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de Doutrina e
Jurisprudncia
ISSN 0101.8868
Jan./Abr.
2008
86
Tribunal de Justia
do Distrito Federal
e dos Territrios
ISSN0101-8868
R. Dout. Jurisp., Brasilia, (86). 01-440, fan./abr. 2008
TRIBUNAL DE JUSTIA
DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITORIOS
Revista de Doutrina
e Jurisprudncia
Revista de Doutrina de Jurisprudncia n 1 - 2 Sem. 1966-
Brasilia, Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Ter ri to ri os,
1966-
v. quadrimestral
Titulo varia: n 1-6 1966-1970: Doutrina e ju ris pru dn cia.
ISSN 0101-8868
1. Direito Periodica. 2. Direito Jurisprudncia. I Bra sil.
Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Territorios.
CDD 340.05
Repositorio de Jurisprudncia autori:ado pelo
Supremo Tribunal Federal, sob o n 19/88,
e pelo Superior Tribunal de Justia,
de acordo com a Portaria n 1, de 29.11.89.
Esta revista esta sendo editada periodicamente com tiragem de
740 exemplares, circulando em todo o Territorio Na ci o nal.
Os acordos so publicados na integra.
Comisso de Jurisprudncia
Des. Asdrubal Zola Jasque: Cruxn - Presidente
Des. Getulio Pinheiro de Sou:a
Desa. Carmelita Indiano Americano do Brasil Dias
Desa. Sandra De Santis Mendes de Farias Mello
Pede-se permuta On demande de l''echange
We ask for exchange Man bitter um austausch
Pidese canfe Si richiere la scambio
Redao
Subsecretaria de Doutrina e Jurisprudncia
Servio de Revista e Ementario
Palacio da Justia - Praa Municipal, Ed. Anexo I, sala 601
70094-900 - Brasilia - DF
Fone (0xx6l) 3224-1796 - 3226-0354
Fax (0xx61) 3224-7025
TRIBUNAL DE 1USTIA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITRIOS
Presidente - Des. Lecio Resende da Silva
Vice-Presidente - Des. Romo Cicero de Oliveira
Corregedor - Des. Joo de Assis Mariosi
Secretario-Geral - Dr. Guilherme Pavie Ribeiro
CAMARA CRIMINAL
Presidente da Cmara:
Des. George Lopes Leite
Composio:
Des. Getulio Pinheiro
Desa. Aparecida Fernandes
Des. Edson Alfredo Smaniotto
Des. Mario Machado
Desa. Sandra De Santis
Des. Roberval Casemiro Belinati
PRIMEIRA TURMA CRIMINAL
Presidente da Turma:
Des. George Lopes Leite
Composio:
Des. Mario Machado
Des. Edson Alfredo Smaniotto
Desa. Sandra De Santis
SEGUNDA TURMA CRIMINAL
Presidente da Turma:
Des. Roberval Casemiro Belinati
Composio:
Des. Getulio Pinheiro
Desa. Aparecida Fernandes
PRIMEIRA CAMARA CIVEL
Presidente da Cmara:
Desa. Ana Maria Duarte Amarante Brito
Composio:
Des. Natanael Caetano
Des. Nivio Gonalves
Des. Otavio Augusto
Des. Jair Soares
Des. Flavio Rostirola
Desa. Jera Andrighi
Des. Jose Divino de Oliveira
SEGUNDA CAMARA CIVEL
Presidente da Cmara:
Des. Estevam Maia
Composio:
Desa. Carmelita Brasil
Des. Cru: Macedo
Des. Waldir Leoncio Junior
Des. J. J. Costa Carvalho
Desa. Maria Beatri: Parrilha
Des. Angelo Passareli
Des. Sergio Bittencourt
TERCEIRA CAMARA CIVEL
Presidente da Cmara:
Des. Mario-Zam Belmiro Rosa
Composio:
Des. Jasque: Cruxn
Des. Dacio Jieira
Des. Romeu Gon:aga Neiva
Desa. Havdevalda Sampaio
Desa. Nidia Corra Lima
Des. Humberto Adfuto Ulhoa
Des. Lecir Manoel da Lu:
PRIMEIRA TURMA CIVEL
Presidente da Turma:
Des. Nivio Gonalves
Composio:
Des. Natanael Caetano
Des. Flavio Rostirola
Desa. Jera Andrighi
SEGUNDA TURMA CIVEL
Presidente da Turma:
Des. J. J. Costa Carvalho
Composio:
Desa. Carmelita Brasil
Des. Waldir Leoncio Junior
Des. Angelo Passareli
TERCEIRA TURMA CIVEL
Presidente da Turma:
Des. Humberto Adfuto Ulhoa
Composio:
Des. Jasque: Cruxn
Des. Mario-Zam Belmiro Rosa
Desa. Nidia Corra Lima
QUARTA TURMA CIVEL
Presidente da Turma:
Desa. Maria Beatri: Parrilha
Composio:
Des. Cru: Macedo
Des. Estevam Maia
Des. Sergio Bittencourt
QUINTA TURMA CIVEL
Presidente da Turma:
Des. Romeu Gon:aga Neiva
Composio:
Des. Dacio Jieira
Desa. Havdevalda Sampaio
Des. Lecir Manoel da Lu:
SEXTA TURMA CIVEL
Presidente da Turma:
Des. Jose Divino de Oliveira
Composio:
Des. Otavio Augusto
Desa. Ana Maria Duarte Amarante Brito
Des. Jair Soares
TRIBUNAL DE 1USTIA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITRIOS
Lista de antigidade das autoridades judiciarias do Distrito Federal ate 30 de abril de
2008, organizada de acordo com o art. 47, incisos de I a VII, e 1, 2 e 3 da Lei n
8.185, 14 de maio de 1991 e de acordo com o art. 45 da Lei 8.407 de 10 de janeiro
de 1992.
Posse
01. Desembargador Natanael Caetano Fernandes.....................................31/10/1990
02. Desembargador Asdrubal Zola Vasquez Cruxn ................................14/02/1992
03. Desembargador Lecio Resende da Silva .............................................14/02/1992
04. Desembargador Nivio Geraldo Gonalves .........................................14/02/1992
05. Desembargador Otavio Augusto Barbosa ...........................................27/08/1992
06. Desembargador Joo de Assis Mariosi ...............................................12/05/1994
07. Desembargador Estevam Carlos Lima Maia ......................................12/05/1994
08. Desembargador Romo Cicero de Oliveira ........................................12/05/1994
09. Desembargador Dacio Vieira ..............................................................12/05/1994
10. Desembargador Getulio Pinheiro de Souza ........................................15/09/1995
11. Desembargadora Maria Aparecida Fernandes da Silva ......................15/12/1995
12. Desembargador Edson AlIredo Martins Smaniotto ............................14/03/1997
13. Desembargador Mario Machado Vieira Netto ......................................18/09/1997
14. Desembargador Sergio Bittencourt .......................................................17/04/1998
15. Desembargador Lecir Manoel da Luz ...................................................17/04/1998
16. Desembargador Romeu Gonzaga Neiva ...............................................16/12/1998
17. Desembargadora Haydevalda Aparecida Sampaio ...............................10/12/1999
18. Desembargadora Carmelita Indiano Americano do Brasil Dias ...........27/06/2002
19. Desembargador Jose Cruz Macedo .......................................................14/10/2002
20. Desembargador Waldir Lencio Junior ................................................22/08/2003
21. Desembargador Humberto Adjuto Ulha .............................................19/09/2003
22. Desembargador Jose Jacinto Costa Carvalho .......................................19/02/2004
23. Desembargadora Sandra De Santis Mendes de Farias Mello ...............19/02/2004
24. Desembargadora Ana Maria Duarte Amarante Brito ............................19/02/2004
25. Desembargador Jair Oliveira Soares .....................................................19/02/2004
26. Desembargadora Vera Lucia Andrighi ..................................................19/02/2004
27. Desembargador Mario-Zam Belmiro Rosa ...........................................19/11/2004
28. Desembargador Flavio Renato Jaquet Rostirola ...................................29/04/2005
29. Desembargadora Nidia Corra Lima ....................................................19/08/2005
30. Desembargador George Lopes Leite .....................................................26/10/2006
31. Desembargadora Maria Beatriz Feteira Gonalves Parrilha .................26/10/2006
32. Desembargador Angelo Canducci Passareli .........................................19/12/2006
33. Desembargador Jose Divino de Oliveira .............................................21/06/2007
34. Desembargador Roberval Casemiro Belinati ........................................07/03/2008
SUMARIO
DOUTRINA
Saude mental no contexto do Direito Sanitario
Tania Maria Nava Marchewka .................................................................. 11
1URISPRUDNCIA
Tribunal de Justia do Distrito Federal .................................................................... 49
INDICES
Numerico dos Acordos ......................................................................................... 415
AlIabetico .............................................................................................................. 423
Doutrina
R. Dout. Jurisp., Brasilia,(86). 13-45, fan./abr. 2008 11
Doutrina
(') Procurocoro c. ust:,o co M:r:st.r:o Puoi:co co D:str:to F.c.roi . T.rr:tr:os (MPDFT), Doutoroco . D:r.:to, ust:,o
. Soc:.coc., M.stroco . D:r.:to P.roi (Lr::.rs:coc. Goo F:iioR), Es.c:oi:;o,oo . G.stoo . S.r::,os c.
Souc. M.rtoi (C.rtro c. Estucos A:or,ocos Muit:c:sc:i:ror.s co Nuci.o c. Souc. Puoi:co co Lr::.rs:coc. c.
Bros:i:o (LrB), Curso c. Es.c:oi:;o,oo . D:r.:to Sor:tr:o co Focuicoc. c. D:r.:to co Lr::.rs:coc. c. Bros:i:o
. Escoio c. Souc. Puoi:coF:ocru;. Curso c. Es.c:oi:;o,oo . Souc. M.rtoi . Quoi:coc. c. V:co ro Hos:toi
G.roiEscoio Poui:sto c. M.c:c:ro Lr:,.s. Pro,.ssoro c. D:r.:to P.roi co Lr::.rs:coc. Goo F:iioR . D:r.:to
P.roi . Cr::roio:o co Lr:c.uo Focuicoc. Ai:oroco D:r.:to P.roi, . Bros:i:oDF.
SAUDE MENTAL NO CONTEXTO DO DIREITO SANITRIO
Tania Maria Nava Marchewka (*)
1. INTRODUO
A politica de saude mental nos ultimos dez anos tem sido alvo de ateno e
objeto de proIundas discusses no mbito governamental. A crise de paradigma na
area da psiquiatria repercutiu pelos meios de comunicao e ganhou Ioro de questo
prioritaria para a sociedade brasileira com a promulgao da Lei n 10.216, de 6 de
abril de 2001.
