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Travessia de Banzeiros. Historicidade e Organização Sociopolítica Apiaká

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GIOVANA ACACIA TEMPESTA

Travessia de Banzeiros.
Historicidade e organizao sociopoltica apiak

Tese apresentada ao Programa de PsGraduao em Antropologia Social do


Instituto
de
Cincias
Sociais,
Departamento
de
Antropologia,
Universidade de Braslia, como requisito
parcial obteno do ttulo de Doutora em
Antropologia.

Orientadora: Alcida Rita Ramos

Banca Examinadora:
Alcida Rita Ramos (Presidente) (DAn/UnB)
Carlos Fausto (PPGAS/Museu Nacional)
Karenina Vieira Andrade (Prodoc-DAn/UnB)
Patrcia de Mendona Rodrigues (consultora/Funai)
Roque de Barros Laraia (DAn/UnB)
Jos Vieira Pimenta (Suplente) (DAn/UnB)

Braslia
Maio de 2009

Maloca apiak na margem do rio Juruena, 1828. Aquarela de H. Florence (ao fundo,
homens navegando numa canoa de casca de pau)

Para as crianas apiaks; que preservem sempre


seu esprito livre e sua alegria de viver
Para Daniel, amor

(Marco Polo diz a Kublai Khan)


Ao passo que mediante o seu gesto as cidades erguem muralhas perfeitas, eu recolho
as cinzas das outras cidades possveis que desaparecem para ceder-lhe o lugar e que
agora no podero ser nem reconstrudas nem recordadas. Somente conhecendo o
resduo da infelicidade que nenhuma pedra preciosa conseguir ressarcir que se pode
computar o nmero exato de quilates que o diamante final deve conter, para no exceder
o clculo do projeto inicial.
Italo Calvino. As cidades invisveis

Sumrio

Lista de diagramas, figuras e tabelas..........................................................................6


Resumo ......................................................................................................................7
Convenes ................................................................................................................8
Agradecimentos .........................................................................................................9
Introduo .................................................................................................................12
Pequeno Glossrio de Termos Regionais..................................................................32
Primeira Parte: Historicidade e etnicismo
Prlogo.......................................................................................................................34
Captulo 1- Sobre patres, cunhados e onas............................................................40
1.1- O tempo das guerras ..........................................................................................42
1.2- O tempo do seringal...........................................................................................55
1.3- Civilizao apiak...........................................................................................77
Captulo 2- Espalhados, misturados, mansos, resilientes..........................................87
2.1- Historicidade e etnognese.................................................................................92
2.2- A nossa terra......................................................................................................106
Segunda Parte: Organizao sociopoltica
Prlogo......................................................................................................................115
Captulo 3- O tempo (e o espao) da comunidade ...................................................119
3.1- Cultivando lugares.............................................................................................123
3.2- Alimentando relaes........................................................................................138
3.3- Famlia conjugal e famlia extensa....................................................................148
3.4- Dar, receber, retribuir.....................................................................................163
Captulo 4- Somos todos parentes.............................................................................182
4.1- A pessoa apiak..................................................................................................185
4.2- Elaborando a consanguinidade e a afinidade.....................................................215
Captulo 5- Poltica comunitria................................................................................234
5.1- As aldeias apiaks no sculo XX.......................................................................238
5.2- Os meandros da chefia.......................................................................................253
5.3- A coletividade contra o individualismo.............................................................271
Consideraes Finais.................................................................................................282
Referncias Bibliogrficas.........................................................................................285
Anexos ......................................................................................................................300

Lista de diagramas, figuras e tabelas


Diagrama 3.1: Conexes entre as parentelas Morim, Kamassori e Paleci............149
Diagrama 3.2: Casamento entre parentes distantes, Mayrob..................................156
Diagrama 3.3: Modos de circulao de objetos e nichos de intimidade.................167
Diagrama 4.1: Famlia extensa dos Pombos, Mairowy...........................................232
Diagrama 5.1: Parentela Kamassori........................................................................241
Figura 1.1: Mapa Etno-Histrico...............................................................................38
Figura 3.1: Croqui da aldeia Mairowy, 2007...........................................................176
Figura 3.2: Croqui da aldeia Mayrob, 2007.............................................................178
Tabela 3.1: Principais espcies animais e vegetais utilizadas na alimentao........128
Tabela 3.2: Principais produtos agrcolas................................................................129
Tabela 3.3: Alimentos comercializveis e no-comercializveis............................130
Tabela 3.4: Aldeias apiaks em 2007......................................................................180
Tabela 3.5: Distribuio da populao por sexo e idade (Mairowy e Mayrob)......181
Tabela 4.1: Carnes reimosas....................................................................................188

Resumo

O presente estudo trata das concepes apiaks sobre a mudana histrica e


articula as categorias sociais nativas atual organizao sociopoltica e formulao da
identidade tnica. Os apiaks sofreram os efeitos devastadores da frente da borracha na
regio dos rios formadores do Tapajs, mas conseguiram se restabelecer como povo
diferenciado. A categoria misturados, central para a auto-imagem apiak, articula-se
formao comunitria contempornea e constitui o princpio organizativo que
impulsiona a luta do povo por fazer conhecer sua histria e por fazer respeitar seus
direitos. A relao com o territrio estrutura a memria coletiva e fornece uma
perspectiva de futuro. A apreenso dos contornos da historicidade apiak e a anlise da
organizao sociopoltica atual revelam a intensidade da resilincia que eles partilham
com a maioria dos povos indgenas da Amrica Latina.

Abstract

This is a study of the Apiak Indians of Mato Grosso, Brazil. It focuses on


their conceptions of historical change and examines how their social categories
articulate with their present sociopolitical organization and with the shaping of their
ethnic identity. Although the Apiak suffered the devastating effects of the rubber boom
in the region of the Tapajs River basin, they have succeeded in maintaining their
distinctiveness as a people. The category of mixed people is central to Apiak self
perception and informs their contemporary community life. It is also the thrusting
principle behind their efforts to make their history known and their rights respected.
Their relationship to territory frames both their collective memories and future
perspectives. To grasp Apiak historicity and present-day sociopolitical organization is
to reveal the intensity of the resilience they share with most Indigenous peoples in Latin
America.

Convenes

Para os nomes das aldeias, utilizo a grafia preferida pelas pessoas influentes
apiaks: Mairowy e Mayrob.
Os nomes dos povos indgenas citados respeitam as normas da lngua
portuguesa, inclusive o plural.
Os apiaks chamam de Par toda a regio a jusante da cachoeira Rasteira,
incluindo a margem esquerda do rio Teles Pires, que oficialmente pertence ao estado do
Mato Grosso, mas que disputada h um sculo com o estado do Par, e de Mato
Grosso apenas a rea da bacia do Juruena, que compreende o Rio dos Peixes. Grafo
esses topnimos em itlico para respeitar e enfatizar a percepo geopoltica dos
indgenas.
Para grafar os graus de parentesco, utilizo a conveno de iniciais em
portugus, com letras minsculas indicando mulher e letras maisculas indicando
homem.
De acordo com A. Padua (2007), a lngua apiak conta com seis vogais: a, e, i,
o, u, y. As vogais nasais so grafadas com til. O acento agudo marca a slaba mais
intensa da palavra. O y uma vogal central alta, que no existe nas lnguas de origem
latina. As consoantes so as seguintes:

