Teoria Do Mise en Abyme
Teoria Do Mise en Abyme
Teoria Do Mise en Abyme
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FABIO A. M. de SOUSA
So Paulo, 2013
FABIO A. M. de SOUSA
Orientador:
Prof. Dr. Almir Antonio Rosa
So Paulo, 2013
Aprovado em:
Banca Examinadora
RESUMO
Esse trabalho tem como objetivo discutir filmes em que a realidade vista
como um conceito subjetivo de tempo e espao. A linguagem cinematogrfica pode
dar luz a uma realidade mltipla, a estrutura em abismo um meio para isso. As
Horas, Espelho e Sans Soleil, trs filmes de diferentes pocas e estilos, nos
permitiro analisar esse tipo de narrativa com mltiplos nveis de realidade e
perceber como nuances predominantemente abstratas encontram corpo na tela de
cinema.
ABSTRACT
This paper aims to discuss feature films in which reality is viewed as a subjective
concept of time and space. The cinematographic language is able to show a multiple
reality, the mis en abyme is a way for that. The Hours, Mirror and Sans Soleil, three
films from different generations and styles, allow us to analyze this type of narrative
with multiple levels of reality and realize how hues predominantly abstract could
reach the screen.
Sumrio
Captulo
I
-
Introduo
.............................................................................................................................
9
1.
O
conceito
de
estrutura
em
abismo
.............................................................................................................
9
2.
Espelhos
................................................................................................................................................................
13
3.
Abismos
.................................................................................................................................................................
18
4.
O
cinema
como
construtor
de
realidades
...............................................................................................
23
Captulo
II
-
"As
Horas"
-
a
conscincia
em
abismo
......................................................................
27
1.
As
horas
do
dia
...................................................................................................................................................
27
2.
O
tempo
interior
................................................................................................................................................
31
3.
A
subjetividade
do
artista
e
a
necessidade
de
sublimar
..................................................................
39
4.
A
literatura
e
o
cinema
...................................................................................................................................
49
Captulo
III:
"Espelho"
-
a
memria
em
abismo
............................................................................
52
1.
Traumas
e
geraes
.........................................................................................................................................
52
2.
Realidade.
Realidades.
....................................................................................................................................
57
3.
Zonas
de
representao
.................................................................................................................................
62
4.
O
tempo
como
assinatura
do
artista
.........................................................................................................
69
Captulo
IV:
"Sans
Soleil"
-
a
Histria
em
abismo
.........................................................................
77
1.
O
ensaio
e
a
memria
......................................................................................................................................
77
2.
A
vertigem
da
Histria
e
da
cultura
..........................................................................................................
84
3.
A
espiral
do
tempo
e
as
novas
tecnologias
............................................................................................
88
4.
A
trilha
sonora
em
abismo
............................................................................................................................
93
5.
A
ltima
carta?
...................................................................................................................................................
99
Captulo
V
-
Concluso
........................................................................................................................
102
ndice de Figuras
Figura 1: "O Casal Arnolfini" (1434), Jan Van Eyck................................................... 11
Figura 2 : detalhe do quadro "O Casal Arnolfini" ....................................................... 12
Figura 3: "Las Meninas" (1656), de Diego Velsquez ............................................... 14
Figura 4: "O Andarilho Sobre o Mar de Neblina" (1818), Caspar David Friedrich ..... 18
Figura 5 "Relatividade" (1953), Escher...................................................................... 26
Figura 6: montagem a partir de frames do filme "As Horas" com Virgnia Woolf
(Nicole Kidman), Clarissa Vaughan (Meryl Streep) e Laura Brown (Juliane Moore) 28
Figura 7: remontagem feita a partir da montagem de frames do filme "As Horas" no
site http://thefilmexperience.net/blog/2011/5/15/may-flowers-the-hours.html ........... 29
Figura 8: montagem feita a partir de frames do filme "As Horas".............................. 30
Figure 9: montagem de frames do filme "As Horas" no site
http://thefilmexperience.net/blog/2013/1/18/breakfast-with-clarissa-virginia-andlaura.html ................................................................................................................... 30
Figura 10: remontagem feita a partir da montagem de frames do filme "As Horas" no
site http://www.fanpop.com/clubs/the-hours/images/24329051/title/hours-fanart ..... 34
Figura 11: frame de "As Horas" com o enterro do pssaro ....................................... 42
Figura 12: frame de "Gritos e sussuros" (1972), de Ingmar Bergman...................... 47
Figura 13: frames de "As horas" com os personagens de Virgnia Woolf e Richard. 48
Figura 14: frames de "As horas", o personagem Richard em diferentes pocas ...... 48
Figura 15: montagem feita a partir de frames de "As Horas" .................................... 50
Figura 16: montagem feita a partir de frames de "As Horas" .................................... 50
Figura 17: montagem feita a partir de frames de "As Horas" .................................... 51
Figura 18: Frame do plano inicial de "Espelho" ......................................................... 53
Figure 19: frame de "Espelho" retratando o incndio ................................................ 54
Figura 20: frame de "Espelho" com a garota ruiva .................................................... 55
Figura 21: frame de "Espelho" ................................................................................... 62
Figura 22: montagem a partir de frames de "Espelho" .............................................. 63
Figura 23: montagem a partir de frames de "Espelho" .............................................. 64
Figura 24: frame de "Espelho" ................................................................................... 65
Figure 25: frame do filme "Solaris" (1972), de Andrei Tarkovski ............................... 66
Figure 26: frame de "Stalker" (1979), de Andrei Tarkovski ....................................... 68
Figura 27: montagem de frames do plano final de "Espelho".................................... 70
Captulo I - Introduo
10
Gide deu o nome de mis en abyme a todo enclave que mantenha relaes
de semelhana com a obra de que faz parte. Lucien Dllenbach inicia seu estudo
destacando duas caratersticas bsicas: a de que a obra se refere a si mesma,
sendo a mis en abyme uma modalidade de reflexo; e a propriedade de ressaltar a
inteligibilidade e a estrutura formal da obra. A partir disso, o autor francs chama a
ateno para a conexo com a figura do espelho e comea sua anlise com
exemplos pictricos, mais precisamente com Van Eyck.
11
Dllenbach prope algo que servir de base para esse trabalho. A estrutura
em abismo funciona tal qual um jogo de espelhos. Conforme o posicionamento dos
espelhos ao nosso redor podemos ver simultaneamente diferentes estratos da
realidade que no veramos sem esse artifcio, como ver ao mesmo tempo o que
est a frente e o que est detrs de ns, ou mesmo contemplar-nos de perfil com o
auxlio de uma combinao de espelhos. Por essa razo, nesse trabalho
chamaremos a estrutura em abismo tambm de relato espelhado, como definiu
12
13
2. Espelhos
ECO, Umberto. De los espejos. In "De los espejos y otros ensayos" Debolsillo, 2012. Barcelona.
