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Travessia de Banzeiros. Historicidade e Organização Sociopolítica Apiaká
Travessia de Banzeiros. Historicidade e Organização Sociopolítica Apiaká
Travessia de Banzeiros. Historicidade e Organização Sociopolítica Apiaká
Travessia de Banzeiros.
Historicidade e organizao sociopoltica apiak
Banca Examinadora:
Alcida Rita Ramos (Presidente) (DAn/UnB)
Carlos Fausto (PPGAS/Museu Nacional)
Karenina Vieira Andrade (Prodoc-DAn/UnB)
Patrcia de Mendona Rodrigues (consultora/Funai)
Roque de Barros Laraia (DAn/UnB)
Jos Vieira Pimenta (Suplente) (DAn/UnB)
Braslia
Maio de 2009
Maloca apiak na margem do rio Juruena, 1828. Aquarela de H. Florence (ao fundo,
homens navegando numa canoa de casca de pau)
Sumrio
Resumo
Abstract
Convenes
Para os nomes das aldeias, utilizo a grafia preferida pelas pessoas influentes
apiaks: Mairowy e Mayrob.
Os nomes dos povos indgenas citados respeitam as normas da lngua
portuguesa, inclusive o plural.
Os apiaks chamam de Par toda a regio a jusante da cachoeira Rasteira,
incluindo a margem esquerda do rio Teles Pires, que oficialmente pertence ao estado do
Mato Grosso, mas que disputada h um sculo com o estado do Par, e de Mato
Grosso apenas a rea da bacia do Juruena, que compreende o Rio dos Peixes. Grafo
esses topnimos em itlico para respeitar e enfatizar a percepo geopoltica dos
indgenas.
Para grafar os graus de parentesco, utilizo a conveno de iniciais em
portugus, com letras minsculas indicando mulher e letras maisculas indicando
homem.
De acordo com A. Padua (2007), a lngua apiak conta com seis vogais: a, e, i,
o, u, y. As vogais nasais so grafadas com til. O acento agudo marca a slaba mais
intensa da palavra. O y uma vogal central alta, que no existe nas lnguas de origem
latina. As consoantes so as seguintes:
Agradecimentos
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11
Introduo
reconfigurada na primeira metade do sculo XX, e que a luta para recuperar parte de seu
territrio tradicional alimentada pela hostilidade demonstrada pelos kaiabis. Neste
sentido, a necessidade de inimigos e a memria da vingana entendida como dispositivo
de estabelecer as bases para relaes futuras (Viveiros de Castro & Carneiro da Cunha
1986) constituem uma forma cultural persistente na histria dos apiaks.
Ao longo da tese, as noes nativas de mistura, comunidade,
civilizao, ndios mansos, ndios bravos e gente que vira bicho sero tratadas
como expresses da historicidade e da socialidade apiak.
Tive a chance de assistir confeco de uma dessas canoas na aldeia Mayrob, numa atividade curricular
organizada por um professor apiak (ver Anexos), que pretendia que os velhos ensinassem aos alunos
alguns aspectos da cultura apiak (expresso que os professores no se cansam de repetir). Ela muito
parecida com a ywir pirra tenetehara (Wagley & Galvo 1961:218), a diferena residindo no fato de
que os apiaks no derrubam a rvore (arapari) para retirar a casca, mas montam um jirau alto e destacam
a casca usando cunhas. As canoas de casca de pau j no so utilizadas atualmente; os apiaks fabricam a
canoa monxila, de itaba ou louro, para uso cotidiano. Esta canoa, chamada de ub, normalmente conta
com um joo-de-pau, uma estrutura de madeira acoplada verticalmente popa, que fica submersa e
funciona como leme, permitindo a um nico homem, que fica na proa, dirigir a embarcao. Devo esta
observao tcnica ao antroplogo Aloir Passini.
2 Muitos autores referem-se ao rio Juruena como alto Tapajs e ao Teles Pires como So Manoel,
mas utilizarei aqui as designaes Juruena e Teles Pires para me referir aos principais formadores do
Tapajs, tal como fazem os apiaks no presente e tal como foram consagradas pela geografia no sculo
XX.
14
De acordo com Machado de Oliveira (1898: 101), uma informao difcil de comprovar.
15
Este desejo foi em parte estimulado pela publicao, organizada pelo Instituto Socioambiental, da tese
de G. Grunberg (2004) sobre os kaiabis.
5
Comprovou-se a existncia de quatro falantes plenos de apiak, todos eles com mais de cinquenta anos;
convivi mais intensamente com dois deles, siblings de sexos opostos.
16
Alm da Serra dos Apiacs, do Pontal dos Apiaks e do municpio de Apiacs (MT), h dois rios
Apiacs, um que faz barra no curso mdio do Teles Pires, outro, no curso baixo do Arinos.
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A regio dos formadores do Tapajs constitui uma rea cultural tupi. Em
linhas gerais, os tupis so povos agricultores, que estabelecem aldeias grandes e
permanentes e se expandem pelo territrio em ritmo lento, sem abandono total do
assentamento de origem (Noelli 1996). A organizao social tem sido caracterizada por
alguns antroplogos como patrilinear e patrilocal, com possibilidade de uxorilocalidade
temporria e existncia de metades (Laraia 1971); a relao entre sogro e genro
constitui o ponto de apoio da famlia extensa, unidade social mais importante
(Fernandes 1949; Schaden 1962; Viveiros de Castro 1986). Hlne Clastres (1978)
afirmou que a ciso radical entre os domnios poltico e religioso um trao tupiguarani marcante; endossando esta afirmao, Viveiros de Castro (1986) estudou a
concepo dualista da alma para os tupi-guaranis, que contempla um aspecto ligado
animalidade e outro ligado divindade. Tais povos so conhecidos pela frouxido
morfolgica combinada a um rico e complexo universo cosmolgico. Podemos dizer,
ainda, que as sociedades tupi-guaranis so sociedades performativas (Sahlins 1990),
dinmicas e abertas ao evento (Viveiros de Castro 1986).
Os tupis amaznicos mais conhecidos so: akwwa (assurini do Tocantins e
parakan), arawet, assurini do Xingu, cinta-larga, guaj, juruna, kamayur, karitiana,
kayabi, kawahib (subgrupos parintintin, tenharim e uru-eu-wav-wav), munduruku,
sater-maw, suru, tapirap, tenetehara (guajajara e temb), urubu kaapor, waipi e
zo. No Brasil Central, h os av-canoeiros (tupi-guaranis). O ramo tupi-guarani do
sul formado pelos subgrupos kaiov, mby, nhandeva, alm dos xets.
A. Mtraux (1979) props que a rea original de disperso dos tupi-guaranis
est entre a margem direita do Amazonas, o Paraguai, o Tocantins e o Madeira, hiptese
endossada por A. Rodrigues em sua reconstruo do proto-tupi-guarani, na qual indica
que as lnguas da famlia tupi-guarani contemporneas so manifestaes diferenciadas
do que foi no passado uma mesma lngua, e que as propriedades por elas
compartilhadas so a herana comum conservada sem diferenciao ou apenas com
diferenas menos profundas (1984/85: 34). O apiak classificado no ramo VI da
19
Os apiaks
O hiato entre os apiaks de papel do sculo XIX e os apiaks de carne e
osso com quem convivi gigantesco, como seria de esperar. O abandono da
antropofagia, o trgico declnio populacional, a renncia lngua e a tudo o que ela
implica certamente tiveram um impacto indelvel sobre o povo, porm o mais
surpreendente para mim foi encontrar pessoas altivas, alegres, pacatas e sempre
dispostas a estabelecer vnculos com forasteiros. Meus anfitries sobretudo os
homens influentes, mas no s eles deram-me a impresso de que no acreditam em
uma hierarquia relacional preestabelecida, agindo como se sempre fosse possvel
modificar as disposies do outro por meio da conversa, no apenas para obter ganhos
materiais, mas principalmente para consolidar alianas. como se qualquer aliado
fosse bom em princpio, a despeito da desconfiana que inexoravelmente se guarda em
relao a estranhos.
Uma das caractersticas mais marcantes da vida social apiak sua relao
com a gua. O rio fornece aos apiaks a base da alimentao cotidiana; o trecho
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21
regates,
patres
seringalistas,
particulares,
rgo
indigenista
agentes
governamentais.
Durante a pesquisa de campo, os caciques gostavam de me dizer que apiak
o nome de um marimbondo que, quando atacado, viaja longas distncias para se vingar
do agressor com uma ferroada dolorosssima: Ns somos muito bons, mas, se mexer
com a gente, ns revidamos. A ferrada da caba apiak a mais doda que existe,
advertiam. Embora E. Wenzel (1999) apresente outra definio para o nome apiak
uma variante do termo tupi apiaba, que significa pessoa, gente, homem ,
bastante significativo o sentido que os homens influentes decidiram enfatizar na
interao com os brancos. 7 J os kaiabis chamam os apiaks de tapy ysing, gente de
pele clara.
Os apiaks com quem convivi falam sobre guerra como o ltimo recurso em
situaes de conflito intenso, quando a diplomacia fracassa. Os apiaks dizem que j
no tm xams (o que no significa, absolutamente, que no acreditam em seres
sobrenaturais), mas, quando se sente necessidade de um, costuma-se pagar pelos
servios de xams kaiabis da aldeia Tatu (Rio dos Peixes) ou de outras etnias
provenientes do Parque do Xingu. Ainda que os apiaks reconheam que existem pajs
do bem, o termo paj em geral empregado como sinnimo de feiticeiro.
Desde o sculo XVIII, pelo menos, os vrios povos que ocupavam e
exploravam distintamente aquela poro da Amaznia meridional reagiram de formas
diversas ao avano dos colonizadores, cindindo-se, amalgamando-se e se combinando
em blocos micro-regionais misturando-se, portanto. Neste sentido, embora
focalizemos as narrativas e a forma de organizao social dos apiaks, estabelecemos
que elas devem ser inseridas numa teia de alianas, trocas e rivalidades que os ligam
aos mundurukus e kaiabis dos baixos cursos do Juruena e do Teles Pires, configurandose uma rede social regional (Heckenberger 2001: 91), a qual possibilitou em grande
medida a sobrevivncia dos apiaks como povo. Tal rede apresenta-se hoje como uma
trama de relaes polticas, comerciais e matrimoniais instveis e tensas, no interior da
qual a mistura, a despeito de ser um processo do qual participaram vrios povos
indgenas, mobilizada apenas pelos apiaks como categoria explicativa de um passado
marcado por turbulncias. A grande continuidade parece residir, pois, na necessidade da
troca com o exterior para a reproduo dos apiaks, um tema clssico nas pesquisas
7
Lembro que a palavra kawahiv (um etnnimo) tambm significa marimbondo (Nimuendaju 1963b:
284).
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23
A tese
Nas pginas que se seguem, buscarei integrar plenamente a histria
organizao sociopoltica e ao simbolismo apiak. As principais inspiraes tericometodolgicas so fornecidas pelos ensaios reunidos nas coletneas Pacificando o
Branco (Albert & Ramos 2002) e Time and Memory in Indigenous Amaznia
(Fausto & Heckenberger 2007), que endossam a premissa lvi-straussiana da abertura
24
Enquanto Fausto fala em consumo produtivo, Strathern fala em produo consumptiva, inspirandose em Christopher Gregory.
9 Em artigo posterior ao livro, Fausto tenta aproximar comensalidade e canibalismo, tratados como
formas distintas, mas dinamicamente articuladas, de produo de pessoas e da socialidade na Amaznia
(Fausto 2002: 7), estabelecendo um dilogo mais ntimo com a escola americanista britnica,
identificada proposta terico-metodolgica de Overing e seus ex-alunos. A concluso do texto enfatiza
a produo local de pessoas, que no havia sido devidamente explorada no livro: A questo tica na
Amaznia parece, assim, incidir antes sobre as relaes entre os parentes do que sobre as relaes entre
humanos e animais (Fausto 2002: 35; ver tambm Kirsch 2006).
26
10
O termo bicho refere-se a uma entidade ou ao sobrenatural; animal refere-se s espcies que
vivem na mata ou que so domesticadas.
27
Lefort (1979) define sumariamente historicidade como a relao geral que os homens mantm com o
passado e o futuro. Ele prope que todas as sociedades tm de se reproduzir a cada novo dia e que
nenhuma compreensvel nos limites de um presente, sugerindo que Coloquemo-nos o problema em
outros termos: admite-se que haja, em toda sociedade, acontecimento, transformao cultural e retomada
vvida do passado pelo presente; possvel dizer, porm, que a reao ao acontecimento, transformao,
retomada do passado tenha sempre a mesma significao? (Lefort 1979: 46) E prossegue ponderando
que na sociedade a transformao no a passagem de um estado para outro, mas o encaminhamento
deste debate que antecipa o futuro referindo-o ao passado. O que significa ainda dizer que o histrico no
reside no acontecimento enquanto tal ou na transformao enquanto tal, mas em um estilo das relaes
sociais e das condutas em virtude do qual h colocao em jogo do sentido (: 47).
12
Ao longo da tese, retomarei diversas vezes os valiosos insights de Strathern sobre a pessoa e o social na
Melansia.
28
povo.
No captulo 3, descrevo a vida em comunidade, concentrando-me na
socialidade domstica e atentando para a articulao da lgica da ddiva economia
capitalista na qual esto inseridos os apiaks mansos.
No captulo 4, estudo as concepes e prticas nativas relativas ao parentesco
e pessoa, focalizando as relaes de parentesco e a ideologia matrimonial atuais, com
ateno especial instituio do compadrio.
Finalmente, no captulo 5, sero analisadas a dinmica do salo, a conduta das
pessoas influentes, a fala poltica informal (fofoca) e os mecanismos de obteno de
prestgio; estudo ainda os modos de articulao entre as vrias aldeias, bem como sua
insero em estruturas mais amplas, no interior da rede social da regio do rios
formadores do Tapajs.
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Primeira Parte
Historicidade e Etnicismo
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Prlogo
Em entrevista concedida a D. Eribon em 1988, Lvi-Strauss declarou: Meu respeito pela histria, o
gosto que tenho por ela, provm do sentimento que ela me d de que nenhuma construo do esprito
pode substituir a maneira imprevisvel como as coisas realmente aconteceram. O acontecimento, em sua
contingncia, aparece-me como um dado irredutvel. A anlise estrutural deve (...) faire avec. (LviStrauss & Eribon 2005: 178).
14
Dentre vrios outros trabalhos alinhados com tais preocupaes, h que citar a impressionante
etnografia de M. Taussig (1987) sobre a elaborao xamnica da violncia do boom da borracha pelos
habitantes da regio do Putumayo (Colmbia), no incio do sculo XX.
34
15
Em entrevista concedida em 1995, Barth disse: Acho que de algum modo o impulso terico do meu
trabalho tem sido mostrar as variaes, e tentar encontrar maneiras de construir modelos a partir de
situaes empricas que no as distoram no sentido de torn-las homogneas (Barth 2000b: 209).
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pesquisas sobre mudana cultural, seria ento compreender de que maneira a cultura
reordenada enquanto ordena os eventos, ou seja, de que maneira a reproduo de uma
estrutura se torna sua prpria transformao. Neste sentido, a transformao estrutural
se d quando as categorias so expostas a uma revalorao pragmtica sem
precedentes; os valores adquiridos na prtica provocam efeitos sistmicos, alterando
radicalmente as relaes que configuram a estrutura (Sahlins 2008: 75).
Em 1988, a publicao da coletnea Rethinking History and Myth, reunindo
trabalhos sobre povos andinos e amaznicos, propunha pensar mito e histria como
modos complementares de conscincia social; analisando a forma como diversos povos
indgenas sul-americanos enfrentam situaes de contato, os vrios autores
demonstraram que, da perspectiva indgena, os modos de conscincia mtico e histrico
devem ser integrados em estratgias simblicas de compreenso e ao efetiva (Hill
1988: 14; Turner 1996). O artigo de A. Ramos (1988) sobre o movimento indgena no
Brasil esclarece que elaboraes singulares sobre o passado servem de base para a
atuao poltica no presente, evidenciando-se o panorama mais amplo em que se deve
inserir o caso apiak, ao qual a autora chama de indigenismo: um elaborado
construto ideolgico sobre alteridade e similaridade (sameness) no contexto da
etnicidade e da nacionalidade, de cuja constituio os indgenas participam ativamente
(Ramos 1998: 7).
A publicao da coletnea Histria dos ndios no Brasil, em 1992, sintetizou
esforos interdisciplinares no sentido de inserir os povos indgenas na histria do pas,
destacando sua agencialidade e apontando para a enorme complexidade das relaes
com os colonizadores, obscurecida pela histria oficial. Embora se partisse do
pressuposto de que a verso indgena da histria fonte importante de conhecimento
etnogrfico (Carneiro da Cunha 1992: 18), assumia-se que uma histria propriamente
indgena restava por ser feita (: 20). Fausto (1992) argumentou que os tupis
quinhentistas podem ser aproximados dos tupis amaznicos atuais devido forma no
elementar como elaboram a relao entre estrutura e evento, tomando este ltimo
como uma varivel estrutural, no como um elemento externo estrutura.
Pacificando o Branco, lanado em 2002, inaugurou uma aproximao efetiva
entre antropologia e histria, ao propor uma abordagem que articula as dimenses
histrica (processo colonial), poltica (estratgias de reproduo social) e simblica
(teorias da alteridade) embutidas tanto nas aes quanto nas interpretaes do contato
(Albert 2002: 10). Percebe-se nos vrios artigos ali reunidos o esforo de superar as
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velhas dicotomias entre mito e histria, sociedades quentes e sociedades frias, rito e
poltica, reproduo e transformao, estrutura e ao, em conformidade com as ideias
de M. Sahlins.
Mais recentemente, a coletnea Time and Memory in Indigenous Amaznia
comprova que a aproximao entre etnologia e histria continua enriquecendo o
pensamento antropolgico. Ao adotar uma perspectiva diacrnica, os autores se
questionam sobre as formas diversas como os povos indgenas conceitualizam a
mudana e se debruam sobre os regimes de historicidade (conceito inspirado em
Claude Lefort) engendrados pela prtica, no mbito de uma nova escala de interao
intertnica (Fausto & Heckenberger 2007: 4). A partir do dilogo com Sahlins, rejeitase a distino ontolgica entre os domnios sociolgico e cosmolgico e parte-se do
princpio de que a transformao parte constitutiva da permanncia (: 5). Ao
empregar a noo de transformao topolgica (uma reabilitao crtica da noo lvistraussiana de transformao estrutural), os autores pretendem evitar qualquer recurso
noo romntica de identidade, pensada como essncia e auto-similaridade atravs do
tempo, bem como ao conceito de conscincia. Seu objetivo ltimo fazer se
comunicarem histrias alternativas (: 19) num mundo onde elas esto cada vez mais
imbricadas.
Ao levar a srio a intencionalidade dos povos indgenas, estamos em melhores
condies de perceber que a abertura para o evento que os caracteriza exprimiu-se e
ainda se exprime numa multiplicidade de formas de resistncia e reinveno, fenmeno
que podemos chamar de resilincia social. Por outro lado, submeter as categorias
antropolgicas a um exame crtico nos habilita a reconhecer a diversidade da
experincia histrica, o papel do imprevisto e a plasticidade sociolgica e cosmolgica
dos povos indgenas, ajudando-nos, assim, a dissipar o sentimento de desconfiana
diante de situaes concretas que desafiam esteretipos muitos dos quais,
infelizmente, fundamentam categorias que norteiam aes governamentais e tm
repercusses concretas no destino desses povos.
Neste sentido, importante compreender que a mistura a que se referem os
apiaks consiste na combinao de um idioma corporal a modos de vida dispostos
simbolicamente num continuum espaciocultural. O aspecto que os apiaks sublinham
quando falam em mistura sua progressiva civilizao. Mistura designa, assim,
uma concepo de histria calcada no processo social de fabricao de corpos e pessoas,
concepo claramente transformacional e plstica.
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O fato de os apiaks ainda existirem como povo uma prova de resilincia que
inspira admirao ao mesmo tempo em que convida reflexo antropolgica. Para
compreender as continuidades que permitem a um conjunto de pessoas continuar se
pensando como povo culturalmente diferenciado, a despeito de contingncias histricas
enormemente adversas, preciso olhar para o modo singular como seus antepassados
enfrentaram importantes transformaes ao longo de um sculo e meio.
Na segunda metade do sculo XIX, com a chegada de elementos no-indgenas
atrados pelo boom da borracha regio dos formadores do rio Tapajs, os indgenas
foram recrutados como mo-de-obra para os seringais, passando a viver longe de suas
aldeias por perodos cada vez mais longos, estando sujeitos a epidemias e a desmandos
dos patres. Dessa forma, os apiaks ficaram espalhados e acabaram se casando com
migrantes nordestinos, negros e ndios de outras etnias, arregimentados pela frente
extrativista, processo que, segundo meus interlocutores, enfraqueceu sua unidade
poltica e levou ao abandono da lngua, dos rituais e de diversas tcnicas e elementos de
cultura material. Nos ltimos anos do sculo XIX, os apiaks foram alvo de violncias
e massacres promovidos por vrios coletores de impostos e patres, o que quase causou
a extino do povo. Ao longo do sculo XX, as raras referncias escritas aos apiaks
informam sobre sua aculturao ou extino, a despeito dos remanescentes e at
mesmo das evidncias de uma frao arredia do povo s margens do rio So Tom,
afluente oriental do Juruena (ver Figura 1.1).16
No balano sobre a situao dos povos indgenas no Brasil elaborado por D.
Ribeiro nos anos 1950 (Ribeiro 2002)17, os apiaks foram classificados como povo
16
Encontram-se breves referncias aos apiaks vivendo nos cursos mdio e baixo do Teles Pires na
segunda metade do sculo XX em Rodrigues (1994 a e b) e Schiavini (2006).
17 No levantamento de D. Ribeiro sobre a situao dos grupos indgenas brasileiros em 1900, os apiaks
e os mundurukus so classificados como de contato permanente com a sociedade nacional, enquanto
os kaiabis aparecem como isolados (Ribeiro 2002: 256). No levantamento de 1957, os kaiabis j
estariam mantendo contato permanente com a sociedade nacional, assim como os mundurukus,
enquanto os apiaks so dados como extintos (: 263). Os maws aparecem como integrados em
ambos os levantamentos, ao passo que os kokamas, considerados integrados em 1900, so
40
extinto, com base num relatrio da Comisso Rondon escrito pelo capito Manoel
Teophilo Costa Pinheiro (Ribeiro 2002: 263), e assim seriam considerados pelo rgo
indigenista oficial (e tambm pelos antroplogos)18 at os anos 1980, pelo menos,
quando se uniram a vrios outros povos indgenas no Mato Grosso para impedir a
construo de uma usina hidreltrica no salto do Rio dos Peixes (ver captulo 5).
O cruzamento entre textos produzidos pelos brancos e narrativas orais apiaks
absolutamente necessrio para se compreender o longo movimento de fragmentao
demogrfica e poltica, bem como a forma recente de organizao social do povo e o
discurso da identidade tnica proferido pelos homens influentes no presente.
Empregaremos o conceito de territorializao cunhado por J. P. de Oliveira para
explicar que os grupos tnicos so constitudos numa interao processada dentro de
um quadro poltico preciso, cujos parmetros esto dados pelo Estado-nao (Oliveira
Filho 1998: 55). Nesse sentido, teremos em mente que um fato histrico a presena
colonial que instaura uma nova relao da sociedade com o territrio, deflagrando
transformaes em mltiplos nveis de sua existncia sociocultural (: 54).
O presente esforo para apreender o modo como os apiaks elaboram
simbolicamente o tempo, a mudana, a cultura, a identidade e a relao com os brancos
pretende produzir um deslocamento, ainda que sutil, na forma como contada a histria
dos povos indgenas da regio dos formadores do Tapajs, no apenas no sentido de
ajudar a repensar a maneira como os historiadores registraram as relaes estabelecidas
naquela rea, mas sobretudo no sentido de instaurar, no presente, um dilogo entre
regimes de historicidade distintos, tal como proposto por Fausto & Heckenberger
(2007: 19), um dilogo que tambm venha a contribuir efetivamente, num futuro
prximo, para que se respeitem os direitos constitucionais desse povo.
18
41
A questo da mo-de-obra sempre foi um problema na Amaznia; a presena de escravos africanos era
nfima, em comparao com as provncias do sul e do nordeste. O recurso fora de trabalho indgena
foi motivo decisivo nos conflitos entre colonos e missionrios desde o sculo XVII.
44
A Aldeia dos Tapajs ou de Todos os Santos, fundada em 1665, tornou-se vila de Santarm em 1758,
um centro regional importante, transformado em cidade em 1848.
45
novos agrupamentos (Menndez 1992: 282), sendo que os muras (famlia lingustica
isolada), os sater-maws (tronco tupi) e os mundurukus (tronco tupi) parecem ter
constitudo por longo tempo uma espcie de escudo protetor para os povos que
ocupavam posio mais interiorana na rea Tapajs-Madeira (Menndez 1989: 334).
Por sua vez, o povoamento efetivo da capitania de Mato Grosso iniciou-se na
primeira metade do sculo XVIII, motivado pela descoberta de minas de ouro e pedras
preciosas nos arredores de Diamantino, regio de cerrado ao sul da capitania, o que
tornava a ligao fluvial das reas interioranas com o porto de Belm uma necessidade
premente, a ser satisfeita apenas no sculo seguinte. A colonizao, porm, se dava de
forma rarefeita, e o interior da rea permaneceu desconhecido at o final do sculo
XIX, e ainda hoje no se pode dizer que a ocupao da poro noroeste do territrio do
atual estado de Mato Grosso esteja concluda.
No sculo XVIII, as informaes sobre aqueles vrios povos nohegemnicos, produzidas por religiosos, funcionrios do governo e viajantes, tratam
sobretudo de fixar nomes e localizaes, contribuindo para formar uma imagem esttica
e fragmentada de uma regio caracterizada pela movimentao intensa e por unidades
sociais extensas. Nesse sentido, Menndez adverte: Esses etnnimos so a chave para
uma compreenso mais precisa da configurao etnogrfica do territrio e, apesar de
serem sempre anotados como indicativos de povos ou naes diferentes, muitas vezes
correspondem a grupos locais que integram unidades sociais mais amplas (Menndez
1992: 281). O autor indica que trabalhos etnolgicos mais recentes levam a crer na
existncia de um continuum entre a sociedade igualitria e a sociedade segmentada
para a mesma cultura tupi adaptada mesma floresta tropical, desde povos sem
metades, cls ou fratrias, como os kaiabis, at povos com metades exgamas
patrilineares no-localizadas, como os mundurukus (Menndez 1981: 291).21
Os apiaks constituam um desses povos no-hegemnicos mais interioranos; a
extenso de seu territrio era determinada pela empresa guerreira e pela coleta de
pedras para seus machados e taquaras para fabricar flechas; percorriam ento vastas
extenses no encalo de seus inimigos tradicionais, os matanawis (no-identificados),
os tapaynas (ou beio-de-pau, do tronco macro-j), os mundurukus e os parabi-tats
21 No sculo XIX, o naturalista alemo Carl von Martius havia proposto que os ababas, apiaks,
kawahiwas, pochetys, tapirapes, temauangas e mundurukus, localizados na confluncia entre os rios
Arinos e Juruena e identificados como tupi centrais, pertenceriam a um nico povo, o qual, cindido-se
ao longo do tempo, teria dado origem a subgrupos que se expandiram territorialmente; restaria por
determinar se tais grupos so fraes dos apiak e munduruku ou se diferem deles (apud Menndez 1991:
290).
46
22
A Expedio Langsdorff ao Brasil teve carter cientfico e foi fruto da cooperao diplomtica entre os
governos imperiais portugus e russo; percorreu por gua o longo e penoso trajeto do interior de So
Paulo at Santarm, via Arinos, Juruena e Tapajs, entre os anos de 1821 e 1829 (Komissarov in Monteiro
& Kaz 1988). Em 1828, Florence visitou trs aldeias apiaks nas margens dos rios Arinos e Juruena e
admirou-se da amabilidade do povo; em seu dirio, descreve os apiaks como alegres, hospitaleiros,
hbeis ceramistas e teceles, elogia seus enfeites de penas e a aparncia das mulheres, e afirma reinar em
sua sociedade absoluta igualdade (Florence 1941: 165ss).
47
23
Este um caso de ethnic soldiering, semelhante a tantos outros na Amrica Latina. A ttulo de
comparao, cito a atuao militar dos lokonos e karias conta povos vizinhos, no Suriname, no
sculo XVII, condicionada s disputas territoriais entre franceses, ingleses e holandeses (Whitehead
1996: 27).
48
49
com o circuito de guerras de vingana ainda vigente com os povos vizinhos. Tendo
como intrprete um brasileiro que vivia havia alguns anos numa aldeia apiak e
acompanhava a comitiva, o religioso anotou que
Os Appiacs fazem a guerra, no por ambio, mas pelo desejo de
vingar sua nao, excitado pelos seus ancies, que conservando dio implacvel
a seus antigos inimigos, recontam em suas palestras as passadas affrontas que
sofreram desta ou daquella nao, estimulando assim os moos a procurar
vingana, que sempre lhes aconselha. Por isso a guerra amiudadas vezes
promovida pelo povo, que a pede ao cacique, e este outras vezes que a
determina, mandando fazer os aprestos necessrios, e solicitando o auxilio das
outras aldas, cujos caciques nunca o podem negar. (...) A guerra dos Appiacs
sempre feita por traio (...) Os seus prisioneiros so conduzidos s aldas,
onde com grande apparato so comidos, no s pelos guerreiros, como pelas
mais gentes das mesmas aldas; dando-se cuidadosamente esta vianda aos
meninos, aconselhando-os que sejam intrepidos desde j, para se regalarem com
to saborosa comida. Para se emprehender a guerra preciso consultar aos
pags, que so certos embusteiros mais espertos, que a massa geral da nao, os
quaes se dizem adevinhadores (...) (Guimares 1865: 308ss)
guisa de concluso, o religioso esclarece que:
(...) tudo escrevi, para que com o auxlio de taes noticias, e com o
socorro d'estes selvagens, se possa alcanar um dia a civilisao d'esta
nao, e de muitas outras, d'onde sahiro ainda grandes colonias
proveitosas, no s para salvao de tantas almas, que esto fora do
grmio da Igreja; como para augmento da populao da extensssima,
mas despovoada provncia de Matto Grosso, e para os novos
descobertos, que se podem esperar n'aquelle rico terreno, at agora
desconhecido (Guimares 1865: 307 nfase adicionada).
A partir de 1819, no mais se encontram menes a ataques de apiaks a
estabelecimentos de colonos, e sua cordialidade em relao aos viajantes ser ressaltada
da em diante. Os apiaks aparecem ento como colaboradores dos colonizadores,
atuando como remadores e guias valorosos, em troca de objetos industrializados,
durante o penoso processo de estabelecimento da rota comercial que ligava os
dilatados sertes do Tapajs ao importante porto de Belm.
Em 1844, o viajante francs F. de Castelnau conheceu alguns apiaks em
Diamantino, registrando que Os Apiacs vivem nas melhores relaes com os cristos,
mas mantm guerra permanente contra os outros ndios e devoram os prisioneiros
(Castelnau 2000: 329). Castelnau fornece informaes relevantes e detalhadas sobre o
povo, acrescentando que diversas pessoas que tinham visitado a referida tribo
confirmaram todos esses fatos (: 332). O tema principal do relato a guerra e os ritos
dela decorrentes, semelhantes aos ritos tupinambs (Fernandes 1970, Mtraux 1979),
50
A descrio de Castelnau sobre a vida post mortem apiak evoca o Guajupi, espcie de paraso
terrestre dos tupinambs antigos (Mtraux 1979: 112), para onde iam os guerreiros e demais homens
valorosos, onde as almas viviam em abundncia, saltando, cantando e divertindo-se sem cessar
(Fernandes 1949: 195). Os apiaks com quem convivi em 2007 dizem que a alma dos mortos vai para
o paraso, um lugar agradvel onde ficam na companhia de Bahra (ver captulo 4).
51
tupinambs, analisados por F. Fernandes nos anos 1950, Carneiro da Cunha e Viveiros
de Castro (1986) propem que a vida social daqueles indgenas era funo da produo
do par matador-inimigo, de tal modo que a necessidade de vingana, decorrente do
canibalismo, colocava em relao de hostilidade permanente os grupos envolvidos em
confrontos (Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro 1986: 65), no tanto no sentido de
evocar relaes passadas, mas, sobretudo, no de estabelecer as bases para relaes
futuras.
Para estes autores, o ponto principal que o inimigo morto em terreiro deixava
uma memria de vingana que cabia aos vivos honrar; dessa forma, os inimigos
passam a ser indispensveis para a continuidade do grupo, ou melhor, a sociedade
Tupinamb existe no e atravs do inimigo (: 70). A memria assim posta a servio do
futuro leva os autores a classificar as sociedades tupis como mquinas de tempo (em
oposio s mquinas de suprimir o tempo em que se constituiriam as sociedades
js), como sociedades que tm conscincia de sua histria e lhe conferem papel central
em sua auto-inteligibilidade (: 75). A guerra de vingana tupinamb exprimiria, pois, a
abertura para o alheio, o alhures e o alm: para a morte como positividade necessria
(: 76).
Reafirmando a tese de Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro, Fausto (1992)
explica que
A continuidade da vindita era fundamental para uma sociedade
que, em sua nica grande cerimnia coletiva, tinha em seu centro o inimigo, e
no a imagem unificadora da chefia ou de um corpo social homogneo, como
pensaria P. Clastres. Uma economia poltica da destruio, voltada para o
exterior, que fazia da morte (guerreira) uma condio da vida social. (Fausto
1992: 393)26
Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro afirmam que a quebra do crnio do
inimigo era mais importante que a antropofagia para os tupinambs quinhentistas
(Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro 1986: 60). Os apiaks e os kaiabis no
dedicavam s cabeas de inimigos o tratamento ritual altamente elaborado verificado
entre os mundurukus, mas um velho munduruku no baixo Teles Pires me disse que os
26
Ver o instigante artigo de Kelly Luciani (2001) para uma anlise das guerras e do processo de produo
de pessoas entre os tupinambs inspirada na teoria da troca melansia. O autor demonstra a
centralidade dos processos e substncias corporais para diversas concepes de pessoa na Amaznia,
interpretando-as do ponto de vista da pessoa melansia, eminentemente dual e divisvel,
transformacional e transacionvel. De modo a corroborar a hiptese de Luciani, recordo o argumento
de Fausto (1992: 392) de que a morte em praa pblica era a morte desejvel no apenas por ser
heroica, mas tambm por sublimar a poro corruptvel da pessoa.
52
Os jurunas (tupis) tambm faziam trofus com cabeas de inimigos, mas, assim como parecia ocorrer
entre os apiaks e diferentemente do que se passava com os mundurukus, suas guerras no podem ser
caracterizadas propriamente como guerras de caa de cabeas. Os jurunas explicam o valor da
cabea-trofu pela alegria que ela lhes proporcionava durante as festas as grandes cauinagens que
encerravam os ritos de homicdio (Stolze Lima 1995: 335).
53
ndios da Provncia de Mato Grosso; num relatrio, o primeiro diretor geral classificava
da seguinte maneira as sociedades indgenas na Provncia: 1) as que vivem sob nossas
vistas; 2) as que, vivendo ainda no primitivo estado de independncia, todavia
relacionam-se connosco; 3) as que nos hostilizam e mostram-se no dispostas a mudar
seu modo de existncia. E. P. Barros (1987) demonstra como esse esquema
classificatrio norteou a poltica indigenista imperial at o final do sculo XIX. Os
apiaks, sublinhe-se, foram arrolados na segunda categoria, e a expresso primitivo
estado de independncia refere-se principalmente prtica de guerras e antropofagia.
Estabelecida, enfim, a rota comercial entre Cuiab e Belm, outro importante
problema se impunha aos governantes: o povoamento e a extrao organizada de
riqueza de uma regio considerada longnqua e inspita. Quais seriam, ento, os
melhores povoadores e os trabalhadores mais capazes? Nos registros da segunda
metade do sculo XIX, de maneira geral os apiaks figuram como dceis,
trabalhadores e sobretudo teis para o Imprio, em oposio aos ferozes e
perigosos
kaiabis
(tupi-guaranis),
tapaynas,
parintintins
(tupi-guaranis)
Esta proposta aproxima-se do projeto de antropologia reversa de S. Kirsch (2006), inspirado na anlise
de R. Wagner sobre cargo cults na Melansia. Kirsch fala em modos indgenas de anlise e se prope
pensar de que forma eles impulsionam aes polticas num cenrio internacional dominado pelo
capital. O autor demonstra que, na Melansia, as transformaes sociais so concebidas como trocas
um timo exemplo de historicidade que manteremos em mente ao longo da tese.
55
mais longo com o negcio da borracha, sediando o mais importante centro comercial
regional, Belm. No Par, as maiores concentraes de Hevea ocorriam na regio das
ilhas e ao longo dos sistemas fluviais do Tapajs e do Xingu, cujos cursos principais
contam com muitas quedas dgua, o que torna a navegao extremamente difcil (: 57).
