A Missão Da Filosofia Hoje - Mac Dowell
A Missão Da Filosofia Hoje - Mac Dowell
A Missão Da Filosofia Hoje - Mac Dowell
Usamos hoje a torto e a direito o termo misso, sem ter em conta a sua
origem crist. Misso significa literalmente envio e refere-se na linguagem bblica
quele que enviado por Deus para colaborar na realizao de seu plano de amor em
favor de seu povo ou de toda a humanidade. A palavra foi usada como termo tcnico em
primeiro lugar no mbito da teologia trinitria para designar as misses de Jesus
________________________
* Verso ligeiramente modificada da Aula Inaugural do Curso de Filosofia da PUC-Minas, proferida em
13/02/2008.
** Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia -FAJE/BH E-mail: macdowsj@faculdadejesuita.edu.br
Sapere Aude
ISSN: 2176-2708
Belo Horizonte
v.1 - n.1
1 sem. 2010
p.10- 29
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Cristo, o Filho de Deus, feito homem, e do Esprito Santo, enviados ao mundo por Deus
Pai para a salvao da humanidade. Mas j no Novo Testamento, inspirado, alis, no
Antigo, o termo aplicado aos apstolos a palavra de origem grega tem exatamente
este significado enviados por Cristo, para agir em seu nome como colaboradores de
sua misso. Mais tarde, por influncia, alis, dos textos fundadores da Companhia de
Jesus, que assumiu a misso apostlica como marca de sua identidade, o uso do termo
foi estendido a todos os que recebiam um encargo missionrio no mbito da Igreja para
o anncio do Evangelho.1
E foi nesta acepo que misso, veio a significar, o que hoje entendemos
pelo termo, como reza o Aurlio: Funo ou poder que se confere a algum para fazer
algo; encargo, incumbncia (Aurlio, 1975). Embora tenha perdido a conotao
original de envio, o encargo conserva de algum modo, alm, do para, ou seja, da idia
de finalidade, a noo de algo recebido de outro, que encarrega algum, confere-lhe
determinado cargo ou carga. Mas esta definio no cobre perfeitamente o sentido,
ainda mais geral, que misso adquire quando falamos p. ex. de identidade e misso
de uma instituio, digamos da PUC Minas. Neste caso, trata-se propriamente de um
puro para que ela existe, de seus objetivos, embora revestidos de certa aura de
dignidade, no sentido de uma mstica, derivada, creio, do significado religioso
original, que o termo objetivos, puramente racionalizado, no comporta.
Ser ento que se pode falar com propriedade de misso da filosofia, de seus
objetivos, por mais nobres que sejam? Para responder a tal interrogao deveremos
tentar esclarecer de antemo que filosofia?. Com efeito, a partir de determinada
concepo da natureza da filosofia que possvel perguntar para que ela serve?, se
que serve para algo.
Quem fala de filosofia, identificando com este termo certa realidade de nosso
mundo, possui certamente uma pr-compreenso da mesma. Todos os que esto aqui a
me ouvir tm uma idia do que filosofia. Caso contrrio, no poderiam ter escolhido o
curso de filosofia como alunos ou dedicar-se atividade de ensinar esta matria. Ser
ento dispensvel explicar o que se entende por filosofia? Certamente no; porque se
perguntarmos a cada um que filosofia?, como fazia Scrates com seus interlocutores
a respeito de outras realidades (coragem, religiosidade, justia, etc.), obteremos as mais
1
Cf. The Oxford English Dictionary, art. Mission, vol. VI, 531. Oxford: Clarendon Press, 1933; HENRY,
A.-M. Missions, in: Encyclopaedia Universalis. Paris, 1968, 95c-96a.
11
Para uma breve apresentao da Universidade medieval, veja-se REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario.
Storia della filosofia. Vol.1: Dall`Antichit al Medioevo. Brescia: La Scuola, 1997, 505-511.
3
Cf. HADOT, Pierre: O que a filosofia antiga? Col. Leituras Filosficas. So Paulo: Loyola, 1999, 213247.
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reunies a assistir. Mais ainda. Ele precisa fazer conferncias, participar de congressos,
publicar anualmente pelo menos um artigo significativo, para obter pontos em vista das
avaliaes da CAPES e de sua prpria instituio. Sem produo, no h
reconhecimento, nem promoo. Publish or perish, dizem os norte-americanos:
Publicar ou perecer, perder as esperanas de qualquer avano na carreira. Tambm os
estudantes esto sujeitos a semelhante disperso. Divididos entre o trabalho e o estudo,
quando no cativados por mil atraes mais ou menos fteis vivendo, assim, o
divertissement pascaliano - , dificilmente encontram condies de fazer a nica coisa
que importa deveras: pensar sobre o sentido da prpria vida, para viver de acordo com a
sua verdade.