"Tambin los espejos en abme de los barberos desempean una funcin intrusiva. La magia de los
espejos consiste en que su extensividad - intrusividad no solo nos permite mirar mejor el mundo, sino
tambin mirarnos a nosotros mismos tal como nos ven los dems: se trata de una experiencia nica y
la especie no conoce otras semejantes."
14
Nesse quadro, o espelho est colocado de frente, como em Van Eyck, mas
se trata de um espelho plano, e combinado a outro, nos permitindo alcanar uma
definio exemplar do mis en abyme.
15
O efeito desse jogo tico produzido pelos espelhos a base desse trabalho
para analisar esse tipo de procedimento artstico. No toa, o livro de Dllenbach
sobre a mis en abyme se intitulou "El relato especular". Para continuar a anlise
desses reflexos, tomemos novamente os ensinamentos de Umberto Eco. Segundo
Eco, o espelho um fenmeno no-umbral que desenha os limites entre o
imaginrio e o simblico. Nos espelhos se convergiriam a percepo, o pensamento
e a conscincia da prpria subjetividade. Isso devido experincia do espelho
originar-se no prprio imaginrio. Eco se apoia em Lacan para tratar do tema:
16
LACAN, Jacques, Il Seminario, I, Einaudi, Turn, 1978 (Trad. esp.: El Seminario, I, Paids,
Barcelona, 1981.) "El dominio imaginario del propio cuerpo que permite la experiencia del espejo es
prematuro respecto al dominio real: el "desarrollo no se produce sino en la medida en que el sujeto se
integra en el sistema simblico, se ejercita en l, se afirma en l mediante el ejercicio de una habla
verdadera"
17
DLLENBACH, Lucien. El relato especular. "duplicando el crimen del rey y la infidelidad de la reina,
la obra dentro de la obra presenta a los culpables un espejo acusador, atrapa por medio del
simulacro la conciencia de Claudio, aporta al escrupuloso Hamlet la prueba irrefutable de que no lo ha
engaado ningn genio maligno y, por ltimo, lo incita a pasar a los hechos, cargado de razn."
18
3. Abismos
Figura 4: "O Andarilho Sobre o Mar de Neblina" (1818), Caspar David Friedrich
19
KARASEK, Felipe Szyszka. A Sabedoria Trgica como conceito de Filosofia em Nietzsche. PsGraduao PUCRS, 2009. http://www.pucrs.br/edipucrs/IVmostra/IV_MOSTRA_PDF/Filosofia/72158FELIPE_SZYSZKA_KARASEK.pdf
20
Esse final citado por Todorov tem parentesco com o desfecho de "Cem anos
de solido", de Gabriel Garcia Mrquez, em que Aureliano Babilnia ao chegar ao
final dos pergaminhos de Melquades, torna-se consciente de seu prprio destino, j
que se v personagem do que l e descobre seu fim trgico e imediato, Macondo
ser coberta de areia. Aureliano Babilnia mais um reflexo de uma estrutura de
espelhos, uma repetio de um padro familiar, um personagem abismal diante dos
caprichos de uma natureza fractal.
10
MAGNY, Claude-Edmonde, Historia du roman franais depuis 1918 (Paris: Editions du Seuil, pgs
269-278
"no resulta difcil captar, por intuicin, qu infinidad de espejos paralelos, qu espacio interior
introduce este procedimiento en el propio seno de la obra (del mismo modo, los interioristas acuden al
juego de espejos para agrandar el interior de las habitaciones demasiado pequeas), qu atraccin,
qu vrtigo metafsico nos lleva a inclinarnos sobre este universo de reflejos que se abre de pronto
bajo nuestros pies; en pocas palabras: qu ilusin de misterio y de profundidad engendran,
necesariamente, estas historias cuya estructura se sita en abismo, segn la palabra tan
felizmente elegida por los expertos en herldica."
11
TODOROV, T. Litrature et Significacin (Pars: Larousse, 1967), pg. 48.
"Ninguna interpolacin tan perturbadora como la noche DCII, mgica entre las noches. En esa noche,
el rey oye de boca de la reina su propia historia. Oye el principio de la historia, que abarca a todas las
dems, y tambin - de monstruoso modo - a s misma, Intuye claramente el lector la vasta
posibilidad de esa interpolacin, el curioso peligro? Que la reina persista y el inmvil rey oir para
siempre la trunca historia de Las mil y una noches, ahora infinita y circular..."
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13
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15
ECO. La imagen real de los espejos cncavos es, desde el punto de vista del sentido comn, irreal
y la llamamos "real" solo porque el sujeto que la percibe puede confundirla con un objeto fsicamente
consistente, porque puede recogerse en una pantalla, lo que no sucede con las imgenes virtuales.
En cuanto a la imagen virtual, se la llama as porque el observador la percibe como si estuviera
dentro del espejo, mientras que el espejo, evidentemente, no tiene un "dentro".
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26
27
1. As horas do dia
28
do nome, ela tambm far uma recepo em sua casa, celebrando o prmio de
literatura recebido por seu amigo e ex-amante Richard, que no fim do filme se
matar, assim como Virgnia, e se revelar filho de Laura Brown. Um nico dia, mas
nesse dia tomam decises que as influenciaro pelo resto de suas vidas.
O filme comea acompanhando os maridos das trs mulheres, no caso de
Clarissa, sua companheira Sally. Sally chega em casa pela manh, Dan Brown
prepara o caf enquanto Leonard Woolf cuida do jardim. Enquanto isso, as trs
protagonistas acordam, seguimos o despertar das trs mulheres em pocas
diferentes, mas com suas aes sincronizadas pela linguagem cinematogrfica.
Toca o despertador de Laura, desligado por Clarissa, Virgnia se abaixa para lavar
o rosto, mas na sequncia quem se olha no espelho de rosto molhado Clarissa.
Quase como se fossem uma mesma mulher.
Figura 6: montagem a partir de frames do filme "As Horas" com Virgnia Woolf (Nicole Kidman),
Clarissa Vaughan (Meryl Streep) e Laura Brown (Juliane Moore)
Virgnia Woolf, vivida por Nicole Kidman, uma artista em crise. Ama seu
marido, mas sucumbe vida cotidiana, incapaz de comandar a casa e tem
pensamentos constantes de suicdio. Seu marido Leonard insiste para que ela coma,
ela no quer. Na Nova York dos anos 2000, Clarissa (Meryl Streep) que insiste
para que Richard (Ed Harris) tome o seu caf da manh, ele tambm se nega,
tambm um escritor com pensamentos suicidas. J Laura (Julianne Moore) em
1951, nem se levanta da cama para o caf, quer ler mais um captulo de "Mrs.