O aumento estrondoso da demanda por ltex foi impulsionado pelo
desenvolvimento da indstria de pneus, aps 1900. A partir de 1912, no entanto, pases
asiticos tiveram sucesso no cultivo da Hevea, sobrepujando a produo dos seringais
nativos amaznicos. De acordo com B. Weinstein, a borracha teve um impacto limitado
na economia amaznica, na medida em que as relaes tradicionais de produo e de
troca no foram alteradas significativamente; para a autora, a indstria da borracha
acomodou-se a um modo de produo pr-capitalista.
O negcio da borracha conheceu sucessivos momentos de pico e de declnio,
sujeito que estava s flutuaes de preos do mercado internacional e desamparado pelo
Estado brasileiro. O padre Joo de Moura e Silva, profundo conhecedor da regio, fala
em quatro etapas da indstria da borracha no norte de Mato Grosso, protagonizadas por
diferentes atores, a saber: i) nos anos 1870, o major Jos Vieira da Silva Coqueiro
atingiu o territrio rikbaktsa, ao longo dos formadores do Juruena; a Hevea era cortada
a machadinha e o ltex era defumado; ii) em 1912 foi lanado o Plano Brasileiro de
Defesa da Borracha, que contou com o apoio da linha telegrfica estabelecida por
Rondon; nesta etapa, o alego (faca afiada, retorcida e presa a um cabo) substituiu a
machadinha; iii) em 1942, Joo Alberto Lins de Barros retomou a explorao de
seringueiras, com apoio do Banco da Borracha, mais tarde incorporado ao Banco de
Crdito da Amaznia; o ltex passou a ser coagulado em canecos fixados ao p das
rvores; iv) a ltima etapa, iniciada em 1968, caracterizou-se pela explorao de
seringueiras enxertadas, incentivada pelo governo federal (Moura In Dornstauder 1975:
4).
Cercados por seringueiros, a maioria dos apiaks acabou se engajando na
extrao de ltex, mas, ao final do sculo XIX, uma frao do povo retornou para a
floresta, recusando terminantemente o contato com os brancos.
Em 1895, H. Coudreau registrou, no baixo Juruena, aproximadamente 100
ndios apiaks vivendo em cinco aldeias, duas delas chefiadas por seringueiros noindgenas (Coudreau s. d.: 238). O livro de Coudreau traz um desenho do capito
Benedito, chefe dos apiaks que viviam nas imediaes da cachoeira So Florncio,
bem como a informao de que a importante maloca apiak chamada Bananal Grande
56
29
30
57
parte delles, para roubar-lhes as mulheres (Rondon 1915: 42). A jusante da cachoeira
das Furnas (mdio Juruena), na margem esquerda do rio, os viajantes encontraram
campos bem cuidados, que parecem ser de Apiacs (: 72).
Informaes relevantes sobre a regio do alto Tapajs so encontradas no livro
do proeminente comerciante e prefeito de Itaituba, R. P. Brasil, publicado em 1910:
O Governo procurou chamar os Tapuyos do Tapajs ao convvio
social, aproveitando-lhes os braos para maior incremento da industria
extractiva e para a cultura do solo, mandando, por vezes, frades, em misso,
tratar da catechese. Nada, porm, de practico, positivo e til conseguiu, apezar
das quantias despendidas. Foram os negociantes que realizaram os desejos da
communhao paraense, aventurando-se, pouco a pouco, para alm e mais
distante, marcando os caminhos pelas cachoeiras e abrindo trilhos nas matas
densas. E hoje, com relativa felicidade, dado chegar aos limites do Estado e
amontoar os productos naturaes, que engrossam a fortuna publica (Brasil 1910:
10).
A contenda territorial e fiscal com o estado de Mato Grosso estendeu-se por
todo o sculo XX. Animados com os lucros provenientes da borracha, particulares
paraenses empreendiam a colonizao do alto Tapajs, chegando a solicitar o apoio de
missionrios que tornassem disponvel a fora de trabalho indgena por meio da
pacificao dos povos ainda arredios que habitavam a regio, porm recusando uma
presena mais efetiva do Estado: O Tapajs povoa-se s pelo esforo individual e
absolutamente no necessrio, para tanto, emprezas subvencionadas de povoamento e
civilizao (Brasil 1910: 63), decretava aquele negociante, ao mesmo tempo em que
exortava os patrcios a perseverarem na empresa colonizadora: As margens do
Tapajs, mesmo estas, nas cachoeiras e na maioria dos logares, esto ainda
inexploradas, inoccupadas. Todavia, tm borracha, muita borracha! (: 87). A propsito
da numerosa populao munduruku na regio, o comerciante vislumbrava os benefcios
advindos da explorao de sua fora de trabalho, especialmente no que toca o
transporte dos gneros, problema crucial numa rea de muitas cachoeiras:
Comprehende-se o que sera o aproveitamento desses dois mil braos
vadios e fortes nos diferentes servios do commercio e da industria. Basta dizer
que os negociantes da zona transportam com penosas difficuldades os cereaes de
primeira necessidade, todos importados, o que se tornaria desnecessrio se
houvesse as misses, pois que, com o aproveitamento dos ndios ociosos, ellas
produziriam fartamente os gneros de maior consumo no Tapajs (: 107).
A virada para o sculo XX foi um perodo particularmente nefasto para os
apiaks, que comearam a ser perseguidos sistematicamente em 1902, por ocasio da
58
O mrito da hiptese de Lvi-Strauss (1976) apontar para o carter integrativo da guerra e dos ritos
60
defende que a guerra no pode ser reduzida esfera da circulao nem confundida com
a operao da troca (: 328); sua posio a de que se deve olhar tambm para a
destruio e o consumo dos corpos para compreender o processo produtivo amerndio.
O abandono das guerras de vingana e da antropofagia, prticas de importncia
capital para os apiaks at a segunda metade do sculo XIX, de acordo com Guimares
(1865) e Nimuendaju (1963a, 1963b), trouxe consequncias decisivas para a
reproduo sociocultural do povo. No possvel avaliar em que medida a catequizao
e a reduo populacional devida a epidemias e a massacres influenciaram a renncia
coletiva, mas extremamente significativo constatar que a festa com a cabea de um
branco poderoso assinala, nas narrativas dos velhos apiaks, o desfecho da era das
guerras: A foi indo, at que terminou essa briga deles, os apiaks ficaram mansos. A
mansido que caracteriza os apiaks misturados no presente ganha assim uma
inscrio temporal mais ou menos precisa (incio do sculo XX) e uma nova camada de
significado, pois que no se refere apenas ao acesso regular a mercadorias e f
catlica, mas tambm cessao dos confrontos blicos.
A relao entre ambos os eventos acesso s mercadorias e ao catolicismo e
interrupo das guerras parece, alis, ser concebida pelos apiaks como uma
substituio brusca (e no uma evoluo linear) da qual eles foram co-autores em
alguma medida. Assim, as longas perseguies a inimigos a serem canibalizados foram
de certa forma substitudas pelo acesso negociado a bens industrializados e liturgia da
salvao, exprimindo o incio de uma nova poca histrica, em que os apiaks adotaram
um estilo de vida diferente no qual, contudo, a alteridade continua desempenhando
papel constitutivo.
C. Fausto cunhou o termo desjaguarificao para se referir negao do
canibalismo como condio geral do cosmos e mecanismo de reproduo social, tal
como experimentada, por exemplo, pelos guaranis contemporneos, cuja cosmologia se
caracteriza pela disjuno de elementos intimamente ligados em outras cosmologias
tupi-guaranis, designadamente o guerreiro e o xam (Fausto 2005: 396). Aps sculos
de contato intensivo com a f catlica, os guaranis teriam suplantado o plo-jaguar de
seu xamanismo, associado ao sangue, caa, morte, guerra e ao exterior, passando a
adotar a tica do amor e da mansido, voltada para o interior do grupo, e selecionada
antropofgicos dela decorrentes, que consistiria em prover uma imagem de grupo coeso em relao ao
exterior, bem como uma possibilidade de alterao de status social. Em linhas gerais, a tese de F.
Fernandes (1970) sobre a guerra tupinamb bastante semelhante de Lvi-Strauss.
61
32
33
62
Nesse sentido, falar sobre o ritual com a cabea de Paulo Corra nos dias de
hoje parece ser uma demonstrao da capacidade de superao de um perodo
especialmente traumtico. Os apiaks, de fato, quase foram dizimados e, sem dvida, se
transformaram, mas continuam concebendo a histria em termos prprios, isto ,
continuam acreditando que o inimigo indispensvel para a perpetuao do grupo.
63
Fausto (1992) afirma que os tupis quinhentistas viam os brancos como parceiros de guerra e de troca e
como xams poderosos, sugerindo que o termo caraba (utilizado para designar xam e branco)
exprime um deslizamento de significado que ilumina o crculo hermenutico de (des)entendimentos
recprocos da histria colonial (Fausto 1992: 386). O emprego do termo cunhado para designar
Paulo Corra parece indicar um deslizamento de significado anlogo no horizonte do (des)encontro
colonial experimentado pelos apiaks.
64
1910, e uma mulher indgena. A meno a esta aliana matrimonial factual est num
documento escrito em 1936 pelo Delegado Especial do Norte, do Servio de Proteo
aos ndios (SPI), endereado a seus superiores em resposta a um questionamento sobre
a atuao dos coletores de Mato Grosso no caso das perseguies aos apiaks,
denunciada no livro Os indgenas do Nordeste, de autoria de Estvo Pinto, nos
termos seguintes: Os Apiacs do Tapajoz recentemente destroados pelas foras
fiscaes de Matto-Grosso (...).
O delegado comunicou a seus superiores que as perseguies e destroos aos
ndios Apiacs pelas foras fiscaes do Estado distam j de muitos annos,
acrescentando que Para pr em relevo a cordialidade com que este exemplar exactor
(Jos Sotero Barreto) agia na zona com os Apiacs, basta dizer que se consorciou com
uma Apiac e tem os seus filhos cursando as academias de direito e medicina, em
Belm. (SPI. Documento enviado por Antonio Antero Paes de Barros, Delegado
Especial do Norte, para Carlos Murtinho, Presidente do Grmio Precursor
Mattogrossense do Instituto Rondon, em 16 de maro de 1936).
A confuso dos nomes de Paulo Corra, seringalista de pssima reputao na
regio, e Jos Sotero Barreto, saudado no SPI por sua amizade pelos indgenas, leva a
crer que os apiaks concebem os patres de forma genrica e estereotipada, em
conformidade com uma histria dos sentimentos (Santos-Granero 2007: 57) em que
sobressai o valor moral das relaes, em detrimento de uma suposta objetividade dos
fatos (Kurkiala 2002).
Durante a pesquisa de campo, vrios apiaks me diziam, com orgulho, que h
ndios desta etnia atuando como dentistas, pilotos de avio, mdicos e outras profisses
concebidas como importantes em grandes cidades do Norte, todos eles casados(as) com
regionais. Chegaram mesmo a afirmar que a tataraneta de H. Florence, que os visitou
em 1997 e os presenteou com o belo livro da Expedio Langsdorff ao Brasil, uma
apiak.35 Some-se a isto a veemncia com que o velho apiak fala sobre o protagonismo
da esposa indgena de Paulo Corra nas perseguies contra os indgenas, e se
vislumbrar o desejo de meus interlocutores de sublinhar a agencialidade histrica do
povo.
35
A tataraneta de Florence percorreu o mesmo trajeto que a Expedio Langsdorff, acompanhada de uma
equipe da BBC de Londres, que realizou o documentrio No Caminho da Expedio Langsdorff.
Este foi um evento importante no processo de reestruturao poltica apiak, pois contribuiu para o
aumento da auto-estima do povo. O citado livro foi dado ao cacique mais velho do Mayrob e
guardado como uma relquia. M. Bartolom (2006) fala sobre o recurso literatura como motivao
importante para processos de etnognese (ver captulo 2).
65
66
considerado
satisfatrio,
sufocando
os
impulsos
de
anti-socialidade,
********
Em 1916, o etngrafo W. C. Farabee, ao cruzar a rea da foz do Teles Pires no
Tapajs, afirmou ter encontrado os ltimos remanescentes Apiacas, antigamente uma
tribo numerosa e feroz, que falava um dialeto da lngua Tupi (Farabee 1917: 126).
Farabee anotou: Segundo eles mesmos, eram originalmente canibais nus, que comiam
os corpos dos inimigos mortos em guerra. Hoje, embora o trao de comer carne tenha
desaparecido, eles usam roupas apenas quando vo para perto dos seringueiros (:
ibidem).
Deve-se enfatizar, contudo, que os registros escritos no fazem meno aos
sobreviventes daqueles massacres, rememorados pelos apiaks, que se dispersaram ao
longo dos afluentes orientais do Juruena e mais tarde seguiram para o rio Anipiri,
afluente oriental do Teles Pires, no estado do Par, os quais frequentavam a Misso
Franciscana no rio Cururu (PA), que atendia os mundurukus e mantinha um rico
barraco de mercadorias.36 De acordo com a memria dos apiaks mais velhos que
entrevistei em 2007, nas primeiras dcadas do sculo XX os apiaks do Anipiri iam
Misso para vender ltex, peles de felinos e produtos de atividade extrativista, para
participar de festas, casamentos e batizados e, especialmente, para adquirir bens
manufaturados. Ao recordar essa poca, os homens e mulheres mais velhos deixam
entrever sua concepo sobre a relao que estabeleciam com os padres, que se daria
36
Em 1872, os salesianos haviam estabelecido a Misso do Bacabal no alto Tapajs, para atender os
mundurukus. Porm a presso dos seringalistas de Itaituba pela mo-de-obra indgena foi to grande
que a Misso foi abandonada quatro anos depois (Murphy 1960: 41). Em 1911, missionrios
franciscanos alemes construram um misso na margem esquerda do rio Cururu, tambm para
catequizar os mundurukus (chamada de Misso Velha). Sete anos depois, a misso foi transferida para
a margem direita do mesmo rio, permanecendo l at hoje, com o nome de Misso Cururu (: 45). Ver
Collevatti (2006) para um estudo detalhado da histria desta Misso.
67
A Hevea brasiliensis pode ser sangrada por 50 anos ou mais. As rvores dispem-se de modo
extremamente esparso pela floresta. Estima-se uma mdia de sete rvores por acre na Amaznia
oriental (Weinstein 1993: 312).
68
39
69
categorias e por congelar a histria desses povos; todavia, como sabido, muitos dos
povos classificados como extintos em 1957, ao lado dos apiaks, continuam existindo e
vm lutando por reconhecimento e melhoria das condies de vida, dentre os quais os
kokamas, os xipaias, os araras, os botocudos, os guats e os pataxs.
Tal mecanismo poltico-simblico no de modo algum uma inovao do
sculo XX. A propsito do perodo colonial, J. Monteiro (2001) faz uma importante
reconstituio histrica das categorias tupi e tapuia e seus correlatos, forjadas nos
sculos XVI e XVII com objetivos instrumentais especficos e apropriadas pelos
intelectuais brasileiros no sculo XIX, quando se tratava de inventar a nao brasileira.
Tal dinmica teve repercusses decisivas para as relaes concretas entre colonizadores
e nativos, na medida em que aquelas categorias foram reapropriadas por alguns povos
indgenas mais recentemente. O autor demonstra de que maneira as descries e
classificaes coloniais sobre os indgenas passaram ao estatuto de fatos etnogrficos
por obra da historiografia do sculo XIX, que produziu uma imagem esttica e
essencialista desses povos, imagem esta que ainda hoje influencia o modo como
pesquisadores e funcionrios governamentais pensam sobre eles. Sem descuidar do
aspecto etnocida da dominao colonial, Monteiro sublinha o carter poltico, relativo e
relacional das classificaes tnicas, definidas no embate entre o projeto colonial e os
projetos indgenas, surgindo da novos tipos de sociedade e novas identidades coletivas
(Monteiro 2001: 24ss).
J. Hill chama de geopolitizao das identidades amerndias (Hill 1996: 7ss)
prtica colonial de reduzir a complexidade e a riqueza de sistemas regionais
multiculturais e multilingusticos constitudos com base na guerra, no comrcio, em
alianas, sobreposies e fuses. Tal prtica, contudo, no teria conseguido sufocar
uma antiga tendncia emergncia de novas redes regionais multiculturais como nos
provam os apiaks, ao lado de tantos outros povos dados como extintos.
Durante a primeira metade do sculo XX, portanto, nenhum Posto Indgena ou
misso religiosa foi estabelecida para atender exclusivamente os apiaks, embora se
tivesse notcia de grupos isolados nos rios So Tom e Apiacs, ambos no estado do
ndio genrico, despojado de toda especificidade cultural, destino inexorvel dos povos indgenas
em contato intenso com a sociedade nacional. Tal conceito apoia-se numa concepo de grupos
tnicos como unidades discretas bem definidas. Em sua anlise dos povos nativos do Baixo
Urubamba, onde extremamente difcil distinguir os membros da sociedade nacional dos membros
das sociedades tribais (situao prxima da dos apiaks, como veremos no prximo captulo), P. Gow
indica que a manuteno das fronteiras tnicas no , contudo, a preocupao maior de povos que se
veem como misturados (Gow 1991: 13).
70
Mato Grosso. Os apiaks civilizados transitavam entre a Misso Cururu, no Par, que
assistia os mundurukus, e entre o Posto Indgena Munduruku (PA) e os sucessivos
Postos Indgenas nos cursos alto e mdio do rio Teles Pires (MT) destinados atrao
dos kaiabis. Por ocasio do incio da atuao do SPI no Tapajs, ao final dos anos 1940,
Arnaud informa que o objetivo do rgo era proporcionar aos ndios Munduruk (e
tambm aos Kayabi e remanescentes Apiak) melhores condies de existncia, que as
at ento desfrutadas entre leigos e religiosos (Arnaud 1974: 54, nfase adicionada).
Os relatrios dos encarregados de Postos Indgenas nos do a ver os
incessantes deslocamentos e as alianas diversificadas dos indgenas, o que causava
profunda exasperao aos administradores. Em relatrios de atividades do Posto
Indgena de Atrao Jos Bezerra (alto Teles Pires), datados de julho e setembro de
1946, consta que um grupo de kaiabis catequizados, que frequentara este Posto em
dcadas anteriores, se mudara para o Posto Caroal, no rio homnimo, afluente oriental
do rio das Tropas (PA), para junto dos apiaks e mundurukus. O encarregado registra o
pedido de alguns ndios para fazer uma viagem ao Posto Caroal, onde vivia uma
parenta que desejava retornar ao PIA Jos Bezerra, de onde sara em 1928 (SPI/ IR-6.
Resumo das Principais Ocorrncias Verificadas e dos Trabalhos Realizados no ms de
julho de 1946 no PIA Jos Bezerra; idem para ms de setembro). Em vrios relatrios
do PIA Jos Bezerra, os diversos encarregados informam que os kaiabis nunca
esquecem seu costume fazer seus passeios (sic), retornando constantemente s aldeias
na mata ou dirigindo-se aos barraces no Teles Pires, a permanecendo por grandes
perodos, o que revela uma forte resistncia a residir no Posto.40
Como se sabe, o objetivo explcito desses Postos era fixar os indgenas numa
rea definida e ensinar-lhes a viver da agricultura, prevenindo assim conflitos com as
frentes econmicas que avanavam para a Amaznia meridional. Um dado interessante
que emerge da leitura dos relatrios a prtica de dar brindes apenas aos ndios
visitantes, isto , arredios; os ndios que passavam a morar no Posto, chamados de
localizados, recebiam mercadorias somente em troca de trabalho braal, tendo suas
dvidas e saldos anotados em Notas de Fornecimento controladas pelo encarregado,
procedimento idntico ao empregado pelos patres locais e pelos missionrios, fato que
devia borrar a diferena presumida entre os funcionrios do SPI, missionrios e
encarregados dos barraces, possibilitando aos indgenas certa margem de manobra na
40
Ver A. Ramos (2000) sobre a insero dos mundurukus no sistema de postos, barraces e misses no
vale do Tapajs na primeira metade do sculo XX.
71
41
42
Trata-se, provavelmente, de escravos foragidos dos arredores de Belm aps a revolta da Cabanagem,
que se estendeu de 1835 a 1839 (ver Weinstein 1993: 61ss).
A atividade garimpeira moderna na regio do alto Tapajs e dos formadores deste rio iniciou-se nos
anos 1950, com exploraes aurferas na Serra do Cachimbo e garimpo de cassiterita no rio das
Tropas, tendo por centros comerciais as cidades de Jacareacanga e Itaituba (Rodrigues 1994 b). O
impacto social e econmico causado por tal atividade foi to grande que at hoje, no comrcio das
cidades mato-grossenses de Colder e Alta Floresta, utilizam-se as balanas para pesar ouro e qualquer
pessoa sabe fazer a converso do preo de um objeto para gramas de ouro. Os impactos ambientais
so igualmente duradouros e devastadores.
72
pecuria, todas elas contando com mo-de-obra indgena e avanando sobre seus
territrios. Nos anos 1960, descendentes de famlias extensas apiaks que ainda
trabalhavam na extrao de ltex no baixo curso do rio Juruena, j ligados a ndios de
outras etnias e a arigs, foram realdeados a convite do missionrio jesuta Joo
Dornstauder, numa rea destinada aos kaiabis, no Rio dos Peixes (afluente oriental do
Arinos, ver Figura 1.1). Desde essa poca, quando foi restabelecido o contato com a
seo do povo que permanecera na regio do rio Cururu, os apiaks vm se
reestruturando politicamente e lutando pelo respeito aos direitos que a nova legislao
indigenista lhes garante.
A partir dos anos 1970, porm, a inteno governamental de finalmente
colonizar o norte do Mato Grosso por meio do Projeto Plo-Noroeste (agropecuria),
do Plano de Integrao Nacional, das aes da SUDAM, da construo da rodovia BR364 (Rangel 1987) e, mais recentemente, da construo de usinas hidreltricas, do
incentivo ao agronegcio (especialmente a soja), do turismo ecolgico e da criao de
Unidades de Conservao trouxe novos desafios para os povos indgenas que habitam
a regio. A chegada de colonos do sul do pas, movidos pela tica do enriquecimento e
do desenvolvimento econmico inexorvel, intensificou a presso sobre os territrios
indgenas, gerando um clima de grande tenso.
********
A frente da borracha arregimentava indgenas numa rea extensa para o
sistema de trabalho forado dos seringais, disseminando doenas contagiosas,
inviabilizando a vida ritual tradicional, impondo o uso exclusivo da lngua portuguesa,
reunindo arbitrariamente pessoas de etnias distintas e chancelando violncias de toda
ordem, incluindo massacres premeditados.43 Os homens influentes apiaks falam sobre
esse perodo como um momento de desestruturao social, quando passavam longos
perodos longe das aldeias, vivendo em colocaes de seringueiros muitas das quais
43
Tocantins (1877) fala em escravido de indgenas por dvida na regio do alto Tapajs no final do
sculo XIX, num contexto em que comerciantes de Itaituba disputavam com os missionrios franciscanos
da Misso de Bacabal a mo-de-obra dos mundurukus. Arnaud pronuncia-se nos seguintes termos: (...)
nos seringais imperava um regime de terror, principalmente entre os anos de 1909-1912, quando o
cuiabano Paulo Corra atuava em Itaituba como delegado de polcia, coletor estadual e comerciante. (...)
Segundo vrios testemunhos, os seringueiros que no satisfaziam seus interesses e de outros patres
eram submetidos ao castigo do tronco (uma reminiscncia da escravatura), aoitados at desfalecerem e
tambm assassinados a tiros. (...) No lugar denominado Praia do Sossego (acima da Barra do So
Manoel), dezenas de ndios foram trucidadas por determinao do citado delegado, sendo em seguida
divididos seus filhos e mulheres (Arnaud 1974: 9).
73
O kokama no uma lngua classificvel geneticamente, embora o tupinamb seja um dos idiomas que
a compem, ao lado do pano, do arawak e do espanhol (Cmara Cabral 1995).
45
Para uma anlise do sistema de aviamento em outra regio amaznica, o vale do Solimes, ver
Faulhaber 1987.
46
O corte da seringa era realizado na estao seca (entre abril e outubro, aproximadamente).
74
A independncia relativa experimentada pelos seringueiros foi um dos fatores que levou a elite paraense
tradicional a rejeitar inicialmente o negcio da borracha, atemorizada que estava pela Cabanagem, da
qual resultara a expanso de uma populao cabocla que havia cortado os vnculos com a elite branca
(Weinstein 1993: 59).
75
76
77
A migrao nordestina para a Amaznia iniciou-se em 1877, em decorrncia de uma grande seca.
50 A ttulo de comparao, menciono o artigo de C. Howard (2002), que mostra como os waiwais (carib)
optaram por diversificar o leque de suas alianas polticas com os brancos para obter mercadorias, de
modo a evitar uma explorao mais sistemtica. De acordo com a autora, a circulao dos objetos
industrializados na complexa rede de relaes intertribais regional servia atualizao de relaes
sociais legtimas, e no representava, necessariamente, uma ameaa a elas, uma vez que eram
domesticados antes de serem consumidos.
78
79
coletores. Ao que tudo indica, na perspectiva dos apiaks esses brancos poderosos
deveriam proceder como chefes, isto , engajar-se numa relao de troca com os
homens influentes apiaks, provendo mercadorias em troca de produtos da floresta e
estabelecendo alianas matrimoniais. Tais patres, concebidos como afins potenciais,
passaram entretanto a agir como ona, isto , quebraram as principais regras da
socialidade apiak, tomando mulheres sem apresentar a compensao devida;
devoraram os apiaks, ao invs de comer com eles; comportaram-se verdadeiramente
como inimigos, ou seja, como Outros, o que explica o tratamento dado cabea do
seringalista.
Nesses termos, o prprio trabalho extrativista realizado pelos ndios parece ter
sido apreendido pelos apiaks sob a lgica da ddiva, configurando-se um embate entre
valores distintos: se, de um lado, os seringalistas procuravam obter mais lucro em seu
negcio ao forar os ndios a trabalhar mais intensamente, por outro lado, os apiaks
buscavam manter uma aliana que percebiam como produtiva em outros termos. A
maneira como os apiaks pensam sua relao com os brancos aponta para a vigncia de
um sistema de trocas que se orienta pela lgica da ddiva, e que vigora ainda hoje nas
comunidades, como se ver na Segunda Parte. Conforme a lgica da ddiva, o valor dos
objetos consiste em se portar como instrumentos de relaes entre pessoas (Gregory
1982; Mauss 2003; Strathern 1992, 2006). Dessa forma, o sistema de aviamento,
baseado num hiato temporal entre a entrega das mercadorias e a entrega da produo de
ltex, bem como na confiana que unia patres e empregados, parece ter se encaixado
perfeitamente dinmica da reciprocidade, baseada no constrangimento. Tal dinmica
estabelece que os sujeitos ligados por uma ddiva ficam mutuamente obrigados,
formando-se uma densa teia de interdependncias. Dada a obrigao inelutvel de
retribuir, uma nica ddiva suficiente para desencadear um conjunto virtualmente
infinito de contra-ddivas e novas ddivas. Paulo Corra interrompeu indevidamente o
circuito e teve um fim nefasto.
A principal caracterstica distintiva desses brancos opulentos era o fato de
acumularem uma grande quantidade de bens, inesgotvel aos olhos dos ndios, e
controlarem sua distribuio entre os trabalhadores, ao fundamentalmente arbitrria,
posto que ancorada na ignorncia da dvida pelo devedor, uma vez que apenas o patro
podia ver o caderno, alm de ser um dos poucos que sabia fazer clculos e escrever.
Movidos pela conscincia dessa assimetria de saber e de poder, os apiaks hoje
valorizam sobremaneira a escola, e os caciques mantm cadernos onde anotam os bens
80
At a primeira dcada do sculo XX, os mundurukus das savanas, que tambm eram seringueiros
ativos, puderam preservar muito de sua organizao social porque, aps a poca do corte da seringa
(estao seca), retornavam s aldeias, onde experimentavam o modo de produo e consumo coletivo,
sendo que os chefes conservavam seu prestgio ao agirem como intermedirios entre seu povo e os
negociantes (Murphy 1960: 49). Por outro lado, as famlias nucleares que migravam para as margens
do Tapajs conheciam um individualismo crescente. Murphy demonstra, ainda, que a integrao das
aldeias no rio Cururu era bastante precria, devido ao trabalho na seringa.
81
82
********
interessante notar, nas narrativas apiaks, que, se por um lado, ataques
blicos e intercasamentos marcam tanto as relaes com os brancos no incio do sculo
XX quanto as relaes com outros povos indgenas desde pelo menos o sculo XVIII,
por outro lado, as mercadorias e as epidemias singularizam, de modo ambivalente, a
interao com o branco. Desse modo, sugiro que, nas narrativas histricas, o branco
opulento, provedor de mercadorias, classificado simultaneamente como afim real e
inimigo perigoso, aparece em posio anloga do criador Bahra,53 o qual, nas
53
Bahra a verso apiak do heroi Mara de outros povos tupi-guaranis, assimilado pelos ndios a Jesus
Cristo; Tup aparece alternativamente a Bahra como sinnimo do Deus cristo, sendo associado
diretamente ao trovo (tupasing) e espingarda (tup). Voltaremos a isso no captulo 4.
83
narrativas de origem apiaks, dava aos homens objetos e ensinamentos teis para a vida
na mata. Todavia, como nos conta um homem apiak, enquanto Bahra, no comeo do
mundo, explicava aos antigos como utilizar o machado de pedra, os filhos deles, que
haviam nascido no meio dos brancos e j conheciam ferramentas de metal,
desdenhavam o instrumento. E aqui reencontramos a distino geracional que marca a
relao com os brancos. Pois o velho apiak alude a dois tempos distintos: um,
definitivamente superado, em que Bahra se relacionava diretamente com os humanos,
e outro (ainda em curso), em que os humanos preferiram se relacionar com os brancos
para adquirir objetos industrializados.
Os kawahiwas (tupi-guaranis) postulam de outro modo a relao entre Bahra e
os brancos. De acordo com Menndez (1989), Bahra, pretendendo amansar os
kawahiwas, jogou algumas pedras num poo e ordenou aos ndios que as apanhassem;
apenas alguns pularam e, quando retornaram superfcie, sua pele se soltou estes so
os brancos, aos quais Bahra deu espingardas, machados de ferro, roupas etc. Aqueles
que no quiseram ser amansados so os ndios do tempo histrico (Menndez 1989:
337). O autor sugere que a vivncia histrica (kawahiwa) no foi secularizada e
permanece mitificada (: 345), endossando a tese do contato como pura negatividade.
Minha abordagem afasta-se da proposta de Menndez tanto porque os apiaks (pelo
menos a maioria deles) estabeleceram uma relao positiva com os brancos, como
porque interpreto as narrativas transcritas como expresso de historicidade: no se trata
apenas de um comentrio crtico sobre o passado, mas tambm de uma reflexo sobre o
presente e de uma perspectiva de futuro, na medida em que sua lembrana fundamenta
de maneira concreta a reivindicao territorial do povo.
Na maioria de nossas conversas, os velhos apiaks sublinhavam que
Apiakatuba terra de apiak. Desse modo, a histria do amansamento concebido
como voluntrio, do processo de civilizao com o qual a maioria dos apiaks acabou
aquiescendo transforma-se, no discurso poltico dos homens influentes, num verdadeiro
lamento sobre as consequncias negativas da relao com os brancos, a saber: a
depopulao, a perda da lngua indgena e a perda do territrio. 54 Apiakatuba, registrese, ficava na regio central do territrio atualmente pleiteado pelo povo.
54
De acordo com B. Albert (2002), os yanomamis postulam uma relao explcita entre mercadorias e
doenas letais, formulando um mitologia metlica que se baseia na premissa cultural do canibalismo
da mercadoria. Tal mitologia, combinada s categorias ocidentais de territrio, cultura e meio
ambiente, fundamenta o discurso tnico no presente.
84
56
De acordo com B. Albert (2002), os yanomamis postulam uma relao explcita entre mercadorias e
doenas letais, formulando um mitologia metlica que se baseia na premissa cultural do canibalismo
da mercadoria. Tal mitologia, combinada s categorias ocidentais de territrio, cultura e meio
ambiente, fundamente o discurso tnico no presente.
Em seu livro de memrias, o padre Joo Dornstauder (1975) conta em detalhe as agruras por que
passou durante o longo processo de pacificao dos rikbaktsas, tapaynas e kaiabis, para o qual no
85
apiaks orgulham-se pelo fato de um homem de seu povo, ainda vivo, ter atuado na
atrao do ltimo grupo de tapaynas arredios, ancestrais do atual chefe do escritrio
da Funai de Colider (MT), cuja jurisdio abrange os apiaks.
Assim, o modo de vida civilizado do sculo XX caracteriza-se inicialmente
pela presena de mercadorias e, posteriormente, pelo abandono, pela ruptura de uma
relao que os apiaks haviam imaginado, de acordo com a lgica da ddiva, como de
cooperao e proviso de bens industrializados. Ainda hoje os brancos opulentos so
vistos como afins potenciais e parceiros comerciais e polticos prediletos, embora sejam
potencialmente perigosos. Por algum tempo, a Funai e os missionrios foram
concebidos como atores opulentos, fornecendo aos ndios bens valorizados.
Nos anos 1990, quando o fluxo de objetos comeou a escassear, porm, os
ndios tiveram de arranjar outro meio para obt-los, fosse junto a garimpeiros e
madeireiros que se multiplicavam ao longo do baixo curso dos rios Juruena e Teles
Pires, fosse junto a fazendeiros na regio de Juara (MT). Significativamente, os objetos
industrializados mais valorizados pelos apiaks so medicamentos, e a reorganizao
poltica na ltima dcada deve muito sua capacidade de obter e distribuir remdios
no apenas para as aldeias apiaks, como tambm para aldeias kaiabis e mundurukus no
Rio dos Peixes e no Teles Pires.
Em linhas gerais, a experincia histrica recente dos apiaks pode, portanto, ser
pensada como o projeto de transformar patres em parceiros e de impedir que estes
virem ona, ao passo que a comunidade se esfora para neutralizar o potencial
metamrfico das pessoas e inviabilizar a instituio de relaes de patronagem em seu
interior.
86
87
57 curioso que, nas narrativas fundacionais kaiabis que me foram dirigidas, apiak e kaiabi formavam
originalmente um mesmo povo, at que os apiaks deixaram de se pintar com urucum. De sua parte, os
apiaks negam veementemente a identificao pretrita com os kaiabis.
88
Em 1974, num seminrio sobre o conceito de identidade, Lvi-Strauss (1983) foi enftico ao afirmar o
carter de construto simblico e poltico de toda identidade.
89
Recordo que os apiaks, os mundurukus e os kaiabis agiram de maneiras distintas nos perodos colonial
e ps-colonial. Em que pese a multiplicidade de estratgias adotadas por fraes de um mesmo povo,
pode-se dizer que, de modo geral, os mundurukus aliaram-se aos brancos nos ltimos anos do sculo
XVIII, passando a atuar como seus mercenrios; os apiaks, como vimos, atuaram como guias, pilotos de
barco e fornecedores de alimentos para os brancos desde o incio do sculo XIX; enquanto os kaiabis
resistiram pacificao at os anos 1960.
90
sentido,
uma
contribuio
terico-metodolgica
relevante
91
92
rea delimitada pelos rios Juruena e Teles Pires, assim como situaremos a
reestruturao poltica do povo no cenrio indigenista nacional delineado desde os anos
1970 (ver Ramos 1998).
Bem, a grande questo que emerge dos dados etnogrficos que reuni durante o
ano de 2007 a seguinte: os apiaks estariam se afirmando hoje como povo,
independentemente das relaes estabelecidas com os mundurukus, os kaiabis, diversas
categorias de brancos e o Estado brasileiro? Para tentar responder a esta pergunta,
retomaremos alguns conceitos-chave da literatura sobre etnicidade.
Em 1967, F. Barth, que fora aluno de E. Leach, redefiniu o conceito de grupo
tnico, recusando a equao tradicional entre uma raa, uma cultura e uma lngua, bem
como a proposio de que uma sociedade uma unidade que rejeita e discrimina outros
(Barth 2000a: 27). O ponto de discordncia de Barth em relao definio at ento
aceita era seu carter preconcebido, que no levava em conta as categorias empregadas
pelos prprios atores (: ibidem). De outro modo, o autor sublinhava que a principal
caracterstica dos grupos tnicos, entendidos como tipos organizacionais, a de regular
as interaes entre as pessoas e, nesse sentido, as categorias tnicas oferecem um
recipiente organizacional que pode receber contedo em diferentes quantidades e
formas nos diversos sistemas socioculturais (: 33).
A nfase desse novo conceito de grupo tnico recai, assim, sobre a atribuio
tnica; o pertencimento ao grupo tnico passava a ser definido em termos de adeso e
compromisso, e o foco da anlise era deslocado da unidade cultural para a fronteira
tnica, um conjunto de prescries e critrios de avaliao e de julgamento (valores)
que governam as situaes de contato (: 34), no havendo, portanto, correspondncia
necessria entre um grupo tnico e um conjunto de sinais culturais diacrticos.
Em seus estudos sobre relaes entre indgenas e brancos no Brasil, R.
Cardoso de Oliveira dialogou com F. Barth, focalizando especialmente o carter
relacional (contrastivo) da identidade tnica e sua associao a valores. Em seu esforo
terico para constituir etnia como um conceito e um objeto de anlise sociolgica,
Cardoso de Oliveira combinou o empreendimento analtico empregado por C. LviStrauss para redefinir o totemismo ao conceito de ideologia proposto por N. Poulantzas.