O grande enIoque desta refexo sera a apresentao do problema no mbito do
direito, o qual deve convergir para garantir a proteo do ser humano. As questes dos
direitos humanos do portador de transtorno mental so articuladas no mbito atual das
reIormas sanitaria e psiquiatrica, em respeito a dignidade do homem.
E de se entender que o aspecto de abrangncia da Lei Orgnica de Saude (Lei n
8.080/90), juntamente com a Lei n 8.142/90, criando os Conselhos e ConIerncias de
Saude, bem como implementando os instrumentos de controle social das politicas de
saude, envolveu o Ministerio Publico com as praticas de saude no Brasil, especialmente
Iace as reIormas sanitaria e psiquiatrica. Mas, desde logo, sabe-se que este trabalho
no esgota a problematica, devido a complexidade das politicas existentes. Procura-
mos tornar concretos nossos compromissos com os direitos humanos dos socialmente
discriminados, priorizando os principios, direitos e garantias inscritos na Constituio
Federal de 1988, com a integrao do sistema juridico no contexto das demais areas do
conhecimento preocupadas com a cidadania e a dignidade do doente mental.
Experimenta-se na contemporaneidade um processo de confituosidade coletivo,
de massifcao das demandas, de uma nova dimenso das necessidades e relaes
humanas. O traado das politicas publicas, das normas positivadas e das organizaes
estatais Iulcrado no perfl individualista, que tem como parmetro o Estado liberal,
encontra-se desatualizado, obsoleto, inefciente e esteril, Irente as demandas da socie-
dade de hoje. As carncias no se situam mais no plano puramente individual, hoje se
espraiam por toda a coletividade.
1
12 R. Dout. Jurisp., Brasilia, (86). 13-45, fan./abr. 2008
Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Territorios
O nosso proposito e levantar algumas questes sobre os movimentos sociais no
Brasil, notadamente no que diz respeito ao Movimento dos Trabalhadores de Saude
Mental, tendo como pano de Iundo a estrutura teorica da Psiquiatria Democratica de
Basaglia, para Iundamentar a garantia da deIesa dos direitos e da cidadania do portador
de transtorno mental, com a implementao da Lei n 10.216/2001.
Assim sero suscitadas questes de interesse acadmico ou profssional, como
conseqncia direta da Iranca refexo que nos propomos sobre o assunto, pois esta
inscrita num processo objetivo de transIormao da pratica psiquiatrica, envolvendo
profssionais da saude mental e do direito que acreditam num Estado de Direito De-
mocratico e Social, bem como numa psiquiatria democratica e alternativa, compro-
metendo-se, portanto, com esta luta.
Com uma compreenso mais abrangente, e possivel reconhecer, dentro do
ordenamento juridico vigente, o direito emergente dos movimentos sociais, no qual
surge o Movimento dos Trabalhadores de Saude Mental, que se organiza e articula
para conquistar o acesso a cidadania dos doentes mentais, criando direitos decorrentes
de suas aes politicas perante o Estado. Isso decorre da propria Constituio Federal
Brasileira.
2. ASPECTOS HISTRICOS DO SISTEMA DE SAUDE NO BRASIL
A proposta deste capitulo e avaliar como anda o sistema de saude no Brasil, bem
como o que tem acontecido e como vem sendo disciplinada a implantao progressiva
do Sistema Unico de Saude, durante o processo de democratizao do Estado brasileiro,
apos se consolidar a ruptura com o regime autoritario militar iniciado em 1964. Este
Iato causa um consideravel impacto, especialmente na esIera dos direitos Iundamentais
e nas politicas publicas de saude, e refete a importncia da nova democracia compre-
endida no cotidiano da sociedade civil brasileira na atualidade.
Apos o longo periodo de regime militar que perdurou de 1964 a 1985 no pais,
defagra-se o processo de democratizao no Brasil. Flavia Piovesan (1997) sintetiza
o assunto, citando Luciano Martins:
o reime militar revoou direitos constitucionais, civis e polticos,
suprimiu ou censurou canais de representao de interesses, es
tabeleceu uma ditadura do Poder Executivo sobre os poderes da
Repblica (Leislativo e ]udicirio) e da Federao (Estados). Isto
toi alcanado tundamentalmente atraves do Ato Institucional N
5 (1968) e seus sucessores. Pela primeira vez, desde a Proclamao
da Repblica (1889), as Foras Armadas, aindo como instituio,
R. Dout. Jurisp., Brasilia,(86). 13-45, fan./abr. 2008 13
Doutrina
tomaram controle direto das principais tunes overnamentais,
houve uma parcial abolio das prticas corporativas, mediante a
introduo de atores no burocrticos que obtiveram o controle
no processo de deciso, houve ainda a criao de um extensivo
ooroto c. :rt.i:.rc:o oro .,.tuor o cortroi. :c.oi:co. Nesse sentido,
consultar Ti. i:o.roi:;ot:or o, outior:tor:or rui. :r Bro;:i, Ir: Gu:ii.ro
ODorr.i c Pi:i:. C. Sci:tt.r . Lour.rc.rc. Vi:t.i.oc, Trors:t:ors
,ro outor:tor:or rui.: Lot:r A.r:co, Boit:or.. Ti. oir Hoi:r's
Lr::.rs:t, Pr.ss, 1986, p.77).
Por sua vez, Elias
2
enIatiza que 'o periodo de 1964 a 1975 e marcado pelo que
se poderia denominar de desenvolvimento sem democracia, quando ento tem inicio
o processo de transio democratica. Afrma ainda o reIerido autor que, no periodo
militar autoritario, nos setores de bens de consumo coletivo, como e o caso da saude
e da educao, ocorre uma ampliao das politicas sociais, atraves de um processo
acelerado de privatizao destes setores. InIorma que, ao mesmo tempo, ja em meados
da decada de 70, o Brasil assiste a um vigoroso movimento de setores da sociedade
civil para a democratizao da saude, entendida como direito universal garantido pelo
Estado e sob controle publico.
Ainda que este processo tenha-se iniciado pela liberao politica do proprio
regime autoritario, as Ioras de oposio da sociedade civil se benefciaram da aber-
tura, Iortalecendo-se mediante Iormas de organizao, mobilizao e articulao, que
permitiram importantes conquistas sociais e politicas. Portanto, a transio democra-
tica possibilitou a implementao de reIormas no sistema de saude, porem seguindo
os principios da racionalidade econmica e desconsiderando os impactos sociais que
deveriam vir no bojo destas reIormas.
A historia do sistema de saude reIerente a decada de 70 Ioi um periodo extrema-
mente marcante, no sentido de aproximar as politicas publicas das reais necessidades
sociais. Elias (2002)
3
enIatiza que, em relao as politicas sociais, acentuava-se o
carater centralizado no mbito Iederal:
A partir de meados da decada de 70, o pas assiste a um vioroso
movimento de setores da sociedade civil para a democratizao da
sade, entendida como direito universal arantido pelo Estado e
sob controle pblico (...). O perodo de 196+ a 1975 e marcado pelo
que se poderia denominar de desenvolvimento sem democracia,
quando ento tem incio o processo de transio democrtica.
14 R. Dout. Jurisp., Brasilia, (86). 13-45, fan./abr. 2008
Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Territorios
O CONTEXTO POLITICO E ECONMICO
No periodo de 80 a 90, as politicas de saude no Brasil Ioram geradas dentro
de um contexto de proIunda crise econmica no pais. A Constituio Brasileira, pro-
mulgada em 1988, trouxe avanos institucionais importantes para a consolidao da
cidadania. Entretanto, estas conquistas no se eIetivaram na area da saude, porque a
logica predominante e a da articulao do capital privado com a base de fnanciamento
Iormada pelos recursos do sistema de proteo social. Elias (2002)
4
adota uma posio
severa diante destas politicas de saude.
A onda econmica neoliberal, oriinada da decada de 1980
promove a dituso de uma nova concepo de polticas pbli
cas, em que estas perdem suas identidades sob o domnio da
poltica macroeconmica. Com isso joase por terra qualquer
princpio de solidariedade (...). As tormas de tinanciamento
dos $istemas Nacionais de $ade so eleitas como aspectos
centrais destas polticas. Isso resulta em situaes extremamente
perversas em que a obsesso pelo equilbrio tiscal sacritica as
polticas sociais.
O Estado brasileiro, com suas alianas e grau de submisso ou dependncia aos
setores mais poderosos e dinmicos da economia, cedeu, com razoavel Ireqncia, as
presses externas. Segundo Ribeiro (1993)
5
, com a cumplicidade oportunista dos seus
quadros, submeteu a debil democracia brasileira a uma longa quarentena. A militariza-
o no so determinou uma interveno autoritaria e prolongada, como imps um tipo
de desenvolvimento cujos desdobramentos e conseqncias sobre a vida econmica,
politica e social marcaram a historia brasileira.
Para Ribeiro (1993)
6
, Ioi atraves da tutela militar que a Republica cumpriu um
importante papel no tipo de desenvolvimento dependente. Como conseqncia, alargou
o Iosso entre sociedade civil e Estado, Iazendo deste senhor e interprete de vontade
propria. Nessa trajetoria, as politicas do Estado brasileiro no podem ser interpreta-
das como resultantes das vontades, cujo processo teve varios e grandes benefciarios
externos e internos e muitos perdedores.
Para o reIerido autor, o periodo tutelado resultou num processo de transio
que desembocou na democracia representativa. Entretanto, o Estado brasileiro, quando
autoritario e sob tutela militar direta entre 1964 e 1988, exerceu suas politicas e praticas
que no cumpriram uma trajetoria reta, obrigadas a assumir sinuosidade e desvios,
conseqncias do entrechoque das Ioras que atuavam no seu interior e tambem dessas
Ioras com classes e segmentos sociais, uns mais excluidos que outros.
R. Dout. Jurisp., Brasilia,(86). 13-45, fan./abr. 2008 15
Doutrina
Rezende
7
, ao discorrer amplamente sob o panorama da Historia da ReIorma Sa-
nitaria, relaciona o processo de surgimento do Movimento Sanitario como precursor da
implementao do Sistema Unico de Saude. Com isso, acentua a passagem do processo
de democratizao no pais, especialmente os Principios e Diretrizes do Sistema Unico
de Saude. Analisa todo o processo constituinte na epoca no que tange as questes da
saude, reconhecendo que os profssionais do Direito no tiveram participao destes
movimentos, apesar de haver participao de representantes de diversos segmentos
da sociedade.