Dalloway", antes de chegar na cozinha onde seu marido assume sua funo de
preparar a comida, tem a mesma sensao que teve Virgnia ao sair de seu quarto:
a sensao de estar subindo em um palco para atuar o papel de si mesma. Ambas
se sentem incapazes para tal.
29
de
pessoas
do
passado
que
desestabilizam
emocionalmente
as
Figura 7: remontagem feita a partir da montagem de frames do filme "As Horas" no site
http://thefilmexperience.net/blog/2011/5/15/may-flowers-the-hours.html
A articulao entre as trs realidades intrnseca, estamos diante de uma
histria contada a partir de trs histrias. Os mesmos elementos costuram as trs
narrativas, as flores, os rostos sendo lavados, como se um tempo respondesse ao
outro. O que importa no o tempo em si nem a cronologia das aes, mas sim o
sentimento envolvido. nele que reside a continuidade dessa estrutura em abismo.
O roteiro acompanha o desenvolvimento de um sentimento, como ele se intensifica,
se transforma. Na evoluo psicolgica dessas mulheres est a chave para a
alternncia dos estratos temporais.
30
Cabe aqui analisar a fora dessas reiteraes espelhadas, suas razes e
seus efeitos. Como j dito no primeiro captulo, esse tipo de estrutura prope uma
espcie de quebra-cabeas. Por seu mistrio instiga o espectador a adentrar-se na
narrativa e responder com concluses ou emoes ao que se apresenta dessas trs
personagens femininas.
A estrutura em abismo um procedimento formal que parte da
desconstruo para criar algo novo. Pela multiplicidade de universos, realidades,
prope novos significados e tornam os personagens e as relaes mais complexos
atravs de novas cadeias significativas. Redimensiona o espao e cria uma
dimenso a ser desvendada, uma ideia de vertigem e no interior desse abismo, trs
mulheres.
Durante o filme, testemunhamos a experincia de cada uma delas, como
cada uma vive as horas do dia. A maneira como elas revivem o passado, vivem o
presente e projetam o futuro. A unidade se d atravs das vivncias subjetivas das
personagens, pela afinidade de seus fluxos de conscincia, principalmente em seus
conflitos, suas contradies.
Figure 9: montagem de frames do filme "As Horas" no site
http://thefilmexperience.net/blog/2013/1/18/breakfast-with-clarissa-virginia-and-laura.html
31
2. O tempo interior
32
33
Andiara Petterle em "O tempo das horas - um ensaio sobre o tempo nas
narrativas de Mrs. Dalloway e de As Horas" cita Agostinho de Hipona que prope a
existncia de um tempo psicolgico, baseado na durao interior de imagens que se
sucedem na alma.
Tendo o tempo um elemento transitrio (de sucesso) e um
permanente (de durao), a conscincia os apreende e elabora
como localizao (espao) e anterioridade. Pelo que, pareceu-me
que o tempo no outra coisa seno distenso. (...) Em ti, meu
esprito, meo os tempos! (...) Meo a impresso que as coisas
gravam em ti sua passagem, impresso que permanece, ainda
depois de elas terem passado. Meo-a a ela enquanto presente, e
no quelas coisas que se sucederam para a impresso ser
produzida. a essa impresso ou percepo que eu meo, quando
meo os tempos. Portanto, ou esta impresso os tempos ou eu
no meo os tempos! (AGOSTINHO apud PETTERLE, p. 3)18
PETTERLE, Andiara."O tempo das horas - um ensaio sobre o tempo nas narrativas de Mrs.
Dalloway e de As Horas", http://www.eca.usp.br/caligrama/n_3/andiarapetterle.pdf
34
Figura 10: remontagem feita a partir da montagem de frames do filme "As Horas" no site
http://www.fanpop.com/clubs/the-hours/images/24329051/title/hours-fanart
35
19
PETTERLE, Andiara."O tempo das horas - um ensaio sobre o tempo nas narrativas de Mrs.
Dalloway e de As Horas", http://www.eca.usp.br/caligrama/n_3/andiarapetterle.pdf
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21
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A criana leva o seu brincar a srio e deposita nele uma grande carga de
afeto. O pequeno Richard, filho de Laura Brown, cria um paralelo entre o trajeto de
seu carro de brinquedo e o carro que a me sendo conduz por Los Angeles. Richie
imbui sua brincadeira de f, como se, atravs de uma mudana de trajetria em seu
carro de brinquedo, pudesse mudar o destino trgico da me pressentido por ele.
Outra cena do filme serve de exemplo para as proposies de Freud.
Virgnia ajuda a sobrinha Anglica a enterrar um pssaro morto. Juntas fazem desse
momento um ato srio e solene. A personagem encontra uma possibilidade de falar
sobre a morte, o medo e at mesmo da condio da mulher na sociedade, valendose de metforas e metonmias. Quando questionada por Anglica sobre o que
acontece aps a morte, Virgnia responde: "retornamos ao lugar de onde viemos",
abrindo mais uma camada de abismo no relato.
Figura 11: frame de "As Horas" com o enterro do pssaro
O "brincar" um prazer e uma necessidade. Assim acontece no cinema com
os diretores e atores, no toa o termo to play o mesmo para a brincadeira infantil
e pra atuao. No s pela carga de afeto, mas essa realidade tambm provocar
mudanas na vida de quem as vive ou revive. Os diretores, assim como os atores,
esto constantemente emprestando situaes reais, experincias pessoais para
suas fices. Um bom exemplo est tambm contido em "As Horas." O personagem
Clarissa Vaughan, quando questionada na floricultura se a protagonista do livro de
Richard est baseada nela, responde: "Richard um escritor, ele usa o que
43
acontece ao seu redor, mas transforma do seu jeito, se apropria." Revisitar situaes
e personagens traumticos, fantasiar sobre os fantasmas pessoais tem carter
transformador para os artistas.
Alguns, segundo Freud, seriam impulsionados a fantasiar por uma deusa
severa, chamada Necessidade. Esses indivduos estariam obrigados a revelar o que
lhes faz sofrer e o que lhes d felicidade. Freud se refere s vtimas de doenas
nervosas, mas a deusa de que fala parece tambm atingir os artistas. Que outra
razo teriam para tratar de seus conflitos atravs de suas obras e dos personagens
que criam? O ser humano encontrou na representao uma possibilidade de tratar
de temas vitais. Encontramos na arte uma maneira especial de viver e compartilhar.
