largura e 62,00 de comprimento; localizava-se no Boulevard Serzedelo, esquina com a Rua Julio Costa; 135 o lote 735 media 15,00 m de largura e 27,00 de comprimento e localizava-se na Rua Baro de Amazonas.
3.4.3 Santa Catarina
Alm do valoroso patrimnio nos Estados do Paran e So Paulo, em Santa Catarina, localizava-se o centro de produo madeireira e de distribuio para vendas no Pas e no estrangeiro. Alm da gigante estrutura de Trs Barras, ainda existiam engenhos menores nas localidades de Vales, Pacincia e Felipe Schimidt (...) inclusive, lotes urbanos e rurais. No relatrio das operaes da Companhia do ms de abril de 1917 61 , aparece a propriedade de Valles com terrenos de Moas, Cruzes, Rio Preto e Escada. Juntos perfaziam uma rea de 21.600 alqueires, com a linha ferroviria Porto Unio-So Francisco, cruzando dentro dessa propriedade em uma extenso de mais de 50 km. Segundo o relatrio, existiam um bilho de ps de madeira em toras para serrar com uma boa porcentagem de imbuia, de grande valor. Alm da boa perspectiva de lucros com a madeira, constava no referido relatrio que o solo muito frtil e nas proximidades do Rio guau no h lugar melhor para a locao de uma prspera colnia. Ficava clara, pois, a inteno da retirada imediata da madeira e da posterior venda das terras para os colonos. A previso da retirada de toda a madeira estava estimada em 20 anos e os resultados comerciais eram promissores devido excelncia da qualidade de pinho e imbuia na propriedade e a grande quantidade dos mesmos, derivaremos um lucro extraordinariamente grande de operaes ali (Relatrio da Southern Brazil Lumber & Colonization Company ao Presidente da Brazil Railway Company, abril de 1917). Dentro dos limites da propriedade de Valles, encontrava-se Escada, uma rea de 1.993.6 alqueires que a Lumber comprou diretamente do Dr. Affonso de Camargo, que foi advogado da Companhia e que atendia a todos os negcios de terrenos. Durante a Guerra do Contestado, esta rea foi invadida pelas sertanejos, pertencia ao Estado do Paran; aps o acordo de limites, passou a pertencer a
61 Arquivo Pblico do Estado de Santa Catarina. Relatrios Mensais, abril de 1917 136 Santa Catarina e os posseiros conceberam a idia de estabelecer uma vila e colnia na nossa boa propriedade. A vila que contava com mais de 500 moradores com muitas casas construdas passou para a administrao da Companhia que recebeu 100% do preo original, alm da direo da vila e poderemos us-la nossa vantagem quando iniciarmos as operaes ali. Consta ainda no relatrio a possvel dificuldade nas negociaes com os intrusos, porm a tranqilidade do diretor atesta que: eu julgo que quando comearmos a usar esta propriedade e darmos emprego e servio a esta gente, poderemos mais facilmente manej-los. Entretanto, esperamos ter muitas dificuldades nesta zona e j estamos nos preparando para tal (Relatrio da Southern Brazil Lumber & Colonization Company ao Presidente da Brazil Railway Company, abril de 1917). Deve-se observar que a carncia de documentao e as vagas referncias impedem uma descrio mais detalhada destes empreendimentos menores, ligados a Trs Barras. Alm da propriedade de Valles e Escada, em propores, a Fazenda So Roque a mais expressiva e tambm foi comprada de Affonso Camargo.
3.4.3.1 Trs Barras
Figura n. 25: Complexo industrial madeireiro instalado na Regio do Contestado em Trs Barras
Fonte: Acervo do nstituto Histrico e Geogrfico de Santa Catarina
137 A foto panormica possibilita uma viso do complexo industrial madeireiro instalado na Regio do Contestado, no incio do sculo XX. Os principais departamentos esto descritos na imagem anterior: o escritrio, a oficina mecnica, a serraria e a cepilhadeira. O epicentro de todo processo de explorao comercial madeireira e de maior patrimnio da Brazil Railway Company atravs da subsidiria Lumber localizava-se em Santa Catarina (a partir de 1916), na regio em que hoje est localizado o Municpio de Trs Barras, em uma rea que abrangia aproximadamente 200.000 hectares de valoroso patrimnio distribudo em construes, em propriedades territoriais com reservas florestais e em instalaes industriais. Neste sentido a Southern Brazil Lumber & Colonization Company constituiu-se no maior complexo madeireiro do mundo, pois tambm abrangia outras propriedades e estabelecimentos menores como Vales, So Roque (Calmon) e serrarias no Estado do Paran. No relatrio das operaes da Companhia do ms de abril de 1917, o Diretor, Jayme Bishop, descreveu detalhadamente as operaes de um engenho de serrar ou serraria B de Cachoeirinha, no Estado do Paran, cujas vendas eram feitas conjuntamente com as demais, atravs do escritrio central de Trs Barras. Afirmava que a serraria de Cachoeirinha serra uma mdia de trinta mil ps diariamente, ou seja, oitocentos mil ps por ms, fato que confirma as grandes dimenses do complexo extrativo madeireiro articulado pela Lumber (loc. cit.). Em 17 de maro de 1949, foi aberto um edital de concorrncia, publicado no Dirio Oficial da Unio, colocando venda o patrimnio da Lumber ncorporada pelo valor de CR$ 50.000.000,00. Em 22 de setembro de 1950, o Dirio Oficial publicou proposta de aquisio dos bens da antiga Southern Brazil Lumber & Colonization Company ncorporada. A empresa Cia. de Madeiras del Alto Paran propunha a aquisio da Lumber de Trs Barras pelo preo de CR$ 40.050.000,00, ficando tambm responsvel pelos encargos resultantes da Legislao Trabalhista e referentes ao pessoal e s respectivas indenizaes ocorrentes (Arquivo Particular de Romrio Jos Borelli). Depois de um ano da proposta da empresa adquirinte, a escritura ainda no havia sido realizada. A Lumber ficou paralisada um tempo e mais de 400 operrios foram dispensados todos, com menos de 10 anos de trabalho na referida empresa. 138 Permaneceram aqueles que tinham mais tempo de servio, preenchendo os quadros indispensveis ao funcionamento normal das oficinas e de toda a gigantesca engrenagem. Seguiu-se um perodo de muitas reclamaes e de aes na Justia. 62 A respeito do assunto, uma carta endereada ao Presidente da Repblica, em 15 de outubro de 1951, propunha a formao de uma Sociedade Annima com a Unio, onde os servidores (todos com mais de 10 anos de servio, alguns trabalhando desde o incio da sua construo em 1909) passariam a ser acionistas, transformando em capital-aes os seus direitos de estabilidade (parte do capital- aes seria formado pelas aes ordinrias e parte pelas aes preferenciais). A parte tcnica da Administrao seria eleita entre os servidores e a Unio teria como representante um Diretor com funes de fiscalizao geral sobre todas as atividades. Os servidores relatavam a preocupao com o futuro, os servios paralisados, a maioria dos operrios com parcos ou sem nenhum recurso e o maquinrio se deteriorando sem funcionamento. Faziam crticas e revelavam profunda mgoa quando observavam que os bens dos Estados do Paran e So Paulo foram vendidos atravs de edital de concorrncia, contudo a empresa que havia comprado tais bens, revendeu-os a um preo 300% mais elevado do que o preo da proposta aceita pela Superintendncia. Revelavam tambm que os novos proprietrios da Fazenda So Roque(Calmon) estavam embarcando centenas de vages de madeira serrada, aproveitando a bonana dos mercados compradores e auferindo lucros ciclpicos, quando o resultado econmico em Trs Barras (serraria, fbrica de caixas, fbrica de esquadrias) apresentava dficits regulares todos os meses (Arquivo particular de Romrio Jos Borelli).
3.4.3.2 Fazenda So Roque (Calmon)
62 nmeros processos desta natureza encontram-se no Arquivo Pblico Municipal de Canoinhas. 139 Depois da grande madeireira de Trs Barras, localizava-se em Calmon o segundo maior patrimnio em terras catarinenses que abrangia uma rea de cerca de 16.000 alqueires de terra, com reservas florestais estimadas em mais de 300.000 rvores industrializveis, instalaes (serrarias) para industrializar madeiras e desvio ferrovirio. Figura n. 26: Serraria da Fazenda So Roque, complexo madeireiro extrativo da Lumber
Fonte: Foto do acervo de Joeli Laba
Embora fosse apenas mais um engenho de serrar, das tantas outras madeireiras menores que faziam parte do complexo madeireiro extrativo da Lumber, a serraria da Fazenda So Roque, como se pode observar na imagem, tambm tinha um grande volume de madeira industrializvel. No dia 06 de setembro de 1914, esta madeireira foi queimada pelos sertanejos rebelados. A Fazenda So Roque tambm foi posta venda na publicao do Decreto n. 253, de 18 de fevereiro de 1948, e foi adquirida pela empresa Pinho e Terras, Ltda e ndstria Gropp S/A. Foi adquirida de porteiras fechadas pelo preo de Cr$ 8.550.000,00; foi escriturada no dia 1 o de dezembro de 1950 (Arquivo particular de Romrio Jos Borelli).
3.4.3.3 So Francisco
Na cidade porturia de So Francisco, junto ao ptio da estao ferroviria, a empresa possua uma rea de 15.515,00 m e, nas proximidades, outra com 73.204 m, perfazendo um total de 88.719,00 m. Neste local, encontrava-se um 140 grande depsito para embarque de madeira, uma casa residencial e uma construo que servia de escritrio.
3.5 RESULTADOS COMERCIAIS DA SOUTHERN BRAZIL LUMBER & COLONIZATION COMPANY
Estimativas da quantidade de madeira que a Lumber explorou comercialmente na Regio do Contestado, desde a sua instalao at o ano em que foi nacionalizada, do conta do desaparecimento de milhes de rvores, porm difcil precisar a quantidade, o destino e os lucros auferidos dessa explorao. Um documento importante (constando o ano, a produo, o custo e o lucro) foi localizado no Arquivo particular de Romrio Jos Borelli e permite anlises e concluses sobre os nmeros apresentados. Quadro n. 03: Resultados comerciais da Lumber (1916-1939) Ano produo em ps cbicos custo por mil ps cbicos lucro verificado 1916 31.382.502 41$131 591:407$709 1917 32.802.194 46$297 1.072:652$296 1918 29.157.703 46$497 1.703:368$894 1919 27.808.301 57$521 1.834:456$275 1920 27.411.599 63$674 1.105:742$002 1921 25.229.401 72$046 1:524$695 1922 20.137.601 75$740 268:138$101 1923 23.826.242 77$571 629:631$529 1924 22.072.132 83$399 2.095:141$594 1925 13.851.509 121$109 1.509:483$214 1926 4.797.264 154$587 - 1927 15.528.628 148$877 - 1928 21.217.752 127$948 304:212$384 1929 17.385.199 118$991 1.219:000$807 1930 17.130.989 133$012 - 1931 20.186.021 129$881 - 1932 19.958.154 112$868 - 1933 21.637.571 106$933 355:480$442 1934 17.998.805 111$600 590:007$345 1935 18.689.606 122$106 344:845$354 1936 25.679.677 122$767 1.188:914$776 1937 27.227.351 124$223 2.985:224$608 1938 24.260.129 136$563 2.188:263$864 1939 22.887.825 136$528 326:263$749 Fonte: Resumo histrico da Companhia Lumber Incorporada. Relatrio de trabalhos. Arquivo particular de Romrio Jos Borelli
Os resultados comerciais, que aparecem nos balanos, mostram a Contabilidade somente a partir do ano de 1916; ainda, encontra-se o seguinte 141 quadro, disposto em ordem pelo ano, pela produo em ps cbicos, com os custos e com os lucros verificados, segundo os registros nos arquivos disponveis 63 : A inexistncia de registros dos primeiros anos de funcionamento (da concluso da sua instalao no final do ano de 1911 at 1916 - existe somente a descrio de Lloyd que aponta lucros ainda nos anos de 1912 e 1913), a prpria lgica dos custos elevados e o tempo gasto para a construo de empreendimento de tamanha envergadura em pleno Serto Catarinense supem que, neste primeiro perodo, os lucros no obtiveram tanta expresso, e a fase de abertura do mercado exterior tenha alcanado xito a partir de 1916, quando, nos 10 anos que se seguiram, a serraria produziu um montante de 598.300 m 3 de madeira serrada com o conseqente lucro de 10.811.546$309. Com a serraria estruturada e em pleno funcionamento at o segundo semestre de 1925, esgotaram-se as reservas de pinheirais nativos nas proximidades de Trs Barras. At esta data, a serraria de Trs Barras auferiu um lucro de 10.811.546$309. importante lembrar que, nesta mesma dcada (de 1916 at 1926), foram feitos investimentos em estrutura na Fazenda So Roque em Calmon, em engenhos de erva-mate e at mesmo em pequenos engenhos de serrar, como nas localidades de Presidente Penna, Mattos da Costa, Vales e F. Schimidt (Trs Barras). Cabe referir que a necessidade de mudana de toda a maquinaria direcionou a nova etapa de explorao para as margens do Rio So Joo, aumentando significativamente os gastos e a necessidade de se firmar um contrato com a Rede Viao Paran-Santa Catarina, para poder se utilizar a ferrovia em um desvio entre as proximidades do Rio So Joo e Trs Barras; exigia-se, deste modo, uma taxa para reembolso da Rede e o encarregado do desvio e dos trens (Arquivo particular de Romrio Jos Borelli). A explorao nesta nova rea comeou nas proximidades do desvio, subindo o Rio So Joo, e o aumento das despesas foi visvel na Contabilidade por dois anos seguidos, quando, pela primeira vez, aparecem prejuzos, sendo de 1.046:604$248, no ano de 1926, e de 715:723$090, em 1927. Cabe ressaltar que os
63 Arquivo particular de Romrio Jos Borelli Relatrios dos trabalhos da Southern Brazil Lumber & Colonization Company (incorporada) encaminhados ao Superintendente das Empresas ncorporadas ao Patrimnio Nacional 142 prejuzos destes dois anos seguidos no se devem apenas ao elevado custo da explorao nos primeiros anos, mas tambm superproduo de pinho dos anos de 1925 e 1926. Os altos custos motivaram longos estudos no sentido de encurtar as distncias, e a soluo foi a construo de uma ferrovia particular, ligando o engenho central de Trs Barras diretamente com a zona de explorao. Com a mudana, foi possvel a explorao dos pinheirais da margem direita do curso superior do Rio So Joo, estendendo-se mais para leste, onde existiam pinheirais de primeira ordem. Voltaram, pois, os lucros em 1928 e 1929, totalizando nestes dois anos 1.523:213$191 (Arquivo particular de Romrio Jos Borelli). Nos trs anos que se seguiram, novos prejuzos so registrados (1.730:945$255), com possvel conexo nos resultados das demais serrarias e engenhos de erva-mate, porque o mercado crescente de fbrica de caixas no Pas consumia cerca de 3.000 vages de pinho para caixas de laranja por ano, por exemplo. O fato que, de 1935 at 1939, os lucros foram crescentes, diminuindo apenas no ltimo ano. necessrio referir a mudana das operaes para outro setor, o do Rio Canoinhas. Em 1939, foi cortado o saldo de pinheiros da Estiva, simultaneamente com os pinheiros do Alto do Canoinhas (loc. cit.). Com a ecloso da Segunda Guerra Mundial, encerraram-se as exportaes da Lumber para a Europa. Os negcios despencaram e as incertezas no cessaram com a continuidade do conflito mundial e com a ocupao da Frana, onde a Lumber tinha um importante escritrio de vendas. No ano de 1940, foi assinado o decreto que nacionalizou a Lumber e, definitivamente, isso marcou o eplogo da maior multinacional madeireira brasileira.
3.6 A NACIONALIZAO DA SOUTHERN BRAZIL LUMBER & COLONIZATION COMPANY
Em 08 de maro de 1940, atravs do Decreto-lei n. 2073, assinado pelo Presidente da Repblica, Getlio Dornelles Vargas, e ratificado pelo Decreto-lei n. 2436, de 22 de julho do mesmo ano, a Brazil Railway Company e suas subsidirias, incluindo a Southern Brazil Lumber & Colonization Company, 143 instalada em Trs Barras, foram incorporadas ao patrimnio nacional. Segundo Fernando Tokarski, a dvida deixada pelas empresas era, em valores da poca, de Cr$ 152 milhes e 983 mil (TOKARSK, 2004). Aps a incorporao ao patrimnio nacional, o relatrio dos quatro anos seguintes apresentou um lucro de Cr$ 13.344.162,64, resultante da venda de madeira, principalmente para os Estados de So Paulo e Rio de Janeiro, no Brasil, e Buenos Aires, na Argentina, lucros que eram reforados pela venda de laminados e, principalmente, pelas terras descritas como lotes rurais e urbanos em todas as propriedades encampadas. Nos relatrios da diretoria, enviados para a Superintendncia das Empresas ncorporadas ao Patrimnio Nacional, constam as receitas e as despesas nos perodos aps a incorporao. L esto registradas as maiores receitas provenientes de lucros obtidos com armazns em Trs Barras, Carijs, Rio da Serra e Calmon, o arrendamento de propriedades em diversos locais, o auto caminho, a extrao de areia, os produtos vendidos como alcatro e carvo vegetal, as entradas e contribuies de scios do cinema de Trs Barras, a receita do hospital e da farmcia, os servios de carpintaria e de marcenaria, os produtos de destilaria e de petrleo de So Mateus no Paran e, sem dvidas, as maiores receitas provenientes da venda de madeira, de caixas de madeira, de laminados e de lotes rurais e urbanos. Entre as despesas, esto os impostos, a fiscalizao, os seguros, o combate contra os incndios, as reservas para a depreciao da madeira, os impostos de indstrias e profisses, as despesas de Administrao, de transporte, de almoxarifado e de matrias-primas, as comisses de vendas de terra e de madeira, as despesas com pesquisas e, principalmente, os salrios de um grande nmero de trabalhadores, executores das mais variadas tarefas e ofcios. A complexidade pode ser percebida ao se analisar as aes trabalhistas movidas por antigos operrios contra a Superintendncia das Empresas ncorporadas ao Patrimnio da Unio. 64
64 Na dcada de 1950, tramitaram vrias aes trabalhistas que se encontram no Arquivo Pblico de Canoinhas. Em um deles, Victorino Genezio Ferreira e outros 100 trabalhadores reclamam indenizao e salrios devidos, j que no foram efetuados a partir da encampao pelo Ministrio da Guerra e todos eram antigos funcionrios da extinta Lumber. Em outro processo, Ernesto Oliver Bishop e outros 72 antigos funcionrios reclamam gratificaes no-pagas, definitivamente incorporadas aos salrios que vinham sendo pagos h 15 anos. Ainda existem outras que 144 Depois de nacionalizada ou incorporada a Lumber ainda atuou por algum tempo, explorando madeira adquirida de particulares. Um levantamento dos contratos feitos com fazendeiros e registrados no Cartrio de Paz de Curitibanos, 65
revela dados dos negcios que envolviam milhes de rvores em reas de terra onde primeiro era explorada industrialmente a madeira e, depois, as terras comercializadas ou regularizadas as posses. A partir do incio do ano de 1938, aparecem os tratados de escritura pblica de arrendamento, assinados pelo procurador da Southern Brazil Lumber & Colonization Company ncorporada, Joo Pacheco Sobrinho, da Vila de Trs Barras, que percorria a regio, comprando o direito de extrao de pinho, de imbuia, de cedro e de outras madeiras para a explorao industrial e comercial. Diversas condies eram estabelecidas nos contratos, entre outras, as rvores cortadas deveriam medir 1m acima do solo ao serem derrubadas; 66 alm disso, o valor estabelecido era de 3$000 (trs mil ris) cada uma, e seriam marcadas na presena de ambas as partes; ainda, o prazo de retirada ficava estabelecido em dez anos, podendo ser prorrogados por mais dez. Ao assinarem os documentos do arrendamento, o procurador tambm reservava o direito da Lumber ncorporada, de ainda construir linhas, caminhos, estradas de rodagem, de vias frreas, sem condies de indenizar se isso causasse qualquer dano ao terreno. Podia tambm tirar lenha, n de pinho e dormentes, do terreno arrendado e, ainda, o direito de sublocar a quem lhe conviesse, pois o direito do contrato continuava valendo, mesmo em caso de transmisso do terreno por qualquer ttulo (Cartrio de Curitibanos, Escritura para a Extrao de Madeira). Na Vila de Lebon Rgis, distrito da Comarca de Curitibanos, no ano de 1942, foram registrados contratos para o custeio de legislao de posse entre a Lumber ncorporada (atravs do procurador Joo Pacheco Sobrinho) e ocupantes de
reclamam indenizao e salrios atrasados, equiparao de salrio conforme funo exercida, aumento de salrio, alegao de demisso em situao de estabilidade, entre outros. 65 Arquivo do Cartrio de Paz de Curitibanos (na poca, municpio de ampla abrangncia na regio, inclusive de grande parte das terras da Lumber; deste municpio se desmembraram, mais tarde, Porto Unio, Caador e Campos Novos) com registros de Herclio Moreira da Silva que foi oficial do Cartrio de Ttulos e Documentos de 1911 a 1951. 66 1 m corresponde a 15 (quinze polegadas) inglesas. 145 fazendas localizadas nas redondezas da referida Vila, na poca, pertencentes ao Municpio de Curitibanos. 67
Os contratos de custeio de legislao de posse tinham por objetivo a legalizao das terras com a emisso dos ttulos definitivos aos ocupantes, custeados pela Lumber que, em contrapartida, exploraria as madeiras existentes na propriedade. Vrias clusulas e condies eram lavradas nos contratos, entre outras, as mais significantes: a Lumber provia o custeio de todos os servios e trabalhos judiciais e extrajudiciais concernentes legislao das ditas reas situadas nos mencionados lugares, inclusive os advogados para os servios profissionais, at o custeio de quanto o mais for necessrio para que sejam levados at seus ulteriores termos o respectivo processo de concesso e conseqente extrao dos ttulos definitivos que invistam os outorgantes do direito de propriedade aquelas glebas de suas posses Os ocupantes das terras (outorgantes) se obrigam a entregar ou fornecer a Lumber (outorgada), documentos, dados, rol de testemunhas, com as quais se possam esclarecer e comprovar as reas a serem adquiridas do Estado, segundo considerem suas posses. Com a emisso do ttulo definitivo concedido aos outorgantes sobre as reas de posse, as despesas e emolumentos devidos j estaro pagos e proceder em seguida, a conta para a verificao da cota (quota) que caber a cada um dos outorgantes. Este rateio inclua todas as despesas dos pespectivos autos de legitimao, desde advogados e outras despesas (Cartrio de Lebon Rgis, Escritura de Contrato para Custeio de Legislao e Posse). O rateio das despesas era estabelecido na clusula quarta, em que o reembolso da Lumber era garantido atravs de levantamento feito por pessoas de confiana que procediam contagem de rvores de pinho, imbuias, cedros e outras essncias que convenham na gleba titulada. As clusulas seguintes tratavam do dimetro das rvores para fins de explorao industrial a serem retiradas. Todas deveriam ter em altura o correspondente a um metro acima do solo ou o dimetro de 15 polegadas inglesas. O valor de cada rvore deste porte ou maior, para clculo de pagamento das despesas, seria de trs mil ris (3$000) (loc. cit.).
67 Cpias de documentos de cartrios pertencentes ao pesquisador Jos Roberto Zenedo de Florianpolis, onde constam cinco contratos para custeio de legislao e posse, escrituras de arrendamento e escrituras de compra e venda de glebas de terra, todas de reas prximas a Lebon Rgis, Comarca de Curitibanos. 146 Quando o nmero de rvores existentes na gleba no fosse suficiente para cobrir as despesas previstas no contrato, os outorgantes deveriam saldar as dvidas em moeda corrente, dentro de 90 dias, contados da data do servio, por carta, que lhe for dirigida pela Lumber. Em caso de saldo credor, o contrato estabelecia que a Lumber, no mesmo prazo, pagaria os valores conforme previsto no contrato. Os prazos para a retirada das rvores de cada gleba titulada eram de dez anos, contados da data da transcrio do ttulo de domnio expedido pelo Governo do Estado, correspondente a cada rea, no Cartrio do Registro de mveis, da Comarca de sua situao, podendo ser prorrogado pelo tempo que convir outorgada (Lumber ncorporada), mediante aviso desta, por carta, aos outorgantes (loc. cit.). Ainda, a Lumber ncorporada estabelecia uma clusula, reservando-se o direito de construir arranchamentos provisrios para seus trabalhadores, assim como carreadores, caminhos ou estradas de rodagem ou de ferro e por eles transitar livremente sem que os outorgantes possam opor qualquer embarao a esses atos e servios ou obter qualquer indenizao por eles, alm do preo. O tabelio procedia leitura diante das partes e de testemunhas que reciprocamente aceitavam e assinavam. Pelos registros existentes encontrados nos cartrios da regio, foi possvel destacar os contratos de arrendamento para retirar madeiras de terras j tituladas ou mesmo contratos para o custeio de legislao com a garantia da retirada das madeiras aps a tramitao do processo de legalizao das posses. A respeito disso, alguns chamam a ateno pela quantidade de terra e pela localizao. Em dez contratos registrados no Cartrio de Curitibanos, na dcada entre 1942 e 1952, a soma total das reas contratadas pela Lumber Incorporada, para a retirada da madeira, perfaz o valor de 21.558.230,43 (vinte e um milhes, quinhentos e cinqenta e oito mil duzentos e trinta metros e quarenta e trs decmetros quadrados de terra). As imensas reas de terra que envolviam os contratos de arrendamento para a retirada da madeira ficavam nas localidades denominadas Caadorzinho, Timb, Santa Maria, So Sebastio, Serra do Espigo e, principalmente, no distrito de Caraguat. Qualquer clculo para precisar a quantidade de madeira retirada destas terras fica vago, pelas peculiaridades de cada mata, pela sua maior ou menor 147 densidade e pela incidncia de araucrias ou de outras essncias industrializveis. Uma idia vaga pode ser extrada, ao se analisar um nico contrato, assinado em 1944, entre uma madeireira da regio e a Lumber Incorporada: j haviam sido retiradas milhares de rvores no dimetro exigido pela Lumber, porm o contrato ainda indicava que restava uma soma de mais de 80.000 rvores para serem retiradas e industrializadas (Cartrio de Curitibanos, Escritura para Extrao de Madeira).
3.7 A EXPLORAO MADEIREIRA DA SOUTHERN BRAZIL LUMBER & COLONIZATION COMPANY INCORPORADA
A Histria da explorao madeireira em Santa Catarina mantm estreita relao com a Histria da Lumber e da colonizao, sendo possvel algumas inferncias quanto ao perodo em que a empresa atuou nas terras contestadas. Entre 1900 e 1910, observa-se uma atividade crescente, passando de 189:094$210 para 626:402$911. Neste perodo, aproximadamente, 3% da receita catarinense advinha da madeira (ALMEDA, 1979). Com a instalao da Lumber, grande o aumento da produo e da exportao, elevando os ndices, com algumas variveis em determinados momentos (diminuiu durante a Primeira Guerra Mundial e no contexto da quebra da Bolsa de Valores de Nova Yorque em 1929), sendo possvel reconhecer a expanso e a importncia econmica nos anos que antecedem sua nacionalizao, chegando, a partir de 1932, a um crescimento vertiginoso. Os ndices do perodo (1910 a 1930) elevam-se, pois, a mais de 8%. Um importante documento encontrado no Arquivo particular de Romrio Jos Borelli foi escrito pelo contabilista em 25 de maro de 1945 e destacava o estoque de madeiras, os problemas com o transporte e, principalmente, a emisso das guias de autorizao do nstituto Nacional do Pinho. A situao do estoque de madeira, na poca, era a seguinte:
148 Madeira serrada no estoque ...................................................... 1.200 vages Caixas prontas no estoque ......................................................... 18 vages Pedidos de caixa a executar ...................................................... 70 vages Pedidos de resserrados e beneficiados a executar ................... 43 vages Pedidos de madeira bruta em carteira ....................................... 1.542 vages Vages para madeira bruta requisitados ................................... 1.138 vages Vages a requisitar para os pedidos de madeira bruta .............. 404 vages
Na soma total, eram necessrios 4.415 vages para dar vazo produo existente at ento. Eram necessrias 404 guias para requisitar os vages necessrios para o transporte da madeira dos pedidos em carteira. Recebendo mensalmente 43 guias, das quais pelo menos 8 eram reservadas para os pedidos de madeira de Buenos Aires, somente em abril de 1946, haveria a possibilidade de aceitar novos pedidos de madeira ou de destinar algumas das guias para o beneficiamento com forros, tacos e caixas (Arquivo Particular de Romrio Jos Borelli). A situao exposta pelo contabilista retratava as redues sucessivas da quota de produo autorizada pelo NP (nstituto Nacional do Pinho), que impossibilitava a venda da madeira, devido falta de transporte. Aquele relatava que era possvel aumentar a produo para 100 ou mais vages mensais, contudo, a madeira ficaria no estoque sem possibilidade de ser embarcada, sujeita deteriorizao. A soluo para o caso, apontada no referido documento, era o aumento da cota de produo autorizada, que poderia ser fornecida pelo NP e resolveria tudo: a situao crtica criada pela alta do custo da produo apressaria o embarque dos pedidos em carteira e daria margem para deixarmos uns vages mensais para a fbrica de caixas. Continuava o referido contabilista, afirmando que nos anos da maior queda dos preos da madeira, o lucro obtido na venda foi, muitas vezes, maior do que o obtido das vendas dos armazns, da explorao das propriedades. Aps a limitao das cotas, a situao ficou cada vez pior. O descontrole vinha, pois, de diversos fatores, pois a produo boa e barata dependia da qualidade das toras cortadas e do controle das despesas de produo. O preo de venda, vantajoso, estava preso situao do mercado e habilidade dos vendedores. O custo da 149 produo e o preo de venda os dois fatores da Economia ficavam fora do controle (Arquivo particular de Romrio Jos Borelli). No mesmo documento, h dados interessantes sobre a capacidade produtiva e sobre o aproveitamento da madeireira Lumber, naquele contexto, j incorporada. Assim, a capacidade da serraria de trs Barras era superior a 200 vages de madeira serrada por ms; pelas estatsticas, verificava-se uma produo anual de 3.000 vages; a mdia geral superava 200 vages mensais. Destes dados advm a possibilidade de se calcular, aproximadamente, a quantidade de madeira extrada e beneficiada pela Lumber Incorporada. Antes do ano de 1939, o NP no restringia as autorizaes para o transporte de madeira ou as guias que acompanhavam a carga. Era possvel aumentar a produo conforme os pedidos e otimizar as vendas de acordo com os valores de mercado, ou seja, quanto melhor os preos no mercado, maior a produo. Os custos oscilavam de acordo com a finalidade da coleta e do transporte de toras do mato para a serraria, que representavam a maior parte das despesas de produo. Portanto, era possvel acelerar a produo quando o mercado demandava mais produtos e o preo fosse vantajoso.
Figura n. 27: Transporte ferrovirio de toras para a serraria
Fonte: Postal de Luz Sczcherbowski. Acervo do nstituto Histrico e Geogrfico de Santa Catarina
150 A partir de 1940, a produo ficou sujeita quota estabelecida pelo NP que atribuiu, a princpio, a quantia de 172,3 vages, sem limitar a produo de madeira de lei, que foi de 25 vages mensais aproximadamente. Em setembro de 1940, a quota ficou reduzida para 129 vages depois, em maro de 1943, a madeira de lei ficou includa na quota do pinho. Em julho de 1943, veio mais uma reduo para 84 vages. Em setembro de 1944, no houve quota alguma e, a partir de outubro de 1944, comeou a vigorar a quota de 42 vages. A diretoria da Empresa reduzia o volume da produo de acordo com as imposies do NP; alm disso, pleiteou sob diversas justificativas o aumento da quota, todavia no foi, no entanto, bem sucedida em relao a isso (Arquivo particular de Romrio Jos Borelli). A reduo da produo para o nvel da quota de 42 vages mensais causou um sensvel aumento do custo, e a continuao do regime reduzido das cotas, resultava em grandes prejuzos. O movimento da serraria ficou reduzido a 20% da sua capacidade normal de trabalho e a fbrica de caixas chegou paralisao (loc. cit.). Cabe referir que se torna possvel entender tal situao, tomando-se os dados da produo a partir de 1936, por custo e por quantidade: Quadro n. 04: Produo e custo da madeira ANO PRODUO CUSTO POR ML PS2 1936 25.752.377 Cr$ 122,77 1937 27.227.351 Cr$ 124,22 1938 24.260.129 Cr$ 136,56 1939 22.887.825 Cr$ 136,53 1940 19.600.624 Cr$ 153,49 1941 18.524.982 Cr$ 150,51 1942 17.567.781 Cr$ 198,58 1943 17.029.252 Cr$ 220,05 1944 13.160.904 Cr$ 309,93 1945 janeiro 665.613 Cr$ 590,93 1945 fevereiro 488.471 Cr$ 842,88
Fonte: Resumo histrico da Companhia Lumber ncorporada. Relatrio de trabalhos. Arquivo particular de Romrio Jos Borelli 151 O custo da madeira no estoque, em 28 de fevereiro de 1945, foi de Cr$ 311,97 por 1.000 m 2 , que correspondia s seguintes importncias para a madeira embarcada:
Quadro n. 05: Custo da estocagem de madeira PNHO MBUA PNHO 4 a
Vago em Trs Barras 315,00 315,00 125,00 Vago So Francisco 410,00 490,00 230,00 So Francisco 465,00 545,00 275,00 Rio ou Santos 690,00 805,00 500,00 Recife 915,00 1.030,00 725,00 Vago Barra Funda 620,00 735,00 425,00 Fonte: Resumo histrico da Companhia Lumber ncorporada. Relatrio de trabalhos. Arquivo particular de Romrio Jos Borelli
Alm dos detalhes da produo e dos custos da madeira, os relatrios apontam outras despesas como a comisso dos vendedores, que era de 3%; os impostos de vendas e de consignaes, de 1,4% sobre o valor da respectiva fatura; o desconto para o pagamento vista de 3%; as taxas do NP e outras despesas como a cobrana, as despesas de Administrao e de seguros da empresa, e que faziam os preos oscilar entre CR$ 125.000,00 e CR$ 130.000,00 mensais. Como continuou em vigor o regime da quota de 43 vages mensais, o custo do estoque em 30 de junho de 1945 era de CR$ 365,00 aproximadamente e, em dezembro de 1945, atingiu CR$ 425,00. Dos pedidos, a executar, alguns realizados em anos anteriores, quando o preo do custo da produo era mais baixo, aqueles so destacados com inexistncia de lucro e dariam prejuzos caso fossem executados. A insistncia, na soluo proposta pelo documento, era o aumento dos vages e o imediato aumento da produo autorizada, que traria a soluo do problema, pois, alm do alvio econmico, no seria necessrio cancelar os pedidos j recebidos. Deste modo, o aumento do volume de produo automaticamente reduziria o custo da produo e dimunuiria o custo de estocagem. 152 Caso fosse autorizado o aumento da produo, ainda ficaria pendente o problema da matria-prima, j previsto e discutido no relatrio da diretoria do ano de 1941. A soluo, deste ltimo problema passava pela construo de ramais ferrovirios e pela instalao de estrutura de funcionamento para toda empresa. Trilhos deveriam, pois, ser estendidos nos rumos do alto da Serra do Espigo, onde se registrou a existncia de cerca de 8.000 rvores nos terrenos de M. Brandenburgo; 15.000 rvores, no Todo de Cima; eram, desta forma, 23.000 rvores ao todo que, ao ser destinada uma parte de toras para a fbrica de laminados, dariam cerca de 20.000.000 de madeira serrada. Caso o NP aumentar a quota de produo autorizada para 85 vages, ou seja, para 1.000.000 mensais, isso representaria mais vinte meses de produo. Como apontam os documentos, a Lumber Incorporada continuou atuando na explorao madeireira, embora em ritmo cadenciado, diminuindo at parar completamente, quando todo patrimnio foi vendido. Nos ltimos tempos de atuao, a Lumber Incorporada foi diminuindo as atividades, por diversas razes, entre outras, podemos apontar: a diminuio das florestas intactas de excelente qualidade para a indstria; os altos custos da infra-estrutura com extenso dos trilhos para dentro das matas virgens, do mesmo modo que foi feito nas proximidades da cidade-empresa americana de Trs Barras; os mercados externos e internos, antes abertos e lucrativos, com uma rede de subsidirias da Brazil Railway Company, depois de 1939, ficaram sujeitos s circunstncias da Segunda Guerra Mundial; as limitaes impostas pela legislao, que atuou na conteno do avano predatrio sobre a floresta ombrfila mista. Depois do NP, veio o BDF e, recentemente, o BAMA. Na atualidade, a pauta recorrente dos rgos governamentais e das incontveis organizaes no-governamentais so as questes ambientais. Depois da Lumber, surgiram outras serrarias em toda a Regio do Contestado. Um grande volume de madeira serrada foi industrializado na referida Regio e escoado, principalmente, para o centro do Pas. Com efeito, o comrcio de madeira dos emergentes centros urbanos do Brasil Meridional foi servido, principalmente, com a madeira das araucrias daquela Regio. Em estudo recente, Cludio R. Silveira (2005) destacou a Histria da indstria da madeira da Serra Catarinense da dcada de 1940 at 2005 e registrou a 153 importncia desta atividade, entre outras, na construo de Braslia. Mais do que nunca, qualquer abordagem sobre a Histria do Contestado passa por um estudo aprofundado do contexto vivenciado anteriormente e pela compreenso das transformaes que estavam acontecendo na Regio, mas que alcanavam propores mundiais. No h dvida de que a instalao e a atuao da Southern Brazil Lumber & Colonization Company (1911 a 1939), da Southern Brazil Lumber & Colonization Company Incorporada (1940 a 1952), colonizadoras e complexo extrativo na Regio do Contestado, foram fatores decisivos na deflagrao da crise que levou luta armada.