: oclusiva glotal surda


h: fricativa glotal surda (como r em rua e rr em carro)
g: oclusiva velar sonora (como g e gu em gagueira)
ng: nasal velar (como ng na palavra inglesa singing)
j: aproximante alveopalatal sonora (como i em ioi)
k: oclusiva velar surda (como c e qu em caqui)
kw: oclusiva velar labializada surda (como qu em quati)
m: oclusiva bilabial nasal (como m em mesmo)
n: oclusiva alveolar nasal (como n em nona)
nh: nasal alveopalatal (como nh em manh)
p: oclusiva bilabial surda (como p em papo)
s: fricativa alveolar surda (como s e c em saci)
t: oclusiva alveolar surda (como t em tatu)
w: aproximante labial sonora (como u em uai)

Agradecimentos

Sem a anuncia, a colaborao ativa e a hospitalidade dos apiaks, esta tese


no existiria; sem a alegria das crianas e a altivez dos adultos, dificilmente ela teria
sido escrita com tanta dedicao.
Antes de eu chegar at os apiaks, porm, a opinio de algumas pessoas foi
fundamental para que eu me decidisse a realizar a pesquisa. A professora Alcida Rita
Ramos incentivou-me a trabalhar com o povo desde nossa primeira conversa, em 2005,
e ao longo dos anos me ajudou a perceber o valor da resilincia dos povos indgenas.
Leitora atenciosa e crtica das numerosas verses dos captulos que se seguem, ela me
ajudou a olhar os dados etnogrficos de outro ngulo, a mergulhar mais fundo naquilo
que eu vira e ouvira em campo, ao mesmo tempo em que ampliou meus horizontes
tericos.
A professora Edir Pina de Barros me deu as primeiras informaes
etnogrficas sobre os apiaks do Rio dos Peixes e me convenceu sobre a importncia de
escrever uma monografia sobre um povo to pouco conhecido no meio etnolgico. Ela
me recebeu carinhosamente em sua casa em Cuiab e me fez perceber o valor dos
documentos e das reconstituies histricas para uma melhor compreenso da situao
atual dos povos indgenas no Mato Grosso.
Carmen Silva tambm me recebeu em Cuiab, com sua admirvel alegria de
viver.
Os professores Roque de Barros Laraia e Jos Pimenta me deram importantes
sugestes durante a defesa do projeto, em 2006.
Os membros da banca examinadora da tese, professores Carlos Fausto, Roque
Laraia, Patrcia de Mendona e Karenina Andrade, com base em uma leitura cuidadosa,
indicaram-me generosamente alguns pontos a aperfeioar e a aprofundar e apontaram
potencialidades da pesquisa.
Sem a bolsa de pesquisa concedida pelo CNPq, o trabalho de campo
dificilmente teria sido realizado. Alm da bolsa, fui contemplada com um recurso
pontual no mbito do projeto Construindo e Reconstruindo Territrios Indgenas na
Amaznia, coordenado pela professora Alcida Ramos.
O Decanato de Pesquisa da Universidade de Braslia me concedeu um auxlio
para pagar as passagens terrestres at o norte do Mato Grosso.

A professora Marcela Coelho de Sousa fez comentrios valiosos durante a


comunicao interna, promovida pelo Laboratrio de Etnologia e Indigenismo
(LINDE), que proferi em 2008.
Os professores do DAn com quem tive a chance de cursar disciplinas nos anos
de 2005 e 2006, especialmente as professoras Alcida Ramos e Mariza Peirano,
apresentaram novas perspectivas de anlise de dados etnogrficos, bem como
conduziram uma reviso crtica da literatura antropolgica.
Os alunos da turma de Introduo Antropologia na UnB, curso que ministrei
no segundo semestre de 2006 como requisito parcial obteno do ttulo de doutora,
representaram um agradvel desafio intelectual e pedaggico.
As discusses ocorridas durante o GT Estratgias Intertnicas e Fronteiras
Identitrias, coordenado pelos professores John Monteiro e Joo Pacheco de Oliveira,
na 32. Reunio da Anpocs, em 2008, foram bastante ricas. Naquela ocasio, apresentei
as ideias principais que constituem o captulo 2 desta tese.
Com Helena Cavalcanti-Schiel e Lus Cayn dividi as angstias e as alegrias
da pesquisa de campo e tive sempre conversas inspiradoras sobre teoria antropolgica.
Patrcia Mendona leu a primeira verso de alguns dos captulos desta tese,
explicou-me a situao dos kaiabis do Teles Pires e dos mundurukus do Tapajs, que
ela conheceu de perto nos anos 1990, e me encorajou a levar adiante a pesquisa com os
apiaks.
Na Fundao Nacional do ndio, convivi com alguns indigenistas competentes
e apaixonados, dentre os quais Leila Burger, defensora enftica dos direitos territoriais
indgenas.
Com os colegas da turma de 2005, Joo Miguel, Mrcia Leila, Gustavo
Hamilton, Marcus Cardoso e Gonzalo Crovetto, tive sempre boas discusses.
Nas aldeias apiaks, profissionais no-indgenas foram amigos tanto nas horas
difceis como nos momentos de felicidade: Ndia Maria e Elizama, no Mayrowy; padre
Cludio Lehnen e Jos Luiz, no Mayrob.
Os funcionrios do Arquivo Pblico de Cuiab, do Museu de Arqueologia e
Etnologia da Usp, do Instituto de Estudos Brasileiros/Usp, do Museu do ndio/Funai e
da Seo de Obras Raras da Biblioteca Central da Unicamp foram extremamente
solcitos. Jair, do Centro Burnier F e Justia, em Cuiab, forneceu informaes
relevantes sobre os arquivos da Misso Anchieta.

10

As secretrias do Departamento, Rosa Cordeiro e Adriana Sacramento, sempre


se mostraram atenciosas e diligentes.
Os linguistas Aryon Rodrigues, Ana Suelly Cabral, Henri Ramirez e
Alexandre Pdua me ensinaram os fundamentos da lngua apiak e esto empenhados
em trabalhar pela revitalizao do idioma.
O bilogo Tarcsio Santos me ajudou com informaes relativas fauna,
flora e geografia regionais.
Alessandra Beatriz, amiga uberlandense, me auxiliou com os diagramas.
Conceio Serralha e Luiza Simes contriburam para que a tenso do perodo
de escrita no atingisse nveis crnicos.
Ana Carolina Pareschi me deu apoio na minha difcil chegada capital federal
e continuou sendo amiga.
Ana Paula Souto Maior, si ha, ensinou-me a levar a vida de forma mais leve.
Fabiana, Isabel, Mazzola, Daniel, Januria, Christiano, Daniela, Eliana, Carla,
Nashieli, entre muitos outros amigos, me fazem lembrar com grande nostalgia dos anos
de graduao e mestrado na Unicamp.
Andra e Caio me proporcionaram todo o conforto e tranquilidade na fase
final de redao da tese.
Meu pai, minha me e meu irmo Rafael sempre valorizaram os estudos.
Daniel Faria um companheiro dedicado e paciente, alm de interlocutor
crtico e sensvel; suportou minhas ausncias prolongadas e minhas crises
antropolgicas sem perder a admirao pelo meu ofcio.
Agradeo sinceramente todo o apoio intelectual, emocional e material recebido
das pessoas e instituies citadas. Eventuais erros e omisses, contudo, so de minha
inteira responsabilidade.