Retomando o captulo anterior, Dllenbach tenta colocar luz sobre a origem desses
mecanismos:
Conforme a etimologia, a definio de abismo deve ser, antes de
tudo, o que no tem fundo, o mais recndito, o vertiginoso e
soterrado; mas disso no se desprende que as entranhas da terra infernos, cavernas, grutas - sejam o nico lugar em que se possam
localizar o primordial. Por uma ambiguidade comparvel do adjetivo
altus, que tanto valia em latim para o alto como para o profundo, o
abismal tambm pode estabelecer a sede de sua supremacia no Cu
das Ideias ou da transcendncia divina. (DLLENBACH, 1991, p.
208-209)23
23
DLLENBACH "De conformidad con la etimologa, el emplazamiento del abismo debe ser,
ante todo, lo que no tiene fondo, lo ms recndito, lo vertiginoso y soterrado; pero de ello no se
desprende que las entraas de la tierra - infiernos, cavernas, gutas - sean el nico sitio en que
puede localizarse lo primordial. Por una ambiquedad comparable a la del adjetivo altus, que tanto
vala en latn para lo alto como para lo profundo, lo abismal tambin puede establecer la sede de
su supremaca en el Cielo de las Ideas o de la trascendencia divina."
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observando apenas as reaes do rei, mas tambm as suas prprias. Virgnia Woolf
ao escrever tambm reflete sobre si, seus sentimentos, suas diferentes
possibilidades de ao, os personagens de "Mrs. Dalloway" so reflexos de si
mesma.
No documentrio A Ilha de Bergman (2006), da diretora Marie Nyrerd,
Ingmar Bergman relembra fatos que serviram de ponto de partida para seus filmes e
conta que dois deles salvaram sua vida: Persona (1966) e Gritos e Sussuros
(1972).
Antes de comear o roteiro de Persona, que segundo ele foi escrito no
tempo recorde de uma semana, Bergman se encontrava em um hospital, vtima de
um colapso nervoso. exatamente o que acontece com Elisabeth Vogler, a
protagonista do filme. Trata-se de uma atriz de carreira consolidada que sofre um
surto no palco, em uma apresentao de Electra, e internada em um hospital,
indisposta consigo mesma e com o universo ao seu redor. Em um momento do filme
se fala, atravs de outra personagem, da secreta podrido que habita seu interior.
Difcil, depois de ver a entrevista com Bergman, no associar crise pessoal do
realizador.
H uma espcie de estrutura em abismo no fato de se colocar dentro de
uma obra, no de maneira direta como fez Velsquez en "Las Meninas", mas como
um reflexo, Elizabeth Vogler seria assim um desdobramento do prprio Bergman,
mesmo que de maneira incongruente. So as contradies inerentes ao ser
humano, alguns artistas tm a capacidade de materializ-las.
O ponto de partida de Gritos e Sussurros outro. Bergman dizia ter sonhos
recorrentes com vultos de mulheres vestidas de branco em cenrios de paredes
vermelhas. Como exorcizar essa imagem em uma obra pode ter salvo sua vida?
Talvez nos auxilie na resposta a esta pergunta o fato de essas imagens terem
originado um filme de extrema densidade, um filme sobre a dor, o amor (ou o
desamor) em famlia, a sexualidade, a morte e a culpa.
47
Figura 12: frame de "Gritos e sussuros" (1972), de Ingmar Bergman
Atravs das quatro personagens de "Gritos e Sussurros" e das situaes
extremas a que so submetidas, Bergman foi capaz de tratar de temas que
seguramente so relevantes em sua prpria biografia. Temas, imagens que no
necessariamente seguem a ordem da realidade consensual, estariam mais prximos
da realidade psquica, das fantasias. Os sonhos nada mais so do que fantasias,
porm mais complexas, j que se do em nveis inconscientes. Ainda no texto de
Freud sobre os devaneios do escritor criativo:
Se geralmente permanece obscuro o significado de nossos sonhos, isto
por causa da circunstncia de que noite tambm surgem em ns desejos
de que nos envergonhamos; tm de ser ocultos de ns mesmos, e foram
conseqentemente reprimidos, empurrados para o inconsciente. Tais
desejos reprimidos e seus derivados s podem ser expressos de forma
muito distorcida. Depois que trabalhos cientficos conseguiram elucidar o
fator de distoro onrica, foi fcil constatar que os sonhos noturnos so
realizao de desejos, da mesma forma que os devaneios - as fantasias
que todos conhecemos to bem. (FREUD, 1907)
48
costumava esconder-se debaixo do mvel da sala. Relatos como esse nos permite
demonstrar como essas lembranas da infncia ainda no tinham encontrado uma
maneira ideal de representao para esses autores e o cinema foi o caminho
encontrado para sublim-las. Segundo Freud, a obra uma continuao, ou um
substituto, para o que foi o brincar infantil.
H um paralelo entre a me de Virgnia Woolf, Julia Stephen e o ponto de
partida de "Mrs. Dalloway". Julia, assim como Mrs. Dalloway, era mulher de
admirvel beleza e adepta ao rapaps da sociedade londrina. Virgnia escreve sobre
essa dona de casa vaidosa e altiva, que remete sua prpria me. Richard, o
personagem artista do filme "As horas", escreve sobre a me Laura Brown.
Figura 13: frames de "As horas" com os personagens de Virgnia Woolf e Richard
Figura 14: frames de "As horas", o personagem Richard em diferentes pocas
49
4. A literatura e o cinema
50
Figura 15: montagem feita a partir de frames de "As Horas"
H rimas audiovisuais, algumas mais diretas outras sutis, que passam
despercebidas ao apreciar a obra por primeira vez. Como exemplo de rima sutil est
a caracterizao do personagem Richard pela direo de arte e figurino. A roupa de
cama de sua infncia tem o mesmo tecido, de motivos espaciais na cor azul, que o
robe do personagem adulto, j em Nova York. Elementos que podem passar
despercebidos, mas que ajudam no processo inconsciente de identificao.
Figura 16: montagem feita a partir de frames de "As Horas"
Entre as rimas diretas, esto as diversas repeties entre gestos e aes
que permeiam a narrativa. Entretanto h uma especfica e muito interessante e
extremamente cinematogrfica, relacionada ao suicdio de Virgnia Woolf no rio e o
quase suicdio de Laura Brown em um quarto de hotel.
Virgnia busca a morte afogando-se em um rio, os bolsos cheios de pedras,
logo no incio do filme. As mesmas guas do rio, em um espelhamento potico,
invadem o quarto de hotel alugado por Laura Brown para ingerir uma quantidade
letal de comprimidos. Laura desiste do suicdio, mas rende uma bela sequncia em
abismo do filme. Talvez por ser to inslita, por mostrar concretamente uma viso
subjetiva da realidade, um tempo interior, um sentimento.