3.8 A EXTINO DA SOUTHERN BRAZIL LUMBER & COLONIZATION COMPANY INCORPORADA E A CRIAO DO CAMPO DE INSTRUES DO EXRCITO
Em virtude da concorrncia pblica, autorizada pela Lei n. 250, de 18 de fevereiro de 1948, a Superintendncia das Empresas ncorporadas ao Patrimnio Nacional procedeu alienao dos bens do acervo da Southern Brazil Lumber & Colonization Company, incorporada ao Patrimnio Nacional, a um consrcio de firmas licitantes. A Lumber foi incorporada ao Patrimnio Nacional pelo Decreto Lei n. 2073, de 08 de maro de 1940, e pelo Decreto-lei n. 2436, de 22 de julho do referido ano. O Artigo 6 do Decreto n. 2436 criou uma Comisso de Levantamento e Avaliao, composta por vrios membros 68 que, entre outras imcumbncias, tranferiu os bens da Southern Brazil Lumber & Colonization Company para o Ministrio da Guerra.
68 Na reunio realizada na sala da Superintendncia das Empresas ncorporadas ao Patrimnio Nacional, no Edifcio A Noite, na Praa Mau n. 7, no Rio de Janeiro, estiveram presentes: Andr Carrazzoni Superintendente das Empresas ncorporadas ao Patrimnio Nacional; Cel. Sady Martins Viana representante do Ministrio da Guerra; Marcos Konder Reis representante do Estado de Santa Catarina; Alberto Dalcanalle representante dos adquirentes do Acervo da Southern Brazil Lumber and Colonization Company e ainda os representantes da Comisso de Levantamento e Avaliao do Patrimnio da Lumber: Hortncio de Alcntara Filho, Ary O'Leary Paes Leme, lvaro Caldas e Olympio Florez. (Arquivo Pblico de Canoinhas) 154 Em julho de 1952, o referido Ministrio recebeu dos representantes da Superintendncia das Empresas ncorporadas ao Patrimnio Nacional os bens da extinta Lumber com a seguinte ressalva: Desses bens dever ser posteriormente permutado pelo Ministrio da Guerra com o Governo do Estado de Santa Catarina, em troca de reas correspondentes, as seguintes glebas: a) Corredeira do Cip, lha do Canivete, Canivete Rio da Ponte e Toldo de Cima, glebas essas correspondentes da propriedade denominada Trs Barras. b) O remanescente da propriedade territorial de Vales (...) inclusive os lotes urbanos e rurais nos povoados de Vales, Pacincia e Felipe Schmidt, em Santa Catarina. (...) Tambm se transfere para o Ministrio da Guerra, a fim de ser ulteriormente permutado por rea correspondente com o Governo do Estado de Santa Catarina, o remanescente da gleba n. 8 (...) situado em So Francisco do Sul, Santa Catarina... (Arquivo Pblico de Canoinhas Reclamao trabalhista Recorrente: Superintendncia das Empresas ncorporadas ao Patrimnio da Unio). 69
Figura n. 28: Escritrio central da Lumber, hoje, Comando do Campo de nstrues do Exrcito brasileiro
Fonte: Foto do autor
69 A transferncia dos bens de Trs Barras, Felipe Schmidt e So Francisco, situados em Santa Catarina, para o Ministrio da Guerra, de acordo com a escolha feita pela 5 Regio Militar, foi autorizada pelo Presidente da Repblica em despacho do dia 22 de agosto de 1952 e publicado no Dirio Oficial n. 195, de 23 de agosto de 1952, tendo sido assinado em 02 de setembro o Termo de Transferncia dos bens e, em 11 de setembro, o Termo de Entrega. 155 Com a encampao por parte do Ministrio da Guerra, foi criado o Campo Militar de nstrues Marechal Hermes, de Trs Barras. Segundo o documento citado acima, o Ministrio da Guerra, de longa data, vinha pretendendo obter o acervo da Lumber, situado em Trs Barras, para nele instalar o aquartelamento das tropas e sees anexas (...) para a formao de um grande campo de manobras (Arquivo Pblico de Canoinhas). Aps dcadas de funcionamento como sede do complexo industrial madeireiro e colonizador, ligando Trs Barras com outros escritrios em Nova York, Londres, Paris, So Paulo, Rio de Janeiro, Montevidu e Buenos Aires, de 1952 at hoje, funciona, no mesmo prdio, o comando do Campo de nstruo Marechal Hermes, vinculado ao Exrcito brasileiro. A Southern Brazil Lumber & Colonization Company era, com efeito, parte do passado. Neste sentido as antigas instalaes industriais cederam lugar ao campo das manobras militares. Os operrios, por sua vez, na maioria descendentes de imigrantes poloneses, ucranianos e dirigentes ingleses, espalharam-se pela regio. Restaram, assim, as memrias e os acontecimentos de quatro dcadas da Histria marcante do gigante complexo madeireiro da Regio do Contestado. No prximo captulo, a abordagem alcana o cotidiano dos trabalhadores da Southern Brazil Lumber & Colonization Company, antes e depois de incorporada ao Patrimnio Nacional, no complexo extrativo madeireiro de Trs Barras, e as narrativas e memrias de antigos trabalhadores remanescentes e de seus descendentes.
4 A CIDADE-EMPRESA E O AMERICAN WAY OF LIFE NA REGIO DO CONTESTADO
A Brazil Railway Company veio galvanizar toda a regio, chamando-a para a vida. Reginal Lloyd (1913)
4.1 A CIDADE-EMPRESA AMERICANA EM TRS BARRAS
Company town ou cidade-empresa, segundo Charles Gauld, aquela que se origina de ncleo urbano construdo por empresas de grande porte para viabilizar seus projetos de implantao e desenvolvimento (GAULD, 2006, p. 204-205). So vrios os exemplos de cidades brasileiras que nasceram desta forma. Por iniciativa de Percival Farquhar, podem ser citadas Porto Velho, no Norte do Pas, e Trs Barras, 70 no Sul, onde foi instalada a Southern Brazil Lumber & Colonization Company. Porto Velho foi edificada para servir de base para a construo da famigerada Ferrovia Madeira-Mamor, iniciada por ordem de Farquhar em 1908. Tornou-se uma cidade americana em plena Floresta Amaznica, contando com campo de beisebol e dotada de gua encanada e esgoto, fbrica de gelo, tinturaria, energia eltrica e iluminao, uma grande estao Marconi sem fio e uma srie de jornaizinhos semanais publicados pelos 85 americanos que ali residiam (bid., p. 182).
70 Trs Barras pertenceu ao Estado do Paran at o ano de 1916, quando, atravs do acordo das questes de limites entre o Paran e Santa Catarina, tornou-se distrito de Canoinhas, passando definitivamente para a jurisdio catarinense. 157 Figura n. 29: Cidade-empresa da Lumber em Trs Barras
Fonte: Acervo da famlia de Claro Gustavo Jansson
Enquanto Porto Velho foi erigida no meio da Floresta Amaznica entre as seculares castanheiras, cerejeiras e itaubeiras, Trs Barras teve o seu processo incipiente de construo na floresta ombrfila mista no interior de sua singular mata de araucrias. No horizonte, sobressaem-se os pinheiros e, no centro, as casas dos operrios e dirigentes onde se pode observar os primeiros traos do processo de edificao da cidade-empresa. A edificao do ncleo urbano, onde foi erigida a Lumber, em Trs Barras, no pode ser equiparada com Porto Velho, que contava com aproximadamente 2.700 trabalhadores e quase uma centena de dirigentes americanos. No entanto, no Sul, todos os trabalhos tambm passavam pelo crivo atento dos dirigentes que organizaram o seu modo e o seu estilo de trabalho e de vida, com as instalaes industriais, com hospital e at cinema. Cabe salientar que a construo das instalaes do complexo industrial extrativo madeireiro de Trs Barras comeou no ano de 1909. Em 1908, Dionsio e o filho Paulo Noga deixaram a Ucrnia e, no ano seguinte, trabalharam na construo da Lumber. Valdemiro Noga, filho de Paulo, nasceu no Brasil e trabalhou na 158 companhia americana de 1930 at o fim das atividades madeireiras e colonizadoras. Exerceu o cargo de foguista, de operador de Donkey e, por ltimo, foi operador do grande guincho n. 4. Foi operando esta mquina que Valdemiro recebeu a ordem para derrubar a ltima das caldeiras que, durante quase meio sculo, forneceu energia para o funcionamento geral da cidade-empresa americana: um dia, resolveram desmanchar as caldeiras, tirar as caldeiras e tinha tanque ali e ento o coronel me chamou. Eu estava no guincho de manobras (...). Para tirar esta caldeira e tanque, achei diferente. S desmanchar a parede e fazer linha para vago entrar na rea da caldeira e com o cinturo rolar no vago (Depoimento de Valdemiro Noga). Tombou, deste modo, o ltimo dos alicerces de funcionamento industrial da Companhia que imps um ritmo de trabalho e de vida at ento desconhecido na regio. Enquanto em Porto Velho a comemorao do dia 04 de julho, no ano de 1909, foi feita em uma das construes prximas ao porto e diante de uma grande bandeira americana que tinha sido feita em Santo Antnio por uma senhora brasileira numa mquina de costura Singer (GAULD, 2006, p. 183), em Trs Barras, no ano que iniciou o funcionamento da Lumber, houve grande comemorao e, sob a bandeira americana desfraldada, autoridades e jornalistas assistiam os divertimentos e solenidades com que seria comemorada a data que relembra um dos mais memorveis fatos da Histria poltica do mundo (Folha da Tarde, 1912). A servio do referido jornal, um reprter viajou no trem que conduziu o engenheiro Quellennec 71 e sua esposa, alm de figuras ilustres do cenrio poltico, como Affonso Camargo 72 , Vice-Presidente do Estado, Niepce da Silva, Secretrio de Obras Pblicas, e Edmundo de Oliveira, representando o Ministro da Viao, para participarem das comemoraes do dia 04 de julho em Trs Barras. Alm de descrever a viagem, registros importantes sobre a cidade-empresa americana foram realizados pelo reprter.
71 Edouard Quellennec, engenheiro que trabalhou no Canal de Suez, foi nomeado engenheiro-chefe na construo dos molhes no Porto de Rio Grande (GAULD, 2005, p. 236). 72 Mais tarde, dois participantes desta viagem tiveram sria divergncia. Niepce da Silva criticou a atuao de Affonso Camargo por seus negcios com a Lumber e a sua condio de advogado oficialda Companhia americana. Camargo defendeu-se com um discurso, publicado no Dirio de Curitiba no dia 21 de fevereiro de 1914, explicando a sua condio de advogado das Companhias South Brazilian e Lumber Company argumentando sobre as suas atividades profissionais. 159 Admirado com os festejos, o referido jornalista destacou que por toda a parte via-se flutuar a bandeira estrelada. Ao observar a indstria madeireira, frisou que essas instalaes, pela maneira porque foram feitas e pela nao formidvel que representam, constituem, incontestavelmente uma dessas manifestaes da atividade norte-americana, a que, certamente, no nos achamos aqui habitual. Destacou o colosso mecnico e a potncia instalada, ao declarar que para se ter uma idia do potencial industrial da serraria, basta dizer que diariamente so ali serrados cerca de trezentos metros cbicos de madeira. O servio todo feito mecanicamente (Folha da Tarde, 1912). Figura n. 30: Comemorao de 04 de julho
Fonte: Arquivo particular de Romrio Jos Borelli Alm do destaque do jornal da capital paranaense sobre as comemoraes da ndependncia americana, vrios depoentes tambm se referiram aos festejos. Na festa de comemorao do dia 04 de julho todos participavam e tinha churrasco. No Natal, todos tambm ganhavam presentes: uma cesta era distribuda (Depoimentos de Ninpha Ferreira de Oliveira e de Cely Ferreira Tramujas). Com o incio dos trabalhos da Lumber em Trs Barras, a cidade-empresa americana imps um ritmo de vida bem distinto do perodo que antecedeu chegada da Brazil Railway Company Regio do Contestado. Tudo se transformou 160 profundamente e os novos tempos, anunciados com a chegada do progresso, no possuam o mesmo significado para os moradores aqui estabelecidos de longa data. necessrio ressaltar agora que a Lumber apresentava um complexo quadro de organizao do seu pessoal nas mais diversas categorias, misteres, atribuies e divises, particularmente definidos em cada um dos empreendimentos, dependendo do ramo de atuao (sees do engenho de serrar, extrao de erva- mate, destilaria, colonizao, servios especficos e gerais de cada seo e divises estabelecidas). 73
Segundo a Folha da Tarde de Curitiba, em sua edio de 1912, existiam, trabalhando nas instalaes madeireiras de Trs Barras, cerca de 800 trabalhadores e o salrio mdio era de $ 8.000. Outro jornal, j no final da era Lumber, na Regio do Contestado, apresenta nmeros diversos: Na poca em que realizava as suas instalaes, sem excluir as linhas frreas de penetrao nas florestas, a Lumber tinha a seu servio 2.000 operrios, nmero que, como era natural, foi decrescendo at reduzir-se ao de que ela hoje efetivamente precisa, mas que ainda ora por 600 ou 700, circunstncias que, por si s, a coloca em primeiro plano no rol das indstrias do nosso Planalto (O COMRCO, 1936).
Entre os prprios antigos trabalhadores da Lumber, tambm no existe unanimidade quanto ao nmero de trabalhadores que atuaram durante a existncia da gigante madeireira assim, os nmeros aumentam ou diminuem a cada ano. Alm dos trabalhadores diretos, outros prestavam servios complementares. Muitos caboclos que no conheciam a Lumber j sabiam onde ia passar a linha e faziam ranchos que se no tinha parede de bracatinga lascada ento era de xaxim coberto com folha de taquara, e a eles iam cortando lenha e empilhando, j seguindo a linha, porque a Lumber comprava a lenha (Depoimento Mario Manuel Joaquim). No cabe aqui uma descrio exata do nmero de trabalhadores que atuaram ao longo da existncia da Lumber; no entanto, possvel uma idia
73 Embora a Companhia atuou em vrios setores econmicos, nesta pesquisa, a descrio das atividades madeireiras e colonizadoras sero prioritrias. Num relatrio de 1919 da Southern Brazil Lumber & Colonization Company, constava um estoque de 5.118 sacos com 20.559 arrobas ou 308.126 quilos de HERVA-MATE, em So Francisco, e 432 sacos com 1.728 arrobas, ou seja, 25.921 quilos em stock em Trs Barras, Santa Catarina. (APESC Arquivo Pblico do Estado de Santa Catarina). 161 aproximada atravs dos registros encontrados nos Arquivos (Anexos 05, 06, 07 e 08). De acordo com o livro de registros Unclaimed Hages, pagamentos no- reclamados, do Arquivo particular de Romrio Borelli, aparecem, principalmente, nos anos de 1920, 1921 e 1922, as compras de lenheiros, como se referiu Mario Manoel Joaquim. Existem registros do ano de 1914 at o ano da incorporao em 1940; sobre isso, os nmeros podem ser resumidos na seguinte tabela: Quadro n. 06: Pagamentos no-reclamado pelos operrios da Lumber ano nmero de trabalhadores que no reclamaram ordenados 1914 28 1915 155 1916 99 1917 64 1918 99 1919 95 1920 89 1921 151 1922 170 1923 237 1924 208 1925 176 1926 241 1927 164 1928 117 1929 86 1930 112 1931 28 1932 16 1933 18 1934 49 1935 22 1936 20 1937 38 1938 40 1939 10 1940 14
Fonte: Unclaimed Hages, 1910. Arquivo particular de Romrio Jos Borelli Sabe-se que, a partir de novembro de 1911, ra Smith concluiu os trabalhos de montagem do grande engenho. Nos anos de 1912 e 1913, no se localizam os registros de pagamentos no-reclamados. Neste sentido, O baixo nmero no ano de 1914 pode estar relacionado paralisao das atividades e tambm pode ser devido aos conflitos com os sertanejos revoltados. Para melhor ilustrar isso, nos anexos 162 esto relacionados mensalmente os pagamentos no-reclamados dos anos de 1916 e 1917. Na dcada de 1930, observa-se uma diminuio at a nacionalizao em 1940, quando passou para as empresas incorporadas ao Patrimnio Nacional. Os livros de registro de funcionrios apontam que no ano de 1912 aproximadamente 400 funcionrios j trabalhavam na madeireira de Trs Barras, aumentando para 655 em 1915. Existem registros que confirmam que a serraria de Trs Barras ficou parada entre agosto de 1914 e junho de 1915. A crise foi contornada com grandes vendas para a Argentina, no ano de 1916, segundo Diacon, de US$ 166.500 (DACON, 2002, p. 51). Analisando os livros onde constam os pagamentos durante os anos de 1923 at fevereiro de 1929, tem-se um nmero pouco varivel de trabalhadores, tanto na parte interna da madeireira (onde geralmente o nmero de operrios ficava em uma mdia de 230) e externamente nas matas, onde o nmero aproximava-se de 310 homens. Como exemplo, no ms de outubro de 1923, trabalhavam 15 homens, constando como diversos, 17 nas atividades de locomoo; 24 homens, no guincho 4; 22 no guincho 5; 10, no guincho 7; 12 no guincho 8; 12 homens no donkey 2; 12, no donkey 4; 11 homens, no carregador 3; 10, no carregador 6; 81 homens divididos em 6 turmas de conservas; 10, na locao; 24, no corte de lenha e 45, no corte de toras (Ver Anexos 09, 10, 11, 12, 13, 14, 15 e 16). Quadro n. 07: Trabalhadores que atuavam na floresta quantidade de homens atividade Mquina 15 diversas 17 locomoo (transporte) Locomoveis 24 operadores guincho 4 22 operadores guincho 5 10 operadores guincho 7 12 operadores guincho 8 12 operadores donkey 2 12 operadores donkey 4 11 operadores carregador 3 10 operadores carregador 6 81 conservas 10 Locao (trocas) 24 lenheiros 45 toreiros Fonte: Relatrio de folhas de pagamento, out. 1923 a out. 1924. Arquivo particular de Romrio Jos Borelli 163 Somados os trabalhadores das matas, em outubro de 1923, h 295 homens nos mais diversos ofcios externos. Chama a ateno o nmero de operrios cortadores de toras entre 30 e 50, em constante deslocamento nas matas, e um nmero menor de operrios em atividades de operao de guinchos, donkeys, corte de lenha, locomoo, carregadores, apontadores e conservas. nternamente, entre as diversas atividades, predominavam os trabalhadores da cepilhadeira com dois turnos (dia e noite), com aproximadamente 50 homens em cada turno, alm da empilhao e oficina, que tambm reuniam grande nmero de trabalhadores. Existiam as tarefas que demandavam menos operrios e, ainda, as atividades de escritrio, armazm, farmcia, hospital, entre outras, delegadas aos chefes, encarregados e dirigentes. Podemos afirmar que entre 400 e 600 trabalhadores atuaram diretamente na Lumber, durante as quatro dcadas de sua existncia. Tanto internamente quanto externamente, a presena de operrios estrangeiros, imigrantes ou descendentes macia ressalta-se aqui a presena de poloneses em praticamente todas as atividades. No donkey n. 2, em outubro de 1923, trabalhavam 12 operrios. Os sobrenomes ilustram o que mencionado: Kozak, Scorey, Kozakevicz, Repula, Jankok, Scheuky, Holowka, Sczerbisky, Wiescosky, Maralevicz, Wolk e Budi (Arquivo particular de Romrio Jos Borelli). Para manter a ordem e o trabalho neste ambiente de grupos tnicos to diversificado, a Companhia mantinha um grupo de seguranas que apaziguava sob o comando dos dirigentes. Em 1912, traos da disciplina na cidade-empresa americana foram elencados no jornal: o local muito bem policiado, graas energia frrea do Sr. ra Smith que no s mantm um pessoal destinado exclusivamente ao policiamento como tambm no consente a venda de aguardentes e outras bebidas ordinrias (Folha da Tarde, 1912). Sobre o assunto, o corpo de segurana da Lumber conseguiu rechaar o ataque dos caboclos rebelados grande serraria de Trs Barras em setembro de 1914. Ao mesmo tempo, no foi possvel conter as investidas contra a filial da Lumber em Calmon, estao ferroviria de Matos Costa e colnia de imigrantes de Rio das Antas. 164 Alm dos departamentos ou das sees de diversas especialidades, procura-se caracterizar neste captulo o que foi possvel reconstituir, baseado nos arquivos da empresa, nos jornais da poca e recentes, em relao aos depoimentos de antigos trabalhadores da empresa que narraram memrias dos fatos que alteraram profundamente o curso da Histria da Regio do Contestado.
4.1.1 Administrao e escritrio
Nestes setores, encontravam-se os principais dirigentes, muitos norte- americanos, encarregados de levar a bom termo os trabalhos e a organizao do empreendimento. Cabe registrar agora que, por muito tempo, estiveram na direo da Lumber os irmos Bishop. Neste sentido, Helma Bishop Cordeiro filha de Jayme Eduardo Bishop, mora em Curitiba e contou que Shermann Bishop foi o primeiro da famlia a chegar em Trs Barras para trabalhar na Lumber: O tio Shermann veio primeiro. Depois de alguns anos aqui no Brasil, ele resolveu voltar e chamou meu pai, Jayme, e meu pai chamou o tio, Ernesto, para estarem juntos e trabalharem na Lumber (Depoimento de Helma Bishop Cordeiro).
Fugura n. 31: Escritrio central da Lumber em Trs Barras
Fonte: Acervo da produo do documentrio Contestado: restos mortais, de Sylvio Back e Zeca Pires Foto de Ado Karwat.
165 Jayme Eduardo Bishop trabalhou na Lumber por mais de 30 anos. Mesmo depois de incorporada ao Patrimnio Nacional, continuou sendo o diretor da Companhia. Dos quatro filhos (Shermann Sobrinho, Ernesto Sobrinho, Valdemar e Helma), somente Ernesto trabalhou na Lumber. Quando foram instalados, os trabalhos na Companhia iniciaram-se sob a direo de Shermann. Outro americano, Henry Weinmeister, atuou na direo e, no eplogo da grande madeireira, Jayme Eduardo Bishop foi o ltimo diretor. A organizao administrativa da Lumber contava com outros importantes escritrios e pontos de venda espalhados pelo mundo. Consta nos arquivos a existncia de escritrios em Paris, Londres, Nova York e So Paulo, sintonizados com o escritrio central de Trs Barras 74 . Tal dado concretiza a afirmao j realizada nesta pesquisa do antigo funcionrio, Jucy Varella, de que os relatrios eram escritos em trs lnguas diferentes. Alm dos escritrios, vrios pontos de venda estavam espalhados no Brasil e no mundo. Vendas de madeira e de caixas desarmadas so registradas com maior ocorrncia pela agncia de So Paulo. Neste Estado brasileiro, em processo de urbanizao acelerada, eram realizadas volumosas vendas. Em um relatrio de 1917, destacam-se tambm as vendas para o Rio de Janeiro, Curitiba, Paranagu, Buenos Aires e Montevidu. Fica evidente a comunicao e a sintonia da Southern Brazil Lumber & Colonization Company com outras empresas do grande grupo da Brazil Railway Company. Em 1912, um jornal de Curitiba apontava a existncia de cerca de 30 km de linhas destinadas ao servio de transporte feito por duas locomotivas da Estrada de Ferro Sorocabana (Folha da Tarde, 1912). No ms de abril de 1917, o relatrio aponta vendas para a Sorocabana Railway Company. No balancete de maio de 1920, aparece como capital passivo, alm de reservas para a derrubada de pinheiros, a conta-corrente da Brazil Railway Company e da Bolvia Development & Colonization Company. Havia caixa em bancos de So Paulo, Rio de Janeiro e o dinheiro depositado para Empire Trust
74 APESC (Arquivo Pblico do Estado de Santa Catarina) Relatrios da Southern Brazil Lumber & Colonization Company. Neste arquivo existem dezenas de livros e documentos, iniciando com relatrios do ano de 1916. Mesmo faltando alguns anos, somam uma grande quantidade de relatrios da Companhia, inventrios de madeira, inventrios da farmcia, inventrios do armazm e balancetes de vrios anos. 166 Company Syndicos dos possuidores de ttulos (Balancetes da Southern Brazil Lumber & Colonization Company - Arquivo Pblico do Estado de Santa Catarina). Embora com algumas dificuldades, pelo emaranhado de complexas ligaes - por vezes sem documentos para a anlise, podemos ilustrar o patrimnio da Lumber, composto de propriedades territoriais (Anexos 02 e 03), administrado pelo escritrio central de Trs Barras, com o seguinte grfico: Quadro n. 08: Propriedades adquiridas pela Lumber entre 1909 a 1912 Propriedade data de aquisio data de registro rea Campo das Moas 10/02/1912 21/12/1921 20.525.500 m2 Valles 07/06/1912 295.905.260 m2 Campo da Escada 48.231.212 m2 Bugre 12/02/1910 21/12/1921 20.377.350 m2 Ligeiro 10/02/1910 21/12/1921 20.385.625 m2 Ribeiro 10/02/1910 18/10/1910 20.400.375 m2 nvernada 10/02/1910 21/12/1921 20.403.375 m2 Cordeiros 10/02/1910 21/12/1921 20.399.375 m2 Jesus 10/02/1910 20/12/1921 20.405.950 m2 Rio Preto 27/07/1909 20.347.000 m2 Cruzes 07/07/1909 21/12/1921 15.840.900 m2 TOTAL GERAL 523.221.922 m2 Fonte: NOGUERA JUNOR, Marcelino J. Memorial da Southern Brazil Lumber & Colonization Company. nterventoria Federal de Santa Catarina, Papelaria Universal, 1933. 75
Na soma total das 11 propriedades descritas acima, tm-se 523.221.922 m 2
de terra para a explorao industrial e comercial da madeira e, em seguida, para o incio da colonizao. Todas as propriedades territoriais citadas acima encontravam- se nos municpios de Canoinhas e Porto Unio. importante destacar que, alm das propriedades territoriais, existiam os escritrios de outros Estados e Pases, os vapores Porto Velho e Trs Barras, e as propriedades: Fazenda So Roque de Calmon, Daniel & Teixeira, Pacheco, Trs Barras, Jaguariahyva, Barra Grande, Morungava, Paranagu, Poo Grande e So Francisco (RELATRO, 1920). Mesmo antes da data dos registros das terras adquiridas pela Lumber, j aparecem as primeiras vendas aos colonos que se instalaro nas terras: Em 31 de dezembro de 1919, Luiz Sczcherbowski 76 comprou um lote da Southern Brazil
75 Cpia de memorial, gentilmente cedida pelo pesquisador Onofre Berton da Epagri, Santa Catarina.. 76 Luiz Sczcherbowski, fotgrafo que ser destacado no final do captulo. 167 Lumber & Colonization Company por 600$000 de entrada e mais prestaes anuais de 200$000 (RELATRO, 1919). Dos ofcios e das tarefas de todos os trabalhadores que atuaram na Administrao e no escritrio da Lumber, pode-se citar a hierarquia deste departamento que possua um diretor, um gerente, um diretor tcnico, um contador- chefe, um secretrio-chefe, um segundo-secretrio, um datilgrafo, um segundo datilgrafo, o contador, o guarda-livros, auxiliado pelo primeiro e pelo segundo correntista, um apontador no escritrio de Trs Barras e outro nas matas, que tambm eram auxiliados pelo primeiro e pelo segundo datilgrafos, mais um praticante e outros dois contnuos. Trabalhavam tambm um encarregado, um caixeiro, um praticante de caixeiro e um carroceiro. Em cada unidade, dependendo das propores dos servios, existiam trabalhadores que respondiam pelos servios de controle de chegada, de distribuio das mercadorias, das fichas dos funcionrios, do controle de estoques e dos demais servios gerais. Em Calmon, trabalhava um encarregado do armazm e dois serventes. Alm destes, existia tambm um caixa com um auxiliar datilgrafo, um encarregado de preos com primeiro e com segundo correntistas e mais dois faturistas (faturamento dos produtos vendidos), um encarregado de registro dos embarques com um datilgrafo e um praticante, um encarregado de registro pessoal com auxlio de um arquivista, um datilgrafo e um praticante, um almoxarife com um ajudante e dois praticantes, um comprador de pinheiros 77 , um administrador em cada propriedade fora da sede de Trs Barras e, por ltimo, um encarregado dos servios gerais (Arquivo particular de Romrio Jos Borelli). Durante a sua existncia, ocorreram dois grandes movimentos reivindicatrios de trabalhadores na Lumber. Foram, pois, greves, destacadas por Tomporoski 78 , que fez um estudo, baseado em casos de acidentes de trabalho, e analisou prticas e costumes e parte da sociabilidade dos moradores da regio.
77 Durante muito tempo, Joo Pacheco Sobrinho foi comprador de pinheiros da Lumber em toda a regio. Nos contratos existentes nos cartrios da regio, principalmente Curitibanos e Lebon Rgis, consta a assinatura do referido comprador como procurador da Companhia. 78 Assis Tomporoski (2006) defendeu no Programa de Histria da UFSC uma dissertao sobre: O pessoal da Lumber um estudo acerca dos trabalhadores da Southern Brazil Lumber and Colonization Company e sua atuao no planalto norte de Santa Catarina. 168 Um ex-operrio aponta os motivos de uma paralisao, onde os trabalhadores solicitavam aumento dos salrios: viemos para frente do escritrio e o chefe perguntou por que e ns: queremos aumento do ordenado (Depoimento de Leopoldo Padilha). No jornal operrio, coordenado por Edgard Leuenroth, de So Paulo, um artigo assinado por Alcindo de Oliveira denunciava que a polcia deu as mos aos diretores da companhia, fazendo aliana com os diretores para sufocar pela violncia e pela fora armada as justas pretenses dos grevistas. Oliveira prossegue o seu raciocnio: Aquela prendia, espaldeirava e ameaava de morte e estes despachavam do trabalhos da companhia dezenas de operrios, que dentro do prazo de quatro horas, deveriam desocupar os ranchos-espeluncas, de sua propriedade, que para escrnio serviam de habitao s famlias de seus operrios. [...] A cadeia encheu-se de operrios e de homens que nada tinham que ver com a greve, unicamente para satisfazer s exigncias de certos polticos da localidade, que se aproveitavam da greve para melhor perseguirem seus desafetos. [...] Foram presos tambm, como grevistas, alguns chefes americanos, que nada tinham que ver com o movimento, unicamente por serem inimigos, de um chefe poltico da localidade e assim muitos. Os operrios foram perseguidos e dispensados do servio (OLVERA, 1919).
4.1.2 nstalaes, depsitos e limpeza
A mecanizao estava presente nas sees mais importantes, como afirmou o reprter em 1912, as mquinas se encarregam de todas as operaes, desde a coleta das toras, no interior da floresta, at ao seu amontoamento, j desmanchadas em peas, no local donde devero sair para os vages do caminho de ferro (Folha da Tarde, 1912). Na organizao industrial, a Companhia americana erigiu uma complexa estrutura de organizao de ofcios, incluindo os estudos e o planejamento minucioso das aes, que partiam do escritrio central e eram distribudas e coordenadas pelos chefes das diversas e das modernas instalaes divididas em sees. De modo geral, o trabalho efetivo comeava com a observao da mata, com a abertura de estradas para deitar dormentes e para se estender os trilhos que levavam as mquinas ao encontro das rvores escolhidas. A seguir, os acampamentos eram montados e iniciava-se o trabalho da derrubada das rvores. 169 Tal retirada era realizada dentro do processo mecnico que inclua os guinchos e os donkeis at o descarregamento direto em uma esteira que conduzia as toras para o engenho de serrar, j posicionadas no sentido do corte. medida que as toras iam sendo cortadas, as tbuas seguiam conduzidas mecanicamente em uma esteira, passando pelos operrios que procediam seleo, conforme classificao especfica. Aps a separao, a madeira serrada era carregada nos vagonetes e empurrada pelos locomveis, atravs dos trilhos, para a distribuio nos locais predeterminados. Para obter o mximo de rendimento, as instalaes foram construdas de modo a facilitar os servios 79 . Os amplos depsitos, tanto de secagem interna como externa, eram entrecortados pelos trilhos de vagonetes dos locomveis que carregavam a madeira antes e depois do processo de secagem. Um antigo trabalhador comentou a organizao das tarefas: trabalho perfeito que s quem viu e trabalhou para saber como que era (Depoimento de Elvino Moreira). Para a construo de novas linhas e de manuteno das j existentes, a Companhia organizava turmas de construtores. A Lumber, na dcada de 1920, chegou a ter seis turmas de conservao das vias permanentes. Desta forma havia os maquinistas de carregadores de primeira classe, os operadores das locomotivas, as oito turmas de carregadores, os operadores de guinchos e donkeis, as turmas dos desmatadores com feitores de primeira classe, os afiadores de primeira classe e os operrios de primeira, segunda e de terceira
classes para as operaes de corte com machado e com serra americana (Arquivo particular de Romrio Jos Borelli).