Nesse horizonte, Cardoso de Oliveira comps a noo de ideologia tnica, aquela que
articula relaes sociais a valores em situaes de contato intertnico (Cardoso de
Oliveira 1976: 100ss). Este autor concluiu que a etnia serve como o cdigo, a
gramtica de uma linguagem social, capaz de orientar os agentes de modo subliminar
94
95
Bartolom sublinha ainda que o mito da existncia na Amrica Latina, no passado e no presente, de
sociedades puras, dotadas cada uma de uma cultura especfica e singular, um tanto enganoso e tem
sido criticado com base em distintos pontos de vista, assim como o fez Boccara (2000) ao insistir na
flexibilidade e na adaptabilidade dos grupos indgenas, cuja lgica poltica e social inclua uma abertura
s relaes interculturais (Bartolom 2006: 43). Bartolom chama de cegueira ontolgica atitude
poltica de suprimir a diversidade tnica presente nos processos de constituio das ideologias
nacionalistas (Bartolom 2006: 45).
97
99
Segunda Parte.
Na segunda metade do sculo XX, observou-se o fortalecimento da identidade
tnica apiak, que pode ser definido como reetnizao ou atualizao identitria
(Bartolom 2006: 57), na medida em que no ocorreu uma ruptura radical da memria
genealgica apiak, embora a coletividade tenha recorrido a novas representaes,
assumidas como fundamentais, numa conjuntura histrica em que se mantm as
fronteiras entre grupos que se percebem como diferentes. Simultaneamente, a ao
poltica desse novo sujeito coletivo, o povo apiak, foi canalizada para dignificar o
elemento tnico e para dar um sentido positivo condio indgena (: ibidem).
Foi a vontade de ficar perto dos parentes que levou os apiaks que haviam
permanecido separados, distribudos em famlias conjugais ou extensas, a se
reagruparem nos anos 1960, no Rio dos Peixes, por influncia do missionrio jesuta
Joo Dornstauder. Atualmente os apiaks aldeados somam cerca de 500 pessoas (censo
de 2007), distribudas em aldeias s margens dos rios Juruena, dos Peixes e Teles Pires;
centenas de parentes dos apiaks aldeados vivem em cidades dos estados de Mato
Grosso, Par e Amazonas.62 A populao total apiak, no presente, gira em torno de
800 a mil indivduos. Alguns homens influentes dizem que, se os apiaks que esto
espalhados fossem reunidos em aldeias, contabilizariam quase 5 mil, cifra que me
parece um tanto inflacionada. No entanto, os apiaks que vivem em aldeias em
territrio kaiabi e munduruku e, por vezes, dominam estes idiomas, se identificam
circunstancialmente como kaiabis ou mundurukus, o que torna meu censo algo
impreciso, por isso saliento que se trata de nmeros aproximados.63
Os apiaks contam que os Morim foram o primeiro de seus subgrupos a ser
amansado, nas primeiras dcadas do sculo XX, vivendo assim por mais tempo em
colocaes de seringueiros e casando-se com arigs e kokamas, na regio do baixo
curso dos rios Juruena e Teles Pires. Os subgrupos Kamassori e Paleci foram
amansados mais tarde, com a ajuda dos Morim, e viveram durante dcadas nas
imediaes da Misso Cururu, no Par, casando-se com os mundurukus e os kaiabis.
Os apiaks legtimos portam os nomes desses subgrupos Morim,
Kamassori e Paleci como sobrenomes tnicos distintivos, transmitidos tanto pela me
62
100
como pelo pai.64 Os apiaks orgulham-se por ter mantido seus sobrenomes, ao contrrio
dos kaiabis, que os teriam perdido; por outro lado, ressentem-se de uma memria
genealgica bastante restrita. A maioria das pessoas adultas com quem conversei
durante meu trabalho de campo sabia dizer apenas os nomes de seus pais e irmos e os
de um ou dois avs e tios paternos e maternos; por vezes, meu interlocutor sabia que
uma outra pessoa era um primo ou um tio, mas no conseguia traar a ligao
genealgica precisa. No entanto, aps oito meses de pesquisa de campo, consegui traar
um mapa genealgico bastante completo, alcanando a terceira gerao ascendente das
pessoas que hoje tm entre 20 e 40 anos.
Desde os anos 1990, os apiaks vm restringindo os casamentos com os
vizinhos kaiabis e mundurukus e com descendentes de arigs. Manifestam preferncia
declarada pelo casamento entre parentes distantes (ver captulo 4), como forma de
fortalecer o povo.
D. Gallois (2007) fala em etnognesis (no plural) entre os waipis (tupiguaranis), referindo-se a uma lgica indgena de gesto de relaes, no limitada ao
contexto colonial. A autora recusa a imagem de fechamento sociocosmolgico que se
forjou para definir as sociedades guianenses e prope que as redes de comunicao
regionais sejam analisadas a partir dos ricos processos por meio dos quais esses grupos
se reclassificam permanentemente aos outros e a si mesmos, em gradientes altamente
manipulveis de alteridade (Gallois 2007: 49). Empregando o conceito de agncia,
Gallois demonstra a existncia de um gradiente de alteridade em que se amparam os
critrios de julgamento ou classificadores de aparncias (substncias, aparncia fsica e
modo de vida) aplicados queles com quem os waipis se relacionam (: 55),
configurando-se um sistema relacional aberto, no seio do qual a dialtica de
proximidade e afastamento social se norteia pela possibilidade de domesticao.
Uma vez que os elementos culturais so concebidos como negociveis, a
proximidade seja ela promovida por troca de substncias ou em contato superficial
no uma posio ontolgica definitiva. o produto de um intercmbio agenciado (:
73). O pensamento waipi sobre a diferena pauta-se, assim, pelas interaes
especficas, efetivas:
(...) as apreciaes que os Waipi formulam sobre a proximidade entre
gente diferente podem ser alteradas com o desenrolar de experincias de
convivncia. No se trata, portanto, de pensar a diferena como algo dado a
64
Os Palecis so os descendentes dos nos. 17, 18 e 19; os Kamassori, do casal 21 e 22, e os Morims, dos
nos. 8, 9, 11, 12, 13, 14, 15 e 16 que constam no Diagrama 3.1 no captulo 3.
101
partir de essncias, mas como algo que se transforma por meio da troca de
substncias, que, at certo ponto, so passveis de mistura (...) (Gallois 2007:
65).
A noo de sistema relacional aberto aplica-se bem aos apiaks. Se eles
sustentassem um sistema relacional mais rgido, dificilmente teriam conseguido se
adaptar aos efeitos desagregadores da frente da borracha. Como vimos no captulo 1, a
ao dos apiaks na segunda metade do sculo XIX deu-se no sentido de incorporar
elementos estranhos e acomodar-se s circunstncias impostas. No sculo XX,
diluram-se entre os mundurukus do alto Tapajs, mas, assim que foi possvel
reorganizar-se como povo, eles passaram a afirmar uma especificidade cultural e
poltica.
O ponto a enfatizar aqui o fato de que as pessoas reorganizam as categorias
de classificao do mundo a partir da prtica, da ao no mundo. De acordo com M.
Sahlins:
A ao simblica um composto duplo, constitudo por um passado
inescapvel e por um presente irredutvel. Um passado inescapvel porque os
conceitos atravs dos quais a experincia organizada e comunicada procedem
do esquema cultural preexistente. E um presente irredutvel por causa da
singularidade do mundo em cada ao (...) A diferena reside na irredutibilidade
dos atores especficos e de seus conceitos empricos que nunca so precisamente
iguais a outros atores ou a outras situaes nunca possvel entrar no mesmo
rio duas vezes. (...) Porque, se sempre h um passado no presente, um sistema a
priori de interpretao, h tambm uma vida que se deseja a si mesma (como
diria Nietzsche) (Sahlins 1990: 189).
O prprio Lvi-Strauss reconheceu que os sistemas classificatrios permitem
integrar a histria, mesmo e sobretudo aquela que se poderia acreditar rebelde ao
sistema (Lvi-Strauss 1962: 270).
Por seu turno, B. Albert explica que
Na medida em que seus sistemas de construo simblica do Outro
constituem o quadro e a condio de possibilidade de sua autodefinio, as
sociedades indgenas, ao confrontarem os brancos, tm, necessariamente, que
passar por um processo de redefinio identitria no qual so reconstrudas as
fronteiras tradicionais da alteridade, desestabilizadas por esse encontro (Albert
2002: 13)
Desde os anos 1980, a cena poltica nacional caracteriza-se por um respeito
maior aos direitos dos povos indgenas; entretanto, a memria coletiva nem sempre
suficiente
para
garantir
os
direitos
constitucionais
povos
culturalmente
102
Os mundurukus e os kaiabis reconhecem que os cocares apiaks eram os mais bonitos da regio.
Atualmente, vrios rapazes apiaks confeccionam cocares de penas a partir das aquarelas de Florence,
reproduzidas no livro da Expedio Langsdorff presenteado pela tataraneta do desenhista, como j foi
mencionado. As pessoas mais velhas disseram lembrar-se da coroa radial emplumada da foto 18 dos
Anexos: Os antigo usavam isso nas festas, e informaram que as penas amarelas so do pssaro japu.
103
107
macacos, queixadas, antas, pacas, cutias, tatus e vrias aves utilizadas na alimentao; o
rio deve oferecer diversidade de peixes e quelnios;66 na mata deve haver espcies
vegetais empregadas para fins medicinais e para se confeccionar anis, pulseiras,
colares, arcos, flechas, bordunas, cocares, bancos, peneiras, paneiros, tipoias, alm de
castanheiras, de rvores onde vrios tipos de abelhas constroem suas colmeias, das
palmeiras de cujos frutos se fazem vinhos (aa, bacaba, buriti, patau) e de cujas
folhas se faz a cobertura das casas (babau e inaj). O espao que se pode percorrer
durante caadas e viagens de coleta deve ser extenso, pois Apiak gosta de andar.
Neste sentido, os apiaks das aldeias Mairowy e Pontal so mais felizes que
os parentes do Mayrob porque comem tracajs no vero, caam queixadas gordos com
frequncia e encontram palha de babau para cobrir suas casas. Alguns moradores do
Mayrob chegam a viajar de canoa para o Arinos, no vero, para pescar tracajs; a
viagem dura sete dias e sete noites.
A semelhana desta concepo de aldeia com o conceito de tekoha dos
guaranis flagrante. Tekoha o conjunto formado pelo rio, pelos acidentes geogrficos,
pela mata e todos os seres que nela habitam (animais, vegetais e espritos); a
materialidade do territrio assim investida simbolicamente para constituir o espao
vital onde se efetivam as relaes sociais e o modo de ser guarani (para o caso mby,
ver S. Guimares 2001, 2004, 2006; Ladeira 2001).
Desde Boas e Mauss sabemos que o espao investido simbolicamente. K.
Basso (1996) mostrou como os apaches ocidentais historicizam seu territrio, indicando
que os termos histria indgena e etno-histria parecem cada vez mais ceder
terreno a um tipo de estudo antropolgico prximo a uma etno-geografia, uma vez
que muitos povos de tradio oral impregnam o espao de uma concepo sobre o
passar do tempo e de valores morais que tornam nica uma dada comunidade. Para os
apaches ocidentais, histria a arte narrativa de construir lugares por meio de
imagens do passado que aprofundam a conscincia do presente. dessa maneira que a
busca das concepes indgenas de histria adquire os contornos de uma etnografia
das topografias vividas (Basso 1996: 111), cuja densidade humana se expressa sob a
forma de quadros simblicos sobre o mundo fsico associados a padres de
comportamento socialmente sancionados.
66
O Juruena e o Teles Pires tambm so apreciados porque em seu curso, no vero, formam-se
praias onde as tartarugas pem ovos, os quais so considerados como verdadeiras iguarias pelos
apiaks.
110
Analogamente, Laraia fala sobre a insistncia com que os akuawa-asurinis, os surus e os kaapor, povos
tupi-guaranis, referem-se a outros ndios aparentados, aqueles que ficaram no mato, aqueles de quem se
separaram em funo de uma contenda violenta e grupos de caractersticas nitidamente mitolgicas
(Laraia 1984/85: 26), sugerindo a importncia deste tema para a compreenso do processo de segmentao
que teria originado os povos tupis contemporneos.
68
Estou parafraseando S. Kirsch 2002: 68.
111
113
Segunda Parte
Organizao Sociopoltica
114
Prlogo
115
povos
tupi-guaranis,
mesmo
aps
dcadas
de
disperso
territorial,
117
118
Os apiaks que moram em aldeias afirmam com orgulho que hoje em dia
vivem em comunidade, uma forma de organizao social e poltica surgida na
segunda metade do sculo XX, que se distingue tanto das casas comunais (malocas) do
sculo XIX69 quanto dos pequenos grupos em constante deslocamento dos parentes
isolados que eles afirmam existir no Pontal. A comunidade equivale ao grupo local e
designa um nmero de famlias extensas ligadas por laos de parentesco, polticos e
econmicos, que ocupa e utiliza uma mesma poro territorial e reconhece a autoridade
poltica do cacique, podendo incluir tambm os ribeirinhos vizinhos.
Uma comunidade considerada boa aquela em que se observam os princpios
morais da generosidade, do pacifismo e da hospitalidade e onde existem escola, posto
de sade, salo, campo de futebol, pasto, casa de forno, cozinha e roa comunitrias,
estrada ou pista de pouso e bens materiais de uso coletivo (como voadeira, motor de
popa, tacho de metal para torrar farinha, caminhonete, moto-serra, aparelho de TV e
antena parablica, cabeas de gado etc.).70 As pessoas dizem que as aldeias apiaks so
bonitas, alegres e tranquilas. A comensalidade por ocasio das festas e a cooperao
durante a construo daqueles espaos de uso coletivo, a comear pela abertura da
clareira onde ser implantada a aldeia, formam as bases principais da solidariedade
comunitria.
Na aldeia Mayrob, o posto de sade uma construo de alvenaria que
comporta uma pequena farmcia, sala de atendimento, quarto e banheiro, enquanto no
Mairowy consiste numa modesta construo de adobe com apenas um cmodo. No
posto fica guardado o aparelho de radiofonia, o que o torna um espao bastante
69 As grandes casas comunais, que abrigavam mais de 100 pessoas, devem ter sido abandonadas em
meados do sculo XIX, pois em 1828 H. Florence ainda as encontrou na regio da embocadura do Arinos
no Juruena (Komissarov 1988). De acordo com a memria dos velhos apiak, as casas de pequenas
dimenses vigoraram durante todo o sculo XX.
70 O local onde os apiaks enterram os mortos tambm integra os domnios da aldeia. No Mayrob, foi
construdo um cemitrio nos anos 1980, distante alguns quilmetros das casas. Com o passar dos anos,
as casas se multiplicaram ao redor do cemitrio, que passou a ocupar uma posio geogrfica mais ou
menos central, fato que no visto com bons olhos pelos moradores. Os apiaks do Mairowy enterram
seus mortos num ponto no habitado, distante alguns quilmetros a jusante da aldeia.
119
120
organizao social (Estado, nao, sociedade etc.), ela [a comunidade] parece jamais ser
usada de modo desfavorvel e nunca receber nenhum termo positivo de oposio ou de
distino (: 104). Comunidade refere-se, assim, a um sistema de vida comum, a
relaes face a face e cooperao mtua, por oposio competio individual que
passa a informar o conceito ocidental de sociedade no incio do sculo XIX (: 382).
primeira vista, a vida cotidiana da comunidade apiak parece pautar-se pelo
ritmo imposto pela escola e pelo posto de sade; em geral as pessoas respeitam os
horrios para ir tomar remdios e para ir s aulas, e se queixam dos profissionais noindgenas que se atrasam para suas tarefas. O outro espao social capaz de impor seu
ritmo ao cotidiano o salo; aproximadamente uma vez por semana, normalmente pela
manh, o cacique faz soar o sino do salo, conclamando os moradores a se dirigirem at
l para discutir algum assunto concernente coletividade, como a preparao de uma
festa ou o conserto do motor de popa da voadeira da comunidade o debate sendo
geralmente acompanhado por um cafezinho preparado pela cacica ou por alguma outra
mulher influente. No Mayrob, o salo ainda palco das missas dominicais, celebradas
de manh pelo padre que ali reside. Por volta das cinco horas da tarde, especialmente
nos finais de semana, muitos homens e algumas moas ocupam o campo de futebol
para, divididos em times de solteiros e casados, jogar animadas partidas observadas
alegremente pelos co-residentes.
Mas a verdade que essas atividades programadas ficam em segundo plano em
relao s expedies de caa, pesca e coleta, ao plantio e limpeza da roa, colheita,
ao cuidado dos filhos ou irmos menores, ao beneficiamento da castanha-do-par,
confeco de artefatos e vrias outras ocupaes imperiosas, que acontecem sem hora
marcada, para a exasperao de professores, enfermeiras e por vezes tambm dos
caciques. Os apiaks levantam-se pouco antes dos primeiros raios de sol, por volta das
5h30, tomam um desjejum composto pelas sobras da refeio da noite anterior e por
caf, e comeam a planejar seu dia sem muita convico. Perto das 7h, alguns homens
se dirigem para a casa do cacique, para tomar caf e discutir alguma questo de ordem
particular ou coletiva. As crianas frequentemente faltam aula ou se atrasam, e muitos
adultos perdem a hora para tomar um remdio no posto. Costuma-se ir roa
diariamente pela manh. Enquanto os homens saem para pescar, caar ou coletar algum
fruto ou mel na mata, as mulheres dedicam-se ao cuidado dos filhos e da casa e ao
preparo das refeies, geralmente duas: almoo, aps as 10h, e jantar, ao cair da tarde.
121
Assim, se o posto de sade atrai muita gente pela manh e no fim da tarde, no
tanto pela necessidade de remdios,73 mas sim pela vontade de saber o que se passa
nas outras aldeias, vontade que satisfeita por meio do sistema de radiofonia. J no que
toca escola, existe um desejo unnime de que as crianas aprendam a ler, a escrever e
a realizar as operaes matemticas bsicas, para saber se virar no mundo dos
brancos. A aquisio dos saberes dos brancos, contudo, no exime as crianas de
aprenderem as tcnicas de caa, pesca, coleta, agricultura, culinria, artesanato etc. e,
enquanto perfeitamente aceitvel que uma criana de 10 anos no saiba escrever seu
nome, um menino da mesma idade que no saiba pescar ou uma menina que no saiba
tratar o peixe algo impensvel.
A organizao das atividades econmicas e de lazer pauta-se efetivamente pela
alternncia das duas principais unidades de tempo: o vero ou estao seca e o
inverno ou estao chuvosa. No ecossistema amaznico, a variao do nvel dos rios
pode chegar a 10 metros, alterando bastante o aspecto das aldeias; no vero, preciso
ter habilidade para subir e descer o amplo plano ngreme que se forma na margem. O
vero a poca de maior fartura alimentar, quando se colhem vrios tubrculos e outros
vegetais, se pescam tracajs e tartarugas e se apanham seus ovos nas praias, se coletam
o aa, o buriti, a bacaba, o patau e outros frutos para preparar vinhos (sucos); h
muito peixe no rio e muita caa na mata, alm de diversas larvas e cogumelos. A
maioria dos banquetes festivos ocorre no vero. O inverno triste porque difcil sair
para caar e as roas ainda no esto produzindo, embora seja possvel coletar diversos
frutos silvestres (ver Tabela 3.1). Novembro tempo de espiar sava, cujo traseiro
consumido sob a forma de farofa, misturado farinha; entre dezembro e fevereiro
poca de quebrar castanha e de ir para a cidade comprar objetos industrializados.
73
Uma palavra sobre os frmacos. Diversos antroplogos salientaram que os frmacos so inseridos no
circuito indgena de ddivas, e muitas vezes tm subvertidas suas funes medicinais. Registro que os
apiaks tambm atribuem um valor de uso e um valor de troca aos remdios industrializados, mas no
apenas os remdios so inseridos no circuito de ddivas: as enfermeiras so chamadas a participar
desse circuito e, assim, aquelas que do mais remdios (anti-helmnticos, analgsicos) ganham mais
alimentos dos moradores da aldeia, so consideradas boas e, por isso, podem ser chamadas a batizar
uma criana sero boas madrinhas porque j compreenderam a lgica socioeconmica local.
Esclareo que as enfermeiras trabalham em sistema de rodzio: passam um ms numa aldeia e, em
seguida folga, so enviadas para outra aldeia; nunca se sabe ao certo quando elas retornaro para a
primeira aldeia.
122
123
ces de guarda74 para proteger as casas. O mundo subaqutico concebido como uma
rplica do mundo humano, com roados e casas; os temidos seres encantados que a
habitam, designadamente a me dgua (em apiak: ajng),75 a sucuriju (mosaha, a
dona dos peixes) e os botos (piraputa), por vezes tentam seduzir as pessoas; quando
conseguem capturar a sombra (sinnimo de esprito e alma, ver captulo 4) de uma
pessoa, seu corpo pode definhar at a morte. A vtima desses seres torna-se aptica,
pode apresentar febre e inapetncia, ter pesadelos, delrios e passar a recusar o convvio
dos co-residentes; preciso ento acionar um rezador, que faz oraes e agita folhas de
pio-roxo (Jatropha gossypiifolia) sobre o corpo do doente.
Na mata existem o sirura, ser antropomrfico que confunde o caador,
fazendo com que se perca; a cobra jiboia e uma certa liana (cip-alho) tambm
desorientam o homem, que passa a andar em crculos e perde a trilha; o macaco
jurupari,76 que ataca noite, degolando a vtima e sugando seu sangue; o capelobo (ou
mapinguari), ser fedorento que causa morte aos homens; os bandos de queixada que, se
desafiados com atitudes inadequadas da parte do caador, como gritos e gargalhadas,
podem capturar seu esprito, a cura desse mal sendo obtida por meio de banhos com
plantas da floresta;77 o sirurekandga, dono, chefe e esprito das espcies animais, que
no representa propriamente um perigo para os homens, no pode ser alvejado (O
sirurekanjga um vaqueiro, o porco a vaca dele)78 para assegurar a abundncia
de caa, costuma-se agrad-lo, deixando um cigarro na cavidade de um tronco. Como se
74
Os apiaks dizem que o co paj, pois ele v coisas que as pessoas comuns no enxergam; explicam
que, para conseguir ver bichos e espritos, pode-se colocar a secreo dos olhos do co sobre os prprios
olhos, mas muito ruim, porque a pessoa no consegue mais dormir.
75
Anhanga uma espcie de demnio da tradio tupi-guarani e o esprito canibal associado aos mortos
dos tupinambs antigos (Mtraux 1979: 56). Para vrios povos tupi-guaranis contemporneos,
anhanga o espectro do morto (cf. Viveiros de Castro 1986: 255; ver especialmente o anhang
kagwahiv in Kracke 1978 e o anchunga tapirap in Wagley 1988), associao que os apiaks jamais
explicitaram, mas que perfeitamente compatvel com suas concepes sobre o sobrenatural.
76
Jurupari para os antigos tupis do norte era um esprito perverso que povoava a floresta e perseguia os
ndios (Mtraux 1979: 58). provavelmente uma variao do temido jupar ou macaco-da-noite
(Potos flavus) conhecido pelos tupi-guaranis amaznicos, associado morte; os arawets, por
exemplo, dizem que ele estrangula as pessoas adormecidas que encontra (Viveiros de Castro 1986:
198, 503). Os teneteharas associam o zurupari ao demnio cristo (Wagley & Galvo 1961: 108). Os
mundurukus tambm temem o yurupar, espritos que atacam os humanos arbitrariamente (Murphy
1958: 17).
77
O queixada um animal importante nas narrativas mticas tupis. A caa aos queixadas entre os jurunas
tambm cercada de prescries especiais, designadamente o silncio (Stolze Lima 1986: 159; 1995:
107). A autora insere o mito juruna da origem dos porcos selvagens na srie mtica analisada no
primeiro volume das Mitolgicas (que inclui um mito munduruku), em que Lvi-Strauss a explica
como resultado de um conflito entre aliados em que tomadores de mulheres foram transformados em
porcos como castigo por uma conduta a-social, relativa a contraprestaes alimentares (: 164).
78
Lembro que, para os xipaias (tupis), existe um homem-porco, com funes de paj, o mesmo que os
jurunas chamam de Huza ekia, descrito como um homenzinho que vai montado em um porco da
vara e que v tais porcos como seu gado (C. Nimuendaju citado por Stolze Lima 1986: 165).
124
nota, a relao com o dono dos animais define-se como uma espcie de camaradagem
respeitosa: possvel convenc-lo, mediante presentes, a liberar uma quantidade
razovel de caa para a alimentao.
Em meio a tantos perigos e mistrios, a aldeia surge como produto fsico do
trabalho continuado de transformao do ambiente executado pelos co-residentes (Gow
1991: 179). Diariamente, as mulheres apiaks varrem e capinam seu terreiro; uma vez
por semana, elas varrem a rea comum em torno do salo, auxiliadas por crianas que
recolhem e descartam o lixo, composto basicamente por embalagens de objetos
industrializados. O trabalho, realizado por mulheres e crianas, determinado e por
vezes coordenado pelos homens influentes. Aldeias bonitas e limpas so motivo de
orgulho para os apiaks, que no deixam de comentar a meia-voz a m aparncia das
aldeias kaiabis, referindo-se existncia de mato e lixo nos terreiros e caminhos.
As roas dos apiaks so outro motivo de orgulho para seus donos, sendo que
os produtos agrcolas, especialmente os tubrculos, constituem a base da alimentao
cotidiana. O tamanho das roas varia na proporo do nmero de membros da famlia
conjugal e da disposio do homem para o trabalho, j que ele o responsvel pela
derrubada. As roas distribuem-se de modo arbitrrio no territrio da aldeia, de acordo
com o desejo de cada famlia conjugal, e localizam-se a uma distncia que varia de 10 a
40 minutos de caminhada em relao s casas.79 Todo o territrio da aldeia, isto , o
entorno das casas utilizado para atividades econmicas, de posse coletiva. No existe
propriedade privada da terra, o que existe o direito de uso de cada famlia conjugal,
que vigora por tempo indeterminado. comum uma famlia deixar de usar a parte de
mata que derrubou porque vai passar um tempo na aldeia dos pais de um dos cnjuges,
por exemplo, e ento cede este terreno para algum co-residente, cessando assim seu
direito de uso.
Os apiaks praticam a agricultura de coivara, na qual se efetuam a derrubada e
a demarcao das roas a partir do ms de abril, e a reunio e a queimada dos troncos e
galhos em agosto, isto , na estao seca; o plantio inicia-se em meados de setembro,
com as primeiras chuvas. Utiliza-se o sistema de pousio, no qual uma parte da rea
desmatada fica descansando enquanto se trabalha outro trecho, de modo a intensificar a
79
No Mayrob, hoje preciso cruzar o rio para chegar s roas (ver Figura 3.2). Como a aldeia cresceu
demais, a terra na margem direita do rio tornou-se infrtil, e os apiaks passaram a utilizar uma poro
da margem esquerda, de posse dos kaiabis do Tatu.
125
fertilidade do solo; assim, uma famlia pode possuir simultaneamente at trs roas em
estgios diferentes: uma em descanso, outra produzindo e uma terceira recm-plantada.
Os produtos da roa jamais so vendidos dentro da aldeia, eles no so
comercializveis, no tm valor econmico.80 Quando desejam um abacaxi ou uma
melancia da roa de um co-residente no-aparentado ou apenas remotamente
aparentado, os apiaks costumam perguntar em tom retrico, em pblico: Por quanto
voc vende esse abacaxi? Sugerir a compra de um produto da roa deixa o dono do
produto numa situao de grande constrangimento, e ele geralmente acaba dando e
no vendendo o que foi pedido. Assaltar a roa de outrem outro expediente
relativamente comum, que gera forte sentimento de raiva na vtima, a qual, entretanto,
jamais acusa publicamente o infrator, mesmo quando todos sabem de quem se trata e
os suspeitos so, normalmente, adultos solteiros e meninos desocupados. Por outro lado,
a farinha de mandioca e a tapioca so livremente vendidas no s para forasteiros como
tambm para qualquer pessoa de fora da famlia extensa. Observo que pedir em pblico
algo extremamente mal-visto. Membros de uma famlia extensa jamais pedem algo
formalmente ou em pblico, eles apenas insinuam um desejo que deve ser prontamente
atendido; rudos nesta forma de comunicao indicam srias tenses latentes. Pedidos
para o cnjuge tambm se fazem em particular.
Ao lado da agricultura, a pesca, a caa e a coleta so, nesta ordem, as principais
atividades de subsistncia nas aldeias. A utilizao das diversas tcnicas de pesca
depende da estao do ano: no inverno, quando o rio est cheio, os homens pescam em
remansos com a canoa parada, valendo-se de canio, linha e anzol e da isca preferida
pelo peixe visado; noite, armam espinhel, uma armadilha feita com linha de nilon e
isca; durante o dia, fazem esperinha (armadilha) tambm com linha de nilon e isca.
No vero, dirigem-se s quedas dgua para pescar peixes grandes com arpo ou arco e
flecha; fazem excurses a lagoas para bater timb, uma liana que retira o oxignio da
gua; colocam tapagens (armadilhas) em igaraps; em noites de luar, saem para
zagaiar (para pescar com zagaia). Tracajs so pescados com linha e anzol ou com
arpo. Hoje em dia os apiaks caam mais com espingardas, mas ainda utilizam arco e
80
Minhas consideraes sobre a mercadoria baseiam-se nos artigos de Appadurai (1986) e Kopytoff
(1986), que definem a mercadoria como uma fase na vida de qualquer objeto. Enquanto Appadurai
fala em regimes de valor e em controle poltico da demanda, recusando a distino radical entre troca
de mercadorias, troca de ddivas e escambo, Kopytoff trata da biografia cultural dos objetos,
defendendo que h um paralelismo na forma como as sociedades produzem objetos e pessoas.
Debatendo com a economia poltica marxista, ambos focalizam a troca como fonte de valor e pensam
a poltica como nvel intermedirio entre troca e valor.
126
flecha; costumam sair em grupos pequenos, noite, para fazer espera, isto , aguardar
a presa de cima da copa das rvores. O homem faz a coleta de frutos de palmeiras
galgando as rvores com o auxlio de uma tira de envira e cortando os cachos maduros
com faco.
A comida de ndio ou comida de verdade, consumida no dia-a-dia, compe
uma cozinha sofisticada, e consiste em diversos tipos de peixe ou carne de caa muito
bem cozidos; essas carnes so consumidas assadas; sob a forma de caldo; sob a forma
de mingau (mujica); ou moqueados, envolvidos em folha de pacova, forma conhecida
regionalmente como pupecado, e invariavelmente so acompanhadas de farinha de
mandioca.81 Embora o peixe seja o alimento cotidiano, a carne de caa considerada a
comida de ndio por excelncia. Aps trs dias de refeies compostas de peixe,
comum ouvir as pessoas dizerem: Estamos sem comida, os homens tm que ir caar.
A qualidade mais apreciada da carne sua gordura; os caadores desprezam presas
muito magras, pois consideram a ausncia de gordura um sinal de doena. A carne de
caa circula obrigatoriamente no interior da famlia extensa e no comercializvel;
grandes quantidades de carne de caa do ensejo a banquetes no salo, como veremos.
Os apiaks tambm consomem frutos silvestres e cultivados, crus e sob a forma
de vinhos, acompanhados de farinha;82 bolos de mandioca, beiju e tapioca; tubrculos e
legumes cozidos e sob a forma de mingau (bebida no-fermentada); chicha (bebida
fermentada) de mandioca e milho; mel; cogumelos silvestres; palmito; larvas de
palmeiras; filhotes de marimbondo; a parte posterior da sava. Os pratos preferidos e
mais raramente consumidos pelos apiak, verdadeiras iguarias que distinguem sua
cultura daquela dos brancos e de outros povos indgenas (principalmente os kaiabis,
mundurukus e kayaps), so a carne de macaco cozida com leite de castanha-do-par e
o tracaj assado no casco. Os apiaks so seletivos em sua dieta; das cerca de 170
espcies conhecidas de aves, 60 de mamferos e quase 100 de peixes, consomem apenas
as que esto discriminadas na Tabela 3.1.83 So tambm excelentes agricultores, como
comprova a Tabela 3.1. A tabela 3.3 distingue as espcies animais e vegetais em termos
de sua circulao econmica.84
81
Os apiaks no praticam xamanismo alimentar, mas dizem que, quando um tipo de carne
(especialmente jabuti, queixada e macaco) faz mal para uma pessoa, ela deve consumir um pedao
carbonizado dessa carne, preparado por outra pessoa, como medida profiltica.
82
Preparam-se vinhos de aa, bacaba, buriti, murici, patau e uxi.
83
Quando indagados sobre caa, os apiaks mencionam as aves em primeiro lugar, seguidas dos macacos,
grandes mamferos e pequenos mamferos.
84
Acrescento que, no Mairowy, todo tipo de alimento passou a ser comercializvel em 2008, quando a
127
Caa
Pesca
Coleta
Anta
Aracu (5 tipos)
Abiu
Barbado
Aa
Catete
Bod (3 tipos)
Bacaba
Cigana (ave)
Chinelo
Buriti
Cujubim
Cruvina
Caf-de-macaco
Cutia
Curimat
Castanha-do-par
Galega (ave)
Dourada
Gog-de-cigana
Jacamim
Filhote
Ing
Jacu
Jandi
Jub
Jeju
Maaranduba
Macaco casemira
Lalau (3 tipos)
Mangaba
Mo-de-jabuti
coat)
Matrinx (2 tipos)
Mo-de-cachorra
Macaco cuxi
Mesca
Macaco prego
Peixe-cachorra
Murici
Marreco
Pescada
Patau
Piau
Pequi
Nambu
Piranha (6 tipos)
Pupunha
Paca
Sarap
Tapereb
Pato selvagem
Surubim (pintado)
Tucum
Queixada
Tambaqui
Uxi
Tatu (4 tipos)85
Trara
Tucano
Tucunar (2 tipos)
Mel
Filhotes de marimbondo
pelos velhos)
escola estadual comeou a comprar alimentos produzidos na prpria aldeia para a merenda dos alunos.
Existe uma lista de equivalncias monetrias baseada em pesos e medidas; assim, por exemplo, um
quilo de queixada vale o mesmo que um quilo de alcatra na cidade de Colider. Embora os indgenas
apreciem o fato de a merenda ser composta por alimentos culturalmente corretos, a maior
quantidade de dinheiro disponvel e a concorrncia que se estabeleceu entre as famlias geraram um
clima de muita tenso e maior individualismo na aldeia.
85
O tatu-canastra tabu alimentar: Se a gente come a carne dele, no outro dia algum da nossa famlia
adoece e morre.
86
Alm da carne desses animais, consomem-se tambm seus ovos salgados e sob a forma de gemada.
128
Tracaj
jabuti
(quelnio
terrestre) incerta
86
Produtos agrcolas
No.
de
variedades
Abacaxi
Abbora
Amendoim
Banana
Batata-doce
Caju
Cana-de-acar
Car
Feijo
Ing
Mamo
Mandioca amarga
Mandioca doce
Mangarito
Maracuj
Melancia
Milho
Pepino
Timb
Carne de caa
Tapioca
Tapioca
Peixes
Peixes
Frutos
Mel
Mel
exceo da castanha)
No se vende
silvestres
Mingaus e chicha
restries)87
Produtos agrcolas
Carne de boi
Tartaruga
(com
Vegetais da horta
Tracaj
********
Muitas pessoas recebem salrios pelos empregos na escola e no Posto de Sade
da aldeia, assim como aposentadoria e benefcios do governo federal; parte desse
dinheiro empregada para adquirir alimentos e objetos industrializados, de uso privado,
na cidade mais prxima; parte utilizada na aquisio e manuteno dos bens de uso
coletivo da aldeia. Na medida em que se presta compra de alimentos dentro e fora da
aldeia, o dinheiro desobriga os homens de grande parte das atividades de subsistncia;
durante o tempo livre, eles fazem poltica e festas. Assim, aqueles que recebem dinheiro
mensalmente devem contribuir com alimentos industrializados por ocasio de visitas de
forasteiros (brancos ou indgenas) e de comemoraes de datas do calendrio nacional,
momentos em que se preparam refeies extraordinrias, compostas de arroz, feijo,
macarro e suco em p, alm de carne de galinha (comida de civilizado ou comida de
luxo) ou algum peixe grande.
Para os apiaks, a hospitalidade com efeito um valor central na relao com
os outros, brancos e indgenas. Por ocasio da recepo de visitantes forasteiros, a
beleza e a organizao da aldeia so enfatizadas pelos homens influentes, bem como os
modos civilizados do cacique e de sua esposa. Aos forasteiros, especialmente aos
brancos amigos, aliados em potencial, oferecido tudo o que h de melhor na aldeia:
durante a refeio, pratos, talheres, copos decorados, boa comida (leia-se: comida de
87
Algumas mulheres me disseram que no vendem patos, galinhas e seus ovos porque isto atrairia m
sorte, isto , a criao comearia a definhar subitamente.
130
civilizado), caf; antes ou aps a refeio, o cacique ou seu substituto passeia com o
visitante pela aldeia, indicando tal ou qual elemento valorizado (rvores frutferas, casas
bem-construdas, a escola, a farmcia etc.), e pode tambm lev-lo a sua roa; se a visita
se estender, o anfitrio pode convidar o visitante para um passeio de voadeira pelos
arredores da aldeia. Nessas ocasies, o cacique sempre pergunta ao visitante se est
gostando da aldeia e quando pretende fazer nova visita, e invariavelmente faz a
comparao: Aqui assim, mas os kaiabis no recebem gente de fora desse jeito, no.