11

Introduo

Esta tese trata do processo de reestruturao poltica dos apiaks, um povo de


lngua tupi-guarani que atingiu o nadir demogrfico nos primeiros anos do sculo XX.
Realizei pesquisa documental e pesquisa etnogrfica para compreender de que maneira
este povo, habitante tradicional da regio dos tributrios do rio Tapajs, conseguiu se
reorganizar sobre novas bases, chegando a formar aldeias reconhecidamente boas de
viver, a ponto de atrair diversas famlias mundurukus e kaiabis.
A anlise das categorias por meio das quais os apiaks organizam sua relao
com o passado, combinada aos registros escritos, revela que a historicidade indgena
formulada no interior do horizonte simblico tupi, na medida em que enfatiza a
ambivalncia da relao com o Outro, concebida como absolutamente necessria,
conquanto arriscada. Da mesma forma, a configurao sociopoltica contempornea,
caracterizada por aldeias multitnicas e multilingusticas e influenciada pela longa
presena de missionrios jesutas, acomoda um tipo de violncia mgica que se funda
sobre o aspecto animal da pessoa, atestando que a alteridade constitutiva do Eu.
Neste contexto, a residncia e os princpios morais que ela implica surgem
como critrio de pertencimento tnico, infletindo sobre as relaes de parentesco e
delineando os contornos da chefia. Se, por um lado, parente aquele que vive com e
como os apiaks, por outro lado, existe sempre a possibilidade de um co-residente se
metamorfosear e praticar aes nefastas, ou de os caciques agirem como patres,
indicando que o Outro est dentro da comunidade e pode se voltar contra ela.
Um sculo e meio aps o boom da borracha na Amaznia, os apiaks
sustentam o modelo da relao mercantil com os brancos, enquanto a rivalidade e a
desconfiana veladas, reminiscncias do passado de guerras intertribais, do a tnica da
relao com os vizinhos kaiabis e mundurukus. Atualmente, no interior do cenrio
indigenista composto pela Funai, Funasa, missionrios e Ongs, os apiaks no Rio dos
Peixes mantm uma relao de hierarquia com os kaiabis e, no baixo Teles Pires, uma
relao de simbiose com os mundurukus (nos termos empregados por Ramos 1980).
Embora tenham vivido durante tempo considervel nas aldeias desses dois povos,
casando-se com seus membros e chegando a falar as respectivas lnguas, os apiaks
nunca foram plenamente absorvidos: para os mundurukus e os kaiabis, um apiak
vivendo numa de suas aldeias sempre foi e sempre ser um apiak, ainda que aliado.
Pode-se afirmar, ademais, que os apiaks so os pivs de uma rede social regional
12

reconfigurada na primeira metade do sculo XX, e que a luta para recuperar parte de seu
territrio tradicional alimentada pela hostilidade demonstrada pelos kaiabis. Neste
sentido, a necessidade de inimigos e a memria da vingana entendida como dispositivo
de estabelecer as bases para relaes futuras (Viveiros de Castro & Carneiro da Cunha
1986) constituem uma forma cultural persistente na histria dos apiaks.
Ao longo da tese, as noes nativas de mistura, comunidade,
civilizao, ndios mansos, ndios bravos e gente que vira bicho sero tratadas
como expresses da historicidade e da socialidade apiak.

A pesquisa documental e o trabalho de campo


O presente estudo visa preencher uma lacuna etnogrfica na famlia lingustica
tupi-guarani. At hoje, o nico trabalho de cunho acadmico sobre os apiaks era a
dissertao de mestrado de Wenzel, defendida em 1986, que no constitui exatamente
uma etnografia, fato reconhecido pelo prprio antroplogo, que atuou como
missionrio ligado Misso Anchieta no Rio dos Peixes, durante cerca de vinte anos
(Wenzel 1986: 4). A dissertao de Wenzel fornece, contudo, valiosas referncias
bibliogrficas, que constituram o ponto de partida de minha pesquisa.
O emprego de fontes para a tentativa de compreenso de um passado
longnquo levanta vrios problemas tericos e metodolgicos, mas assumo que, se elas
exprimem, sobretudo, a viso de seus autores sobre determinada poca ou situao,
tambm so polissmicas, isto , guardam nas entrelinhas algo da agencialidade
daqueles sobre quem se escreve. Assim, temos acesso ao menos ideologia que
informava as prticas dos colonizadores em relao aos indgenas, s quais estes
reagiam de maneiras diversas.
Meu interesse pelos apiaks surgiu em 2005, quando eu trabalhava na
Coordenao Geral de Identificao e Delimitao da Fundao Nacional do ndio, e
recebi, para proceder a uma anlise preliminar, algumas cartas contendo uma
reivindicao territorial destes ndios. Ao conversar com alguns antroplogos e
indigenistas, percebi que a existncia contempornea dos apiaks era quase
completamente ignorada. Apenas a colega Lea Tomass, que desenvolve pesquisa entre
os kaiabis do Parque do Xingu, me contou que os apiaks so o mingau de
amendoim, alimento muito apreciado, nos cantos dos guerreiros kaiabis na festa
Yawos, que antigamente consistia no ritual de morte e quebra do crnio do inimigo.
13

Num rpido levantamento bibliogrfico, porm, descobri que o povo,


habitante do norte do estado de Mato Grosso, vivia agora junto aos kaiabis, outro grupo
de lngua tupi-guarani, bem mais famoso no meio etnolgico. Vivemos de favor na
terra dos outros e queremos voltar para nosso territrio tradicional eram, em linhas
gerais, os termos das cartas, que vinham acompanhadas de dezenas de assinaturas.
Logo encontrei a bela edio ilustrada da Expedio Langsdorff ao Brasil,
uma comisso de carter cientfico que percorreu uma extensa rea entre o interior de
So Paulo e Santarm, entre os anos de 1821 e 1829. As belssimas aquarelas de
Hercules Florence, desenhista da expedio, aguaram minha curiosidade; nas pinturas
e no dirio do desenhista, os apiaks que habitavam o rio Arinos so representados
como amveis, trabalhadores, guerreiros, hbeis canoeiros, agricultores e artesos. A
cultura material apiak parece ter sido importante na regio dos formadores do Tapajs,
pois Robert Murphy afirma que os mundurukus adotaram a canoa de casca de pau dos
apiaks1 (Murphy 1960: 56), e George Grunberg relata que os kaiabis se apropriaram
do padro antropomrfico (tanga) das peneiras confeccionadas por eles (Grunberg
2004: 130).
O dirio de H. Florence e a crnica do cnego Jos Guimares (1865) so as
principais fontes consultadas por Curt Nimuendaju para escrever o artigo The Cayabi,
Tapanyuna, and Apiaca, publicado no Handbook of South American Indians, em
1948. Este pequeno texto, escrito com base apenas em pesquisa bibliogrfica, informa
que os primeiros registros sobre os apiaks datam da ltima dcada do sculo XVIII, e
se referem ao vale do Arinos, afluente oriental do rio Juruena, principal formador do
Tapajs. De acordo com Nimuendaju, no sculo XIX os apiaks eram os melhores
pilotos nas cachoeiras do rio Tapajs (sic)2; suas tatuagens faciais, consistindo em trs
traos negros partindo das orelhas em direo aos olhos, ao nariz e ao queixo, eram
1

Tive a chance de assistir confeco de uma dessas canoas na aldeia Mayrob, numa atividade curricular
organizada por um professor apiak (ver Anexos), que pretendia que os velhos ensinassem aos alunos
alguns aspectos da cultura apiak (expresso que os professores no se cansam de repetir). Ela muito
parecida com a ywir pirra tenetehara (Wagley & Galvo 1961:218), a diferena residindo no fato de
que os apiaks no derrubam a rvore (arapari) para retirar a casca, mas montam um jirau alto e destacam
a casca usando cunhas. As canoas de casca de pau j no so utilizadas atualmente; os apiaks fabricam a
canoa monxila, de itaba ou louro, para uso cotidiano. Esta canoa, chamada de ub, normalmente conta
com um joo-de-pau, uma estrutura de madeira acoplada verticalmente popa, que fica submersa e
funciona como leme, permitindo a um nico homem, que fica na proa, dirigir a embarcao. Devo esta
observao tcnica ao antroplogo Aloir Passini.
2 Muitos autores referem-se ao rio Juruena como alto Tapajs e ao Teles Pires como So Manoel,
mas utilizarei aqui as designaes Juruena e Teles Pires para me referir aos principais formadores do
Tapajs, tal como fazem os apiaks no presente e tal como foram consagradas pela geografia no sculo
XX.