79 A organizao do trabalho em sees e as esteiras mecnicas que conduziam a madeira facilitavam o trabalho e denotavam os traos do taylorismo e do prprio fordismo na aplicao da cincia para aproveitar ao mximo a fora dos trabalhadores. 174 gigantes chamins, onde meu pai (o polons Jos Olcha) trabalhou durante toda a vida. Ladislau Olcha prossegue seu relato, declarando que se casou e que foi morar em uma casa da Companhia com luz e gua encanada. Trabalhou na Lumber at se aposentar (Depoimento de Ladislau Olcha). importante registrar que a produo de energia, alm de servir as necessidades industriais, tambm fornecia luz s casas da cidade-empresa americana. Trcia Oswalda de Oliveira afirma: Nasci numa casinha, ao lado do hospital da Lumber. Tinha uma casa preparada para um mdico com tudo dentro. Porque os americanos eram assim: eles davam a casa pra gente com tudo dentro, desde gua encanada, luz, geladeira, mveis e tudo pronto (Depoimento de Tercia).
Figura n. 34: Locomvel usado para o transporte das casas dos operrios
Fonte: Arquivo particular de Romrio Jos Borelli.
Assis Tomporoski destacou a diferena entre as moradias construdas dentro do complexo montado pela Lumber e as casas destinadas s turmas de operrios que atuavam nas matas. Enquanto na sede os cmodos eram maiores, providos de energia eltrica, nas matas eram rsticas casinhas de tbuas com porta e janela no nico cmodo e pertenciam empresa. Constantemente eram 175 transportados para os locais de novas derrubadas de pinheiros (TOMPOROSK, 2007, p. 44-45).
4.1.4 Seo de matas, fazendas, colonizao e departamento legal
Nas matas, o trabalho da derrubada das rvores era duro. Geralmente, os trabalhadores que realizavam este ofcio moravam nas casinhas mveis que a Companhia transportava at os locais do servio. Machado e serra americana eram as ferramentas mais utilizadas e indispensveis na tarefa. Tudo comeava com a observao da rvore e a preparao da barriga (corte feito com o machado, pouco profundo, para direcionar o tombo). Aps o corte desta, em duplas e com o serrote, tambm conhecido como serra americana, iniciavam o vai-e-vem constante at os estalos seguidos anunciarem o momento de se afastar rapidamente e observar a queda que causava um ribombar de troncos e galhos, muitas vezes derrubando outras rvores menores das proximidades. Aps a derrubada, as duplas de serradores revezavam-se nos cortes das toras no cho, no tamanho solicitado, para depois serem puxadas pelos guinchos e carregadas nos vages rumo ao engenho central. Os dados pesquisados apontam que a extenso de estradas de ferro particular da Lumber alcanava aproximadamente 150 km com possibilidades de ligar, ao mesmo tempo, diversas reas de mata com o engenho central. Quando a rea estava totalmente desmatada, recolhiam-se os trilhos, o acampamento com as casas dos trabalhadores, para a instalao em outro pinheiral. As toras eram puxadas pelos guinchos que, segundo Moskwen, tinham cabos finos e cabos grossos, que eram engatados nas toras e da o guincho puxava e vinha derrubando tudo, vinha bracatinga, vinha taquara, amontoava, chegava na roda e da erguia e colocava a tora comprida em cima da plataforma para levar para a serraria (Depoimento de Pedro Moskwen). Leopoldo Padilha nasceu no ano 1909 e trabalhou 19 anos na Lumber. Trabalhou no avanamento de terra, no avanamento de trilhos, foi operador de Donkeis, carregador de toras nos carros que os locomveis puxavam e foguista. Contou que o avanamento de terra significava o servio de aterro, de escavao e 176 de preparao da terra para assentar os trilhos nos locais das futuras derrubadas. O avanamento de trilhos era a etapa seguinte que envolvia a colocao dos dormentes e a fixao dos trilhos por onde correriam as mquinas. Padilha afirmou que: com os trilhos prontos levavam as casas para fazer o acampamento. As casinhas iam todas em cima dos carros (puxados pelos locomveis). Eram (as casas) carregadas com a ajuda de varas (...). L adiante faziam o acampamento para a derrubada de pinheiros (Depoimento de Leopoldo Padilha).
Figura n. 35: Derrubada de pinheiros
Fonte: Acervo da famlia de Claro Gustavo Jansson
V-se acima uma turma de derrubadores, executando o corte de pinheiros, sendo observados pelo apontador. Esta operao comeava com a marcao das rvores, a inciso (barriga) feita com o machado para direcionar o tombo e, ento, o corte final executado com a serra americana um pouco acima da barriga. necessrio destacar que o estabelecimento de acampamentos possibilitava a formao de vilas temporrias onde, alm dos trabalhadores e familiares, tambm se estabeleciam pequenos negociantes particulares; contudo, as compras de mercadorias de primeira necessidade, os trabalhadores faziam no armazm da Companhia, nos finais de semana, mediante um trem que os 177 transportava at a sede da empresa ou atravs dos vages-armazns, enviados at os acampamentos (TOMPOROSK, 2006, p. 81). Quando as rvores estavam todas derrubadas e as toras j cortadas, chegava o momento de recolher tudo e puxar o material para as margens dos trilhos. Os Donkeis entravam em ao, e numerosos grupos de trabalhadores envolviam-se nas atividades de abrir as picadas, de carregar os cabos finos e grossos, de engatar, de sinalizar e de possibilitar a fomao de pilhas gigantes ao longo da extenso dos trilhos. Chegava, ento, o momento de carregar as toras nos carros. O ofcio de carregador, segundo o antigo funcionrio Leopoldo Padilha, consistia em chegar com o guincho maior, estaquear as sapatas laterais e levantar a mquina para os carros (vages) passarem por baixo (...). Com o cabo grosso, carregava de 10 a 12 toras em cada um (Depoimento de Leopoldo Padilha). Figura n. 36: Toras amontoadas para recolhimento
Fonte: nstituto Histrico e Geogrfico de Santa Catarina. Foto: Claro Gustavo Jansson
Outro antigo operrio que trabalhou com avanamento de terras e nas turmas de conserva comenta que a quantidade de toras que eram retiradas das matas era muito grande. Afirma que passavam os locomveis, carregando 45 178 vages de toras de pinheiro com 10 m de comprimento (Depoimento de Kraus Sobrinho). Alm dos j citados ofcios dos trabalhadores nas matas e no complexo sistema de transportes, encontravam-se, ainda, os guincheiros e guincheiros substitutos, engraxadores e engraxadores substitutos, maquinistas da locomotiva sem fogo, maquinistas da locomotiva sem fogo substitutos, carregadores de gua e serventes. Depois da derrubada realizada, chegava o momento de se carregar as toras cortadas nos locomveis e conduzi-las at o engenho central para os procedimentos de beneficiamento da madeira e da preparao para o comrcio. Figura n. 37: Guinchos que arrastavam e que carregavam toras
Fonte: acervo da famlia de Claro Gustavo Jansson
Os guinchos e donkeis arrastavam as toras de uma distncia de at 500 m de cada lado dos trilhos e depois carregavam no locomvel que as transportavam at o engenho central. Na relao destes materiais, aparecem dois guinchos grandes, um guincho carregador e trs donkeis. 179 Cabe referir tambm que a existncia de diversas fazendas, que faziam parte do patrimnio da Companhia, tambm dispensava trabalhos na organizao dos servios de cada terreno. Geralmente constava a presena de um administrador da fazenda com moradia, criao de gado, turmas contratadas para a retirada da erva-mate. Na maioria dos terrenos, a possibilidade de extrao madeireira despertava o maior interesse. Outro departamento que se encontrava em vrios locais com sub- administradores era o de colonizao. Espalhavam representantes nas maiores propriedades do grupo para articular a diviso e a documentao de vendas das reas de terras para fins de colonizao da Lumber. As funes giravam em torno do administrador, dos fiscais, dos guardies e dos serventes; esta seo contava ainda, com topgrafos e com o Departamento de Cartografia. Jucy Varela comeou a trabalhar na Lumber como datilgrafo, aprendeu correspondncia comercial e atuou tambm na seo de colonizao como cartgrafo. Contou que descobriu e desenhou vrios mapas da Regio do Contestado. Outro setor que deve ser comentado o departamento legal que estava organizado para atuar nas capitais de Santa Catarina, Paran e So Paulo, sendo que em cada uma delas existiam advogados auxiliares com um chefe em Curitiba; em Trs Barras, em contrapartida, existia apenas um advogado auxiliar. As questes envolvendo foro de maior vulto sempre envolveram juristas renomados sendo, por exemplo, Assis Chateaubriand Bandeira de Mello 80 , um dos advogados de Percival durante algum tempo, e o prprio Affonso Camargo defendeu a Companhia por anos seguidos.
4.1.5 Engenho de serrar, laminadeira e anexos
No grande engenho de serrar, que recebia as toras para os primeiros cortes, foi instalada a maior serra que era acionada por um motor a vapor de 1.200 cavalos. Com extraordinria rapidez efetuado o desdobramento das toras, conduzindo-se
80 Assis Chateaubriand ou Chat, como era chamado, foi uma grande figura da imprensa brasileira, criador de uma rede de jornais, revistas e o introdutor da televiso no Brasil (TV Tupi). 180 todas as operaes sempre automaticamente at ao momento de classificao das peas serradas (Folha da Tarde, 08/07/1912). Quando as toras chegavam da floresta, iniciava-se o processo de beneficiamento, envolvendo etapas at o ponto que culminava com o carregamento nos vages para despachar para o mercado interno ou mesmo para o estrangeiro, seja na forma de madeira serrada, seja na fabricao de mveis e de caixas desarmadas. Com o mesmo guincho de carregamento das toras na mata, ocorria o processo inverso de descarregamento. As toras eram deitadas diretamente em uma esteira, que as conduzia at o carro de serrar. Na subida, a madeira era totalmente encharcada com gua para facilitar a serragem: Na serraria, tinha uma calha que puxava as toras, ia assim com uma corrente engatada. Chegava da mata e descarregava as toras que iam subindo e l em cima tinha uma circular (serra) de dois metros de altura. Era o meu sogro que trabalhava nesta circular (Depoimento de Leopoldo Padilha).
Figura n. 38: Vista externa das toras na entrada da esteira
Fonte: Acervo da famlia de Claro Gustavo Jansson 181 Elvino Moreira afirmou que a Lumber chegava a desmanchar 400 toras em um nico dia de trabalho. A tora chegava l em cima (conduzida pela esteira) e passava por trs serras. Eram cortadas as pranchas, desdobradas, esquadrejadas e seguiam para a classificao (Depoimento de Elvino Moreira). Os ofcios que envolviam o engenho de serra, a laminadeira e anexos envolviam, igualmente, atividades especficas, demandando mo-de-obra qualificada. Por muito tempo, os responsveis pela serragem eram americanos. Na serraria, atuavam um chefe americano, um encarregado geral, serradores de primeira e de segunda classe, serradores aprendizes e em exerccio. Existiam primeiro e segundo suplentes de serrador, aprendiz que ajudava o mecnico e o encanador. Nos anexos, especialistas estrangeiros que atuavam como afiador de primeira e de segunda classe, primeiro e segundo suplentes de afiador e tambm aprendizes; havia, tambm bitoleiros de primeira e de segunda classe, bitoleiro aprendiz, atentos ao tamanho e classificao da madeira serrada. Ainda, destopadores de primeira e de segunda classe, serradores da serra do meio, primeiro e segundo ajudantes da serra do meio; cubadores de toras e cubador de toras substituto. A grande quantidade de cortes para a preparao das lminas tambm demandava servios especializados e uma grande quantia de serras circulares. Neste sentido, havia um grande nmero de operadores que se especializavam nas tarefas como cortes, desde a madeira com cascas, sem casca e nos mais variados tamanhos, a saber, o circuleiro ripador de primeira e de segunda classe, o circuleiro recortador de primeira e de segunda classe, o circuleiro recortador de tacos de imbuia de primeira e de segunda classe, o circuleiro sustituto e um aprendiz; o vagoneteiro como primeiro engatador, o segundo engatador e um aprendiz (Arquivo particular de Romrio Jos Borelli).
4.1.6 Mesa de classificao, seo de empilhao e de fabricao de caixas
Depois da classificao das peas, estas so levadas para as estufas onde permanecem durante o espao de uma semana, sendo dali retiradas para os depsitos e convenientemente dissecadas (Folha da Tarde, 1912). 182 Na mesa de classificao, os operrios observavam e procediam seleo da madeira serrada, que circulava sobre as esteiras, passando por inmeros trabalhadores que eram incumbidos com tarefas especficas. Moskwen contou que ficava parado aqui, vinha madeira de lado pelo vagonete pr c, rolete que trazia tbuas, a gente pegava e passava na circular, depois ia pr l, tirava o lixo pro lado e a tbua caa numa outra esteira. Relata tambm que a esteira era conduzida por correntes e que levava as toras at a destopadeira. Os restos que sobravam iam para o fogo e as tbuas classificadas iam para a empilhao (Depoimento de Pedro Moskwen). Figura n. 39: Vista interna da serraria
Fonte: Acervo de Fernando Tokarski
Nas incontveis pilhas de madeira, do ptio externo, a tcnica de empilhamento permitia a secagem homognea, facilitada pela absoro do sol e do vento, pelo modo como a madeira serrada era cuidadosamente colocada; alm disso, a base da pilha era mais estreita e de propores menores que o topo.
183 Figura n. 40: Tcnica de empilhao
Fonte: Acervo de Fernando Tokarski.
Na empilhao, trabalhava um encarregado de empilhao de primeira e de segunda classes, apontador de vages de primeira e de segunda classes, um pregador de vages efetivo e um estagirio, um carregador de gua efetivo e outro estagirio, um feitor de conserva efetivo e outro estagirio, um encarregado de conserva de primeira classe e um servente, um apontador de mesa de classificao de primeira e de segunda classe, um classificador de mesa de primeira e de segunda classe, um encarregado da fbrica de caixas de primeira e de segunda classe, um engraxador de primeira e de segunda classe, um maquinista da fbrica de caixas de primeira e de segunda classe, um maquinista da fbrica de empilhao de primeira e de segunda classe, um manobreiro da mquina de empilhao efetivo e um estagirio, encarregado do carregamento de caixas efetivo e provisrio. Havia, tambm, um amarrador de caixas efetivo e um estagirio, um serrador da serra fita de caixas de primeira e de segunda classe, um serrador de serra fita de desdobro de primeira e de segunda classe, um encarregado do barraco efetivo e um estagirio, os ajudantes menores efetivos e os ajudantes menores estagirios (Arquivo particular de Romrio Jos Borelli). 184 necessrio comentar que a grande demanda de caixas de madeira, na poca, possibilitava um excelente aproveitamento, e um grande nmero de trabalhadores dedicavam-se fabricao, embalagem e ao despacho das caixas desarmadas para as mais variadas utilidades: Trabalhei na confeco de caixas de laranja para a Alemanha e de uva que iam para a frica do Sul (Depoimento de Elvino Moreira). Valdemiro Noga destacou a grande quantidade de caixas que eram despachadas para a cervejaria Brahma Rainha do Rio de Janeiro.
4.1.7 Seo de carpintaria e marcenaria
Alm da madeira serrada, que foi o carro-chefe das exportaes da Lumber, outra forma de renda era obtida atravs da fabricao de mveis. Enquanto o pinheiro possibilitava tbuas e vigas serradas para o comrcio interno e externo, as imbuias tornaram-se a matria-prima da fabricao de luxuosos mveis e de decorao de ambientes sofisticados no Pas e no exterior. Anexa serraria central, estava a seo de carpintaria e marcenaria. Ainda, as mquinas da marcenaria eram movidas por um motor de 400 cavalos (FOLHA DA TARDE, 1912). Neste sentido, Elma salienta que Trs Barras tinha fbrica de mveis. Aquele hotel cassino Copacabana Palace do Rio de Janeiro foi feito com madeira da Lumber. (....) Aqui no Batel (Curitiba), tem uma casa que todo madeiramento veio da Lumber (Depoimento Elma Bishop Cordeiro). Trabalhavam nesta seo um feitor de marceneiro de primeira e de segunda classes, um sub-feitor de marceneiro de primeira e de segunda classes, um marceneiro de primeira classe, um marceneiro de segunda classe, um marceneiro lustrador de primeira e de segunda classes, um marceneiro maquinista de primeira, de segunda e de terceira classes, um marceneiro em moblia fina de primeira e de segunda classes, dois marceneiros aprendizes (um estagirio). Havia, tambm, um torneiro em madeira e dois aprendizes de torneiro (um estagirio), um feitor de carpinteiro de primeira e de segunda classes, um sub-feitor de carpinteiro de primeira e de segunda classes, um carpinteiro de primeira, de segunda, de terceira e de quarta classes, mais dois carpinteiros aprendizes (um estagirio), um plainador de molduras de primeira e de segunda classes e serventes, carpinteiros de 185 vagonetes de empilhao de primeira e de segunda classes, aprendizes e estagirios de carpintaria, serventes, cepilheiro do cepilho de caixas de primeira e de segunda classes.
4.1.8 Oficina mecnica e anexos
Vrias locomotivas, guinchos e donkeis giravam diariamente por toda a extenso dos trilhos, carregando madeira bruta e madeira j serrada para as diversas finalidades em todos os processos at o momento do carregamento nos vages da EFSP-RG, rumo aos portos ou ao centro do Pas. Assim, uma grande quantidade de vages adaptados a cada funo seguia acoplados s locomotivas. Com o sistema mecanizado, era necessrio um eficaz servio mecnico geral em constante funcionamento. Figura n. 41: Afiao das serras
Fonte: D'ALESSO, Vito. CIaro Jansson: o fotgrafo viajante. So Paulo: Dialeto Latin American Documentary, 2003. p. 49. 186 A afiao das serras era feita mecanicamente e demandava profissionais especializados, que recebiam vencimentos maiores e, geralmente, eram operrios estrangeiros. Nesta seo, alm da reposio e da constante manuteno de peas e de mquinas, os trabalhadores eram principalmente mecnicos de primeira, de segunda e de terceira classe que trabalhavam atentamente para manter o andamento dos trabalhos. Alm dos mecnicos e dos ajudantes atuando na oficina e nos anexos com um grande depsito de ferro, ao e material de reposio, tambm mantinham uma estrutura para atendimentos eventuais longe da oficina de trabalho. Nascida em Hamburgo, na Alemanha, Luiza Shelemberguer Sczcherbowski chegou com 2 anos no Brasil, e o pai encontrou emprego na Lumber como latoeiro: Ele trabalhava com lato, lata. Arrumava as mquinas que vinham do mato, trazendo as toras. Ele arrumava (Depoimento de Luiza). Alm do ofcio do soldador latoeiro, outros tipos de solda eram utilizados e cada uma delas demandava um operador especfico. Eram tantas mquinas para a manuteno que, s vezes, trabalhavam fora dos horrios da jornada diria dos demais operrios. Entre os profissionais, estava um chefe, torneiros, soldadores e mecnicos.
Figura n. 42: Estao Ferroviria, atual Museu de Trs Barras
Fonte: Acervo de Fernando Tokarski
187 No lado esquerdo da fotografia, aparece a Estao Ferroviria, atual Museu de Trs Barras. Do lado direito, mais distante, as gigantes pilhas de madeira serrada espera do embarque. Observa-se a movimentao nos constantes carregamentos dos infindveis vages de madeira que dali partiam para diversas partes do mundo.
4.2 O AMERICAN WAY OF LIFE
Contextualizando o momento da chegada da Lumber na Regio do Contestado, com exceo da exuberante e da promissora floresta ombrfica mista, coalhada de araucrias, nenhum conforto existia ou qualquer possibilidade de vida desprovida de grandes esforos para residir distante das capitais, pois s existiam precrias vias de comunicao e transporte. O grupo de dirigentes americanos que aqui viveu tratou logo de estabelecer, alm das estratgias e das tecnologias para o trabalho, um modo de vida com traos de conforto e tambm como meio de manter um grupo diverso de imigrantes e moradores da regio, trabalhando sem reclamar. As novidades trazidas pelos americanos deixavam perplexos os moradores da regio e mesmo os imigrantes pobres que chegavam, lutando contra todo tipo de privaes. Entre as inovaes que chamavam a ateno dos moradores da cidade- empresa americana, estava a fbrica de gelo que tinha capacidade para produzir 38 barras de 30 quilos cada, em 24 horas (PACHECO, 1987).
4.2.1 Armazm
Uma das instalaes, destacada nas memrias de todos os antigos trabalhadores e de seus descendentes, foi o armazm. Com grande e bem sortido estoque, representava o mais alto sonho de consumo dos trabalhadores que enxergavam, exibidas, as mercadorias que faziam parte dos hbitos do seleto grupo de dirigentes. So unnimes os depoimentos sobre a fartura e sobre a diversidade dos produtos: Tinha um armazm, com tudo do melhor, importado, e este armazm era aberto a todo mundo: a seda, o usque, vinho, peixe, marisco, porque a Lumber era 188 da estrada de ferro. Ento vinha um vago cheio disso para Trs Barras. (...) Voc encontrava de tudo, inclusive aougue e padaria (Depoimento de Trcia). Elvino Moreira destacou que o chefe do armazm era seu Otvio Tabalipa, e l dentro tinha de tudo o que voc queria comprar. Ninpha Ferreira de Oliveira contou da existncia de louas chinesas finssimas, cristais, biscoitos, iguarias e doces. Assis Tomporoski (2006) frisou que o armazm era realmente grande, funcionava pelo sistema de cadernetas, isto , o trabalhador retirava o que fosse necessrio para sua sobrevivncia e de sua famlia e os valores eram anotados, sendo descontados no prximo pagamento. Alm da caderneta das compras de cada trabalhador, na dcada de 1940, circulou entre os operrios uma espcie de vale-compra que Ladislau Olcha chamou de cheque. Estes eram distribudos e o trabalhador os descontava nas compras do armazm. Observando as fichas de anotaes dos gastos dos trabalhadores nos livros de registro da companhia do Museu de Trs Barras, algumas aquisies chamam a ateno. Entre os quatro itens de maior ocorrncia esto: os ingressos de cinema, a carne, o gelo e a lenha.
Figura n. 43: Armazm
Fonte: magem digitalizada do Acervo de Aglae Pacheco
O jornal Folha da Tarde de Curitiba, na edio de 08 de julho de 1912, destacou, tambm, a movimentao financeira do armazm. Para a poca, superava 189 todas as bodegas da regio: Um grande armazm fornece ao pessoal da empresa os mantimentos e demais gneros de que eles tm necessidade. Esse armazm tem um movimento mensal de 60 contos de ris (Folha da Tarde, 1912). Entre os anos de 1927 e 1931, nos livros de inventrio de produtos do armazm, entre tantos, aparecem os seguintes: maos de fsforo, caixas de charuto, cigarros, bacalhau, queijos, matte-espumante, cervejas, latas de querosene, fumo, caf em gro, sagu, latas de peixe, pacotes de banana, tmaras, abacaxis, ameixas, tabletes de chocolate, pickles, fermento Royal, metros de algodo, l, cambraia, peas de algodo mariposa, anil, p de arroz, brilhantina, suspensrios, ceroulas, lenos, riscado, vestido fil, dedais, tamancos, talco, espoleta, plvora, panelas, caarolas, pedra pome, tesouras, vinho do Porto, cinzano, gim, barricas de sal, sacas de acar, entre outros (APESC, nventrio do Armazm, 1927-1931).
4.2.2 Hospital e farmcia
Os servios de hospital e farmcia da Lumber estavam equipados com recursos humanos e materiais; o primeiro contava com servios especializados desde cirurgias (altas e pequenas) at a capacidade para debelar surtos de sarampo, varicela e coqueluche, comuns naquele tempo. Na regio, ocorriam alguns casos de typho, os quais se atribuem s guas (Folha da Tarde, 08/07/1912). Tomporoski (2006, p. 80) afirmou que o hospital da Companhia foi montado aps a instituio da exigncia legal de prestao de assistncia mdica e hospitalar queles trabalhadores que fossem vtimas de algum tipo de acidente no trabalho. Os arquivos da Companhia destacam a preocupao das autoridades da sade com os trabalhadores dos acampamentos, principalmente os mais distantes, frisando que, manobras obsttricas de leigos, elevavam o nmero de natimortos e tambm de senhoras doentes que no chegavam em tempo ao hospital. O nmero de atendimento de parturientes no hospital, ainda assim, era grande (Arquivo particular de Romrio Jos Borelli). Antigos operrios tambm comentam sobre os servio de sade: o hospital no era muito grande. Era de madeira, muito bem organizado. Mdico bom. Tinha 190 quartos, camas boas, banheiro e tudo que precisava (Depoimento de Mrio Manoel Joaquim).
Figura n. 44: Hospital
Fonte: Acervo de Fernando Tokarski
Trcia Oswalda de Oliveira lembrou que o primeiro mdico da Companhia foi o Dr. Laines, sucedido pelo Dr. Cerqueira Lima e depois pelo Dr. Osvaldo de Oliveira, pai da depoente e que anteriormente trabalhou na Ferrovia So Paulo-Rio Grande, em um vago que era o consultrio dele e aquele circulava para fazer os atendimentos. Na Lumber, ele veio entre 1915 e 1916 (...) era operador e parteiro. Ficou como mdico da empresa, mas era mdico da comunidade tambm (Depoimento de Tercia). O jornal de Curitiba faz referncias ao servio sanitrio do pessoal. A Companhia, alm de manter um mdico, possui uma pharmcia" e destaca que cobrado de cada trabalhador, por ms, a ttulo de taxa sanitria, a importncia de 2$000 mensais (Folha da Tarde, 08/07/1912). 191 Das compras para a farmcia, no inventrio do ms de julho de 1933, aparecem: Biotnico Fontoura, Elixir Nogueira, gua purgativa, antilebrina, bicarbonato de sdio, leo de capivara, leo de arnica, Plulas Ross, Plulas Reuter, remdio vegetariano, agulhas, Emplasto Poroso Fnix, ampola de quinino, ampolas de soro fisiolgico, ampola de soro anti-diftrico, anti-disentrico, anti-ofdico, cpsulas de aspirina, sulfato de magnsio, desinfetante, leo de rcino, bisnagas de estanho, cpsulas gelatinosas, gotas amargas, naftalinas, rosas brancas, acetato de chumbo, flor de enxofre, extrato fluido de abacateiro, alface, boldo, Cinco Razes e outros remdios e drogas adequados aos usos teraputicos de ento (nventrio da Pharmcia - APESC, 1933). No ano de 1934, foram registrados 34 operaes de apendicectomia, 4 de hrnias inguinais, 5 curetagens por aborto e 173 pequenas intervenes. Foram atendidas 80 parturientes, sendo 6 no hospital e 74 em Trs Barras. Outras atividades realizadas e que incluem os servios de farmcia e hospital da Lumber registram a aplicao de curativos nos operrios das matas, no engenho, no empilhamento, na carpintaria, nas oficinas, nas caldeiras, na fbrica de caixas, que iam desde pequenos acidentes at desastres fatais, como o que vitimou um operrio chamado Miguel Barlevicz, colhido por uma tora no servio das matas. Tambm eram realizados servios de extrao de dentes, injees, visitas a domiclio e visitas aos acampamentos (Arquivo particular de Romrio Jos Borelli). Os servios no hospital e farmcia eram feitos pelo mdico-chefe, uma manipuladora de farmcia, um enfermeiro, uma enfermeira, uma enfermeira auxiliar, uma cozinheira e um contnuo.
4.2.3 Posto de puericultura e escola polonesa
Na cidade-empresa americana, os trabalhadores tinham acesso facilitado ao trabalho, a moradias da prpria companhia, a lazer e ao atendimento sade, o que, para muitos moradores das vilas e das cidades da Regio do Contestado, era praticamente invivel. Algumas informaes sobre a instruo formal para os filhos dos operrios permitem a afirmao de que, durante anos, a alfabetizao de enormes turmas de 192 crianas, em Trs Barras, era realizada pela Professora Donina. Entre os informantes esto: Miguel Jaskuf, Ladislau Olcha, Jucy Varela, Trcia Oswalda de Oliveira, Abigail Pacheco Bishop e Marta Gura Kalempa que, mais tarde, tornou-se professora em Trs Barras. Os filhos dos dirigentes realizavam estudos nas capitais, como a Escola Americana de Curitiba (Depoimentos de Helma Bishop Cordeiro, de Cely Ferreira Tramujas e de Ninpha Ferreira de Oliveira). Como certas atividades reuniam muitos trabalhadores em locais diversos, nos acampamentos de derrubada, chegaram a existir salas de aula temporrias, onde os filhos dos operrios eram alfabetizados por professoras da prpria companhia. Maria Veloso Duarte, filha de um operrio portugus, foi professora de centenas de crianas em um local de grande derrubada de floresta: Na Estiva, ela dava aulas l, dava aula para 74 alunos, das sete e meia da manh s cinco da tarde. Foi a professora que me ensinou (Depoimento de Mario Manuel Joaquim). Segundo Leopoldo Padilha, a primeira escola que existiu em Trs Barras foi no Bairro Argentina e ficava fora da cidade-empresa americana. Este depoente tambm confirmou que Dona Donina foi a professora pioneira que, durante muitos anos, ensinou as primeiras Letras aos filhos dos operrios. Nos arquivos, consta a existncia de um posto de puericultura, porm, sem detalhar onde este funcionou, o nmero de alunos ou mesmo quem foi o responsvel, a professora ou o professor destes. Ladislau Olcha afirmou que, devido ao grande nmero de imigrantes da Polnia, existiu uma escola polonesa que alfabetizava as crianas nessa lngua. Contou que terminei o terceiro ano na escola polonesa. O Professor Fidelis era um polons que as crianas adoravam, porque distribua balas, bananas...(Depoimento de Ladislau Olcha). Afirmou tambm que este professor punia com tapas na cabea e que, depois da escola polonesa, foi criada a Escola Joo Pessoa.
4.2.4 Cinema, cassino, restaurante e hotel
As antigas construes da cidade-empresa americana, ao longo de quase um sculo de Histria, passaram por diversas funes em contextos distintos. Das que ainda esto em p, o prdio do hotel, ao ser construdo, era uma instalao 193 casa morada ou uma espcie de alojamento para os funcionrios que no possuam casas para morar e, principalmente, os operrios especializados que vinham para trabalhos temporrios. Aps a nacionalizao da Lumber, o mesmo prdio se tornou o Hotel Sobralumber e abrigou hspedes comuns da Southern Brazil Lumber & Colonizaztion Company Incorporada ao Patrimnio Nacional. Com a instalao da Quinta Regio Militar, com o Campo de nstruo do Exrcito, foi usado como Alojamento de Contingente. Na dcada de 1990, tornou-se Biblioteca Municipal, Casa da Cultura e, na dcada que completar um sculo de Histria, sede da Escola de Educao Bsica General Osrio (Sueli Regina Lima Ub. A Gazeta Tresbarrense, Trs Barras, out. 2005). Alguns detalhes do hotel instalado no ptio da cidade-empresa so narrados por um antigo funcionrio que destacou a presena de um famoso cozinheiro chins a servio dos americanos: Jorge Swintou, alto, de 1,90 cm era um homem muito atencioso e simptico, a todos atendia bem, como homem educado (SCRAMM, 2005). Sendo o local de hospedagem de norte-americanos, geralmente afiadores ou serradores especializados, estes comiam bastante no breakfast. Swintou demonstrava grandes habilidades culinrias, conseguia matar um frango, depenar, preparar e servir em 15 minutos, o que agradava aos seus pensionistas. Estes funcionrios percebiam vencimentos de 4.000 ris, enquanto o funcionrio brasileiro categorizado no passava de 1.000 ris. Alm disso, Scramm lembra que o cozinheiro Swintou administrava um sortido bar com usque, gim e outras bebidas estrangeiras. Por ocasio da Revoluo de 1930, o cozinheiro chins tinha simpatia pela faco de Getlio Vargas, contrariando a posio dos dirigentes americanos. Vargas ganhou a Revoluo, mas, mesmo assim, o cozinheiro perdeu o emprego, pois os chefes no souberam tolerar (SCRAMM, Carlos. A Gazeta Tresbarrense, Trs Barras, out. 2005). Outro hotel, este construdo fora da cidade-empresa americana, tambm teve papel destacado na vida dos moradores de Trs Barras e do Planalto Norte Catarinense. O Hotel Amrica era um prdio tpico do estilo Velho Oeste americano. Por dcadas seguidas, abrigou viajantes e compradores de erva-mate e madeiras. Na madrugada do dia 30 de outubro de 2005, um incndio transformou em cinzas o valoroso patrimnio arquitetnico que se encontrava em processo de tombamento. 194 O patrimnio edificado pela empresa americana em Trs Barras, ao longo de quase um sculo de Histria, passou por muitas transformaes, sofrendo com a ao dos incndios, das fogueiras de limpeza e de desmanches, entre outros. Valdemiro Noga, em seu depoimento, contou como conseguiu derrubar a ltima das cinco grandes caldeiras que produziam o vapor que abastecia a cidade-empresa com energia: Um dia resolveram desmanchar as caldeiras e o coronel me chamou (Depoimento de Valdemiro Noga). Afirmou que, depois de estudar a situao, o depoente utilizou o guincho, desmanchou e retirou as caldeiras com a locomotiva.
Figura n. 45: Cinema
Fonte: Acervo da produo do documentrio Contestado: restos mortais de Sylvio Back e Zeca Pires. Foto de Ado Karwat.