Os visitantes podem ser apresentados oficialmente no salo, para o que se
convoca uma reunio, mas normalmente na casa do cacique que so alimentados e
ficam acomodados. As esposas do cacique e dos homens influentes contribuem de
maneira decisiva para o bom desempenho da performance dos maridos;
responsabilidade delas preparar a refeio com capricho, deixar a casa apresentvel e
afastar polidamente eventuais penetras. Um cacique apiak mal escondia sua
insatisfao com a esposa que no dominava a etiqueta civilizada e por vezes fazia
feio diante de visitantes brancos, esquecendo-se de pr sabo no jirau para lavar as
mos aps a refeio, por exemplo. Possuir e ostentar objetos e alimentos refinados so
prerrogativas dos homens influentes; embora na maior parte do tempo eles se vistam e
se alimentem da mesma forma que os demais co-residentes, existe a expectativa
generalizada de que o cacique em especial passe uma imagem civilizada para os
visitantes. Beneficiando-se desta expectativa, o cacique utiliza objetos e modos
civilizados para obter prestgio dentro e fora da aldeia: junto a seus co-residentes, por
certo, mas tambm junto aos caciques das aldeias vizinhas, com os quais sempre se
podem estabelecer alianas vantajosas.
********
As casas dos apiaks contam com um terreiro, que serve de abertura para o
espao pblico, lugar de sociabilidade intensa, onde se pode comer em ocasies
especiais e realizar atividades como conversas informais, sesses de vinhos de frutas
silvestres, confeco de artesanato e cata de piolhos, que uma das maiores
demonstraes de cuidado entre os membros da famlia extensa.88 Belos ps de tucum e
inaj, nativos ou cultivados, adornam os terreiros; as sementes de seus frutos so
88
A famlia extensa apiak no uma categoria residencial fixa. Como veremos adiante, a maioria das
casas abriga famlias conjugais na maior parte do tempo, mas a proximidade fsica das casas de
membros de uma famlia extensa permite falar em conjuntos residenciais ou clusters.
131
As rvores frutferas ocorrem em maior quantidade e variedade no Mayrob e no Bom Futuro, aldeias
maiores e mais antigas.
90
Patos e galinhas so considerados de propriedade individual; por exemplo: um rapaz solteiro pode ser
dono de vrios patos, dos quais sua me toma conta.
91
A lenha tambm concebida como produto do trabalho humano, na medida em que resulta da
queimada realizada para a abertura do roado e fica armazenada neste espao domesticado.
132
s atividades que tm lugar ali. Alis, um dos maiores sinais de intimidade entre um
homem e sua esposa irem para a beira juntos, j que, em pblico, marido e esposa
geralmente evitam um ao outro.
As convenes sociais garantem alguma privacidade em certas ocasies:
nenhum adulto dirige olhares ou palavras para os outros quando, por exemplo, retornam
da beira para suas casas, molhados, carregando por vezes peixes e caa tratados.
Porm, todos sabem, normalmente, o que os co-residentes esto fazendo, onde e com
quem, e praticamente impossvel cruzar a aldeia sem ser percebido e por vezes
indagado: Vai aonde?, o que exprime o carter altamente pblico da vida diria
(Gregor 1982: 102). Nesse sentido, o salo e os terreiros so reas pblicas de alta
visibilidade, enquanto as casas so as regies privadas, de recato (: 60).
Geralmente, durante o crepsculo, crianas e adolescentes tomam conta dos
terreiros e do salo, divertindo-se com brinquedos improvisados e correndo de um lado
para outro, enchendo a atmosfera de alegria, espera do ronco do gerador de energia
que permitir o prolongamento do tempo de lazer at perto das 22h. Quando h diesel
para o gerador, as pessoas aglomeram-se no salo ou na sala das casas que possuem
aparelho de TV para assistir ao jornal e novela das oito. Os apiaks demonstram
grande curiosidade pelo modo de vida urbano exibido nas novelas, e chegam a adotar
algumas expresses verbais e gestuais, embora o comportamento amoroso dos brancos
lhes cause certa repulsa; as msicas que se ouve na TV so rapidamente memorizadas e
passam a ser cantadas no dia-a-dia, at mesmo pelas crianas menores. Crianas,
adultos e velhos so fs incondicionais do desenho do Pica-Pau, o que sugere uma
identificao com a premissa de que a astcia a arma dos mais fracos.
O crepsculo tambm a hora das visitas formais; depois de cumprirem a
maior parte das atividades domsticas, as mulheres, acompanhadas pelo marido e/ou
filhos pequenos, perfumadas e arrumadas, vo visitar suas mes, irms, cunhadas ou
comadres; este o momento das conversas descontradas, que tm lugar dentro de casa
ou no terreiro, acompanhadas por caf ou por um convite para jantar, se h fartura. De
outro modo, quando falta o diesel, os mais velhos apressam-se em colocar as crianas
pequenas para dentro de casa, temendo o ataque de onas e de espritos malignos;92 os
adultos da famlia extensa renem-se na casa (ou, quando a noite est agradvel, no
terreiro) de um de seus membros e as conversas so mantidas at altas horas, regadas a
92
Os teneteharas tambm ameaam os filhos desobedientes com a figura dos azang (espritos) (Wagley &
Galvo 1961: 83).
133
caf e eventuais guloseimas servidas pela dona da casa. Em geral so os homens que
falam, e os mais velhos podem contar histrias sobre o passado ou sobre pessoas que
viram bicho (ver adiante) sem ser interrompidos.
A mulher mais velha do Mairowy (no. 37 no Diagrama 3.1) demonstrava
grande preocupao quando seus netos pequenos recusavam-se a ir para casa noite,
preferindo correr por entre as casas, enquanto o gerador estava ligado. Ela costumava
bradar: Vai pra casa, menino! Sai do escuro! Ajng vai te pegar, tem bicho feio por
a! Uma histria sobre o canc (Cyanocorax cyanopogon), pssaro onvoro,93 fala da
guerra que alguns animais travam contra os humanos:
O pessoal da aldeia chegou perto de um crrego, um falou: Olha,
aqueles ndios queriam fazer guerra conosco, mas papai cortou a corda do arco
deles, seno eles teriam nos matado. Anoiteceram nessa aldeia, um falou:
Mulher, ns vamos fazer um jirau. Ela estava gestante do ndio e o ndio ia
lev-la para a aldeia; ele no tinha o que fazer, degolou a filha dele, a mocinha.
A o dono da filha falou: Cad minha filha, a mocinha no levanta? A foram
fazer o mingau deles, a chicha deles olha como estava de sangue! Agora
vocs vo pagar. Eles tinham levado a cabea da irm dele. O irmo dela
chorava. O homem falou: Cacique, ns vamos naquela aldeia. Eles tm que
pagar essa morte. Chegaram l, estava a mulher com uma banda na panela de
barro, o caldo estava amarelinho, estavam cozinhando a mocinha pra comer.
Eles pensavam que era pessoal deles que estava tomando conta da panela, mas
se enganaram. Eles pensam que vo danar com a cabea da minha irm, mas
no vo, ns vamos acabar com eles. Anoiteceu, e os guerreiros esperando. Eu
tenho que levar um, mataram minha irm. Quando a festa estava boa, atacaram.
Quando eles foram pegar os arcos deles, cad? As cordas estavam todas
cortadas. De manh, ele pegou o pedao da carne da irm dele, pegou a cabea
dela, colocou na pira e trouxe para a aldeia. Agora est pago. Na outra noite,
outro de novo, os cancs, parecia uma peste. Que negcio esse? Ns
acabamos com o cara, agora tem outro! Ningum quis mexer com ele. De vez
em quando, ele passava na porta do pessoal. Ele foi certo onde estava a menina.
A amarraram o camarada, bem amarrado no esteio, mas no deu jeito. Ele
olhava para o pessoal, com os olhos pequenos. um bicho, o pessoal dizia. O
pai da menina estava bravo: Ns vamos matar esse peste! O bicho criou perna,
asa, tudo: canc. Esse camarada mesmo, querendo levar a menina. Cantou: Eu
vim aqui na aldeia de vocs, espantar a filha de vocs. A um canc falou:
Vamos embora. Ns vamos pegar peixe l em cima. Foram embora. Por isso
eu digo para esses meninos no irem longe, tem muito bicho feio por a.
Observa-se aqui um procedimento de evocar condutas adequadas em relao a
lugares anlogo forma como os apaches empregam os topnimos, atribuindo-lhes um
valor moral e pedaggico; para os apaches, o discurso centrado em topnimos consiste
num gnero discursivo refinado, embebido de saber social, que explicita a premissa de
93
Os pssaros so muito importantes na cultura apiak; embora os indgenas conheam uma variedade
enorme deles, utilizam apenas algumas espcies na alimentao e na confeco de artefatos.
134
Apenas o Mayrob conta com mais de uma casa de forno da comunidade. No Mairowy, alm da casa de
forno comunitria, h uma casa de forno particular, utilizada por duas famlias conjugais vizinhas.
136
as demais fases sendo idnticas da farinha puba. Em geral, uma famlia conjugal,
auxiliada por membros da famlia extensa, prepara seis latas de 18 litros por vez,
produo que dificilmente dura mais de um ms, visto que distribuda entre outros
membros da famlia extensa.
Alm da farinha, as mulheres preparam na casa de forno: i) a tapioca, uma
farinha branca, de gros grandes, produzida a partir do polvilho da mandioca ralada que
se decanta na gua em que a massa foi lavada, ii) o bolo de mandioca com castanha
assado em folha de pacova e iii) a orelha-de-pau, uma espcie de bolacha fina, dura e
crocante, feita de mandioca e castanha.95 Se a produo da farinha e da tapioca requer a
ajuda dos homens, que se encarregam da torra, o preparo do bolo e da orelha-de-pau
tarefa exclusivamente feminina e agrega as mulheres da famlia extensa na casa de
forno; a produo de diversos tipos de mingaus igualmente tarefa exclusivamente
feminina, a qual tem lugar, entretanto, na cozinha da casa da mulher mais velha.96
Enquanto a farinha e a tapioca so comercializveis, seria simplesmente ridculo vender
um bolo de mandioca, uma orelha-de-pau ou uma cuia de mingau.
A cozinha comunitria uma estrutura fechada, de planta retangular,
semelhante s demais casas, que conta com um jirau e um fogo a lenha, onde ficam
armazenados os alimentos industrializados (arroz, feijo, sal, acar, leo, caf,
biscoitos etc.) que compem a merenda escolar, fornecida pela Secretaria de Educao.
Na cozinha comunitria, as cozinheiras voluntrias, mulheres influentes, que no
recebem remunerao pela tarefa, preparam grandes refeies para eventos
comunitrios. Apenas os homens influentes adentram a cozinha comunitria quando as
mulheres esto preparando a refeio especial; qualquer outra pessoa que entrasse e no
trabalhasse seria acusada de comportamento imprprio. Mais recentemente, as
merendeiras contratadas pela escola preparam a as refeies para os alunos, quando h
alimento.
95
96
137
O termo em ingls feeding captura de modo mais adequado o processo de construo de relaes
sociais por meio da ao de alimentar algum.
98
As festas por ocasio de aniversrio, casamento e batismo so muito raras para constituir uma
modalidade parte; nelas so convidados apenas os membros da famlia extensa, compadres e aliados
polticos, para uma refeio de carne de galinha ou pato e alimentos industrializados, que ocorre no
interior da casa do homenageado e normalmente suscita comentrios sobre a falta de generosidade da
famlia conjugal.
138
Novamente, os alimentos so postos sobre uma mesa que ocupa posio de destaque e
as mulheres tomam a dianteira na tarefa de servir os demais. Estas refeies, que no
chegam a ocorrer uma vez por ms na estao seca, tendem a ser mais animadas e
demoradas que as sesses de vinho.
Nas celebraes de datas comemorativas do calendrio nacional, o banquete
que tem lugar no salo deve contar com animais de criao (patos e galinhas) cozidos e
arroz, feijo, macarro e suco industrializado ou refrigerante. O objetivo dessas festas,
que em geral contam com ribeirinhos e moradores de aldeias vizinhas, homenagear
uma categoria de pessoa em particular: mes, pais, filhos, ndios. As festas realmente
boas so aquelas em que, alm dessa refeio, que pode ser almoo ou jantar, h
tambm caf da manh especial, em que se servem caf, biscoitos, bolo de mandioca e
at mesmo bolo de farinha de trigo, po e refrigerante.99 Esses produtos so comprados
com parte do salrio dos empregados da escola e do posto de sade. Nestas ocasies, as
mulheres influentes tomam a frente e organizam filas para distribuir os alimentos, de
modo a conter o tumulto e a avidez exacerbada, semelhantes descrio de Viveiros de
Castro sobre os banquetes coletivos arawets, que ele define como uma modalidade de
relao jocosa, uma estrutura cerimonial de hospitalidade, onde a violncia revela e
oculta a reciprocidade (Viveiros de Castro 1986: 292).100 Os alimentos exgenos
parecem sublinhar a assimetria social, numa situao em que os assalariados oferecem
alimentos extraordinrios para o conjunto da comunidade.
No entanto, tais banquetes contribuem para intensificar os laos de
solidariedade entre co-residentes no interior da aldeia; eles so pensados como uma
forma de sociabilidade controlada que visa infundir nas pessoas as virtudes sociais
necessrias ao bem-viver, de modo semelhante ao que ocorre entre os yaneshas do Peru
(Santos-Granero 2000: 271). digno de nota que os alimentos que engendram refeies
coletivas no salo sejam provenientes da coleta, da caa e da compra (alm da pesca e
dos animais de criao, em menor medida), quando se sabe que um produto agrcola
(o milho ou a mandioca fermentada) portanto um alimento cultivado no espao
domesticado que a roa o eixo do principal ritual praticado por diversos povos tupis,
a cauinagem, que tambm antecedia os ritos antropofgicos entre os antigos
tupinambs.
99
Na festa do dia das crianas que presenciei no Mayrob, houve ainda distribuio de balas e pirulitos.
A voracidade e o tumulto que caracterizam as refeies no salo contrastam vivamente com as
refeies cotidianas em contexto domstico, quando as pessoas mostram grande polidez.
100
140
carne de boi.101 A festa foi organizada pela associao indgena, entidade para a qual o
(pequeno) lucro da festa foi revertido. Apesar do cartaz de No vendemos fiado,
afixado no salo, vendeu-se muito fiado e, devido s inmeras crticas que receberam,
posteriormente os organizadores acabaram por desistir de cobrar as dvidas. As pessoas
que podiam pagar pela comida e pela bebida eram os funcionrios da escola; os demais
consumiram muito pouco ou quase nada.
Os kaiabis e mundurukus das aldeias vizinhas reclamaram bastante, pois
evidentemente no levavam dinheiro, mas nem por isso deixaram de comer e beber:
ocorre que conseguiram constranger os anfitries a demonstrarem generosidade, e
puderam comprar fiado. Os dilogos diante do caixa forneciam um espetculo parte;
homens j um tanto embriagados apelavam para uma relao de parentesco ou de
compadrio para forar os companheiros a lhes pagar mais uma cerveja; no entanto, as
vtimas preferidas eram os no-indgenas, profissionais de sade e convidados de
Juara que ficaram exasperados com a situao. Houve concurso de dana e sorteio de
brindes, todos vencidos pelos apiaks, no sem alguma ajuda dos organizadores da
festa, o que despertou entre os kaiabis e mundurukus comentrios sobre a
(im)parcialidade dos jurados.
O cantor, que iniciara o show por volta das 21h do sbado, fez uma pausa s 7h
da manh do dia seguinte, sob protestos. Durante a manh do domingo, diversas pessoas
se divertiam no salo ao som de CDs, queixando-se de que o cantor no era de nada.
Houve torneio de futebol,102 dividido em masculino e feminino, sendo que os homens
apiaks demonstraram enorme insatisfao ao entregar o trofu de campeo aos kaiabis;
alguns apiaks, mais exaltados, quase partiram para as vias de fato. Durante os dois dias
de festa, os homens influentes apiaks serviam-se do microfone no palco para enaltecer
a comunidade diante dos forasteiros e pedir para que os companheiros no fizessem
nenhuma besteira, apenas se divertissem, de modo a aplacar os nimos, acirrados pela
presena dos kaiabis e mundurukus. Ocorre que, dias antes da festa, circulava o boato
de que os kaiabis iriam fechar a estrada que d acesso ao Mayrob, para impedir que o
cantor e os convidados de Juara chegassem aldeia; alm disso, alguns mundurukus
101
O boi foi comprado numa fazenda vizinha especialmente para esse fim. No acredito que carne de caa
pudesse ter sido vendida.
102
comum moradores de aldeias vizinhas reunirem-se para jogar futebol nos fins-de-semana. A visita
dos jogadores e seus acompanhantes a uma aldeia apiak sempre enseja algum nvel de tenso, mas
tambm uma oportunidade para troca de informaes entre aldeias. Se um jogo ocorreu numa aldeia
apiak, o prximo ser na aldeia dos visitantes. Mulheres jovens tambm jogam futebol, mas raro
que viajem para jogar em outras aldeias.
142
influentes da Aldeia Nova no compareceram, o que foi interpretado como afronta pelos
organizadores.
tarde, o cantor deu continuidade ao show, encerrado por volta das 18h, mas
a o descontentamento daqueles que no haviam participado da festa j se somava
exaltao dos embriagados, minando o clima de euforia. Vrios homens ainda
permaneceram no salo durante a madrugada, bebendo de graa. Na mesma noite,
houve uma briga envolvendo um ribeirinho apiak e uma mulher de uma famlia apiak
marginalizada na aldeia, desencadeada por uma proposta de casamento recusada.103 Nos
dias que se seguiram festa, as conversas foram dominadas por comentrios em tom de
reprovao e desapontamento; a festa fora um fiasco, afinal, vender comida para os
parentes algo que os apiaks no toleram. Pois, se se comprazem em exibir uma
aparncia civilizada, danando forr de modo respeitoso e jogando partidas de futebol
bem organizadas, os apiaks recusam contudo o individualismo que caracteriza o modo
de vida dos brancos que vivem na cidade: transformar comida em mercadoria, assim
abertamente, no salo, a negao mais contundente da lgica da ddiva, cujo ideal
sustenta a organizao comunitria, um empreendimento que pe em destaque a posio
de alteridade geralmente ocupada por homens influentes.
Aqui, no se trata portanto de devorar inimigos capturados fora ou de voltar-se
para o plano exterior da divindade, mas sim de fitar uma potencialidade simblica e
sociolgica que est no mago da comunidade que se apresenta ambiguamente como
civilizada: o risco de virar branco. H que notar, contudo, a exterioridade do modelo
imitado (brancos urbanos, individualistas, que estabelecem relaes por meio do
dinheiro), o que evoca a tese de Viveiros de Castro (1986: 390) sobre o fundamento da
sociedade tupi-guarani lhe ser exterior no tempo e no espao, bem como exprime a
ambivalncia do Outro, desejado na mesma medida em que temido. No caso das festas
de branco, os apiaks parecem incorporar momentaneamente o estilo de vida civilizado
pleno, identificado aos brancos urbanos; alm disso, pretendem tambm justificar as
escolhas residenciais e celebrar a unidade alde frente aos vizinhos (indgenas e
brancos). Pode-se dizer, ademais, que as festas de branco fornecem o contexto ritual
para se virar bicho de modo controlado, o que significa propor que, em tais festas, que
se opem simbolicamente s aes cotidianas de aparentamento, os apiaks se
metamorfoseiam (viram brancos) de modo assumidamente incompleto.
103
Os apiaks, geralmente muito calmos e auto-contidos, tornam-se algo agressivos quando tomam
bebida alcolica na aldeia.
143
A anlise do simbolismo e das prticas de caa e pesca entre os apiaks no ser empreendida nesta
tese.
105
Tenho em mente o fato de que, para os apiaks, forasteiros no so primeiramente inimigos, mas
potencialmente cnjuges e parceiros polticos e econmicos valorizados.
144
Quando se comea a planejar uma festa por ocasio de data comemorativa oficial, uma das primeiras
medidas do cacique reunir os assalariados no salo e lhes dizer qual a quantia necessria para
comprar os itens desejados. Percebe-se, assim, que o dinheiro dos cargos remunerados coletivizado;
parte dele se torna ddiva, uma maneira de mant-lo sob o controle da comunidade e de refrear
impulsos consumistas/individualistas.
146
mesmo pela comida), e os ndios isolados vivem na floresta, onde no existe relao
mediatizada pelo dinheiro ou pela tica da generosidade, nem sequer objetos
industrializados, os apiak mansos vivem a meio caminho entre a cidade e a floresta,
nas margens de grandes rios que do acesso a cidades, por onde passam balsas e
regates. Esta situao se assemelha quela descrita por P. Gow a respeito dos povos
nativos do baixo Urubamba (1991: 89), como vimos nos captulos 1 e 2. Diferentes
tipos de gente experimentam, assim, estilos de vida diversos. De modo complementar,
devo acrescentar que os apiaks tm suas prprias aldeias em alta conta, distinguindo-as
tanto das aldeias kaiabis, onde no se dispensaria hospitalidade aos forasteiros, como
das aldeias mundurukus, onde haveria muita doena causada por feitio.
Se a instabilidade ontolgica de fato aquilo que singulariza os povos tupis, eu
diria que o ser apiak no se pensa tanto como habitando um plano cultural que se ope
a um plano natural e a outro sobrenatural, como props E. Viveiros de Castro (1986),
mas elabora antes sobre categorias sociais mais ou menos intercambiveis que se
relacionam distintamente com uma natureza dotada de agencialidade, dispostas num
gradiente de civilizao em que a comunidade surge como forma sociolgica a ocupar a
posio mdia. Para alm da comunidade h os ndios bravos e os brancos urbanos; para
alm das categorias sociais, e agindo contra elas, h os seres encantados (habitantes do
rio e da floresta) e as pessoas que viram bicho (ver captulo 4). Tal gradiente
classificatrio imbudo de valores morais, e cada uma de suas categorias comporta
ambivalncias. Assim, aos olhos dos apiaks mansos, os ndios bravos, que no tm
tacho para torrar farinha, levam, contudo, uma vida livre e independente, enquanto os
brancos, que criam seus filhos presos em casa, desfrutam entretanto dos confortos da
cidade, como geladeiras e carros.
O prprio idioma da mistura, empregado pelos apiaks mansos que vivem em
comunidades idealmente pacficas, indica que o parentesco continua fornecendo o
cdigo para a apreenso das mudanas e a classificao das pessoas, e pode ser
considerado como expresso de resilincia social. Isto porque a ideia de mistura no se
refere unicamente ao sangue (unio de pessoas de etnias distintas), mas compreende
tambm o estilo de vida, a posio ocupada naquele continuum espaciocultural. Ao
longo do sculo XX, os apiaks deram seguimento aos casamentos intertnicos,
preferindo sempre, note-se, pessoas conhecidas de longa data, antigos vizinhos,
independentemente da etnia, embora fossem todos pertencentes ao tronco tupi.
147
148
149
O casamento de moas de 13 anos, que parece precoce a olhos ocidentais, explicado pelos apiaks
como forma de evitar filhos ilegtimos.
150
formalmente iniciada pelo rapaz, que pede a moa em namoro; ela ento consulta sua
me, que conhece de antemo as preferncias do pai, a quem comunica a novidade, se
julgar conveniente.
Durante algumas semanas, o rapaz entrega cartas de amor e presentes
namorada; os mimos mais apreciados so objetos industrializados comprados a um
regato ou na cidade mais prxima, como miangas, perfumes e bibels coloridos. Os
jovens no namoram em pblico; medida que os comentrios sobre a relao avultam
na aldeia, os pais da moa comeam a considerar seriamente o casamento, tanto mais
desejvel quanto mais trabalhador e respeitador for o genro em potencial. A
oficializao da relao implica uma visita formal dos pais do noivo aos pais da noiva
para tratar do casamento. Se h padre disponvel, realiza-se a cerimnia catlica e
possivelmente um almoo especial, aps o que um dos cnjuges se muda para a casa do
outro, levando apenas seus objetos pessoais.108 Quando no se pode contar com um
sacerdote, a ligao consumada e o casal fica espera de uma ocasio propcia para
obter a bno.
O local da residncia de um jovem casal uma das decises mais delicadas na
vida social. A co-residncia no importante apenas do ponto de vista das relaes de
parentesco, mas tambm dos pontos de vista poltico e econmico. Existe a expectativa
da uxorilocalidade, que no se traduz numa regra rgida. Em princpio, um homem
recm-casado deve mudar-se para a casa dos sogros e prestar-lhes o servio da noiva
por um ano, aproximadamente; aps o nascimento dos primeiros filhos, ele deve
construir a casa da nova famlia conjugal, idealmente vizinha dos sogros. A residncia
uxorilocal uma prtica temporria ou de aplicao poltica entre os tupis-guaranis,
que permite aos lderes reter os filhos e atrair genros, constituindo o fundamento da
chefia alde (Viveiros de Castro 1986: 315). Para os apiaks, o cnjuge ideal
basicamente aquele que no pretende fazer migrar o membro da aldeia onde contraiu
casamento.109
108
Em 2007, assisti a um casamento de luxo no Mayrob, prtica bastante recente, criticada pelos mais
velhos. Naquela ocasio, a moa usou um vestido de noiva branco, alugado em Juara, maquiou-se e
foi conduzida ao salo pelo pai, ao estilo ocidental. Aps a cerimnia, houve um grande churrasco na
casa do pai do noivo, um homem influente, que estava construindo uma casa com vrios quartos para
abrigar os filhos adultos e seus cnjuges. Para o banquete foram convidados apenas os membros das
famlias extensas de ambos os noivos, o que suscitou reprovao por parte do restante da comunidade.
109
Wagley & Galvo explicam que o casamento de uma jovem tenetehara um problema para a famlia
extensa, pois por meio dele se obtm novos trabalhadores masculinos para o grupo: Um pai, em
geral, prefere para marido da filha um rapaz da mesma aldeia, porque este, aps um ou dois anos de
residncia com o sogro (perodo de servio da noiva), ter menos motivos para se mudar ou deixar a
aldeia. (Wagley & Galvo 1961: 95).
151
110
Tambm para os povos nativos do Baixo Urubamba a escola um fator determinante nas escolhas
residenciais pois, ao mesmo tempo em que um lugar onde as crianas podem aprender
conhecimentos civilizados, que impediro que sejam escravizadas como seus pais, ainda liga adultos
como co-residentes que atualmente no so parentes prximos ou reais, mas que iro se tornar
parentes por intermdio dos filhos (Gow 1991: 250).
111 Filhos de pais separados ou de unies fugazes, bem como rfos, geralmente so criados pelos avs
(geralmente, os avs maternos), mas tambm podem ser admitidos na famlia extensa mais influente,
onde permanecem como agregados e provveis aliados futuros. A despeito da grande quantidade de
casos extra-conjugais, os apiaks reprovam publicamente o adultrio e veem as (poucas) mes
solteiras como um grave problema social a ser rapidamente resolvido por meio do casamento da
mulher. Geralmente, os homens que se furtam a assumir filhos ilegtimos so homens influentes ou
filhos de homens influentes.
112
Mesmo quando adultos, os irmos de sexo oposto se preocupam com o bem-estar um do outro; sempre
que um tem grande quantidade de comida ou guloseimas apreciadas, manda uma parte para o outro.
152
113
Cabe aqui recordar o protagonismo da esposa apiak de Paulo Corra na narrativa de origem dos
apiaks misturados; ela no vista como um ser eminentemente destruidor da ordem social, mas sim
como a responsvel pelo surgimento de uma nova configurao social, que se comportou como noparente, algo que pode acontecer com qualquer pessoa.
114
Os arawets tambm postulam um casal de lderes, os t , fundadores e donos da aldeia (Viveiros
de Castro 1986: 311).
115
Os apiak criam papagaios, jacamins, mutuns, macacos, cutias, ces de pequeno porte e gatos
domsticos como xerimbabos. As mulheres os alimentam como a crianas pequenas e todas as pessoas
da famlia em geral lhes tm grande afeio. Admite-se que se vendam xerimbabos, embora a prtica
no seja frequente.
154
especialmente se a diferena de idade for muito grande, e aqui verificamos aquilo que
Fortes afirma sobre o ciclo de desenvolvimento do grupo domstico, a saber, que ele
um processo interno ao domnio domstico governado por suas relaes com o campo
poltico mais amplo (Fortes 1958: 2). Filhos de homens influentes tendem a seguir os
passos do pai. Quando a competio entre os irmos leva ao conflito aberto, no raro
que um deles decida fundar outra aldeia, levando consigo sua famlia extensa e alguns
aliados polticos.116
Diagrama
3.2:
Casamento
entre
parentes
distantes,
Mayrob
(Esto
116
Nos dois casos concretos que conheo, foi o irmo mais novo que se mudou.
156
********
As casas dos apiaks so dispostas de modo irregular pelo terreno, distando
aproximadamente 10 metros uma da outra, e abrigam em mdia 6 pessoas. Como
espao socialmente circunscrito, as casas dos apiaks compreendem uma regio privada
e uma regio pblica. A construo geralmente pequena (mdia de 4m x 5m), de
planta retangular, com paredes de adobe ou de ripas de madeira, telhado de quatro guas
(tacania) feito de palha de babau, que pode ser substituda por tabuinhas ou, mais
recentemente, por telhas de amianto, portas e janelas estreitas de madeira (que deixam o
interior escuro) e cho de terra batida ou cimento a qualidade da construo denotando
o nvel de prosperidade dos donos.
A casa dividida em dois ou mais cmodos por uma ou duas meias-paredes:
uma cozinha interna com jirau, que tambm serve de sala de estar, regio pblica, onde
se recebem as visitas e se preparam e consomem os alimentos e onde tambm so
117
Os forasteiros com que os apiaks se casam so kaiabis, mundurukus e descendentes de arigs com
que convivem h vrias geraes no baixo curso dos rios Juruena e Teles Pires.
118
Tambm entre os teneteharas as casas abrigam famlias simples, construdas contguas ou prximas s
de outras famlias do mesmo parentesco (Wagley & Gavo 1961: 173). Os autores afirmam que, a
despeito das profundas mudanas pelas quais o povo vinha passando, o sistema bilateral de parentesco
e o grupo de famlia extensa, com residncia matrilocal, permaneciam como elementos
organizacionais fundamentais nos anos 1940 (: 172).
157
guardados arcos, flechas, apetrechos de pesca, arpo, zagaia, remos, peneiras, pilo
cilndrico, faces, cabaas, sendo que as panelas de alumnio e os cestos so suspensos
por pregos fixados na parede;119 e um ou mais quartos onde as pessoas dormem, tm
seus momentos de intimidade, guardam seus objetos mais preciosos (roupas, sapatos,
bibels, sabonetes, sabo em barra, sementes e miangas para artesanato, espingarda,
munio, latas com farinha de mandioca e tapioca, alimentos industrializados, cadernos,
canetas etc.), espao onde so admitidos apenas os membros da famlia conjugal.
Todos os objetos mantidos na cozinha so visualizados por qualquer um que
visite a casa e podem ser emprestados, mas o mesmo no ocorre com os objetos
protegidos pelo maior isolamento do quarto: embora uma mulher saiba que uma vizinha
no-aparentada possui miangas, dificilmente vai lhe pedir emprestado, a menos que
circule a informao de que a quantidade realmente grande. Um remo ou uma peneira
tomado emprestado em geral devolvido rapidamente, no engendrando nenhum tipo
de obrigao de reciprocidade.120 O zelo dispensado aos objetos industrializados vai
amainando com o passar do tempo, e um jogo de jantar que, logo aps ser adquirido, era
utilizado apenas em ocasies especiais, comunicando o status de seu dono, pode ser
encontrado aos pedaos no terreiro alguns meses mais tarde, despojado de qualquer
lampejo de requinte que lhe fora atribudo inicialmente. como se o potencial de
prestgio atribudo a determinado objeto tivesse um prazo de validade relativamente
curto (algumas semanas ou meses para os objetos durveis); aps consumido este
potencial, o objeto se v destitudo de seu valor de uso e facilmente descartado
exceo feita s miangas.
As paredes da cozinha e dos quartos muitas vezes so decoradas com cartazes
obtidos no comrcio regional, recortes de jornal, calendrios com imagens catlicas e
fotos de polticos; os mais vistosos so colocados na posio de maior visibilidade da
casa, geralmente a cozinha. A moblia da maioria das casas bastante simples e
limitada, fabricada na prpria aldeia, com matria-prima local; homens com habilidades
de marceneiro confeccionam mesas, bancos e jiraus em forma de prateleiras. As redes
de dormir so adquiridas no comrcio regional, bem como as panelas de alumnio, cuja
quantidade e qualidade so a medida do prestgio da dona da casa. Nas casas das
pessoas mais influentes, porm, encontram-se mveis comprados em lojas, como
119
Alguns adultos disseram lembrar-se de panelas de cermica feitas por velhas apiaks, mas h algumas
dcadas eles utilizam apenas panelas de alumnio.
120
Aquilo que se pede emprestado geralmente so alimentos e objetos industrializados, ou ento
instrumentos de trabalho.
158
121 Na aldeia Mayrob, a casa do cacique era feita de madeira, coberta com folhas de amianto, cho de
cimento vermelho, com uma rea aproximada de 40 metros quadrados, e um p direito bastante alto,
dividindo-se em 5 cmodos e uma varanda coberta.
159
Esses casais so descendentes do pai do fundador da aldeia, Andr Morim (apiak), seu genro
Sebastio Krixi (munduruku) e seu compadre Jorge Burum (munduruku) e respectivas esposas,
provenientes do Par. Todos esses descendentes se consideram, e so considerados, apiaks, embora
muitos falem a lngua munduruku.
123
Em 2006, o filho primognito daquela mulher fundou uma nova aldeia no rio Juruena, levando consigo
a esposa, um filho casado e a esposa dele, mais dois casais aliados.
160
161
jovens do Mayrob tm mais facilidade que os do Mairowy para obter esses cnjuges
socialmente aprovados (ver adiante).
A despeito da preferncia pelo casamento com parente distante, de um modo
geral, para os apiaks, os estranhos so afinizveis: todo aquele que estabelece uma
relao (poltica, econmica, profissional etc.) amigvel passvel de familiarizao
e, assim, pode se tornar um afim pela via do casamento. Os Outros, signos da alteridade
radical, no so os afins, so segmentos embebidos de histria, so, como veremos no
captulo 4, marcos espciotemporais vivos os Pombos no Mairowy, a famlia extensa
Kamassori no Mayrob.
Observo, ainda, que o nmero de homens no Mairowy e no Mayrob supera
ligeiramente o de mulheres (48 contra 45 na primeira aldeia, 106 contra 102 na
segunda), e que a populao de ambas as aldeias bastante jovem, com
aproximadamente 67,5% de pessoas menores de 20 anos no Mairowy e 66,5% no
Mayrob; a porcentagem de pessoas com mais de 50 anos muito baixa em ambas as
aldeias, como se pode constatar na Tabela 3.4 adiante.
163
124
O nico cacique apiak que desprezou a lgica da ddiva foi proscrito (ver captulo 5). Todos os
caciques com quem convivi so categricos ao afirmar que preferem viver entre parentes a se mudar
para a cidade, apesar do peso representado pela posio de chefia e da dificuldade em obter o
reconhecimento dos seus.
125
No quero negar o interesse propriamente mercantil dos apiaks em algumas transaes nem tampouco
o eventual aspecto mercantil de trocas do tipo ddiva. Por ora, pretendo apenas enfatizar que
transaes que primeira vista parecem puramente mercantis esto inseridas na lgica da ddiva e do
ensejo a complicados clculos sociais no horizonte do parentesco e da poltica alde. Este um ponto
que evidentemente exige mais pesquisa de campo e uma anlise mais acurada.
126
Geralmente, so entregues aos caciques, que as redistribuem para todos os homens da aldeia.
164
parente distante, envia um filho ou sobrinho solteiro at a referida casa com a misso de
comprar a iguaria. A criana deve dizer algo como: Papai quer comprar ovos, frase
que d ensejo a complexos clculos sociais, uma vez que, por exemplo, se o dono dos
ovos os entregar a ttulo de ddiva, ser instado por outros co-residentes a fazer o
mesmo e poder ver o alimento desaparecer dentro de minutos; por outro lado, se fixar
um preo para os ovos, ter de arcar com as conseqncias do fato de que o co-residente
influente entender que o dono dos ovos no lhe tem em alta conta nesse momento. Em
suma, a venda dentro da aldeia concebida negativamente como uma interrupo do
circuito de ddivas.
Num artigo instigante em que analisa o processo de reproduo social na antiga
Melansia, A. Gell (1992) prope que a troca de mercadorias o prottipo para o
regime de troca de ddivas reprodutivas e no o contrrio. De acordo com o autor:
o que distingue ddivas de mercadorias o contexto social de uma
transao particular, e no o carter da relao entre pessoas e coisas
(alienveis/no-alienveis)
ou
entre
pessoas
e
pessoas
(independentes/dependentes). (...) ddivas so transaes de objetos que
ocorrem no cenrio contextual da reproduo social atravs do casamento, da
afinidade e da aliana. Transaes de mercadorias so transaes de objetos
num cenrio definido como comrcio, escambo e equivalentes. (Gell 1992:
146, nfase no original)
A distino proposta por Gell entre trocas mercantis, que estabelecem parcerias
comerciais, e transaes que integram o processo de reproduo social, o qual condensa
uma moral associada domesticidade, til para analisar o caso dos apiaks.127
Contudo, julgo relevante dividir as transaes que integram o processo de reproduo
social em partilha e troca de ddivas.