14

ndices da participao em rituais antropofgicos e do consumo de carne humana; seus


maiores inimigos eram os tapaynas, nambiquaras, kawahbs e matanaws, contra os
quais faziam guerras peridicas; acreditavam num deus criador do cu e da terra, que
assumia a forma de trovo e relmpago, chamado Bahra, uma variante do demiurgo
que aparece em diversos mitos tupi-guaranis.
Nimuendaju explica que os apiaks, que teriam chegado a uma populao de
16 mil pessoas,3 j no existem enquanto tribo. Somente alguns indivduos vivem na
Coletoria (de Mato Grosso) na boca do rio So Manoel (Teles Pires) e nas misses
franciscanas no rio Cururu. O autor baseia-se no relatrio do capito Costa Pinheiro,
escrito em 1912, no mbito da expedio da Comisso Rondon ao rio Juruena, onde
consta que restavam apenas 32 apiaks. O grupo teria sido reduzido a esse nmero
devido a ataques promovidos pelo coletor em represlia a um ataque anterior
empreendido pelos ndios. O diagnstico de extino do grupo seria repetido anos mais
tarde por Darcy Ribeiro, com base no mesmo relatrio, em seu balano sobre a situao
dos povos indgenas no Brasil (2002). A sentena antropolgica da extino
acompanhou os apiaks at 1986, quando Wenzel elaborou sua dissertao de
mestrado.
Ao ler os relatrios da Comisso Rondon referentes regio de confluncia
dos rios Juruena e Teles Pires (Pyrineus de Sousa 1916; Rondon 1915, 1916), comecei
a me familiarizar com os interesses e conflitos locais, que opunham vrios povos
indgenas a um projeto secular de colonizao, e compreendi que a bacia do Juruena era
de fato o territrio tradicional dos apiaks, de onde eles saram devido s perseguies
de diversos coletores de impostos. Os sobreviventes dos massacres da virada para o
sculo XX migraram para os rios Anipiri, Cururu e Teles Pires, onde se engajaram na
indstria da borracha, mas h tambm informaes sobre uma seo arredia do povo,
que teria permanecido nas imediaes do rio So Tom, um afluente oriental do baixo
Juruena. Na primeira metade do sculo XX, contudo, epidemias de sarampo vitimaram
os apiaks do Par, provocando novas mortes e nova disperso territorial. Assim
desarticulados, os apiaks estabeleceram relaes matrimoniais com indgenas de
outras etnias do tronco tupi e com arigs, no contexto dos seringais, numa rea at
hoje disputada pelos governos paraense e mato-grossense.
Por vrias dcadas os apiaks viveram, em suas prprias palavras,

De acordo com Machado de Oliveira (1898: 101), uma informao difcil de comprovar.

15

espalhados e tiveram de se misturar com outros ndios para sobreviver. Aps a


convivncia com os missionrios franciscanos que atendiam os mundurukus no rio
Cururu, algumas famlias encontraram-se, nos anos 1960, com um missionrio jesuta
que pretendia reunir os kaiabis, ainda arredios, no Rio dos Peixes. Aceitaram, um
pouco apreensivos, o convite para morar na aldeia dos kaiabis, chamada Tatu.
Residiram ali por alguns anos apenas, decidindo ento fundar uma aldeia apiak a
poucos quilmetros de distncia, sem deixar, contudo, de frequentar regularmente o
Tatu. Neste perodo de proximidade intensa, a antiga rivalidade floresceu.
Enfraquecidos demogrfica e politicamente, os apiaks recorreram aos mundurukus da
Misso Cururu, alguns dos quais, unidos a um apiak por uma relao de afinidade,
migraram para o Rio dos Peixes, onde se tornaram aliados polticos e provedores de
cnjuges para os apiaks.
Nos anos 1980, relativamente recuperados em termos demogrficos e
polticos, os apiaks do Rio dos Peixes deram incio ao movimento de reunio dos
parentes ainda espalhados ao longo do Juruena, do Teles Pires, do alto Tapajs, em
cidades e vilas mato-grossenses, paraenses e amazonenses. Nos anos 1990, amparados
pela nova Constituio Federal, passaram a assumir publicamente seu etnnimo e a
reivindicar seus direitos, embora permaneam na situao de minoria.
Levei mais de dois anos para reconstituir a histria do povo em detalhe. Se,
por um lado, a pesquisa de campo foi facilitada pelo desejo antigo que os apiaks
nutriam por ter um livro da sua cultura, da sua histria,4 por outro lado os poucos
velhos falantes da lngua se recusavam a recordar um passado traumtico.5 E no se
recusavam a falar apenas comigo, uma estranha, o que seria compreensvel; recusavamse, havia muito tempo, a falar com seus prprios filhos e netos, de modo que a lngua e
a memria genealgica quase se perderam.
De um modo geral, a pesquisa de campo enveredou pelas trilhas que os
apiaks me indicaram: os homens influentes gostavam de falar sobre sua luta poltica e
a histria do povo; as mulheres conversavam tanto sobre os fatos da vida como sobre a
poltica comunitria e no se conformavam com o fato de eu no ter filhos; as crianas
mostravam-se sempre dispostas a me dar informaes sobre fatos cotidianos e
apreciavam minha companhia em momentos de descontrao. A respeito de temas
4

Este desejo foi em parte estimulado pela publicao, organizada pelo Instituto Socioambiental, da tese
de G. Grunberg (2004) sobre os kaiabis.
5
Comprovou-se a existncia de quatro falantes plenos de apiak, todos eles com mais de cinquenta anos;
convivi mais intensamente com dois deles, siblings de sexos opostos.