Alm das referncias ao hotel, s mquinas e ao armazm, outra freqente lembrana dos antigos trabalhadores da Lumber era o cinema. Vrios filmes foram lembrados pelo nome, como guia Negra, A Ponte de Waterlloo e Seriado Submarino (Depoimento de Ladislau Olcha). Ao lado do cinema, ficava o restaurante onde trabalhava o cozinheiro Jorge Swintou. Elvino Moreira, em seu depoimento, 195 lembrou que neste lugar, se bebia, comia e tambm tinha uma sala de jogos freqentada pelos funcionrios mais graduados (Depoimento de Elvino Moreira). Carlos Scramm, antigo funcionrio da Lumber, afirma que existiram dois cinemas dentro da cidade-empresa americana, um denominado Monroe que era exclusivo para os americanos e o Variedades, aberto tambm para os operrios brasileiros (Revista Os Pioneiros, ano 1, n. 1, 1986). O cinema Variedades foi estabelecido pelo comerciante italiano Joo Fontana, av de duas depoentes: Cely Ferreira Tramujas e Ninpha Ferreira de Oliveira. importante destacar duas datas que so marcantes e que indicam mudanas no rumo do patrimnio da Lumber: em 1939, quando da sua nacionalizao pelo Presidente Getlio Vargas, com a nomeao de uma comisso, especialmente designada, para dar continuidade aos empreendimentos; em 1952, quando passou para o Exrcito, no dia 11 de setembro de 1952, foi oficialmente entregue os bens da extinta Southern Brazil Lumber & Colonizaztion Company (neste momento, pertencendo Superintendncia das Empresas ncorporadas ao Patrimnio Nacional) ao Ministrio da Guerra. Atravs de um termo de entrega e de recebimento, o representante da Superintendncia das Empresas ncorporadas ao Patrimnio Nacional passou os bens para o representante da Quinta Regio Militar, Coronel Nelson Cruz. A relao apresenta 109 pginas, descrevendo minuciosamente os bens que foram passados para a responsabilidade do Exrcito. Do patrimnio arquitetnico, existem referncias ao armazm, ao almoxarifado e farmcia, com estoques existentes nos mesmos, importam, respectivamente em CR$ 497.716,10 (quatrocentos e noventa e sete mil, setecentos e dezesseis cruzeiros e dez centavos). A soma segue, acrescentando bens mveis e imveis at alcanar a quantia de CR$ 31.532.516,20 (trinta e um milhes, quinhentos e trinta e dois mil, quinhentos e dezesseis cruzeiros e vinte centavos). Corresponde, pois, soma geral dos referidos bens, agora sob os cuidados do Exrcito (Revista Os Pioneiros, ano 1, n. 1, 1986). Os papis velhos que escaparam do fogo, os documentos oficiais ou de particulares, jornais, revistas e as memrias de antigos trabalhadores da Lumber ou 196 de seus descendentes foram imprescindveis nestas narrativas focadas na reconstituio de apenas aspectos da Histria silenciosa, pouco ou quase nada conhecida para a maioria dos moradores da prpria Regio do Contestado e de relevncia tambm para a Histria Geral e do Brasil. Ao montar este verdadeiro quebra-cabea com raras e com escassas peas, as imagens tornaram-se fundamentais nas ilustraes e no auxlio s narrativas. Este recurso, fartamente utilizado neste captulo, mereceu a ateno e a breve descrio sobre o fabuloso legado visual deixado atravs de fotografias.
4.3 FOTOGRAFIAS DA LUMBER
A presena de fotgrafos profissionais nos empreendimentos de Percival Farquhar reforam a idia da narrativa dos triunfos do homem sobre a natureza. De fato, no existem limites para as foras poderosas dos guinchos, donkeys e locomotivas. O homem, pela sua engenhosidade, vai desbravar a natureza e trazer o progresso. O gigante donkey, arrastando o pinheiro como se fosse um palito de dentes, causava a perplexidade e reafirmava a vitria do homem sobre a natureza. Mesmo que as fotografias, no contexto da execuo do Programa Farquhar, fossem recursos pouco popularizados, carregavam o fascnio e o poder de seduo aos olhos dos admirados expectadores. Nos empreendimentos de Percival Farquhar, sempre foi destaque a figura do fotgrafo, prezando pela importncia dos registros visuais. A Histria da Ferrovia Madeira-Mamor, sem o Dana Merril, certamente nos faria percorrer outros caminhos da imaginao para elocubraes sobre o empreendimento de tamanha envergadura. Sem sombra de dvidas, os retratos que congelam o tempo nos levam para percepes inimaginveis. Na Southern Brazil Lumber & Colonizaztion Company em Trs Barras, alm das fotografias, houve a produo de um documentrio onde este filme sem sonorizao, gravado em 1913, apresenta todos os processos da engenhosa indstria madeireira instalada em plena Regio do Contestado. Embora no encontrando documentao escrita que destaque precisamente as razes da 197 produo cinematogrfica, constitui-se, mesmo assim, em precioso material para um olhar expandido em todos os processos produtivos da empresa e de suas possveis significaes. A cidade-empresa americana de Trs Barras teve trs grandes fotgrafos que nos legaram a riqueza do acervo que compe os documentos mais visveis e apreciados pelo pblico que busca a Histria. Basta visitar os museus da regio e as exposies: estes apresentam as fotos, muitas vezes sem a justa e merecida autoria e crditos 81 . Trs fotgrafos so destacados por lanarem o seu olhar atencioso e suas lentes ao fabuloso patrimnio da Lumber: Ado Karwat 82 , Claro Gustavo Jansson e Luz Szczerbowski.
4.3.1 Claro Gustavo Jansson
Nascido na Sucia, no dia 04 de abril de 1877, Claro Gustavo Jansson era um dos seis filhos de um oleiro que, no ano de 1891, embarcou com a famlia para a Amrica - Claro tinha 14 anos. Deixaram na Sucia a irm mais velha de 16 anos e os demais seguiram as levas de suecos que, desde 1850, rompiam mares em direo ao oeste e ao cabo de 100 anos, de acordo com o senso sueco, j eram mais de um milho de imigrantes vivendo na Amrica. O grande xodo para a Amrica era fruto do colapso econmico em que havia mergulhado toda a Europa no sculo XX, acompanhado de epidemias de clera e de uma estrutura social catica, que no comportava mais as esperanas de crescimento de um povo criado para o trabalho e a disciplina. Segundo D'Allessio, ainda no navio, o destino da famlia foi traado quando o oleiro Jansson recebeu a proposta de se estabelecer em Jaguariava, no Estado do Paran, para exercer a sua profisso. A vida no Brasil, apesar da Terra Prometida, no foi o encontro com o sonhado Eldorado. As cartas trocadas com a filha da Sucia, conhecidas um sculo depois, revelam as dificuldades da nova vida no contexto histrico da nova Ptria que recm libertara do
81 A falta de identificao do autor da fotografia uma prtica constante tambm em livros que so publicados sem respeitar a autoria da imagem. Muitas imagens destes fotgrafos, h anos, circulam sem a devida identificao no se sabe se h desconhecimento do autor ou m-f. 82 nfelizmente, pela escassez de fontes e, principalmente, de tempo e de recursos, no foi possvel narrar, ao menos um pouco, sobre Ado Karwat. Por causa disso, resta observar no texto as suas fotos e reconhecer a riqueza dos detalhes e a qualidade das imagens. 198 cativeiro os escravos; os fazendeiros do caf, por seu turno, chegavam ao poder decididos a manter a propriedade da terra sob controle. As barreiras culturais tambm foram duros obstculos para os imigrantes suecos. Esclarece o referido autor que, com apenas 15 anos, Claro Jansson j havia sado de casa e morou um tempo no povoado da Lapa, local que em 1893 foi um dos palcos da Revoluo Federalista, episdio sangrento narrado pelo menino astuto que conseguiu escapar para Jaguariava na casa dos pais. Recrutado pela Guarda Nacional j no contexto final da Revoluo Federalista, desvencilha-se da tropa, faz uma breve passagem pelo Sudeste cafeeiro e, em 1895, est em Porto Unio, trabalhando em uma olaria (D'ALESSO, 2003, p. 10 - 11). Depois da olaria, os anos que se passaram foram marcados por outros ofcios como o de madeireiro da extrao e de transporte por balsas pelo Rio Uruguai para o mercado argentino ou, ainda, pelo trabalho com a erva-mate. Como ervateiro, transferiu-se para a regio de Misiones na Argentina. Neste tempo, Claro j havia constitudo famlia e logo se transforma em fotgrafo. No ano de 1907, Claro est com o aparelho de tirar fotos, com sua curiosidade de viajante e olhar sinuoso e antropolgico passou a documentar seu cotidiano da lida com o mate, os barraces, os extrativistas, mulas e vapores, como escreveu D'ALESSO (2003, p. 22). Claro ento documentou importantes episdios da Histria brasileira, como a passagem das foras paulistas durante a Revolta dos Tenentes, as tropas combatendo na Revoluo de 1930 e a Revoluo Constitucionalista de So Paulo. Jansson foi tambm o fotgrafo da Revolta dos Sertanejos do Contestado, acompanhando os movimentos da guerra ao lado das tropas do Governo e, ainda, segundo D'Alessio, no ano de 1914, Claro estava empregado na Southern Brazil Lumber & Colonization Company, encarregado fazer a cobertura fotogrfica da serraria da Lumber, at hoje a maior que j se montou no Brasil (ibid., p. 70-114). Alm de fotografar a cidade-empresa americana de Trs Barras, tambm registrou importantes imagens da Lumber Morungava, outro empreendimento do Programa Farquhar que se localizava prximo a tarar e que constam registros no Arquivo Particular de Romrio Jos Borelli. Durante o perodo em que trabalhou na Lumber, Jansson desempenhou tambm outras funes, como as de Juiz de Paz e de Delegado de Polcia. Em 199 1928, mudou-se com a famlia para tarar, onde morreu em maro de 1954, deixando um legado de milhares de registros fotogrficos relacionados a momentos cruciais da Histria brasileira.
4.3.2 Luz Sczcherbowski
Natural de Wadovice, na Polnia, Luiz Sczcherbowski chegou ao Brasil por volta de 1900, tambm acompanhando as levas de poloneses que vinham para a Amrica. Primeiramente, estabeleceu-se em Curitiba, onde se casou com Maria, tambm imigrante polonesa, e l permaneceram por aproximadamente uma dcada. Poliglota, falando polons, russo, alemo, ingls e portugus, durante o tempo que esteve em Curitiba, editou um jornal chamado Nard, traduzido para o portugus como O povo. No ano de 1911, mudou-se para Trs Barras, em que a facilidade de comunicao auxiliou no dilogo com os dirigentes americanos; j nos primeiros tempos de funcionamento da Lumber, Luiz comeou a trabalhar como apontador e como vendedor de terras no setor de colonizao da empresa americana. Nele, o esprito empreendedor manifestou-se cedo, pois j em 1914 Luiz deixou a Lumber e iniciou uma fbrica de cigarros. Criou as marcas de cigarro Trs Barras, Rio Tigre e Norton: Era uma das poucas fbricas de cigarros do Brasil, que eram produzidos com filtro, um filtro que se chamava Salvesol, que era um algodo qumico que no permitia a passagem do narctico para os pulmes (A Gazeta Tresbarrense, ago. 2004). Alm da fbrica de cigarros, instalou na Colnia Rio Tigre um gerador de energia eltrica e um moinho colonial movidos com fora hidrulica. Formou um pomar com sementes importadas e produziu frutas e verduras com excelentes resultados; chegou a formar at um apirio e estabeleceu em Trs Barras um aougue e uma casa comercial. Mesmo desempenhando vrias atividades, o maior legado deixado pelo imigrante polons foi a produo de fotografias, realizadas desde a sua chegada em Trs Barras. 200 Luiza Shelemberguer Sczcherbowski afirma que Luiz foi o primeiro fotgrafo de Trs Barras. Conta que todos os negativos das fotos eram gravados em vidro e at os dias de hoje podem ser revelados, produzindo bonitas fotos da poca (A Gazeta Tresbarrense, ago. 2004). Claro Jansson chegou para morar e trabalhar em Trs Barras em 1914. As fotos que antecedem a este perodo, desde a fase da instalao da Lumber, foram tiradas por Luiz. Existem vrias dificuldades em se precisar a autoria de muitas fotos pela falta de atribuio de crditos aos autores. Vtima de uma infeco causada pela extrao de um dente, com apenas 44 anos, Luiz morreu e deixou singulares fotografias da instalao, dos primeiros passos da empresa americana em Trs Barras, e tambm do seu incipiente e exemplar trabalho no ramo da manufatura, sem ser no setor madeireiro.
4.4 NARRATIVAS DE MEMRIAS
A Histria de muitas pessoas esteve diretamente ligada aos acontecimentos e aos fatos que envolveram toda trajetria da SBL&CC, desde a sua instalao, iniciada em 1909, com o desenrolar da Guerra do Contestado, com a atuao daquela empresa at ser nacionalizada, com o perodo em que pertenceu s empresas incorporadas ao patrimnio da Unio e, depois, como campo de instruo do Exrcito at a atualidade. De diversas partes do mundo, Histrias de vida se entrelaam aos acontecimentos e aos fatos do cotidiano e da vida de milhares de pessoas que viveram no contexto de atuao da Lumber. Neste sentido, a Histria de muitos a prpria Histria da Lumber e vice-versa, cada qual com suas lembranas e Histrias de vida. Foram tantos os operrios que trabalharam e que tiveram a sua trajetria pessoal relacionada Histria da Lumber, que inmeras e interessantes narrativas poderiam ser aqui citadas. migrantes que deixaram para trs a Ptria, arriscaram-se por longas e por perigosas viagens ao desconhecido, sonhando com uma vida melhor. Entre os entrevistados, encontramos o maior nmero de imigrantes que 201 trabalharam na Lumber, advindos da Rssia, Ucrnia, Alemanha e Polnia (Anexo 17 - Memrias de um imigrante polons). So tantas as memrias como nos contou Pedro Moskwen (in memoriam), afirmando que o seu av Lucas Moskwen morreu acidentalmente na Ucrnia e a av, com trs filhos, veio embora para o Brasil. O pai, chamado Miguel Moskwen, comeou a trabalhar na Lumber, e a me voltou para a Ucrnia e levou junto o filho mais novo, Antnio Moskwen. O outro, tio de Pedro, com o mesmo nome, foi embora para a Argentina. Miguel continuou no Brasil, casou-se com Ana Kosak, uma polonesa, e tiveram 10 filhos. Pedro um deles e tambm trabalhou na Lumber, fez limpeza, trabalhou no vagonete, na circular e como serrador. Em 2008, com 93 anos, morando em Porto Unio, relatou memrias da Histria de vida e de trabalho da famlia Moskwen brasileira. Leopoldo Padilha completou 99 anos em agosto de 2008, trabalhou 19 anos na Lumber; os seus pais vieram da Lapa, Paran, e eram brasileiros. Leopoldo contou que os brasileiros trabalhavam, principalmente, nas matas e na empilhao de tbuas. Lauro Dobroshinski, por sua vez, brasileiro e trabalhou na Lumber. O pai, Miguel Dobroshinski, quando veio da Ucrnia, j era casado com Afka Dobroshinski. Miguel trabalhou primeiramente na Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande, depois foi trabalhar na Lumber como operador de guinchos. So muitas as memrias de trabalhadores e caboclos da Regio do Contestado assim como h muitos arquivos, papis velhos, bibliografias, imagens, jornais antigos e atuais que revelam aspectos pouco estudados da Histria do Contestado. A chegada e a atuao da Brazil Railway Company na Regio do Contestado se fez ostensiva com a inaugurao da ferrovia no ano de 1910. Por extenso, em 1911, a Southern Brazil Lumber & Colonization Company inaugurou o maior complexo industrial madeireiro da Amrica do Sul e mudou o panorama da Regio. O ano de 1911 ficou marcado pela seca da taquara, um flagelo para os moradores simples do Serto Contestado. Nos anos seguintes, a atuao da madeireira e colonizadora so paralelos ao conflito desencadeado e que se estende at o ano de 1916. A Guerra do Contestado, neste contexto de profundas mudanas, o tema que ser tratado no prximo captulo. 5 A ATUAO DA BRAZIL RAILWAY COMPANY E A GUERRA DO CONTESTADO
Nis no tem direito a terra, tudo pras gentes da Oropa. Sertanejo rebelde do Contestado
5.1 A FERROVIA SO PAULO-RIO GRANDE: TRANSFORMAES
O desenvolvimento dos movimentos internacionais de capitais e de mercadorias no final do sculo XX e nas primeiras dcadas do sculo XX, na Regio do Contestado, ficou marcado pela construo da Ferrovia So Paulo-Rio Grande, componente da grande e complexa Brazil Railway Company. A inaugurao desta Ferrovia ocorreu no final do ano 1910, segundo Amin e Vergapoulus (1997), perodo considerado como a poca clssica do fenmeno imperialista, definido como constitutivo de um sistema capitalista internacional. A chegada do capital internacional na Regio do Contestado, nos primeiros anos do sculo XX, desencadeou um processo de transformao econmica, poltica, social e cultural que provocou agudas mudanas no mago da cultura do povo que vivia no Serto Contestado. O contato com os centros urbanos quebrou o isolamento secular da populao que vivia na Regio. Neste sentido, a Ferrovia So Paulo-Rio Grande carregou em seu bojo a explorao comercial da madeira, a colonizao e a institucionalizao da propriedade privada, fatores esses decisivos na deflagrao da crise que submeteu o sertanejo progressiva marginalizao. Esta foi, pois, a principal causa da ecloso do maior conflito social brasileiro da Repblica Velha, denominado Guerra do Contestado. A instalao da Southern Brazil Lumber & Colonization Company na floresta ombrfila mista estava de acordo com o Programa Farquhar; como foi possvel constatar, possibilitou a cadeia lucrativa em vrias dcadas de explorao comercial 203 madeireira e atividades colonizadoras. Contudo, as mudanas que ocorreram com a chegada do grupo Farquhar impulsionaram a luta armada na Regio do Contestado.
5.2 A GUERRA DO CONTESTADO
O desencadeamento da guerra na Regio do Contestado foi antecedido por acontecimentos significativos. Os mais expressivos foram a inaugurao da Ferrovia So Paulo-Rio Grande, em dezembro de 1910, consolidando a via de chegada do capital internacional na Regio e, ainda, o incio das atividades madeireiras e colonizadoras pela Southern Brazil Lumber & Colonization Company no ano de 1911 e que transformaram totalmente a Regio do Contestado. No mesmo ano, um edital publicado pela Companhia Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande, no jornal O Palmense, alertava os moradores: Este faz saber que expressamente proibido invadir ou ocupar os terrenos pertencentes Companhia Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande, situados em ambas as margens do Rio do Peixe e em outras localidades onde, por concesso estatal, a Companhia da Estrada de Ferro possui terras que j foram ou esto sendo medidas e demarcadas por ela. (...) Fazendo ciente aos que nela trabalharem ou se estabelecerem, que proceder judicialmente contra os invasores, tornando-os responsveis por perdas e danos. E para que ningum alegue ignorncia, mandou fazer o presente que ser fixado nos lugares mais pblicos e publicado pela imprensa. Para informaes concernentes a terras para venda pela companhia da Estrada de Ferro, dirija-se a (...) Coronel Henrique Rupp nspetor, Campos Novos, Santa Catarina. Francis E. Cole Comissrio de Terras, Curitiba Paran (O PALMENSE apud BERNARDET, 1979, p. 51- 52).
Muitos moradores j estavam estabelecidos nas terras prximas ao Rio do Peixe, de longa data, e viviam na condio de posseiros. Para o historiador Oswaldo Rodrigues Cabral, a concesso feita Ferrovia So Paulo-Rio Grande foi a causa do desalojamento dos moradores das terras devolutas: O Caboclo da regio, valente, embora humilde, foi ainda vtima de mais uma injustia. Sobre o Vale do Rio do Peixe, em terras devolutas, instalara, aqui e alm, o seu rancho, a sua pequena roa. Vivia rudimentarmente, esquecido no meio do mato. Lembraram-se dele, entretanto, para expuls-lo das terras que ocupara (CABRAL, 1960). Assim escreveu Marli Auras: homens sem terra construam toscas moradias em reas devolutas (AURAS, 1984, p. 31). 204 Afirmaes realizadas por um diretor da Lumber, descrita em um dos relatrios da Companhia, evidenciam que o projeto de extrao madeireira e de colonizao na Regio do Contestado enfrentaria dificuldades, mesmo depois do acerto dos limites interestaduais: Esta propriedade sempre teve intrusos na mesma (...). Muitos destes intrusos foram nascidos e criados na propriedade assim como seus pais, e para faz-los se retirar agora encontraramos grandes dificuldades. (Relatrio da Southern Brazil Lumber & Colonization Company ao presidente da Brazil Railway Company de abril de 1917).
Figura n. 46: Defesa da Lumber
Os
Fonte: D'ALESSO, Vito. CIaro Jansson: o fotgrafo viajante. So Paulo: Dialeto Latin American Documentary, 2003. p. 49.
Observa-se, na foto, uma trincheira formada com palanques de madeira e os preparativos de defesa da Lumber em caso de ataque por parte dos sertanejos rebelados. De fato, em 29 de setembro de 1914, a grande serraria de Trs Barras foi atacada; no entanto, os sertanejos foram repelidos pelo forte e pelo bem armado grupo de seguranas particulares da empresa. 205 O socilogo Duglas Teixeira Monteiro (1974, p. 43-49) constatou que, no mundo rstico do sertanejo, existia a violncia costumeira que era componente das duras condies de vida impostas por obra do destino, pelas questes de honra, pelas questes polticas e pela violncia relacionada a questes de terra. Prpria do mundo rstico, a inexistncia de escolas, de igrejas, de hospitais ou de delegacias relegava a resoluo dos conflitos constituio dos grupos protegidos e a servio dos coronis. Com o capital internacional, chegou a violncia inovadora que provocou mudana nos costumes e nos modos de encarar a vida e de se resolver as pendengas. O referido socilogo apontou traos dessa violncia inovadora nas atividades da construo da ferrovia, exemplificando com a chegada de levas com milhares de homens de diversas capitais brasileiras, recrutados mais ou menos fora. Novas relaes de trabalho foram estabelecidas e os conflitos passaram a ser resolvidos pelo corpo de segurana particular das empresas que chegaram. A Regio, j carregada de tenses, contou com novos e diferentes elementos: O estabelecimento da Brazil Railway, como tambm, da Southern Lumber na rea faz com que surjam modalidades novas de controle, de violncia e de represso. Se ambas dispunham de polcia prpria, distinguia-se esta dos bandos tradicionais de capangas por estar a servio de interesses econmicos annimos e no disposio dos interesses pessoais de determinados coronis (MONTERO, 1974, p. 44).
Nas reas de concesso das empresas advindas com a ferrovia, posseiros foram expulsos pelos grupos particulares de segurana e muitos transformados em intrusos, dando origem a uma numerosa massa marginalizada, criando um clima de incerteza, inclusive entre pequenos proprietrios e fazendeiros mdios. (bid., p. 45). Os primeiros despejos, segundo Vinhas de Queiroz, ocorreram no ano de 1911. Escreve o referido autor: Contra os posseiros que se recusavam a retirar-se dessas extenses, Achilles Stengel enviava o Corpo de Segurana da empresa, composto ento de 200 homens (VNHAS DE QUEROZ, 1977, p.73). Alm dos primeiros despejos, o ano de 1911 tambm ficou marcado pela seca da taquara 83 ,
83 O fenmeno da seca da taquara ocorre a cada trs dcadas. A taquara floresce e larga uma semente que alimenta e que prolifera em grande quantidade os ratos. Quando terminam as sementes, os roedores atacam as plantaes, invadem os paiis e as casas. Para os moradores 206 um flagelo natural que piorou o quadro de carestia e que agravou a crise. Tais fatos reforam a afirmao de Donald Schller que a Guerra do Contestado foi um massacre do poder econmico contra camponeses espoliados e desassistidos. (SCHLLER, 1996, Jornal o Contestado). Schller exemplificou: Os europeus foram trazidos para a Regio do Contestado para derrubar as florestas. Trouxeram um processo de desertificao. Os pinhais foram derrubados e a populao nativa tinha o pinho como alimento. Contriburam para o derramamento de sangue na Regio do Contestado (loc. cit.).
Diante da misria provocada pela falta do milho, devorado pelos ratos, dos pinhes, pela derrubada dos pinheiros e pelos despejos das terras onde viviam, o quadro dos errantes do novo sculo 84 foi perambular pelos sertes e buscar em Jos Maria a esperana de um tempo de Justia e de felicidade na imaginao e na criao de uma cidade santa, ambiente mstico, esse que confortava os atribulados sertanejos da Regio do Contestado. Os fatos que desencadearam o incio da Guerra do Contestado esto relacionados aglomerao em torno de Jos Maria e s disputas polticas entre os coronis de Curitibanos e Campos Novos. Aps a partida do squito para o rani e o combate contra o Regimento de Segurana do Paran, restaram aos sertanejos o desgosto pelos mortos, as armas abandonadas pelos soldados e a crena de que Jos Maria iria ressuscitar. O quadro de complexas variantes 85 apontado por Celso Martins (2007) continuava presente no cotidiano dos sertanejos sobreviventes do Combate do rani, que, aps o enterro dos mortos, principiaram a dispersar-se pela Regio. Os que ainda tinham onde morar, voltaram para os ranchos: Empregados da estrada de ferro margem do Rio do Peixe, informaram que diversos fanticos passaram para Santa Catarina, conduzindo amigos e parentes feridos, alguns em estado grave (VNHAS DE QUEROZ, 1981, p. 105).
que viviam isolados no Serto em ranchos precrios, era uma sria ameaa e sinal de crise de alimentos. 84 Assim denominados pelo socilogo Duglas Teixeira Monteiro. 85 As complexas variantes apontadas por Martins foram abordadas no primeiro captulo e dizem respeito s disputas pela terra entre os coronis, a presena e a atuao da Brazil Railway Company, as disputas pelo territrio contestado, o Messianismo, entre outras. 207 O reencontro dos sertanejos nos redutos ou nas cidades santas 86 comeou quando Eusbio Ferreira dos Santos, lavrador de Perdizes Grandes, que esteve com Jos Maria antes da partida para o rani, convocou os vizinhos para o retorno cidade santa de Taquaruu. As notcias do combate, da morte e do pressgio da ressurreio de Jos Maria chegaram at ali e foram acolhidas com venerao. No apenas Eusbio, mas tambm Manoel Alves de Assuno Rocha cultivavam obstinada devoo a Jos Maria. Tudo comeou quando Teodora, uma neta de Eusbio, menina rf de me, teve as suas primeiras vises: afirmou que Jos Maria conversou com ela. A notcia espalhou-se logo e muitos acorreram at a casa de Eusbio, buscando remdios e novidades. Sobre as vises de Teodora, ningum duvidou: as ordens que a menina transmitia passaram a ser cegamente obedecidas. No segundo semestre de 1913, chegou Eusbio com a famlia, e alguns gneros de primeira necessidade, a Taquaruu. Acampou em um galpo de Francisco Paes de Farias, onde aguardaria a ressurreio. Em poucos dias, o arranchamento feito prximo casa de Francisco Ventura ganhou ares de vilarejo, aumentando, dia aps dia, o nmero de habitantes. Uma semana depois da chegada, segundo Vinhas de Queiroz, encontravam-se no local mais de 300 pessoas. Estava ressurgindo a "cidade santa de Taquaruu" (VNHAS DE QUEROZ, 1981, p. 125). Taquaruu tornou-se a cidade santa, sendo instituda ali uma srie de normas que iriam reger a vida dos sertanejos nos redutos: normas que se modificaram com o passar do tempo, entre outras, a que identificava como irmo quem raspasse a cabea e andasse com fita branca no chapu. 87
86 Cidade santa ou reduto eram os locais onde os sertanejos se encontravam e viviam provisoriamente, buscando alento nas oraes e nas tentativas de convivncia fraterna, identificados com a irmandade cabocla. Um estudo, por ns elaborado, foi aprofundado durante a pesquisa para a elaborao de dissertao de Mestrado neste mesmo Programa de Ps- Graduao com o seguinte ttulo: Da cidade santa corte celeste: memrias de sertanejos e a Guerra do Contestado. Foi publicado em livro em 1998. 87 No filme A Guerra dos Pelados (1971), o cineasta Sylvio Back representou os caboclos despojados de bens e de cabelos raspados. Na legenda h a seguinte descrio: Outono de 1913, Taquaruu, interior de Santa Catarina, Campanha do Contestado. A concesso de terras a uma companhia de estrada de ferro estrangeira para explorar suas riquezas e a existncia de reduto messinico formado por posseiros geram um sangrento conflito. Por exigncia dos coronis da regio, foras regulares intervm para liquidar as tenses. 208 Figura n. 47: Procisso
Fonte: D'ALESSO, Vito. CIaro Jansson: o fotgrafo viajante. So Paulo: Dialeto Latin American Documentary, 2003. p. 78-79.
A cena retrata uma procisso de rebeldes e revela aspectos comuns aos costumes dos moradores das cidades santas, a saber, a roupa branca, o uso de smbolos como a bandeira e a rotina de oraes na hora das formas no quadro santo. Foram institudas as Formas e o Quadro Santo 88 , a partilha dos bens entre os irmos e a obedincia ao representante de Jos Maria. Recriaram-se os Pares de Frana para prestarem auxlio nas solenidades das formas. As atribuies dos Pares de Frana 89 se modificariam a partir de Caraguat, a princpio, intermedirios entre videntes e os demais. Cumpriam, de incio, um papel religioso. Nas formas, alm do encontro mstico, era o momento de repassar as ordens que vinham de Jos Maria. A cidade santa de Taquaruu ganhou adeptos de todos os lados, desde posseiros, lavradores, ex-trabalhadores das empresas que haviam se instalado na
88 O Quadro Santo com quatro cruzes eregidas nos cantos, as procisses percorriam todo o terreiro e paravam na frente de cada cruz para recitar oraes e dar vivas aos santos e a So Joo Maria. As formas eram os momentos de oraes matutinas, vespertinas e noturnas. Depoimentos de Porfrio e Manoel (Documentrio: Contestado - a guerra desconhecida). 89 Pares de Frana era a denominao inspirada nas leituras das histrias fantsticas do Rei Carlos Magno. Teve a autoria atribuda ao alfabetizado curandeiro de ervas Jos Maria, que teria criado a sua guarda de honra, formada por doze pares (24 pessoas). Os componentes da guarda ou dos pares de frana, destacaram-se pelas aptides religiosas e blicas. 209 regio e at pequenos e mdios proprietrios. O movimento alastrou-se, tornou-se alarmante e preocupou as autoridades. Segundo Duglas Teixeira Monteiro, o territrio conflagrado abrangeu uma rea entre 25 e 28.000 km 2 e mais de 20.000 sertanejos que viviam na regio. Os sertanejos que estiveram nas cidades santas conviveram em grupos estimados de 300 at 5.000 habitantes (MONTERO, 1974). Figura n. 48: Tropas na Regio do Contestado
Fonte: Revista O Cruzeiro, 25 fev. 1956.
As tropas que seguiam pelo Serto, ao encalo das cidades santas, eram apoiadas pelos vaqueanos. Estes civis eram os capangas que serviam aos coronis e conheciam a regio, muitos dos quais eram antigos moradores dos redutos. Foi no Reduto de Taquaruu que comearam os confrontos entre os sertanejos e as foras oficiais. 90 Em dezembro de 1913, ocorreu o primeiro choque entre a Fora Pblica catarinense e os sertanejos, entretanto, no dia 08 de fevereiro de 1913, o Exrcito Republicano brasileiro, com um efetivo de aproximadamente 700 soldados, bombardeou e arrasou a cidade santa de Taquaruu. O mdico do Exrcito assim descreveu a cena:
90 Foras Oficiais podem ser denominadas como o Exrcito Nacional, as Foras de Segurana de Santa Catarina e Paran e tambm os vaqueanos recrutados na regio a servio destas foras oficiais que vieram para a Regio combater os moradores dos redutos. 210 O estrago da artilharia sobre o povoado de Taquaruu era tremendo: grande nmero de cadveres, calculados por uns em 40 e por outros em 90 e tantos; pernas, braos, cabeas, animais mortos, bois, cavalos, juncavam o cho; casas queimadas ruam por toda a parte. Fazia pavor e pena o espetculo que ento se desdobrava aos olhos do espectador: pavor dos destroos humanos; pena das mulheres e crianas que jaziam inertes por todos os cantos do reduto (CERQUERA, 1936, p. 20-21).
Antes da destruio do Reduto de Taquaruu, os sertanejos j haviam erigido Caraguat. No cabe aqui descrever todas as cidades santas por onde estiveram os sertanejos entre 1912 e 1915. Entre aqueles que a Histria destacou os maiores registros esto em Taquaruu, Caraguat, Bom Sossego, Caador, Santa Maria, So Miguel e So Pedro. Por vezes, com denominaes diferentes para o mesmo local, alguns menores, chegaram a ser apenas guardas avanadas. Observa-se que os lderes do movimento sertanejo passaram por mudanas no decorrer dos acontecimentos. No incio, habilidades religiosas garantiam a ascenso sobre os demais; porm, na etapa final, caractersticas belicosas garantiam o comando e os rumos da revolta. A organizao dos Pares de Frana tambm sofreu modificaes com o passar do tempo, principalmente no que diz respeito tarefa que competia aos seus integrantes. Nos primeiros tempos, desempenhavam atividades ligadas mais organizao religiosa das formas. Quando Venuto Baiano se tornou Comandante de Briga, substituiu os Pares de Frana existentes por exmios esgrimistas. Os Pares de Frana passaram a ser 24 sertanejos, escolhidos entre os mais geis no manejo do faco, e mais um tamboreiro que rufava o seu instrumento, para excitar os combatentes. Os Pares de Frana eram homens escolhidos, de talento, de frente, bem armados iam avanando. 91
Para se protegerem das armas inimigas, carregavam sempre consigo, nas gibeiras, 92 oraes que acreditavam ser poderosas para fechar o corpo. A princpio, estavam a servio da virgem, compondo a guarda de honra e auxiliando nas formas. De Caraguat em diante, estavam a servio do comandante geral. Alm de participarem efetivamente nos momentos decisivos dos combates, obedeciam s
91 Depoimento de Joo Maria de Gis, um dos remanescentes da Guerra do Contestado que foi tamboreiro dos pares de frana. Esteve nos redutos at o final, apresentando-se para as foras do Capito Vieira da Rosa. Entrevistado em 1996, morreu em 1998. 92 Gibeira corruptela de algibeira, bolso 211 ordens, aterrorizando os vacilantes e os inimigos do comandante. Assim o sonho da convivncia fraterna, com o passar do tempo, transformou-se em pesadelo. Os ataques das foras oficiais espalharam o constante medo e a morte nos redutos, que eram destrudos e queimados, aps serem tomados. O aumento do nmero de pessoas nos redutos escasseava os alimentos; seguiam-se a fome, a misria, as doenas. No bastasse, nos ltimos redutos, sob o comando de Adeodato, foi proibida a sada dos sertanejos. A pena capital passou a ser fato corriqueiro no cotidiano dos redutos - at lamentaes e choros foram proibidos. O auge do conflito ocorreu com a destruio do Reduto de Santa Maria, onde o Exrcito brasileiro encerrou a sua campanha e a etapa final foi marcada pela participao decisiva dos vaqueanos, muitos dos quais antigos moradores das cidades santas. Santa Maria chegou a reunir, de uma s vez, aproximadamente 5.000 habitantes. Na transferncia do reduto-mor de Caador para Santa Maria, o primeiro no foi abandonado: Dali at Santa Maria estendiam-se nove quilmetros de estrada que aos poucos foi sendo ladeada de casas, formando um casario quase ininterrupto (VNHAS DE QUEROZ, 1981, p. 240). Desta forma, Caador transformou-se em uma guarda que protegia a entrada do Vale de Santa Maria. Alm dos famosos piquetes que partiam em busca de comida, de armamento e at de pessoas para engrossar as fileiras de participante das cidades santas, existiam as guardas que protegiam dos ataques oficiais ou, na pior hiptese, protelavam o avano e davam o tempo suficiente para as pessoas se dispersarem pelas matas at a formao de uma nova cidade santa. Figura n. 49: Acampamento militar
Fonte: D'ALESSO, Vito. CIaro Jansson: o fotgrafo viajante. So Paulo: Dialeto Latin American Documentary, 2003. p. 74-75
212 A imagem acima traz o acampamento militar, com um grande efetivo de tropas, estacionado s margens do Rio guau, na cidade de Unio da Vitria, Paran. Sobre o assunto, a grande mobilizao fazia parte da estratgia do cerco militar aos redutos de toda a regio conflagrada. Em 08 de fevereiro de 1915, marcharam trs batalhes reforados por duas sees de metralhadoras sobre o Reduto de Santa Maria. A guarda que o defendia, liderada por Adeodato e Olegrio Ramos, com 100 homens entrincheirados em um desfiladeiro, conseguira segurar todo o efetivo oficial: O combate durou o dia inteiro, sem que a guarda tivesse sido tomada (bid., p. 255).