51
Figura 17: montagem feita a partir de frames de "As Horas"
O filme completa seu ciclo de um dia, a espiral do tempo se conclui. O final
remonta ao comeo, as personagens esto de volta cama, mas agora para dormir
aps a saga contida em um nico dia, em que estiveram submetidas s mais
diversas e intensas situaes.
Adianto o personagem principal do captulo seguinte, Andrei Tarkovski, por
acreditar que de forma sinttica ele trata de um tema que cabe perfeitamente
essncia cinematogrfica e digresso dessas personagens femininas de "As
Horas": "Justapor uma pessoa a um ambiente ilimitado, confront-la com um nmero
infinito de pessoas que passam perto e longe dela, relacionar uma pessoa ao mundo
inteiro: esse o significado do cinema" (TARKOVSKI, 1990, p. 75). Trata-se de um
pensamento essencialmente cinematogrfico, interessante perceber como
possvel retratar visualmente essas cavernas escavadas por Virgnia Woolf para os
personagens de seus livros, sem sair do limite do que est acima da terra.
52
1. Traumas e geraes
53
atitudes dela, da sada do pai no perodo da Segunda Guerra Mundial e segue com
os reflexos encontrados entre as passagens da infncia e a vida adulta do
protagonista, a difcil relao com sua ex-mulher e com seu filho Ignat. No h uma
trama linear a seguir, um plot, os temas variam ao longo da narrativa. O Aleksei
adulto, nos anos sessenta, relembra os fatos, em conexo direta com a prpria
biografia de Andrei Tarkovski. Por razes como essas, "Espelho" considerado o
filme mais auto-biogrfico do diretor.
54
Esse um tempo passado, o que fica claro pela cena seguinte, em que
Aleksei, em uma conversa de telefone, pergunta me sobre o ano daquele
incndio, 1935 a resposta. Aleksei, que em nenhum momento aparece no filme,
pergunta tambm sobre o ano em que seu pai deixou a casa, 1935 tambm a
55
Figura 20: frame de "Espelho" com a garota ruiva
56
Vida, Vida
No acredito em pressentimentos, e augrios
No me amedrontam. No fujo da calnia
Nem do veneno. No h morte na Terra.
Todos so imortais. Tudo imortal. No h por que
Ter medo da morte aos dezessete
Ou mesmo aos setenta. Realidade e luz
Existem, mas morte e trevas, no.
Estamos agora todos na praia,
E eu sou um dos que iam as redes
Quando um cardume de imortalidade nelas entra.
Vive na casa - e a casa continua de p
Vou aparecer em qualquer sculo
Entrar e fazer uma casa para mim
por isso que teus filhos esto ao meu lado
E as tuas esposas, todos sentados em uma mesa,
Uma mesa para o av e o neto
O futuro consumado aqui e agora
E se eu erguer levemente minha mo diante de ti,
Ficars com cinco feixes de luz
Com omoplatas como esteios de madeira
Eu ergui todos os dias que fizeram o passado
Com uma cadeia de agrimensor, eu medi o tempo
E viajei atravs dele como se viajasse pelos Urais
Escolhi uma era que estivesse minha altura
Rumamos para o sul, fizemos a poeira rodopiar na estepe
Ervaais cresciam viosos; um gafanhoto tocava,
Esfregando as pernas, profetizava
E contou-me, como um monge, que eu pereceria
Peguei meu destino e amarrei-o na minha sela;
E agora que cheguei ao futuro ficarei
Ereto sobre meus estribos como um garoto.
57
S preciso da imortalidade
Para que meu sangue continue a fluir de era para era
Eu prontamente trocaria a vida
Por um lugar seguro e quente
Se a agulha veloz da vida
No me puxasse pelo mundo como uma linha
Arseni Tarkovski (apud TARKOVSKI, 1990, p.169)
2. Realidade. Realidades.
58
59
60
Segundo Nelson Coelho Junior (1995, p. 21), "a realidade externa seria
ento inquestionvel, sendo questionvel apenas a apreenso que cada um realiza
dessa realidade". O artista transforma suas fantasias em novas verdades e assim
pode realizar seus desejos. talo Calvino, em seu ensaio "Nveis de realidade na
literatura", afirma que a arte no reconhece a realidade como tal, mas simplesmente
nveis.
Se existe a Realidade, da qual os vrios nveis so apenas os
aspectos parciais, ou se existem apenas os nveis, algo que a
literatura no pode decidir. A literatura reconhece a realidade dos
nveis, e esta a realidade que conhece melhor, talvez por no ter
chegado a entend-la por outro processo cognitivo. E isto j uma
grande coisa. (COELHO JUNIOR, 1995, p. 21)
24
61
25
http://revistapercurso.uol.com.br/pdfs/p23_texto11.pdf
62
3. Zonas de representao
No filme, essas lembranas alcanaram representao, no ouso discutir a
cura, como tratada na clnica psicanaltica, apenas evidencio atravs do relato do
diretor a constatao de que um fantasma, uma sombra se dissipou. O interessante
perceber como o autor construiu o relato a partir de diversos nveis de realidade de
uma estrutura espelhada e a coerncia que reside nessa opo esttica. Une-se
organicamente ao tema e fundamental para alcanar o objetivo de envolver o
espectador.
Ao falar das Lembranas Encobridoras (1899), Freud nos fala de um tipo
de lembrana que "deve seu valor enquanto lembrana no a seu prprio contedo,
mas s relaes existentes entre esse contedo e algum outro que tenha sido
suprimido."
63
64
Freud.
Nossas
lembranas
so
um
terreno
dinmico,
vivo,
de
65
26
66
Figure 25: frame do filme "Solaris" (1972), de Andrei Tarkovski
Zizek toma como exemplo o filme "Solaris" (1972) de Andrei Tarkovski,
baseado no romance de Stanistaw Lem. O personagem principal o psiclogo
Kelvin, enviado como passageiro de uma nave espacial pairando sobre um planeta
recm descoberto, Solaris. Entre as coisas estranhas que acontecem, a principal a
materializao da mulher de Kevin, Harey, que havia se suicidado anos atrs aps
ele a ter deixado.
Por mais que Kevin tente eliminar Harey, ela retorna em ressurreies
sucessivas, rematerializada, at que Kevin compreende tratar-se da materializao
67
68
Figure 26: frame de "Stalker" (1979), de Andrei Tarkovski
69
70
Figura 27: montagem de frames do plano final de "Espelho"
Nesse mesmo instante, Aleksei se detm e grita, como chamasse por
algum. Percebemos o pr do sol ao fundo, Aleksei no se demora, tampouco olha
para trs onde est a me jovem, acelera o passo e volta a se unir sua irm e sua
me idosa. A jovem deixa de existir no quadro, a cmera, ainda no mesmo plano,
entra pelo bosque, cruzando com os troncos das rvores enquanto capta a famlia
se perdendo na paisagem.