O fluxo intenso de alimentos e objetos que une firmemente pais e filhos no
pode ser visto como ddivas puras ou livres; trata-se, antes, de dever familiar, de uma
obrigao moral relacionada a agencialidades complementares (ver a discusso sobre a
127
A. Weiner (1980) tambm prope um modelo de reproduo que leva em conta a regenerao de
pessoas, objetos e relaes, cujo conceito central seria o de substituio. A autora focaliza a interao
do ciclo vital das pessoas com as trajetrias dos recursos materiais e imateriais em meio aos cls
trobriandeses, e afirma que, diante dos problemas envolvendo a morte natural e a feitiaria, os processos
de regenerao constituem uma tentativa de fazer frente ameaa constante de deteriorao, degenerao,
infertilidade e perda (Weiner 1980: 72). A incorporao do aspecto temporal dos processos de troca e do
clculo subjacente a toda relao de reciprocidade, dimenses enfatizadas por P. Bourdieu, leva a autora a
estabelecer que os objetos no criam obrigaes apenas entre dois indivduos ou dois grupos, mas, de
outro modo, no curso de sua circulao, ao longo dos anos, relaes sociais mais amplas so
reproduzidas, nutridas e regeneradas (: 80). O conceito de reproduo igualmente central para C.
Gregory (1982), que segue Marx ao estabelecer que a reproduo de objetos e pessoas forma uma
totalidade em que os processos de produo, o consumo, a distribuio e a troca so inextricveis.
165
166
********
A comercializao de alimentos mais intensa no Mayrob que no Mairowy,
mas os moradores de ambas as aldeias recriminam todo ato de compra e venda ocorrido
dentro da aldeia, lamentando o fato de que o costume do branco esteja ganhando
espao na comunidade: Antes no era assim, se Fulano pescava muito tracaj,
distribua para todas as casas. Hoje no, j vende. Muitos ganham salrio e podem
167
pagar.
128
famlias, mas preciso deixar claro que na aldeia no existe operao de compra-venda
propriamente, mas uma relao de troca mercantil protelada, baseada na confiana, uma
vez que quase ningum guarda dinheiro vivo em casa. A despeito do nmero crescente
de assalariados, o dinheiro ainda no foi plenamente incorporado pelos apiaks,
continua sendo uma virtualidade. O dinheiro fica depositado no banco, na cidade; s
retirado quando seu portador vai at l, e l mesmo gasto, integralmente. Aquilo que
chega aldeia so os objetos comprados por meio do dinheiro. Assim, quando algum
compra um tracaj de um co-residente, normalmente compra fiado, isto , comprometese a pagar quando sair o salrio.129
Ocorre que, durante o intervalo de tempo entre a compra e o recebimento do
salrio, muita coisa pode acontecer. O comprador pode, por exemplo, lembrar-se de
que, h alguns meses, aquele que lhe vendeu o tracaj havia-lhe comprado uma lata de
farinha, sem jamais ter efetuado o pagamento; a dvida fica assim quitada, ao menos da
perspectiva de uma das partes, e no se fala mais nisso isto , no se fala sobre o caso
com o credor/devedor, mas sempre se fala a seu respeito boca pequena. Mas tambm
pode ser que no haja crdito anterior presente compra (ou que ele seja to antigo que
acabou sendo esquecido), e o pagamento em dinheiro acaba sendo feito. De todo modo,
a compra mediada por dinheiro no se baseia numa quantidade fixa pr-determinada;
comum, por exemplo, que uma pessoa que comprou um quilo de tapioca a R$10,00 de
uma co-residente no-aparentada, ao ver sua proviso findar, mande um filho casa da
vendedora pegar mais tapioca (sem realizar novo pagamento). como se o dinheiro
fosse convertido em ddiva: a compra no um fim em si, mas uma troca
momentaneamente desequilibrada que enseja uma espcie de direito do comprador
sobre a produo do vendedor.
Alm de certos alimentos, produzem-se e vendem-se na aldeia tipoias (vegetais
e de tear), cestos e peneiras de fibra vegetal, remos, canoas, bordunas, colares, brincos e
pulseiras de sementes e miangas. O preo desses objetos estipulado a partir de uma
128
129
O escambo, ou troca imediata e formalizada de um objeto por outro, sem recurso a dinheiro, uma
prtica pouco frequente entre os apiaks, e no goza da mesma inportncia que a ddiva e a relao de
compra e venda (a crdito ou em dinheiro).
No cheguei a investigar a forma como o valor monetrio de um alimento determinado, mas notei
uma certa equivalncia entre os preos de peixes praticados na aldeia e aqueles praticados nas cidades
frequentadas pelos indgenas. Por vezes, o pescador pode exigir um preo mais elevado, a depender
das circunstncias da pescaria; assim, podem compor o clculo do valor do peixe a quantidade de
anzois gastos, o tempo de luta com o peixe, a distncia percorrida a remo at o ponto do rio onde se
pescou etc.
168
srie de fatores, dentre os quais o tipo de relao que se tem com o comprador, o nvel
de esforo despendido para sua produo e o conhecimento sobre a quantia de dinheiro
de que ele dispe no momento da transao. O pagamento por tais objetos mais
rigoroso que o pagamento por alimentos. Dentro da famlia extensa, eles normalmente
circulam como presentes. raro que algum produza um alimento ou objeto destinado
exclusivamente para a venda, exceo feita castanha-do-par. s vezes, um coresidente encomenda, digamos, um remo a outro homem, sem que se estabelea prazo
de entrega ou valor. A transao em si pode demorar semanas para ocorrer, e possvel
que o comprador desista do negcio nesse meio-tempo. Jamais se oferece um objeto
para que um co-residente o compre; a motivao para a transao sempre parte do
comprador, que normalmente tem informaes prvias sobre o alimento/objeto em
questo.
A venda, troca mediada por dinheiro (troca mercantil propriamente),
considerada uma relao apropriada apenas com forasteiros, especialmente os brancos.
Para eles vendem-se castanha-do-par, farinha, artesanato, peixes grandes, aa (mas
no carne de caa); deles compra-se uma srie de alimentos industrializados e objetos
que conferem status ao portador: roupas em geral,130 bolsas, cintos, chinelos, sapatos,
culos escuros, relgios, perfumes, celulares, lanternas, espingarda, bijuterias,
miangas, maquiagem, tesouras, anzois, linha de nilon para pesca, isqueiros, pratos,
copos, panelas, talheres, garrafa trmica, potes de plstico, aparelhos de TV,131 de som e
DVD, rdio, bicicleta, fogo a gs, mveis de fbrica (especialmente cama, colcho,
mesa de jantar e cadeiras). Os alimentos industrializados considerados bsicos so: sal,
acar, caf e leo. Mas nas casas mais abastadas h alimentos finos e guloseimas como
arroz, feijo, macarro, leite, suco em p, po e biscoitos. Alm disso, sabo em barra,
esponja de ao, escovo, bacias, fsforos, velas, pilhas e munio so produtos
considerados indispensveis. As mercadorias mais raras e mais apreciadas so balas,
bombons e cigarros. A medida de status de uma pessoa estabelecida no apenas pela
qualidade dos objetos que se possui e consome, mas tambm pela quantidade de que se
130
As pessoas mais abastadas possuem, alm de roupas simples para o dia-a-dia, roupas mais elegantes
para as festas na aldeia e as idas cidade.
131
Em 2007, no Mairowy, apenas uma professora possua aparelho de TV; no Mayrob, oito pessoas
tinham TV em casa. Os donos de TV normalmente deixam a porta de casa aberta para receber coresidentes que queiram assistir a.
169
Igualmente, ces grandes de caa e ces menores, de estimao, obtidos na cidade, so expresses de
status de um casal.
170
conseguia reconhecer seu valor de uso naquele contexto (como, por exemplo, uma
mulher analfabeta que queria um relgio de pulso), e tambm passaram a me fazer
presentes de alimentos e artesanato. Aos poucos percebi que os pedidos e os presentes
pouco tinham a ver com a utilidade das coisas em si; eles exprimiam, antes, o desejo
de se relacionar comigo, de estabelecer um vnculo, de obter de mim uma lembrana
que persistiria aps minha partida. Quando retornei ao Mairowy, um ano aps minha
pesquisa de campo, a maioria dos objetos que eu havia dado s pessoas j no existia,
mas, durante conversas descontradas, as mulheres falavam com alegria daquela bacia
de plstico que fora quebrada por uma neta descuidada, daquela presilha despedaada
por uma filha pequena, daquele pano de prato que se puiu com o uso, daquele sabo que
durava mais que os outros etc.
Mesmo a troca mediada por dinheiro raramente vista como um fim em si; os
homens influentes costumam convidar os regates ou compradores de castanha que vo
at a aldeia para almoar ou tomar um caf, prtica da qual se vangloriam; por outro
lado, tornam-se fregueses de determinadas lojas na cidade e, quando so bem-tratados e
fazem amizade com o gerente ou o dono da loja, convidam-no para ir passar um fim de
semana na aldeia. Estabelecer uma relao amigvel com o forasteiro que dispe de
dinheiro ou mercadorias to importante quanto o pagamento ou as mercadorias. O
dinheiro concebido pela maioria como um mal necessrio, algo de que se precisa para
adquirir uma lista cada vez mais extensa de itens que no se pode produzir, alguns dos
quais so valorizados exatamente porque so produzidos fora da aldeia.
Trocas mercantis tambm podem dar ensejo a alianas polticas supra-aldes, e
vice-versa. Os apiaks do Mayrob comentam, por exemplo, que vendem farinha para os
kaiabis do Tatu; a parceria comercial estabelecida entre homens por vezes se traduz em
apoio poltico em questes que envolvem a interao com o Estado, a despeito da
hostilidade velada entre esses povos. De outro modo, os moradores do Mayrob recorrem
aos pajs kaiabis quando enfrentam problemas de natureza espiritual; a esses pajs do
anzois, linha de pesca, fumo, miangas e outros produtos industrializados de valor
relativamente baixo, diferente do pagamento em dinheiro que se faz a pajs
provenientes do Parque do Xingu, chamados a resolver os casos mais graves.
A distino entre partilha e relaes de compra/venda pe uma questo
importante do ponto de vista da aliana matrimonial: as mesmas unidades (famlias
extensas distintas ou aldeias) que realizam trocas mercantis so aquelas que trocam
cnjuges, ou seja, os cnjuges so obtidos no mesmo lugar em que so obtidas
171
134
Esclareo que as famlias extensas e as aldeias no atuam como grupos de troca, seja de objetos, seja
de cnjuges. A organizao do parentesco ser discutida no captulo 4.
de bom-tom um casal convidar os pais de um genro ou de uma nora para participar de refeies
especiais, compostas de alimentos industrializados.
172
fiquem
mutuamente obrigados,
um eixo ficcional para examinar uma srie de oposies entre diferentes sociedades:
se, numa economia mercantil, as pessoas e as coisas assumem a forma social de coisas,
numa economia de ddivas elas assumem a forma social de pessoas (Strathern 2006:
208).
A despeito das relevantes crticas polarizao analtica entre ddiva e
mercadoria, empregada por C. Gregory e M. Strathern (ver Appadurai 1986; HughJones 1992, entre outros), e a despeito do acesso crescente dos apiaks ao dinheiro e a
mercadorias, creio que a lgica da ddiva ainda predominante nas aldeias apiaks.
Tanto assim que a partilha (expresso da moral reprodutiva que caracteriza o mbito
domstico, de acordo com Gell 1992) e no a igualdade de condies ou o desejo por
objetos (caractersticos da parceria comercial, associada ao exterior do espao
domstico) que fornece o modelo para todas as relaes que tm lugar dentro da
aldeia, configurando as bases para a reproduo da comunidade como um todo.
As ddivas de alimentos entre famlias extensas e a celebrao peridica da
convivncia (banquetes festivos) selam relaes com parentes afastados, afins e
forasteiros, constituindo-se como eixo da sociabilidade alde, cifrada no idioma do
parentesco, de modo anlogo ao que P. Gow (1991) escreveu a propsito dos povos
nativos do Baixo Urubamba. Os apiaks acreditam que a convivncia alde, mediada
pela partilha de alimentos, crenas, costumes e valores morais, transforma os coresidentes em parentes. Com efeito, o pertencimento a uma comunidade apiak
depende tanto de uma conexo genealgica como do tipo de relao que se estabelece
com os co-residentes. Neste sentido, na comunidade o parentesco se torna verdadeiro
meio de vida. Assim como para vrios povos guianeses, a comunidade apiak um
fenmeno de parentesco, bem como, reciprocamente, o parentesco um fenmeno da
comunidade (Gow 1991: 195). A premissa subjacente a essas definies mtuas a de
que a ao funda a relao; sua inspirao a capacidade exibida pelos sistemas de
parentesco de absorver a mudana histrica. Na tese sustentada por P. Gow, o
parentesco se substancializa como memria dos cuidados recebidos ao longo da vida
o aspecto enfatizado nas relaes entre parentes no , pois, a descendncia ou o
vnculo genealgico, mas os laos afetivos. Os valores da comunidade so, portanto, os
valores do parentesco (: 2).
Assim, crianas so socializadas, parentes distantes tornam-se parentes de
verdade e forasteiros so domesticados de modo a imprimir-lhes as virtudes de
generosidade e pacifismo, reduzindo-se seu potencial de alteridade, para que mais
174
135
Me parece desnecessrio demonstrar o quo tnue a domesticao de forasteiros pela via da troca de
ddivas.
175
176
1- casas
13 a- casa abandonada pela famlia conjugal que hoje habita a casa 13
I- casa de forno particular, pertencente aos donos da casa 15
II- casa de forno comunitria
III- depsito comunitrio
IV- posto de sade
V- casa da enfermeira
VI- cozinha comunitria
177
178
136
179
Nome da
aldeia
Ano de
fundao
Parentela mais
influente
Nmero de
habitantes
Localizao
Bom
Futuro
1976
Kamassori
58
Figueirinha
1998
Morim
33
Mairowy
1997
Kamassori
93
Mayrob
1982
Morim
208
Minhocuu
anos 1990
10
Pontal
2006
Kamassori
14
Vista
Alegre
anos 1990
Morim
14
margem direita do
rio Teles Pires,
curso baixo, TI
Munduruku (PA)
margem direita do
Rio dos Peixes,
curso mdio, TI
Apiak-Kaiabi
(MT)
margem esquerda
do rio Teles Pires,
curso baixo, TI
Kaiabi (MT)
margem direita do
Rio dos Peixes,
curso mdio, TI
Apiak-Kaiabi
(MT)
margem direita do
rio Teles Pires,
curso mdio, TI
Kaiabi (PA)
margem direita do
rio Juruena, curso
baixo (MT)
margem direita do
rio Teles Pires,
curso baixo, TI
Munduruku (PA)
Total137
137
430
180
Homem
Mulher
0 a 10 anos
24
21
11 a 20 anos
10
21 a 30 anos
31 a 40 anos
41 a 50 anos
51 a 60 anos
61 a 70 anos
71 a 80 anos
Total
48
45
Homem
Mulher
0 a 10 anos
42
47
11 a 20 anos
26
23
21 a 30 anos
15
13
31 a 40 anos
41 a 50 anos
51 a 60 anos
61 a 70 anos
71 a 80 anos
81 a 90 anos
Total
106
102
181
138
Classifico tais pessoas na gerao 0. Os apiaks chamam de velhos(as) as pessoas que tm netos
casados ou em idade de se casar, o que geralmente ocorre por volta dos 45 anos.
182
139
Os apiaks no gostam de falar sobre morte e vida post mortem. Schaden encontrou a mesma
dificuldade com os guaranis: Um dos assuntos de conversa mais difcil com um Guarani qualquer
que seja o subgrupo a que pertena o que se refere morte e s prticas funerrias. Tal o medo
dos defuntos que os informantes em geral emudecem logo que a conversa toque nesse domnio
(Schaden 1962: 134).
140
Muito embora as mulheres afirmem que os homens gostam de gastar dinheiro com bobagens, sendo
que s vezes eles consomem o salrio com divertimentos na cidade.
141
Em casos de grande penria, o cacique envia comida a ttulo de ddiva para uma famlia noaparentada ou remotamente aparentada; receber esta ddiva, porm, motivo de constrangimento e
expresso da situao marginal de uma famlia conjugal ou extensa. Como diria Mauss, a caridade
ofende aquele que a recebe. O ganho poltico obtido com a troca de ddivas, a partilha, o emprstimo
e a caridade ser analisado no captulo 5.
183
142
Os apiaks chamam de tio e tia aos primos cruzados e paralelos dos pais. Cada cnjuge deve chamar
os parentes consanguneos do outro pelos mesmos termos que este utiliza; assim, todos os avs,
tios(as), primos (as) e sobrinhos (as) de um homem sero tratados da mesma forma por sua esposa.
184
185
Hoje em dia, os casais jovens esperam alguns meses ou mais de um ano para
ter filhos, porque desejam concluir o ensino fundamental ou mdio ou porque
pretendem realizar curso tcnico ou superior, o que requer seu afastamento da aldeia.
Aqueles que so oficialmente casados, isto , que receberam as bnos de um padre,
so motivo de orgulho e alegria para as respectivas famlias. Idealmente, o jovem
marido se muda para a casa dos pais da esposa e toma parte ativa na maioria das
atividades econmicas desempenhadas pela famlia dela. A consolidao da famlia
conjugal se d com o nascimento dos filhos e se baseia tanto na partilha cotidiana do
alimento quanto na prtica do resguardo de parto.
A me da moa a primeira a saber que a filha est grvida e ambas aguardam
algumas semanas para dar a notcia famlia. No h grandes especulaes a respeito
do sexo da criana, mas todos desejam ter um nmero equilibrado de meninos e
meninas; o nmero ideal de filhos por casal parece ser quatro; casais que tm apenas
meninos ou apenas meninas, ou que tm mais de cinco filhos so motivo de comentrios
jocosos por parte dos co-residentes. Os apiaks conhecem duas plantas silvestres com
cujas folhas a mulher deve bater na pelve do homem para que o filho seja do sexo
esperado. Dizem que uma mulher no deve engravidar enquanto o filho mais novo ainda
mama, pois o lactente sugaria os olhos do irmo ainda no-nascido; o espao mnimo
entre duas gestaes parece ser de dois anos.
Logo a moa comea a fazer acompanhamento pr-natal no posto de sade da
aldeia, e em questo de dias todos os co-residentes ficam sabendo da novidade. A
gestante continua com suas atividades rotineiras at a vspera do parto, embora seu
estado inspire algum cuidado. A mulher grvida deve tomar banho com as folhas que se
depositam no suspiro da paca (buraco no cho por onde a paca sai, quando acuada)
para o parto ser fcil. Ela no deve passar sob a corda de um varal, sob pena de o cordo
umbilical se enrolar no pescoo do feto. Igualmente, no deve passar sobre a corda que
prende a canoa terra, seno seu filho nascer com cauda. Diz-se que mulheres que
esto esperando uma menina so perseguidas por calangos; j os urubus a abominam: o
papel de recipiente atribudo me por vrios povos tupi-guaranis. Perguntas diretas desse tipo, bem
como perguntas sobre a alma e seu destino post mortem, geravam intenso constrangimento e evasivas.
Os arawets, que apresentam uma teoria da concepo patrilinear, dizem que filhos so coisa do pai,
e filhas, coisa da me (Viveiros de Castro 1986: 417), mas tambm reconhecem o fundamento
bilateral da comunidade de substncia, mobilizada por ocasio do resguardo de doena (: 439). Por
sua vez, Schaden afirma que, entre os guaranis, a filha concebida como filha da me, enquanto o
filho concebido como filho do pai, isto apesar de na estrutura da famlia o parentesco ser
considerado bilateral e no bilinear e de, por exemplo, ser o pai sujeito couvade tambm quando lhe
nasce uma filha (Schaden 1962: 112).
186
urubu vomita quando a v porque a mulher no mata nenhum bicho que ele possa
aproveitar; grvidas no so atacadas por cobras, mas atraem onas. Elas no podem
participar de expedies de coleta de sava porque, em sua presena, as formigas no
saem dos buracos no solo (ficam pesadas demais e no conseguem alar voo). Tambm
no podem participar de excurses de pesca com timb, seno os peixinhos no
morrem.146 Se tocarem na cabea de uma criana pequena, os cabelos desta cairo. Os
apiaks contam que, antigamente, as mulheres solteiras que engravidavam eram
queimadas com seus filhos, porque os pajs diziam que eram filhos de bicho; a prtica
teria sido abandonada nos anos 1970, por influncia dos missionrios.
Se a gravidez considerada de risco, a mulher levada para a Casa de Sade
do ndio (CASAI) mais prxima, procedimento que as mulheres costumam evitar e que
inspira o descontentamento de seus parentes. Nas semanas que antecedem o parto, as
mulheres pertencentes s famlias mais abastadas j tero reunido fraldas de tecido
bordadas, roupinhas, miangas para fazer colares e pulseiras, bacia para os primeiros
banhos e um papeiro de alumnio. O parto no cercado de grandes mistrios. Os
apiaks me disseram que qualquer mulher que tenha muitos filhos pode desempenhar o
papel de parteira, e que o pai da criana pode assistir ao evento. O parto normal
acontece dentro da casa do casal, de onde pai, me e recm-nascido no devero sair por
pelo menos uma semana aps o nascimento.
Imediatamente aps o parto, me e filho devem tomar banho com gua morna,
dentro de casa. Mulher de resguardo coisa fina, no pode carregar peso, ter
aborrecimentos, ouvir barulhos extraordinrios ou espantar-se. Durante o resguardo, a
me s pode comer algumas aves, alm de peixes selecionados: piau (exceto a cabea,
se comer a cabea, os dentes da criana vm quebrados), aracu, pacuzinho, ou seja,
peixes de escama pequenos, que no contm muito sangue; tambm pode comer
mingau, arroz, macarro, farinha puba (mas as farinhas embuga147 e seca so mais
apropriadas), leite e caf. Como se nota, algumas comidas de branco auxiliam a
mulher a suportar o perodo do resguardo, pois no so classificadas como tabus. As
restries alimentares em geral condensam um simbolismo analgico.
146
A associao simblica entre relao sexual e o timb tambm postulada pelos kagwahivs, para os
quais proibido ter relaes sexuais antes ou durante pescarias com timb (Kracke 1978: 261).
147 A farinha embuga preparada com os caroos torrados que sobram quando se peneira a farinha
(crueiro), deixados secar ao sol por seis ou sete dias e, em seguida, pilados e torrados; a farinha
embuga deve ser misturada com sal de inaj, considerado fraco. Esta tambm a farinha ideal para
preparar mujica, prato em que o peixe cozido inteiro triturado com o auxlio de dois pauzinhos em
forma de cruz. Hoje em dia quase no se prepara a farinha embuga.
187
Carnes reimosas, como as dos peixes piranha, filhote, pintado, barbado, jandi,
mandub, ja e matrinx, peixes grandes, carnvoros e com muito sangue, so muito
perigosas, assim como o tracaj, a anta, o veado, o jacamim, o mutum e as diversas
espcies de macaco: Isso vai para o leite, a criana mama, faz mal, explicavam as
mulheres. Alm do efeito nefasto sobre o corpo da criana, h efeitos negativos tambm
para sua alma: A anta leva o esprito da criana; hoje a anta est aqui no mato, da
ela vai para a gua, cai ngua, mergulha, atravessa o rio, pega o mato, sobe de novo na
beira do barranco, e vai embora; o esprito da criana no alcana, no acompanha o
bicho, a a criana fica doente. As carnes reimosas s fazem mal para pessoas em
momentos crticos do ciclo vital; em condies normais, so a comida preferida dos
indgenas.148
Aves e mamferos
Peixes
Anta
Barbado
Jacamim
Filhote
Macaco
Jandi
Mutum
Ja
Tracaj
Mandub
Veado
Matrinx
Pintado
Pirarara
O resguardo de parto ou couvade prtica comum a vrios povos indgenas sul-americanos. Para uma
anlise da categoria sensvel reimoso, das prticas de resguardo de parto e menstruao e do complexo
da panema, em outro contexto etnogrfico, o leste de Roraima, ver Tempesta 2004.
188
do sexo masculino, as restries para o pai devem ser observadas ainda mais
rigidamente. Se o umbigo da criana estiver ferido, qualquer ao dos pais pode piorar
esse estado. As restries de alimentos e atividades vo se atenuando gradativamente ao
longo de um ano aps o nascimento, at cessarem por completo.
A placenta deve ser enterrada em local seguro, onde no corra o risco de ser
encontrada e revirada por animais domsticos; se, por exemplo, um co remexer a
placenta, o beb adoecer; quando o parto acontece no hospital, a placenta
simplesmente descartada. As mulheres apiaks me falaram sobre a me do corpo, uma
poro do corpo da mulher que causa dores abdominais e no pode, em hiptese
alguma, deixar seu corpo, por ocasio do parto, seno a mulher morre.
Assim que possvel a criana deve ser batizada. O ritual do batismo parece ser
concebido pelos apiaks como uma operao importante para ajudar a fechar o corpo da
criana, a fixar a alma no corpo. Os padrinhos podem ser irmos do pai ou da me, avs
paternos ou maternos, primos cruzados ou paralelos de ambos os pais, co-residentes
amigos ou parceiros polticos e econmicos de outras aldeias; profissionais da rea de
sade, professoras brancas e mesmo padres frequentemente so convidados a apadrinhar
crianas. Espera-se que os padrinhos deem um bom presente para a criana, geralmente
roupas. Nas primeiras semanas de vida, a me apressa-se em amarrar fios vermelhos nos
pulsos e abaixo dos joelhos do beb; tambm comum enfeit-lo com colares de
miangas e sementes e colocar uma trouxinha com um dente de alho em seu pescoo
para no adoecer. Estes enfeites so na verdade a roupa cotidiana das crianas, mas
parecem consistir igualmente numa espcie de proteo contra entes malignos. As
roupas industrializadas e as fraldas sero usadas apenas em ocasies especiais, j que o
beb passa a maior parte do tempo nu, em contato direto com o corpo da me,
aconchegado na tipoia.
O nome do filho escolhido pelos pais logo aps o nascimento. Os nomes dos
apiaks so derivaes criativas dos nomes brasileiros regionais, oficializados no
batismo. Em geral os nomes dos filhos de um casal comeam com a mesma inicial do
nome do pai, ou so combinaes inventivas do nome do pai e da me, como por
exemplo: um casal formado por um homem chamado Adenir e uma mulher chamada
Clenilda, com filhos chamados Aldair, Clair, Aldeir, Cleonir, Laisa e Ademir.149 Tais
149
Observo que esta tendncia de batizar os filhos com combinaes do nome dos pais comea a aparecer
na gerao +1, isto , a gerao dos pais das pessoas que hoje tm entre 20 e 40 anos,
aproximadamente.
189
********
Com alguns meses, a criana pode ser submetida a algumas operaes que
visam melhorar ou acelerar seu desenvolvimento, como a ao de amarrar o nervo da
perna do veado ou do massarico na perna do menino, para que ele aprenda a andar
rpido, o que no deve ser feito com meninas, seno elas se tornaro andadeiras, um
eufemismo para moas irrequietas que tm muitos namorados. Para serem boas
nadadoras, as crianas engolem pequenas piabas cruas durante alguns dias
consecutivos.150
Crianas pequenas so extremamente vulnerveis aos atos das pessoas e ao
de sobrenaturais. Os apiaks temem o quebranto (kaux) e o peito aberto, cujos sintomas
so apatia, moleza, diarreia e magreza excessiva, e podem levar morte. O quebranto
pode ser causado involuntariamente por uma pessoa (at mesmo o pai e a me) que
chega da roa cansada, suada e com fome; basta que ela olhe para a criana ou toque
nela para que ela adoea. Adultos e animais domsticos tambm so vtimas de
quebranto. Manter um jabuti dentro de casa uma forma eficaz de evitar esse problema,
pois se acredita que o animal absorve a energia malfica.151
Quando o filho completa um ano, desejvel que o pai construa uma casa ao
lado da casa dos sogros, para onde a nova famlia conjugal se mudar. Em alguns casos,
150
Schaden relata vrias prticas anlogas, relativas ao corpo das crianas, entre os guaranis, como, por
exemplo: os pais de recm-nascido passam sobre a boca deste uma orelha de pau (yrup), para que
no se torne desbocado e no se acostume a dizer grosserias (Schaden 1962: 69).
151
Usa-se levantar a criana doente trs vezes em direo ao telhado, sob a porta de casa, rezando; podese tambm colocar a criana sobre o batente da porta e varrer para fora; se essas medidas no forem
eficazes, os pais devem procurar um paj. Para curar peito aberto preciso passar a criana entre um arco
esticado, colocado na porta de casa, ou entre as pernas arqueadas da me, trs vezes, durante trs dias
consecutivos; ou ento passar a criana por baixo dos punhos da rede do pai trs vezes e amarrar seu
peito com uma fralda. Os apiaks dizem que o arco paj; o objeto tambm fixado no terreiro, na
direo contrria do vento, durante tempestades de vero, para aplacar a fria da chuva. Os arcos
apiaks, assim como os kaiabis, so feitos da palmeira siriva (Bactris macana).
191
quando a famlia de origem no abastada, o jovem casal pode passar alguns anos na
casa dos pais da moa, situao que considerada incmoda por todos.
A criana passa a ser vista como uma pessoa verdadeira depois que comea a
andar e a falar. Gradualmente, vai ganhando independncia em relao me e comea
a ser cuidada por uma irm mais velha, pelas irms da me ou pelas avs. Por volta dos
trs anos, meninos e meninas perambulam pela aldeia em companhia de irmos ou
primos maiores. A partir de cinco anos, mais ou menos, formam-se grupinhos de
meninos que passeiam livremente pelos arredores da aldeia, alvejando passarinhos com
estilingue, assaltando roas, pescando pequenos peixes com linha e anzol ou
simplesmente fazendo arte, enquanto as meninas assumem algumas responsabilidades
domsticas, como lavar roupas e louas e cuidar dos irmos menores. A vida escolar
comea por volta dos sete anos, e atualmente vista como alternativa ao trabalho
agrcola, tido como muito sofrido.
A separao entre os sexos aumenta com os anos, e atinge seu pice aps os
dez anos, quando os adultos comeam a especular sobre os possveis cnjuges dos
filhos. Ao que parece, a vida sexual de moas e rapazes inicia-se perto dos doze anos,
mas apenas aps a primeira menstruao que uma garota pode se casar. Normalmente
um rapaz de quatorze anos e uma moa de doze so capazes de formar uma unidade
social relativamente autnoma, pois j dominam as tcnicas e saberes bsicos para a
vida na aldeia; tudo o que precisam saber foi aprendido desde a mais tenra idade, por
meio de observao e participao direta, mas gradual, nas atividades e assuntos dos
adultos.
Os meninos so educados para serem bons pescadores, caadores, agricultores
e, em menor medida, para serem professores e agentes de sade o que absolutamente
no exclui as habilidades anteriores. Saber falar um dos atributos masculinos mais
valorizados, ao lado de uma combatividade moderada, expresso de virilidade. As
meninas so educadas para serem boas donas-de-casa, mes zelosas, boas agricultoras e
cozinheiras; algumas delas tambm querem ser professoras ou agentes de sade. Fazer
fofoca um dos comportamentos femininos mais reprovveis. O desejo de viajar, o
gosto por aventuras e a vontade de conhecer outros lugares e pessoas so sancionados
para os homens, especialmente os jovens, mas no para as mulheres.
Os apiaks no tm ritos de iniciao masculina ou feminina, mas atribuem
grande importncia ao resguardo de menstruao. Quando est no seu tempo, a
mulher no pode comer alimentos reimosos, como os peixes filhote e barbado, seno
192
ter hemorragia; tambm no pode ingerir alimentos doces ou azedos; ela s pode
comer peixes pequenos, carne de pombo, cujubim e galinha, alm de farinha embuga. A
mulher menstruada deve beber muita gua e tomar muitos banhos de rio, porque o
sangue est quente e o banho esfria, e no pode tomar sol. Alm desses cuidados que
visam assegurar a sade da prpria mulher, o resguardo de menstruao serve
igualmente para assegurar o bem-estar da comunidade, na medida em que a mulher
nesse estado pode causar danos, involuntariamente, aos co-residentes. Assim como
ocorre com as grvidas, a presena de uma mulher menstruada estraga expedies de
pesca com timb152 e de coleta de savas. Durante esse perodo, a mulher tampouco
pode preparar tapioca, pois o amido no decantar, estragando a massa.
Uma mulher menstruada ou grvida causa panema (em apiak: iparen) no
marido se tocar nos restos da caa que ele matou, na sua espingarda, canio, flecha ou
arco.153 A panema um fenmeno bastante difundido na regio amaznica e consiste
num estado de desnimo geral, azar nas caadas e pescarias, que acomete o homem.
Abordando a panema de uma perspectiva estrutural, R. DaMatta definiu o fenmeno
como um operador que permite passar da probabilidade e incerteza determinao e
certeza (DaMatta 1977: 72), expresso acabada da lgica ultradeterminstica do
pensamento selvagem (: ibidem). A caa e a pesca so atividades que envolvem riscos
de ordem sobrenatural e que devem se pautar por regras especficas que visam preparar
o caador (ou pescador) para se confundir com o reino natural e depois separar-se dele
(: 79). Dentre outros seres e elementos ambguos, mulheres grvidas e menstruadas
oferecem perigo para o caador/pescador e para a vida social em geral, na medida em
que so associadas simbolicamente ao plano da natureza, cujas foras no podem ser
controladas pelos humanos. A lgica da panema opera, portanto, no sentido de unir o
152
As expedies de pesca com timb no Mayrob renem dezenas de pessoas, entre homens, mulheres e
crianas, extravasando os limites da famlia extensa, e consistem em eventos bastante animados, que
rendem quantidades enormes de peixinhos e podem acabar numa farta piracaia, um piquenique na
margem do rio.
153
Os apiaks conhecem vrios remdios (mohng) para curar panema. Um deles ralar o cip-taia,
coloc-lo n'gua e lavar as mos, o canio, a flecha, o arco, mas no a espingarda; se o homem est
panema, sua espingarda tambm fica, a ento corta-se o cip-amb, pinga-se a seiva dentro do cano da
espingarda ou se carrega o cartucho e d trs tiros, ou ento atira-se no ninho da perigosa vespa apiak
(ver Introduo). O homem tambm pode amarrar um pedao de cip-taia no pulso at seu brao
adormecer. A espingarda tambm fica "ruim" quando o caador atira em marreca, pato, capivara, jabuti,
ariranha, jacar, animais que passam a maior parte do tempo na gua; ento, preciso fazer remdio para
a arma. O co tambm pode ficar panema; para recuperar seu faro, o dono deve fazer o marimbondo
caadeira morder seu focinho trs vezes, e o co espirrar trs vezes. Banhos com sumo de mastruz e de
mucurac so eficazes para curar panema. De outro modo, se o homem est com pulgas, tem azar na
pescaria.
193
que deveria ficar separado, e de separar aquilo que deveria permanecer unido,
permitindo traduzir relaes entre domnios antitticos (natureza-sociedade, prximodistante, pblico-privado) em relaes morais. Dessa forma, o caador torna-se culpado
pelo prprio insucesso (: 91).
A vigilncia sobre o comportamento das mulheres, especialmente em
momentos crticos do ciclo vital (menstruao, gestao, puerprio), remete aos bons
modos em geral e implica um padro de medida especfico. Assim, de acordo com a
anlise dos mitos americanos realizada por Lvi-Strauss (2006), as mulheres so seres
peridicos que podem colocar o universo em risco, pois elas trazem em seus corpos a
marca da periodicidade biolgica, que faz eco s periodicidades sazonal e csmica. A
uma regularidade temporal corresponderia, portanto, um distanciamento espacial, no
sentido de que, em determinados momentos, as mulheres devem se manter afastadas das
outras pessoas e de certos objetos e seres.154
Outro momento do ciclo vital em que se observa resguardo por ocasio da
morte de um consanguneo prximo (pais, irmos, filhos) e do cnjuge. Durante o luto,
os parentes prximos e o cnjuge devem ficar em casa durante uma semana; no podem
comer banana branca, do contrrio, morrer uma pessoa da famlia a cada ano, porque,
quando madura, a banana branca cai toda de uma vez.155 Alm disso, eles no devem se
lavar com gua fria durante um ano, sob pena de terem reumatismo na velhice ( preciso
amornar a gua para o banho). As mulheres mais velhas mantm o hbito de cortar o
cabelo aps a morte do marido. Diferente do cadver dos adultos, o cadver de crianas
pequenas no libera odor ruim, porque elas no tinham pecados, assertiva que indica a
crena numa poro corruptvel da pessoa que se desenvolve ao longo da vida e perece
aps a morte, anloga ao conceito de anguery dos nhandevas e kaiovs (Schaden 1962:
116). O espectro terrestre dos mortos apresenta-se sob a forma de fantasmas que rondam
as covas noite e gemem, os quais so temidos pelos apiaks assim como os azang
pelos teneteharas (Wagley & Galvo 1961: 111).