AS POLITICAS DE SAUDE NO BRASIL
Procuramos contextualizar o desenvolvimento das politicas de saude no Brasil,
especialmente, no periodo de 80 a 90, quando se percebe uma proIunda crise econmica
que, apesar de coincidir com o processo de redemocratizao do pais, comprometeu
politica e institucionalmente a sociedade.
Nesse cenario politico, Ioi gerado os principios das ReIormas Sanitaria e
Psiquiatrica brasileira, tendo como marcos de grande relevncia a VIII e X ConIe-
rncia Nacional de Saude, bem como a I ConIerncia Nacional de Saude Mental.
As intervenes em orgos publicos e privados, os movimentos sociais dos pro-
fssionais de saude mental, bem como os dos usuarios e Iamiliares desses servios
desencadearam este processo modernizador e democratico que vem adequando as
praticas, ora em vigor, nos mbitos politico-juridico, politico-institucional e politico
organizacional.
E preciso compreender a Iorma pela qual, a partir de 1990, a implantao pro-
gressiva do Sistema Unico de Saude e o conseqente processo de reestruturao dos
servios de internao psiquiatrica permitiram a consagrao, na esIera dos direitos
Iundamentais, da garantia e do respeito aos direitos do paciente psiquiatrico, eis que,
por longo tempo Ioram seqestrados da sociedade. Para tanto, como ponto de partida,
elege-se a analise do processo de redemocratizao no pais como importante contexto
no qual emergem algumas refexes sobre as politicas de saude no Brasil.
Como se percebe, o Estado brasileiro mudou de Iorma acelerada nas ultimas
decadas, como conseqncia e tambem causa do seu processo de desenvolvimento
tardio e desigual, dentro de diretrizes econmicas e politicas que acentuaram o grau
de dependncia externa e gritantes desniveis sociais internos. Assim como mudou o
Estado, mudou tambem a sociedade brasileira, tornando-se essencial e defnitivamente
urbana, com necessidades e consumos de bens e servios padronizados, numa mistura
de insumos culturais que Iazem suspeitar a perda de raizes e identidades cuja magnitude
e prematuro concluir.
16 R. Dout. Jurisp., Brasilia, (86). 13-45, fan./abr. 2008
Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Territorios
A verdade e que, desde o comeo, a sociedade contempornea, apesar de ainda
hierarquizada e seletiva, identifca-se com a mudana de paradigma, preocupada com
a reconstruo do processo de integrao social, tendo a deIesa dos direitos humanos
Iundamentais e o exercicio da cidadania como garantia assegurada no contexto do
Estado Democratico de Direito e Social.
3. REFORMA SANITRIA E CAPITAL FINANCEIRA
A logica das politicas e praticas do Estado brasileiro na saude e compreendida
porque so admitidas as contradies e a reciprocidade das aes entre seus agentes
econmicos e politicos. Como se v, em nosso contexto social, contradies e aes
no se restringem a um unico setor e, muito menos, a politicas e praticas de saude. A
constatao desagradavel de um atendimento medico-hospitalar Ireqentemente des-
qualifcado justifca a revolta da sociedade, especialmente de suas vitimas. Portanto,
necessario se Iaz reconstituir sua trajetoria e capacitar os profssionais do Direito,
para, juntamente com a sociedade civil e como sujeitos, encontrarem alternativas
socialmente mais justas.
No mercado de assistncia medico-hospitalar ate agora viabilizado pelo Estado
para industrias, empresas terciarias e corporaes, atuam, pois, organizaes e empre-
sas medicas com historia e interesses sociais e econmicos diversos, gerando relaes
e modalidades assistenciais de diIerentes matizes. Pois bem, dentro deste mercado,
apenas uma parcela reduzida de pessoas Iisicas autocusteia o consumo de servios
medico-hospitalares para si ou para seus Iamiliares. O outro segmento do mercado e
constituido de pessoas juridicas, industrias de grandes e medio porte e empresas do
setor terciario que autogerenciam a compra de assistncia medico-hospitalar para seus
empregados, ou contratam empresas especializadas para Iaz-lo.
Como se v, trata-se ainda de um mercado privatizado, induzido, cuja existn-
cia esta condicionada a inefcincia dos servios publicos de saude. Persiste, porem,
a contribuio previdenciaria, que sempre incluiu a assistncia medico-hospitalar e o
direito subjacente de todos de se valerem do servio publico. Do mesmo modo que a
Previdncia Social transIeriu as pessoas juridicas a atribuio da assistncia, deu-lhes
tambem a competncia de substabelec-la e contratar empresas especializadas.
Entretanto, as politicas de saude no esto restritas as praticas medicas e neces-
sariamente no so convergentes. E a expresso de uma conIormao social e revelam
as imposies de uma cultura, seus meios materiais e seu modo de produo.
De inicio, deve-se reconhecer a existncia, no Brasil, do defcit da previdncia
social, que esta associado a circunstncias especifcas, como, por exemplo, o desvio,
em sucessivos governos, dos recursos da previdncia social e da saude para outras
R. Dout. Jurisp., Brasilia,(86). 13-45, fan./abr. 2008 17
Doutrina
fnalidades e, ainda, a existncia de Iraude generalizada contra o sistema de saude e
previdenciario. Embora as empresas do setor privado recolham para a previdncia, o
governo, enquanto empregador publico, no contribui com o Iundo previdenciario,
alias, mais uma razo para o defcit a que nos reIerimos acima. Por tudo isso, torna-
se impossivel no reconhecer que o problema maior da implementao das politicas
de saude no Brasil resulta da Iragilidade fnanceira do setor publico, e da crescente
divida publica que vem implicando um superavit fscal, em detrimento da capacidade
de investimento do Estado. Ademais, no se pode deixar de desmistifcar a quebra de
contratos, que apavora o mercado.
Na realidade, o que se constata e a preocupao do capital fnanceiro e de seus
representantes com a alterao de regras que venha aIetar seus contratos, em particular
os da divida publica. Quando se olha para a saude e a previdncia social, percebe-se
que a maior parte da sociedade no tem garantido seus direitos sociais conquistados
pela Constituinte de 1988. Atualmente, o discurso econmico do governo tem-se
centrado Iundamentalmente no objetivo de acalmar os mercados. Para isso, deIende a
mesma politica do governo anterior, ou seja, voltam a cena as reIormas trabalhistas e
da previdncia como soluo para todos os males.
Neste sentido, temos como de Iundamental importncia a consolidao da saude
com o direito para a implementao integral do Sistema Unico de Saude. Isto pressupe
a realizao de um projeto direcionado para o Iortalecimento do controle social, que
atue entre os sujeitos sociais e apoie o desenvolvimento das instituies responsaveis
pelo seu exercicio. Temos como importantes os Conselhos de Saude, eis que tm o papel
de instncias que possibilitem a participao da sociedade na Iormulao, acompanha-
mento e fscalizao das politicas publicas de saude. Estes Conselhos so considerados
uma verdadeira rede democratica que contribui para a garantia dos direitos.
E certo que a implantao de Sistema Unico de Saude contraria os ditames
do mercado. Contudo, a eIetividade de um sistema unico depende de sua dimenso,
distribuio e tecnologia disponivel, para que sua acessibilidade seja universal e igual
para todos. Entretanto, em qualquer desses aspectos, a situao e bastante critica em
algumas regies brasileiras. Tambem tranqila no e a situao dos hospitais publicos
brasileiros, impregnados de Iorte componente corporativo e com efcincia reconhe-
cidamente baixa. Como superar os obstaculos quando se casam crise econmica, ide-
ologia liberal, politicas publicas perversas e cidados excluidos e outros perplexos?
Entretanto, esta historia no esta acabada, ela continua sendo Ieita, como a de tantas
outras instituies contemporneas neste pais em crise.
Ao analisarmos a historia do sistema de saude no Brasil, vimos que durante
todo o seculo XX as aes e servios de saude eram considerados pontuais os beneIi-
cios concedidos pela Previdncia Social. Os trabalhadores que no contribuiam com
a Previdncia Social e os desempregados ou portadores de defcincia eram excluidos
18 R. Dout. Jurisp., Brasilia, (86). 13-45, fan./abr. 2008
Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Territorios
dos servios de saude, sendo atendidos pelas Santas Casas de Misericordia ou insti-
tuies religiosas.
Rezende
8
enIatiza que a legitimidade do processo constituinte e do movi-
mento da reIorma sanitaria constitui-se na melhor garantia da operacionalizao de
seus ideais, ou seja, da sua operacionalizao dos principios e diretrizes do Sistema
Unico de Saude. No reIerido trabalho, trata separadamente os principios inseridos na
Constituio Federal de 1988 e na Lei Orgnica da Saude (Lei n 8.080/90 e a Lei n
8.142/90), como signifcativos das bases centrais da politica de saude e da gesto do
sistema de saude no Brasil.
Vale desde ja salientar que, neste cenario Ioram gerados os principios da reIor-
ma sanitaria e psiquiatrica, tendo, como ja visto alguns marcos de grande relevncia
politica, como a VIII ConIerncia Nacional de Saude e a I ConIerncia Nacional de
Saude Mental, as intervenes em orgos publicos e privados, os movimentos sociais
dos profssionais de saude, bem como os movimentos dos trabalhadores e usuarios dos
servios de saude mental e seus Iamiliares.
O direito a saude Ioi elevado a direito Iundamental do ser humano apenas na
Constituio de 1988 (artigos 196 e 197), que declara ser a saude:
direito de todos e dever do Estado, arantido mediante polticas
sociais e econmicas que visem reduo do risco de doena e
outros aravos e ao acesso universal e iualitrio s aes e servi
os para sua promoo e recuperao, servios e aes que so de
relevncia pblica".
O direito a saude rege-se, pois, pelo principio de que todos tm direito a vida
e esse direito passa pelo acesso ao tratamento condizente com o atual estagio da me-
dicina, em casos em enIermidade.
4. PRINCIPIOS E DIRETRIZES DO SISTEMA UNICO DE SAUDE
Cumpre, pois, destacar dentre os principios do Sistema Unico de Saude os
que Iundamentam a politica de saude do ponto de vista organizacional da gesto e da
ateno a saude:
A $ALDE COMO DIREITO
A sade e um direito tundamental do ser humano, devendo o
Estado prover as condies indispensveis ao seu pleno exerccio,
por meio de polticas sociais e econmicas que visem a reduo
R. Dout. Jurisp., Brasilia,(86). 13-45, fan./abr. 2008 19
Doutrina
dos riscos de doenas e de outros aravos e no estabelecimento de
condies que asseurem acesso universal e iualitrio s aes e
servios para a promoo, proteo e recuperao da sade indi
vidual e coletiva (art. 2 e parrato 1 da Lei N 8.08090, art.