71
Figura 28: frame de "Espelho" com o garoto Ignat
O espiralar do tempo est tambm nas falas dos personagens. O menino
Ignat conta me que sente um deja vu. O que o autor quer nos dizer? Esse filho
estar repetindo a histria do pai? So mistrios como os da construo de nossa
memria. Segundo Halbwachs:
72
Figure 29: frame de "Espelho" com a me de Aleksei j idosa
27
http://www.novomilenio.br/comunicacoes/1/artigo/11_gabriela_alves.pdf
73
O mesmo tema tratado por Lus Claudio Figueiredo (2003):
Na experincia esttica, esse jogo est a servio de uma
permanente renovao do processo perceptivo, deixando
repetidamente o espectador diante da tarefa de acolher o inaudito e
elaborar o enigma, abrindo novos percursos perceptivos e
simblicos, mas, ao fim e ao cabo, fracassando sempre.
(FIGUEIREDO, 2003, p. 64)
74
Espelhos de diferentes formatos e tamanhos, ao redor deles, a discusso
gira sobre o carter letal de certas lembranas e remorsos. Na parede, esto
estampados os signos que nos acompanharam por todo o filme. Depois do que
vimos, somos testemunhas do passado do personagem e de sua libertao. Agora
est livre para morrer, e o autor se vale ento de uma nova metfora, a do pssaro
que o morimbundo liberta de suas mos.
Essa mesma metfora serve para o autor; a libertao tambm dele. Por
essa razo, Espelho to complexo, to rico em detalhes e mistrios, so senhas
para adentrar em traumas e experincias muito pessoais de Tarkovski. Cabe
75
lembrar que o prprio Tarkovski que atua nessa cena, embora no aparea seu
rosto, conforme podemos comprovar pela imagem a seguir.
Figura 32: Andrei Tarkovski durante filmagem de "Espelho" http://laquoiboniste.blogspot.com.br/2011/04/birds-of-feather.html
Gabriela Santos Alves atesta que a funo da memria est em preservar
elementos que permitem ao indivduo a manuteno de sua identidade e uma
sensao de continuidade. Alves cita Walter Benjamin e sua teoria da memria,
comparando nossa relao com o passado
a um trabalho de recolher os destroos da histria (que seria para
ele uma nica catstrofe), as runas, em parte soterradas, que
guardam o esquecido. Aquele que recorda se choca com o segredo
que o esquecido encerrava. Talvez o que [...] faa [o esquecido] to
carregado e prenhe afirmou em seu livro Infncia em Berlim
no seja outra coisa que o vestgio de hbitos perdidos, nos quais j
no poderamos nos encontrar. Talvez seja a mistura com a poeira
de nossas moradas demolidas o segredo que o faz sobreviver.
(BENJAMIN apud ALVES, 1987, p. 5)28
O trabalho citado de Alves versa sobre Chris Marker, diretor que ser tema
do prximo captulo. Cabe lembrar que Chris Marker realizou um filme sobre Andrei
Tarkovski: "Um dia na vida de Andrei Arsenevitch" (2000). No filme, esto imagens
28
ALVES, Gabriela Santos. Souvenirs de Chris Marker: memria, tempo e histria em La jete
http://www.novomilenio.br/comunicacoes/1/artigo/11_gabriela_alves.pdf
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77
Com o ltimo filme a ser analisado nesse trabalho, pretendo mostrar duas
variaes da estrutura em abismo no cinema. A primeira que o relato especular
pode estar presente tambm no documentrio atravs das diferentes combinaes
de um material. A segunda variao diz respeito aos nveis de realidade, neste
exemplo veremos que vo alm de variaes de tempos presentes e passados
como vimos nos captulos anteriores, mas tambm podem representar projees
rumo ao futuro. Por ltimo, tratarei do uso do som, na tentativa de evidenciar que a
trilha sonora de um filme tambm pode ter uma estrutura abismal. Para tratar de
todos esses temas, o filme analisado ser "Sans Soleil", de Chris Marker.
1. O ensaio e a memria
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Estamos diante de uma espcie diferente de cinema, que leva reflexo, que
prope ideias novas ao juntar imagens antigas. Esse tipo de filme foi definido
algumas vezes como cinema de ensaio.
Tomemos o artigo de Arlindo Machado (2009, p.21) a respeito do filme
ensaio, ele trata primeiramente do conceito de ensaio em si: "Denominamos ensaio
uma certa modalidade de discurso cientfico ou filosfico, geralmente apresentado
em forma escrita, que carrega atributos amide considerados "literrios", como a
subjetividade do enfoque, a eloquncia da linguagem e a liberdade de pensamento".
Segundo Adorno (apud Machado, 2009, p. 21-22): "o ensaio a forma por
excelncia do pensamento no que este tem de indeterminado, de processo em
marcha em direo a um objetivo que muitos ensastas chamam de verdade". Esse
processo em marcha e essa busca por algum sentido maior, aqui denominado
verdade, justamente a essncia da estrutura em abismo. Se pensamos nos
exemplos anteriores, de "Hamlet" a "Las meninas", de "As Horas" a "Espelho", so
obras com um processo em movimento e com um foco essencialmente
existencialista.
Machado
remonta
ento
ao
construtivismo
russo
para
continuar
conceituando o filme ensaio. Segundo ele, esse jogo pode ter sido iniciado em
Serguei Eisenstein.
A montagem conceitual por ele concebida uma forma de enunciado
audiovisual que, partindo do "primitivo" pensamento por imagens,
consegue articular conceitos com base no puro jogo potico de metforas
e metonmias. Nela, juntam-se duas ou mais imagens para sugerir uma
nova relao no presente nos elementos isolados. Assim, atravs de
processos de associao, chega-se ao conceito abstrato e "invisvel",
sem perder todavia o carter sensvel dos seus elementos constitutivos.
(MACHADO, 2009, p. 26)
79
acordo com o que diz Machado. Segundo ela, Marker tambm foi pioneiro ao
integrar impresses subjetivas em seus filmes, e tambm inovou pela liberdade de
tom ao refletir sobre o que filmava.
Entramos de volta no que chamamos de subjetividade do artista no segundo
captulo desse trabalho. Os filmes de Marker esto impregnados de seu mundo
interior. Por se tratar de imagens documentais e no construdas a partir de um
roteiro de fico, essa caracterstica se faz mais evidente. Lins o caracteriza por
propor conversas ntimas e francas com o espectador e conceitua, a partir do "efeito
Kuleshov", o que ela vai denominar "efeito Marker": "efeito que explicita de forma
contundente aquilo que de fato importa em toda e qualquer obra, documentrio ou
fico: a posio de sons e imagens na composio final do filme em detrimento de
eventuais mritos de um ou outro plano como registro do real." (LINS, 2009, p.36)
Lins ainda refora esse carter ensastico pela maneira como Marker se
apropria criticamente de materiais preexistentes, por interrogar as imagens e colocar
em questo o prprio filme. Tomemos a cena de abertura.
