CORSARO. Sociologia Da Infância
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Em um processo cclico, para lidar com problemas, e por meio de um treinamento formal, para aceitar e seguir normas sociais, a criana internaliza,
por fim, o sistema social (Parsons e Bales, 1955, p. 202).
Modelos reprodutivistas. Como teoria sociolgica, a viso funcionalista de socializao perdeu a preferncia. Alguns tericos sociais alegaram que a internalizao dos requisitos funcionais da sociedade poderia
ser vista como um mecanismo de controle social, levando reproduo
social ou manuteno das desigualdades de classe (Bernstein, 1981; Bourdieu e Passeron, 1977). Esses modelos reprodutivistas, como so conhecidos, so centrados nas vantagens usufrudas por aqueles com maior
acesso aos recursos culturais. Por exemplo, os pais oriundos de grupos de
classe social mais elevada podem garantir que seus filhos recebam educao de qualidade em prestigiadas instituies acadmicas. Tericos reprodutivistas tambm apontam para um tratamento diferenciado dos indivduos nas instituies sociais (especialmente no sistema educativo)
que reflete e apoia o sistema de classes dominante.
Pontos fracos do modelo determinista. Os tericos reprodutivistas fornecem uma confirmao do efeito do conflito social e da desigualdade na
socializao das crianas. No entanto, teorias reprodutivistas e funcionalistas
podem ser criticadas por sua preocupao excessiva nos resultados da socializao, pela subestimao das capacidades ativas e inovadoras de todos os
membros da sociedade e por sua negligncia em relao natureza histrica
e contingente da ao social e da reproduo. Em suma, esses modelos abstratos simplificam processos altamente complexos e, no processo, ignoram a
importncia das crianas e da infncia na sociedade.
Uma pergunta essencial : onde as crianas e a infncia se encaixam
nessas teorias abstratas da estrutura social? Como era de se esperar, alguns
desses tericos sociais subestimaram a importncia das atividades infantis,
que consideravam irrelevantes ou no funcionais. Outros deterministas buscaram teorias de desenvolvimento e aprendizagem infantil que se enquadrassem aos seus pontos de vista para explicar os mecanismos da socializao.
Parsons, por exemplo, vinculou suas opinies sobre socializao teoria de
Freud sobre o desenvolvimento psicossexual. Em seu modelo, a socializao
ocorre medida que a criana aprende a agir em conformidade com as normas sociais e valores, em vez de faz-lo de acordo com impulsos sexuais e
agressividade inatos. Inkeles optou por outro tipo de determinismo, o comportamentalismo, e apontou a importncia de uma formao explcita nas
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Nvel de
desenvolvimento
real
Nvel de
desenvolvimento
potencial
Como podemos ver nessa exposio, nas interaes com outras pessoas, a criana est sempre um passo frente em seu desenvolvimento do
que se estivesse sozinha. Nesse sentido, as interaes na zona de desenvolvimento proximal so a prova final do desenvolvimento e da cultura,
na medida em que permitem que as crianas participem de atividades que
seriam impossveis de realizar por si mesmas, usando ferramentas culturais
a que elas prprias devem adaptar-se para efetuar a atividade especfica
em questo e, assim, passadas adiante e transformadas por novas geraes
(Rogoff, Mosier e Gnc, 1989, p. 211). Assim, o modelo de desenvolvimento um modelo no qual as crianas apropriam-se gradualmente do
mundo adulto por meio de processos conjuntos de compartilhamento e
criao de cultura (Bruner, 1986).
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duo e mudana culturais. O termo tambm sugere que crianas esto, por
sua prpria participao na sociedade, restritas pela estrutura social existente
e pela reproduo social. Ou seja, a criana e sua infncia so afetadas pelas
sociedades e culturas que integram. Essas sociedades e culturas foram, por
sua vez, moldadas e afetadas por processos de mudanas histricas.
Vamos detalhar mais essa noo de reproduo interpretativa observando dois de seus elementos principais: a importncia da linguagem e
das rotinas culturais e a natureza reprodutiva da participao das crianas
na evoluo de suas culturas.