196 da Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988). A
Lnio no intervir nos Estados nem no Distrito Federal, exceto
para asseurar a observncia dos seuintes princpios constitucio
nais. (...) direitos da pessoa humana (art. 3+, VII, alnea b" da
Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988).
!"#$%&'#() +, ,-.$/0( 1 ),2+.. a sade como direito, o sistema
de ateno sade e nico, o acesso s aes e aos servios e uni
versal, a ateno sade e interal, contorme a necessidade, deve
haver iualdade da assistncia sade, independente de cor, raa,
condio social, vinculao partidria, entre outros, preservao
de autonomia do usurio, direito do indivduo intormao sobre
sua sade e da comunidade sobre a situao epidemioloica de
uma determinada realidade, a descentralizao, a reionalizao
e hierarquizao da rede de servios de sade, a humanizao do
atendimento, o acesso s aes e recursos intersetoriais, participa
o da comunidade na detinio das diretrizes de oranizao da
rede de ateno.
!"#$%&'#() +, 3.)-0( +( )#)-.4, +. ),2+.. a descentralizao,
a direo nica, a reionalizao, o tuncionamento solidrio, o
planejamento ascendente, a utilizao da epidemioloia para o
estabelecimento de prioridades, a divulao de intormaes, a
interao de aes intersetoriais, o controle social.
9
Atualmente, e competncia do municipio executar as politicas de saude, tendo
como objetivo o pleno desenvolvimento das Iunes sociais da cidade e garantir o
bem-estar de seus habitantes. Neste contexto, tem grande importncia a criao de
espaos de discusso que possam aglutinar as Ioras comprometidas com o processo
da ReIorma Psiquiatrica.
5. NOVOS DESAFIOS: OS MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL
No Brasil, os estudos destacam o papel dos movimentos sociais na trans-
Iormao social, principalmente a luz das mudanas politico-institucionais que
ocorrem a partir de 1974. Entretanto, a realidade dos Iatos tem Irustado muitas das
20 R. Dout. Jurisp., Brasilia, (86). 13-45, fan./abr. 2008
Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Territorios
expectativas em torno do potencial dos movimentos, permitindo uma aproximao
mais objetiva e menos ideologica.
Um exame dos movimentos da ReIorma Sanitaria e ReIorma Psiquiatrica
indica que estes atuam, principalmente, como grupos de presso sobre o Estado,
no sentido de obter respostas concretas as suas demandas, por meio de dinmicas
diIerenciadas, porem pautadas por um maior ou mero enquadramento institucional.
Sem pretender analisar os principais paradigmas teoricos dos movimentos sociais, a
despeito das limitaes do trabalho para o desenvolvimento de tema to complexo,
procuramos sintetizar os movimentos sociais no Brasil, privilegiando a pesquisa de
colegas do Ministerio Publico
10
, apresentando uma sintese de parte dos trabalhos,
de acordo com enIoques contemporneos das disciplinas afns que abordam os mo-
vimentos sociais:
Os movimentos sociais surem no Brasil a partir dos anos 70,
com a oranizao da sociedade civil, que paulatinamente toma
conscincia da importncia do exerccio da cidadania, atraves da
prtica de resistncia e de luta, independentemente da atuao
dos overnos tecnocrticos e autoritrios da epoca.
E que o Brasil, a partir do olpe militar de 196+, vai assistir a con
vivncia de uma ordem constitucional ao lado de atos de exceo,
passando por vrios momentos historicos de recrudescimento,
ate que em 13 de outubro de 1978 o presidente Oeisel, atraves da
Emenda Constitucional n 11, revoa os atos institucionais, dando
incio ao processo de distenso poltica.
Naquele tempo, aluns setores da oposio j levantavam a bandei
ra da Constituintej", movimento que mais tarde vai ser absorvido
pelo movimento Diretasj".
Desse modo, a noo de sujeito coletivo de direito se d no sen
tido de uma coletividade, onde se elabora uma identidade e se
oranizam prticas mediante as quais seus membros pretendem
detender interesses e expressar vontades, ao mesmo tempo em que
no decorrer das lutas travadas constroem novos discursos, tundado
por criar novos direitos, muitas vezes com o objetivo de alterar a
propria ordem instituda.
Esses atores constituemse, portanto, em toras sociais que procu
ram intluenciar nas decises que sero impostas coletividade,
buscando um tratamento institucional para certas reivindicaes
de atores dos estratos interiores ou de elementos ameaados da
classe superior (...).
R. Dout. Jurisp., Brasilia,(86). 13-45, fan./abr. 2008 21
Doutrina
A partir de 1986, o Estado relembra sua poltica social em torno de
neociaes com os movimentos oranizados, quando a sociedade
oranizada em associaes e movimentos deixa de ser alo marinal
ou alternativo e anha carter lealista.
No incio dos anos 80 as diterenas toram se explicitando, princi
palmente as polticopartidrias, seundo o rupo de assessoria que
se articulavam. O contedo poltico do termo comunidade passa a
dar sentido a uma nova cultura poltica, tundada no aprendizado
de uma nova cidadania, em que a reivindicao em torno da noo
de direitos passa a ocupar um luar de destaque (...).
Como atirma ]ose Eduardo Faria (1991.15), aindo assim, tais
movimentos passaram a redetinir as relaes da sociedade com o
Estado e a pressionar por uma reviso estrutural do ordenamento
jurdico viente, redescobrindo o sistema social como luar da
poltica, deslocando a clssica questo da constituio dos sujeitos
polticos na relao classepartidoestado, e servindo como vlvula
de escape das deticincias do Estado (...).
Este processo de lutas seuidas por conquistas pode ser tambem
observado no Brasil, quando se articulando no seio dos debates da
Comisso Constituinte, o leislador constituinte de 1988 tindou
por estabelecer um novo pertil para o Ministerio Pblico, incum
bindolhe a tuno de uardio da cidadania, capaz de tuncionar
como um elo de liao entre as reivindicaes dos movimentos
sociais e os Poderes Pblicos. ($antana, 1998.237 238).
Pelo rpido resate das passadas do Ministerio Pblico na histo
ria do Pas, percebese que o seu compasso nunca se apartou da
sintonia da justia social, da arantia da participao democrtica
e, sobretudo, da detesa da sociedade, embora o seu instrumental
tenha sido asseurado, juridicamente, somente a partir da decada
de oitenta. Este perodo, como j toi exposto, coincide com o nas
cimento dos novos movimentos sociais, cujo embrio despontou
na decada de setenta, movimentos esses que clamam pela satistao
de carncias identiticveis como direitos tundamentais bsicos. E a
epoca em que a comunitarizao das necessidades, das deticincias
sociais so reivindicadas mais ativamente, por rupos ornicos e
inornicos.
Esses rupos passam a operar uma transtormao paulatina em
todos os setores da sociedade e ocupam espaos letimos ao
lado do Ministerio Pblico, na detesa dos interesses sociais. O
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Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Territorios
rande instrumento normativo j mencionado, ou melhor, a Lei
n 7.3+785, s expressas, rompendo o serdio Direito Proces
sual petriticado e tincado na beira do caminho da civilizao,
conterelhe leitimao extraordinria para a propositura de
aes coletivas, com repercusso .ro or.s da deciso judicial
(art. 5 e 16).
A Constituio Federal, a seu turno, abroqueloulhe a possibilidade
de ajuizar mandado de seurana coletivo (art. 5, inciso LXXX),
alem de estruturar toda a ordem jurdica do pas na base de uma
sociedade livre, justa e solidria (art. 3, inciso I), a prevalncia dos
direitos humanos (art. +, inciso II), a imediaticidade das normas
concernentes a estes direitos (art. 5, parrato 1) e o carter
exempliticativo e no exaustivo das arantias e direitos abriados
na Carta (art. 5, parrato 2)" (Batista, 2000.65)
O reconhecimento das desigualdades sociais pela nossa Constituio Federal
mostra que a maioria da populao no tem os seus direitos reconhecidos e respeitados,
signifcando no ter conquistado plenamente a cidadania, bem como o eIetivo exerci-
cio de seus direitos. A preocupao que se estabelece aqui e fxar os pontos principais
que devem ser tratados. E, nessa preocupao, deixamos de lado a analise casuistica
da Constituio para dar preIerncia a abordagem dos principios constitucionais que
trazem reIerncias aos direitos a saude como principios Iundamentais.
Dentre os principios que a Constituio estabelece, analisaremos aqueles que
infuenciam grandemente as politicas de saude no Brasil. O Art. 1 da Constituio
de 1988 preceitua:
A Repblica Federativa do Brasil, tormada pela unio indissolvel
dos Estados e Municpios e do Distrito Federal, constituise um
Estado democrtico de Direito e tem como tundamento a dini
dade da pessoa humana.
Portanto, a proteo a dignidade insere-se como Iundamento do Estado demo-
cratico e e pressuposto da participao social do individuo no proprio destino desse
Estado como condio de cidadania. Como objeto de proteo, se entende qualquer
pessoa, independente de idade, sexo, cor, condio social, autodeterminao e status
juridico. No mesmo caso, situa-se o nascituro, o morto, ou ate grupos homogneos
minoritarios. A dignidade, pois, surge como valor intrinseco de todo ser humano.
Partindo da premissa da proteo a dignidade e que a ordem juridica no pode tomar
o cidado como simples meio, mas como fm, e que procuramos enIatizar o papel do
R. Dout. Jurisp., Brasilia,(86). 13-45, fan./abr. 2008 23
Doutrina
Ministerio Publico para assegurar o direito a saude mental e o exercicio da cidadania
ao portador de transtorno mental.
A Constituio Federal de 1988, nos incisos I, II e III, estabelece como diretrizes
do sistema unico de saude, a descentralizao, o atendimento integral e a participao
da comunidade. No caput do dispositivo, registra os principios explicitados na Lei
Orgnica de Saude (Lei n 8.080/90), como sendo a igualdade da assistncia a saude,
sem preconceitos de qualquer especie. Isso resulta da interpretao do art. 196 da
Constituio Federal de 1988 e do art. 7 da Lei n 8.080 (Lei Orgnica de Saude),
que dispe sobre as condies para a promoo, a proteo e a recuperao da saude, a
organizao e o Iuncionamento dos servios correspondentes e estabelece mecanismos
para a operacionalizao das disposies constitucionais nas esIeras Iederal, estadual
e municipal do governo brasileiro.