O primeiro plano do filme mostra trs crianas islandesas em um campo. O
cineasta reflete sobre essa imagem e a montagem do filme:
A primeira imagem de que ele me falou, foi a de trs crianas em
uma estrada na Islndia, em 1965. Ele disse que, para ele, era a
imagem da felicidade. Ele tentara inmeras vezes associ-la a
outras imagens, mas no conseguira. Ele me escreveu: Preciso
80
A nica imagem usada por Marker na abertura do filme para associar das
crianas a de um porta avies. Por que seria essa imagem capaz de transmitir
felicidade? Ao visitar outros filmes de Marker, podemos perceber que o plano acima
faz parte do mesmo material da primeira sequncia de "Loin du Vietnam" (1967) e
retrata os americanos se preparando para bombardear cidades vietnamitas.
A liberdade e o efeito de associar essa imagem a das trs crianas
islandesas a essncia do que se considerou acima o tom ensastico de Chris
Marker. Antes das imagens, h um cartela negra com uma citao de Racine: "A
distncia entre pases conserta em certo modo a excessiva proximidade dos
tempos" (Racine, segundo prefcio a "Bayaceto").
O diretor associa Vietn e Islndia para depois associar Japo e GuinBissau. Em toda sua obra, pode-se notar que Marker foi um grande estudioso da
memria, de seus caminhos obscuros e aparentemente aleatrios, mas sobretudo
associativo, abrindo espao para uma reflexo sobre a semelhana entre a
construo de um filme e a construo da memria.
29
MARKER, Chris. Sans Soleil (1982)
81
TORRES,
Bolvar
La
Jete
&
Sem
Sol.
Contracampo
http://www.contracampo.com.br/86/dvdlajetee.htm 20.07.2013
31
idem
Revista
de
Cinema.
82
sentido para o qual ela se dirige." O resultado vertigem, a vertigem do abismo, que
tambm a vertigem da memria.
A enumerao proposta por Giraudoux vai ao encontro a uma das hipteses
desse trabalho, que a estrutura em abismo se organiza em torno dos afetos, de
alguma maneira obedece a uma elaborao muito mais de carter intuitivo que
racional.
Ronaldo Entler (2009, p. 46), em "Memrias fixadas, sentidos itinerantes",
afirma que Marker parte de uma ideia simples, que as imagens da memria no so
definitivas, pertencem a um campo aberto de significados e se afetam pelos diversos
tipos de linguagem com que se relaciona, a msica, a narrao, fotografia, pintura.
A imagem no a resposta nica, sequer mltipla, oferecida ao olhar
que interroga o passado, mas um elemento constitutivo da prpria
pergunta que nos move e que, desde o passado, no cessa de ser
formulada. Ela no preenche as lacunas da memria. Ela apenas
detm o olhar numa de suas beiradas, ajudando a dar impulso para o
salto que leva o olhar ao passado, por caminhos que nunca so
contnuos e lineares. Uma narrativa constituda desse modo, a partir
de vestgios incompletos como runas, ser feita, como propunha
Walter Benjamin, de solavancos, asperezas e arestas, uma narrativa
que permanece esburacada. (GAGNEBIN apud ENTLER, 2009,
p.46)
83
84
Sans Soleil est construdo por memrias: dos autores das imagens, do
diretor,
do
espectador.
Tornamo-nos
viajantes
em
um
tempo
espao
ALVES, Gabriela Santos. Souvenirs de Chris Marker: memria, tempo e histria em La jete
http://www.novomilenio.br/comunicacoes/1/artigo/11_gabriela_alves.pdf
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88
Para esse tema recorrerei a uma fico, que inclusive, apesar da extensa
filmografia documental de Marker, seu filme mais conhecido: o curta metragem "La
jete" (1962). Trata-se de uma fico cientfica, cujo protagonista viaja ao passado e
ao futuro na tentativa de desvendar um lapso de sua memria. O filme composto
de fotos fixas, outra vez uma combinao complexa entre imagem, sons e narrao.
No vou me deter na obra em si, que objeto de vasto estudo acadmico, no
entanto, cabe ressaltar que esse curta evidencia uma caracterstica tambm
presente em "Sans Soleil": o fluxo de conscincia.
89
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91
Emi Koide cita o prprio Chris Marker comentando sobre o filme de
Hitchcock, desta vez em "Inmemory".
"Vertigo" a histria de um homem que no suporta mais essa ditadura
da memria: o que foi, foi, e ningum pode mudar mais nada. Ele quer
mudar. Ele quer que atravs das aparncias, uma mulher morta retorne
viva, e quer simplesmente vencer o tempo. Loucura talvez, mas uma
loucura que nos fala. Nenhum filme jamais mostrou a esse ponto que o
mecanismo da memria, se ns o desregramos, pode servir a toda uma
outra coisa do que para se lembrar: para reinventar a vida, e finalmente
vencer a morte. banal dizer que a memria mentirosa, mais
interessante ver nesta mentira uma forma de proteo natural que
podemos governar e modelar. s vezes, isto se chama arte. (MARKER
apud KOIDE, 2009, p. 53)
33
92
93
94
95
Figura 40: montagem de frames da sequncia do barco de "Sans Soleil"
H um tema musical eletrnico no incio do filme que introduzido em uma
viagem de barco, em que vrios passageiros dormem, e provavelmente sonham,
como os passageiros do metr, mais adiante no filme. Esse tema regressa em
ciclos, espirais: do barco, passa por uma manifestao popular no Japo, tempos
depois serve de tema para trabalhadores africanos em um porto. Na primeira
imagem apresentada da frica, seguimos com a mesma trilha sonora eletrnica da
sequncia anterior do barco no Japo. Entretanto, pode-se ouvir ao fundo um
instrumento de cordas com uma msica africana. Mais adiante no filme, a msica
tocada por esse instrumento, que antes poderia ser levemente percebida ao fundo,
passa a ocupar o primeiro plano em uma sequncia mais naturalista em GuinBissau.
Chris Marker usa a trilha sonora como um quebra-cabea, talvez com a
inteno de acessar nossos mecanismo de percepo e criar uma familiaridade
96
inconsciente com o que estamos vendo. Cria uma diversidade de leitmotivs, que
convoca ao mesmo tempo a razo e o instinto do espectador para tentar encaix-los
na narrativa como tal. Assim como se d com os autores das imagens que so
usadas no filme, ou como o personagem Scott, de "Vertigo", estaramos, como
espectador, regressando a lugares de nossas memrias.