Hoje em dia as pessoas so enterradas em caixo de madeira junto com sua
rede, algumas roupas, colares e pulseiras; a maior parte dos objetos pessoais queimada
154
No terceiro volume das Mitolgicas, Lvi-Strauss afirma que a mitologia encerra tambm uma
moral, porm infelizmente mais afastada da nossa do que sua lgica o de nossa lgica (Lvi-Strauss
2006: 460). Ao tratar da questo do decoro, condensada na imagem dos modos mesa, Lvi-Strauss
prope que ele exprimiria a deferncia amerndia manifesta nas trocas entre as pessoas e o mundo,
bem como o elogio da civilidade e da moderao, elementos que claramente regem a vida comunitria
apiak.
155
Os apiaks explicam o fato de no comerem tatu-canastra por sua associao com a morte: Se a gente
come esse bicho, pode contar que logo morre algum da nossa famlia.
194
(1865), o cadver de uma pessoa casada era enterrado em sua casa, embaixo da rede em
que dormia; o(a) vivo(a) podia alimentar-se apenas de cauim e devia permanecer
recluso at que os ossos do morto fossem desenterrados, um momento ritual importante,
quando eram depositados numa rede nova, a ser dependurada no teto da casa; quando
esta rede apodrecia, os ossos eram recolocados na sepultura, consumando-se ento a
morte (Guimares 1865: 310).
Emoes fortes em geral so reprimidas pelos apiaks; exploses de raiva ou
alegria, sentimentos de amor exacerbado, cime, inveja, tristeza e dor so abominados;
o choro especialmente reprimido; o desejo de estar s encarado como expresso de
srio distrbio emocional. O cotidiano nas aldeias apiaks regido por uma tica da
moderao e do auto-controle. A boa medida ensinada s crianas desde que elas
mostrem alguma capacidade de entendimento; crianas demonstram notvel controle do
frio e da fome; no comum v-las gritando ou brigando seriamente; crianas
preguiosas, briguentas, mesquinhas e aquelas que no respeitam os adultos so
castigadas pelos pais e adquirem m reputao. A sovinice o pior defeito de uma
pessoa, e isso vale mesmo para crianas de um ano de idade. Depois dela, a preguia e a
agressividade exacerbada so outros defeitos muito graves. Vigora o imperativo de que
no se briga com um parente. Assim como os kagwahivs (tupi-guaranis), os apiaks em
geral exibem um semblante tranquilo e alegre; a agressividade, que antigamente era
dirigida aos inimigos e no sculo XXI manifesta-se apenas durante bebedeiras coletivas,
concebida como o preldio de um conflito que levar fisso alde; por sua vez, a
maior expresso de amor a ddiva/partilha de comida e objetos (Kracke 1978: 21ss).
Cr-se que a pessoa fora de si capaz de tudo, todos tm medo dela. Os
apiaks explicam que qualquer pessoa, homem ou mulher, pode se metamorfosear em
animal, bastando para isso despir sua roupa humana, pois o avesso de todas as
pessoas animal, sendo que, no estado animal, a cabea fica no lugar do traseiro e viceversa.157 Porm apenas aqueles iniciados no xamanismo e movidos por intenes
156
157
No Mayrob, havia uma mquina de costura que pertencera a uma mulher e fora apropriada,
indevidamente segundo seus filhos, pela filha de uma irm dela, aps sua morte.
Durante minha estada no Mayrob, os moradores compraziam-se em assistir a uma novela sobre seres
mutantes. Os adultos, com olhos vidrados na TV, diziam, para terror das crianas: Olha l, branco
tambm vira bicho, olha como eles fazem!
195
158
A Vilaa (2007) escreve a respeito da inscrio, por meio das roupas, de uma dupla identidade,
indgena e branca, no corpo dos wari (pakaa nova, famlia lingustica isolada) contemporneos, uma
possibilidade simblica antecipada pelos xams. De acordo com este e outros povos indgenas sulamericanos, o corpo a sede da diferena e do ponto de vista, algo a ser construdo ao longo da vida
por meio de relaes sociais apropriadas (Vilaa 2007: 174). Para os wari, o xam dotado de dois
corpos, um humano e um animal, e, tanto quanto curar doenas, ele deve fazer os espritos dos
animais verem o mundo de modo apropriado, para que no representem ameaa aos humanos. Mas o
xam wari tambm pode se transformar em animal involuntariamente e tornar-se um grande perigo
para seus co-residentes, fornecendo ao grupo, de acordo com a autora, a chance de experimentar
indiretamente o ponto de vista animal (: 180).
196
De acordo com H. Clastres, agir como animal seria uma das formas possveis de ultrapassar os limites
da sociedade, por meio da atualizao da alma animal, em oposio busca da Terra sem Mal, que
condensaria uma negao do social pela via da ascese, por meio da atualizao da alma palavra divina
e da realizao do homem como deus, da o papel de destaque atribudo ao profeta, em detrimento do
chefe. A oposio conceitual entre xam e chefe evoca a posio ambivalente da pessoa tupi-guarani,
situada entre dois plos opostos: a natureza e a divindade (Clastres 1978: 93ss).
160
Tambm para os guaranis a alma visvel sob a forma de sombra. Schaden afirma que a noo de
alma humana, tal qual a concebe o Guarani, constitui a chave indispensvel compreenso de todo o
sistema religioso (Schaden 1962: 111).
197
os filhos pequenos, pois sabem que os demais alimentos sero obtidos dia a dia; no se
espera que as crianas produzam todo o alimento que iro consumir, mas se sabe, por
outro lado, que o circuito de ddivas continuar funcionando de modo a contemplar as
crianas, das quais se espera que participem das transaes de acordo com suas
capacidades. Assim, certa vez um rapazinho teve sorte na pescaria; sua irm apressou-se
em enviar parte dos peixes para a esposa do irmo de sua me ausente, que lhe dera
bananas e outros alimentos alguns dias antes.
Ao demonstrar capacidades produtivas e se inserir nos crculos de trocas na
aldeia, as crianas vo paulatinamente se tornando homens e mulheres, isto , pessoas
plenas. Note-se que as capacidades produtivas esto relacionadas corporalidade. O
fato de uma menina de trs anos ser capaz de descascar mandioca com uma faca de
tamanho equivalente sua altura revela que foi engajada num tipo de socializao
especfico, que visa desenvolver capacidades produtivas determinadas pelo gnero
desde muito cedo. A capacidade produtiva feminina no se define per se, mas sim como
contrapartida da capacidade produtiva masculina, identificada s habilidades para caar,
pescar, coletar e fabricar certos artefatos, da o valor do casal (no necessariamente em
termos conjugais) como unidade produtiva bsica. Capaz de produzir aquilo de que
necessita para sobreviver, o casal deve mostrar tambm habilidade para participar do
circuito de ddivas que movimenta a aldeia. neste sentido que podemos concordar
com Strathern a propsito da definio da pessoa como microcosmo de relaes, do
corpo como registro de encontros e da identidade como estado estabelecido no evento.
neste sentido, igualmente, que creio ter me apiakalizado em alguma medida, uma vez
que os apiaks nunca deixavam de comentar alegremente, aps alguns meses de
convivncia, que eu estava mais parecida com eles, que havia engordado com o vinho
de aa, que meu cabelo estava crescendo, que eu j no tropeava tanto nos seixos da
beira, comemorando assim as aes empreendidas com a inteno de me transformar
em uma pessoa plena.
Explorando as ideias de M. Strathern no contexto etnogrfico amaznico, os
antroplogos da chamada antropologia do cotidiano realizaram um deslocamento em
relao proposta de Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro ao focalizarem a construo
do social pela via da corporalidade. Um conceito central desses trabalhos o de agency
(agencialidade), que significa capacidade de ao, reflexo e sentimento; embora
praticamente todos os seres do universo sejam dotados de agencialidade, apenas os
199
Muitos povos amerndios, dentre os quais os apiaks, postulam que a humanidade extensvel a todos
os seres do universo; neste sentido, a forma corporal assumida contingencialmente por diferentes seres
(pessoas, animais, espritos) pensada como roupa. Inspirado em G. Deleuze, Viveiros de Castro
(2002: 373ss) chama de perspectivismo ao esquema conceitual que atribui agencialidade a nohumanos, e prope uma anlise das posies contextuais de sujeito e objeto tomadas como pontos de
vista. Este autor prope pensar a identidade como relao, no como essncia sempre coincidente
consigo mesma.
162
Algo parecido ocorre entre os povos do alto rio Negro, onde o processo de construo da comunidade
de parentes como comunidade de similares depende, em larga medida, de um investimento na
conciliao entre os interesses individuais (ou familiares) e o interesse comunal (Lasmar 2005: 72).
200
201
extrair o yma, objeto inserido no corpo da vtima pelos seres sobrenaturais (Wagley &
Galvo 1961: 117). Por sua vez, um homem que atira pedras no rio quando avista um
boto pode ser atacado por ele e vir a adoecer; neste caso, deve procurar um rezador que
cura proferindo oraes, agitando um feixe de folhas sobre seu corpo ou prescrevendolhe banhos com certas plantas silvestres (ver captulo 3).
Assim como a crena zande na bruxaria, as crenas apiaks em feitiaria e em
pessoas que viram bicho so acionadas para explicar infortnios, expressando um
sistema de valores que regula a conduta humana (Evans-Pritchard 1978: 56) e
fornecendo um idioma para falar sobre comportamentos socialmente condenveis.
Nesse sentido, se ocorre um fato extraordinrio, como o desaparecimento de algumas
peas de roupa do varal de uma mulher, no mesmo dia em que algum viu um animal
com caractersticas estranhas (uma anta prximo s casas, por exemplo), os dois eventos
so postos em relao de causalidade e o nome do culpado rapidamente proferido a
boca pequena ou em tom jocoso: Isto o Fulano que est com saudade da namorada!,
diro alguns. As pessoas vo procurar saber o que Fulano estava fazendo quela hora e,
se no descobrirem, ficar comprovada sua culpa. Vale para os apiaks a mesma
considerao de Schaden sobre os guaranis, a saber, que o comportamento no decorre
do carter, mas o carter do comportamento (Schaden 1962: 118).
Quando fatos como este ocorrem com frequncia, um xam de longe,
geralmente um kamaiur do Parque do Xingu,163 acionado pelo cacique para descobrir
quem est virando bicho. Identificado o feiticeiro, espera-se que o cacique tente
convenc-lo a deixar de praticar aes nefastas; se o acusado se recusar a cooperar, deve
ser expulso da aldeia. interessante que o incidente que prejudica uma pessoa ou
famlia conjugal assuma as propores de uma ofensa ao conjunto da comunidade, que
se v compelida a agir para suplantar a fonte de perigo. Aps a mudana do feiticeiro, as
pessoas evitam sua companhia, mas no a dos demais membros daquela famlia extensa,
que so tratados com a hospitalidade costumeira, embora por vezes algum cogite a
possibilidade de o cnjuge do(a) feiticeiro(a) tambm ser capaz de virar bicho.
As acusaes de feitiaria sob a forma de histrias de transformao temporria
de gente em animal condensam o idioma da violncia e da hostilidade, elementos que
no so totalmente suprimidos pela tica da generosidade e do pacifismo apregoada
163
O recurso a pajs do Xingu explica-se pelo fato de que os kaiabis do Tatu costumam fazer visitas ao
Xingu, para visitar seus parentes, e assim tomam conhecimento sobre os pajs mais poderosos que
interagem com aqueles kaiabis residentes no Parque.
203
pelas pessoas influentes da aldeia. A pessoa que vira bicho chamada de paj do mal
ou feiticeiro (pasa o termo que designa tanto o feiticeiro como o paj em apiak)164
e age sempre noite. Este no um tema sobre o qual os apiaks gostam de conversar,
fato que dificultou bastante a obteno de informaes sistemticas durante a pesquisa
de campo. Quando eu interrogava diretamente algum sobre o assunto, recebia
invariavelmente a resposta taxativa: Sobre gente que vira bicho eu no sei falar, eu no
viro bicho!, o mesmo tipo de reao que Evans-Pritchard percebeu entre os Azande
quando os interrogava sobre bruxaria (Evans-Pritchard 1978: 49), e que explicita uma
nfase nos aspectos moral e utilitrio do conhecimento: saber falar sobre, conhecer,
implica sempre um saber fazer avaliado de acordo com rgidos parmetros morais;
falar sobre aquilo que no se sabe por experincia prpria seria considerado uma
leviandade.
O pouco que descobri sobre pessoas que viram bicho foi durante conversas
informais, em noites em que no havia leo para o gerador de energia e, portanto, no se
podia assistir TV. Numa dessas noites, um homem na faixa dos 40 anos contou a
seguinte histria:
Um homem que cortava seringa deixava a mulher e a filha pequena em
casa; a casa era cercada de tbua. Um dia, ele saiu para cortar e disse: Vocs
matam o tracaj, ajeitam o arroz, e deixam tudo no jeito. Ele foi embora, passou
um tempo e elas ouviram gritar no mato; a menina disse: Olha, mame, papai j
vem. A mulher pegou uma escada, trepou l em cima, ficou prestando ateno,
a disse: Minha filha, no teu pai, bicho. Quando ele entrou, no pde nem
varar pela porta: ele era dessa grossura! Ele foi destampando as panelas,
metendo a boca nas panelas, comendo arroz, tracaj. E a mulher s prestando
ateno. Aquele monte de cabelo, quando pela, fica deste tamanhinho; a boca
dele no existe. Ele foi embora. A mulher disse: Minha filha, no acredito que
este bicho acertou esta casa assim. Ela desconfiou que era o marido dela, o
prprio marido virou bicho, veio em casa comer e foi embora. Quando ele
chegou, ela falou: Marido, veio um bicho aqui. Era ele, ele mesmo virou bicho;
ele tira a roupa, e joga assim (no avesso): j virou ona; joga de novo e vira
gente. No PIn Teles Pires, tem um homem chamado Fulano, ele vai at a beira,
tira a roupa e vira boto, cai dentro d'gua; ele vem, veste a roupa de novo e vai
pra casa. Isso certo, ns j vimos. Por que mataram o Sicrano l? Por causa
disso, ele virava capivara noite; o pessoal atirava na cabea dele e nunca
matava, at que o Beltrano o acertou no traseiro, ele adoeceu com chumbo na
cabea. A gente v cada coisa feia...
164
Os apiaks distinguem os pajs do mal dos pajs do bem, aqueles que curam doenas. Por ocasio da
defesa da tese, Fausto me chamou a ateno para o fato de que os apiaks parecem equacionar o paj
do bem a forasteiro e o paj do mal a parente/co-residente, sugerindo uma oposio simblica entre os
processos de fazer parente (de acordo com a tica da moderao) e virar bicho (tema das
metamorfoses); pretendo aprofundar a anlise de tal oposio em outra oportunidade.
204
205
e o seu anzol era uma unha de gavio real. Esperou poucas horas. De repente, a
linha comeou a puxar e o tatu, que estava com muita vontade de comer um
peixe assado, fisgou o peixe, jogando-o para a terra, mas no o matou. De
repente, o peixe comeou a falar e foi se transformando em uma mulher muito
bonita. O tatu ficou assustado e perguntou: Onde voc mora? A mulher
respondeu: Eu morava dentro do rio, mas agora vou morar em terra, estou
procurando meu marido que j veio morar em terra. O tatu, muito curioso,
falou: Eu vi o seu marido. Ele est morando na beira de um lago onde existem
muitos peixes chamados jacund. O tatu levou a mulher at a casa onde seu
marido estava morando. Quando chegaram perto, ouviram cantos que ele estava
cantando para seus parentes, que j se preparavam para sair da gua e ir para a
terra. Poucas horas depois, todos estavam em terra: estes eram os seus parentes.
Outra verso dessa histria atribui a Jesus a criao do povo:
Comecinho de apiak foi assim: Jesus, que Bahra, andava sozinho, a
encontrou os tatus, eram todos solteiros. Jesus pegou peixe, jogou pra trs, virou
uma mulher, Nossa Senhora. A o tatu disse: Tambm fao! Ele jogou o
canio dele, quando olhou pra trs: Peguei foi peixe. Jesus falou: Deixa de
ser besta, no est vendo que uma mulher? Agora no vai dar mais certo.
Assim foi comeando. A veio o veado: Eu vou pegar tambm. E pelejou,
jogando o canio, nada! Tentou de novo pegar uma senhorinha pra ele, e Jesus
espiando: No vai pegar nada. Jesus falou com o tatuzinho: Sabe como vai
ser o nome desse peixe? peixe, mas vai virar gente. Eu vou escolher um nome
bonito: apiak. ramos ns, a viramos. Dizem que o jacund nosso
conterrneo. Ele virou gente, somos ns.
Os mosquitos igualmente originaram-se de uma metamorfose definitiva devida
a um descuido humano.
A origem deles piracu (farinha) de ndio. Outra tribo brigou com
apiak, a apiak fez farinha de gente. Era para o ndio no andar mais na rea
deles, para se afastar mais um pouco. Torraram e fizeram, experimentaram
comer: No vai, no. A a me de uma mocinha falou: Vai jogar isso ngua.
Mas ela jogou em terra mesmo, preguiosa! De primeiro, no tinha esses
mosquitos nem mutuca, nada. A mocinha pegou a peneira com o p do piracu,
desceu para a lixeira, um pouco virou lambari, um pouco virou piunzinho, um
pouco virou borrachudo.
A histria da origem das Pliades, chamada de histria da ona no cu pelos
apiaks, tambm tem como eixo a metamorfose, agora temporria ou reversvel:
Uma mulher, me de dois rapazes, criava uma dessas oncinhas que
andam no mato. A ona estava matando muita gente, ela era gente, mas depois
virou bicho. Os dois rapazes saam para caar e no traziam nada para sua me,
que logo ficou desconfiada. Certo dia, eles convidaram o neto da velha para ir
caar e o ensinaram a virar ona para capturar uma paca. A ona soprava as
patas para sarem as unhas, o dente, o cabelo, tudo. Todos os dias, eles matavam
porco, matavam ndio bravo. Um dia eles mataram muito porco, pediram para a
206
A propsito do fim do mundo atual, h outra histria em que a lua se apaga durante uma festa em que
os apiaks consumiam uma grande quantidade de porcos selvagens: O paj foi l no cu, falou com
Jesus: O senhor queria acabar com o mundo todo? No faa isso. Ah, vocs esto vivos?, ele falou.
Estamos, sim, somos poucos, mas estamos vivendo. Ento est bom, enquanto vocs esto vivos, a lua
estar aprumada, falou Jesus. A os pajs desceram de novo para o cho, os outros perguntaram o que
Jesus tinha falado, e eles: Jesus falou que no vai mais acontecer nada, ele estava s experimentando o
fio dele. Ns o ajeitamos, agora est bom. Dizem que Jesus est sentado na portinha dele, olhando pra
baixo; dizem que pertinho, quando a gente est falando mal dos outros, ele escuta. Dizem que muito
perto da terra.
207
gente, o brao dele era fino, perna, p, mas agora um bicho. A a roupa desse
bicho caiu ngua, com medo do paj. Ento o paj no deixou ningum mais
andar para o rumo desse lago, perto do salto So Simo. L muito farto de
comida.
Do ponto de vista da cosmologia, as metamorfoses atestam a capacidade de
agencialidade partilhada por todos os seres do cosmos um cosmos caracterizado,
ademais, por um potencial transformacional generalizado. Pessoas que viram bichos
quando desejam fazer mal a um co-residente, peixes que se transformam
definitivamente em pessoas; corpos de ndios inimigos que, cozidos, tornam-se insetos
(ou, como dizem os apiaks, pragas); pessoas que viram corpos celestes devido a seu
comportamento imprprio; sobrenaturais que assumem a forma humana para obter um
alimento apreciado pelos apiaks, tudo isso indica que o corpo pensado/vivido como
um envelope fsico circunstancial, uma roupa que pode ser temporariamente
abandonada ou perdida definitivamente. Dessa forma, assim como ocorre entre vrios
povos indgenas, se tudo pode ser humano, ento nada humano inequivocamente. A
humanidade de fundo torna problemtica a humanidade de forma (Viveiros de Castro
2002: 377). O maior problema experimentado pelos apiaks , com efeito, circunscrever
a forma humana ao comportamento e ao espao que lhe so adequados, de modo a
impedir que a experincia da pessoa venha a se dissipar no horizonte da alteridade o
que, do ponto de vista dos humanos, denota a morte.
De acordo com Viveiros de Castro (1986), as cosmologias tupi-guaranis no se
encaixam na grande oposio entre Natureza e Cultura delineada por C. Lvi-Strauss,
mas compreendem um terceiro domnio ontolgico, a que ele chama de Sobrenatureza.
Porm, como vimos, o pensamento social apiak no se encaixa num esquema bipartite
ou tripartite, que impe uma barreira ontolgica entre domnios simblicos. Ao
focalizar a transformao da pessoa em
exclusivamente) em ona,
168
168
Isto em detrimento de outras potencialidades da pessoa focalizadas por outros tupi-guaranis, como o
inimigo ou a divindade. Para os arawets e os guarani-mbys, por exemplo, as metamorfoses,
concebidas como irreversveis, ocorrem aps a morte, ao passo que, para os apiaks, elas so
reversveis e ocorrem em vida.
208
tanto
concepes
fundamentalmente irreconciliveis
como
209
Em sua anlise da reao inconstante dos tupis quinhentistas aos ensinamentos dos jesutas, Viveiros
de Castro faz uma crtica acepo substantivista do conceito de cultura, a partir de imagens
contrastivas retiradas do mundo natural: Nossa ideia corrente de cultura projeta uma paisagem
antropolgica povoada de esttuas de mrmore, no de murta (...) Entendemos que toda sociedade
tende a perseverar no seu prprio ser, e que a cultura a forma reflexiva deste ser; pensamos que
necessrio uma presso violenta, macia, para que ela se deforme e transforme. Mas, sobretudo,
cremos que o ser de uma sociedade seu perseverar: a memria e a tradio so o mrmore identitrio
de que feita a cultura. Estimamos, por fim, que, uma vez convertidas em outras que si mesmas, as
sociedades que perderam a tradio no tm volta. No h retroceder, a forma anterior foi ferida de
morte; o mximo que se pode esperar a emergncia de um simulacro inautntico de memria, onde a
etnicidade e a m conscincia partilham o espao da cultura extinta. Talvez, porm, para sociedades
cujo (in)fundamento a relao aos outros, no a coincidncia consigo mesmas, nada disso faa o
menor sentido. (Viveiros de Castro 2002: 195).
210
211
172
A. Mtraux falava num estoque comum da religio de todas as tribos tupi-guaranis, derivada dos
tupinambs quinhentistas; seus elementos principais eram a saudao lacrimosa, a antropofagia ritual
e a crena na terra sem mal (Mtraux 1979: XXXV). Baseado em textos de cronistas e em etnografias
do incio do sculo XX, este autor advogava uma continuidade cultural entre os tupinambs
quinhentistas e os povos tupi-guaranis contemporneos. Tal continuidade foi endossada por Viveiros
de Castro (1986) na construo de seu modelo de anlise das cosmologias tupi-guaranis.
O cristianismo tambm foi um dos principais agentes de mudana na frica do Sul. Jean e John
Comaroff (1991) demonstram em sua minuciosa etnografia que o objetivo final dos missionrios
britnicos era colonizar a conscincia dos tswanas, travando-se assim uma verdadeira luta
simblica. Durante o longo processo de colonizao da conscincia, porm, os povos nativos
desenvolveram uma conscincia da colonizao que lhes permitiu reagir dominao colonial.
212
ento necessrias (: ibidem). Com o passar dos anos, porm, Leenhardt comeou a
recear que a aculturao destrusse o fundamento da personalidade canaque, definida
como a capacidade de partilhar em conjunto o tempo de outros, seres mticos e humanos
(: 187).
O mais interessante da anlise de Clifford a demonstrao do movimento
gradual de alargamento do conceito cristo de Deus realizado por Leenhardt a partir do
dilogo com os pastores canaques. O novo Deus cristo dos canaques era uma entidade
andrgina, um misto de identificao totmica e culto aos ancestrais que unia vida
feminina e poder masculino (: 90). Alm disso, aquele autor esclarece que, enquanto
Leenhardt acreditava ter dado aos canaques a noo de esprito, estes afirmavam que o
que ele lhes ensinara fora a noo de corpo (: 172). O antroplogo-missionrio no
concebia a religio como um sistema fechado de crenas ou smbolos, mas sim como
um campo aberto de expresses de formulao parcial. Para ele, a percepo mtica
canaque no era algo misterioso, mas um procedimento intelectual concreto,
constitutivo da pessoa e do territrio (: 180).
Ora, no improvvel que, no momento em que os apiaks tentavam se
reestruturar como povo, reunindo-se em parcela de seu territrio tradicional (anos
1960), a mensagem dos missionrios se ajustasse perfeitamente s concepes indgenas
de parentesco, focalizando a famlia (sobretudo as crianas), dirigindo-se para o futuro,
reforando laos de solidariedade geracional e insistindo na superioridade das relaes
entre as pessoas sobre os objetos. Com efeito, os apiaks misturados veem na
socialidade alde (e no na vida post mortem) o lugar da realizao plena da pessoa, e
por isso dedicam-se sublimao de sua poro animal. O chefe, no o guerreiro ou o
xam, o modelo ideal masculino, e sua funo basicamente falar, isto , negociar
com os brancos e outros povos indgenas para obter melhorias para a aldeia. As festas
no so realizadas visando a comunicao com os deuses, mas sim com o objetivo de
intensificar os laos entre co-residentes. O grande Outro externo com que os apiaks se
relacionam hoje so os brancos, e o maior desafio no presente incorporar seus objetos
e instituies sem se tornar um deles, isto , sem adotar tambm seu modelo de relao
social.
R. Murphy (1958) produziu uma anlise fatalista sobre a religio munduruku,
influenciada como foi por missionrios salesianos e franciscanos, aps ter sido
praticamente inviabilizada pelo engajamento destes indgenas na indstria da borracha,
no final do sculo XIX. De acordo com o autor, no sculo XX desapareceram crenas e
213
Da mesma forma, entre os teneteharas, cujo contato intenso com os brancos se iniciou em meados do
sculo XVII, a unio com a irm da me, a irm do pai, a prima, a filha da irm e a filha de todas
aquelas chamadas de irms era proibida nos anos 1940 (Wagley & Galvo 1961: 95).
174
Embora identifiquemos casamentos entre primos cruzados e casamentos avunculares nos diagramas de
parentesco apresentados (verso tica), optei por analisar os discursos dos apiaks sobre os
casamentos (verso mica).
216
Um homem chegou a me dizer que, se o primeiro cacique do Mayrob, av de dois primos cruzados
que se tornaram cnjuges, ainda fosse vivo no teria permitido o casamento. No entanto, um casamento
de filhos de primos paralelos que no cresceram na mesma aldeia e dois casamentos de filhos de primos
cruzados (todas essas pessoas tm menos de 20 anos) so considerados apropriados. No Mairowy, no
registrei nenhum casamento entre primos cruzados ou paralelos.
217
176
R. Laraia (1971) listou os seguintes traos bsicos dos sistemas tupis quinhentistas: descendncia
patrilinear, residncia patrilocal com possibilidade de uxorilocalidade temporria, chefia hereditria e
possibilidade de existncia de metades. Ele props que os sistemas de parentesco dos povos tupi-guaranis
contemporneos reproduzem aqueles traos gerais, embora tenha registrado diversos casos de
havaianizao, a saber, entre os kamayurs, os teneteharas, os tapiraps e os kayos, atribuindo-os a
uma mudana decorrente de fatores externos (Laraia 1971: 187). O fato de os apiaks mais velhos
tratarem seus primos e primas paralelos e cruzados com o mesmo termo aplicado aos irmos (manos), a
tendncia a marcar a idade relativa no discurso e a ausncia do casamento preferencial com a prima
cruzada permitiria classificar os apiaks como mais um caso de havaianizao. Todavia, parece-nos mais
adequado, para a anlise do caso apiak, no tomar tal modelo como um postulado ou uma necessidade
lgica, de modo a respeitar sua especificidade histrica.
218
apiak e kaiabi no Rio dos Peixes datam dos anos 1980; antes disso, os apiaks do Rio
dos Peixes preferiam casar-se com mundurukus migrados do rio Cururu.
Dialogando com os historiadores, Lvi-Strauss se perguntou em que
condies e sob que formas o pensamento coletivo e os indivduos se abrem para a
histria? Quando e como, em vez de olh-la como uma desordem e uma ameaa, nela
veem um instrumento para agir sobre o presente e transform-lo? (Lvi-Strauss 1999:
10). A resposta a tal indagao, absolutamente pertinente no caso apiak, elaborada a
partir do dilema enfrentado pela aristocracia japonesa medieval: aderir ou no ao
casamento entre primos. De acordo com o autor, o Japo antigo descobria que
sociedades que s aspiram a se reproduzir e se submetem mudana sem desej-la
podem, sem abandonar as vias do parentesco, encontrar no grande jogo das alianas
matrimoniais o meio de se abrirem histria e s condies de um futuro previsto (:
13).
Tanto os casamentos com indgenas de outras etnias e com arigs quanto o
casamento com consanguneo distante, praticados pelos apiaks atualmente, devem ser
lidos como meios de rearranjar componentes de uma estrutura que sempre esteve e
sempre estar sujeita histria, evidenciando-se uma tendncia de abertura a novos
eventos e adaptao s contingncias. Para Lvi-Strauss, o casamento a uma distncia
maior (que aquele entre primos), se de um lado expe-se ao risco e aventura, por outro
permite a especulao: estabelece alianas inditas e movimenta a histria graas ao
de novas coalizes (Lvi-Strauss 1999: 11). Nesse sentido, o deslocamento da
linguagem do parentesco para fins polticos oblitera parcialmente, a um s tempo, a
distino entre linha paterna e linha materna, assim como a distino entre endogamia e
exogamia, resultando em regimes cognticos nos quais a regra de descendncia no
pertinente e a relao de troca predomina sobre o critrio unilinear (: 19). Tal
configurao remete s sociedades de casas, entidades morais em que a filiao
equivale aliana e vice-versa (: 23), encontradas entre povos to distintos como os
indgenas americanos, os polinsios, os africanos, a aristocracia europeia do sculo XVI
e os camponeses franceses no sculo XIX.
Na ltima dcada, os casamentos de apiaks com forasteiros conhecidos
(mundurukus, kaiabis e brancos regionais) passaram a ser preteridos em favor do
casamento com consanguneo distante.
177
177
219
faixa dos 14 anos encontram cnjuges adequados sem sair da aldeia, como a filha da
filha da irm da me do pai (ffimP) para ego masculino, que ento precisa apenas mudar
de casa (ver captulo 3). De outro modo, no Mairowy, rapazes e moas dessa idade
enfrentam dificuldade para encontrar um cnjuge, j que so quase todos primos
legtimos (filhos de cinco siblings Kamassori, nos. 93, 95, 96, 97 e 99 no Diagrama
5.1) e no podem casar entre si. Assim, moas e rapazes tm de recorrer a regionais ou a
mundurukus do Tapajs dispostos a se mudar para a aldeia, ou ento seguir a carreira de
namoradores, pessoas que tm apenas casos fortuitos, o que no visto com bons
olhos pelos mais velhos. Esses regionais e mundurukus no so, entretanto, completos
desconhecidos; so muitas vezes parentes entre si ou consanguneos afastados de um
dos pais do cnjuge apiak.178 Embora sejam desejveis, os casamentos entre jovens do
Mayrob e do Mairowy apresentam uma desvantagem para o rapaz, que deve se mudar
para cumprir o servio da noiva na aldeia dos sogros; dada a distncia que separa as
duas aldeias (algo em torno de 500 quilmetros, a serem percorridos metade de
voadeira, metade por estradas precrias), muito difcil que ele possa visitar os pais
com frequncia, e a mudana tende a ser definitiva.
********
Desde que foram contatados por missionrios no incio do sculo XX, os
apiaks adotaram uma estratgia importante em termos de ampliao dos laos de
parentesco, o compadrio (parentesco fictcio, parentesco espiritual ou pseudoparentesco), instituio que exprime o parentesco voluntrio e ritual (Ghasarian 1996:
188) e a orientao das relaes sociais para o futuro. O compadrio uma relao
oficializada no ritual catlico do batismo, que determina que um casal adquire certas
obrigaes em relao ao() afilhado(a). Atualmente, no Rio dos Peixes, o padre que
realiza os batismos o jesuta que mora na aldeia h mais de vinte anos; no baixo Teles
Pires, as pessoas recorrem aos sacerdotes franciscanos da Misso Cururu. Espera-se dos
padrinhos que eles presenteiem a criana no aniversrio e no Natal, que a aconselham e
que tomem conta dela em caso de morte dos pais. Por ocasio de uma cerimnia
coletiva de batismo no Mayrob, as madrinhas das crianas prepararam bolos de
178
Por exemplo: o marido de uma das irms Kamassori de Mairowy descendente de arig; uma irm
dele casada com outro irmo Kamassori, que vive no Bom Futuro. Um filho de outro sibling da
parentela Kamassori casado com uma munduruku proveniente da Misso; aps seu casamento, outro
morador da aldeia, descendente dos Pombos, casou-se com uma prima dela, a qual tambm se mudou
para o Mairowy.
220
179
Alm do batismo, o casamento, a primeira comunho e a morte so outros momentos crticos que
exigem a atuao do padre no Mayrob, um forasteiro que se comunica com o sagrado e que, por no
ter vnculos de parentesco na aldeia, transita livremente pelas casas e obtm informaes de fontes
variadas, o que lhe confere um conhecimento global da vida social, conhecimento este que serve de
base a suas pregaes dominicais.
180
A respeito dos povos nativos do baixo Urubamba, que tambm atribuem grande valor ao compadrio,
Gow afirma que, no Baixo Urubamba, o compadrio uma importante relao semi-afim/semiconsangunea que dois homens estabelecem com base na criana, transformando parentes distantes em
parentes reais (Gow 1991: 172ss).
221
223
224
185
Ramos (2006) explica que, entre os sanums, que desenvolveram um sistema desarmnico, com
descendncia patrilinear e residncia matrilocal, a afinidade, cuja expresso mais pungente a dade
genro-sogra, implica tenso e assimetria, ao passo que a relao entre consanguneos, especialmente
225
186
irmo e irm, marcada por absoluta lealdade. A formao de linhagens (bem como sua manuteno)
depende da rara possibilidade de alguns homens no precisarem deixar a aldeia natal para se casar
(Ramos 2006: 10).
A equao contempla ainda o cativo de guerra e um importante classificador de alteridade para os
tupis (Fausto 1992).
226
No que se refere residncia, fator central da organizao social guianense, Rivire afirma que a nica
regra expressa na regio a obrigao de morar com todos os parentes, uma impossibilidade de ordem
prtica que cabe ao chefe administrar. Ver tambm Overing 1973, 1981.
188
Em dilogo com as teses de Marx e Lvi-Strauss sobre as relaes diferenciais que as sociedades
estabelecem com o meio ambiente, Descola (1992) focaliza os princpios de identidade e diferena
que organizam a prtica e postula uma homologia entre a forma como uma sociedade concebe a
natureza e a forma como concebe os outros. O autor define animismo como uma forma de
objetificao social da natureza em que os seres naturais tm o status de pessoas que exibem emoes
e habilidades humanas e atributos sociais (falam, se apaixonam, tm regras de parentesco e normas de
conduta); a relao que os humanos estabelecem com eles da ordem da metonmia, manifestando-se
sob a forma de relaes de proteo, seduo, hostilidade, aliana ou troca de servios (Descola 1992:
114). Natureza e sociedade no so, portanto, separadas por fronterias ontolgicas. Muitos sistemas
anmicos amaznicos baseiam-se numa viso do mundo como um grande circuito fechado no interior
do qual circulam substncias, almas e identidades necessrias perpetuao equilibrada da ordem
social, ameaada pela morte (: 116). Os modos de representao da relao com a natureza consistem
numa padronizao especfica da interao mente-matria; sua anlise pode ajudar a explicar o grau
diferencial de transformao das sociedades, na medida em que algumas so capazes de reter
esquemas de prtica por mais tempo que outras, em face de mudanas de ordem econmica, poltica e
organizacional (: 123).
189
Arhem (1996) demonstrou, por meio da anlise do material makuna (tukano), que existem sistemas
que combinam elementos anmicos e totmicos. Os makunas pensam toda morte como predao e
reconstroem esta relao em termos de troca, que contribui para a regenerao da vida (Arhem 1996:
189).
227
Bem, a anlise desenvolvida at aqui nos autoriza a dizer que os apiaks, que
so tupi-guaranis, concebem suas relaes com o mundo exterior aldeia no horizonte
da troca, em que pese a relao de inimizade secular com os kaiabis. Nesse sentido, as
transformaes que tm lugar nas festas de branco (imitao) e nas alianas
matrimoniais com forasteiros (familiarizao), analisadas no captulo 3, indicam que,
para os apiaks, a alteridade no sinnimo de perigo apenas: ela tambm uma
necessidade e um desejo. Alm do mais, concebe-se que a co-residncia capaz de
mitigar a poro animal da pessoa, bem como a alteridade dos parentes afastados e dos
forasteiros.
Viveiros de Castro afirmou que a filosofia social dos povos da Guiana a que
mais se aproxima daquela dos tupis, com uma diferena importante: ambas as filosofias
exibem um desejo de endogamia que dissolva e dispense a afinidade, mas, enquanto os
guianeses postulam uma imagem do exterior como pura negatividade (o que Rivire
qualificou como fico), os tupis demonstram uma necessidade absoluta do Outro, a
qual informa sua concepo de pessoa (Viveiros de Castro 1986: 682).