Linguagem e rotinas culturais. A reproduo interpretativa coloca
nfase especial na linguagem e na participao infantil em rotinas culturais. A lngua fundamental participao das crianas em sua cultura
como um sistema simblico que codifica a estrutura local, social e cultural e uma ferramenta para estabelecer (isto , manter, criar) realidades
sociais e psicolgicas (Ochs, 1988, p. 210). Esses recursos inter-relacionados da linguagem e de seu uso so profundamente incorporados e
contribuem para o cumprimento das rotinas concretas da vida social
(Schieffelin, 1990, p. 19).
A participao das crianas nas rotinas culturais um elemento
essencial da reproduo interpretativa. O carter habitual, considerado
como bvio e comum, das rotinas fornece s crianas e a todos os atores
sociais a segurana e a compreenso de pertencerem a um grupo social. Por
outro lado, essa previsibilidade muito fortalece as rotinas, fornecendo um
quadro no qual uma ampla variedade de conhecimentos socioculturais pode
ser produzida, exibida e interpretada. Dessa forma, rotinas culturais servem
como ncoras que permitem que os atores sociais lidem com a problemtica,
o inesperado e as ambiguidades, mantendo-se confortavelmente no confinamento amigvel da vida cotidiana (Corsaro, 1992).
A participao nas rotinas culturais comea muito cedo, quase
que desde o minuto em que as crianas nascem. No incio da infncia, ao
menos nas sociedades ocidentais, quando as habilidades comunicativas
e de linguagem da criana so limitadas, a interao social segue em
consonncia com a suposio como se. Ou seja, bebs so tratados
como socialmente competentes (como se fossem capazes de intercmbios sociais). Ao longo do tempo, devido a essa atitude de como
se, as crianas passam de uma limitada a uma plena participao nas
rotinas culturais.
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As batatinhas fritas tm sangue?
Para ilustrar o poder e a importncia das rotinas culturais, vamos considerar
um exemplo da vida real: a investigao de uma rotina interativa diria
entre um menino de 2 anos e meio, Buddy, e sua me, gravada na casa da
famlia, como parte de minha pesquisa h alguns anos. Buddy e sua me
conversavam todos os dias da semana enquanto ela preparava o almoo.
Nesta conversa, Buddy ainda est curioso sobre o sangue sado de seu
dedo cortado na vspera:
Me: O qu?
Buddy: As batatinhas fritas tm sangue nelas? Tem sangue dentro delas?
Me: No, acho que no.
Buddy: Crianas e pessoas tm.
Me: Aham.
Buddy: E monstros.
Me: Sim.
Buddy: Como o Grover tem sangue dentro dele.
Me: Bem, o Grover um monstro de faz-de-conta. Na verdade, ele um
fantoche, sabe?
Buddy: Sim.
Me: Ento ele no poderia ter sangue nenhum.
Buddy: Mas Harry tem.
Me: Bem, eles so apenas bonecos. O Garibaldo e o Come-come.
Buddy: Sim.
Me: Eles so feitos de pano e enchimento.
Buddy: Sim, como...
Me: Eles foram construdos por algum...
Buddy: Harry tem sangue.
Me: Acho que no. Sangue de mentirinha, talvez.
Buddy: Sim, pode ser... Pode ser que o Grover e o Come-come e o Harry
tenham sangue de mentirinha. Pode ser... Mas pode ser que eles tenham
sangue de verdade.
Buddy: Mame, um dia eu quero ir para a Vila Ssamo e ns poderemos
ver se aqueles monstros tm sangue.
Me: Voc quer?
Buddy: Sim.
Me: Eu no sei. Teremos que pensar sobre isso. Mas voc sabe o que mais?
A Vila Ssamo realmente uma terra de faz-de-conta.
Buddy: Oh, eu no sabia.
Me: Voc pode fingir um monte de coisas sobre a Vila Ssamo.