De acordo com os principios constitucionais, a ateno a saude e objetivo
fnalistico do sistema de saude. Como vimos, antes da Constituio Federal de 1988,
as aes de saude eram oIerecidas pela Previdncia Social e eram reduzidas a alguns
procedimentos medicos e ontologicos ambulatoriais e hospitalares, com a distribui-
o de medicamentos para os mais necessitados. E o que se verifca, com base nas
consideraes expostas nos textos do Manual de Atuao Juridica em Saude Publica
e nos textos do Curso de Especializao a Distncia para Membros do Ministerio
Publico e Magistratura Federal. Apos a Constituio Federal de 1988, e incorporada
uma dimenso politica de diIerentes interesses, de distintos atores sociais, como por
exemplo, usuarios, gestores, trabalhadores de saude e prestadores de servios de saude,
partindo de uma nova ideologia de saude que se chamou de 'novo paradigma sanitario,
orientado pela dignifcao da vida e pela conquista da cidadania.
Jacobi
11
, apos discorrer acerca dos movimentos sociais, Estado e conjuntura,
afrma o seguinte:
no Movimento de $ade, a ao do Estado tambem tunciona como
indutora de demandas que j existem, mas esto reprimidas. A
dinamizao de interveno do Estado na expanso da melhoria da
qualidade de atendimento da rede de servios e realizada a partir
de um processo pautado por uma interao, ate ento inexistente,
entre a populao e a $ecretaria de $ade. Neste sentido, a ao do
Estado no so leitima as demandas do movimento, mas joa com
o rau de mobilizao da populao para conseuir a liberao de
verbas para a concretizao dos planos (...).
Na dinmica de presso, diloo direto e neociao que os movi
mentos estabelecem com as distintas ancias pblicas com que se
detrontam, veriticase que o enquadramento institucional tornase
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Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Territorios
tnica dominante, onde o Estado e cada vez mais torado a assumir
compromissos com solues concretas para as reivindicaes da
populao.
No contexto das transtormaes no plano polticoinstitucional e
apesar do tuncionamento tradicionalmente autoritrio do Estado
brasileiro, a implementao das polticas sociais como retlexo da
busca de uma leitimidade junto aos setores populares mesmo que
atraves de um consenso passivo, obria a mudanas na postura do
Estado e de seus aentes na interao com a populao.
Nos movimentos de saude, verifca-se que os Iatores que aIetam a mobi-
lizao da populao e dos profssionais de saude esto diretamente vinculados
a percepo de carncias comuns, numa proIunda vinculao com a noo de
direitos basicos.
Constata-se que o Estado passa a reconhecer os movimentos sociais, com maior
ou menor receptividade, como seus interlocutores e torna-se mais fexivel diante das
suas demandas. A mudana qualitativa deve partir do reconhecimento da necessidade
de recuperar sua legitimidade, assim como de uma luta de tomada de conscincia da
responsabilidade, pelo Estado, de se garantir adequadas condies reprodutivas.
A IMPORTANCIA DO MOVIMENTO DA REFORMA SANITRIA
A historia sanitaria brasileira sintetiza um movimento representativo do que se
chamou de uma verdadeira revoluo nas relaes entre Sociedade e o Estado, eis que
busca principalmente a democratizao do acesso a saude. O processo a que se reIere
Ioi denominado de Movimento da ReIorma Sanitaria, como um movimento em prol
da redemocratizao do Brasil. Desta maneira, explica-se que a ReIorma Sanitaria no
Brasil surgiu de um movimento social que reivindicava uma proIunda mudana no
modelo assistencial ate ento implantado no pais, apesar de ainda Iazer parte do cenario
brasileiro a assistncia psiquiatrica denunciada pela reIorma psiquiatrica.
A IMPORTANCIA DO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES
DE SAUDE MENTAL
O ritmo de crescimento do movimento que impulsionou a I ConIerncia Na-
cional de Saude Mental explicita qual a natureza da difculdade existente no modelo
assistencial psiquiatrico vigente no pais.
R. Dout. Jurisp., Brasilia,(86). 13-45, fan./abr. 2008 25
Doutrina
O grupo de profssionais de saude mental que lideraram o movimento da reIorma
psiquiatrica tem denunciado os abusos e injustias geradas pelas politicas de saude
manicomial discricionarias na esIera da liberdade das pessoas portadoras de transtorno
mental que procura justifcar as internaes (acenando com pretensas teraputicas).
Assim, o Movimento dos Trabalhadores de Saude Mental representa a construo de
uma mudana na cultura de excluso existente no imaginario da sociedade e do modelo
assistencial/asilar.
Cabe aqui ressaltar que o movimento pela reIorma psiquiatrica brasileira denun-
cia os grandes confitos, questionando o mito da sociedade harmnica e sem confito,
latente no cotidiano da sociedade brasileira e presente neste trabalho: o descaso pelo
doente mental e o desejo de suIocar estas Iormas sociais, como se no Brasil existissem
apenas pessoas normais, excluindo do seu cenario as demais. Este confito, suIocado
ate ento, acaba explodindo na convivncia entre doentes mentais internados em ma-
nicmios ou hospitais psiquiatricos e a sociedade ao seu redor.
O Projeto de Lei n 3657/89, de autoria do Deputado Paulo Delgado, Ioi alvo
de graves criticas, tendo permanecido a discusso no Congresso Nacional por cerca
de doze anos. O reIerido projeto de lei representa um marco historico na mobilizao
dos movimentos dos trabalhadores de saude mental e do movimento antimanicomial.
Aparece neste encontro onde transparecem os preconceitos, os medos, as piedades, as
raivas, o abandono e a vontade de que esta sombra social no existisse, alem de pesados
pronunciamentos por parte dos interessados na grande industria da loucura.
A perspectiva dessas duas vises, muitas vezes opostas, encontra-se expressa nos
jornais diarios e na Iala de alguns doentes mentais. Um exemplo e a materia publicada
na revista Isto E, de 07.07.1996 - Muralhas Abertas, demonstrando a viabilidade de
um portador de doena mental levar uma vida assemelhada a de uma pessoa que no
padea de tal transtorno. Como tambem a maneira consciente com que um portador
de doena mental assumiu a opo corajosa de conviver com a doena, conIorme
entrevista publicada na revista Veja, de 11.09.1996.
Entretanto, as transIormaes sociais, em que pese suas determinantes, no
conduzem a modelos unicos, nem conIormam instituies. E necessario, pois, desem-
baraarmo-nos, saber olhar o que vemos, o que so e possivel dentro de uma perspectiva
historica que a sociedade tenha de promover ou excluir proteo e assistncia a saude.
Isto no deve ser deixado exclusivamente a merc dos interesses do mercado. Vale dizer
as industrias, ao comercio de saude, ou simplesmente ser delegado ao Estado e aos
seus tecnoburocratas e economistas que, certamente, no tm interesse em privilegiar
as necessidades sociais percebidas.
No que tange a politica de saude mental a partir de 1992, com a realizao da
II ConIerncia Nacional de Saude Mental, a ReIorma Psiquiatrica brasileira inicia
claramente o objetivo de reverter o modelo hospitalocntrico, baseado na excluso
26 R. Dout. Jurisp., Brasilia, (86). 13-45, fan./abr. 2008
Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Territorios
social. O caminho de substituio do hospital psiquiatrico passa a ser assumido como
politica nacional pelo proprio Ministerio da Saude. Apoia-se num vigoroso movimento
social, que reunia gestores, tecnicos, Iamiliares, usuarios, parlamentares e organizaes
profssionais. A ReIorma Psiquiatrica ganhou o apoio da opinio publica e Iez avanar
a conscincia da inadequao do modelo manicomial, ate ento vigente. Os anos que
se seguiram Ioram um tempo de multiplicao dos servios substitutivos, tais como os
Nucleos de Assistncia Psicossocial (NAPS), Centros de Ateno Psicossocial (CAPS),
hospital-dia etc.; dos debates sobre o Projeto de Lei Paulo Delgado e das leis estaduais;
da ampliao do controle publico, por meio das vistorias e denuncias, da defnio das
reais condies de Iuncionamento das instituies hospitalares.
Segundo Cesar Augusto de Farias (2002)
12
,
a tiura chave da transio do modelo tradicional de assistncia
psiquitrica para o modelo substitutivo toi a Retorma $anitria.
Com a Retorma $anitria, o Ministerio da $ade de disps a re
passar verbas e as diretrizes das polticas pblicas de sade.
Com isso, o Ministerio da Saude se limita a mero repassador de verbas e dire-
trizes. Para maior agravamento no existe uma eIetiva fscalizao com auditoria da
aplicao desses recursos.
6. REFORMA SANITRIA E REFORMA PSIQUITRICA
No que tange a reIorma psiquiatrica, convem salientar o processo de sua im-
plementao to bem sintetizado por Augusto Cesar de Farias Costa
13
, incansavel
trabalhador da saude mental, quando o autor Iaz reIerncia ao processo de ReIorma
Sanitaria, o Sistema Unico de Saude e a ReIorma Psiquiatrica. Para o citado autor, o
processo politico institucional iniciado com o golpe militar de 1964 impedia a vivn-
cia democratica em praticamente todos os aspectos da vida nacional. No que tange a
saude, denuncia que o modelo assistencial vigente a epoca, como no poderia deixar
de ser, tambem era carregado de contradies e injustias. Com isso, os trabalhadores
do setor de saude iniciaram a elaborao e o encaminhamento de criticas a instituio
e sistematicamente comearam a propor mudanas ao caotico modelo assistencial.
Apos discorrer sobre a constituio do Sistema Unico de Saude (SUS), pri-
vilegiando seus principios, contextualiza-o com outro movimento democratico em
prol da saude mental. EnIatiza que, apos a Declarao de Caracas proclamada em 14
de novembro de 1990, por ocasio do encerramento da ConIerncia Regional para a
Reestruturao da Ateno Psiquiatrica na America Latina no Contexto dos Sistemas
Locais de Saude, passa a axistir um solido balizamento Iomentador das iniciativas de
R. Dout. Jurisp., Brasilia,(86). 13-45, fan./abr. 2008 27
Doutrina
transIormao da ateno medico-psiquiatrica na direo da Saude Mental. InIorma
que, no Brasil, ja a partir de 1970, inicia-se um verdadeiro movimento social, no seio
dos trabalhadores na area da assistncia psiquiatrica, articulados com os usuarios e seus
Iamiliares, varios setores da sociedade civil organizada e a opinio publica.