Figura n. 50: Croquis do Exrcito
Fonte: Arquivo Pblico do Paran
Figura n. 51: Croquis das reas adjacentes da maior cidade santa 213
Fonte: Arquivo Pblico do Paran
Os croquis do Exrcito, feitos em maro de 1915, evidenciam o cerco ao reduto de Santa Maria. As principais referncias so o Rio do Peixe e a Ferrovia So Paulo-Rio Grande, como pontos de partida de tropas s estaes de Calmon e Rio Caador. Para combater os sertanejos entrincheirados no reduto de Santa Maria, o Comandante Geral Setembrino de Carvalho marchou com o 14 Batalho de nfantaria, civis, artilharia de montanha e metralhadora (Anexo 4). O pesadelo tambm bateu nas tropas oficiais, e os comandantes so unnimes em narrar as dificuldades da luta contra os sertanejos que usavam de artimanhas na luta, estratgias que o prprio Exrcito desconhecia e que de nada adiantava a superioridade blica. O Tenente Assumpo declara que a facilidade com que os jagunos manejavam o faco superava em muito a dificuldade com que a carga da baioneta era dada dentro da mata, onde o manejo da carabina dificultado pelo seu comprimento (D'ASSUMPO, 1917, v. 1). Para o General Setembrino, as tticas de luta dos sertanejos no ensinavam as foras oficiais preparadas para a Campanha Clssica ou para a Grande 214 Guerra, no entanto advertia, ao apontar as falhas, mostrando-nos com sinceridade nua dos fatos, que precisamos melhorar intelectualmente, moralmente, praticamente. O General segue detalhando que os sertanejos tiram vantagem das emboscadas, visto que se escondem em posies inteligentemente escolhidas nas estradas que conduzem aos redutos, e procuram mant-las com o mximo vigor: estavam trepados em rvores, ocultos pelas folhagem, caando vontade e no cho so bons esgrimistas de faco, exmios no aproveitarem, como defesa, os acidentes do solo (CARVALHO, 1916). E neste cenrio de lutas, onde cada cidade santa desbaratada custava muitas vidas de lado a lado que, em abril de 1915, aconteceram os maiores confrontos da Guerra do Contestado entre o Exrcito brasileiro e os sertanejos protegidos pelas matas, pelas serras e pelos vales acidentados do Reduto de Santa Maria. Aps renhidos combates, as artimanhas e as tticas de luta dos sertanejos foram vencidas pelas armas do fogo. Desbaratada a resistncia cabocla, o reduto de Santa Maria virou cinzas. Os militares venceram a campanha e assim ficou registrada a queda da maior cidade santa da Guerra do Contestado: O nmero de jagunos mortos que foi possvel contar se eleva a 600... Relata que as mulheres tambm foram mortas e no fala nas crianas. Garante que os redutos de Caador e Santa Maria esto extintos e conclui que: no posso garantir que todos os bandidos que infestam o Contestado tenham desaparecido, mas a misso confiada ao Exrcito, cujo desempenho dependia do assalto ao Reduto de Santa Maria, est cumprida (CARVALHO, 1916).
Os soldados do Exrcito rumaram para a Estao do Rio Caador e retornaram aos quartis. Os sertanejos, liderados por Adeodato, ainda erigiram os Redutos de So Miguel e So Pedro. Ambos foram destrudos, bastando a participao das foras estaduais e dos vaqueanos, muitos dos quais eram antigos moradores das cidades santas. Manoel Martins, 93 antigo morador da cidade santa de So Pedro, contou que nos dias 17, 18 e 19 de dezembro de 1915, as Foras Pblicas e os vaqueanos atacaram o Reduto, estabelecido no exato local onde hoje a cidade de Timb
93 Entrevista realizada em 1995. Manoel Martins, irmo de Porfrio, tambm esteve no Reduto de So Pedro; o primeiro morreu em 1999. 215 Grande, Santa Catarina, no momento das oraes da forma no quadro santo. De surpresa, destruram o Reduto, matando os que no conseguiram fugir nem se entregaram. Aps cair a ltima cidade santa da Guerra do Contestado, para evitar novos ajuntamentos, a Fora Pblica catarinense permaneceu na Regio, comandada pelo Capito Vieira da Rosa, que tratava de prender os antigos moradores dos redutos que perambulavam a esmo, desnorteados e famintos. O Capito, informado de que os sertanejos haviam sido dispersados, mandou os piquetes trazer aquele povo que estava extraviado pelos matos. (...) Foram reunidos grupos de miserveis que mal podiam caminhar (LEMOS, 1989, p.73).
Figura n. 52: Rendio de caboclos na Guerra do Contestado
Fonte: Foto de Claro Gustavo Jansson, Acervo de Joeli Laba
Cena comum no final da Guerra do Contestado, muitos moradores dos redutos se entregavam em Canoinhas, Curitibanos ou para comandantes de tropas estacionadas pela regio. Na imagem acima, observa-se um grande nmero de crianas entre os caboclos capitulantes. 216 Traumatizados e com medo das execues, os sobreviventes que se entregavam, culpavam Adeodato por estarem nos redutos. O historiador Pinheiro Machado descreveu a demonizao que ocorreu ao ltimo lder sertanejo: Os sertanejos que tinham o azar de encontrar pela frente os piquetes vaqueanos de Pedro Ruivo, em Canoinhas, ou Colette, em Santa Ceclia do Rio Correntes, sabiam que seriam massacrados sem piedade. Estes procedimentos acentuaram o discurso de vitimizao dos que se apresentavam, semelhante a uma ladainha. Afirmavam que estavam vivendo fora nos redutos, sob a ameaa violenta e onipresente de Adeodato (MACHADO, 2004, p. 326).
O nmero de mortos da Guerra do Contestado estimado de 3.000 a 8.000, com grande dificuldade de clculos j que a grande maioria dos caboclos sequer tinha documentos, e as causas vo desde os que tombaram em combates, pela fome, pelas doenas ou pelas execues sumrias. 94 O nmero de efetivos das tropas oficiais chegou a 6.000, segundo Monteiro, um tero do Exrcito Republicano brasileiro, apoiado por aproximadamente 1.000 vaqueanos da regio e pelas Foras Pblicas do Paran e de Santa Catarina (MONTERO, 1974).
5.3 O CAPITO JOO TEIXEIRA MATTOS DA COSTA
A participao do Exrcito brasileiro na Campanha do Contestado ficou registrada em diversos livros elaborados pela gerao de militares da Repblica Velha 95 . Muitos haviam lutado contra os movimentos monarquistas do perodo e enfrentado o pesadelo de Canudos, o que pareceu se repetir na Regio do Contestado. Dos ltimos comandantes militares que atuaram no Contestado, dois se destacaram: Joo Teixeira Mattos da Costa e Fernando Setembrino de Carvalho. Joo Teixeira Mattos da Costa nasceu em 1875 no Estado do Rio de Janeiro. Em maio de 1889, foi admitido na Escola de Aprendizes e Artilheiros. Em 1891, foi transferido para o Quinto Regimento de Artilheiros, passou pelo 16
94 Em Canoinhas, o vaqueano Pedro Ruivo degolou mais de 100 sertanejos que se entregaram. O Capito Vieira da Rosa, aps a retirada do Exrcito da Regio, assumiu o comando dos piquetes que atuavam na represso aos antigos moradores das cidades santas (Documentrio - Contestado: a guerra desconhecida). 95 Entre os escritos principais esto os de Herculano Teixeira D'Assumpo e Setembrino de Carvalho. 217 Batalho de nfantaria e esteve disposio da Escola Militar na ento Capital Federal. 96
Durante a carreira militar, Mattos da Costa recebeu diversas promoes e passou por vrios regimentos antes de iniciar as viagens de campanha. Em 1894, ocupou o posto de Segundo Sargento, embarcou para So Paulo (tarar), marchando em uma coluna expedicionria para o Paran. Passou, ainda, para Primeiro Sargento e depois Alferes. Durante este tempo, tambm chegou a ser preso durante 15 dias por ter respondido de modo inconveniente ao seu comandante de companhia. No mesmo ano, foi louvado pela lealdade, pelo patriotismo e pela alta compreenso de seus deveres militares, durante o tempo em que fez parte do Batalho da diviso, no intuito de sufocar a revolta contra o Governo legalmente constitudo (DA COSTA, 1946, p. 2). Esteve no Rio Grande do Sul em 1896, no Batalho de nfantaria, onde recebeu elogios do General Comandante do Sexto Distrito Militar em nome do Presidente da Repblica pelos bons servios prestados, conservando-se observador da disciplina e do cumprimento dos seus deveres e pela irrepreensvel conduta que soube manter de modo a concorrer eficazmente para o glorioso feito da pacificao do Rio Grande do Sul e sua consolidao (DA COSTA, 1946, p. 3). Depois de voltar para o Rio de Janeiro em 1897, empreendeu com o Exrcito a fastidiosa marcha e luta contra os sertanejos seguidores de Antnio Conselheiro. Aps destacada participao militar no combate aos sertanejos de Canudos, sendo louvado pela boa vontade que revelou, atividade e zelo no servio, sendo declarado que o Batalho jamais esquecer a conduta distinta que teve no assalto de outubro de 1897 em Canudos (DA COSTA, 1946, p. 5) Retornou Capital Federal, onde, aps outras proezas, foi louvado pelo General - Chefe do Estado Maior do Exrcito, Senhor Hermes Rodrigues da Fonseca pela exemplar conduta, inteligncia a acentuado zelo de que deu exuberantes provas durante a Administrao do mesmo Senhor General e agradeceu-lhe o carinho afetuoso com que o distinguia e que o deixava inteiramente vontade no batalho (bid., p. 8). Mattos da Costa esteve ainda disposio do Ministrio da ndstria, Viao e Obras Pblicas para servir na Comisso de Linhas Telegrficas no Mato Grosso,
96 DA COSTA, Fernando Lopes. Diretor do Arquivo do Exrcito. nf. 2199 de 18/10/1946. 218 Acre e Amaznia: Louvado pelo zelo, interesse, inteligncia e lealdade com que se houve no comando interino da companhia, demonstrando ainda mais uma vez ser um oficial brioso e distinto (bid., p. 11). Em 1914, Mattos da Costa foi promovido a posto de Capito e iniciou a sua participao na Campanha do Contestado. No dia 06 de junho, assumiu o comando do Batalho na Cidade de Curitiba, embarcando na mesma data com o referido corpo; desembarcando no dia 07 em Porto Unio da Vitria, onde aquartelou (DA COSTA, 1946, p. 13). Comeou a sua curta e interessante atuao no combate aos sertanejos da Regio do Contestado. Mattos da Costa substituiu o General Mesquita no comando das operaes militares no Contestado. Mesquita, em breve atuao malograda, citou que exploraes polticas e exploraes econmicas so as causas da revolta dos sertanejos. Em seu relatrio, depois de exonerar-se, o General Mesquita escreveu que no queria andar com foras federais cata de bandidos como capito do mato do tempo da escravatura. Culpou os governos de Santa Catarina e Paran pela infestao de elementos perniciosos, pois ambos descuram da instruo, deixando a ignorncia campear livremente, chegando o fanatismo a constituir grupos (SOARES, 1931, p. 72). Cabe observar que a simpatia pelos sertanejos, na condio de explorados, no era apenas do General Mesquita. Mattos da Costa tambm simpatizou com a viso de um movimento de sertanejos que no sabiam defender os seus direitos de outra forma e recebeu na Histria o mrito de procurar entender os caboclos. Paulo Pinheiro Machado relatou que, em maio de 1914, Mattos da Costa enviou emissrios ao Reduto Bom Sossego para negociaes no sentido de estancar o movimento rebelde. O prprio Mattos da Costa teria visitado Maria Rosa para as negociaes de paz (MACHADO, 2004, p. 49). Em junho de 1914, Mattos da Costa estava em Curitiba e fez declaraes imprensa, tentando evidenciar a explorao dos sertanejos feita pelos coronis. A nota diz: Os jagunos queixam-se de que o coronel Arthur de Paula e outros chefes polticos tomaram as terras que habitavam e agora lhes impedem de recorrer s terras devolutas do Governo, por se terem apossado delas pessoas conhecidas e que tm facilidade de obter dos governos, grandes territrios nos dois Estados (PEXOTO, 1916, p. 229-230). 219
Na biografia militar do Capito, consta que ele solicitou permisso para ir at a Capital e obteve autorizao do Ministro da Guerra. Sensibilizado com a luta dos sertanejos, o Comandante viajou para o Rio de Janeiro para conferenciar, para mostrar documentos ao Ministro da Guerra e para explicar o que ocorria no Contestado. A frase clebre que expressa o entendimento do Capito, que comandou as Foras Oficiais no Contestado, entre maio e setembro de 1914, foi assim relatada por Peixoto: A revolta do Contestado apenas uma insurreio de sertanejos espoliados nas suas terras, nos seus direitos e na sua segurana. A questo do Contestado se desfaz com um pouco de instruo e o suficiente de justia, como um duplo produto que ela da violncia que revolta e da ignorncia que no sabe outro meio de defender o seu direito (PEXOTO, 1916, p. 94).
Enquanto o Capito tentava uma soluo pacfica, os nimos exaltados e a violncia desenfreada faziam parte do cotidiano dos sertanejos, que revidavam os ataques sofridos em Taquaruu e Caraguat, atacando e incendiando estaes e madeireiras da Brazil Railway Company.
5.3.1 Os ataques s estaes e s madeireiras da Brazil Railway Company
Entre os dias 5 e 6 de setembro de 1914, um grupo de mais de duzentos sertanejos atacou e incendiou as estaes ferrovirias de Calmon e So Joo dos Pobres, atual cidade de Matos Costa. Em Calmon, alm da estao, queimaram a madeireira Lumber, que fazia parte da Southern Brazil Lumber & Colonization Company, estabelecida ao lado dos trilhos: A grande serraria da Companhia Lumber ardeu totalmente. Os grandes empilhamentos de pinho j beneficiados, abrangendo uma rea enorme, em poucas horas se transformaram em cinzeiros esparsos. Os galpes dos machinismos, no dia immediato, eram esteios carbonizados em meios de vasta praa onde as engrenagens, contorcidas pelo calor do fogaro, se destacavam como esqueletos dos engenhos mecnicos. Em meio de tanta ignomnia, os corpos inertes das victimas ficaram expostos aos porcos famintos, cujos donos haviam fugido ou tombado indefesos (bid., p. 232- 233).
Em telegrama enviado ao Governo Federal, Shermann Bishop, diretor americano da Southern Brazil Lumber & Colonization Company, protestou e 220 ameaou cobrar os prejuzos se as Foras Federais no barrassem o avano dos piquetes sertanejos: Est em abandono a zona infestada pelos fanticos, havendo falta de garantias individuais e para as propriedades. Por isso vimos perante o chefe da Nao protestar contra a retirada das foras responsabilizando a Unio pelos prejuzos que possamos sofrer naquela zona procurando assim salvaguardar os interesses nossos, que possam ser lesado, em conseqncia daquele ato, pois sabido que as povoaes esto ameaadas por uma horda de fanticos, conforme protesto que lavramos hoje perante os representantes da justia federal, para a todo tempo fazermos valer os nossos direitos (SOARES, 1931, p. 91).
Figura n. 53: Escombros da serraria da Lumber na Fazenda So Roque
Fonte: Acervo de Joeli Laba.
A foto acima refere-se aos escombros da serraria da Lumber na antiga Fazenda So Roque em Calmon, Santa Catarina. Na noite do dia 05 de setembro de 1914, o agente da Estao de So Joo telegrafou para Unio da Vitria, avisando que para as bandas de Calmon, um grande claro se levanta ao cu, parecendo-lhe um incndio a lavrar nos depsitos da Lumber Company (VNHAS DE QUEROZ, 1997, p.170). Por outro lado, os caboclos tambm protestavam, no com telegramas, mas com bilhetes deixados nos locais onde passavam, com rastros de destruio. A 221 Unio tambm tinha responsabilidades, por ter espoliado os filhos brasileiros das terras e atacado quando estes sonhavam com a convivncia fraterna nas cidades santas. Quando o grande piquete comandado por Francisco Alonso de Souza ocupou a Estao de So Joo, ficou na porta de uma venda, escrito lpis, a seguinte inscrio, transcrita por Peixoto: Ns estava em Taquaruu tratando da nossa devoo e no matava nem roubava, o Hermes mandou suas foras covardemente nos bombardear onde mataram mulheres e crianas portanto o causante de tudo isto o bandido do Hermes e portanto ns queremos a lei de Deus que a monarquia. O governo da Repblica toca os Filhos Brasileiros dos terrenos que pertence nao e vende para o estrangeiro, ns agora estemo disposto a fazer prevalecer os nossos direitos (PEXOTO, 1916, p. 74).
Mais tarde, no dia 29 de setembro, os sertanejos atacaram a grande serraria da Southern Brazil Lumber & Colonization Company, de Trs Barras, porm l foram repelidos pelo grupo particular de segurana da prpria companhia. Responsabilizado em guarnecer Canoinhas, Unio da Vitria e a Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande, Mattos da Costa manteve a sede do 16 Batalho em Vila Nova do Timb. Em 06 de setembro, o Capito, comandando 60 homens, chegou em Unio da Vitria, pois as notcias eram alarmantes e davam conta de que as instalaes da estrada de ferro, das casas comerciais e da serraria da Lumber de Calmon foram queimadas e houve grande nmero de pessoas assassinadas. Mattos da Costa, comandando 60 praas, partiu de trem, rumo ao epicentro dos acontecimentos. Na Estao de Nova Galcia, foi alertado do perigo e solicitou o desembarque de parte da tropa que seguiu pela via frrea, enquanto o trem acompanhou na retaguarda, em marcha lenta. De repente saem do mato os fanticos, aos magotes. Trava-se tiroteio. O trem recua, a toda velocidade, e s vai parar em Porto Unio, deixando sozinho Mattos da Costa e seus soldados (VNHAS DE QUEROZ, 1981, p. 193). Os soldados que conseguiram escapar da refrega s chegaram em Porto Unio, famintos e maltrapilhos, dias mais tarde. Os demais tombaram no local, da mesma forma que o Capito que procurou compreender as causas da revolta dos sertanejos. Na biografia militar de Joo Teixeira Mattos da Costa, est registrado que, no dia 06 de setembro, o Capito seguiu comandando uma fora com 63 praas e 3 inferiores, a fim de fazer um reconhecimento na Linha do Sul. No dia 08, foi 222 mandado considerar extraviado. Era o fim do Capito que tentou pacificar o Contestado. No dia 13 de setembro, o Tenente Benedito de Assis Corra registrou a sua excluso, expressando-se com as seguintes palavras: com profundo pesar que dou conhecimento a forma do meu comando, que excluo o estado efetivo do Batalho, o denodado Sr. Joo Teixeira Mattos Costa, morto heroicamente no reconhecimento que efetuou no lugar denominado So Joo (DA COSTA, 1946, p. 13). Em Porto Unio da Vitria, no comando das foras em operaes de guerra, foi aberto um inqurito policial militar que apurou as circunstncias do recuo do trem em que o Major Joo Teixeira Mattos da Costa marchava, comandando o 16 Batalho de nfantaria, investigando se o procedimento foi delituoso por ter ficado aquele saudoso oficial sem munio e sem meios para se retirar. 97
O principal depoimento do Tenente Doutor Sylla Teixeira da Silva, mdico do batalho, que tomou parte no combate e que testemunhou todos os acontecimentos. Contou que aproximadamente 8 km antes da Estao So Joo, um civil, de nome Generoso Xavier, avisou que havia aproximadamente 400 inimigos bem armados e bem prximos; mesmo assim, a ordem foi continuar at a Estao. Chegando prximo a este lugar, o trem parou antes de uma valeta e o Capito desembarcou com aproximadamente 40 homens e deu ordem para o trem seguir em marcha lenta. Quando a tropa estava h aproximadamente 100 m de distncia, caminhando pelos trilhos, na frente do trem, os inimigos irromperam com forte fuzilaria pelos flancos, onde estavam escondidos nos matos e, de frente, entrincheirados na referida valeta. O pessoal da mquina foi alvejado e o mestre de linha foi ferido, o que fez com que o trem fosse recuado s pressas e o ferido atendido pelo Dr. Sylla longe da pontaria do inimigo. O trem avanou novamente porque sabiam que o Capito e os homens, que haviam desembarcado, tinham munio apenas para 50 tiros. Ao tentar munici-los, os Cabos Nunes e Mandri no conseguiram sequer se afastar 10
97 Associao Cultural Pe. Toms Pietters Matos Costa, Santa Catarina. nqurito Policial Militar da Morte de Joo Teixeira Mattos da Costa. Unio da Vitria, 28/09/1914. Foram inquiridos os seguintes testemunhos: Tenente Doutor Sylla Teixeira da Silva de 26 anos, natural do Rio Grande do Sul. Fernando Graemel, ajudante permanente da Estrada de Ferro So PauloRio Grande, 46 anos, morador de Ponta Grossa. Cabo Joo Mandri da Silva, de 21 anos, natural de Pernambuco. O soldado Astrogildo Ferreira da Silva, de 21 anos, natural da Bahia. O soldado Joo Hugo de Oliveira, de 21 anos, natural da Paraba. O Cabo Manoel Martins, de 19 anos, natural do Paran. 223 m do trem, devido cerrada fuzilaria. O trem recuou sem ordem, vindo parar h aproximadamente 6 km da emboscada. O depoente, Dr. Sylla, afirmou ter-se dirigido ao chefe do trem que, visivelmente embriagado, retrucou, recusando-se a cumprir a ordem de voltar para auxiliar os companheiros. Tendo-se dirigido at a mquina, de revlver erguido, o maquinista respondeu que tinha um homem ferido na mquina e um cilindro furado bala, e ele e o foguista estavam com medo: Neste momento, novamente do mato do flanco direito, rompeu forte fuzilaria contra o ltimo carro. O prprio depoente afirma que foi obrigado a se juntar Fora que guarnecia o trem para revidar o ataque. Neste momento, o trem recuou sem parar, trabalhando a contra-vapor e fugindo em alta velocidade, s parando na Estao de Nova Galcia (Depoimento de Dr. Sylla). Como a mquina estava perfurada e logo ficaria sem se locomover e a munio estaria diminuta, voltou para Porto Unio da Vitria, onde um oficial combatente poderia tomar melhor alvitre e que fez parte da expedio do dia seguinte para recolher os extraviados e seis feridos, os quais tratou mesmo no campo (...). Recolheu soldados mortos, sempre na esperana de ser til ao seu chefe e amigo Capito Mattos Costa (Depoimento de Dr. Sylla). Um segundo depoente, de nome Fernando Graemel, ajudante permanente da Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande, concorda com o Dr. Sylla, afirmando que as circunstncias da desobedincia do maquinista, alm do mestre de linha e do foguista, ocorreram porque o tubo injetor estava furado e era urgente chegar at uma caixa d'gua para reabastecer: A mquina, bastante avariada, corria perigo de cair na mo dos fanticos. Na retirada, declarou que carregaram muitos moradores que fugiam desesperados: Homens, mulheres e crianas com bagagem, que estavam na linha pedindo salvao (Depoimento de Fernando Graemel). Outro depoente afirmou que se o chefe do trem no recuasse, o desastre seria completo, porque a mquina, a munio e o armamento da guarda da mesma teriam ficado em poder dos bandidos, alm do sacrifcio de toda a guarda e pessoal do trem (Depoimento de Joo Mandri da Silva). Outro depoente, que esteve no grupo que deixou o trem junto com o Capito, afirmou que, diante do recuo do trem, foram atacados arma branca. Deste modo, no era possvel mais resistir. O Comandante batia-se com muita bravura e 224 teria dito: agora cada um trate de si e dirigiram-se ao mato sem dar as costas ao inimigo. Na retirada, foi ferido e conseguiu milagrosamente escapar (Depoimento de Joo Hugo de Oliveira).
Figura n. 54: Local do combate que vitimou o Capito Mattos da Costa
Fonte: Foto do autor.
No lado esquerdo da placa, v-se na foto acima o aterro de passagem da antiga linha ferroviria. Mais frente, a valeta onde os caboclos teriam feito a espera ao trem com os soldados do Capito. Localizada a 2 km da sede do Municpio de Matos Costa, Santa Catarina, na placa est a inscrio: Neste local em 06/09/1914 tombaram em combate o Capito Joo Teixeira Mattos da Costa do 16 B... Na concluso do nqurito, o relator, diante dos depoimentos, afirmou que no houve inteno criminosa da parte do chefe do trem: maquinista e foguista agiram dominados pelo medo. Alm disso, o Comandante, o pranteado Major Mattos Costa, se portou com bravura estica, de modo diferente do que afirmam vrios jornais, que no trepidavam em macular a memria do desventurado Comandante da expedio (Jos Luiz Pereira de Vasconcellos oficial encarregado que concluiu o nqurito Policial Militar e encaminhou ao Sr. Coronel Dr. Eduardo Arthur Scrates, Comandante Geral). 225 A morte de Mattos da Costa e os ataques s estaes e madeireira da Brazil Railway Company foram afrontas ao Governo brasileiro e ao capital internacional impossveis de se tolerar. O Governo Federal, na inteno de acabar de vez com a Rebelio do Contestado, nomeou como comandante o General Fernando Setembrino de Carvalho.
5.4 PROPOSTA DE PAZ
Quando o General Fernando Setembrino de Carvalho 98 assumiu o comando das operaes de guerra, a situao estava fora do controle das autoridades. O movimento alastrou-se tanto que a rea conflagrada abrangia mais de 20.000 km, em todas as direes da vasta Regio do Contestado. Das cidades santas, partiam piquetes, que eram grupos de sertanejos armados, para arrebanhar alimentos, armas e at pessoas para fazerem parte dos redutos. No foram poupadas fazendas, casas de comrcio e vilas. Os homens que resistiram eram mortos e as casas incendiadas. Os moradores da regio, que no fossem para os redutos, ou no fugissem em tempo, poderiam pagar com a vida. 99
A gravidade da situao era visvel pela debandada geral de pessoas que, deixando propriedades e moradias, seguiam para cidades distantes da Regio do Contestado. Em So Joo, local de uma estao ferroviria, a famlia Carneiro, que l havia se estabelecido por concesso de terras feitas pelo governo do Paran, enterrou os pertences que no conseguiram carregar e partiram para Unio da Vitria e depois para Ponta Grossa. 100 O diretor da Companhia Lumber, Shermann Bishop, pediu ao Governo brasileiro garantias individuais e para as propriedades (SOARES, 1931, p. 91).
98 O General Fernando Setembrino de Carvalho, veterano da Guerra de Canudos foi escolhido para o comando das operaes na Regio do Contestado. 99 No depoimento de Joo Maria Gomes para o documentrio contestado a guerra desconhecida, o depoente afirma que mataram a famlia inteira do seu vizinho Jorge Caetano. 100 No croqui da p. 214, aparece, na trajetria das foras, rumo ao Reduto de Santa Maria, a localizao da fazenda de Absalo Carneiro, que na poca perfazia uma rea enorme de terras com limites no Rio Caador ao Sul e Rio dos Pardos ao norte, prximo a Porto Unio. A famlia de Jos Gioppo (pioneiro do Bairro Gioppo de Caador, Santa Catarina) nas proximidades da confluncia entre o Rio Caador e o Rio do Peixe; na poca, era morador de Porto Unio e tambm fugiu com a famlia para Ponta Grossa, Paran. 226 Nos relatos de um militar, uma tentativa de descrio da situao, aponta para as causas da revolta dos sertanejos: A politicagem, o banditismo, a rapinagem costumeira, um falado regionalismo, a questo dos limites e uma desequilibrada aspirao restauradora das antigas instituies, embutida na cabea de alguns matutos, ao final, surgiram quase a um s tempo, abruptamente e, occultos nas avanadas do fanatismo que infelizmente ainda l existe, avassalaram a immensidade do campo (PEXOTO, 1916, p. 66).
Embora comandantes e oficiais do Exrcito brasileiro, em Campanha na Regio do Contestado, destacassem continuamente as causas polticas (questo de limites entre Santa Catarina e Paran) e, principalmente, o fanatismo e a ignorncia dos incautos moradores da Regio, a questo econmica est presente em vrios escritos, como o texto que segue, em que o direito da Estrada de Ferro So Paulo- Rio Grande de desapropriao de quinze quilmetros de terras devolutas para cada lado da margem e, ato contnuo, a colonizao com o desalojamento dos sertanejos provocaram a rebeldia destes. Os sertanejos tentavam desmobilizar o incipiente processo de colonizao iniciado na Regio atravs dos ataques e da rebeldia. Um exemplo disso foi o ataque aos colonos que a Southern Brazil Lumber & Colonization Company instalou na Colnia do Rio das Antas.
5.4.1 Os ataques aos colonos imigrantes da Southern Brazil Lumber & Colonization Company
Um relato importante sobre a atuao e sobre incio das atividades colonizadoras da Southern Brazil Lumber & Colonization Company vem de um relatrio militar. O autor aponta claramente o incipiente processo de espoliao a que foram submetidos os sertanejos: O direito das desapropriaes emana de uma lei, portanto, no se pode contestar. Mas pode-se afirmar e alguns chefes de colonizao agiram imprudentemente na execuo dessas disposies. O encarregado da colnia de Rio das Antas teve proceder incorrecto na occupao daquelles terrenos por parte da 'Colonisation Company'. Ali foram summariamente expoliados de suas propriedades muitos sertanejos que h longos annos eram posseiros das devolutas terras, nas margens do Rio do Peixe. Uma tal 227 concesso influiu no esprito sertanejo e muito mais o extravagante modo de execut-la, a ponto dos jagunos fazerem disso alarde para levantarem novos adeptos revoluo (bid., p. 296-297).
A palavra espoliao usada mais de uma vez no relato, quando o referido autor prossegue apontando o contexto do incio das atividades colonizadoras e o impacto na populao local. Afirma que houve certamente, assim, a espoliao de muita gente pacfica que vendo-se, de um momento para outro, privada dos bens e de modestas lavouras, preferiu hostilizar o progresso que lhes foi levar a misria. Neste sentido, a chegada do progresso, como pano de fundo de todos os discursos oficiais de justificativa para a implantao do capital internacional na Regio, representava o desenvolvimento prometido; todavia, na prtica, o referido progresso gerou desapropriaes e os moradores revoltados preferiam tornar-se inimigos do governo que sancionava o acto, expedindo depois fras do Exrcito para combatel- a. Assim, culpar os revoltados sob o rtulo de fanticos significava desconsiderar as circunstncias daquele momento histrico em que o referido autor aponta, inclusive, o desemprego dos ferrovirios, como elemento complicador da situao, desta maneira descrito pelo militar: Era, pois, mais outra sorte de gente que estava em armas sob a denominao de fanticos. E, s armas foram tambm, como meio fcil de viver naquellas paragens, muitos trabalhadores da mesma estrada que se viram inesperadamente despedidos na longnqua regio, ao ser concludo o ramal da linha de So Francisco (PEXOTO, 1916, p. 297).
Atento ao que se passava na Regio, o General Fernando Setembrino de Carvalho, que substituiu o Capito Mattos da Costa, em 11 de setembro de 1914, ainda no mesmo ms, no dia 26, publicou um apelo aos habitantes da zona conflagrada, prometendo terra aos que se entregassem: Fazendo um apello aos habitantes da zona conflagrada, que se acham em companhia dos fanticos, eu os convido a que se retirem, mesmo armados, para os pontos onde houver foras, a cujos commandantes devem apresentar-se. Ahi lhes so garantidos meios de subsistncia, at que o Governo lhes d terras, das quaes se passaro ttulos de propriedade. A contar, porm, desta data em diante, os que o no fizerem espontaneamente, e forem encontrados nos limites da aco da tropa, sero considerados inimigos e assim tratados com todos os rigores das leis da guerra. Quartel General das Foras em Operaes, 26 de setembro de 1914 General Setembrino de Carvalho (CARVALHO, 1950, p. 147). 228
Com o apelo, o General deixava claro que estava em sintonia com o desenrolar dos acontecimentos e reconhecia que os patrcios, habitantes da zona conflagrada, foram espoliados e o acesso terra poderia significar o impedimento do derramamento de sangue. Mais tarde, o prprio General considerou a Campanha do Contestado como um drama sangrento ou peleja fratricida que constituem pginas dolorosas da Histria ptria, cujos crimes dos sertanejos eram apenas a inconscincia e ignorncia em que se encontravam a par da indiferena com que sempre foram olhados pelos governantes (CARVALHO, 1950, p. 747). Ainda aquella vasta serrania das araucrias, onde as lavouras so poucas, mas as criaes so extraordinrias e a indstria do pinho e do matte so inexgotveis, continuar soffrendo os influxos da desordem, debaixo da duplicidade de pretensas administraes, agachadas ao indifferentismo pelo bem da zona e sob as mesmas condies de descaso pela instruo de suas populaes (bid., p. 752).
Os influxos da desordem foram percebidos pelo General que, mesmo aps o apelo prometendo terras aos sertanejos como tentativa de pacificao, durante a sua atuao como comandante das operaes de guerra da Campanha do Contestado, enfrentou o ataque dos sertanejos aos colonos recm-estabelecidos em Rio das Antas. Vinhas de Queiroz descreveu o ataque dos sertanejos colnia de Rio das Antas, pertencente Lumber, denominando o episdio de Combate de Rio das Antas. Ocorreu no dia 02 de novembro de 1914 e foi comandado por Francisco Alonso e por um piquete de aproximadamente 35 homens: Os jagunos logo mataram quatro colonos que encontraram pelos arredores. Alertados, os outros se recolheram para dentro de duas cercas concntricas de arame farpado que haviam levantado, entrincheiraram-se em suas casas, tomaram das carabinas, tanto os homens quanto as mulheres, e revidaram ao fogo (VNHAS DE QUEROZ, 1977, p. 203).