16

como a vida post mortem e as metamorfoses, porm, meus interlocutores eram


absolutamente lacnicos.
Embora no fosse necessrio aprender a lngua para conduzir a pesquisa, a
companhia do linguista Alexandre Pdua, durante meus primeiros dias na aldeia
Mairowy, foi importante para que eu me familiarizasse com as tcnicas da pesquisa
lingustica e com as palavras soltas em apiak pronunciadas pela ltima mulher falante,
D. Laura, fato que contribuiu para que ela confiasse na forasteira branca que no se
cansava de perguntar sobre um passado que ela se esforava para esquecer.
Se, por um lado, conduzir a pesquisa em lngua portuguesa me proporcionou
uma insero mais rpida naquele universo social, por outro lado no foi to fcil
superar as armadilhas da comunicao aparentemente fluida. Termos locais como
desmentido, sombra, bicho, coisa ruim, entre outros, condensam a riqueza de
um universo semntico outro, que pode, entretanto, permanecer inacessvel se as
palavras forem naturalizadas, isto , se o pesquisador no as estranhar e no lhes der a
mesma ateno devida a conceitos expressos em lngua indgena.
Morei na aldeia Mairowy (baixo rio Teles Pires) de abril a junho de 2007 e, na
aldeia Mayrob (Rio dos Peixes), de julho a dezembro do mesmo ano; viajei de voadeira
at a aldeia Pontal, onde passei dez dias em maio de 2007. Tive a chance de retornar ao
Mairowy e ao Pontal em outubro de 2008, por vinte dias, para coordenar os trabalhos
de identificao da rea do Pontal dos Apiaks, contemplando a indicao da presena
de ndios isolados na regio. Apenas visitei Bom Futuro, Vista Alegre Figueirinha e
Minhocuu.
Gostaria de destacar que a durao da pesquisa de campo e o tempo de
reflexo sobre os dados obtidos so suficientes para comear a desvendar a
complexidade da histria e da configurao sociocultural atual dos apiaks. Novas
leituras, debates, levantamentos documentais e viagens a campo sero necessrios,
contudo, para aprofundar a compreenso dessa realidade to rica e multifacetada.

Breve panorama da regio dos formadores do Tapajs


A regio a que se refere esta tese estende-se aproximadamente de 12 a 7 de
Latitude sul e de 57 a 59 de Longitude oeste, compreendendo a rea dos formadores
do rio Tapajs. A bacia hidrogrfica do Tapajs drena uma rea de 460.200 quilmetros
quadrados nos estados de Mato Grosso, Par e Amazonas. Os principais formadores
desse rio so o Arinos e o Juruena. O Arinos, que tem a maior vazo dgua, percorre
17

cerca de 760 quilmetros em territrio mato-grossense at se encontrar com o Juruena;


as guas deste ltimo, por sua vez, fluem por 900 quilmetros, formando a diviso dos
territrios mato-grossense e amazonense em seu baixo curso, at que, a partir da
confluncia com o Teles Pires, divisa natural com o estado do Par, do origem ao
Tapajs, o qual, aps banhar um territrio de aproximadamente 800 quilmetros,
alcana o Amazonas pela margem direita. O Arinos e o Teles Pires nascem na Serra
Azul, e o Juruena, na Serra dos Parecis, ambas localizadas no sul do Mato Grosso. As
importantes quedas dgua desses rios serpenteados inviabilizam a navegao.
O Juruena e o Teles Pires apresentam guas claras e ricas em peixes. Esses
rios margeiam a Serra dos Apiacs, que se estende mais para o norte, e a Serra dos
Caiabis, que se prolonga na direo sudeste. Os cursos baixos de ambos os rios
inscrevem-se na regio chamada de Serra e Blocos Planlticos do Norte, uma rea de
floresta ombrfila aberta, com densidade populacional de menos de um habitante por
quilmetro quadrado, as cidades de Alta Floresta (MT) e Itaituba (PA) representando os
dois plos regionais. O Rio dos Peixes, tributrio oriental do Arinos, situa-se numa rea
de transio Amaznia-Cerrado, no Planalto e Chapada dos Parecis, com densidade
populacional variando de um a cinco habitantes por quilmetro quadrado, tendo a
cidade de Juara (MT) como plo regional. Toda esta rea situa-se a menos de 400
metros acima do nvel do mar, apresentando relevo plano, suave ondulado e
montanhoso e clima equatorial quente e mido. As principais atividades econmicas
regionais so a agricultura diversificada, a pecuria de corte e o extrativismo vegetal
(Miranda & Amorim 2001).
O tringulo de mata fechada compreendido pelo baixo curso do Juruena e do
Teles Pires e tendo por vrtice a vila da Barra de So Manoel chamado regionalmente
de Pontal do Juruena ou Pontal dos Apiaks. a ltima rea de floresta preservada no
Mato Grosso; as plantaes de soja na ltima dcada, partindo tanto do sul quanto do
norte, ainda no alcanaram a regio, que se estende como um pequeno mas denso
tapete verde em meio devastao generalizada. A toponmia regional, oficializada no
incio do sculo XX, consagra a ocupao tradicional apiak.6 As principais referncias
geogrficas citadas nesta tese so representadas no Mapa Etno-Histrico (Figura 1.1).
O regime das guas divide-se em duas estaes bem marcadas: a cheia ou
inverno, perodo das chuvas, que vai de novembro a abril, aproximadamente, e a seca
6

Alm da Serra dos Apiacs, do Pontal dos Apiaks e do municpio de Apiacs (MT), h dois rios
Apiacs, um que faz barra no curso mdio do Teles Pires, outro, no curso baixo do Arinos.

18

ou vero, que se inicia mais ou menos em maio e se encerra em outubro, alterando-se


radicalmente a paisagem e a oferta natural de alimentos. Nos meses de junho, julho e
agosto, pode ocorrer a friagem, fenmeno caracterstico da regio amaznica, que faz
as temperaturas carem bruscamente por dois ou trs dias consecutivos.

********
A regio dos formadores do Tapajs constitui uma rea cultural tupi. Em
linhas gerais, os tupis so povos agricultores, que estabelecem aldeias grandes e
permanentes e se expandem pelo territrio em ritmo lento, sem abandono total do
assentamento de origem (Noelli 1996). A organizao social tem sido caracterizada por
alguns antroplogos como patrilinear e patrilocal, com possibilidade de uxorilocalidade
temporria e existncia de metades (Laraia 1971); a relao entre sogro e genro
constitui o ponto de apoio da famlia extensa, unidade social mais importante
(Fernandes 1949; Schaden 1962; Viveiros de Castro 1986). Hlne Clastres (1978)
afirmou que a ciso radical entre os domnios poltico e religioso um trao tupiguarani marcante; endossando esta afirmao, Viveiros de Castro (1986) estudou a
concepo dualista da alma para os tupi-guaranis, que contempla um aspecto ligado
animalidade e outro ligado divindade. Tais povos so conhecidos pela frouxido
morfolgica combinada a um rico e complexo universo cosmolgico. Podemos dizer,
ainda, que as sociedades tupi-guaranis so sociedades performativas (Sahlins 1990),
dinmicas e abertas ao evento (Viveiros de Castro 1986).
Os tupis amaznicos mais conhecidos so: akwwa (assurini do Tocantins e
parakan), arawet, assurini do Xingu, cinta-larga, guaj, juruna, kamayur, karitiana,
kayabi, kawahib (subgrupos parintintin, tenharim e uru-eu-wav-wav), munduruku,
sater-maw, suru, tapirap, tenetehara (guajajara e temb), urubu kaapor, waipi e
zo. No Brasil Central, h os av-canoeiros (tupi-guaranis). O ramo tupi-guarani do
sul formado pelos subgrupos kaiov, mby, nhandeva, alm dos xets.
A. Mtraux (1979) props que a rea original de disperso dos tupi-guaranis
est entre a margem direita do Amazonas, o Paraguai, o Tocantins e o Madeira, hiptese
endossada por A. Rodrigues em sua reconstruo do proto-tupi-guarani, na qual indica
que as lnguas da famlia tupi-guarani contemporneas so manifestaes diferenciadas
do que foi no passado uma mesma lngua, e que as propriedades por elas
compartilhadas so a herana comum conservada sem diferenciao ou apenas com
diferenas menos profundas (1984/85: 34). O apiak classificado no ramo VI da
19

famlia tupi-guarani, juntamente com o kaiabi, o juma, o parintintin e o tupi-kawahib