Com essa abertura politica e conseqente redemocratizao dos hospitais psi-
quiatricos no pais nos ultimos anos, acredita-se e espera-se que dessas novas mudanas
sejam eIetivadas propostas no sentido de se rescrever o Codigo de Etica Medica.
O sucesso dos movimentos de libertao dos doentes mentais leva a igualda-
de e a cidadania. E, como se percebe, se diIundiram no mundo inteiro as ideias dos
deIensores dos direitos humanos, amantes da paz, da vida, da saude. Dentre muitos,
destacamos Paulo Amarante e Benedetto Seraceno, os quais tm sido um reIerencial
no Movimento dos Trabalhadores de Saude Mental, cujos trabalhos refetem o espirito
de renovao da conscincia, para se adequar a este novo milnio.
Paulo Amarante (2000)
14
afrma que:
A antipsiquiatria procura romper, no mbito teorico, com o modelo
assistencial viente, buscando destituir, detinitivamente, o valor
do saber medico da explicaocompreenso, e tratamento das
doenas mentais. $ure, assim, um novo projeto de comunidade te
raputica e um luar" no qual o saber psiquitrico possa ser reinter
roado numa perspectiva diterente daquela (...). Assim, a Retorma
Psiquitrica encontrase trente experincia italiana com Basalia,
consubstanciada na psiquiatria democrtica italiana. Portanto, para
o reterido autor, o projeto de transtormao institucional de Ba
salia e essencialmente um projeto de desconstruoinveno no
campo do conhecimento, das tecnocincias, das ideoloias e da
tuno dos tecnicos intelectuais".
Na viso de Benedetto Saraceno (1999)
15
:
Os pacientes psiquitricos esto nos hospitais psiquitricos e a sua
reabilitao tem a ver com esse estar. Os pacientes que no esto
nos hospitais psiquitricos esto em casas das proprias tamlias.
Aluns pacientes sem tamlia esto nas casas solidrias (...). Lm dos
tundamentos essenciais da qualidade de vida de um indivduo e
de sua capacidade e representado pelo proprio estar em qualquer
luar se torna um habitar esse luar. Entre estar e habitar existe
uma rande diterena (...). O manicmio 9 como o crcere e o
luar por excelncia onde e neado o habitar e atirmado o estar
28 R. Dout. Jurisp., Brasilia, (86). 13-45, fan./abr. 2008
Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Territorios
(...). Tudo isso explica por que a questo da psiquiatria . caracte
rizada pela ideia continua e obsessiva de residncia dos doentes.
o manicmio como residncia coaida, controlada, expropriada,
mas residncia. sair do manicmio, como percurso atraves de raus
diversos de proteo da residencialidade ate a residncia autnoma
ou o reencontrar na propria casa oriinal.
A LEI N 10.216/2001: NOVOS SERVIOS DE SAUDE MENTAL
O advento da Lei n 10.216/2001 trouxe uma serie de mudanas na Politica
Nacional de Saude Mental, em consonncia com uma nova perspectiva no ordena-
mento juridico do nosso pais, operando importantes mudanas desde a ultima decada.
Apesar deste surto inovador, preocupa-se o mencionado autor com o signifcativo
numero de leitos em hospitais psiquiatricos e tambem com a implantao dos novos
servios substitutivos, de Iorma um tanto aleatoria, conIorme a situao politica nos
diversos locais. Chama a ateno para as experincias diversifcadas destes servios,
os quais so Ireqentemente setoriais e isolados, convivendo, as vezes, com as estru-
turas tradicionais.
Considera importante ressaltar que a criao dos novos servios em saude
mental acha-se articulada com os demais servios, como o Programa de Saude da
Familia e Programa de Agentes Comunitarios de Saude, com outros setores publicos e
especialmente com a comunidade, o que tem exigido uma nova postura profssional e
gerencial dentro da administrao da saude publica brasileira, considerando que advira
com a implantao integral do Sistema Unico de Saude.
Por tudo isto, parece-nos procedente a afrmao de Augusto Cesar de Farias
Costa, no sentido de que, concomitantemente ao processo de ReIorma Sanitaria e cons-
truo do SUS, constatou-se ainda mais agudamente que o modelo asilar e carcerario,
vigente na assistncia psiquiatrica, no representava eIetividade quanto a preveno,
tratamento, cura e muito menos, reabilitao e reinsero social para as pessoas acometi-
das por transtornos mentais. O autor denuncia a inefcacia dos instrumentos tradicionais
da assistncia psiquiatrica, dada a natureza politica instalada desde a unifcao dos
Institutos de Aposentadorias e Penses (IAPs), criando o Instituto Nacional de Previ-
dncia Social (INPS) em 1966, durante o governo militar. Denuncia o autor:
No campo da assistncia psiquitrica tomentouse o surimento das
Clnicas de Repouso, eutemismo dado aos hospitais psiquitricos
de ento, acrescido de metodo de busca e internamento de pessoas
como, por exemplo, o realizado por ambulncias que, durante os
anos 6070, percorriam as cidades, especialmente apos clssicos
de tutebol, identiticando indivduos que portassem a carteira do
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Doutrina
INP$ e que estivessem dormindo embriaados na via pblica.
Apos a averiuao eram levados e internados com o dianostico
de psicose alcoolica.
Vale salientar que so quem estava trabalhando e tinha a carteira
protissional assinada e que tinha direito ao INP$, ou seja, eram
pessoas produtivas e socialmente inseridas. Muitas dessas pessoas,
que taleceram ou ainda habitam os manicmios brasileiros inicia
ram seu percurso manicomial leitimado pelo discurso preventista.
Abasteceram e tizeram prosperar a recemcriada e rendosa indstria
da loucura, que tez do louco o seu artio de comercio. Assim, alem
das repercusses de irresponsabilidade, incapacidade e periculosi
dade, o louco adquiriu mais uma. lucratividade.
Assim, no momento em que certos tipos de praticas baseadas na astucia, no
engodo, na Iraude chegam ao seqestro de pessoas, tempo em que surgem novas e
sofsticadas Iormas de violncia institucional, os Iatos sociais recomendam a criao
de novos tipos de articulao entre o setor saude com o direito. O desenvolvimento de
um esIoro para promover o Iortalecimento do exercicio do controle social no interior
do SUS, por meio da criao de condies mais Iavoraveis a compreenso das diversas
aes atribuidas aos Conselhos de Saude e ao Ministerio Publico, caracteriza uma
demanda da sociedade, ja expressa nas deliberaes da X ConIerncia Nacional de
Saude, em diretrizes do Conselho Nacional de Saude e em pleitos do Ministerio Publico.
Assim, a articulao entre as duas iniciativas muito contribuira para o incremento de
Iormas de democratizao da gesto da saude nos diIerentes niveis de governo, possi-
bilitando a participao da sociedade na busca de alternativas de ateno a saude, na
identifcao de demandas, no acompanhamento e controle do uso de recursos publicos
e na responsabilizao do Estado e da propria sociedade em relao a saude.
AS CONFERNCIAS NACIONAIS DE SAUDE MENTAL.
16
A partir da decada de 70, comearam a ocorrer proIundas transIormaes
no bojo da sociedade brasileira. Entre elas, o Iato de o Brasil passar a ser palco de
inumeras denuncias de desrespeito e violao aos Direitos Humanos dos pacientes
psiquiatricos, o que evoluiu para novas e incisivas proposies em direo a um alvo
comum: a instituio e a cultura manicomial. E contra este ediIicio teorico-pratico,
consolidado ao longo dos dois ultimos seculos e sustentado pelos mitos correlatos a
noo de doena mental, cuja Iuno historica Ioi, e ainda e, a produo de espaos
e Iormas de segregao e excluso, e que passaram a se dirigir, na perspectiva de sua
desconstruo, os novos esIoros abrangendo as areas social e institucional nos campos
tecnico, politico e juridico.
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Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Territorios
No Brasil, Franco Rotelli e Paulo Amarante
17
relatam os registros das varias
iniciativas de denuncias quanto a politica nacional de saude mental, no que tange a
politica privatizante da assistncia psiquiatrica por parte da previdncia social, quanto
as condies, de atendimento psiquiatrico a populao, seja na esIera publica ou nas
instituies privadas. Demonstram a violncia institucional, a desassistncia, a mar-
ginalizao promovida pelas instituies psiquiatricas, com a existncia do que Ioi
denominado de 'industria da loucura, promovida pelo setor privado de prestao de
servios, e inclusive denunciado, naquela ocasio, ao Ministerio Publico. Destacam a
criao dos Movimentos de Trabalhadores de Saude Mental em varios pontos do pais,
mediante os quais a questo psiquiatrica torna-se publica e se transporta para a cons-
cincia da coletividade. EnIatizam que tais movimentos Iazem a sociedade 'olhar e
'ver como os loucos representam a radicalidade da opresso e da violncia pela estado
autoritario. No trabalho, os autores ainda demonstram e denunciam as Iormas violentas
com que Ioi tentada ou conseguida a interrupo dos movimentos, por ameaarem os
interesses dos poderosos no campo da assistncia psiquiatrica.
O PRO1ETO DE LEI N 3.657/89 DO DEPUTADO PAULO DELGADO
Cumpre destacar a importncia do Projeto de Lei do Deputado Paulo Delgado,
com a apresentao de justifcao, em setembro de 1989. O reIerido Projeto de Lei
dispe sobre a extino progressiva dos manicmios e sua substituio por outros
recursos assistenciais e regulamenta a internao psiquiatrica compulsoria:
O Projeto de Lei n 3.65789 do Deputado Paulo Delado ]us
titicao
O hospital psiquitrico especializado j demonstrou ser recurso
inadequado para o atendimento de pacientes com distrbios
mentais, seu componente erador de doena mostrou ser superior
aos benetcios que possa trazer. Em todo o mundo, a desopis
talizao e um processo irreversvel, que vem demonstrando ser
o manicmio plenamente substituvel por servios alternativos
mais humanos, menos estimatizantes, menos violentos, mais
teraputicos. A experincia italiana, por exemplo, tem demons
trado a viabilidade e tactibilidade da extino dos manicmios,
passados apenas dez anos de existncia da Lei Basalia". A ine
xistncia de limites leais para o poder de seqestro do dispositivo
psiquitrico e essencial sobrevivncia do manicmio enquanto
estrutura de coero.