O referido autor apontou a morte de nove caboclos e sete colonos. Aps o combate, os corpos dos atacantes foram amontoados e queimados: Todavia, alarmados com a prpria faanha e temendo uma represlia, os colonos venderam por qualquer preo s praas os seus pertences e resolveram mudar-se para o Estado de So Paulo (bid., p. 204). Tal episdio que representou, deste modo, um 229 revs para o projeto colonizador das terras de concesso da Companhia Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande. A gravidade da situao e a seqncia de episdios sangrentos fez com que o General Setembrino lanasse outro apelo em dezembro de 1914; desta vez no prometeu terras: pelo contrrio, anunciou que a vitria das Foras Oficias era apenas uma questo de tempo; solicitou, pois, a volta ao trabalho e clamou por patriotismo: Populao. Aos meus patrcios revoltados Estou no Contestado em meio da tropa sob o meu commando no desempenho da misso que me foi confiada pelo Governo da Repblica, de restabelecer a ordem nesta bella poro de territrio ptrio. Com a alma confrangida que assisto, nesta lucta inglria, derramar o sangue precioso de meus patrcios: soldados do nosso valoroso exercito que tombam no cumprimento do dever, obedientes aos compromissos contrahidos para com a nossa Ptria, cidados que, abandonando os lares, despresando o trabalho honesto e divorciando-se da civilizao se internaram, errantes pelos sertes desertos, para attentar, de armas na mo, contra as autoridades legalmente constituda. E como sempre nutri o nobre desejo e a consoladora esperana de vencer esse punhado de brazileiros sem a dolorosa preocupao de exterminal-os, adoptei a defensiva como gnero de guerra, preferindo que fossemos os atacados. Por isso mesmo, ao encetar esta campanha, convidamos os rebelados a depor as armas, espalhando este meu justo apello, em transparncia com os nossos sentimentos de humanidade. Atacados, temos sido sempre victoriosos. Desde o dia 11 de setembro que luctamos, e os nossos soldados cada vez mais se sentem encorajados para a victoria final que no tarda. Mas preciso parar; foroso que se termine essa lucta; que o sangue brazileiro no continue a manchar as nossas terras, onde a natureza accumulou thesouros inexgotaveis, para a grandeza da nossa ptria. No venho trazer-vos a morte ou o presdio pela victoria das nossas tropas, sino concitarmos a mais uma vez a que deponhaes as armas, e acceiteis as garantias que vos offereo em nome do governo e da lei. mpe-se, portanto, que volteis novamente ao trabalho, meio nico capaz de garantir a felicidade do lar e promover a felicidade da nossa grande ptria, que, na quadra actual, tanto precisa de patriotismo dedicado dos seus filhos. Rio Negro, 28 de Dezembro de 1914. General Fernando Setembrino de Carvalho, commandante e chefe das foras em operaes (PEXOTO, 1916, p. 561-562).
Entre os meses de setembro de 1914 e abril de 1915, a Guerra do Contestado teve o seu perodo de maior derramamento de sangue. A ofensiva dos sertanejos fez-se atravs dos ataques s estaes ferrovirias, s madeireiras da Southern Brazil Lumber & Colonization Company e s colnias que estavam sendo estabelecidas na Regio do Contestado. Mais do que nunca, os patrcios revoltados ameaavam a reputao do Exrcito oficial. 230
Figura n. 55: Charge n. 01 de O MaIho
Fonte: Revista O Cruzeiro, 25 fev. 1956 Figura n. 56: Charge n. 02 de O MaIho
231
Fonte: Revista O Cruzeiro, 25 fev. 1956
As duas charges de O MaIho, ilustram ironicamente as dificuldades das Foras Oficiais ao enfrentar um inimigo matuto, conhecedor do ambiente e astuto ao utilizar tticas de lutas no-convencionais aos padres de combates da poca: Estavam trepados em rvores, ocultos pela folhagem caando vontade (CARVALHO, 1916). O movimento rebelde alcanou a maior expanso, abrangendo uma rea de mais de 20.000 km 2 , com assaltos a fazendas, a casas de comrcio, a vilas e a cidades. No existiam garantias de segurana e os moradores, que no haviam aderido s cidades santas, escondiam-se na mata, correndo risco de vida ou debandavam para os centros maiores 101 . Uma das profecias do monge Joo Maria de Jesus estava cumprida: Haver um tempo de muito pasto e pouco rasto. Alm de ter sob o seu comando mais de um tero do Exrcito oficial, como ele prprio registrou: Foi fixado em 8.000 homens, mais ou menos, o efetivo das tropas regulares e ainda citou os coadjuvantes patriotas civis conhecidos como vaqueanos, (CARVALHO, 1950, p. 144), o General Setembrino experimentou, de forma pioneira na Amrica do Sul, o uso de aeroplanos com finalidades blicas no combate aos enfurecidos sertanejos. As tticas de luta dos sertanejos, que sempre procuravam enfrentar os soldados no meio da mata e que tiravam proveito do conhecimento do ambiente e da habilidade no manejo da arma branca, deixavam o Exrcito em desvantagem, mesmo com a sua superioridade blica. Os comandantes do Exrcito registraram que os sertanejos eram atiradores invisveis, que se escondiam na floresta e no adiantava varrer os arredores a tiros de canho, ou tirotear a esmo, ou ordenar descargas de fuzil contra a folhagem. A prpria ttica singular de mudana constante do local das cidades santas e sempre para lugares desconhecidos e de
101 Em seu relatrio ao Ministro da Guerra, o General Setembrino de Carvalho relatou as principais ofensivas dos sertanejos a partir do segundo semestre de 1914, assim datadas: ataques a Canoinhas em 18 de julho, 08 de setembro e 23 de dezembro; Papanduva em 27 de agosto. taipolis, em 28 de agosto; Calmon, em 05 e 06 de setembro e Curitibanos, em 26 de setembro. Ainda tiveram os ataques malogrados a sede da Lumber em Trs Barras e Lages. SETEMBRNO DE CARVALHO. Fernando. Relatrio apresentado ao General de Diviso Jos Caetano de Faria, Ministro da Guerra - 1915. Rio de Janeiro: mprensa Militar, 1916. 232 acesso muito difcil suscitou a idia da utilizao dos aeroplanos para a localizao dos redutos em um primeiro momento e, posteriormente, at se cogitou no lanamento de bombas. Foi no dia 30 de setembro de 1914 que desceram em Porto Unio o Tenente Ricardo Joo Kirk e Ernesto Darioli, experientes pilotos, instrutores de vo do Aero clube Brasileiro para prestarem servios s Foras Federais contra os sertanejos. Dos quatro aeroplanos que chegaram, trs puderam ser utilizados, pois um ficou inutilizado por ter queimado na viagem. Kirk e Dariolli voaram sobre Porto Unio e arredores, fazendo experincias nos seus aparelhos (SLVA, 1933. p. 121). Em 25 de fevereiro de 1915, outro aeroplano ficou inutilizvel, pois o Tenente Kirk, ao aterrissar, sofreu um acidente, porm conseguiu escapar com vida. O aeroplano Pra-Soldado sofreu avarias e ficou fora de combate. Restaram os dois Morane-Saunier Guarany e Yguassu. Este ltimo foi o do vo da morte do Tenente Kirk em 1 de maro de 1915.
Figura n. 57: Aviao militar no Contestado
Fonte: Foto de Claro Gustavo Jansson. Acervo de Joeli Laba 233 A foto acima traz os aeroplanos, os pilotos do Aero Clube Brasileiro e a cpula militar reunida. Houve, assim, a demonstrao do esforo de guerra empreendido pelo Exrcito Nacional com a utilizao de aeroplanos de forma pioneira com finalidades blicas na Amrica do Sul. De fato, a amarga experincia de Canudos no permitiria vacilos na Campanha do Contestado - a punio exemplar viria, pois, a qualquer custo. Aps o fracasso da experincia, o General Setembrino de Carvalho mandou um telegrama para o Ministro da Guerra no Rio de Janeiro, contando sobre o acidente do aeroplano Yguassu: as preocupaes enquanto comandante, detalhando o vo do dia 1 de maro, a angstia na espera de informaes, a chegada da notcia funesta e os PEZAMES pela morte do ilustre aviador. Registrado no crepsculo do dia 01 de maro de 1915, em Porto Unio (ANEXO 1). O aeroplano caiu ao lado da Estrada de Palmas, aproximadamente s 14 horas e o Tenente Kirk morreu instantaneamente. Um morador das proximidades comunicou o fato para as autoridades policiais e transportou em sua carroa o aviador e os destroos do aparelho: O carroceiro Miguel Chaikoski conduziu o corpo do Tenente Kirk para a greja Matriz, dali saiu no dia 03 de maro de 1915, para o cemitrio pblico, onde foi sepultado, na mesma fila em que jaziam os infelizes soldados do Capito Mattos da Costa (SLVA, 1933, p. 133). Tal morte representou o custo pelo pioneirismo na utilizao de aeroplanos em operaes blicas na Amrica; este malogro levou o General Setembrino de Carvalho a relatar que, aps a dolorosa notcia, foi necessrio subtrair da Guerra o concurso da aviao (CARVALHO, 1916, p. 116).
5.5 EM NOME DO MONGE
Nas narrativas da ofensiva rebelde, tiveram papel relevante o Capito Mattos da Costa e o General Setembrino. Para descrever a etapa final do conflito, inverte-se o lado da luta e destacam-se as narrativas de Leodato, Liodato, Joaquim ou apenas Adeodato, o ltimo jaguno ou simplesmente o maior matador que os sertes catarinenses produziram (FELPPE, 1995, p. 200). Estas, entre outras, so atribuies feitas at na atualidade ao ltimo comandante caboclo. 234 O nome Adeodato deriva do latim a Deo datum e significa dado por Deus, nome que tambm foi dado ao filho de Santo Agostinho, filsofo da dade Mdia que influenciou fortemente a Histria da Religio da Humanidade. Na Histria do Contestado, Adeodato, filho de Telmaco (seu Teleme), influenciou fortemente o grupo de sertanejos rebelados que fincaram forte resistncia ao Exrcito Nacional e ordem oficial estabelecida nestas terras contestadas, e deixou marcas indelveis na memria dos protagonistas e dos descendentes de sertanejos que conheceram o lder da acepo do nome dado por Deus, mas tambm denominado flagelo de Deus. As narrativas sobre Adeodato, o tropeiro e domador que s entrou para os redutos quando o movimento estava alastrado, permanecem culpando o mais sanguinrio dos lderes, aquele capaz de lanar uma criana para o alto e espet-la com uma espada, de acordo com muitos depoimentos, at mesmo de pessoas que estiveram nos redutos. A maldade atribuda a Adeodato, de certa forma, atribuda a todos os caboclos que estiveram nos redutos, como forma de desclassificar e de mostrar que os sertanejos de crena aberrante viviam em ignorncia absoluta, causada pelas chagas do analfabetismo (D'ASSUMPO, 1917). Uma verso sobre o ingresso de Adeodato aos redutos est descrita nos autos da sua priso na Delegacia de Polcia de Canoinhas. Ele prprio afirmou que estava escondido nos matos de propriedade de Jos Pereira, prximo a Perdizes, no Municpio de Curitibanos, por causa da perseguio dos fanticos, quando foi preso por Domingos Crespo e conduzido para a guarda prxima da Serra, ao tempo em que havia o acampamento de Maria Rosa nos Campos do Bom Sossego. Ainda revelou que assumiu o comando aps a morte do Chiquinho Alonso no ataque colnia de imigrantes do Rio das Antas, do qual fez parte e saiu ileso. (Auto de priso e perguntas Ru Adeodato, Canoinhas, 02/08/1916) A liderana de Adeodato ocorreu durante os ltimos 13 meses do conflito desde o auge da fria cabocla 102 decadncia total. O historiador Paulo Pinheiro Machado descreve a importncia de se caracterizar o contexto dos impasses e dos problemas que os sertanejos vivenciaram neste perodo: Coube a Adeodato a difcil misso de lutar contra a fome, as deseres e a degenerao das prticas
102 Contestado: a furia cabocla - foi o nome do espetculo apresentado em Caador, no ano 2005, representando a histria da Guerra do Contestado. 235 comunitrias nos redutos. Para seus adversrios, tratava-se do 'chefe jaguno mais cruel', 'assassino frio e degenerado', responsvel pelo perodo do 'terror' nos redutos do Contestado (MACHADO
, 2004). possvel que, no momento de maior desero, foradas pela fome, pelas epidemias e pela violncia de todo tipo contra os moradores das cidades santas, as pessoas fraquejassem e tendessem a se entregar para as autoridades. Depois de vencidos pelo cerco militar, pelos fatores recm-citados, pelos constantes ataques blicos e pelos horrores do cotidiano funesto, os que tencionavam se entregar, primeiramente, deveriam escapar da fria de Adeodato; mesmo assim, os que tinham o azar de encontrar pela frente os piquetes vaqueanos de Pedro Ruivo em Canoinhas, ou Coletti, em Santa Ceclia do Rio Correntes, sabiam que seriam massacrados sem piedade (MACHADO, 2004, p. 126). Assim, este foi o modo como o tropeiro e campeador Adeodato encontrou para impor autoridade e para preservar a disciplina interna (bid., p. 307). A mortandade de pessoas durante o cerco do Exrcito ao Reduto de Santa Maria descrito por Adeodato durante interrogatrio, quando foi preso: morreram inmeras pessoas, homens, mulheres e crianas, por molstia e por fome, no podendo calcular o nmero porque muito grande; alm disso, indicou para conferirem no cemitrio que l existe. Negou as acusaes de que executava friamente outros moradores das cidades santas (Auto de priso e perguntas Ru Adeodato, Canoinhas, 02/08/1916). Adeodato foi responsabilizado pelo fracasso do movimento. Muitos revelaram estar neste forados pelo lder, e culp-lo sozinho foi a forma mais conveniente de implorar absolvio. No entanto, o prprio flagelo, quando foi preso, impressionou os jornalistas que, esperando o pior de todos os bandidos, viram apenas um caboclo trovador e comandante a seu modo: Ns, que espervamos ver nesse instante o semblante perverso e hediondo de um bandido, cujos traos fisionmicos estivessem a denotar a sua filiao entre os degenerados e os desclassificados do crime, vamos, pelo contrrio, diante de ns, um mancebo em todo o vigor da juventude, de uma compleio fsica admirvel, esbelto, fronte larga, lbios finos, o superior vestido de um buo pouco denso, cabelos negros, olhos de azeviche pequenos e brilhantes, dentes claros, perfeitos e regulares, ombros largos, estatura mediana, tez acaboclada e rosto levemente alongado (O ESTADO, 1916).
236 Figura n. 58: Priso de Adeodato
Fonte: Jornal O Estado, ed. 12 e 13, ago 1916 No jornal da capital catarinense, vrias matrias foram veiculadas, em uma delas, havia uma foto com a seguinte descrio: Adeodato, ladeado pelo Tenente Cabreira e por um cabo do Regimento. Adeodato foi levado para Florianpolis para o interrogatrio com o chefe de polcia. Admitiu a sua qualidade de Comandante e procurou justificar as mortes que lhe atribuam, sobretudo de antigos companheiros, dizendo que les pretendiam fugir, contrariando assim a sua ordem, que no permitia a retirada de pessoa alguma do reduto (VNHAS DE QUEROZ, 1981, p. 282). O episdio da priso de Adeodato, segundo seu prprio depoimento, ocorreu depois da tomada da ltima cidade santa. O lder contou que se limitou a fugir quando foram atacados. Ficou algum tempo vagando pelos matos com vinte companheiros (...). Aconselhou os companheiros a se apresentarem para as foras. Tempos depois de permanecer sozinho no mato, cansado desta vida, resolveu no mais continuar assim, de modo que, h cousa de 15 dias se desfez de duas espadas. Contou ainda que, alm das duas espadas, vendeu tambm o seu 237 revlver, trocando as armas por moranga, milho e farinha (Auto de priso e perguntas Ru Adeodato, Canoinhas, 02/08/1916). Adeodato foi julgado e condenado pena mxima permitida pelas leis brasileiras, isto , 30 anos de cadeia. Um sertanejo, entrevistado por Vinhas de Queiroz, disse em seu depoimento que Adeodato, ao sair da sala do jri, depois de jogar o chapu para o alto, disse: - Trinta anos de cadeia, eu vou cantar! (Depoimento de Guilherme apud VNHAS DE QUEROZ, 1981, p. 282-283). A pena deveria ser cumprida em Curitibanos, porm, por questes de segurana, ele foi remetido a Lages. Em uma noite de ventania e de trovoada, Adeodato, juntamente com outros dois presos, fugiu. A fuga durou pouco: uma escolta de oito soldados da Polcia Militar, comandados por um sargento, seguiu em seu encalo rumo ao Cerrito, local onde Adeodato nasceu. Foi encontrado completamente embriagado e, sem oferecer resistncia, foi recapturado. Foi enviado para Florianpolis para cumprir o resto da pena na Penitenciria do Estado. Adeodato comportava-se normalmente, salvo as suas cantorias, as improvisaes de versos e as dcimas que impressionavam os carcereiros. A derradeira tentativa de fuga ocorreu sete anos aps sua primeira priso, e foi assim descrita por Euclides J. Felippe (1995, p. 200): No dia 03 de fevereiro de 1923, durante a faxina conseguiu ludibriar a guarda. Conta-se que investiu contra a sentinela das armas e apoderou-se de um fuzil, que por sorte havia sido descarregado para limpeza. Retirava- se de costas rumo ao ptio, apontando a arma em direo ao oficial de Dia mantendo-o imobilizado, bem no momento em que ia entrando o capito Trujilo de Melo. Este, alvejando-o, prostou-o com dois tiros de revlver. Conduzido ao quarto da enfermaria, veio a falecer alguns minutos aps. Assim encerrou-se a histria da Campanha do Contestado com a morte do LTMO JAGUNO, o maior matador que os sertes catarinenses produziram.
Quando a fria cabocla foi completamente controlada, com os lderes presos e com grande nmero de sobreviventes das cidades santas se entregando, a justificativa para tentar escapar da priso e mesmo da execuo sumria, era o discurso da demonizao, como afirmou Pinheiro Machado. O referido autor comenta que, entre dezembro de 1915 e janeiro de 1916, de 4.000 a 6.000 sertanejos se entregaram em Canoinhas e Curitibanos. Depois de longo perodo de fome e todos os tipos de privao, muitos morriam pelos caminhos. O discurso s autoridades era quase nico: todos estavam vivendo nos redutos por ordem dele e 238 por temor ao chefe, Adeodato (MACHADO, 2004, p. 321), justificando que estiveram nos redutos forados e reprimidos pelo lder. Tal demonizao, principalmente por parte da imprensa diria, contribuiu para formar a imagem do sertanejo como o grande vilo dos fatos, desconsiderando-se a conjuntura vivenciada anteriormente e tambm durante o tempo dos redutos. A imagem do grande mal que era e representava o sertanejo pode ser sintetizada nas atribuies que eram feitas ao lder, produtos da sociedade daquele tempo, condenados e execrados pela mesma sociedade. E essa imagem foi interiorizada pelo homem do Contestado. Um relato interessante registrado nos autos da priso de Adeodato em Canoinhas afirma que as ordens que dava aos demais eram a pedido de um velho, cujo nome ignorava, mas do qual tinha um retrato. O retrato acompanhou o processo de Adeodato e, pelas descries, tratava-se de uma foto de Joo Maria. Tudo o que Adeodato fez ou mandou fazer era por ordem de Joo Maria, desde sair nos piquetes arrebanhando, revidar aos ataques das foras, matar Aleixo Gonalves, matar a mulher de nome Maria, filha de Matheus Colao, que morava na barra do Buti Verde. (Auto de priso e perguntas Ru Adeodato, Canoinhas, 02/08/1916). Enquanto os seus liderados culpavam Adeodato por estarem nos redutos, o ltimo lder atribuiu o seu comando s ordens do velho Joo Maria. No jornal O Imparcial de Canoinhas, Santa Cararina, edio de 06 de agosto de 1916, circulou a seguinte notcia: O demnio est encarcerado; ele mesmo em carne e osso. Adeodato estava preso e nunca mais foi solto, o ltimo comandante sertanejo foi o personagem representado como resumo da maldade do caboclo. A cristalizao desta imagem se fez de forma to consistente, que at hoje a memria deste ltimo lder suscita relatos de sofrimentos e de tristezas no crepsculo do movimento. No fundo, o que se disse de Adeodato tambm atribudo a todos os que estiveram nas cidades santas. Basta conferir nos primeiros relatos da Campanha do Contestado e a inteno de eliminar o elemento pernicioso que perturbava a ordem, o assassino, incauto, desordeiro, e outros termos para desclassificar o caboclo e justificar a carnificina da morte de milhares de brasileiros pobres que viviam dos pequenos roados de subsistncia em condies peculiares na floresta ombrfila mista da Regio do Contestado. 239 Uma verso distinta, sobre Adeodato e sobre os sertanejos que se rebelaram no Contestado vem de um combatente dos caboclos. No documentrio Contestado: a guerra desconhecida 103 , um soldado, que havia participado da Campanha como franco-atirador, ao ser entrevistado, revelou que por muito tempo nem sequer comentava sobre o episdio, pois tinha ficado traumatizado. A insistncia na pergunta, sobre o que o traumatizou, revelou o seguinte depoimento: Quem ns estvamos matando l era um lavrador, uma pessoa boa, falta de escola, um caboclo do serto. Eram todos irmos, acreditavam que morriam e ressuscitavam...Colocavam a pra governar esses CORONS que s queriam saber de dinheiro e grandeza e deixavam de cuidar das pessoas. Eu fiquei com dio, carreguei isso comigo por muito tempo (Depoimento Benjamin Scoz apud Documentrio Contestado: A Guerra Desconhecida). Ao relembrar o conflito, a memria do ex-soldado reporta-se ao trauma dos que participaram da Guerra e que foram considerados vencidos. Os que venceram, ficaram traumatizados e, talvez, ajudem a esclarecer os motivos do silncio de muitos sertanejos que preferiram nunca mais falar sobre as experincias do tempo dos redute. Neste sentido, o silncio dos caboclos que participaram da Guerra do Contestado foi, por muitos anos, temas de estudo e de debate da Histria do Contestado. Prximo do aniversrio de um sculo, a Histria da Guerra do Contestado continua suscitando estudos e debates de carter sociolgico, antropolgico, arqueolgico, jornalstico e histrico. As pesquisas buscam compreender os fatos para o entendimento da sociedade atual. Paulo Ramos Derengoski, jornalista e historiador catarinense, sintetizou as suas concluses da seguinte forma: Alm do excesso de exao, da grilhagem, da ignorncia, do milenarismo, dos misticismos, da loucura e da misria, a causa principal da Guerra do Contestado foi o avano selvagem de grupos econmicos estrangeiros. Ali nos carrascais registrou-se um dos episdios mais sangrentos de nossa histria. Uma saga altura da guerra grande de Canudos, l nas margens esturricadas do Vaza-Barris, no serto do Cocorob (DERENGOSK, 2003).
importante referir que a chegada do capital internacional provocou mudanas abruptas no modo de vida dos moradores da Regio do Contestado. Concordamos com o autor que destacou a chegada de grupos econmicos
103 Contestado: a guerra desconhecida. Roteiro/direo: Enio Staub. Prod. Executivo: Sergio A. Rubim. Florianpolis-SC:, UFSC, 1984.
240 estrangeiros como o epicentro das causas do conflito armado. Neste estudo fundamentou-se a instalao da madeireira e colonizadora como fator decisivo no desencadeamento da revolta dos sertanejos que viviam nesta regio.
5.6 A COLONIZAO E OS DESCENDENTES DE IMIGRANTES APS A GUERRA DO CONTESTADO
Embora o fim da Campanha do Exrcito na Regio do Contestado tenha ocorrido com a destruio do Reduto de Santa Maria, em abril de 1915, o fim da Guerra foi registrado oficialmente no dia da assinatura do acordo de limites entre Santa Catarina e Paran, ocorrido em 20 de outubro de 1916, no Palcio do Catete no Rio de Janeiro, na presena das autoridades, do Presidente da Repblica e dos Governadores de Santa Catarina e Paran. O desbaratamento total das cidades santas, concludo com o genocdio que vitimou aproximadamente 8.000 brasileiros, em sua maioria sertanejos pobres, culpados pelo derramamento de sangue e responsabilizados pelo fanatismo, possibilitou a nova fase de ocupao, de povoamento e de colonizao das terras cobertas pela pujante floresta ombrfila mista. Preocupado com o destino dos ex-moradores das cidades santas, o General Setembrino chegou a trocar telegramas com os Governadores do Paran e Santa Catarina, aventando a possibilidade de colocao destes capitulantes sertanejos em colnias. Em recente pesquisa, o historiador Paulo Pinheiro Machado descreveu sobre um telegrama do General Setembrino ao Governador catarinense Felipe Schmidt, na inteno da nspetoria Federal de Povoamento do Solo, ligado ao Ministrio da Agricultura, de colocar estes ex-fanticos, sendo descartada a possibilidade, pois as colnias existentes estavam organizadas para a recepo de imigrantes europeus (MACHADO, 2004, p. 234). Foi somente depois do acerto de limites, que ambos os Estados passaram a firmar jurisdio, ao que coube, para cada um dos litigantes. O Governador de Santa Catarina, atravs da Lei n. 1.147, de 25 de agosto de 1917, criou os Municpios de Mafra, Cruzeiro (hoje Joaaba), Porto Unio e Chapec. No entanto, o registro de uma visita de um Governador catarinense ao novo cho conquistado, depois de 241 tantas disputas, s ocorreu em 1929, quando Adolfo Konder empreendeu uma verdadeira aventura pelo Oeste Catarinense. O eplogo da Guerra do Contestado marcou o comeo de um novo tempo e a atuao de outros protagonistas. No cho, a umidade era do sangue fresco dos que tombaram na luta. No ar, o cheiro da plvora que se evaporava e as centenrias rvores que testemunharam o massacre foram golpeadas a machado e serradas no vai-e-vem para abrigar as famlias que chegaram e que ainda no tinham onde morar. Mais do que nunca, a Lumber, com as garantias oficiais e com a segurana particular, avanou sobre a floresta ombrfila mista com sede de beduno. Os Estados de Santa Catarina e Paran, aps a Guerra do Contestado, perceberam a necessidade imediata de trazer escolas, igrejas, hospitais e assistncia para a populao sertaneja do ex-Contestado. O sangue dos aproximadamente 8.000 brasileiros mortos nesta guerra fratricida regou o cho contestado. Desta maneira, o fim das hostilidades marcou o incio de um novo tempo. Os colonos, descendentes de imigrantes europeus, preparavam as malas para embarcar no trem da Ferrovia So Paulo-Rio Grande nas velhas colnias do Rio Grande do Sul e descer nas estaes ao longo do Vale do Rio do Peixe. Em poucos anos, atingiram o Extremo-Oeste Catarinense em caminhes que seguiam carregados de gente, de ferramentas, de sementes, de parcos pertences e de muita confiana no trabalho que prometia mesa farta e riquezas. O General Fernando Setembrino de Carvalho descreveu que o sertanejo do Contestado reproduziu a brutalidade da coragem dos caipiras dos sertes nortistas. Depois da vitria, ante as vidas preciosas de oficiais e de soldados do Exrcito, ceifadas na guerrilha cruenta, rendeu a seguinte homenagem merecida aos nossos irmos enlouquecidos das selvas: Cruis na luta os infelizes irmos das matas, eram dignos de admirao pela ousadia com que enfrentaram as tropas regulares e, ainda mais dignos de piedade pela loucura com que se defendiam excedendo a fria dos javalis, a agilidade dos tigres e a valentia estica do rei das feras (PEXOTO, 1916, p. 739).
Segundo as palavras do General, na luta, os sertanejos excederam a fria dos javalis. A fria cabocla dos sertanejos do Contestado se diluiu nas valas comuns dos rebeldes degolados e executados, em covas sem cruz, em sepulturas annimas, em mortos insepultos e em memrias silenciadas e traumatizadas. Os ltimos 242 remanescentes protagonistas desta Guerra no vivem mais 104 . Seus descendentes, sem vivenciarem o pesadelo da guerra, convivem com os descendentes dos colonos que aqui se estabeleceram, com os ex-ferrovirios que aqui chegaram com a Ferrovia So Paulo-Rio Grande e com os ex-operrios da Southern Brazil Lumber & Colonization Company. Todos esto no mesmo palco, com suas memrias e muitas histrias para contar, cada qual com sua verdade tudo isso, pois, enriquece as narrativas da epopia da Histria da Regio do Contestado.