Discutindo a vigncia do sistema dravidiano na Amaznia indgena, Viveiros
de Castro afastou-se dos conceitos dumontianos de hierarquia e englobamento dos
contrrios e empregou o contraste entre dado e construdo, no qual R. Wagner se apoiou
para analisar povos melansios. Viveiros de Castro prope ento que, na Amaznia, e
especialmente na Guiana, mesmo nos casos em que no h afinidade real (matrimonial),
a afinidade (potencial) predomina sobre a consanguinidade enquanto princpio
relacional (Viveiros de Castro 2002: 411), surgindo como o dado, ou seja, como
operador cosmolgico, modo genrico da relao social e fundamento da ligao
entre grupos locais que se pensam como parentelas endogmicas. Este autor afirma que,
no contexto amaznico, consanguinidade e afinidade no so categorias descontnuas,
mas plos de uma estrutura em desequilbrio perptuo. A afinidade seria, assim, o
princpio de instabilidade responsvel pela continuidade do processo de parentesco (:
432), respondendo por aquela abertura ao Outro que, nas palavras de Lvi-Strauss,
caracteriza o pensamento amerndio. Embora a generalizao desta tese para todos os
povos amaznicos seja um tanto forada, ela se mostra til para refletir sobre o caso
apiak.
Durante meio sculo, na falta de pessoas relacionadas de maneira apropriada
com quem casar, os apiaks recorreram a pessoas de outras etnias, misturando-se.
Entretanto,
quando
se
realdearam,
o(a)
cnjuge
forasteiro(a),
devidamente
228
O casamento com parente distante tambm vigora entre os povos nativos do Baixo Urubamba, os
canelos quichua, os cocamilla e os shipibo-conibo, sociedades da Amaznia ocidental cujos sistemas
de parentesco operam no sentido de produzir novas aldeias, e no no de replicar alianas prvias (Gow
1991: 198). De acordo com P. Gow, para esses povos a comunidade local o centro de uma rede
ampla de laos de parentesco e de alianas matrimoniais que se estende por um vasto territrio (: 199),
exatamente como ocorre com os apiak.
229
********
Como vimos no captulo 1, a relao dos apiaks com os outros, os de fora
da aldeia, apresenta um carter ambivalente. At meados do sculo XIX, eles
guerreavam com povos vizinhos e colaboravam pacificamente com os brancos; embora
os brancos sejam concebidos como parceiros em termos econmicos e polticos, o
casamento com eles tem sido evitado nas duas ltimas dcadas; os kaiabis so inimigos
fiis de longa data, dos quais os apiaks no se separam. Enquanto desejam virar
brancos parcial ou momentaneamente, os apiaks aceitam Outros como co-residentes
(os Kamassori no Mayrob, os Pombos no Mairowy), embora os marginalizem.
No Mayrob, onde a parentela influente a Morim, vive h mais de 10 anos
um segmento da parentela Kamassori, encabeado pelo homem de no. 39 no Diagrama
3.1, proveniente do mdio Teles Pires. Ele um dos ltimos falantes plenos do idioma,
e o informante mais disposto, mas os apiaks parecem no perdoar o fato de ele ter
vivido muitos anos entre os kaiabis, parentes de sua esposa. Embora os homens
influentes reconheam o valor poltico do saber deste homem, sua famlia
politicamente marginalizada e seus filhos tm dificuldades para encontrar cnjuges na
aldeia. como se este homem tivesse se kaiabizado, tornando-se diferente dos
Morim devido convivncia prolongada com os kaiabis.
No Mairowy, a famlia extensa dos Pombos encabeada pela viva
munduruku (no. 69) de um apiak, o velho Pombo (no.68), que atuou como guaxeba de
230
Os Kamassori e os Morim costumam dizer que o velho Pombo era guaxeba de Paulo Corra, o que
cronologicamente improvvel (o seringalista faleceu antes de 1910), mas muito significativo do ponto
de vista simblico.
192
No foi possvel identificar o problema mental que com efeito acomete dois deles.
231
Por sua vez o irmo do finado Pombo (no. 67), um sexagenrio casado com
uma mulher munduruku, mora numa casa distante poucos quilmetros a jusante do
Mairowy; sua famlia extensa classificada como ribeirinha e visita a aldeia com
frequncia. Quando os filhos do velho Pombo se sentem especialmente insultados,
costumam passar alguns dias na residncia desse casal, fato que exaspera os membros
da parentela Kamassori porque depe contra a imagem de harmonia na comunidade.
Apenas a gerao -2, que compreende pessoas menores de 20 anos, parece fornecer
cnjuges legtimos para a famlia influente da aldeia; tanto assim que se comentava que
a garota de no. 87 no diagrama estava namorando um rapaz da parentela Kamassori; por
seu turno, a moa de no. 83 casou-se com o irmo do no. 42. Os nos. 85, 86, 89 e 90
ainda no tinham idade para casar em 2007. Parece que a convivncia intensa, gerao
aps gerao, apaga as mgoas passadas, pois as pessoas da parentela Kamassori dizem
que os descendentes da gerao -2 dos Pombos so diferentes de seus pais, no so
doidos como estes.
232
233
Como ocorre entre vrios povos amaznicos (Gow 1991; Kracke 1978;
Rivire 2001, entre outros), a existncia das aldeias apiaks em grande parte produto
da ao dos caciques. Algumas informaes sobre a chefia apiak encontram-se nos
captulos anteriores, mas aqui analisaremos mais detidamente a forma e a funo da
chefia contempornea, a partir do processo de constituio de aldeias na segunda
metade do sculo XX.
Para ser cacique, um homem deve demonstrar habilidade para conduzir os
assuntos que dizem respeito coletividade; os principais atributos de um cacique so a
eloquncia, a generosidade e a moderao. Uma lista de qualidades partilhada em
maior ou menor medida pelos caciques que conheci: auto-confiana, empatia,
sagacidade,
serenidade,
diligncia,
curiosidade,
ousadia,
narcisismo,
altivez,
234
Pode-se afirmar que a comunidade apiak voltada para fora (Gow 1991: 276) e que a
parceria comercial (por oposio partilha e ddiva) o modelo das relaes
estabelecidas pelos homens influentes no mundo exterior aldeia (Gell 1992: 158).
Com efeito, para existir, a comunidade depende da regularizao jurdico-administrativa
do territrio, e os elementos materiais que a caracterizam tacho de farinha, voadeira,
escola, posto de sade, frmacos, aparelho de TV etc. devem ser adquiridos fora dela,
junto aos brancos, sendo que a forma encontrada pelos apiaks para os obter foi a
diplomacia. A homogeneidade social e a valorizao das relaes internas aldeia
tampouco caracterizavam a sociedade dos tupinambs, ancestrais dos apiaks.
De acordo com F. Fernandes (1949), nas esferas em que atuavam os
guerreiros, pajs e chefes vigoravam processos competitivos de interao social,
infletindo o carter cooperativo dos demais setores da organizao social, evidenciandose o duplo carter competitivo-cooperativo da organizao social tupinamb. O
conselho de chefes era a nica esfera poltica da sociedade tupinamb, com atribuies
executivas e deliberativas, especialmente com relao guerra. Este conselho era
liderado pelos ancios, embora os pajs desempenhassem a papel importante, na
medida em que eram os intermedirios entre os antepassados e os homens comuns. O
conselho levava os membros de um grupo local ou de uma tribo a se comportarem como
componentes de uma unidade social mais ampla que a famlia extensa, voltada para o
exterior.193
A coletividade apiak se v propriamente como comunidade no discurso do
cacique. Se pensarmos a chefia como um conjunto de funes relativas coletividade,
que visa a formao e a manuteno do grupo e a evitao de sua fisso (Kracke
1978),194 temos que, por um lado, o cacique deve negociar com os forasteiros e agentes
do Estado e, por outro lado, deve zelar para que os co-residentes sigam a tica da
193
Lembro que a sociedade arawet igualmente voltada para o alhures e o alm, a autoridade do cacique
derivando da relao que estabelece com Outros: deuses, mortos e inimigos (Viveiros de Castro 1986:
319). Para os arawets, o lder aquele que comea uma ao, no o que a ordena (: 302), aquele que
no tem medo-vergonha de se destacar, de propor empresas (: 305); ele no tem poder, mas alguma
ascendncia sobre os co-residentes; ele bem posicionado genealogicamente e condensa atributos
diversos: personalidade forte, lder de famlia extensa, domnio da oratria, capacidade de forjar
alianas produtivas. Entre os teneteharas, os verdadeiros chefes so os chefes de famlia extensa
(Wagley & Galvo 1961: 172).
194
Kracke (1978) elaborou uma interessante anlise da chegia kawahiv a partir do dilogo com a
psicologia, o que o aproxima do insight de Lvi-Strauss (1944) sobre os materiais psicolgicos crus a
partir dos quais toda cultura feita: h chefes porque h, em qualquer grupo humano, homens que,
diferente da maioria dos companheiros, apreciam o prestgio per se, tm um forte sentimento de
responsabilidade e para quem o peso dos negcios pblicos traz recompensa. (Lvi-Strauss 1944:
31).
235
moderao e se tratem como parentes (ver captulos 3 e 4). O cacique deve dar o
exemplo e tomar a frente nos empreendimentos coletivos; o cacique jamais ordena:
ele convida a iniciar um trabalho ou uma reunio; ele quem organiza as festas, as
expedies de caa coletivas e a operao de derrubada da mata para novas roas;195 as
pessoas o procuram para ouvir conselhos quando h desentendimentos entre moradores
de duas casas e tambm para pr fim a brigas durante as festas; ele deve, ainda, manter
boas relaes com os demais caciques apiaks e os caciques de outras etnias das aldeias
vizinhas. o cacique quem escolhe o stio para abrir uma nova aldeia, bem como seu
nome; ele quem autoriza uma nova famlia a morar na aldeia e a abrir uma roa; de
outro modo, uma famlia que queira se mudar para outra aldeia deve antes conversar
com ele.
O cacique ganha o respeito dos moradores da aldeia quando se comporta de
acordo com o padro moral estabelecido, quando demonstra hospitalidade para com os
co-residentes e os forasteiros e quando obtm benefcios concretos para a comunidade.
Viajantes que passaram pelas malocas apiaks no sculo XIX surpreendiam-se com a
hospitalidade desses ndios:
Os Apiac eram hospitaleiros, embora recebessem visitantes
desconhecidos com gritos e demonstraes guerreiras. O chefe, coberto de
ornamentos, dirigia-se ao visitante e ordenava-lhe que ficasse. Isto feito, ele
amarrava a canoa, dava-lhe uma rede na maloca e lhe oferecia chicha. Ento eles
lhe apresentavam suas esposas e filhos. Eles davam suprimentos e ornamentos
de penas para os visitantes europeus, pedindo ferramentas de ferro em troca.
Embora perfeitamente honestos entre si, sua avidez por ferramentas de ferro
levou-os a roubar dos brancos em 1819. (...) (Nimuendaju 1963a: 317)
Mas o cacique no atua sozinho; a seu lado esto a cacica (sua esposa), um
vice-cacique (normalmente um filho, genro ou compadre) e sua esposa (a vice-cacica) e
diversas outras lideranas masculinas e femininas que atuam no sentido de favorecer a
cooperao e o sentimento de solidariedade entre os co-residentes. De sua prpria
perspectiva, o cacique realiza pouco trabalho braal (a nica casa da aldeia em que
frequentemente falta farinha de mandioca a sua); ele fundamentalmente coordena
atividades coletivas, orquestra a obteno de consenso nos negcios polmicos nas
reunies no salo, lida com forasteiros e viaja para lugares distantes para resolver os
problemas e satisfazer as necessidades da comunidade. Um bom cacique, portanto,
aquele que utiliza um certo estilo retrico (ele deve falar forte quando necessrio)
195
A distribuio festiva de comida e a coordenao da abertura da roa coletiva tambm so duas das
principais atribuies do cacique kawahiv (Kracke 1978).
236
para estabelecer o consenso, dirimir conflitos e mediar confrontos, bem como para
traduzir o mundo dos brancos para seu povo.
Espera-se que os homens e mulheres influentes cuidem da comunidade como
pais cuidam dos filhos. De fato os caciques dedicam muito de sua energia ao processo
cotidiano de criao e manuteno de laos sociais e afetivos entre as famlias extensas
que compem a comunidade. Os apiaks assumem que a comunidade encerra perigos,
desigualdades e desmedidas, e que as tenses fazem parte do dia-a-dia; embora no
cotidiano as pessoas raramente se exaltem, por vezes os conflitos eclodem no salo,
durante reunies ou festas. O salo o locus da poltica, da fala formal, dos negcios da
comunidade, administrados principalmente pelos homens, que procuram resolver
questes coletivas de modo pacfico. O salo evoca a tekatawa dos parakans orientais
(tupi-guaranis), associada a uma concepo de chefia modelada no na figura do chefe
de guerra, mas sim na figura do mediador, do propiciador da conversa (Fausto 2000:
226). No possvel saber se os apiaks contavam com um espao precursor do salo
no sculo XIX, mas muito provvel que sua funo no sculo XX tenha recebido um
reforo ideolgico da parte dos missionrios influenciados pela teologia da libertao.196
A respeito da adeso dos guaranis f catlica, C. Fausto se pergunta qual
teria sido a brecha atravs da qual a mensagem crist do amor universal e da irmandade
entre os seres humanos penetrou no mundo vivido indgena (Fausto 2005: 405). Cada
povo reage sua maneira a mudanas histricas profundas. Como vimos na Primeira
Parte, os apiaks abandonaram as guerras de vingana somente na segunda metade do
sculo XIX, num contexto de violenta depopulao causada por epidemias e por
massacres ordenados por seringalistas, que levaram a um quadro de profunda
desorganizao sociocultural. Na primeira metade do sculo XX, algumas famlias
sobreviventes do genocdio foram buscar refgio junto a uma Misso no rio Cururu
(PA), que atendia os antigos inimigos mundurukus; outras famlias dispersaram-se ao
longo do baixo curso dos rios Juruena e Teles Pires, empregando-se de modo
intermitente nos seringais que l existiam, at serem convidadas a se reunir em torno de
outros missionrios, no Rio do Peixes (MT), e de outros inimigos, nem to antigos
assim: os kaiabis.
196
A teologia da libertao, pensamento que ganhou fora nos anos 1970, caracteriza-se pela opo
preferencial pelos pobres e pela transformao de realidades injustas, tendo como clulas as Comunidades
Eclesiais de Base; ela inspirou religiosos e telogos progressistas, voltados para a prtica pastoral (viver
com os pobres) e que se interessavam pelas cincias sociais. Dois missionrios que moraram por muitos
anos entre os apiaks do Rio dos Peixes fizeram mestrado em antropologia.
237
Ver Figura 3.3 para as datas de fundao e localizao de todas as aldeias mencionadas nesta seo.
Ver Figura 1.1-Mapa Etno-Histrico para uma contextualizao regional.
198
Os guaranis nhandeva e mby estudados por Schaden nos anos 1940 chamavam o chefe religioso e o
chefe de famlia extensa de nhander (nosso pai), sustentavam um princpio de chefia hereditria e
tinham no capito uma espcie de lder carismtico, o representante da aldeia frente aos brasileiros
(Schaden 1962: 99ss).
199
Alguns de seus descendentes me disseram que ele era tambm paj. Descendentes do finado Norberto
me disseram o mesmo a seu respeito.
200
Nos anos 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, ocorreu um novo boom da borracha na Amaznia
meridional.
238
239
no idioma que a gente responde. Deram bebida para o velho, deram comida
para o velho, ele comeu bastante. Conversa vem, conversa vai: Hoje noite ns
vamos danar um pouquinho. Chegou nosso parente, ele andava nos procurando,
at que deu a fala, quase morreu, ns no sabamos que era ele. Mas ele tinha
parente tambm nessa turma, parece que era uma irm dele. Se ele falasse
portugus, ele tinha rodado, ns amos pensar que era a turma do Paulo Corra,
ns somos desconfiados. Perguntaram se ele vinha sozinho, ele disse que no:
Por que no manda chamar seu pessoal? Mandaram uma mocinha ir chamar o
pessoalzinho dele, foi logo um bocado de mulherada: Ns vamos trazer a
mulher para ela comer conosco. A que foi a conversa, o finado Norberto falou
com meu pai, perguntaram se ele podia voltar outra vez, e o velhinho disse:
No sei se o pessoal quer voltar, porque, do jeito que ns viemos, um sacrifcio
danado, com criana, no sei. Danaram at de manh, a perguntaram para os
maridos das mulheres: Munduruku tem aquele assim? Tem peito? Tem cheiro
igual a ns? Eles no conheciam. Nessa festa, era para eles falarem com os
outros que vinham vindo, mas no deu. Eles so mais do que ns, muitos
mesmo, muito apiak. Norberto j estava acampado, j tinha casa. A vieram pra
c (Juruena) de novo.
Observo que esta verso no tem um final preciso, isto , o narrador no
explica para onde Norberto e seus companheiros foram aps a festa nem tampouco por
que esses apiaks se dispersaram aps a visita. Em outras ocasies, o narrador relatou
apenas que seus pais se mudaram nessa poca para a Misso Cururu, onde ele e seus
irmos cresceram. O pai do narrador, Leonardo Kamassori, era ento cacique, assim
como o fora anteriormente seu av paterno, o capito Benedito Kamassori. Nos anos
1940, os Kamassori enfrentaram uma epidemia de sarampo no rio Anipiri; dos dez
irmos do narrador, sobreviveram apenas trs alm dele prprio. Os velhos mundurukus
com quem conversei disseram que seus pais lhes contavam histrias sobre festas com
cabeas de inimigos realizadas pelos apiaks e sobre os colares e cintures
confeccionados com dentes de inimigos. Os mundurukus tambm afirmam que o
Anipiri era territrio apiak no incio do sculo XX; com efeito, os apiaks provenientes
do Pontal estabeleceram sucessivamente sete aldeias ao longo deste rio (ver Figura 1.1),
cujos moradores frequentavam a Misso Cururu para trocar produtos da floresta por
mercadorias. Os velhos apiaks dizem que deixaram o Anipiri porque l no havia
fartura de peixe e caa. Diga-se de passagem que a fartura alimentar um ideal moral e
esttico para os apiaks.
Enquanto os mundurukus relacionavam-se com os apiaks de forma pacfica,
continuavam a perseguir os kaiabis ao longo do rio Teles Pires e imediaes at meados
do sculo XX. Uma mulher kaiabi de 54 anos, casada com um apiak, me disse que sua
me lhe contava histrias de guerras envolvendo os trs povos:
240
A mame sempre falava que a gente no devia dormir muito, tinha que
ficar alerta de noite, porque podia vir ndio bravo pegar a gente. s vezes, o
homem saa e, quando voltava para a aldeia, o munduruku tinha carregado todo
o mundo. Canoeiro (rikbaktsa) tambm era bravo. Uma vez, uma amiga da
mame escapou de morrer na mo do munduruku; ela fugiu por gua, mas os
ndios comeram o filho dela, eles tiravam a ponta da banana branca e passavam
no sangue da criana para comer...
Em suas festas, os mundurukus chamavam os kaiabis de mutum e os apiaks,
de porco. Ela tambm relatou que os kaiabis gostavam de adotar crianas noindgenas e que seus prprios pais cuidaram da me de um homem apiak que hoje
seu co-residente; esta mulher apiak sobrevivera a um ataque kaiabi nos anos 1960, no
Rio dos Peixes, e foi criada pelos raptores dos pais. Nesta regio, so raros os
casamentos entre kaiabi e munduruku.
201
241
1966 foi o ano da Operao Cayabi, a transferncia dos kaiabis para o PIn Xingu, coordenada pelos
irmos Villas-Bas, de acordo com os quais at os anos 1960 o vale do Teles Pires era uma rea perigosa
e inexplorada, mas, a partir da notcia de que os caiabis, tatus e apiacs estavam em paz com a
Expedio, o vale comeou a ser ocupado. Povoaes, vilas e cidades comearam a nascer no grande
vale: Sinop, Peixoto de Azevedo, Matup e inmeras outras. (Villas-Bas 1994: 516) Eles informam,
ainda, que desde que chegamos no vale do So Manoel ou Telles Pires vimos lutando com ndios
arredios. Primeiro foram os caiabis, depois os tatus, perseguimos os apiacs, agora os crenacarores. O
vale do So Manoel ou Telles Pires, em verdade, era praticamente interditado ao avano. Agora [1972],
com as notcias que j correm sobre a paz no vale, com a emigrao espontnea dos caiabis para o Xingu,
seduzidos pelos nossos caminhos deixados no divisor, o retraimento dos tatus para as bandas do Arinos,
os apiacs fugindo para o longnquo divisor do Juruena, e finalmente os gigantes (panars) prestes a dar
fala, o vale voltou a ser namorado pelos extrativistas da seringueira, da castanha e dos garimpos. (:
529)
242
Grossense) tornara-se proprietria da Gleba Arinos, terreno onde foi fundada a cidade
de Porto dos Gachos. A CONOMALI era a empresa que monopolizava a extrao e o
comrcio do ltex na regio, famosa pelo fato de seus capatazes no usarem de
violncia com os trabalhadores, diferentemente das empresas concorrentes, que faziam
dos castigos fsicos e dos assassinatos a regra. Homens e mulheres que hoje tm mais de
50 anos contam histrias horrendas a respeito das condies de trabalho nos seringais
administrados por outras empresas.
Numa de suas viagens pelo Juruena, o missionrio deparou-se com uma famlia
apiak empregada da CONOMALI. Trata-se de um segmento da famlia extensa de
Norberto Morim, formado por filhos do seu terceiro casamento com uma mulher da
etnia kokama, Teodora (no. 1 no Diagrama 3.1). No momento do contato com o
missionrio, este ncleo familiar estava composto da seguinte maneira: o filho mais
velho do terceiro casamento de Norberto (no. 8) e sua esposa (no. 7), proveniente de
Santarm (algumas pessoas me disseram que ela era negra; outras, que era satermaw), alm do irmo desta (no representado), que se casou com Teodora aps a
morte de Norberto; dois filhos solteiros do segundo casamento de Norberto; duas filhas
casadas com arigs (uma delas a no. 9).
Note-se que as famlias apiaks que se mudaram para o Tatu decidiram abrir
mo de obter dinheiro e mercadorias individualmente em nome de uma apropriao
coletiva da terra e diversos bens oferecidos pelos missionrios, tais como educao
escolar e atendimento mdico, assistncia que, segundo contam os velhos apiaks,
deveriam impedir que seus filhos sofressem os mesmos reveses enfrentados pelos
antepassados. Estas pessoas mudaram-se para a aldeia Tatu em 1967, onde
permaneceram por apenas um ano, devido hostilidade dos kaiabis. Fundaram ento a
aldeia Nova Esperana, na margem direita do Rio dos Peixes, quase em frente ao Tatu,
local que continuaram frequentando, devido presena de missionrios alemes e
austracos que haviam implantado ali uma boa infraestrutura. Os apiaks mais velhos
recordam que, nos anos 1970, o Tatu era uma aldeia muito bonita e rica; l havia um
grande hospital de alvenaria, escola, um grande depsito de borracha, barraco de
mercadorias e cerimnias religiosas regulares.
O filho mais velho de Norberto, Paulo Morim (no. 8 no Diagrama 3.1), era o
cacique de Nova Esperana, mas no gozava de grande prestgio; sua esposa era
acusada de feitiaria e o casal era criticado por no receber bem os parentes em sua casa
receber bem revela-se, assim, uma importante prtica poltica. No incio dos anos
243
1970, Andr, o meio-irmo do cacique, que vivia no rio Anipiri (afluente oriental do
Teles Pires, no curso baixo, perto da embocadura no Juruena), enviou uma carta ao Rio
dos Peixes, queixando-se das condies de vida no Par. O cacique fez uma viagem
para l e trouxe no apenas o meio-irmo, como tambm alguns mundurukus ligados a
ele por meio do casamento de sua filha (no. 34). Os adultos de hoje comentam que
Nova Esperana era uma aldeia grande e bonita: Era muito maior que o Mayrob. Tinha
muito boi, as casas formavam ruas, no barraco da cooperativa tinha muita mercadoria.
No fosse a briga deles, hoje l teria mais de mil apiaks.
A briga remete ciso ocorrida na virada para os anos 1980, motivada por
conflitos entre o cacique e seu cunhado arig. As pessoas contam que a maioria dos
moradores daquela aldeia frequentava a casa da irm do cacique, casada com um arig
com certo tino comercial, que incentivava os parentes afins a vender castanha-do-par
por um bom preo e ajudava a administrar a cooperativa; este casal era generoso com as
visitas: Tudo o que tinha eu colocava para eles comerem; caf, bolo, peixe... Se no
tinha, eu no dava, mas se tinha, eu deixava comer vontade, explicou-me a mulher
(no. 9), que hoje vive com o marido, filhos e netos na cidade de Porto dos Gachos.
Alis, a frase Todo mundo que vem a minha casa come o que tiver, s no come se no
tiver nada mesmo emblemtica dos caciques apiaks. Seu marido (no. 10) me disse
que seu cunhado ficou com inveja e comeou a dizer que ele estava querendo tomar
seu lugar; o conflito terminou com a expulso desta famlia conjugal em 1979,
chancelada pela Funai.203
Ocorre que, aps algum tempo, aquele meio-irmo do cacique proveniente do
Par, inconformado com o que entendia como uma injustia, expulsou o cacique e sua
esposa da aldeia. Outras pessoas afirmam que os dois meio-irmos brigaram por causa
da venda de algumas cabeas de gado da comunidade.204 Paulo e sua esposa mudaramse para os arredores do Arinos; outros membros de sua famlia extensa dispersaram-se
por cidades e fazendas no vale do Arinos e os apiaks do Rio dos Peixes no voltaram a
ter notcias deles.
Encontramos aqui o limite da plasticidade da organizao social apiak:
quando as normas de convivncia so desrespeitadas, quando falha o princpio de
203
O casal guarda at hoje a carta da Funai em que foi determinada a expulso do arig da aldeia. Sua
esposa no podia conceber que ele fosse embora sozinho, e o acompanhou, juntamente com os filhos
pequenos, deixando apenas o primognito, casado com a filha de Andr. O casal lembra a histria com
ressentimento e nunca mais voltou ao Rio dos Peixes.
204
O rebanho havia sido doado comunidade pelos missionrios do Tatu.
244
Andr era reconhecida pelos missionrios do Tatu, uma vez que, de acordo com vrias
pessoas que o conheceram, ele falava a lngua apiak, seguia as normas de conduta, era
um homem trabalhador e sereno, procedia distribuio de carne de caa e peixes
quando obtida em grande quantidade e organizava festas de mingau. Andr havia se
casado, em segundas npcias, com a filha de um patro que possua um barraco no
baixo Teles Pires (no representada). Sua esposa arig esforava-se, porm, para
aprender a histria, a lngua e os costumes do povo e cuidava dos filhos do primeiro
casamento e dos netos rfos do marido. Alm do filho solteiro que atuava como vicecacique, Andr contava com o apoio de dois genros: o munduruku proveniente do
Anipiri (no. 27) e o filho de sua meio-irm (no. 25), a qual se retirara de Nova
Esperana em 1979.
Os primeiros moradores do Mayrob foram, assim, os membros da famlia
extensa de Andr, estruturada em torno das duas filhas casadas, alm de dois filhos
jovens de Paulo (nos. 23 e 24 no Diagrama 3.1). Aps um ano mais ou menos, Andr
comeou a fazer viagens ao Pontal para convidar aliados mundurukus a viver no
Mayrob, provavelmente devido falta de cnjuges considerados adequados para seus
filhos e netos (naquele momento, os apiaks no desejavam estabelecer alianas
matrimoniais com os kaiabis do Tatu). Foi assim que se mudaram para o Mayrob um
filho e uma filha de casamentos anteriores de Sebastio Krixi (no. 27), alm de alguns
parentes mundurukus da esposa do filho de Andr, a mulher de no. 28 (no
representados), pertencentes aos cls Burum e Krepu.
Ainda nos anos 1970, D. Laura Kamassori (no. 37 no Diagrama 3.1) e seu
segundo marido, um arig, fundaram a aldeia Bom Futuro, no baixo Teles Pires, no
territrio ento dominado pelos mundurukus. Seu marido faleceu logo e ela permaneceu
ali com um filho do primeiro casamento e quatro filhos do segundo casamento, alm
dos cnjuges destes e de uma amiga munduruku, viva de um apiak que atuara como
guaxeba de um seringalista.
Rodolfo, filho de Andr, hoje com 54 anos, contou-me sua histria de vida
nesses termos:205
Depois que teve o massacre, espalhou tudo. De primeirinho, o nosso
bisav morava na Aliana; depois vieram para dentro do Anipiri, outra
aldeiazinha, chamada Carrapichal. Depois eles abriram a Tamanqueira, na
entrada de uma estrada que ia para a Misso Cururu. A enjoaram de l, fizeram
outra aldeia, l na Maloca, ali a gente parou, cresceu. Ali pra baixo do Cristvo,
205
246
no rio Tele Pires, na boca do paran, tem uma casa do lado do Mato Grosso, que
do Z e do Simo, depois tem outra mais pra baixo, perto de uma ressaca, onde
hoje mora o Paulo; o pai dele morreu e ele ficou. Logo abaixo era a aldeia do
pessoal do velho Paulo Kamassori, o Bom Jardim, do lado do Mato Grosso, bem
na beira da serra, do lado de baixo tem uma ressaca. L eles fizeram umas seis
casas; depois que eles saram, morou um bocado de gente ali; velho Paulo e essa
irm dele que depois foi para o Pimental, a Terncia (filha dos nos. 21 e 22 no
Diagrama 3.1), moravam l. (...) Eu sa da companhia do meu pai, na Veneza,
quando eu tinha uns 16 anos. Ns tnhamos uma maloca dentro do Anipiri, do
lado do Par, que se chamava Maloca mesmo, perto da Misso. Eu sa e fui
trabalhar sozinho, a achei essa Minerao (perto da barra do rio Ximari, do lado
do Par), e foi o tempo em que os Villas-Bas estavam juntando todos os ndios
para levar para o Xingu. Eu andei pelo igarap da Maloca, andava at aqui por
trs, de canoa ou a p. Mas nunca ningum encontrou esses que esto no mato,
mas a gente via vestgio deles. E essa maloca aqui em Alta Floresta... tinha dois
fornos de cobre que o pai desse velho Paulo Kamassori largou nas pedras, para
eles buscarem; nunca foram, e o velho tambm no acertou mais o caminho.
Esses fornos o pessoal de Alta Floresta achou esses tempos; era a nica aldeia
dos apiak que tinha no rio Apiacazinho. A Minerao ia ser uma fazenda, mas
os kaiabi entraram l, a... Eu trabalhava cortando arroz, de canoa; eles
plantaram no ms de janeiro, quando estava comeando a amadurecer, a gente
colhia de canoa, dentro do banhado. A meu tio foi pra l, (Paulo Morim) pai do
Norberto, foi ver o irmo dele; parou na Veneza, onde meu finado pai morava.
L tinha um regato subindo, ele mandou recado pra mim, para eu descer, que
ele queria conversar comigo, a eu vim. Isso era ms de janeiro. Fizemos farinha,
ainda voltamos, descemos de novo para a Barra, passamos uns trs dias l,
depois subimos para o Juruena. Primeiro, tinha o filho do velho Paulo (Morim),
Potoca o nome dele era Renato , morava l; ns fizemos farinha l; a viemos
aqui pra cima, onde o Simio Coelho mora hoje em dia aquele velho antigo
ali! Ns paramos l mais dois dias, depois viemos para a boca do So Tom;
bem na pontinha ali tinha uma casa de perambulao dos apiak mesmo, sempre
a gente parava l. De l que ns viemos pra c, para o Mato Grosso. Ns
ficamos uns seis dias de l at aquele garimpo da Murilndia, que estava
comeando. A gente sabia todos os contatos, o pessoal do garimpo tinha rdio,
mas s se comunicava com Porto dos Gachos; aqui no Tatu tinha o rdio da
Misso, aqueles rdios de antigamente, sem ser desse a que ns temos, era
diferente. A comunicaram pra l, com quatro dias o pessoal chegou l: o pai do
Adriano e o Jlio Hermindo foram nos buscar. A ns chegamos Nova
Esperana, naquele tempo a aldeia era ali embaixo. Eu conheci minha velha no
Par. Nesse tempo mesmo, ms de janeiro, ela veio com o primo dela. A viagem
foi um sofrimento danado, chuva noite e dia. Ns casamos na Misso Cururu;
fomos de canoa, a me dela morava l. Quando tinha a Nova Esperana, eu
cortava seringa; primeiro eu trabalhei em fazenda, no gostei, trabalhando para
os outros... a eu cortei seringa aqui (Mayrob). Tinha s mesmo a barraquinha de
seringueiro, era s eu mesmo. A eu gostei daqui, comecei a abrir um pouquinho
ali embaixo. A desci para o Par de novo, passei mais dois anos l na
Conceio, onde a me da Edite morava, quase na ponta, onde tem um
mucajazal, e daquele lado tem um campo. Ns ficamos l e eles sempre
entravam em contato pelo rdio. Na Primavera, tinha um regato muito forte,
chamado Sulta; ali era um povoadinho, com casa de comrcio, todo o mundo ia
247
l comprar; hoje em dia acabou tudo, s tem um mato. Ns ficamos dois anos
l, mas no dava, eu sempre lembrava do meu pai, a a gente entrou em contato
com eles e foram l nos buscar de novo, meu finado pai foi atrs de ns, a ns
viemos de novo. O finado pai j tinha aberto aqui (o Mayrob), maior, com esses
meninos, o Edson, o Elias, o genro dele que faleceu, finado Sebastio, com a
esposa (Mirna). Na Nova Esperana, eles tiveram um conflito entre irmos,
ficou tudo abandonado l, gado... eles tinham no sei quantas cabeas de gado,
eles eram como que fazendeiros. A ficou tudo abandonado, boi tudo choco...
Mandaram aviso pra mim, dizendo que j estavam morando aqui, como ns
podamos fazer? O velho tambm era um pouco bravo, no tinha muito
conhecimento das coisas, no pensou em juntar o povo, as coisas dos bois. Eu
mandei recado pra ele: Ento vocs do um jeito de arrumar um recurso, uns
dois mil pra leo, gasolina. A arrumaram com o finado padre Joo
(Dornstauder), desceram de barco, ns viemos. Cheguei aqui, estava tudo
abandonado mesmo. E o velho Paulo Morim j tinha ido para Juara; a mulher
dele era branca, ela era l das bandas de Santarm, ele a trouxe de l. Chegamos
aqui, j estava tudo povoado, tinha roa, tinha uma derrubadinha ali. Como
vamos fazer para buscar o gado? Foi, foi, viramos, ficamos uns quatro anos,
roamos, derrubamos, fizemos esse pasto; a gente ia mantendo o gado com
embaba, trouxemos tudo pra c. O que ficou pra ele (Paulo), ele vendeu,
comeu; o que ficou pra ns, trouxemos pra c. A o pessoal foi chegando, os
meninos foram crescendo, foram casando, a abrimos essa aldeia. Eu nem fiquei
aqui muito tempo, foram mais eles que abriram aqui do que eu, eu s a anunciei:
Mayrob, quer dizer papagaio da cabea amarela. Mairowy ns colocamos
porque o pequenininho, aquela jandaia, o bichinho, a curiquinha. Quem
arrumou as coisas l no Mairowy foi o Edson, na Funai, o Carlos era meio novo,
eles comearam. Todo projeto que saa para ns, ns dividamos bem no meio,
mandvamos coisa de comer pra eles, para eles trabalharem, abrirem l. (...) O
Pimental do tempo do finado vov. L os kayaps roubavam coisas do
mercadinho dos brancos; eles tinham medo de os kayaps os matarem, mas o
finado vov no tinha medo, ento os brancos foram atrs dele na Barra, e
pediram para ele ir atrs dos kayaps, pegar de volta as armas e as comidas que
eles tinham levado. Ele foi sozinho, e trouxe o que os kayap roubaram. Por isso
at hoje em dia tem uns kayap velhos que falam: Apiak perigoso, no pode
brigar, eles brigam muito. Apiak bom, o outro ndio que no sabe, fica
roubando coisa dos outros, no pode, eles ficam com raiva. Quando o finado pai
era vivo, tinha um pouco de contato com eles. Esses apiak que esto no
Pimental agora so nossos sobrinhos, povo do velho Paulo Kamassori, da irm
dele, Terncia, a famlia dela; ela casou com branco e arrumou famlia pra l
mesmo. (...) Minha me foi enterrada num cemitrio grande, abaixo do PIn Teles
Pires, perto da beira do rio, desse lado do Mato Grosso; depois teve um foco de
ouro ali, as balsas entraram, acho que at acabaram com o cemitrio, isso faz
tempo.
Em 1984, um evento importante contribuiu para a insero dos apiaks no
movimento indgena nacional e para a consolidao do discurso da identidade tnica: o
incio da construo de uma usina hidreltrica no salto do Rio dos Peixes, considerado
sagrado pelos kaiabis. Durante semanas, ndios de doze etnias mato-grossenses uniram-
248
206
207
possvel que os kaiabis reivindiquem Figueirinha como aldeia sua, uma vez que formada pela
famlia extensa de um homem kaiabi e uma mulher apiak.