Nestas circunstncias, volta-se a entender o significado profundo da afirmao,
aparentemente irrisria, de Aristteles: o cio a condio do filosofar. cio ou lazer,
em grego schol, donde a nossa palavra escola, o tempo prprio para o pensar,
enquanto livre das ocupaes e preocupaes quotidianas.4 Com efeito, para os gregos
era evidente que a ocupao, ou seja, o trabalho, no sentido de uma atividade til, no
um fim em si mesmo e, portanto, no pode ser absolutizado. Em linguagem corriqueira
poderamos dizer: no vlido viver para trabalhar, mas sim trabalhar para viver, no
somente para sobreviver, mas para viver uma vida plenamente humana. O fim do
trabalho, das mltiplas ocupaes indispensveis que assumimos abrir espao para a
atividade gratuita, aquela que, no sendo ordenada para outra coisa, fim em si mesma,
porque, por sua prpria natureza, enriquece e realiza o ser humano.
Fica claro, portanto, que a schol grega nada tem a ver com ociosidade,
como inrcia e inatividade, tampouco com lazer no sentido atual de tempo livre, para
distrao e divertimento, nem mesmo com o repouso como pausa no trabalho a fim de
recuperar foras para voltar a trabalhar. Todas estas mudanas do significado original
dos termos refletem uma nova maneira, moderna, de encarar o sentido da vida humana.5
A prpria linguagem manifesta a diferena da viso clssica, que d primazia ao
gratuito sobre o utilitrio, ao fim sobre os meios, de modo que a atividade instrumental
e utilitria considerada como a carncia daquilo que a perfeio e plenitude do ser
4
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Para ser filsofo, o que conta apenas a meditao, diz-nos Conche. Nada mais
oportuno que esta recomendao diante do quadro atual do estudo de filosofia. Que
entende ele por meditao? Eis a resposta: A meditao uma espcie de escuta, de
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Studium philosophiae non est ad hoc quod sciatur quid homines senserint, sed qualiter se habeat veritas rerum. (In
De Caelo, lib.1 l.22 n.8).
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no est negando o que se afirmou h pouco sobre o dilogo com a tradio filosfica.
Pelo contrrio. Pensar por si mesmo implica a tentativa de entender o que dito pelo
parceiro, ou seja, de transportar as afirmaes dele para o prprio universo mental,
reconstru-las, repens-las, de modo, ou a propor uma interpretao de tais posies, que
as torne aceitveis, ou a dar razes pelas quais no possvel concordar com elas. O
alvo do debate filosfico no convencer imediatamente o outro ou o pblico da
prpria opinio, mas refletir sobre o desafio que consiste em reconhecer que afirmo algo
com a pretenso de que todos concordem comigo, constatando, ao mesmo tempo, que
de fato nem todos concordam (SPAEMANN, 1978, p.95). A evidncia pressuposto de
nosso discurso. Mas a convico de que o que afirmo evidente questionada pelo fato
de algum no julg-lo tal. A sada filosfica de tal impasse a tentativa de entender
por que o outro no est de acordo. Isto no significa, porm, a disposio de
simplesmente abrir mo de minha posio diante das objees. A evidncia pode
certamente mostrar-se enganosa. O importante, porm, que ela s pode ser substituda
por outras evidncias, sempre pessoais, evidentemente, e incomunicveis. (BRAND,
Gerd, 1978, p.352). Neste sentido, o pensar filosfico se desenvolve medida que
algum procura a tal ponto entender as razes da discordncia dos outros, que esta
retomada pessoal da problemtica modifica o seu prprio horizonte interpretativo, sem
necessariamente levar a abandon-lo.
Ora, justamente esta interlocuo que est em falta entre ns. Tem-se a
impresso que os escritos de brasileiros no so, em geral, levados a srio, sobretudo
por quem tem acesso fcil bibliografia em outras lnguas. Em todo caso, poucos se do
ao trabalho de pronunciar-se sobre eles e de apresentar suas crticas. claro que o mais
das vezes no se trata de obras primas. Mas a ausncia da discusso que impede o
aperfeioamento do pensar. Pode ser mais interessante escrever sobre autores
estrangeiros que dificilmente tomaro conhecimento de nossa opinio. Tambm nas
apresentaes pblicas sob a forma de conferncias ou mesmo mesas redondas o debate
costuma ser mnimo. Ningum quer expor-se contradio. Esta situao fatal para o
desenvolvimento de um autntico pensamento filosfico brasileiro.
Permitam-me acrescentar mais um ponto de estrangulamento no processo de
consolidao de uma filosofia nacional. Refiro-me tendncia especializao precoce.