104 No dia 25 de fevereiro de 1995, faleceu Miguel Correa dos Santos, da Serra da Esperana em Lebon Rgis, Santa Catarina. Em 1998, Joo Maria de Gis em Caador. Em 1999, Manuel Martins em Timb Grande. Em 2002, Francisco Paes de Farias, o Chico Ventura, em Lebon Rgis, aos 102 anos de idade. Em 2006, foi a vez do centenrio e ltimo remanescente, Firmino Rodrigues Martins, faleceu em Jabor, Santa Catarina (Entrevistado em 2002 por Carlos F. Comasseto, Cleonice Bison, Mrcio Fvero, Zelir Dalla Rosa, Melnia de Oliveira e denir Saretta). Hoje, encontramos somente descendentes (filhos, netos e bisnetos) de antigos moradores das cidades santas. Todos aqueles esto mortos: contudo, as narrativas das memrias continuam vivas e presentes nas conversas sobre o tempo dos redute. CONSIDERAES FINAIS
A maneira mais rpida e mais prtica de inutilizar um pas destruir-lhe as matas queim-las ou export-las que so modos equivalentes para o alcance do mesmo objetivo contra o futuro. Romrio Martins
Em busca das costuras finais e do processo conclusivo da pesquisa acerca da atuao da Lumber e do desencadeamento da Guerra na Regio do Contestado, a primeira afirmao de que as concluses a que se chegou podem ser pontos de partida para a retomada de muitas questes e de novos estudos que podero ser empreendidos a partir daqui. Os resultados deste trabalho so parciais e no se pretende afirmar que s estes so verdadeiros. Apenas abrimos a cortina do passado e espiamos amarelados documentos, ouvimos pessoas idosas, narrando memrias das experincias passadas. Ouviu-se a voz de operrios que conseguiram um emprego na Lumber e este era o maior sonho de ento. Observou-se colonos que acreditavam tanto no trabalho, pensavam em construir fortunas e queriam deixar ao menos um pedacinho de terra para cada um dos filhos, nas filas que passavam uma dezena. Estudou-se caboclos, moradores do serto, distantes das escolas, mas alfabetizados na vida, astutos e profundos conhecedores da natureza. Outros tantos protagonistas apareceram neste olhar ao passado: os soldados que tombaram no meio das grimpas de pinheiros ou grudados nas impiedosas touceiras de inhapinds, pois lutaram em terreno desconhecido e adverso. Os vaqueanos rudes, violentos a servio de inescrupulosos coronis. Enfim, representavam o contexto histrico de uma poca que abrange as duas primeiras dcadas do sculo XX e as transformaes ocorridas com a chegada e com a atuao da Brazil Railway Company na Regio do Contestado. A pesquisa bibliogrfica e documental facultou anlises pertinentes atuao da madeireira e colonizadora americana na Regio do Contestado. Das inferncias possveis, boa parte adveio a partir da documentao indita do Arquivo particular de Romrio Jos Borelli; soma-se a isso a contribuio do Programa Farquhar para a compreenso do emaranhado de teias e de ligaes entre as 244 diversas empresas que fizeram parte do mesmo grupo. Neste sentido, a descrio de aspectos da Histria da empresa industrial, aps a Guerra do Contestado, deve- se preocupao de dar nfase trajetria histrica na formao social e econmica regional e as percepes sobre a sociedade atual. Dentro do perodo estabelecido como recorte temporal (1906 a 1916), pode- se destacar alguns fatos, verificados e comprovados no corpo do texto; no entanto, so reconhecidos como fundamentais nas transformaes protagonizadas pelo impacto da chegada e da ao do capital internacional na Regio do Contestado, ao se iniciarem as atividades empresariais, no Serto Catarinense, no incio do sculo XX. Em 1906, o ritmo de vida da populao sertaneja da Regio do Contestado continuava inalterado, salvo a ausncia do velho monge Joo Maria de Jesus, que no palmilhava mais a regio, pois havia desaparecido; entretanto, distante da Regio do Contestado 105 , decises tomadas naquele ano mudariam para sempre o curso da Histria dos moradores da exuberante floresta ombrfila mista. A Terceira Conferncia Pan-Americana, realizada no Rio de Janeiro no ano de 1906, contou com a presena do Baro do Rio Branco 106 , Ministro das Relaes Exteriores do Brasil, e de Elihu Root, Secretrio de Estado dos EUA. Como resultado desta Conferncia, revelaram-se perspectivas altamente favorveis ao gigante da Amrica do Sul, fornecedor de caf para a grande Repblica da Amrica do Norte e importador de farinha de trigo, produtos eltricos, manufaturados, tecnologia e capitais (GAULD, 2005, p. 219). De Root para Percival Farquhar, o otimismo contagiante levou o quacre a tornar-se o maior empresrio de servios pblicos na Histria nacional (GASPAR, apud GAULD 2005). Ainda antes do final daquele ano (12 de novembro 1906), Farquhar criou em Portland, Estado do Maine, a Brazil Railway Company. Alm de buscar scios poderosos 107 , teve apoio financeiro de banqueiros franceses, investidores de Wall Street, financistas de Londres e de banqueiros escoceses. Com o levantamento da
105 O litgio secular, pelo territrio contestado, aps a segunda deciso, continuava tramitando no Supremo Tribunal Federal e as indefinies geravam muitas discusses. 106 O Baro do Rio Branco destaca-se principalmente pela atuao como advogado brasileiro na Questo de Palmas com a Argentina, cujo arbitramento foi feito pelo Presidente dos EUA, Grover Cleveland. 107 Van Horne, Pearson, Keith e Mackenzie. 245 soma de um milho de dlares, estava criada a holding do imprio que planejou na grande repblica dos trpicos (GAULD, 2005, p. 221). A Histria econmica brasileira mudaria e a Histria do Contestado passava para outro captulo. Na diviso geogrfica de Santa Catarina, as reas que abrangem as terras do antigo territrio contestado esto localizadas desde o Planalto Norte, Regio Norte e Oeste, reas onde se estabeleceram e atuaram as subsidirias da Brazil Railway Company. Os processos de povoamento e de despovoamento 108 desta regio foram realizados de forma cadenciada, do Litoral catarinense para o nterior. Partiu-se, assim, das bordas litorneas, nos primrdios da ocupao portuguesa, ainda no sculo XV, e s alcanaram os limites no Extremo-Oeste, em pleno sculo XX. Na Regio do Contestado, possvel destacar um contexto que antecedeu primeira dcada do sculo XX, antes da inaugurao da Ferrovia So Paulo-Rio Grande, e outro, em um ritmo totalmente distinto, a partir do ano de 1910. O longo perodo, que antecedeu primeira dcada do sculo XX, ficou marcado pela chegada dos primeiros europeus que palmilharam e que descreveram a terra e os moradores desse Serto, as disputas pela posse e pela jurisdio, os caminhos dos bandeirantes e dos tropeiros que romperam as vastas plancies, ora tangendo escravos vermelhos 109 , ora gado e muares. No entanto, os tesouros que deixaram os descendentes de europeus fascinados s foram explorados a partir do final do Sculo XX, com a erva-mate e com as densas florestas de araucrias - o Eldorado nos primrdios do sculo XX, estas foram exploradas, em larga escala, aps a insero das companhias madeireira e colonizadora da holding idealizada por Farquhar. A maioria dos moradores que viviam na Regio do Contestado e que foram alcanados pelos trilhos da Ferrovia So Paulo-Rio Grande era caracterizada como caboclos, mestios ou brasileiros, como destacou Arlene Renk ao estudar as relaes entre os colonos que chegaram aps a construo da ferrovia e os elementos que j habitavam este espao h mais tempo (RENK, 1997). Originados dos primeiros contatos entre espanhis e portugueses a palmilharem pioneiramente
108 Ressalta-se, pois, como movimento de povoamento e de despovoamento, visto que os primitivos moradores (ndios) foram perseguidos pelas tropas de bugreiros ou pela companhia de pedestres, que dizimavam ou expulsavam esses grupos, e novos moradores ocupavam os espaos, que durante sculos pertenciam aos primeiros. 109 Escravos vermelhos: aluso ao apresamento dos ndios para trabalho forado nas lavouras. 246 pela floresta ombrfila mista, aqueles indivduos ganhavam a sobrevivncia, extraindo erva-mate e cultivando pequenos roados de subsistncia. Os caboclos ou brasileiros mestios (muitos dos quais eram antigos moradores das terras devolutas que viviam na Regio do Contestado) tiveram a sua Histria modificada com as decises que se seguiram aps o ano de 1906. No dia 16 de abril de 1907, o Ministro Miguel Calmon, da Pasta da ndstria, Viao e Obras Pblicas, atravs do Decreto n. 6.455, expediu o Regulamento de Povoamento do Solo Brasileiro. Em 1908, Miguel Calmon regulamentava o decreto, visando introduo de imigrantes agricultores que se propunham estabelecer-se no Pas, criando centros permanentes de trabalho e de riqueza. A partir do ano de 1910, os moradores da Regio do Contestado iniciaram a experincia das decises que j so deflagradas no ano de 1906. Foram, pois, alcanados pelos trilhos do transporte mais moderno e perfeito do mundo e tambm assistiram chegada das demais companhias madeireiras e colonizadoras do grupo da Brazil Railway Company. No dia 17 de dezembro de 1910, foi inaugurada a Ferrovia So Paulo-Rio Grande, que cortou verticalmente as terras contestadas, ligando o Sul com o Centro do Pas e quebrou o isolamento secular dos moradores da Regio. A Histria da madeireira Lumber, na Regio do Contestado, e a de Percival Farquhar, no Brasil, esto em um universo bastante prximo pelo pioneirismo e a observao de olhos de guia sobre as florestas e terras do Sul do Brasil. Farquhar chegou aqui, pela primeira vez, no incio do sculo XX. Com ampla viso dos aspectos econmicos dos pases em que atuou, depois de observar o Brasil internamente, percebeu que os imigrantes que aqui aportavam para atuar no sistema de colonato em So Paulo, nas lavouras de caf, ansiavam pela propriedade da terra (DACON, 2002). Neste sentido, a existncia de terras devolutas na Regio do Contestado facilitaria o processo de ocupao e de colonizao e correspondia s iniciativas oficiais do Governo brasileiro. A concluso da Ferrovia So Paulo-Rio Grande, entre os Rios guau, ao norte, e Uruguai ao sul, na Regio do Contestado, coube Brazil Railway Company, do grupo de Farquhar. Largas concesses de terras foram expedidas em nome desta companhia, e o Programa Farquhar previa a explorao comercial da madeira e a posterior colocao dos colonos nas terras recm-desmatadas. Assim se 247 justificariam grandes investimentos que culminaram com a colonizao da regio e que garantiriam grandes lucros aos investidores das empresas do grupo. Em novembro de 1911, foi concluda a maior serraria da Amrica do Sul, em plena floresta ombrfila mista, situada prxima aos trilhos da ferrovia So Paulo-Rio Grande. Mais tarde, foi inaugurada uma ligao ferroviria horizontal, unindo a grande madeireira ao Porto de So Francisco do Sul, Santa Catarina. niciou-se a maior predao de pinheiro j efetuada no Hemisfrio Sul (BACK, 1984). Com a instalao da Southern Brazil Lumber & Colonization Company, os moradores da regio assistiram ao desaparecimento das rvores milenares, de onde brotava o sustento da fauna e do homem da floresta ombrfila mista. So poucos os estudos sobre a atuao da Southern Brazil Lumber & Colonization Company no Brasil e inexistentes no perodo que abrange as primeiras dcadas do sculo XX. Estimativas levantadas, neste estudo, demonstram que esta companhia, pertencente ao grupo da Brazil Railway Company, cortou e beneficiou milhes de rvores de araucrias durante os anos de 1911 a 1940 110 na Regio do Contestado. A Companhia (Lumber) teve como engenho central a grande serraria de Trs Barras, Santa Catarina, vrios engenhos de serrar menores e um complexo emaranhado de investimentos em outros setores extrativos, pecurio e colonizador. Na poca, transformou-se no maior complexo madeireiro exportador de tbuas e gneros madeireiros e, pela envergadura e pelas propores da atuao na Regio do Contestado, provocou profundas mudanas nos locais onde atuou, na histria e na vida de pessoas de diversas partes do mundo. As aquisies de terras da Lumber, que ocorreram entre os anos de 1910 e 1912, embora registradas entre 1920 e 1921, somam, em oito propriedades pertencentes aos atuais municpios de Porto Unio e Canoinhas, a quantia de 523.221.922 m 2 (quinhentos e vinte e trs milhes, duzentos e vinte e um mil, novecentos e vinte e dois metros quadrados). No ano de 1911, ocorreram os primeiros despejos de antigos moradores da Regio do Contestado, expulsos das proximidades da ferrovia, cujas terras agora
110 A Southern Brazil Lumber & Colonization Company foi incorporada ao Patrimnio Nacional, atravs do Decreto-Lei n. 2073, de 08 de maro de 1940, e retificado em 22 de julho pelo Decreto- Lei n. 2436 do mesmo ano, passando a se chamar Southern Brazil Lumber & Colonization Company ncorporada. 248 pertenciam Brazil Railway Company. (VNHAS DE QUEROZ, 1977). Era gente que h quase um sculo povoou estes campos devolutos e de repente surpreendida com a notcia da venda ou do arrendamento a terceiros, que, armados do ttulo de propriedade, no tardam a procurar desaloj-los como intrusos (Jornal A Tribuna Curitiba 05/11/1914). Cabe conferir tambm que o primeiro ajuntamento de sertanejos na Regio do Contestado ocorreu em seguida, no ano de 1912. Alguns fatos ocorridos, no ano que antecedeu quilo, chamam a ateno. Os sertanejos juntaram-se em torno de Jos Maria, um benzedor e curandeiro que receitava ervas, dava conselhos e exercia prticas anteriormente realizadas pelo velho monge Joo Maria. Com Jos Maria, principiou a aglutinao que gerou a Guerra do Contestado iniciada em 1912, estendida at 1916 e que deixou um saldo de aproximadamente 8.000 brasileiros mortos, a grande maioria sertanejos pobres que viviam na floresta ombrfila mista. Em 1914, com a ecloso da Primeira Guerra Mundial, a holding de Farquhar e suas subsidirias, muitas ainda em plena expanso, demandavam grandes investimentos; alm disso, no havia possibilidades de retorno ou mesmo de sustentao prpria. Todo o imprio de Farquhar desabou, o Fara das Amricas teve, pois, o seu programa interrompido. Ainda sobre o assunto, um administrador foi designado pelos investidores para tomar conta da Brazil Railway Company que ainda atuaria no Brasil com todo o emaranhado complexo de empresas levantadas por Percival Farquhar. O fim do Programa Farquhar ocorreu em 1914 e houve a decretao da recuperao judicial da Brazil Railway Company. W. Cameron Forbes 111 foi nomeado como administrador e Farquhar, morando no Rio de Janeiro, foi solcito em tentar receber dvidas do Governo brasileiro e fez o possvel para auxiliar Forbes na recuperao financeira da holding que havia idealizado. Um jornal noticiou em 17 de outubro de 1914 que A queda de Farquhar servir como advertncia aos investidores europeus e outros contra os astutos esquemas financeiros ianques para comprar tudo e controlar o mundo inteiro (South American Journal, apud: GAULD, 2005, p. 337). De fato, em 1916, Farquhar afastou-se definitivamente da Brazil Railway Company. Por uma dcada (1906 a 1916), as suas decises influenciaram a
111 Willian Cameron Forbes (1870-1959), foi advogado, banqueiro e diplomata que administrou a recuperao judicial da Brazil Railway Company que durou at o ano de 1919 (GAULD, 2005). 249 vida de muitas pessoas da Regio do Contestado e as Histrias catarinense e brasileira. Aps a sada de Farquhar, outros dirigentes atuaram nas empresas do grupo e continuaram com as atividades madeireiras e colonizadoras. A Histria continuou com os caboclos derrotados na Guerra, condenados e culpados pelo derramamento de sangue, com os operrios trabalhando em ritmo acelerado na explorao industrial madeireira - muitos moravam na cidade-empresa americana - os colonos, revolvendo a terra desmatada, regada de sangue durante o conflito que recm-havia cessado. O desbaratamento total das cidades santas, o final da Guerra do Contestado, o cerco para impedir novos ajuntamentos e a assinatura do acordo entre Santa Catarina e Paran no dia 20 de outubro de 1916, que determinou os limites para jurisdio de cada Estado litigante, colocou colonos e caboclos no mesmo cho, com forte atuao das companhias colonizadoras na instalao dos ncleos coloniais e no acesso terra por meio de pagamentos e de legalizaes de propriedades em cartrios pblicos. De fundamental importncia neste estudo, a Histria da madeireira e da colonizadora Lumber foi reconstituda de modo indito, a partir do estudo da atuao do grupo das empresas ligadas Brazil Railway Company e abrangeu conceitos como empresa industrial, destacados por Eullia Lobo (1997), no desenvolvimento da pesquisa no campo da Histria Empresarial. Tratando-se de um grupo econmico que atuava em diversos setores, como nos transportes, nas vias de comunicao, na construo de ferrovias, nos portos e nas atividades extrativas e colonizadoras, demandou anlises da Lumber como madeireira e colonizadora, cuja atuao, na Regio do Contestado, provocou mudanas significativas na Histria da sociedade onde esta empresa se instalou. Diferentemente dos processos de desenvolvimento da indstria brasileira de outras regies, a singular empresa industrial madeireira (Lumber), instalada na Regio do Contestado, provocou mudanas significativas na conjuntura social. A cidade-empresa americana acomodou os trabalhadores, que aqui se estabeleceram, oriundos de diversas partes do mundo. Nas proximidades das edificaes industriais, a construo da vila operria (com escritrio, armazm, hospital, restaurante, cassino e at cinema) estabeleceu, em plena Regio do Contestado, 250 outra realidade, com novas modalidades de trabalho e com atividades totalmente diversas para a sociedade regional. Tambm se deve frisar que o complexo sistema de mecanizao e a diviso sistemtica dos trabalhos da Lumber, desde a retirada das rvores da floresta at o processo final de embarque, revelam o meio mais eficaz de se obter lucros com os investimentos em alta tecnologia, mecanizao e qualificao de mo-de-obra de trabalhadores estrangeiros. Desde os detalhes dos empilhamentos para a secagem, o sistema de aproveitamento de madeira para a fbrica de caixas e at na venda de sobras como lenha para os funcionrios, tudo isso evidencia a complexidade e a ateno aos possveis lucros, procurados at nos mnimos detalhes. Com efeito, a trajetria da Southern Brazil Lumber & Colonization Company est diretamente ligada ao processo de industrializao e de urbanizao da sociedade brasileira. Neste sentido, a demanda por madeira exerceu forte presso sobre a floresta das conferas; grande parte da madeira destinada construo de centros urbanos, como So Paulo, Rio de Janeiro e Braslia, mais tarde, partiu da explorao comercial em larga escala, tendo o pioneirismo nos empreendimentos do grupo Farquhar. No plano externo, o mercado da madeira expandiu-se com as exportaes, principalmente pelo Porto de So Francisco do Sul, de onde o pinho brasileiro da Regio do Contestado ganhou mercados e, por muito tempo, manteve- se como carro-chefe das madeiras de exportao brasileira. A preocupao, com a retirada das araucrias em escalas desproporcionais, comeou somente aps a nacionalizao da Lumber. Uma portaria assinada em 1 de fevereiro de 1940 instituiu um servio administrativo geral para a comercializao do pinho brasileiro, estabelecendo regras e limitando a quantidade de pinheiro para ser retirada e comercializada. No ano seguinte, o Decreto-Lei n. 3124, de 19 de maro de 1941, criou o nstituto Nacional do Pinho. A atitude mais enrgica veio em 1946, atravs do Decreto-Lei, n. 9647, de 22 de agosto do mesmo ano, quando o Governo brasileiro adotou normas proibitivas para a exportao de madeira bruta ou industrializada no Pas. Ainda dentro das iniciativas oficiais, encontramos, em perodo recente da Histria da floresta ombrfila mista, um amplo programa de incentivos fiscais ao reflorestamento com espcies exticas do gnero pinus, assinado pelo Marechal Castelo Branco em 1966 e, no ano seguinte, a criao do BDF (nstituto Brasileiro 251 de Desenvolvimento Florestal) que substituiu o NP (nstituto Nacional do Pinho). Hoje, o BAMA procura manter a fiscalizao, inibindo a derrubada de araucrias ou de qualquer essncia nativa. Da primitiva rea de mais de 200.000 km 2 no Sul do Brasil, coberta de araucrias do incio do sculo XX, em aproximadamente um sculo, encontramos nos mesmos locais apenas 3% da cobertura original isso ilustra que o desaparecimento de to vasta e rica floresta procedeu a um processo rpido de transformao ambiental que merece atenta observao por parte dos governantes e da sociedade. As atividades de reflorestamento somente vo aparecer, anos mais tarde, como alternativa econmica e como disponibilidade de matria-prima para a indstria madeireira. Mesmo depois de nacionalizada, a Lumber Incorporada continuou atuando, principalmente atravs contratos de retirada de madeira, assinados entre o procurador da companhia incorporada e fazendeiros. Deste modo, no ano de 1942, foram adquiridas centenas de milhares de rvores de araucria, prximas Serra do Espigo. Um levantamento dos contratos feitos com fazendeiros, registrados no Cartrio de Paz de Curitibanos 112 , onde se encontram vrias dezenas destes documentos, aponta negcios que envolvem milhes de rvores em reas de terras em que, aps a explorao comercial da madeira, eram comercializadas ou regularizadas as posses. Diversas condies eram estabelecidas nos contratos, entre outras, as rvores cortadas deveriam medir 1m (um metro) acima do solo ao serem derrubadas. O valor estabelecido era de 3$000 (trs mil ris) cada uma e seriam marcadas na presena de ambas as partes. O prazo de retirada ficava estabelecido em 10 anos, podendo ser prorrogado por mais dez. Ao assinar os documentos do arrendamento, o procurador tambm reservava o direito Lumber de igualmente construir linhas, caminhos, estradas de rodagem, de via frrea, sem condies de indenizar, se isso causasse qualquer dano ao terreno. Podia tambm tirar lenha, n de pinho e dormentes do terreno arrendado e, ainda, o direito de sublocar a quem lhe conviesse, pois o direito do
112 Arquivo do Cartrio de Paz de Curitibanos (na poca, municpio de ampla abrangncia na regio, inclusive de grande parte das terras da Lumber e que deste municpio se desmembraram mais tarde Porto Unio, Campos Novos e Caador), com registros de Herclio Moreira da Silva, que foi oficial do Cartrio de Ttulos e Documentos, de 1911 a 1951. 252 contrato continuava valendo mesmo em caso de transmisso do terreno por qualquer ttulo. Torna-se impossvel, apenas pelos registros existentes, precisar todos os contratos de arrendamento para a retirada posterior da madeira ou mesmo de contratos de compra das terras. No entanto, alguns chamam a ateno pela quantidade de terra e pela localizao. Assim, no ano de 1948, foram assinados contratos de arrendamento dos seguintes locais: distrito de Caragoat, da Comarca de Curitibanos e Alto da Serra do Espigo, somando, juntos, milhes de hectares de terra. Nessas terras, durante a Guerra do Contestado, em muitos locais existiram redutos ou cidades santas erigidas pelos caboclos rebelados. Partindo-se da questo levantada a priori se as transformaes que ocorreram na Regio do Contestado com a atuao das empresas da Brazil Railway Company, de 1906 at 1916, foram decisivas na deflagrao da crise que levou luta armada, no h como negar que a construo da ferrovia, a explorao comercial da madeira, o incipiente processo de colonizao e a institucionalizao da propriedade privada foram elementos fundamentais no desencadeamento do conflito armado que foi denominado Guerra do Contestado. Tal ecloso est, pois, relacionada diretamente aos fatos que ocorreram na vspera do conflito. Observa-se a situao de crise apontada por Cardoso (1987) e o aporte para a situao revolucionria. A chegada de colonos, descendentes de europeus, para trabalhar na Lumber e para desbravar a floresta ombrfila mista, abriu espao para os colonos que desembarcaram ao longo das estaes da ferrovia So Paulo-Rio Grande e que se internaram nas terras novas para o cultivo de cereais e para a criao de animais - isso provocou a ira dos caboclos que partiram para a desforra. Os desentendimentos com os antigos moradores da regio e os ataques s estaes, madeireira e colnia de imigrantes da Lumber so reconhecidos a partir de trs episdios cruciais do conflito, gerados pela atuao do grupo da Brazil Railway Company. No dia 06 de setembro de 1914, o alvo dos sertanejos rebeldes foi a prpria Lumber, quando a Estao de Calmon foi queimada e a filial da madeireira norte-americana foi alvo de saque e de incndio. Herculano D'Assumpo registrou que, na porta de uma venda, escrito a lpis, ficou um bilhete onde os sertanejos reclamavam do Governo que toca os filhos brasileiros dos terreno que pertence 253 Nao e vende para o estrangeiro (....) Nois no tem direito de terras tudo para as gentes da Oropa (D'ASSUMPO, 1917, p. 245). Os ataques s estaes ferrovirias da Companhia Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande, o incndio da madeireira de Calmon e o ataque aos colonos instalados pela Lumber levaram o Diretor da Companhia a exigir do Governo brasileiro garantias individuais e tambm para as propriedades. Desta forma, no tardou a chegada de um tero do Exrcito republicano brasileiro (BERNARDET, 1979, p. 113) com atuao ostensiva e at com o uso de aeroplanos para combater os sertanejos revoltados. Os gastos com a guerra foram astronmicos e isso provocou um genocdio com a morte de, aproximadamente, 8.000 brasileiros, em sua grande maioria, caboclos pobres que viviam na Regio do Contestado. Deve-se destacar agora que a relao intrnseca entre os fatos denota que, aps as concesses feitas para a Brazil Railway Company, que tambm obteve o direito de explorar as terras compreendidas na faixa de 15 km de cada lado da ferrovia, houve a desapropriao de moradores estabelecidos nestas terras desde tempos remotos. GAULD (2005, p. 354) Conclui-se, ainda, que extrao industrial madeireira e os problemas gerados com o fim das obras de assentamento dos trilhos somaram-se ao fanatismo religioso e ao profundo descontentamento dos caboclos devido alterao de seu sistema de vida e so fundamentais no desencadeamento da Guerra do Contestado (1912-1916). Partindo-se do princpio de que impossvel dissociar fatores econmicos, polticos e culturais das transformaes da conjuntura na histria da sociedade daquele grupo humano, que foi alcanado pelos trilhos da ferrovia So Paulo-Rio Grande, os trabalhadores da Lumber e os colonos imigrantes chegaram de diversas origens, de culturas heterogneas e os impactos do novo modelo de economia e trabalho provocaram rupturas com o velho sistema dos moradores antigos da regio. A somatria desses fatores levou crise que desencadeou a luta armada. Um estudo sobre os pases de origem dos advindos para a regio, no incio do sculo XX, possibilitaria a compreenso dessa miscelnea cultural, dos modos distintos de trabalhar, de se viver e de se conceber o mundo. Embora o caboclo no encontrasse espao nesta nova lgica de trabalho e cultivo da terra, os recm- chegados tambm tiveram que aprender a lidar com um meio totalmente desconhecido. 254 Aos trabalhadores da Lumber foi facultado o emprego nas inmeras atividades empresariais da indstria madeireira. Os colonos tiveram acesso terra para cultiv-la e, mesmo pagando para obt-la, tornaram-se legtimos proprietrios com ttulos reconhecidos. Para muitos antigos moradores da Regio do Contestado, a chegada e a atuao das empresas do grupo da Brazil Railway Company significou a perda da antiga condio de possibilidade de sobrevivncia, embora precria, e aqueles foram classificados na condio de intrusos. A reconstituio da Histria da empresa madeireira e colonizadora pertencente Brazil Railway Company conduz ao argumento de que a chegada do capital internacional na Regio do Contestado provocou mudanas no mago da cultura dos moradores do Serto Catarinense e constituiu-se no epicentro das causas do conflito armado. Neste estudo fundamentou-se a instalao da madeireira e colonizadora, como fator decisivo no desencadeamento da revolta dos moradores da floresta ombrfila mista da Regio do Contestado. No precisa nem escrever que os caboclos continuaram com dificuldades para ter acesso quilo que tinham anteriormente chegada da ferrovia. De acordo com Paulo Pinheiro Machado, ao findar a Guerra do Contestado, o General Setembrino de Carvalho trocou telegramas com os governadores de Santa Catarina e do Paran, sugerindo o estabelecimento dos sertanejos prisioneiros em colnias na prpria Regio. O General recebeu da nspetoria Federal de Povoamento do Solo (Ministrio da Agricultura) a informao de que no existem terras disponveis, sendo as colnias existentes organizadas para a recepo de imigrantes europeus (MACHADO, 2004, 324). Hoje, em alguns municpios da Regio do Contestado, encontramos os mais baixos ndices de desenvolvimento humano (DH). A assistncia aos moradores da Regio s chegou em pleno sculo XX e, mesmo assim, depois do trauma da Guerra que vitimou milhares de sertanejos pobres e analfabetos, condio que, em partes, ainda no se assegura que totalmente passado. O Municpio de Timb Grande, Santa Catarina, cuja abrangncia envolve o local do antigo Reduto de Santa Maria, encontra-se na ltima posio do ranking dos municpios catarinenses (293), segundo o DH do ano 2000. Outros municpios vizinhos, tambm palco de antigas cidades santas, encontram-se em situao idntica, chamando a ateno os 255 baixos ndices, principalmente nos itens de renda per capita, ndice de educao e ndice de esperana de vida (ONU GeoEcon/idhsc). Para se ter a dimenso total do conflito armado e das suas conseqncias, necessrio levar em conta a Histria econmica mundial, especialmente a expanso ferroviria, a industrializao, os caminhos do capitalismo financeiro e a hegemonia econmica dos pases industrializados. Para se conhecer a Histria do Contestado, tambm necessrio ter a sensibilidade de ouvir as narrativas e as memrias dos protagonistas que testemunharam o passar do tempo. Eram pessoas, como Nicolau Toporoski, que veio de um pas distante e que trabalhou na Lumber, com suas vitrias e derrotas, com seu drama familiar; como os caboclos, moradores desde sempre destas plagas e que sentiram na pele os horrores da Guerra e nem queriam contar o que vivenciaram. H ainda, muitos interlocutores que podem transformar memrias em Histria. guisa de concluso, quer-se referir que esta pesquisa revelou fatos interessantes anlise e complementou muitas lacunas deixadas pela inexistncia de estudos sobre essa temtica. Muitos arquivos com documentos escritos e arquivos de memrias vivas com potencialidade sobre este assunto continuam espera do olhar atento, do ouvido aguado e da curiosidade dos pesquisadores. Acredita-se na contribuio que poder advir deste estudo para a Histria, principalmente para instituies educacionais e para a sociedade regional.
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Arquivo NacionaI, Rio de Janeiro
Resumo do Programa Farquhar ao organizar a BraziI RaiIway Company, feito e oferecido por CharIes A. GauId, Rio de Janeiro, 1942.
1) Programa Farquhar: Estrada de Ferro So Paulo-Rio Grande e Sorocabana; 2) Programa Farquhar: A Administrao da So Paulo-Rio Grande e da Sorocabana. Ligao das duas redes. Construo das duas linhas das suas concesses. O estabelecimento, nas regies atravessadas, de indstrias no intuito de mostrar o caminho, demonstrando-se na prtica a possibilidade de se estabelecerem indstrias similares e outras; 3) Programa Farquhar: Empresas subsidirias, organizadas com o propsito de fomentar o desenvolvimento das regies atravessadas pelas suas linhas e que todas foram incorporadas com capitais fornecidos pela Brazil Railway Company (Southern Brazil Lumber Company, Southern Brazil Colonization Company, Brazil Land, Cattle and Packing Company); 4) Programa Farquhar: Cie. Auxilliaire des Chemins de Fer du Brsil, 3.000 Km de linhas frreas no Estado do Rio Grande do Sul; 5) Programa Farquhar: Porto e Barra do Rio Grande do Sul; 6) Programa Farquhar: Companhia Paulista de Estradas de Ferro, 1.500 Km, Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, 2.000 Km; 7) Programa Farquhar: Uruguay Railway Company, estendendo-se de Montevidu at Rivera, na fronteira com o Rio Grande do Sul, e diversos ramais no interior daquela Repblica; 8) Programa Farquhar: Antofogasta Railway Company; 9) Programa Farquhar: Madeira Mamor Railway Company 365 Km; 10) Programa Farquhar: Estabelecimentos dos tipos e modelos de locomotivas e vages, freios e engates, para toda a rede da Brazil Railway Comapany; 11) Programa Farquhar: Razes que motivaram a interrupo do Programa da Brazil Railway Company.
Arquivo ParticuIar de Romrio Jos BoreIIi, Curitiba, Paran
1) ReIatrio dos trabaIhos reIativos ao ano industriaI e comerciaI de 1944 (correspondncias encaminhadas ao Superintendente das empresas incorporadas ao Patrimnio Nacional, Sr. Luiz Carlos da Costa Netto, escritas pelo Coronel Reginaldo Teixeira - Diretor da Southern Brazil Lumber & Colonization Company Incorporada); 265 2) Correspondncias avuIsas que relatam histricos anteriores, situao da Southern Brazil Lumber & Colonization Company e comunicaes de assuntos de interesses diversos da Superintendncia das Empresas ncorporadas ao Patrimnio da Unio; 3) Documentos de trmites da doao de madeira da Southern Brazil Lumber & Colonization Company Incorporada pela embaixada brasileira em Montevidu para a construo na capital uruguaia da Escola Getlio Vargas (L 117, p. 266); 4) PIano de vendas dos lotes rurais das propriedades incorporadas ao Patrimnio da Unio(L 117, p. 238); 5) ReIaes nominativas de terrenos medidos, demarcados e divididos para o requerimento de compra pelos posseiros em terras devolutas (p. 145); 6) Movimento do escritrio em So Francisco (p. 262); 7) Aquisio de pinhais (p. 258); 8) Descrio de patrimnio de diversas fazendas; 9) Descrio dos quadros de organizao dos trabalhadores nas categorias, atribuies e misteres; 10) Resumo histrico da empresa antes da incorporao (Documento de 304 p.). 11) Trs Iivros grandes (40 x 60cm) de pagamentos da Southern Brazil Lumber & Colonization Company, onde esto nominados os trabalhadores e os respectivos vencimentos, nos anos de 1923, 1924, 1925, 1926, 1928 e 1929. 12) Unclaimed Hages 1910 . Livro que registra ordenados no reclamados, com incio em 1914, com todos os meses dos anos seguintes at o ltimo registro em janeiro de 1942; 13) Livro de Actas de um Grmio fundado em 1938 e que possui registros at 1952; 14) Centenas de documentos diversos avulsos que pertenceram ao contador da Lumber, em sua maioria, depois de ncorporada. 15) EditaI de concorrncia de venda dos bens da Lumber, publicado no Dirio Oficial, pelo Presidente da Comisso, Sr. Hortncio de Alcntara Filho.
Cartrio de Paz da ViIa de Lebon Rgis, Sexto Distrito da Comarca de Curitibanos
1) Escritura de Contrato para Custeio de LegisIao de Posse. Outorgantes: Eugnio Schifler e zabel Rodrigres Schifler. Outorgada: Southern Brazil Lumber & Colonization Company ncorporada. Lebon Rgis, 04/05/1942. 2) Escritura de Contrato para Custeio de LegisIao de Posse. Outorgantes: Augusto Granemann, Olmpia Granemann de Souza, Agostinho Borges dos Santos, Maria Ribeiro Martins. Outorgada: Southern Brazil Lumber & Colonization Company ncorporada. Lebon Rgis, 17/04/1942. 3) Escritura de Contrato para custeio de IegisIao de posse. Outorgantes: Jos Gabriel Ribeiro, Maria Alves Padilha, Joo Becher Granemann, Teodora Aurlia de 266 Souza, Manoel Guimares Camargo, Olinda Maria Ribeiro, Honrio Camargo dos Santos, Maria Correa de Souza, Bento Simo, Davina Moreira da Conceio, Joo Furtado de Souza, Etelvina Belli de Souza, Marcelino Gabriel Ribeiro, Francisco Gabriel Ribeiro, Antnio Gabriel Ribeiro, Pedro Pereira de Souza, Miguel Pereira de Souza, Joo Maria de Souza, Paulina Wascheskoski, Gabriel Pereira de Souza, Loureno Pereira de Souza, Frazina Alexandre, Sebastio Simo Alexandre Ramos, Porcidonio Martins dos Santos e Francisco Antonio da Costa. Outorgada: Southern Brazil Lumber & Colonization Company Incorporada. Lebon Rgis, 18/04/1942. 4) Escritura de Contrato para Custeio de LegisIao de Posse. Outorgantes: Antonio Borges dos Santos, Flora Ribeiro da Silva, Francisco Ferreira Thibes, Gabriel Joaquim Ribeiro, Joo Gabriel Sobrinho, David Pires de Morais, Alfeu Manoel da Silva, Joo Pedro Pires de Ges, Miguel Gabriel Ribeiro e Sebastio Moreira da Silva. Outorgada: Southern Brazil Lumber & Colonization Company Incorporada. Lebon Rgis, 20/04/1942. 5) Escritura de Contrato para Custeio de LegisIao de Posse. Outorgantes: Virglio Mariano, Manoel Ferreira de Jesuz, braim Cardoso dos Santos, Joo Raimundo de Almeida e Sebastio Lemes da Rocha. Outorgada: Southern Brazil Lumber & Colonization Company Incorporada. Lebon Rgis, 12/05/1942. 6) Escritura de Contrato para Custeio de LegisIao de Posse. Outorgantes: Joo Granemann Sobrinho, Marinha Padilha Granemann, Ataliba Granemann e zarina Granemann Drissen. Outorgada: Southern Brazil Lumber & Colonization Company Incorporada. Lebon Rgis, 12/05/1942. 7) Escritura de Contrato para Custeio de LegisIao de Posse. Outorgantes: Teodoro Simo, Florentina Dias da Silva, Miguel Lisboa e Olmpia Moreira da Silva. Outorgada: Southern Brazil Lumber & Colonization Company Incorporada. Lebon Rgis, 05/10/1942.
Centro de Organizao da Memria SociocuIturaI do Oeste, Chapec, Santa Catarina
1) Cadernos do CEOM
Cartrio de Paz da Comarca de Curitibanos, Santa Catarina
1) Escritura de Arrendamento para Extrao de Madeira. Outorgantes: Joo Vieira Sobrinho e sua mulher. Outorgada: Southern Brazil Lumber & Colonization Company Incorporada. rea de 683.946,35 (seiscentos e oitenta e trs mil, novecentos e quarenta e seis metros quadrados e trinta e cinco decmetros quadrados) no Arroio do Padre, distrito de Caraguat, Curitibanos, SC, 06/11/1948. 2) Escritura de Arrendamento para Extrao de Madeira. Outorgantes: Joo Maria Pires atravs de seu procurador Crescencio Lins. Outorgada: Southern Brazil Lumber & Colonization Company Incorporada. rea de 418.572,23 (Quatrocentos e dezoito mil, quinhentos e setenta e dois metros e vinte e trs centmetros quadrados) no local denominado Timb, Curitibanos, SC, 18/12/1948. 267 3) Escritura de Arrendamento e de Servido de Trnsito ou Passagem. Outorgantes: Antonio Guesser e Margarida Muller Guesser. Outorgada: Southern Brazil Lumber & Colonization Company Incorporada. No local denominado Antinha, distrito de Caraguat, Comarca de Curitibanos, SC, 14/07/1948. 4) Escritura de Contrato para o Custeio de LegisIao de Posse. Outorgantes: Antonio Guesser e Margarida Muller Guesser. Outorgada: Southern Brazil Lumber & Colonization Company Incorporada. rea de 2.513.189,50 (Dois milhes quinhentos e treze mil cento e oitenta e nove metros e cinqenta centmetros quadrados). No lugar denominado Vargem Grande, Alto da Serra do Espigo, Comarca de Curitibanos, SC, 14/07/1948. 5) Escritura de Compra e Venda. Outorgantes: Manoel Schumacker e Ana Barbosa da Silva Outorgada: Southern Brazil Lumber & Colonization Company Incorporada. rea de 2.844.376 (Dois milhes oitocentos e quarenta e quatro mil trezentos e setenta e seis metros quadrados). Preo acertado: Cr$ 56.000,00 (Cinqenta e seis mil cruzeiros). No lugar denominado Rio Timb, distrito de Caraguat, Municpio da Comarca de Curitibanos, SC, 01/06/1951. 6) Escritura de Arrendamento e de Servido de Trnsito ou Passagem. Outorgantes: Pedro Meireles Prestes e Ernesta Guedes Maciel Prestes. Outorgada: Southern Brazil Lumber & Colonization Company Incorporada. rea de 1.000.000 (Um milho de metros quadrados). No local denominado Santa Maria, Comarca de Curitibanos, SC, 10/12/1948. 7) Escritura de Arrendamento e de Servido de Trnsito ou Passagem. Outorgantes: Antonio Furtado, Juvelina Granemann Furtado, Glaucinir Furtado Hoffmann, Paulino Hoffmann, Adelaide Furtado Machado, Joo Machado Junior, Maria do Nascimento Alves, Jos Alves de Souza, Alinor Furtado, Nair Teresinha Furtado e Maria Darci Furtado. Outorgada: Southern Brazil Lumber & Colonization Company Incorporada. rea de 3.154.200 (Trs milhes cento e cinqenta e quatro mil e duzentos metros quadrados). No local denominado So Miguel, distrito de Caraguat, Municpio da Comarca de Curitibanos, SC, 18/10/1948. 8) Escritura de Arrendamento para a Extrao de Madeira. Outorgantes: Manoel Mamedes de Sant'Ana, Alfredo de Oliveira Preto, Eufrsio de Oliveira Preto, Guilherme Maiberg e Joo Ginuino dos Santos. Outorgada: Southern Brazil Lumber & Colonization Company Incorporada. reas de 8.500.000 (Oito milhes e quinhentos mil metros quadrados no lugar denominado Caadorzinho, distrito de So Sebastio), 1.500.000 (Um milho e quinhentos mil metros quadrados no lugar denominado Campinas das Moas, distrito de So Sebastio) e mais 30 alqueires(720.000 setecentos e vinte mil metros quadrados) no lugar denominado Caadorzinho, distrito de So Sebastio, comarca de Curitibanos, SC, 14/01/1942. 09) Escritura de Arrendamento para a Extrao de Madeiras. Outorgantes: Joo Vieira Sobrinho, Davina Jungles Preste e seu procurador Joo Ribeiro da Silva. Outorgada: Southern Brazil Lumber & Colonization Company Incorporada. rea de 683.946.35 (Seiscentos e oitenta e trs mil, novecentos e quarenta e seis metros quadrados e trinta e cinco decmetros quadrados) no local denominado Arroio do Padre, distrito de Caraguat, Municpio e Comarca de Curitibanos, SC, 06/11/1948. 10) Escritura de Retificao de Arrendamento para a Extrao de Madeira. Outorgantes: Firma ndustrial Madeireira Fontana representada por Joo Fontana Junior. Outorgada: Southern Brazil Lumber & Colonization Company Incorporada. 268 Retiradas 3.068 (trs mil e sessenta e oito rvores da propriedade de Carlos Ribeiro Dias. Restando 84.428 rvores marcadas para serem retiradas. Canoinhas, SC, 16/12/1944.