(Rodrigues 2002).
Ao lado dos apiaks, vrios outros povos tupi-guaranis, como os avcanoeiros (Silva 2005), os tapiraps (Wagley 1988) e os xets (C. Silva 1998), tiveram
uma histria trgica, mas conseguiram se recompor, amparados pela legislao
indigenista definida na Constituio Federal de 1988.
preciso ressaltar que as doenas introduzidas pelos conquistadores tiveram
impacto decisivo na depopulao amerndia, desde o sculo XVI. Detendo-se no papel
poltico das epidemias no Novo Mundo, autores como B. Albert (1992), Cook & Lovell
(1991), J. Hemming (1978), A. Ramos (1995) e D. Reff (1991) demonstraram que elas
consistiram numa vantagem estratgica suplementar para o empreendimento colonial
nas Amricas, na medida em que os europeus souberam tirar proveito da reduo
drstica das populaes indgenas e do pnico causado pelas doenas contagiosas que
grassou mesmo entre aqueles que no foram diretamente atingidos por elas ou que lhes
sobreviveram. Na dcada de 1950, Darcy Ribeiro (1979) chegou a decretar o fim
iminente das populaes indgenas no Brasil, devido s doenas e ao descaso do
Estado. Todavia, os sobreviventes das epidemias deram mostras de admirvel
resilincia.

Os apiaks
O hiato entre os apiaks de papel do sculo XIX e os apiaks de carne e
osso com quem convivi gigantesco, como seria de esperar. O abandono da
antropofagia, o trgico declnio populacional, a renncia lngua e a tudo o que ela
implica certamente tiveram um impacto indelvel sobre o povo, porm o mais
surpreendente para mim foi encontrar pessoas altivas, alegres, pacatas e sempre
dispostas a estabelecer vnculos com forasteiros. Meus anfitries sobretudo os
homens influentes, mas no s eles deram-me a impresso de que no acreditam em
uma hierarquia relacional preestabelecida, agindo como se sempre fosse possvel
modificar as disposies do outro por meio da conversa, no apenas para obter ganhos
materiais, mas principalmente para consolidar alianas. como se qualquer aliado
fosse bom em princpio, a despeito da desconfiana que inexoravelmente se guarda em
relao a estranhos.
Uma das caractersticas mais marcantes da vida social apiak sua relao
com a gua. O rio fornece aos apiaks a base da alimentao cotidiana; o trecho
20

domesticado de sua margem, a beira, o principal foco da sociabilidade alde;


atravs de seu curso, as pessoas influentes conduzem as relaes com o mundo exterior;
na gua, os apiaks esto em casa. O papel geopoltico que o governo colonial e os
missionrios vislumbraram nos rios amaznicos desde o sculo XVIII faz eco ao
comentrio de Serafim Leite, importante cronista da Companhia de Jesus no Brasil,
segundo o qual na Amaznia tudo se passava beira dum fio de gua, e em geral na
foz de um rio ou perto dela (1943: XII). Os apiaks so grandes conhecedores dos rios
que formam o Tapajs. Como indicam os dados histricos sobre essa regio, que
comeam a ser produzidos de forma mais sistemtica no sculo XVIII, os apiaks
cruzavam as guas do Juruena e do Arinos em busca de pedras para seus machados e de
taquaras para suas flechas; neste longo trajeto, atravessavam territrios de povos
inimigos com os quais guerreavam.
As guerras no ocorriam de modo arbitrrio, mas se inseriam na lgica da
reciprocidade da vingana e da obteno de guerreiros inimigos destinados a ritos
antropofgicos, tpica dos tupis quinhentistas. Com efeito, a rea que vai das cabeceiras
do Arinos at a foz do Juruena no Tapajs era dominada, at o sculo XVIII, por
grupos do tronco tupi, que a dividiam com alguns grupos do tronco macro-j
(Menndez 1981/82, 1989, 1992). Alm de sua importncia para a integrao tribal de
cada um desses povos, as guerras eram tambm um dispositivo de conquista e ocupao
do territrio. Ao que tudo indica, a guerra e a antropofagia eram os pilares em torno dos
quais se estruturava a organizao social apiak: os homens ganhavam nomes ao matar
um inimigo; os grandes guerreiros podiam ter vrias mulheres; os xams conduziam o
grupo at os inimigos; as pinturas faciais marca distintiva do povo eram realizadas
aps a participao em ritos antropofgicos (Castelnau 2000; Guimares 1865;
Nimuendaju 1963).
Hoje em dia os apiaks rememoram vagamente um passado glorioso em que
contavam com grandes chefes e com xams poderosos, mas sustentam uma autoimagem de povo pacfico e hospitaleiro, e, se j no buscam inimigos fora para
canibalizar ou com cuja cabea festejar, empenham-se em captar aliados estrangeiros
que constituem o gabarito para a avaliao do prprio grupo, organizado sob a forma de
comunidade. Observa-se entre eles o desejo de estabelecer parcerias produtivas,
sejam elas de ordem matrimonial, poltica ou econmica. A formao comunitria,
alis, no pode ser pensada fora da interao com outros povos indgenas, missionrios,

21

regates,

patres

seringalistas,

particulares,

rgo

indigenista

agentes

governamentais.
Durante a pesquisa de campo, os caciques gostavam de me dizer que apiak
o nome de um marimbondo que, quando atacado, viaja longas distncias para se vingar
do agressor com uma ferroada dolorosssima: Ns somos muito bons, mas, se mexer
com a gente, ns revidamos. A ferrada da caba apiak a mais doda que existe,
advertiam. Embora E. Wenzel (1999) apresente outra definio para o nome apiak
uma variante do termo tupi apiaba, que significa pessoa, gente, homem ,
bastante significativo o sentido que os homens influentes decidiram enfatizar na
interao com os brancos. 7 J os kaiabis chamam os apiaks de tapy ysing, gente de
pele clara.
Os apiaks com quem convivi falam sobre guerra como o ltimo recurso em
situaes de conflito intenso, quando a diplomacia fracassa. Os apiaks dizem que j
no tm xams (o que no significa, absolutamente, que no acreditam em seres
sobrenaturais), mas, quando se sente necessidade de um, costuma-se pagar pelos
servios de xams kaiabis da aldeia Tatu (Rio dos Peixes) ou de outras etnias
provenientes do Parque do Xingu. Ainda que os apiaks reconheam que existem pajs
do bem, o termo paj em geral empregado como sinnimo de feiticeiro.
Desde o sculo XVIII, pelo menos, os vrios povos que ocupavam e
exploravam distintamente aquela poro da Amaznia meridional reagiram de formas
diversas ao avano dos colonizadores, cindindo-se, amalgamando-se e se combinando
em blocos micro-regionais misturando-se, portanto. Neste sentido, embora
focalizemos as narrativas e a forma de organizao social dos apiaks, estabelecemos
que elas devem ser inseridas numa teia de alianas, trocas e rivalidades que os ligam
aos mundurukus e kaiabis dos baixos cursos do Juruena e do Teles Pires, configurandose uma rede social regional (Heckenberger 2001: 91), a qual possibilitou em grande
medida a sobrevivncia dos apiaks como povo. Tal rede apresenta-se hoje como uma
trama de relaes polticas, comerciais e matrimoniais instveis e tensas, no interior da
qual a mistura, a despeito de ser um processo do qual participaram vrios povos
indgenas, mobilizada apenas pelos apiaks como categoria explicativa de um passado
marcado por turbulncias. A grande continuidade parece residir, pois, na necessidade da
troca com o exterior para a reproduo dos apiaks, um tema clssico nas pesquisas
7

Lembro que a palavra kawahiv (um etnnimo) tambm significa marimbondo (Nimuendaju 1963b:
284).