Com freqncia as disciplinas do currculo de graduao, mesmo que ostentem ttulos
de tratados sistemticos, Antropologia Filosfica, Metafsica ou tica, so ministradas
de forma monogrfica, focalizando um ou outro autor ou um aspecto limitado da
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Nur noch ein Gott kann uns retten. Frase tomada pelos editores como ttulo da entrevista dada por Heidegger
revista Der Spiegel em 23/09/1966 e, de acordo com sua vontade, publicada s depois de sua morte (vol.30 n.23,
31/05/1976, 193-219) [GA v.16]
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sem dvida uma funo no interior do sistema vigente. Seu papel exercer
institucionalmente a crtica das instituies da sociedade (GETHMANN, 1978, p.306).
Esta funo crtica indispensvel numa sociedade, a fim de que suas instituies no
se tornem auto-destrutivas, mas, ao contrrio, contribuam para a conservao e
desenvolvimento da vida social. Neste sentido, a atitude crtica da filosofia no consiste,
em princpio, na desestabilizao do sistema social. Ela contribuir para a
desestabilizao das instituies, apenas quando sua estabilidade j no puder ser
justificada (GETHMANN, 1978, p.307). Tal funo exclusiva da filosofia. No pode
ser exercida p. ex. pela cincia. De fato, mesmo as cincias sociais, economia,
sociologia, cincia poltica, cincia jurdica, no emitem juzos de valor a respeito dos
objetivos de cada instituio e da sociedade como um todo. Como expresses da razo
instrumental, podem avaliar apenas a coerncia entre os meios empregados e os
objetivos visados, ou seja, a eficcia do funcionamento do sistema. P. ex. se se trata de
alcanar a liberdade poltica, a cincia indica o estado democrtico como meio mais
eficaz que o totalitrio. Mas, por que promover a liberdade? A esta pergunta a cincia
no tem resposta. Estamos diante de uma questo filosfica, que implica toda uma
concepo do ser humano (SEVERINO, 1982, p.64-65). por isso, que, no mbito da
civilizao ocidental, na medida em que se caracteriza como cultura da razo, a
sociedade delega implcita ou explicitamente filosofia, como organizao social, este
papel de instncia crtica do sistema social. Com efeito, a crtica filosfica tem em vista
a racionalidade das instituies. Sua funo consiste em desenvolver esta cultura da
razo, mais especificamente, da argumentao.
Ora, justamente o que a filosofia institucionalizada em nossas Universidades
no est desempenhando a contento, como procurei mostrar. A presso pela
produtividade e eficcia, a prevalncia da interpretao de textos e da especializao,
em vez da ateno aos problemas substanciais de nossa realidade, a omisso da
discusso e do confronto de opinies, impedem a filosofia como instituio social de
cumprir adequadamente a sua funo. Na verdade, ela s poder faz-lo medida que
assumir as caractersticas do autntico pensar. quando no se subordina a objetivos
pr-fixados, no pretende oferecer contribuies para a soluo dos problemas da
sociedade, que ela se torna relevante e cumpre seu papel social. Este paradoxo se
explica a partir da clara distino entre a filosofia como instituio e a filosofia como
atividade pessoal, ainda que exercida comunitariamente atravs do debate e do dilogo.
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Trata-se neste caso de um modo de vida, de uma atitude frente realidade no seu todo.8
Neste sentido, o filosofar a expresso mais elevada do desejo espontneo de saber,
prprio do ser humano. O amor verdade a mola propulsora da atividade filosfica.
No h verdadeiro filosofar sem paixo pela descoberta do sentido das coisas.
A busca filosfica da verdade no se restringe, porm, a um aspecto particular
da realidade, nem se contenta com as respostas parciais, prprias das cincias.9 Ela
interroga qualquer ente no horizonte transcendente do ser e procura compreender o
sentido e fundamento ltimo da realidade no seu todo. Nada escapa ao questionamento
filosfico. Ao contrrio do que pretenderam Descartes e outros, ele no visa estabelecer
um princpio absoluto, um fundamento inabalvel, sobre o qual construir o edifcio do
saber. Na verdade, a razo humana no pode deixar de pressupor. A certeza do cogito
ergo sum como resposta dvida cartesiana, p.ex., implica muitas outras certezas que
no foram questionadas. Enquanto questionamento universal, o filosofar, ainda que no
possa eliminar todo pressuposto, procura submeter cada suposio ao exame da razo.
Trata-se, neste sentido, de uma tarefa sem fim. H questes que visam a respostas
completas e definitivas, justamente porque so postas em um horizonte limitado. A
resposta que demandam, uma vez alcanada, satisfaz plenamente, implicando assim a
extino da prpria pergunta. No o caso da interrogao filosfica. Isto no significa
que ela no leve a respostas verdadeiras, sob determinado aspecto, ou que no campo da
filosofia no haja evidncias. Toda pergunta autntica pretende chegar a uma resposta.