Arquivo Histrico MunicipaI de Canoinhas (AHMC), Canoinhas, Santa Catarina
1) - Processo 1229/53 - Justia do Trabalho reclamao coletiva devido falta de pagamento de salrios. Reclamantes: Victorino Gensio Ferreira e mais 100 trabaIhadores. Reclamada: Superintendncia das Empresas Incorporadas ao Patrimnio NacionaI - Ministrio da Guerra. Tribunal Regional do Trabalho, Canoinhas, SC, 1953. 2) - Processo 2979/51 - Justia do Trabalho reclamao coletiva devido falta de pagamento de gratificaes. Reclamantes: Ernest OIiver Bishop e mais 73 trabaIhadores. Reclamada: Southern Brazil Lumber & Colonization Company Incorporada. Tribunal Regional do Trabalho, Canoinhas, SC, 1951. 3)-Auto de priso e perguntas. Delegacia de Polcia de Canoinhas. Ru Deodato Manoel de Ramos.
Associao CuIturaI Pe. Toms Pieters, Matos Costa, Santa Catarina
1) Inqurito PoIiciaI MiIitar da morte de Joo Teixeira Mattos da Costa. Unio da Vitria, PR, 28/09/1914. 2) DA COSTA, Fernando Lopes. Biografia de Ofcio do Capito Joo Teixeira Mattos da Costa, nf. 2199. Arquivo do Exrcito, Rio de Janeiro, 18/10/1946.
Campo de Instruo MarechaI Hermes (CIMH), Trs Barras, Santa Catarina
1) Livros de Funcionrios da Lumber
Museu Histrico de Trs Barras, Santa Catarina
1) Livros de Funcionrios da Lumber 2) Acervo de imagens
Museu Histrico e AntropoIgico da Regio do Contestado, Caador, Santa Catarina
1) Telegrama do General Setembrino de Carvalho para o Ministro da Guerra no Rio de Janeiro, comunicando a queda do aeroplano e a morte do aviador Tenente Ricardo Kirk. Porto Unio, SC, 01/03/1915. 269 2) Acervo de imagens 3) Mapas
Arquivo MunicipaI Dr. WaIdemar Rupp, Campos Novos, Santa Catarina
1) Mapas
Arquivo PbIico MunicipaI de Caador, Santa Catarina 1) Acervo de fotografias
Arquivo PbIico do Estado de Santa Catarina (APESC)
1) TtuIo de Medio e Legitimao de terras. Autor: Roberto Rodrigues Pereira. Campos e mattas de uma lgua, mais ou menos de frente, e trs e meia lguas de fundo. Confrontaes: Norte terrenos Nacionaes; SuI terrenos de Manoel alves Ribeiro, Antnio Baptista e outros; Leste terrenos de Jos Custdio de Mello e Oeste terrenos Nacionaes. rea de Iegitimao: 26.994.750 braas quadradas de terras. Local Campos do Nascimento, Freguesia de So Joo dos Campos Novos, distrito dos Curytibanos, Termo da Cidade de Lages, 22/01/1864. 2) Relatrios Mensais da Southern Brazil Lumber & Colonization Company, de 1916 at 1941 (35 Volumes). 3) Balancetes Mensais da Southern Brazil Lumber & Colonization Company, de 1920 a 1956 ( 15 Volumes). 4) nventrio da Pharmcia da Southern Brazil Lumber & Colonization Company, de julho de 1929 a dezembro de 1931 (2 Volumes). 5) nventrio do Armazm da Southern Brazil Lumber & Colonization Company, de julho de 1927 at abril de 1957 (10 Volumes). 6) Memorial da Southern Brazil Lumber & Colonization Co. nterventoria Federal de Santa Catarina. Curitiba: Papelaria Universal, s/d.
Museu de Comunicao SociaI HypoIito da Costa, Porto AIegre, Rio Grande do SuI Jornal A Federao de Porto Alegre - RS.
BibIioteca PbIica do Estado de Santa Catarina (BPESC) 1) O Democrata - Canoinhas 2) O mparcial - Canoinhas 3) Jornal do Povo - Canoinhas 4) O Avante - Canoinhas 270 5) O Timoneiro do Norte - Canoinhas 6) Jornal do Trabalho Curitibanos 7) Jornal O Comrcio Porto Unio
BibIioteca PbIica do Estado do Paran 1) O Dirio da Tarde - Curitiba 2) A Gazeta do Povo - Curitiba 3) O Estado do Paran - Curitiba 4) O Rionegrense Rio Negro
BibIioteca CentraI da PUCRS 1) Revista Estudos Ibero-Americanos. FFCH PPGH. Estudos bero-Americanos. PUCRS, v. XXV, n. 1, junho 2002.
Arquivo Edgard Leuenroth, IFCH-UNICAMP 1) Jornal A Plebe, Campinas
Revista OS PIONEIROS. Trs Barras, SC. Ano , n. 1, setembro 1986. ______. Trs Barras, SC. Ano 2, n. 4, novembro 1987.
JORNAIS
JORNAL A GAZETA TRESBARRENSE Trs Barras, Santa Catarina. Jornal O PAZ Rio de Janeiro. Jornal Folha de So Paulo. Jornal O Contestado. Caador, SC. Ano V. n. 11, dezembro 1996.
A GUERRA dos PeIados. Direo: Sylvio Back, 1971. 1 fita de vdeo (98min), VHS, son., color. 271 ARAUCRIA, memria em extino. Direo: Sylvio Back. Produo: UFPR- Curitiba, 1984. 1 fita de vdeo (29min), VHS, son., color. CONTESTADO: a fria cabocIa. Caador-SC CONTESTADO: a Guerra desconhecida. Roteiro/direo: Enio Staub. Prod. Executivo: Sergio A. Rubim. Florianpolis-SC: UFSC, 1984. 1 fita de vdeo (54min), VHS, son., color. LUMBER. Botelho Produes, sd. Filme recuperado pela cinemtica do Museu Guido Viaro: Fundao Cultural de Curitiba-PR. 1 fita de vdeo (39min), VHS, n/son., n/color. TERRA vida. Direo: Marlon Vargas. Pesquisa: Elisete Schwade. Produo: UNOESC-Chapec, 1998. 1 fita de vdeo (13min), VHS, son., color.
ENTREVISTAS
Memrias e reIatos sobre a Histria da Lumber - Programa de Doutorado
Miguel Jascuf Caador, Santa Catarina, jan. 2004 Jucy Varela tapema, Santa Catarina, jan. 2004 Tercia Oswalda de Oliveira Canoinhas Santa Catarina, jan. 2007 Marta Gura Kalempa Canoinhas, Santa Catarina, fev. 2007 Valdemiro Noga Canoinhas, Santa Catarina, jan. 2007 Luiza Shelemberguer Sczcherbowski Canoinhas, Santa Catarina, jan. 2007 Abigail Pacheco Bishop - Trs Barras, Santa Catarina, fev. 2007 Ladislau Olcha - Trs Barras, Santa Catarina, fev. 2007 Jucy Varela Caador, Santa Catarina, mar. 2007 Helma Bishop Cordeiro Curitiba, mar. 2007 Pedro Moskwen Porto Unio, Santa Catarina, jan. 2008 Leopoldo Padilha Trs Barras, Santa Catarina, jan. 2008 Jos Kraus Sobrinho Trs Barras, Santa Catarina, jan. 2008 Lauro Dobrochinski Porto Unio, Santa Catarina, jan. 2008 Mario Manoel Joaquim Unio da Vitria, Paran, jan. 2008 Jos Moyses Porto Unio, Santa Catarina, jan. 2008 Ninpha Ferreira de Oliveira Florianpolis, jul. 2008 Cely Ferreira Tramujas Florianpolis, jul. 2008 Elvino Moreira Caador, Santa Catarina, jul. 2008
272 Memrias e reIatos sobre a Guerra do Contestado - Programa de Mestrado (entrevistas reaIizadas nos anos de 1995 e 1996)
Manoel Batista dos Santos Timb Grande, Santa Catarina Miguel Correa de Souza Lebon Rgis, Santa Catarina Joo Maria de Gis Caador, Santa Catarina Joo Maria Paes de Farias Lebon Rgis, Santa Catarina Joo Maria Paleano Frei Rogrio, Santa Catarina Joo Maria de Souza Lebon Rgis, Santa Catarina Alcides Webber Curitibanos, Santa Catarina Davina Domingues dos Santos Lebon Rgis, Santa Catarina Antnio Pinto Lebon Rgis, Santa Catarina Nabor Rocha Lebon Rgis, Santa Catarina Nelcina Rocha Lebon Rgis, Santa Catarina Celso Correa de Souza Lebon Rgis, Santa Catarina Aristiliano Carlin de Frana Caador, Santa Catarina Carlos Carlin de Frana Caador, Santa Catarina Antnio Carlos Martim Caador, Santa Catarina Ado Ferreira de Souza Caador, Santa Catarina Manoel Francisco Dias Lebon Rgis, Santa Catarina Onorina Maria Dias Lebon Rgis, Santa Catarina Joo de Souza Dias Lebon Rgis, Santa Catarina Noel Thibes Carlin Lebon Rgis, Santa Catarina racema Thibes Carlin Lebon Rgis, Santa Catarina
Memrias e reIatos sobre a Guerra do Contestado - Entrevistas reaIizadas por Toms Pieters Firmino Gonalves Pontes Fraiburgo, Santa Catarina, jan. 1974 Margarida Ribeiro Fraiburgo, Santa Catarina, nov. 1973 Aristiliano Dias Fraiburgo, Santa Catarina, nov. 1973 Benedito Chato Fraiburgo, Santa Catarina, nov. 1973 Afonso Ribeiro Fraiburgo, Santa Catarina, dez. 1973 Joaquim Pereira Neto Fraiburgo, Santa Catarina, dez. 1973 Oldia Pereira Neto Fraiburgo, Santa Catarina, dez. 1973 Nelson Scholl Fraiburgo, Santa Catarina, nov. 1973 Valdir Rodrigues Mafra Fraiburgo, Santa Catarina, nov. 1973 ANEXOS
Anexo n. 1: TELEGRAMA DO GENERAL SETEMBRNO, NOTCANDO A QUEDA DO AEROPLANO NA CAMPANHA DO CONTESTADO
Anexo n. 2: PLANTA DA FAZENDA SO ROQUE DA LUMBER EM CALMON
Anexo n. 3: TERRAS DA COLONZADORA LUMBER Anexo n. 4: CROQUS DAS FORAS OFCAS NA DEFESA DE UNO DA VTRA DURANTE A GUERRA DO CONTESTADO 1914
Anexo n. 5: ORDENADOS NO-RECLAMADOS dez. 1915 Anexo n. 6: ORDENADOS NO-RECLAMADOS mar. e abr. 1916 Anexo n. 7: ORDENADOS NO-RECLAMADOS jan. 1916 Anexo n. 8: ORDENADOS NO-RECLAMADOS nov. 1917 at abr. 1918 Anexo n. 9: Folha de pagamento out. 1923 TRABALHADORES DA LOCOMOO
Anexo n. 10: Folha de pagamento, out. 1923 GUNCHO 4 Anexo n. 11: Folha de pagamento, out. 1923 DONKEY 2 Anexo n. 12: Folha de pagamento, out. 1923 GUNCHO 8 Anexo n. 13: Folha de pagamento, out. 1923 CARREGADOR 3 Anexo n. 14: Folha de pagamento, out. 1923 CONSERVA 4 Anexo n. 15: Folha de pagamento, out. 1923 CORTE DE LENHA Anexo n. 16: Folha de pagamento, out. 1923 CORTE DE TORAS Anexo n. 17: Histria do polons NCOLAU TOPOROSK Anexo n. 18: Roteiro A - aplicado aos antigos trabalhadores da Lumber Anexo n. 19: Roteiro B - aplicado aos antigos trabalhadores da Lumber Anexo n. 20: Carteira de trabalhador da Lumber Anexo n. 21: Depoentes Trcia Oswalda de Oliveira e Valdemiro Noga Anexo n. 22: Depoente Pedro Moskwen Anexo n. 23: Colnias do Oeste Catarinense 1910-1920
ANEXO 1
TELEGRAMA DO GENERAL SETEMBRNO, NOTCANDO A QUEDA DO AEROPLANO NA CAMPANHA DO CONTESTADO
Fonte: Museu Histrico e Antropolgico da Regio do Contestado de Caador, Santa Catarina
ANEXO 2
PLANTA DA FAZENDA SO ROQUE DA LUMBER EM CALMON
Fonte: Museu Histrico e Antropolgico da Regio do Contestado de Caador, Santa Catarina ANEXO 3
REA DE TERRA DA COLONZADORA LUMBER (FAZENDA SO ROQUE) DEMARCADA E VENDDA A GULHERME BENLN
Fonte: Acervo Particular de Pedro Spautz de Calmon, Santa Catarina
ANEXO 4
CROQUS DAS FORAS OFCAS NA DEFESA DE UNO DA VTRA DURANTE A GUERRA DO CONTESTADO 1914
Fonte: Arquivo Pblico de Curitiba
ANEXO 5
ORDENADOS NO-RECLAMADOS dez. 1915
Fonte: UNCLAMED HAGES/Livro dos ordenados no-reclamados. APRJB (Arquivo Particular de Romrio Jos Borelli)
ANEXO 6
ORDENADOS NO-RECLAMADOS mar. e abr. 1916
Fonte: UNCLAMED HAGES/Livro dos ordenados no-reclamados. APRJB (Arquivo Particular de Romrio Jos Borelli)
ANEXO 7
ORDENADOS NO-RECLAMADOS jan. 1916
Fonte: UNCLAMED HAGES/Ordenados no-reclamados. APRJB (Arquivo Particular de Romrio Jos Borelli)
ANEXO 8
ORDENADOS NO-RECLAMADOS nov. 1917 at abr. 1918
Fonte: UNCLAMED HAGES/Livro dos ordenados no-reclamados. APRJB (Arquivo Particular de Romrio Jos Borelli)
ANEXO 9
Folha de pagamento - out. 1923 TRABALHADORES DA LOCOMOO
Fonte: LVRO DA SBL&CC Folha de pagamento APRJB (Arquivo Particular de Romrio Jos Borelli) ANEXO 10
Folha de pagamento out. 1923 - GUNCHO 4
Fonte: LVRO DA SBL&CC Folha de pagamento APRJB (Arquivo Particular de Romrio Jos Borelli)
ANEXO 11
Folha de pagamento out. 1923 - DONKEY 2
Fonte: LVRO DA SBL&CC Folha de pagamento APRJB (Arquivo Particular de Romrio Jos Borelli)
ANEXO 12
Folha de pagamento out. 1923 - GUNCHO 8
Fonte: LVRO DA SBL&CC Folha de pagamento APRJB (Arquivo Particular de Romrio Jos Borelli)
ANEXO 13
Folha de pagamento out. 1923 CARREGADOR 3
Fonte: LVRO DA SBL&CC Folha de pagamento APRJB (Arquivo Particular de Romrio Jos Borelli)
ANEXO 14
Folha de pagamento out. 1923 - CONSERVA 4
Fonte: LVRO DA SBL&CC Folha de pagamento APRJB (Arquivo Particular de Romrio Jos Borelli)
ANEXO 15
Folha de pagamento out. 1923 - CORTE DE LENHA
Fonte: LVRO DA SBL&CC Folha de pagamento APRJB (Arquivo Particular de Romrio Jos Borelli)
ANEXO 16
Folha de pagamento out. 1923 - CORTE DE TORAS
Fonte: LVRO DA SBL&CC Folha de pagamento APRJB (Arquivo Particular de Romrio Jos Borelli)
ANEXO 17
Histria do poIons NICOLAU TOPOROSKI
Na Polnia, o povo vive sob a presso do regime da Rssia. A Rssia tinha muito interesse na Polnia, pela fertilidade do solo e por causa da sada pelo mar. Uma famlia polonesa trabalhava na agricultura, criava seus gansos e era muito catlica. Chegava o cobrador de impostos: se no tivessem dinheiro "zkoty", ouro, levava qualquer mercadoria. E a mercadoria escolhida foram os gansos, todos os gansos! Entregaram ao cobrador de impostos, mas esconderam dois casais para no terminarem com a criao. Mas foram descobertos e o castigo foi trabalho forado para um membro da famlia. O pai foi para esses trabalhos forados para poupar seus filhos. J era de idade avanada, e os filhos ainda jovens, tinham uma vida pela frente. Os mais moos comearam a sonhar, sonhar com outra terra, que ficava longe, alm do mar. Brasil, terra frtil, liberdade, clima, tudo, tudo muito bom! Entre 1871 e 1920, entraram no Brasil cerca de 25.000 poloneses. Suas principais colnias foram instaladas no Paran, nos municpios de So Mateus, Rio Negro, Unio da Vitria. Os poloneses vinham sob contrato para povoar o Sul do Brasil, em regimes de pequenas propriedades, estabelecendo-se como agricultores. Chegaram em navios, superlotados. Eram alojados na Hospedaria do Imigrantes que funcionava como um mercado. Em 1914, aps o desembarque no Rio de Janeiro, um polons chamado Nicolau Toporoski, teve sua primeira dificuldade no Brasil. Virou seu prato esperando a sopa, mas logo desvirou-o, pois estavam servindo feijo que ele nunca havia comido. Nicolau havia deixado na Europa a mulher com dois filhos, que viriam na prxima viagem. J tinham vendido todas as "perenes" cobertas de penas, pois tinham informaes que no Brasil era muito quente. Nicolau ficou na Hospedaria dos Imigrantes, esperando o navio que viriam a mulher e os dois filhos, para que ele pudesse receber sua parte de Terra que constava em contrato como povoador de uma pequena propriedade no Sul do Brasil. Era 28 de julho de 1914. O Imprio Austro-Hngaro declara guerra Srvia. Comea a Primeira Guerra Mundial. E as viagens de outros navios trazendo imigrantes foi imediatamente suspensa. Nicolau espera notcias, l jornais. Num jornal, a notcia que sua cidade na Polnia, onde ficaram os familiares, "Russaw", cidade das Rosas, foi bombardeada. Tudo ficou arrasado. Nicolau est s no Brasil, e perde o direito de colonizador de um pedao de terra no Sul do Brasil! Vai ento trabalhar sob contrato na construo de ferrovias. Trabalha na construo de estradas de ferro que ligam So Paulo ao Rio Grande do Sul, sob a responsabilidade da Brazil Railway e Cia, pertencente a um grupo norte-americano tambm responsvel pela construo da Estrada de Ferro, Madeira-Mamor, nos confins da Amaznia. Isso por volta de 1915. Nesse tempo, conhece uma pessoa tambm imigrante polonesa e forma uma nova famlia no Brasil, pois no teve mais noticias da Polnia. Terminando o contrato na construo de estradas de ferro, Nicolau procurou emprego na Lumber como mecnico. 292 Era 11 de novembro de 1918, e assinado armistcio entre a Alemanha e os Aliados, terminava a 1 Guerra Mundial. A Southern Brazil and Colonization pertence ao mesmo grupo norte-americano que dirigiu o Brazil Railway. Com sede em Trs Barras, a Lumber fixa inmeras famlias de imigrantes que vieram prestar seus servios nas categorias de mo-de-obra e de servios especializados. A Lumber instalou-se em 1911, extraindo madeira e erva-mate, construindo a maior serraria da Amrica do Sul. Em 1913, a empresa suspende suas atividades em virtude da revoluo dos fanticos. Recomeou em 1915. Nicolau recebe uma visita inesperada em Trs Barras. seu irmo Leo que fugiu da Polnia num navio cargueiro. Traz notcias da Polnia... Sua mulher e seus filhos esto vivos, pedem ajuda, a guerra destruiu tudo! Continuava trabalhando na Lumber. Agora preciso fazer muita economia! A mulher de Nicolau rasga penas de gansos para vender. Faz brias em panos brancos de saco que ficam lindas toalhadas. preciso, justo mandar a metade do pagamento para a famlia que ficou na Polnia. Os anos passam. Chega mais uma carta da Polnia. do filho pedindo permisso do pai para casar! A filha tambm escreve da Polnia. Nicolau l as cartas da Polnia e chora, olha para os filhos pequenos aqui, e tambm chora! Um dilema. Comea a pensar muito! Voltar para a Polnia ou ficar no Brasil? Compra um terreno em Trs Barras, pois moravam nas casas da Lumber. Compra madeira, vai fazer uma casa, criar muitos gansos, pois perto tem um riacho onde os gansos podem nadar! Mas no chegou a construir a casa, pediu demisso da Lumber e disse que precisava viajar para muito longe. Deixou em Trs Barras sua mulher esperando seu stimo filho. noite, sua mulher rasgava as penas de gansos para vender e chorava muito. Depois de oito meses, prximo ao nascimento de seu oitavo filho, Nicolau volta para casa. O Consulado Brasileiro no permitiu a sada de Nicolau do Brasil, pois ele j havia formado uma famlia numerosa aqui. Nicolau voltou doente, no trabalhou mais e aquela famlia passou tantas dificuldades! Sem recursos, sem casa prpria, sem terra, passaram fome, passaram frio, doenas, humilhao. A misria era terrvel! A mulher de Nicolau saa de madrugada para trabalhar nas roas de grandes proprietrios: carpir, plantar, colher o feijo. Tambm pintava a cal as casas que naquele tempo eram muito altas, pois quase todas tinham sto. Levava um filho junto, para o trabalho, e os outros deixava em casa. As famlias ricas pediam sua filha Maria e ela dizia: -Filho no cachorro! Filho no se d! Os negros anos se passaram Os meninos cresceram, e com 14 anos, comearam a trabalhar na Lumber. Maria, sua filha, trabalhava na casa do diretor da Lumber. Nicolau ficou doente durante 20 anos e faleceu. *Nascido na Polnia em 1878 +Falecido em 1915, sepultado em Trs Barras. 293 A Lumber, em 1940, foi incorporada ao Patrimnio da Unio. Seus operrios foram indenizados na sua maioria, mas alguns ainda permaneceram at 1952, quando uma grande extenso de terras do municpio foi desapropriada pelo Governo Federal, para a instalao de um campo de Instruo Militar. Com a extino da Lumber, muitos moradores tiveram que se mudar para outras localidades, como, Curitiba, Unio da Vitria, Mafra, etc. Alguns mudavam tambm suas casas. Alguns filhos de Nicolau tambm se mudaram de Trs Barras, aps a extino da Lumber. Um filho foi para Curutiba, outro para o Rio de Janeiro e a filha Maria, j casada e me de duas filhas, mudou-se para Unio da Vitria. Era o dia 13/02/65. Chegava no correio de Trs Barras, novamente, uma carta da Polnia. Essa carta ficou guardada num ba da famlia durante 21 anos sem que ningum respondesse. A mulher de Nicolau tambm j estava muito doente. A extino da Lumber e o xodo rural estagnaram o progresso de Trs Barras. Quase virou uma cidade fantasma. Suas casa no centro lembrava aqueles filmes do Velho Oeste! Mas, a partir de 1956, novamente em Trs Barras, uma firma americana fixa-se. a Rigesa, Celulose Papel e Embalagens Ltda. Com grande reflorestamento e fbrica, h esperanas de progresso para o Municpio. Aumenta a populao. Chegam muitos moradores de Lages, Santa Catarina, do Paran e de diversos lugares. o progresso que invade o Municpio. Dentre esses novos moradores, tambm uma filha de Maria, neta de Nicolau. Seu marido vem trabalhar na Rigesa, deixando residncia em Trs Barras. Maria, vindo a passeio a Trs Barras, encontrou a carta de seu irmo. A carta dizia: Cidade das Rosas, Polnia, 13/02/65. No sei se esta carta recebida, mas cumprimento como o costume polons, em primeiro lugar, que seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo. Querido tio Nicolau. O que vos cumprimenta o seu sobrinho, Mariano, filho de Ado e Suzana. O endereo consegui de seu filho, no sei se acertei, mas experimento mandar esta carta para Trs Barras, talvez algum leia e me conte sobre a sua sade e a sua convivncia. E tambm o tio Leonardo se ainda vive ou algum de seus filhos. Peo mandar o endereo deles se for possvel para que eu possa me comunicar com todos. No tenho muito a escrever, porque no sei se recebem esta carta. Mas depois, ao responder esta, nos comunicamos melhor, pois faz algum tempo que no temos notcias suas. Na prxima carta, mando fotografia e peo por demais que me respondam esta carta. Fico aguardando ansioso a sua resposta e mando saudaes das melhores. Aqui se despede. Mariano, filho de Ado e Suzana. Maria respondeu a carta em maro desse ano, e qual no foi surpresa quando tambm recebeu resposta! Cidade das Rosas, 1986. Carssima Prima Maria Eu recebi sua carta bem no sbado de Aleluia. At chorei de tanta alegria, que recebi a resposta da carta depois de longos anos. Maria, voc pergunta quem da famlia ainda vive: Marcelo, filho de Ado e Suzana. Eu sou a nora deles, o sogro Ado e a sogra Suzana no vivem mais. E o meu 294 Mariano que escreveu aquela carta h 21 anos atrs, tambm no vive. Faz 25 anos que faleceu. Procurou muito por vocs e no alcanou receber a resposta da carta. Eu tambm me chamo Maria, esposa de Mariano e tenho 3 filhos, Pedro, Francisco e Miguel. E agora, Maria, me escreva de onde voc encontrou meu endereo? Tivemos uma Pscoa muito feliz, parecia que voc estava entre ns. Mas ficaramos felizes se voc viesse para a Polnia nos visitar. Por caridade, mande fotos de tua famlia. Esperamos ansiosos a prxima carta. Tambm envio uma foto. do meu filho Miguel, sua esposa Guenia e o casamento de sua filha. O endereo agora : W, Botorega W5. Os. Russow 59-950. Miguel j fez todos os papis para ir para o Brasil. Mas a Maria que mande do Brasil alguma declarao que ela sua parente para que ele possa ter permisso para viajar. Na Polnia, ainda impera o regime comunista. Maria j providenciou essa declarao no Frum de Unio da Vitria. Precisou levar Identidade, escritura da casa, etc... O documento j foi levado Polnia neste final do ms de agosto! O ltimo captulo dessa histria ser a visita de Miguel ao Brasil e os laos dessa famlia podero finalmente se encontrar...Ps. Solidariedade.
FONTE: Revista os pioneiros, Trs Barras, ano 1, n. 2, out. 1986
ANEXO 18
ROTEIRO PADRO APLICADO AOS ANTIGOS TRABALHADORES DA LUMBER
Local e data: NOME: Local e data do nascimento:
1 Quanto tempo trabalhou na LUMBER? Quando?
2 Quais foram os trabalhos realizados na LUMBER?
3 O que tem a dizer sobre a sua experincia de TRABALHO na LUMBER?
4 - O que tem a dizer sobre a EMPRESA LUMBER?
5 - O que tem a dizer sobre os DRGENTES da LUMBER?
6 - O que tem a dizer sobre os SALROS pagos pela LUMBER?
7 Que lembranas guarda do tempo que trabalhou na LUMBER?
8 possvel fazer uma comparao entre o tempo de ANTES e DEPOS da atuao da LUMBER no CONTESTADO?
9 Relatar sobre o seu TRABALHO na LUMBER.
10 Relatar FATOS/MEMRAS/HSTRAS que marcaram sua vida antes, durante e mesmo depois de ter trabalhado na LUMBER - BOGRAFA.
ANEXO 19
ROTEIRO PADRO APLICADO AOS ANTIGOS TRABALHADORES DA LUMBER - ITENS ESPECFICOS
1 Qual era a jornada de trabalho na LUMBER?
2 Quais eram os tipos de trabalho que tinham para serem feitos? Tinham trabalhos leves?
3 Quais eram os trabalhos que davam mais dinheiro? Quem os fazia?
4 Existiam treinamentos para certos trabalhos na LUMBER? Era possvel ser promovido para um trabalho melhor?
5 Como eram contratados os trabalhadores da LUMBER? Tinham preferncias por algum tipo de trabalhador ou grupo tnico?
6 Quem eram os trabalhadores da LUMBER? De onde vinham?
7 Tinham caboclos que trabalhavam na LUMBER?
8 Quem eram os chefes e como mandavam?
9 Como era feito o pagamento pelo TRABALHO? Em dinheiro? Onde?
10 Todos compravam no mesmo ARMAZM? Que produtos mais consumiam? Eram caros? Sobrava muito dinheiro no final do ms?
11 Existiam seguranas particulares? Como agiam com os trabalhadores?
12 Para onde eram vendidas as madeiras beneficiadas na LUMBER?
13 - Existiam americanos trabalhando na LUMBER? Quantos e o que faziam?
14 Como os AMERCANOS eram visto pelos trabalhadores brasileiros?
15 Existiam outros lugares que ofereciam EMPREGOS melhores ou mesmo SALROS melhores do que na LUMBER?
16 Como era o atendimento na FARMCA E NO HOSPTAL?
17 Tinha mdico? Assistentes? Atendiam s no hospital?
18 Os servios de mdico e remdios eram pagos pelos trabalhadores ou a prpria LUMBER pagava?
19 Quais eram as doenas mais comuns na poca?
20 Quais os tipos de acidentes mais comuns na LUMBER? 297
21 Como era o HOTEL e quem eram os hspedes?
22 Como era o CASSNO e quem eram os freqentadores? Era divertimento de todos? Como funcionava?
23 Como era o CNEMA e quem freqentava?
24 Que tipo de filmes era mostrado no CNEMA? Em que dias e horrios? Quanto custava o ingresso?
25 Voc lembra o nome de algum filme que assistiu?
26 Quem assistia os filmes eram s os trabalhadores da LUMBER?
27 Como funcionava o POSTO DE PUERCULTURA?
28 Todos os filhos de trabalhadores da LUMBER estudavam? Era pago o estudo?
29 Quem foram as(os) professoras(es) do POSTO DE PUERCULTURA da LUMBER?
30 Qual era a idade dos alunos e o que aprendiam no POSTO DE PUERCULTURA? At que idade estudavam na prpria LUMBER?
31 Como eram as COMEMORAES do dia 04 de julho e do dia 07 de setembro na LUMBER?
32 Existiam mulheres que trabalhavam na LUMBER? Em que servios? O salrio era igual ao dos homens?
33 Houve poca de CRSES, de NO-PAGAMENTO, DE GREVES ou manifestaes e descontentamento dos trabalhadores?
34 Houve poca em que a MADERA no teve valor, com grandes estoques sem ter para quem vender?
35 Houve poca em que os trabalhadores receberam salrios atrasados ou mesmo nem receberam?
36 Houve poca em que o salrio esteve muito baixo ou sempre esteve com um bom valor?
37 Alm de madeira beneficiada de PNHERO, que outras madeiras eram exploradas pela LUMBER e com que finalidade?
38 Alm da venda de madeiras, dormentes e caixas desarmadas, a LUMBER tinha outras atividades? Fazendas? Colonizao?
39 Como a LUMBER vendia as terras depois de retirar a madeira? Para quem as vendia e a que preo?
40 O que aconteceu com a LUMBER e com os TRABALHADORES quando ela foi NACONALZADA?
Mais algum FATO, HSTRA OU MEMRA QUE GOSTARA DE RELATAR? 298 ANEXO 20
CARTEIRA DE TRABALHADOR DA LUMBER
Foto: Jozette Dambrowki Carteira de trabalho do operrio Pedro Moskwen
ANEXO 21
DEPOENTES: TRCIA OSWALDA DE OLIVEIRA E VALDEMIRO NOGA
Foto: autor Canoinhas, Santa Catarina, jan. 2007
ANEXO 22
DEPOENTE PEDRO MOSKWEN
Foto: Jozette Dambrowski Pedro Moskwen entrevistado em janeiro de 2008 na cidade de Porto Unio, Santa Catarina Nascimento: 13/09/1915. Falecimento: 15/09/2008.
ANEXO 23
TERMO DE CONSENTIMENTO AUTORIZADO
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL - PUC-RS FACULDADE DE FLOSOFA E CNCAS HUMANAS - FFCH PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HSTRA PPGH
Linha de Pesquisa: Sociedade, Urbanizao e migrao
Projeto de Pesquisa: A instaIao da Southern Brazil Lumber & Colonization Company e o desencadeamento da Guerra na Regio do Contestado.
Pesquisador: Delmir Jos Valentini
Orientadora: Dra. Nncia Santoro de Constantino
TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO
Em 1997 conclumos estudos histricos sobre a Guerra do Contestado levantando documentos em arquivos, jornais da poca, livros e, principalmente, depoimentos de antigos remanescentes do tempo dos redutos ou at mesmo, descendentes de pessoas que haviam lutado durante o conflito que ficou conhecido como Guerra do Contestado. Ainda em 1998 iniciamos uma pesquisa sobre a instalao da Southern Brazil Lumber & Colonization Company e o desencadeamento da Guerra na Regio do Contestado. Depois de pesquisar em Arquivos Pblicos e particulares, jornais e bibliografia existente, empregamos a metodologia da histria oral, realizando ENTREVSTAS com antigos trabalhadores da LUMBER, descendentes de trabalhadores e descendentes de sertanejos do tempo dos redutos. Neste sentido, deseja-se sua autorizao para o exame das informaes concedidas nessa entrevista, como requisito para a tese de doutorado em desenvolvimento e futura utilizao histrica. Fica garantido o bom uso das informaes para o avano do conhecimento e dos estudos histricos. Eventualmente podero ser usados relatos da entrevista, imagens e documentos fornecidos, sempre com a autoria informada, sem conseqncias prejudiciais futuras e mantida a confidencialidade na eventual divulgao dos resultados. A participao, nesta pesquisa, no oferece risco ou prejuzo pessoa entrevistada. Se no decorrer da pesquisa o(a) participante resolver no mais continuar, ter toda a liberdade de o fazer. Aps ter sido devidamente informado de todos os aspectos desta pesquisa e ter esclarecido todas as minhas dvidas, eu _______________________________ concordo em participar dela.
Porto Alegre, ____ de ____________________ de 2005.