Os kaiabis tambm reivindicam o Minhocuu como aldeia sua, uma vez que ela formada pelo
segmento de famlia extensa de um homem apiak e sua esposa kaiabi. Este homem um dos poucos
velhos que fala fluentemente a lngua apiak.
249
208
Pelo que pude entender da rpida visita que fiz ao Minhocuu, os filhos do casal fundador da aldeia se
identificam como kaiabis. Desse modo, no se pode afirmar que a parentela Paleci seja a mais
influente naquela aldeia.
251
enviar as filhas para auxiliar a cacica nos afazeres domsticos, o que concebido como
retribuio pela moradia e pelo trecho de terra cultivvel recebidos. Geralmente, as
famlias recm-chegadas so alojadas em casas abandonadas.
Quando uma aldeia se cinde, os antigos moradores de cada aldeia no gostam
de ficar por baixo dos antigos co-residentes; quando se visitam, vestem as melhores
roupas e no veiculam queixas sobre o novo local de moradia. As visitas recprocas
entre moradores de aldeias distintas so ocasies para partilhar alimentos com os
parentes com os quais j no se convive, para realizar trocas mercantis, selar relaes de
apoio poltico em questes pontuais e estabelecer relaes amorosas.
Em termos de distribuio de territrio e recursos naturais no interior das
Terras Indgenas (TI) Apiak-Kayabi, Munduruku e Kayabi, existe uma acomodao
recproca entre os povos que as habitam que, entretanto, no livre de tenses e
conflitos eventuais. Na primeira dessas TIs, convencionou-se que os apiaks habitariam
a poro norte em relao ao rio e os kaiabis, a poro sul; acordou-se que as estradas
abertas no tempo da extrao de ltex e os castanhais seriam divididos de forma
equnime entre ambos os povos. Na TI Munduruku, os apiaks ocupam e utilizam a
poro extremo-sul h mais de trinta anos. O segmento apiak dissidente deste local
passou a ocupar, na ltima dcada, o extremo norte da TI Kayabi, rea que j era
utilizada pelos apiaks h dcadas para atividades de subsistncia, sendo que os kaiabis
ocupam e utilizam toda a poro sul.
Pode-se dizer que as aldeias apiaks tendem para a disperso territorial. Novas
aldeias so formadas em geral devido a desentendimentos entre germanos masculinos
que raramente resultam em confronto aberto. Observa-se uma certa rivalidade entre os
caciques apiaks das diversas aldeias. As pessoas dizem que, quando a comunidade
cresce demais (algo acima de 150 pessoas), torna-se mais difcil obter o consenso nas
reunies no salo e as pessoas comeam a falar mal dos homens influentes, passando a
existir muita fofoca. As aldeias apiaks, kaiabis e mundurukus dispostas ao longo dos
formadores do Tapajs formam uma rede social regional, no interior da qual se
rivalizam por meio dos brancos, seus bens e instituies.
Os apiaks do Rio dos Peixes queixam-se de que os kaiabis se apropriam da
maioria dos recursos e pessoas (profissionais no-indgenas) que deveriam ser
repartidos entre ambas as etnias dentro da Terra Indgena. Todavia, nos ltimos anos, os
apiaks tm conseguido ocupar posies estratgicas na burocracia indigenista, fato que
lhes garante maior acesso a recursos de toda ordem. Tanto assim que o chefe do Posto
252
Tatu um apiak do subgrupo Morim, que ocupa o cargo h oito anos. Nas Terras
Indgenas Kayabi e Munduruku, as necessidades dos apiaks ficam em segundo plano
em relao s etnias predominantes.
253
254
so pessoas influentes, com a diferena de que recebem salrio mensal. Aos professores
e agentes de sade cabe obter bens e conhecimentos de fora e distribu-los
equitativamente para toda a comunidade. Tais cargos tambm esto sujeitos
aprovao da comunidade, dinmica que se adapta bem s instncias burocrticas
descentralizadas dos Conselhos Locais de Sade e de Educao.
Embora no haja transmisso automtica ou hereditria de posio ou cargo, h
mecanismos sociais que so manejados de modo a assegurar a ascendncia de uma
famlia extensa dentro da aldeia e mesmo fora dela. Dessa forma, tanto o posto de
cacique como os empregos remunerados esto sujeitos s decises tomadas pela
coletividade no salo. Ocorre que nem todos os moradores de uma aldeia se sentem
vontade para participar das reunies e apenas uma parte ainda menor deles toma a
palavra para expor sua opinio. As reunies da comunidade no contemplam, assim, as
aspiraes de todos os moradores da aldeia, mas to-somente os interesses daqueles que
a dirigem, gerando-se um ciclo vicioso do qual apenas se consegue sair quando se tem
algum prestgio para liderar a mudana da prpria famlia extensa para outra aldeia ou a
fundao de uma nova aldeia.
Nessas reunies, o cacique e os demais homens influentes falam sobre o estado
das relaes da comunidade com as demais aldeias (apiak, kaiabi e munduruku), as
estruturas estatais e os parceiros comerciais no-indgenas, e informam sobre
oportunidades diversas, como recursos para a participao em reunies de cunho
religioso, poltico ou tcnico em cidades distantes; novos compradores de castanha-dopar; projetos nas mais diversas reas (educao, sade, gerao de renda etc.), bolsas
de estudo e atividades remuneradas ou no. Em geral, os candidatos no apresentam
abertamente sua candidatura; um conjunto de aliados previamente contatados que
sugere seu nome e prope a votao. Assim so alocados os empregos de agente de
sade, agente de saneamento, professor, funcionrios da escola, diretoria de associao
etc., os quais, em todas as aldeias apiaks, concentram-se nas mos de uma nica
famlia extensa. J os papis no-remunerados de conselheiros da sade e da educao,
previstos no desenho estatal atual da assistncia sade e da educao, so distribudos
de forma mais livre.
Em sua anlise dos cargos remunerados em aldeias no alto rio Negro, C.
Lasmar trabalha com o conceito de sistema de prestgio empregado por Ortner &
Whitehead para propor que as pessoas manejam posies sociais e valores para ter
reconhecimento e prestgio. Nesse sentido, ela afirma que: Na prtica, os indivduos
256
257
marginalizadas);
ao
veicular
fofocas,
essas
mulheres
pretendiam
trs pessoas, sendo que aquela que inicia a brincadeira visa constranger as outras duas.
Assim, uma mulher A pergunta a uma mulher B, sua prima, digamos, se ela comeu a
carne de anta caada pelo homem C (que no seu marido), provocando gargalhadas. A
mulher B pode retorquir: Foi ela quem comeu a carne trazida por C! Ou ento o
homem replica: Ela queria ter comido a carne trazida por D (outro homem
remotamente aparentado ou no-aparentado)! Uma nora ou um genro no faz esse tipo
de brincadeira com os sogros; jogos de palavras so impensveis entre siblings adultos
de sexo oposto e entre primos de primeiro grau de sexo oposto. Se estiverem apenas
entre mulheres, duas comadres podem engajar-se nesses jogos. Ao que parece, homens
apenas fazem esse tipo de brincadeira na presena de mulheres. A frequncia de tais
performances, assim como das sesses de vinho no salo e dos jogos de futebol, indica
o nvel do moral comunitrio.
Os apiaks fazem fofoca dentro de casa ou no terreiro, em voz baixa e
cuidando para no serem ouvidos por terceiros, fato que caracteriza as atividades
privadas. Assim como os mehinkus, povo arawak no Parque do Xingu (T. Gregor
1982: 81ss), os apiaks so to unnimes em depreciar a fofoca quanto em alimentar sua
circulao na aldeia; como de se esperar, no se faz fofoca sobre um membro da
famlia extensa, a menos que se trate de afins descontentes com o homem influente a
que do sustentao poltica. Enquanto classe de discurso marcada por gnero, entre os
apiaks a fofoca se distingue tipologicamente tanto da fala formal do salo como das
notcias e das histrias sobre o passado (todas as trs, prerrogativas dos homens) e como
das conversas casuais dentro de casa ou no terreiro (travadas tanto por homens como
por mulheres).
M. Gluckman (1963) defendia que os antroplogos tratassem a fofoca como
tcnica cultural, como um jogo de normas culturalmente definidas, com importantes
funes sociais. Gluckman selecionou a etnografia de E. Colson sobre os culturalmente
indiferenciados makah (indgenas norte-americanos) para demonstrar o valor positivo
da fofoca e do escndalo em grupos pequenos. Entre os makah, o mexerico era o nico
meio de reafirmar valores e tradies que os distinguiam tanto da sociedade norteamericana quanto de outros povos indgenas, e as acusaes mtuas eram usadas para
manter o princpio de igualdade entre os membros do grupo (Gluckman 1963: 311). Na
medida em que apenas se faz fofoca sobre pessoas com quem se tem um vnculo social
estreito, o alto nvel de hostilidade deve ser apreendido como expresso de que o grupo
permanece unido e deseja ser uma comunidade, no apenas um aglomerado de casas (:
259
260
212
261
festa, mulheres kaiabis residentes no Mayrob, que haviam estado recentemente com
seus parentes do Tatu, comentavam discretamente que os homens kaiabis estavam
zangados com o cacique apiak, por motivo que nunca me foi revelado. Numa visita a
uma famlia apiak residente em Porto dos Gachos, que fiz acompanhada pelo cacique,
constatei que a relao com os kaiabis realmente estava estremecida.
Comentou-se ento que os kaiabis teriam dito que iriam cortar a cabea do
cacique, ameaa que este enfrentava com prudncia, afirmando que, se o pior
acontecesse, apiaks do Mayrob, do Par e de cidades do norte mato-grossense iriam
at o Tatu para ving-lo. Nessa poca, foram-me contadas histrias sobre guerras e
desentendimentos antigos entre ambos os povos. Os apiaks se lembram de trs grandes
brigas com os kaiabis, ocorridas no sculo XX. A primeira consistiu num ataque
kaiabi a uma aldeia apiak prximo Ilha do Pavilho (curso mdio do rio Teles Pires,
do lado paraense); os kaiabis mataram o pai de um homem apiak que hoje vive no
Mayrob e levaram sua me e dois irmos pequenos para o Rio dos Peixes. Depois de
algum tempo, os apiaks foram ao encalo dos kaiabis e recuperaram as crianas, mas
teve muito sangue. A segunda briga deveu-se ao roubo de um papagaio domstico dos
apiaks por um grupo de kaiabis, fato que deu ensejo a uma longa perseguio at o
ponto ento batizado de Crrego da Briga. O terceiro e ltimo confronto rememorado
ocorreu quando os kaiabis foram buscar taquaras na poro norte da rea do Rio dos
Peixes, de posse dos apiaks, os quais revidaram a ousadia com flechadas fatais. Por
isso apiak no gosta de kaiabi e kaiabi no gosta de apiak; meu pai passou isso pra
mim, eu passo isso para o meu filho, no vai acabar nunca, disse-me um homem
apiak. Embora o rumor e a tenso aumentassem de intensidade com o passar dos dias,
durante a festa nada aconteceu; a estrada no foi fechada, diversos homens influentes do
Tatu compareceram e no causaram nenhum dissabor.
Em que pese a importncia desses rumores, o tema preferido pelos apiaks o
comportamento das pessoas influentes da comunidade, fato que atesta a interioridade da
alteridade em sua viso de mundo. Para os apiaks, a principal ameaa ao grupo no
vem de fora, mas de dentro. Tive a chance de observar de perto o processo de
destituio de um cacique apiak, um perodo de muita ansiedade e angstia, quando os
rumores circulavam vertiginosamente na aldeia; a acusao principal era a de que o
cacique estava utilizando dinheiro da comunidade para construir sua casa nova e
comprar objetos industrializados para sua esposa. Nesse caso, a intensificao da fofoca
provocou grande constrangimento nas pessoas que constituam seu alvo, especialmente
262
a esposa do cacique, que tinha todos os atos vigiados, at ficar socialmente isolada e
desabafar com o marido. Este hesitou por algum tempo, mas acabou renunciando ao
cargo, empregando o argumento socialmente aprovado do cansao: Eu estou
cansado, j trabalhei muito pela comunidade, agora um mais novo tem que assumir.
Agora eu vou cuidar da minha famlia, foram algumas de suas ltimas palavras como
cacique.
Resumidamente, a organizao poltica apiak faculta comunidade recordar
periodicamente s pessoas influentes os perigos envolvidos em tentar se transformar
naquilo que se quer englobar, impedindo assim a cristalizao da autoridade e a
concentrao da riqueza. Nesse sentido, a forma comunidade assentada sobre as
transaes de ddivas voltadas para a produo de parentesco e regidas pela tica da
generosidade ela mesma a expresso histrico-social do postulado cultural da
inviabilidade da transformao completa dos apiaks em civilizados.
********
Nas duas aldeias apiaks onde passei mais tempo, fui deliberadamente
monopolizada pelos caciques e convidada a morar em suas casas. Os caciques no
foram anfitries apenas; foram meus principais interlocutores e em vrios momentos
portaram-se como verdadeiros pesquisadores, me indicando pessoas importantes com
quem conversar e as melhores perguntas a fazer, me mostrando lugares que julgavam
relevantes e discutindo comigo a questo da conscincia histrica e o estado atual da
cultura apiak. Depois de algum tempo, passaram a me tratar por amiga e a me
apresentar para outras pessoas, tanto indgenas como no-indgenas, como a mulher que
os estava ajudando a registrar sua cultura. As esposas dos caciques viam em mim uma
confidente, uma forasteira a quem elas podiam confiar os dissabores com os coresidentes, os quais sempre maldiziam injustamente seus maridos. A proximidade
afetiva que se estabeleceu entre mim e as famlias nucleares de cada cacique foi
fundamental para eu apreender o aspecto humano e os bastidores da chefia, o que
enriquecer a presente reflexo sobre a organizao poltica apiak. A biografia de
quatro homens influentes que apresentarei a seguir serve a esse fim.
Inicio pelo mais velho deles, Rodolfo Datx (no. 93 no Diagrama 5.1), cacique
da aldeia Pontal, estabelecida em 2006 na margem direita do rio Juruena, no Par,
numa das extremidades da rea reivindicada pelo grupo. Rodolfo, que nasceu em 1958
na extinta aldeia Bom Jardim (margem direita do Teles Pires), um cacique respeitado
263
213 A me de Carlos e esta irm, casada com um kaiabi, moram hoje na aldeia Tatu, no Rio dos Peixes.
265
266
No final dos anos 1990, uma equipe da Funai fez algumas incurses em busca dos ndios isolados no
Pontal, sem chegar a resultados conclusivos.
267
aldeia por um tio materno, que era cacique, e se casaram com mulheres das etnias kaiabi
e munduruku, filhas de aliados polticos dos apiaks.
Devo caracterizar brevemente o contexto regional nos anos 1970, a fim de
esclarecer qual foi o modelo de relao com o branco em que esses homens se
inseriram. Pode-se afirmar que houve uma continuidade nas condies de trabalho em
toda a regio dos formadores do Tapajs desde a segunda metade do sculo XIX at os
anos 1980. As sucessivas levas extrativistas que se dirigiram para l valiam-se da mode-obra local e do sistema de aviamento, em que mercadorias eram entregues pelos
regates em troca de produtos da floresta, em operaes nas quais os indgenas
inexoravelmente contraam novas dvidas, apesar de a circulao de dinheiro ser
bastante limitada.
Em que pesem as sucessivas altas e quedas no preo da borracha, a extrao de
seringa foi a principal atividade econmica na bacia do Juruena at pouco tempo atrs;
em meados do sculo XX, contudo, os poderosos patres regionais, agora provenientes
do sul do pas, organizaram-se em cooperativas, passaram a patrocinar a colonizao da
rea e fundaram cidades, enquanto os missionrios jesutas pacificavam povos
indgenas arredios, como os rikbaktsas (canoeiros), os kaiabis e os tapaynas (beiose-pau) (Dornstauder, 1975) (ver captulo 1). Durante o perodo de declnio da borracha,
a explorao madeireira devastou rapidamente a regio do Rio dos Peixes e, em
seguida, comearam a se estabelecer as fazendas de gado; nos rios Juruena e Teles
Pires, os anos 1970 e 1980 foram marcados, tambm, pela atividade garimpeira e pelo
comrcio de peles de felinos.
Aquilo que no se alterou ao longo desses ciclos econmicos foi a vigncia da
lei do mais forte e as condies de trabalho precrias experimentadas pelos indgenas.
So inmeras as histrias de violncia, tortura e assassinato ocorridas nos seringais no
vale do Juruena nos anos 1960 e nas fazendas ao redor do Rio dos Peixes nos anos
1970: Se o sujeito no andasse na linha, o patro mandava os guaxebas sumirem com
ele, a frase mais recorrente nos relatos dos indgenas sobre essa poca. Para os
apiaks, essa situao no difere muito daquela enfrentada por seus antepassados na
amaldioada Barra de So Manoel.
Desde os anos 1980, o posto de cacique na aldeia Mayrob ocupado
sucessivamente por cada um desses irmos Morim (nos. 45, 46 e 47 no Diagrama 3.1),
pelo referido tio materno e pelo seu filho nico, que tambm professor na aldeia.
Como era de se esperar, a relao de mesma gerao entre os trs irmos e seu primo
268
cruzado bastante tensa, especialmente porque este primo casado com a meio-irm
daqueles trs homens e, em questes controversas, o tio materno, que ainda goza de
alguma ascendncia na aldeia, evidentemente toma o partido de seu prprio filho, contra
os sobrinhos. A esfera de influncia dos trs irmos no se restringe, contudo, aldeia.
Foram eles que lideraram o processo de restabelecimento da articulao poltica com os
demais grupos locais apiaks, e protagonizam a luta pela demarcao do Pontal dos
Apiak; eles tambm tm muitos aliados brancos nas cidades prximas a Mayrob e, nos
ltimos anos, assumiram postos importantes na FUNASA e cimentaram a aliana com
os poderosos kayaps, chefe do escritrio regional da Funai. Um desses irmos pretende
inclusive lanar sua candidatura a um cargo legislativo num municpio mato-grossense.
Uma das caractersticas que mais me chamou a ateno nos homens influentes a
recusa enftica de estabelecer relaes paternalistas com os brancos: esses homens no
costumam pedir nada, eles propem aes e mencionam sempre uma contrapartida
da comunidade para diversos projetos; seu modelo de relao parece ser o da parceria
(econmica, poltica, matrimonial), no o da doao assistencialista.
Dos caciques que me receberam, Edson foi tanto aquele que mostrou maior
interesse em minha pesquisa quanto aquele que mais sabia sobre a histria de seu povo;
ele tambm o que mais se aproxima do prottipo do grande homem descrito por
Sahlins (1963). Edson um homem cheio de planos, respeitado por alguns fazendeiros e
comerciantes locais,215 que rivaliza com seu irmo mais novo e o referido primo pelo
apoio poltico dos co-residentes; durante os anos em que esteve frente da aldeia,
obteve incrementos materiais e administrativos significativos,216 manejando com
desenvoltura a lgica do mercado e tentando equilibrar seu tino comercial com atos
de generosidade calculada na aldeia, mas sua personalidade reputada como mais
individualista revelou-se a causa de seu declnio.
Edson o cacique que encarna de modo mais dramtico as ambiguidades dos
middlemen. Extremamente civilizado nos modos, orgulhoso de seus conhecimentos de
matemtica, dono de uma personalidade forte que jamais se furta a apresentar uma
opinio taxativa diante de todo e qualquer assunto, ele no deixa, contudo, de salientar
sua ascendncia indgena diante de um tracaj gordo ou de um belo peixe. Diversas
215
De modo anlogo, entre os teneteharas era grande o prestgio, quer entre brasileiros, quer dentro de
seu prprio grupo, de lderes como Camirang, capazes de organizar a produo e comerciar em escala
maior (Wagley & Galvo 1961: 70).
216 Especialmente a aquisio de energia eltrica gerada por motor a diesel, alguns chafarizes, voadeira
com motor de popa, caminhonete, posto de sade com farmcia, escola estadual, projeto de segurana
alimentar, algumas cabeas de gado.
269
vezes eu o ouvi dizer para algum rapaz desanimado: Eu sou mais ndio que vocs
todos! Eu nunca tive preguia de caar ou pescar. Eu sei quantos quilos pesa o peixe
que eu pesco, eu conheo esse rio melhor que ningum. Ou ento: Ningum me bate
na castanha. Eu no tenho preguia de andar no mato. Orador habilidoso, Edson sabia
bem como estabelecer o consenso (ainda que muitas vezes provisrio) nas reunies no
salo, aconselhar aqueles que o procuravam em casa e conquistar a simpatia dos
visitantes forasteiros, transformando muitos deles em verdadeiros aliados. Aos
forasteiros, alis, explicava que era filho de pai arig, que no sabe falar a lngua
indgena porque passou muito tempo longe da aldeia,217 e jamais perdia a chance de
elogiar seu povo: Os apiak so corajosos, trabalhadores, nossas aldeias so bonitas,
organizadas; ns somos limpos, ns sabemos conversar, no vamos pegando logo a
borduna como o kaiabi.
Todas as vezes em que falava sobre sua vida, Edson comovia-se ao lembrar a
infncia sofrida e o duro aprendizado no mundo dos brancos; repetia com frequncia
que: Quem me v hoje acha que eu sempre fui bem tratado, que sou estudado... que
nada! Outro em meu lugar, depois de passar o que eu passei, teria ido para a cidade, mas
eu fiquei aqui e sempre lutei pelo meu povo. s vezes, eles acham ruim comigo, mas no
fundo sabem que tudo o que eu fao para o bem deles.
Sublinho que os apiaks no veem problema em eleger como caciques homens
que moraram muito tempo fora da aldeia ou que sequer fazem parte do grupo, como foi
o caso do peruano Donlojo, nas imediaes do rio Apiacs, nos anos 1950. Nisto se
assemelham aos jurunas que, no passado, transformavam os inimigos capturados em
chefes (Stolze Lima 1995: 345), os quais existiam como figuras atravs das quais o
grupo gostava de admirar a prpria imagem (: 350), exprimindo a ideologia de que os
Outros, os inimigos, esto aqui entre ns, tanto quanto esto do lado de fora (: 354).
217 Nenhum dos caciques mencionados sabe falar a lngua apiak; o cacique mais antigo da aldeia
Mayrob compreende a lngua, mas no falante. Os nicos falantes plenos de apiak so trs irmos
da parentela Kamassori e um homem da parentela Paleci, todos com mais de 50 anos.
270
271
273
descontinuidade original entre dois grandes blocos de sociedades, separados pelo modo
de organizao poltica.
Dialogando com Clastres, C. Lefort recusa tal ruptura radical e prope que um
tipo de sociedade se distingue de outro em razo de uma mise en forme das relaes
entre homens, classes ou grupos, cujo princpio est ligado ao modo de se gerar e de se
representar o poder (Lefort 1999: 309). Para Lefort, as sociedades primitivas
caracterizam-se por uma maneira singular de ser no Tempo (: 305), por um modo
especfico de instituio do social (: 307) e por uma alteridade necessria, onipresente e
inlocalizvel (: 322). Neste sentido, o poltico no uma escolha dos homens, mas a
expresso de uma elaborao e uma experincia da condio humana em circunstncias
dadas (: ibidem, nfases no original).
Tambm dialogando com Clastres, mas a propsito da chefia tupinamb,
Fausto demonstra o carter performativo da estrutura tupi, argumentando que, nessas
sociedades, a estrutura do poder depende do evento, da circunstncia, dos caprichos do
acontecimento (Fausto 1992: 390). Neste sentido,
(...) em vez de exorcizar o evento, faz dele uma varivel estrutural,
preservando sempre um resduo de incerteza no redutvel distino norma e
prtica que aponta para uma noo no elementar de regra (Viveiros de
Castro 1987). Esse intervalo, esse resduo de incerteza justamente o espao
do poltico na sociedade tupinamb. Assim, o acesso chefia e seu exerccio
dependiam antes do processo de constituio das unidades domsticas, das
estratgias matrimoniais e das virtudes pessoais do indivduo, do que de uma
autoridade emanada de um lugar da chefia. Era preciso ser capaz de articular
uma parentela forte, ser temido e respeitado como guerreiro, e ser como os
xams, grande orador (alguns principais eram tambm pajs). A poligamia e a
virilidade no eram privilgios da chefia, mas antes elementos do processo
poltico de constituio de um chefe: ter muitas mulheres, e no se sujeitar ao
servio da noiva devido ao sogro, para quem pode (e pode quem temido e
respeitado). Guerra e troca matrimonial articulavam-se no desenvolvimento das
parentelas e na poltica alde. (: 390)
Veremos como o evento e o resduo de incerteza incidem em cheio sobre a
constituio da chefia apiak. Os caciques apiaks corporificam a contradio,
vivenciada pelo povo no ltimo sculo, entre o desejo pelos ndices de civilizao e a
conscincia de seus efeitos colaterais perversos. Nesse sentido, o drama apiak pode ser
expresso no oxmoro como ter indivduos sem individualismo, uma vez que sua
concepo de civilizao remete a um estilo de vida essencialmente coletivista. Sob
esta perspectiva, o cacique uma espcie de bode expiatrio para os anseios da
comunidade; ele deve adquirir no mundo dos brancos a maior quantidade possvel de
274
XIX); como vimos, ao cacique dado ter um pouco mais de objetos industrializados
que os demais co-residentes, mas isto apenas enquanto o grupo detm o controle sobre
seu estoque e recebe melhorias de ordem coletiva e individual (belas festas na aldeia,
a reforma da escola, um bom aparelho de radiofonia; galochas para a coleta da castanhado-par, um quilo de sal num momento de dificuldade etc.).
*******
deixando um ou dois filhos para cuidar da casa, dos filhos menores e netos;218 sees de
famlias extensas distintas ou casais de compadres podem se associar para a atividade.
Antes de partir, as pessoas j sabem quais os castanhais que esto produzindo, isto ,
sobre os pontos do territrio em que as castanheiras liberaram os ourios. O grupo ento
se dirige, de canoa, para um castanhal de posse dos apiaks, distante vrios quilmetros
da aldeia; monta acampamento e passa ali o perodo estipulado, que vai de alguns dias a
vrias semanas.
Diariamente os homens saem, armados, antes de amanhecer, em busca das
castanheiras, enquanto a maioria das mulheres permanece no acampamento, cozinhando
e conversando; as mais dispostas podem acompanhar o marido. Enquanto uma pessoa
recolhe os ourios, a outra os abre a golpes de faco; no meio da tarde, os grupos voltam
ao acampamento; se aqueles que saram munidos de espingarda e anzois tiveram sorte,
haver alguma carne para o jantar. comum que cada homem adulto estipule uma
produo para si; alcanado o peso pretendido, este homem pode retornar aldeia.
Decorrido o perodo estipulado, o grupo retorna aldeia com a canoa carregada com
numerosas sacas de castanha suja. Na aldeia, a castanha ser lavada no rio e posta para
secar ao sol no terreiro, atividades levadas a cabo geralmente pelas mulheres e crianas.
Finalmente, aps separarem as mais gradas para consumo familiar,219 as mulheres
ensacam as castanhas e as acomodam no quarto do casal, at a visita do castanheiro.
Quando retorna aldeia para efetivar o negcio, o castanheiro levado ao
salo, onde a castanha pesada na balana do castanheiro e realizado o pagamento
em dinheiro para cada chefe de famlia, de acordo com a quantidade de castanha
entregue. Paira alguma tenso no ar. Aps a transao, os indgenas carregam as sacas
para o caminho. Geralmente h reclamaes veladas sobre a negociao levada a cabo
pelo cacique; na viso dos apiaks, o preo baixo220 compensado pela certeza da
venda e pela comodidade, j que no precisam levar o produto at a cidade. As
mulheres, que trabalharam intensamente no beneficiamento da castanha, no participam
do momento da venda.
218
O homem que no dispe desses apetrechos procura o cacique e os toma em regime de aviamento; os
objetos ou o valor equivalente em dinheiro devem ser retribudos ao cacique aps a venda da castanha.
219
A castanha-do-par ocupa papel de destaque na alimentao apiak. Ela consumida crua, adicionada
a bolos e mingaus, e seu sumo transformado em caldo para cozinhar peixes e caas. Em 2008, os
apiaks do Mayrob receberam do Ministrio da Cultura um prmio por um projeto de valorizao da
alimentao tradicional que teve a castanha como foco.
220
Em dezembro de 2007, o castanheiro pagou R$1,00 por quilo de castanha beneficiada, enquanto em
Braslia o produto era vendido nos supermercados por um valor pelo menos 10 vezes maior.
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221 Participei de algumas reunies na aldeia Mairowy, nas quais eu era instada a explicar questes que
as lideranas no entendiam bem, como a legislao referente demarcao de Terras Indgenas. Na
aldeia Mayrob, jamais fui convidada a participar de nenhuma reunio, a no ser nos momentos de me
apresentar e de me despedir da aldeia; certa vez, em resposta a minha indagao, ouvi do cacique a
seguinte frase, em tom taxativo: Nas reunies a gente trata de assunto nosso. Quase tudo o que
escrevo a respeito das reunies baseia-se naquilo que me foi contado pelas mulheres ou pelos prprios
homens, em casa.
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281
Consideraes Finais
Como vimos ao longo das pginas precedentes, o estilo de vida dos apiaks
contemporneos pensado como resultado da ruptura da relao com um cunhado
civilizado e identificado comunidade, um modo especfico de instituio do social (C.
Lefort 1999: 305), correlato das categorias mansos e misturados. Os apiaks afirmam
que aderiram voluntariamente ao processo de civilizao ou amansamento depois que
perderam o medo dos brancos, o que teria ocorrido aps uma sucesso de ataques
promovidos por seringalistas sediados na Barra de So Manoel, no incio do sculo XX,
porm tal afirmao compreende uma dimenso crtica, atualizada pelos homens
influentes em suas reivindicaes atuais, amparadas no respeito a direitos que a nova
legislao indigenista brasileira assegura aos povos indgenas.
Estes homens, chamados localmente de lideranas, enfatizam que o processo
de amansamento implicou no apenas o acesso a mercadorias e o contato com a f
catlica, mas tambm disperso territorial forada e casamentos com pessoas de etnias
distintas (nordestinos, paraenses e povos do tronco tupi), elementos que teriam
descaracterizado o estilo de vida tradicional do povo, paradoxalmente o mesmo que
hoje exigido aos apiaks como condio para que se demarquem suas terras e se
destinem recursos financeiros para as aldeias.
Os apiaks conseguiram superar todos os obstculos e hoje em dia vivem em
comunidades bonitas e salubres. Recuperaram-se demograficamente por meio de
casamentos com pessoas de outros povos do tronco tupi e descendentes de arigs, e se
reestruturaram politicamente graas convivncia com os kaiabis e os mundurukus.
A metfora da travessia de banzeiros que d ttulo a esta tese exprime a atitude
dos apiaks diante da histria. Hbeis canoeiros, os apiaks, quando em suas viagens se
veem diante de guas revolvidas pelo vento, analisam a situao e procuram uma brecha
por onde enveredar com alguma segurana. A sabedoria para cruzar banzeiros e desviar
de rebojos sem deixar a embarcao naufragar advm de uma longa experincia no
meio fluvial. Da mesma forma, a sabedoria para superar adversidades foi adquirida na
prtica, a duras penas. Os apiaks sabem que, nas atuais circunstncias, partir para o
enfrentamento no a melhor estratgia diante das muralhas aparentemente perfeitas e
implacveis do poder centralizado. Na busca pelo respeito aos direitos bsicos
garantidos pela legislao indigenista especialmente o direito de voltar a morar na
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terra de fartura onde viveram seus antepassados e onde ainda vivem, acreditam, seus
parentes arredios , optaram pela via da diplomacia e do convencimento.
Os apiaks, assim como vrios povos indgenas do Nordeste (Oliveira Filho
1999), tambm concebem o fortalecimento da identidade tnica como uma viagem,
mais propriamente uma viagem fluvial, a qual jamais deixa intactos os viajantes. Eles
sabem que o tempo que se leva para descer o rio no idntico ao tempo gasto para
subi-lo; aqueles que retornam no so idnticos aos que foram, e, no final das contas,
tampouco o rio o mesmo.
Vrios so os mitos norte-americanos analisados por Lvi-Strauss (2006) que
tratam de uma viagem de canoa e das transformaes que ela engendra. Parafraseando
este autor (Lvi-Strauss & Eribon 2005: 192), diramos que, em sua atuao poltica, os
homens influentes apiaks tencionam fazer surgir relaes entre outras relaes de
poder j dadas no tempo. Os homens influentes apiaks me falaram diversas vezes sobre
como seria bom ter um livro sobre sua cultura: Ns sabemos que apiak existe, ns
estamos aqui na nossa aldeia. Mas os outros l fora, os brancos, no sabem. A, quando
ns vamos para Cuiab, para Braslia, atrs de nossos direitos, muitas vezes somos
discriminados.
Historicdio o nome da prtica de remoo dos povos da histria, da qual os
apiaks foram vtimas; trata-se de uma maneira de obscurecer os processos histricos
que produziram as hierarquias raciais prevalecentes nas Amricas. De acordo com J.
Hill, o poder de controlar e definir o passado histrico talvez a forma ltima de
hegemonia (Hill 1996: 16).
Cada Estado-nao se viu como o centro daquele estgio histrico, e as
crnicas apropriadas foram escritas. Enquanto os povos dominantes continuam a
escrever desta perspectiva, eles se tornam cada vez menos capazes de discernir a
presena, mesmo em seu teatro imediato da histria, de outros povos a seu lado,
exceto como obstculos temporrios a sua dominao, como remanescentes em
vias de extino, ou como persistentes povos retrgrados que no podem ser
alocados na mesma categoria que a nao dominante. A padronizao da histria
foi um processo destrutivo, que eliminou da esfera do conhecimento histrico
centenas de povos que, da mesma forma que os povos dominantes, tinham
histrias. Ela foi mais destrutiva que a padronizao da linguagem, porque
removeu da perspectiva geral totalidades culturais, e no apenas um aspecto de
uma cultura (E. Spicer 1992: 43-44, apud Hill 1996: 16-17).
O conceito de historicdio nos faz pensar de modo crtico na relao de poder
constitutiva de todo esforo de saber. J. Clifford se perguntou sobre a possibilidade de
estudar outros povos sem exercer poder sobre eles, argumentando que
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Referncias Bibliogrficas
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299
Anexos
300
Foto 1: Dois irmos Kamassori ao lado de uma antiga conhecida munduruku ( direita)
Foto 2: O terceiro irmo Kamassori, com a filha, mostrando peneiras de fibra de arum
confeccionadas por ele e utilizadas para coar mel e chs
301
Foto 3: Abrindo o arapari para construir a canoa de casca de pau, que serve apenas
para navegar a favor da correnteza
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305
Foto 10: Preparando bolo de mandioca para a Festa do Dia das Mes; ao fundo, o rio
Teles Pires
Foto 11: Torneio de futebol masculino durante a festa do Dia dos Pais, Mayrob
306
Foto 12: Rio dos Peixes no inverno (note o joo-de-pau na popa da canoa)
Foto 13: Meninos entre 5 e 12 anos formam grupinhos que perambulam alegremente
pelos arredores da aldeia, Mairowy
307
Foto 14: Moas na beira, tratando peixes e carne de queixada trazidos pelos homens,
Mairowy
Foto 15: A construo da casa uma das atividades que demanda mais esforos dos
homens. Na rea do Teles Pires, h palha de babau em quantidade para os telhados; no
Rio dos Peixes, preciso recorrer a tabuinhas
308
Foto 16: Casal preparando farinha de mandioca na casa de forno comunitria; ao fundo,
o Rio dos Peixes (note a peneira de fibra vegetal quadrada sobre a canoa e a prensa
mecnica, ao fundo)
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do sculo XX,
Foto 18: 6163- Coroa radial emplumada: constituda de duas abas de palha tranada
com fieira de penas nas cores amarelo e vermelho dispostas entre ela, no mesmo
plano, em sentido radial. Mato Grosso. 1954. 28,0 cm de dimetro; 35,0 cm de
largura. (Darcy Ribeiro)
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Foto 20: 8509- Coroa radial emplumada: constituda de duas abas de madeira
revestidas com tecido de fio de algodo. Apresenta entre o tecido fieira de
penas nas cores amarelo, vermelho, azul e marrom dispostas entre si em
sentido radial. Compe um cobre-nuca de fios de penas nas cores
vermelho(Arara), amarelo(Arara) e branco com marrom(Gavio) em formato
de emplumao em roseta de plumas alternadas. Mato Grosso. 1957. 87,0cm
de comprimento; 68,0cm de largura. (Leilo Museu Simoens da Silva)
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Foto 21: 8521- Coifa: composta por uma cobertura flexvel para a cabea
confeccionada com fibra de buriti em forma de touca e revestida de tufos de
penas na cor branca. Mato Grosso. 1957. 15,0cm de dimetro; 20,0cm de
altura. (Leilo Museu Simoens da Silva)
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Foto 23: 8522- Novelo de linha: Novelo de linha de algodo (Gossypium sppp.) na cor
branca natural, constitudo de inmeras voltas de formato ovalado. Mato
Grosso. 1957. 8,0 cm de dimento x 7,0 cm de altura (medida aproximada
por tratar-se de objeto irregular ). (Leilo Museu Simoens da Silva)
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1964, PIA Jos Bezerra, alto Teles Pires- Acervo Museu do ndio/Funai
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