Mas a pergunta pelo fundamento, enquanto se desenvolve no horizonte ilimitado do ser,
no se satisfaz plenamente com nenhuma resposta. O seu dinamismo impele-a a abrir-se
mais e mais manifestao do ser, a aprofundar incessantemente a busca do sentido
ltimo da realidade, sem jamais ser capaz de abarc-lo totalmente. prprio da razo
humana procurar articular o conjunto de seus conhecimentos em uma unidade suprema.
Seria, porm, contrrio sua mesma ndole encerrar a sua interpretao da realidade em
um sistema fechado. Eliminar a pergunta equivale a renunciar ao filosofar, mais ainda, a
renegar a prpria verdade e dignidade do ser humano, que , por essncia, pergunta.
8
Esta viso da filosofia como um saber viver ou pensar melhor para viver melhor tem sido promovida
ultimamente por uma srie de pensadores franceses, como Andr Comte-Sponville [p. ex. em Apresentao da
Filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2002, 136] e os j citados Marcel Conche e Pierre Hadot. Embora plenamente
de acordo com a revalorizao existencial do filosofar, no julgamos, como se ver mais adiante, que a filosofia,
enquanto pensamento discursivo, oferea por si s a resposta ao enigma da existncia. nas experincias
fundamentais do ser humano, sobre as quais se debrua a razo filosfica, que se encontra a chave da compreenso da
existncia e de sua realizao. Trata-se de evidncias intuitivas que esto na base do pensamento filosfico, mas
tambm da atitude religiosa. Estes dois modos de ser aberto verdade no se excluem.
9
A tarefa da filosofia pr perguntas (...) e fazer entender que para alm das respostas da cincia h sempre uma
pergunta ulterior. (BOBBIO, 1982, p.68)
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Em suma. A filosofia como instituio social tem uma misso, ou seja, uma
funo e objetivo em nossa sociedade: exercer institucionalmente a crtica das
instituies. Desta primeira concluso decorre uma segunda. A filosofia como
instituio s exercer adequadamente a sua funo social medida que o filosofar,
como atividade pessoal, for um autntico pensar, sem qualquer objetivo exterior a ele
mesmo. A validade da filosofia como instituio social depende paradoxalmente do
carter gratuito e, neste sentido, intil do pensar, que no tem como fim a transformao
da sociedade, nem pretende justificar idias pr-concebidas, mas se entende como busca
incondicional da verdade por si mesma. Destarte, se no legtimo atribuir ao pensar
qualquer objetivo, ns, enquanto nos sentimos chamados a ser filsofos, recebemos
certamente uma misso. Que misso? Justamente a de filosofar autenticamente. Para
tanto, mister que o filsofo saiba resistir s presses da sociedade moderna, ao
imprio da tcnica, injuno da eficcia, abrindo, no meio de suas ocupaes, um
espao para a meditao, para o pensar livre e gratuito.
Trata-se, em particular, de entender a nossa dedicao filosofia, no como
mera atividade profissional, mas como um estilo de vida. E, neste sentido, a primeira
contribuio que prestamos sociedade, a de promover, com nossa prpria atitude e
testemunho, a cultura da razo. Com essa expresso, no tenho em vista qualquer
racionalismo estreito. A verdadeira racionalidade no consiste em estabelecer critrios
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Die stillste Worte sind es, welche den Sturm bringen, Gedanken, die mit Taubenfssen kommen, lenken die Welt.
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o que reconhece p. ex. N. Bobbio quando diz: A filosofia no pode dar respostas definitivas justamente porque o
seu horizonte a totalidade e nenhuma mente humana pode abraar a totalidade. (199 p.169).
12
Esta tambm a posio de Marcel Conche: O papel da filosofia , para alm do racional, nos fazer tomar
conscincia (...) do mistrio que envolve todas as coisas, e revela o homem a si mesmo como enigma: enigma do qual
resulta a liberdade radical da escolha filosfica. (2006, p.71). No chamaria, porm, a experincia do mistrio de
irracional (ib. 70), nem o reduzo a um sagrado imanente, como faz este autor (ib.). Por outro lado, a meu ver, a
liberdade radical da escolha filosfica no equivale a opo arbitrria. Trata-se da abertura ao que se mostra na
experincia fundamental da existncia.
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A expresso cara a N. Bobbio: A nica coisa da qual estou seguro, permanecendo sempre dentro dos limites de
minha razo (...) que vivo o senso do mistrio, que evidentemente comum tanto ao homem de razo como ao
homem de f. (2000, p.7).
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Bibliografia
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