No h conduta narrativa clara no tratamento da trilha sonora do filme, o que
no quer dizer que no haja dramaticidade nessa construo. Chris Marker parece
consciente do poder dramtico, sensorial dos sons ambientes. Eles, de certa
maneira, so responsveis por dar o tom da obra. Importam muito mais pela
maneira como soam do que pelo que so capazes de caracterizar o lugares
retratados.
H poucos momentos em que se nota a inteno de reproduzir atravs do
som, o ambiente das locaes. Entre eles esto os dois desfiles de rua, o do Japo
e o de Guin-Bissau.
Figura 41: frames de "Sans Soleil" retratando festas populares no Japo e na frica
Tratam-se
de
manifestaes
populares
completamente
opostas
97
98
caracterizar
as
vozes
da
narrao
em
"Sans
Soleil",
como
se
Dllenbach. "Aadamos a esto que - al presente como expresin quintaesenciada de un orden textual - la
realidad originaria casi siempre se expone a coincidir con un escrito cuya autenticidad est fuera de toda duda
(manuscrito, pergamino, carta autgrafa), o con una expresin integral (voz, canto, msica) que sea, a la vez,
fundadora y melodiosa; y que, en la medida en que el texto experimenta como carencia el absoluto que se le
impone, su retrica no tiene ms remedio que relegar este a la ultratumba, en una antecedencia fictcia que
confiere al presente la apariencia de tiempo defasado en que se produce la prdida irremediable, pero tambin
del recuerdo, de la lejana escucha, del desciframiento y de la evocacin restitutiva (y sustitutiva) de ese origen
cuyo monumento conmemorativo no poca veces es un sepulcro."
99
5. A ltima carta?
100
No momento em que nos deparamos novamente com a imagem, j
estamos impregnados de todas as sensaes causadas ao longo do filme, revemos
as trs crianas e adicionamos ao seus sentidos o que "carregvamos" no comeo e
o que ganhamos no caminho, o resultado no mnimo reflexo. E um atestado de
que o tempo espiralar pode ser artisticamente representado.
O conceito da narrativa em abismo de Andr Gide casa perfeitamente com a
obra de Chris Marker. H uma passagem em "Sans Soleil" em que o autor das
cartas cita a televiso japonesa, que quando a v por muito tempo, lhe d a
sensao de ser visto pela televiso. Como o abismo de Nietzche que, aps algum
tempo, tambm nos contempla ao ser contemplado. Sans Soleil provoca em ns
esse mesmo efeito.
Figure 43: frame de "Sans Soleil" com imagens da tv japonesa
101
Figura 44: montagem de frames do filme "Sans Soleil"
102
Captulo V - Concluso
Neste trabalho, tratei dos espelhos e abismos para discutir filmes com
mltiplos nveis de realidade. Os trs filmes escolhidos foram colocados em uma
estrutura abismal para que assim fosse possvel demonstrar similaridades onde, a
princpio, elas no existiriam. Atravs de "As Horas", me detive no tema da viagem
interior, rumo alma, rumo conscincia; com "Espelho", uma viagem rumo ao
passado, s estradas esburacadas da memria; e com "Sans Soleil", uma viagem ao
futuro, atravs de uma anlise do presente, da cultura e da histria da humanidade.
Em nenhum momento a inteno foi desvendar a verdade por trs dos
filmes, o intuito discutir a maneira como tais filmes foram estruturados. Em certo
ponto, conformar-se com o mistrio pode ser a melhor maneira de encarar os filmes,
degustando e questionando as sensaes provocadas em ns pelas imagens e
eventos que nos so apresentados. Aceitando assim os ensinamentos de Bergson
sobre a dificuldade de se estabelecer limites entre passado e presente quando o que
est em jogo a alma, o esprito.
O que realmente faz-se relevante perceber que o cinema um terreno
frtil para representar essas camadas subterrneas da existncia, em que as aes
no se do apenas no plano da realidade consensual, mas tambm em um plano
psicolgico. Com esse intuito, assim como Virgnia Woolf, vrios cineastas
escavaram cavernas para seus personagens em narrativas em abismo, criando um
tipo de estrutura que, em literatura, encontraria parentesco com o fluxo de
conscincia e com a poesia.
Alguns dos nveis de realidade surgiriam a partir das possibilidades de vida
imaginadas pelos personagens. Tomemos como exemplo "As Horas". As trs
personagens do filme no deixam de ser possibilidades, realidades mltiplas da
fictcia Clarissa Dalloway. A personagem do livro de Woolf vive um conflito interno,
uma angstia ao imaginar os outros caminhos possveis que se desenhariam a partir
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Bibliografia
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Filmografia relacionada
A Ilha de Bergman (Bergman Island). Direo: Marie Nyrerd. SVT Nje, Sveriges
Television (SVT), 2006.
A Infncia de Ivan (Ivanovo Detstvo). Direo: Andrei Tarkovski. Mosfilm, 1962.
As esttuas tambm morrem (Les statues meurent aussi). Direo: Chris Marker,
Alain Resnais. Prsence Africaine et Taducinma, 1950.
As Horas (The Hours). Direo: Stephen Daldry. Paramount, Miramax, 2002.
Cartas da Sibria (Lettre de Siberie). Direo: Chris Marker. Argos & Procinex,
1958.
Espelho (Zerkalo) Direo: Andrei Tarkovski. Mosfilm, 1974
La Jete . Direo: Chris Marker. Argos Film, 1962.
Le Mystere Koumiko. Direo: Chris Marker. Sofracima Apec Ortf, 1965 .
Level Five. Direo: Chris Marker. Argos & Les Films De Lastrophore, 1996.
Loin Du Viet-Nam. Direo: Chris Marker. Sofracima, 1967.
Mrs Dalloway. Direo: Marleen Gorris. First Look International, 1997.
113
Nostalgia (Nostalghia). Direo: Andrei Tarkovski. Opera Film Produzione, Rai Due,
1983.
O guia pervertido do cinema (The Pervert's Guide to Cinema). Direo: Sophie
Fiennes. Amoeba Film, Kasander Film Company, Lone Star Productions, Mischief
Films, 2006.
O Sacrifcio (Offret). Direo: Andrei Tarkovski. Svenska Filminstitutet (SFI), Argos
Films, 1986.
Sans Soleil. Direo: Chris Marker. Argos, 1982.
Solaris (Solyaris). Direo: Andrei Tarkovski. Mosfilm, 1972
Stalker. Direo: Andrei Tarkovski. Mosfilm, 1979
Um dia na vida de Andrei Arsenevitch (Une Journee Dandrei Arsenevitch).
Direo: Chris Marker. Amip, 1999 .
Vertigo. Direo: Alfred Hitchcock. Paramount, 1958.