22

sobre povos tupis.


Pensar a configurao sociocultural de um povo em termos de processo
histrico implica pautar a anlise pelas premissas do dinamismo e dos vnculos
externos estabelecidos, o que no constitui novidade na seara da antropologia social.
Data de mais de cinquenta anos a afirmao de Leach de que toda sociedade real um
processo no tempo (Leach 1996: 69). A crtica de Leach a Radcliffe-Brown e aos
funcionalistas ingleses contida em seu estudo sobre a regio das Colinas de Kachin, no
norte da antiga Birmnia, incide justamente sobre o emprego de conceitos como
equilbrio e integrao pelos antroplogos. Para Leach, um sistema em equilbrio
esttico ou um todo coerente somente poderia existir em nvel de modelo, j que a
realidade eivada de incongruncias, as quais, manipuladas pelas pessoas, conduzem
mudana estrutural (: 71). Num momento em que os antroplogos sociais concentravam
esforos para compreender a fundo as especificidades sociais e culturais de um nico
povo, isolando-o temporal e espacialmente, Leach descartou o conceito de sociedade
como sinnimo de unidade discreta e empenhou-se em apreender a variabilidade
estrutural em um sistema estrutural extenso, duradouro e dinmico:
Em qualquer regio geogrfica que carea de fronteiras naturais bsicas,
provvel que os seres humanos das regies adjacentes do mapa tenham
relaes uns com os outros pelo menos at certo ponto , no importa quais
possam ser seus atributos culturais. Na medida em que essas relaes so
ordenadas e no totalmente fortuitas, h implcita nelas uma estrutura social (:
79).
Tal sistema de variao, de acordo com o autor, no tem nenhuma estabilidade
no tempo, de modo que aquilo que se pode observar num dado momento apenas uma
configurao momentnea de uma totalidade existente num estado em fluxo (: 125).
Proponho que a situao dos apiaks pode ser pensada a partir da abordagem tericometodolgica de Leach e do conceito de sistema social, definido como estrutura ideal
de relaes persistentes entre pessoas e grupos de pessoas (: 196), na qual os smbolos
so alvos de disputa constante.
A virada para o sculo XX foi um perodo particularmente desastroso para os
apiaks e outros povos que viviam na rea de confluncia dos rios Juruena e Teles
Pires. A empresa da borracha se impusera como alternativa econmica minerao,
mas o velho problema do escoamento dos produtos da floresta persistia. O projeto de
ligao entre Cuiab e Belm, que data de meados do sculo XVIII, estava prestes a se
consolidar; a rota Arinos-Juruena-Tapajs tornava-se, enfim, uma das principais vias de

23

penetrao do centro do continente, e o maior obstculo a superar era a obteno de


mo-de-obra barata. nesse contexto que podemos compreender os vrios massacres
sofridos pelos apiaks e seu violento decrscimo populacional, agravado por epidemias.
Realdeados no Rio dos Peixes, na segunda metade do sculo XX, os apiaks
somam hoje perto de mil pessoas, distribuindo-se em sete aldeias localizadas nos rios
dos Peixes, Teles Pires e Juruena, e tambm em cidades dos estados de Mato Grosso,
Amazonas e Par. Organizam-se com base na famlia extensa, verificando-se uma
tendncia uxorilocalidade, e na diviso do trabalho por gnero. As famlias extensas
gozam de grande autonomia poltica e econmica na aldeia, embora a figura do cacique
seja indispensvel na conduo dos assuntos de interesse comum, designadamente na
interao com o Estado e com brancos compradores de castanha-do-par. O prestgio
poltico do chefe, que raramente se transforma em poder de mando, advm da
habilidade retrica e da capacidade de distribuir alimentos e bens industrializados. A
residncia, estruturada a partir do princpio de reciprocidade, um importante fator de
pertencimento tnico. As concepes sobre a formao do ser, o componente animal da
pessoa e a alma, que pode se separar temporariamente do corpo, resistiram a sculos de
catequizao. A viso de mundo, a concepo de pessoa e a organizao sociopoltica
dos apiaks seguem uma lgica claramente coletivista (por oposio lgica burguesa,
individualista).
Informaes sobre a populao e a localizao de cada uma das aldeias
apiaks contemporneas, bem como croquis e dados demogrficos das aldeias Mairowy
e Mayrob, encontram-se aps o captulo 3.
As hipteses avanadas para os apiaks podero ser combinadas aos
resultados das pesquisas que esto sendo desenvolvidas entre os kaiabis do Parque do
Xingu, por Lea Tomass, e entre os mundurukus do alto Tapajs, por Jayne Collevatti, a
fim de recompor os contornos da matriz organizacional tupi da rea dos formadores do
Tapajs.

A tese
Nas pginas que se seguem, buscarei integrar plenamente a histria
organizao sociopoltica e ao simbolismo apiak. As principais inspiraes tericometodolgicas so fornecidas pelos ensaios reunidos nas coletneas Pacificando o
Branco (Albert & Ramos 2002) e Time and Memory in Indigenous Amaznia
(Fausto & Heckenberger 2007), que endossam a premissa lvi-straussiana da abertura
24

amerndia para o Outro (Lvi-Strauss 1993: 14).


Desde j, esclareo que o valor explicativo do caso apiak reside na
possibilidade de apreender os mecanismos que permitiram a um conjunto de pessoas
com uma histria adversa comum, j quase despojado de sinais culturais diacrticos,
continuar a se ver e a ser visto como um povo diferenciado.
Esclareo, tambm, que o simbolismo e a organizao sociopoltica apiaks
sero analisados em seus prprios termos, e no a partir de um modelo terico
preestabelecido. A cosmologia apiak debrua-se minimamente sobre a caa, a guerra e
o xamanismo, elementos que, de acordo com a abordagem ps-estruturalista de
Viveiros de Castro (1986), definem os povos tupi-guaranis. A nfase que este autor pe
sobre tais dispositivos, que articulam as relaes externas do grupo local
respectivamente com animais, povos inimigos e espritos, pode levar a uma
compreenso distorcida do grupo local e da vida social em geral, especialmente de seu
aspecto cotidiano. Sob essa perspectiva, o grupo local logicamente apreendido como
locus da identidade, pacfico, esttico e estril, um nvel a se ultrapassar para encontrar
a alteridade, o dinamismo ou o potencial produtivo (cf. Viveiros de Castro 2002: 418),
mais valorizados.
Em dilogo com Viveiros de Castro, Carlos Fausto elaborou um importante
modelo terico sobre a guerra amerndia, que revela a posio central ocupada pelo
Outro na constituio da identidade de diversos povos sul-americanos. Ao tratar a
guerra como uma forma de socialidade caracterizada como consumo produtivo, Fausto
chama a ateno para o aspecto de destruio e o gasto produtivo que a caracterizariam,
sugerindo com isto que em economias do dom a produo de pessoas um fenmeno
da esfera produtiva, e no do consumo (Fausto 2001: 327). Sua posio a de que,
para compreender o processo produtivo amerndio, deve-se olhar tambm para a
destruio e o consumo dos corpos, a diferena subjetivada do inimigo morto
consistindo no principal butim das guerras de vingana do passado.
Os povos indgenas da Amrica do Sul, especialmente os tupis, teriam
escolhido a guerra e o xamanismo como formas privilegiadas de relao com o exterior,
o que, de acordo com Fausto, corresponderia necessidade de ultrapassar a questo do
poder individual, reinscrevendo-a nas relaes entre pessoas pblicas ou corpos
polticos (Fausto 2001: 246). Sob esta perspectiva, o mbito local e o parentesco
apresentam-se como esferas a serem transpostas, e o foco da anlise volta-se para as
relaes entre os diferentes nveis sociolgicos. Fausto apoia-se em Claude Lefort
25