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Vida adulta
Fase 3:
Habilidades
cognitivas,
emoes e
conhecimento
Fase 2:
Habilidades
cognitivas,
emoes e
conhecimento
Fase 1:
Habilidades
cognitivas,
emoes e
conhecimento
Fase 4:
Habilidades
cognitivas,
emoes e
conhecimento
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Famlia de origem
PR-ESCOLA
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ADOLESCnCiA
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iDADE ADULTA
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As espirais sombreadas de forma diferente representam quatro culturas de pares distintas, que so criadas por diferentes geraes de crianas
de uma determinada sociedade: pr-escola, pr-adolescncia, adolescncia
e idade adulta. Embora aspectos da cultura de pares possam ser transferidos
para crianas menores por crianas mais velhas, as culturas de pares no
so estruturas preexistentes que as crianas encontram ou enfrentam.
nesse sentido que essas culturas diferem nos campos institucionais (raios)
nos quais so tecidas. Ainda que sejam afetadas por muitas experincias
que ocorrem por meio de interaes com o mundo adulto e se encontrem
em campos institucionais (ou passagens de vrios raios), as culturas infantis de pares so produes coletivas inovadoras e criativas. Nesse sentido,
as teias ou espirais de culturas de pares so coletivamente tecidas sobre o
quadro de conhecimentos culturais e instituies aos quais as crianas se
integram e que ajudam a constituir.
Esses recursos coletivos, produtivos e inovadores das culturas infantis
de pares so capturados pelos recursos bsicos do movimento espiral e integrados no modelo de teia global. As culturas de pares no so fases que cada
criana vive. As crianas produzem e participam de suas culturas de pares, e
essas produes so incorporadas na teia de experincias que elas crianas
tecem com outras pessoas por toda a sua vida. Portanto, as experincias infantis nas culturas de pares no so abandonadas com a maturidade ou o
desenvolvimento individual; em vez disso, elas permanecem parte de suas
histrias vivas como membros ativos de uma determinada cultura. Assim, o
desenvolvimento individual incorporado na produo coletiva de uma srie de
culturas de pares que, por sua vez, contribuem para a reproduo e alterao na
sociedade ou na cultura mais ampla dos adultos.
Finalmente, a estrutura geral do modelo que mais fundamental.
Como no caso das aranhas de jardins, cujas teias variam em termos de nmero
de raios e espirais, quando usamos a teia como um modelo para reproduo
interpretativa, o nmero de raios (campos institucionais ou locais) e a natureza e nmero de espirais (a diversidade da constituio ou idade dos grupos
de pares e amigos, a natureza dos encontros e os cruzamentos de locais institucionais e assim por diante) variam entre culturas, entre grupos subculturais
dentro de uma determinada cultura e ao longo do perodo histrico.
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Resumo
At recentemente, a sociologia prestou relativamente pouca ateno s crianas e infncia. A negligncia ou a marginalizao das crianas na sociologia est
claramente relacionada s vises tradicionais de socializao, que as relegam a uma
funo essencialmente passiva. A maioria dessas teorias era baseada em vises derivadas de uma concepo comportamentalista do desenvolvimento infantil que tm
sido severamente contestadas pela ascenso do construtivismo contemporneo na
psicologia do desenvolvimento. Representado pela teoria cognitiva de desenvolvimento de Piaget e pela abordagem sociocultural de Vygotsky, o construtivismo destaca
o papel ativo da criana em seu desenvolvimento e sua eventual participao no mundo adulto. Embora as teorias construtivistas do desenvolvimento humano individual
forneam sociologia uma lente para reorientar as imagens de crianas como agentes
ativos, essas teorias at recentemente focalizaram principalmente o desenvolvimento
de resultados, e falharam na considerao da complexidade da estrutura social e das
atividades coletivas das crianas. A reproduo interpretativa fornece uma base para
uma nova sociologia da infncia. Ela substitui os modelos lineares de desenvolvimento
social individual da criana pela viso coletiva, a viso produtiva-reprodutiva, ilustrada pelo modelo de teia global. No modelo, as crianas participam espontaneamente
como membros ativos das culturas da infncia e do adulto.
O Captulo 2 ampliar a noo de reproduo interpretativa examinando
sua relao com as abordagens estruturais e relacionais para crianas e infncia.