R. Dout. Jurisp., Brasilia,(86). 13-45, fan./abr. 2008 31
Doutrina
No Brasil, os eteitos danosos da poltica de privatizao paroxstica
da sade nos anos 60 e 70, incidiram violentamente sobre a sade
mental, criando um parque manicomial de quase 100.000 leitos
remunerados pelo setor pblico, alem de cerca de 20.000 leitos
estatais. A interrupo do crescimento desses leitos e imperativa
para o incio etetivo de uma nova poltica, mais competente, eticaz,
de atendimento aos pacientes com distrbios mentais.
Apesar de todas as diticuldades estruturais e polticas, a rede psi
quitrica pblica demonstrou, a partir do incio dos anos 80, ser
capaz de propor e sustentar novos modelos de atendimento em
sade mental, que levem em conta os direitos e a liberdade dos
pacientes. Todos os planos e polticas, entretanto, desde o paradi
mtico Manual de $ervio", do antio INP$, em 1973, de que toi
coautor o Prot. Luiz Cerqueira, pioneiro da luta antimanicomial,
no tm teito outra coisa seno disciplinar" e "controlar" a irre
trevel e poderosa rede de manicmios privados, impedindo de
tato a tormulao para a rede pblica, de planos assistenciais mais
modernos e eticientes.
Propese aqui o tim desse processo de expanso, que os mecanis
mos burocrticos e reulamentos no loraram obter, e a constru
o radual, racional, democrtica, cienttica, de novas alternativas
assistenciais. O esprito radualista da lei previne qualquer tanta
sioso colapso" do atendimento a loucura, e permite a autoridade
pblica, ouvida a sociedade, construir racional e quotidianamente
um novo dispositivo de ateno.
A problemtica da liberdade e central para o atendimento em sade
mental. Em vrios pases (nos Estados Lnidos exemplarmente),
a instncia judiciria intervem sistematicamente, cerceando o
poder de seqestro de psiquiatra. No Brasil da cidadania menos
que reulada, a maioria absoluta das mais de 600.000 internaes
anuais so annimas, silenciosas, noturnas, violentas, na calada
obedincia dos pacientes. A Detensoria Pblica, que vem sendo
instalada em todas as comarcas, devera assumir a responsabilidade
de investiar sistematicamente a leitimidade da internaoseqes
tro e o respeito aos direitos do cidado internado.
A questo psiquitrica e complexa, por suas intertaces com a ]ustia e o
Direito, com a cultura, com a tilosotia, com a liberdade. $e considerar
mos toda a complexidade do problema, esta e uma lei cautelosa, quase
conservadora. O que ela pretende e melhorar da nica torma possvel
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Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Territorios
o atendimento psiquitrico populao que depende do Estado para
cuidar de sua sade, e proteer em parte os direitos civis daqueles que,
por serem loucos ou doentes mentais, no deixaram de ser cidados.
($ala das $esses, setembro de 1989Deputado Paulo Delado).
Como se percebe, esse projeto provocou uma ampla discusso em todos os setores
da sociedade brasileira Iazendo com proliIerassem legislaes estaduais e municipais com as
mesmas diretrizes do projeto original acima reIerido. A partir dai, intensifcaram-se as ConIe-
rncias Nacionais de Saude Mental, conIorme destaca Cesar Augusto de Farias Costa:
A II Conterncia Nacional de $ade Mental realizouse em Braslia
em 1992 e caracterizouse pela ampliao da mobilizao dos diversos
sementos da nossa sociedade mediante preconterncias nos estados
e municpios com uma participao estimada em cerca de 20.000
pessoas. Tambem o tato de ter sido precedida pelo II Encontro Na
cional de Trabalhadores em $ade Mental, realizado em Bauru $P,
em 1987, quando toram desenvolvidas tormulaes voltadas para
os princpios teoricos e eticos voltados para a Retorma Psiquitrica,
alem da realizao da Conterncia Reional para a Reestruturao da
Ateno Psiquitrica na America Latina no Contexto dos $istemas
Locais de $ade, promovida pela Oranizao PanAmericana da
$ade da Oranizao Mundial de $ade (OPA$OM$), em 1990,
de onde emanou a Declarao de Caracas, proclamada em 1+1190,
conteriram um solido balizamento tomentador das iniciativas de
transtormao da ateno medicopsiquitrica na direo da $ade
Mental. Da mesma torma a IX Conterncia Nacional de $ade",
ao reatirmar a construo do $L$ como alternativa de ateno
sade com suas diretrizes tincadas em seus Princpios Doutrinrios e
Oranizacionais e das polticas sociais, proporcionaram um substrato
ainda mais consistente s discusses da II CN$M.
7. A IMPORTANCIA DA VIII E DA X CONFERNCIA NACIONAL DE
SAUDE PARA REFORMA PSIQUITRICA: INICIO DA TRANSFORMA-
O DO HOSPITAL PSIQUITRICO
ConIorme se depreende dos relatorios da VIII e da X ConIerncia Nacional de
Saude (ver anexos), no contexto das politicas de saude no Brasil, em 1987, iniciou-se
o trabalho de transIormao do hospital psiquiatrico. Trabalhadores em saude mental
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Doutrina
agruparam-se em torno de uma utopia 'Por uma sociedade sem manicmio. DiIe-
rentemente do movimento reIormista sanitario, a nova proposio no se apresentava
como soluo e apontava uma reviravolta no pensar a questo da loucura, esboando
uma critica ao paradigma psiquiatrico. O movimento afrmou a necessidade de enIrentar
prioritariamente o problema da cidadania do louco.
Como se v, o movimento da ReIorma Psiquiatrica tem como bandeira a substi-
tuio da estrutura manicomial por uma estrutura de tratamento aberta, ressocializante
e integrada a comunidade. A mudana do atendimento psiquiatrico hospitalar para a
assistncia comunitaria tem sido a grande meta das equipes de saude mental de varios
paises e do Brasil nas ultimas decadas. Pressupe a transIerncia do eixo hospitalar
para o atendimento nos servios vinculados diretamente a comunidade, aproveitando
toda a rede de assistncia publica e a do setor privado.
EXPERINCIAS DE IMPLEMENTAO DA REFORMA PSIQUITRICA
No Brasil, as experincias de implementao da reIorma tm demonstrado
avanos signifcativos, com a diminuio gradativa dos leitos psiquiatricos em hospitais
especializados e a criao de servios abertos de atendimento em alguns pontos do
pais. Estes servios so complementados por enIermarias e emergncias psiquiatricas
em hospitais gerais. No entanto, a crescente demanda, somada a centralizao do
atendimento na fgura do medico, paradigma que ha muito rege as aes de saude,
ainda causa estrangulamento no sistema e superdimensiona a carncia profssional.
Esse Iato tem sido motivo de lentido na criao de novos servios em varias regies
do pais, como ocorre com o Distrito Federal, em que os servios psiquiatricos ainda
no Ioram devidamente implantados. Retrocederam, nos ultimos anos, as experincias
de implantao da ReIorma Psiquiatrica com o desenvolvimento de atividades que
naturalmente integrariam os CAPs propostos para Iuncionar no Hospital So Vicente
de Paulo, tendo a ateno comunitaria como elo entre os servios de saude mental e
as instncias de saude, servio social, educao, organizaes no governamentais e a
propria comunidade. Desta Iorma, pode-se avaliar, hoje, a necessidade de se direcionar
recursos para o investimento macio na assistncia extra-hospitalar. Necessaria, pois, a
constituio de uma equipe multiprofssional para a ateno ao usuario em sua propria
comunidade e saber aproveitar os recursos existentes em beneIicio da recontextualizao
e ressocializao desses usuarios.
A questo da liberdade do doente mental vem sendo tambem tratada, por exemplo,
na midia. Com a recente discusso do lugar do doente mental, cumpre registar a materia
publicada no jornal O Globo, do dia 14 de setembro de 2000, intitulada A Liberdade
Mental, dentre muitas outras, retratando o trabalho de uma profssional de saude:
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Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Territorios
Na madruada da ltima terateira, por volta de 1h, a psicoloa
Oina Ferreira coordenadora do Prorama de $ade Mental de
Paraty R], deu de cara com uma de suas pacientes na Rodoviria
do Municpio. RM em crise, a mulher andava de um lado para
outro, dizendo, entre trases desconexas, que ia tuir de casa. Ime
diatamente, Oina esqueceu a cansao vinha de seu consultorio
no Rio, onde atende todas as seundasteiras deixou a obstinao
talar mais alto. $o toi dormir depois que a paciente concordou em
ser atendida na emerncia psiquitrica do hospital da cidade. L
pelas +h. (...).
Para a psicoloa, as atividades lone dos hospitais impulsionam
os processos de cura, assim como a participao da tamlia e da
comunidade em que vivem as pessoas com transtorno mental.
A comunidade me ajuda a identiticar e a chear ate os usurios
do Prorama de $ade Mental. Depois, acompanha e analisa
todo o trabalho comio. O Cais, que tem poucos tuncionrios e
muitos voluntrios, e um centro dirio que, em Paraty, vai oterecer
ratuitamente aulas de altabetizao, instica, cermica, pintura,
tear, msica e ioa, alem de cate da manh, almoo e atendimento
ambulatorial. (...).
Estou sempre acompanhada de um representante da comunidade. E
o vnculo atetivo que estabeleo com os pacientes e suas tamlias que
media o trabalho. Tento resolver aluns de seus problemas, que mui
tas vezes so de tome e talta de dinheiro. Mostro que eles precisam
exercer seus direitos e deveres e que a cesta bsica no e caridade, e
direito. Fao uma ponte entre o poder pblico e o cidado.
Tomando-se por base o trabalho da profssional na reportagem acima, percebe-
se que afora a importncia da interao dos profssionais da saude com os do direito.
Pode-se aIerir que, diante de uma ao conjunta, integrada destes profssionais com
os orgos do governo e os conselhos de saude, assistncia social e a comunidade, a
liberdade e a saude do portador de transtorno mental estariam garantidas, bem como
o exercicio de sua cidadania. Cumpre ressaltar, pois, que o movimento da ReIorma
Psiquiatrica, embora centrado na tradio basagliana, no e exclusivo dela, pois atribu-
ido a conjuntura brasileira de redemocratizao e redefnio constitucional, conIorme
acentua Delgado (1992)
18
:
O problema da cidadania do louco, embora centrado na tradio basagliana, no
e exclusivo dela, e deve ser atribuido a conjuntura brasileira de redemocratizao e
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Doutrina
redefnio constitucional. Na esteira da Constituinte desde 1984 e 1985, o 'problema
suscitou debates Ireqentes, em geral apontando para uma reIorma legislativa, vista como
necessaria e urgente. Varios eventos se denominaram, com variaes, 'Saude Mental e
Constituinte- conIerncia de abertura do Congresso Mineiro de Psiquiatria, em 1986,
e varios outros. Todos produziam 'noes ou documentos semelhantes, propondo a
reIorma urgente da legislao psiquiatrica, gestada e nascida ainda na outra ditadura.
Assim, atribuiam-se muitas vezes a ausncia de uma legislao moderna e adequada as
graves situaes de violao dos direitos dos doentes mentais. So da decada passada a
experincia de gesto 'modernizada das instituies asilares; os insucessos de politicas
implementares, o surgimento de correntes de pensamentos novos, internas a disciplina
psiquiatrica, como a 'psiquiatria biologica, os obstaculos encontrados no estabelecimento
de uma interlocuo efciente com a 'comunidade, tudo isto se tornando um inestimavel
capital empirico incorporado ao debate. Assim, no ultimo quarto da decada, observou-se
nova refexo no debate - reIorma psiquiatrica e cidadania.
O tema cidadania do louco vem marcando o debate sobre as mudanas na assis-
tncia psiquiatrica brasileira. Um elenco expressivo de titulos pode ser apontado como
exemplo, sendo possivel afrmar que existe um esIoro para manter o desafo da deIesa
de tal cidadania como a tenso Iundamental que marca a conjuntura da reIorma.
A construo de uma politica de saude mental voltada para o novo modelo de
atendimento ao portador de transtorno psiquico, em substituio ao asilo, e de acordo
com os principios de respeito a cidadania. Esse novo modelo Ioi desenhado a partir da
Declarao de Caracas e de varios eventos nacionais. Por outro lado, um conjunto de
portarias ministeriais estabeleceu administrativamente as bases das mudanas, Portarias
628/2002 e 2.391/2002, por exemplo.
A REGULAMENTAO DA LEI N 10.216/2001: A PORTARIA
MINISTERIAL N 2.361/2002
O arcabouo de deIesa a cidadania do portador de transtorno mental partiu do
Projeto de Lei Federal de Paulo Delgado, aprovado com algumas alteraes na Lei
Federal n 10.216/2001, algumas leis estaduais e municipais aprovadas, entre elas a Lei
Estadual n 11.064/94, a Lei Estadual de ReIorma Psiquiatrica do Estado de Pernambu-
co, que dispe sobre a substituio progressiva dos hospitais psiquiatricos por uma rede
de ateno integral a saude mental, regulamenta a internao psiquiatrica involuntaria
e da outras providncias, determinando, inclusive, que a internao involuntaria sera
comunicada pelo medico que a procedeu atraves da instituio, ao Ministerio Publico
(art. 7), e, ainda, a Lei do Municipio de ReciIe, de n 16. 232/96.
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Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Territorios
Apesar desses avanos, a Lei Federal n 10.216/2001 ainda recepciona a inter-
nao compulsoria ao portador de transtorno psiquico, permitindo, assim, o seqestro
do portador de transtorno mental. Ademais, a atual Portaria Ministerial n 2391, de
26 de dezembro de 2002, regulamentando o controle das internaes psiquiatricas
involuntarias e voluntarias, de acordo com o disposto na Lei n 10.216/2001, e seus
procedimentos de notifcao da comunicao ao Ministerio Publico, alem de no
detalhar no que se consubstanciaria o procedimento de fscalizao e controle das
internaes, no regulamentou a fscalizao e o controle da internao compulsoria.
Assim, as questes ligadas ao portador de transtorno mental permanecem praticamente
no mesmo nivel que vinham sendo tratadas na lei ordinaria, ou seja, os Codigos Civis,
Processo Civil, Penal e Processo Penal, os quais permanecem com conceituaes do
seculo XIX.
Apesar das novas concepes que vm sendo to bem organizadas pelos pro-
fssionais de saude mental, visando a compatibilizao com os avanos da atualidade
acerca de cidadania, loucura, defcincia, responsabilidade, imputabilidade, periculosi-
dade etc., necessario se Iaz nova defnio de metas e orgos proprios para se especiali-
zarem e atuarem nesse particular, detalhando sua participao e respectivas atribuies.
Com relao a politica de saude, e competncia do Municipio executa-la, tendo como
objetivo ordenar o acesso as aes de saude setoriais. Por isso, haver a necessidade do
cuidado, com a defnio de outras politicas de governo pelo pleno desenvolvimento
das Iunes sociais da cidade e garantia do bem-estar de seus habitantes. Para isso, e
necessario melhorar a qualidade de vida das comunidades.
O municipio, com a nova Constituio de 1988, se consolidou como membro
da Federao, ao conquistar sua autonomia politica, caracterizada pela possibilidade
de se auto-organizar mediante a constituio de sua propria Lei Orgnica. A politica de
saude do municipio, para cumprir com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento
das Iunes sociais da cidade, como, por exemplo, a qualidade de vida e saude dos
seus habitantes, deve garantir o pleno exercicio desses direitos, mediante acesso de
todos os seus cidados as condies adequadas de saude.
Percebe-se, neste processo modernizador e democratico, o envolvimento das
praticas do Ministerio Publico, nos mbitos politico-juridico, politico-institucional e
politico-organizacional. Esse processo deve ser entendido como implementao do
direito universal e Iundamental a ser executado por um Sistema Unico de Saude, que
objetive efcincia, efcacia e eqidade. E dentro os principios da ateno a saude,
convem destacar a saude como direito:
A sade e um direito tundamental do ser humano, devendo o Estado
prover as condies indispensveis ao seu pleno exerccio, por meio de
polticas sociais e econmicas que visem a reduo de riscos de doenas
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Doutrina
e de outros aravos e no estabelecimento de condies que asseurem
acesso universal e iualitrio s aes e servios para a promoo, pro
teo e recuperao da sade individual e coletiva (art. 2 e parrato
1 da Lei 8.08090 e art. 196 da Constituio Federal de 1988).
Em comunho com a psiquiatria e a psicologia, o direito muito contribuira
para o resgate dos direitos do doente mental, dentre os quais, o direito de viver em
comunidade, pois quem vive merece viver com dignidade. E vivemos garantindo o
exercicio de cidadania. E o exercicio de um direito Iundamental. A pessoa humana
vale mais que todas as demais propriedades. Impedir que a pessoas tenham acesso a
esses direitos e como mata-las.
8. CONCLUSO
No Brasil, pais marcado pela existncia de graves injustias sociais, a conduo
da politica de saude mental chama a ateno o singular processo representado pela
ReIorma Psiquiatrica.
Este processo resulta da situao injusta e desumana de milhares de portado-
res de transtorno mental reclusos em hospitais psiquiatricos e alimentando o que se
denominou de 'empresas da loucura. Ao longo de mais de vinte anos um movimento
que ja possui lugar na historia vem marcando frme presena no cenario nacional,
conquistando importantes resultados, no que diz respeito a garantia dos direitos e a
oIerta de cuidados aos portadores de soIrimento psiquico.
Porem observa-se que as politicas sociais so escassas e pobres, enIrentando
ainda a existncia de um parque manicomial consumindo bilhes de reais do Sistema
Unico de Saude com a industria da loucura. Ademais, No Brasil, permanece, ainda,
o destrato, o descuido, o abandono atingindo pesadamente grande contingente dos
portadores de transtorno mental, com fagrantes violaes dos direitos humanos
Parece que, desde a metade do seculo XX, Iomos de um extremo ao outro. Porem,
chega a hora de atingirmos um meio-termo, o meio, a ponderao, entre os direitos e
os deveres. So assim um povo atinge a maturidade, o equilibrio, o meio a ponderao,
pois a posio anterior e a atual so radicais e extremadas. Essa ponderao e essencial
para que no seculo XXI se atinja a harmonia e o respeito mutuo.
A ReIorma Psiquiatrica veio a reboque dessas mudanas de milnio. A nosso
ver, dentre os movimentos sociais o mais completo seja aqueles pelos direitos huma-
nos, pois no terceiro milnio volta-se em um tempo de analise dos valores prioritarios,
ou seja, tempo de mudana comportamental. Os projetos refetem proposta de vida.
Espera-se que este novo seculo seja importante para os individuos.
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Estes so os grandes paradigmas para que se criem mecanismos de integrao
entre o atendimento individual e as aes coletivas.
Em todas as esIeras da sociedade global so apresentadas as refexes de cada
um dos participantes e, e claro, cada um apresenta a sua sintese de um problema.
Como se v, o seculo XX passou a ser o terreno da crise e, por isso, doi
tanto. Afnal, trata-se da agonia do modelo de civilizao que nos gerou. Dessa
crise nasce tambem uma nova luta. Luta pelos direitos da humanidade e pela
cidadania
19
, de onde estamos, por nossa concepo e pela dor que, agora e aqui,
sentimos, identifcamos a quebra, o rompimento da possibilidade de conhecer e
comunicar os direitos humanos. Na sociedade pos-moderna, poucos acreditam que
deIender os direitos humanos e possivel. Apenas pequena parcela da sociedade
acredita que isto e possivel.
A concluso aqui e a de que estar neste mundo deve ser uma maniIestao de
uma ao etico-politico. Verifca-se, assim, ser possivel produzir uma nova aliana
entre o direito e a psiquiatria, de Iorma a romper com o padro da tecnocincia-capi-
talismo-industrialismo. Busca-se um modelo diIerente deste que se conhece, ou seja, o
modelo que no pretende dizer as verdades absolutas, que tem com a vida uma relao
de amor, que se permita brincar com o mundo e o sujeito, que se permita ser quase
sujeito e quase mundo. Um modelo calcado no Iragil e no vital. Um modelo amoroso.
E tambem estrategico e politico, porque sabe que cada opo sua e, em ultima instncia,
no uma construo de verdade, mas uma escolha.
Movimento dos direitos do portador de transtorno mental veio a reboque des-
sas mudanas. As vozes dos profssionais da saude mental, parlamentares, individuos
sensibilizados com a causa, Iamiliares, usuarios e a comunidade esto se tornando
gradativamente mais altas e Iortes e passam a reivindicar, implementar, argir e, f-
nalmente exigir os direitos dos pacientes psiquiatricos.
O Direito muito contribuira para o resgate dos direitos humanos do portador
de transtorno mental, entre os quais, o direito de viver em comunidade, porque vive
com dignidade.
Trata-se de um direito Iundamental. Para isto deve atentar para as aes inte-
gradas com o Conselho de Saude e os movimentos sociais, onde no campo dos direitos
humanos deve-se ater a luta pelos direitos a vida, a saude e a qualidade de vida dos
portadores de transtorno mental. Luta esta pelos direitos da humanidade.
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