(1999) para sublinhar o fundamento poltico da sociedade, partindo da premissa de que


o poder uma instncia simblica que, propriamente falando, no estava nem no
exterior, nem no interior do espao do qual ela inferia sua identidade, mas que lhe
proporcionava um dentro e um fora (: 309).
Fausto debate a questo da relao entre esfera pblica e esfera privada com
Marilyn Strathern e Joanna Overing,8 antroplogas que focalizaram, de outro modo, a
produo de pessoas em mbito local. O autor prope uma redefinio dessas esferas
com base em ideias oriundas da antropologia poltica, de acordo com as quais o que
prprio do poltico apropriar-se da representao da totalidade, relegando ao
domstico a particularidade (Fausto 2001: 240). Assim, a poltica faccional posta
em oposio ao poltico, sendo associada dissenso e ao discurso privado e velado da
fofoca (: 241). Para Fausto, entre os parakans (tupi-guaranis), a coletividade
masculina seria capaz de excluir as mulheres e de se sobrepor esfera domstica; nesse
sentido, os parakans orientais teriam constitudo um espao cerimonial exclusivo dos
homens, uma arena poltica (a tekatawa) (: 244), uma esfera pblica na qual decises
so tomadas e conflitos, mediados (: 243). Afastando-se da abordagem de Overing,
Fausto sugere que esta representao da comunidade local como uma totalidade
(provisria e posicional) manifesta-se na poltica externa, nas relaes entre grupos (...)
determinadas pela lgica do sistema ritual (: 247).9
De sua parte, os apiaks no se concentram tanto nas esferas da produo e do
consumo, mas sim na circulao de pessoas e objetos. A respeito deles, no possvel
dizer que o exterior um nvel lgico caracterizado seja pela reciprocidade negativa,
seja pela disponibilidade de alteridades a serem predadas e digeridas, necessrias
constituio da identidade do povo. O exterior antes um espao social diferente da
comunidade, de onde provm, todavia, pessoas e objetos a partir dos quais as pessoas
organizam suas vidas. O exterior no , pois, a eptome da alteridade una, assim como a
comunidade no a eptome da identidade estril o exterior, assim como o interior do
grupo local, so eminentemente ambivalentes.
8

Enquanto Fausto fala em consumo produtivo, Strathern fala em produo consumptiva, inspirandose em Christopher Gregory.
9 Em artigo posterior ao livro, Fausto tenta aproximar comensalidade e canibalismo, tratados como
formas distintas, mas dinamicamente articuladas, de produo de pessoas e da socialidade na Amaznia
(Fausto 2002: 7), estabelecendo um dilogo mais ntimo com a escola americanista britnica,
identificada proposta terico-metodolgica de Overing e seus ex-alunos. A concluso do texto enfatiza
a produo local de pessoas, que no havia sido devidamente explorada no livro: A questo tica na
Amaznia parece, assim, incidir antes sobre as relaes entre os parentes do que sobre as relaes entre
humanos e animais (Fausto 2002: 35; ver tambm Kirsch 2006).

26

As relaes internas comunidade e a vida neste mundo so maximamente


elaboradas pelos apiaks, sobressaindo-se a concepo de que o Outro interior, tanto
do ponto de vista fisiolgico como do ponto de vista poltico. Parente (entendido
como semelhante) todo aquele que se comporta como tal e que vive com os seus;
contudo, admite-se que qualquer co-residente pode tornar-se bicho10 e praticar aes
nefastas, uma vez que a poro interior da pessoa animal. Por outro lado, os caciques,
mediadores culturais e polticos entre o mundo dos brancos e o mundo da aldeia, por
vezes extrapolam de seus atributos e se desviam do padro moral estabelecido. Quando
ocorrem desvios, eles so combatidos por meio da fofoca, dispositivo tradicional que
constrange o homem influente de tal modo que ele acaba por abdicar do cargo, e ento
um novo ciclo poltico se inicia.
Com o intuito de respeitar a singularidade da experincia histrica apiak, optei
por no lhe impor um modelo terico rgido. Eu no quis encaixar os dados numa frma
pr-moldada e pretensamente objetiva; preferi, ao contrrio, me concentrar naquilo que
os apiaks me diziam e naquilo que eu vi e vivi enquanto morei em suas aldeias, por
mais familiar que tudo me parecesse. Minha opo terica tambm uma opo tica,
uma vez que eu pretendia estabelecer com eles um dilogo efetivo. A maior dificuldade
terica a superar era o estatuto da afinidade, da relao de compadrio e do vnculo entre
as famlias extensas que compem uma aldeia. Eu no pretendi sustentar, como fez R.
Murphy (1960) a respeito dos mundurukus, o postulado de uma estrutura harmnica
corrompida pela histria nem tampouco cair no extremo oposto de analisar o parentesco
sem considerar o processo histrico.
Murphy e outros antroplogos seus contemporneos esperavam que os sistemas
de parentesco amaznicos fossem harmnicos, isto , a um sistema de descendncia
patrilinear deveria corresponder necessariamente uma regra de residncia uxorilocal, a
anomalia munduruku consistindo, assim, na divergncia entre patrilinearidade e
uxorilocalidade, supostamente surgida no sculo XX, um paradigma fortemente
criticado por A. Ramos (1978). De minha parte, procurei apreender o modo de
funcionamento e as concepes mobilizadas pelos apiaks para justificar uma
atualizao possvel de um sistema de parentesco que, num momento de crise, abriu-se
para o arriscado jogo das alianas matrimoniais.

10

O termo bicho refere-se a uma entidade ou ao sobrenatural; animal refere-se s espcies que
vivem na mata ou que so domesticadas.

27

Lembro aqui o Marco Polo do livro As Cidades Invisveis, de Italo Calvino,


que, ao folhear o imponente atlas do Grande Khan, cogita sobre a distino entre o
catlogo de formas e a experincia da viagem:
Sabe-se que o nome dos lugares muda tantas vezes quantas so as suas
lnguas estrangeiras; e que cada lugar pode ser alcanado de outros lugares, pelas
mais variadas estradas e rotas, por quem cavalga, guia, rema, voa.
Parece que voc conhece melhor as cidades por meio do atlas do que
visitando-as pessoalmente disse o imperador a Marco, fechando o livro de
repente.
E Polo:
Viajando percebe-se que as diferenas desaparecem: uma cidade vai se
tornando parecida com todas as cidades, os lugares alternam formas, ordens,
distncias, uma poeira informe invade os continentes. O seu atlas mantm intatas
as diferenas: a multiplicidade de qualidades que so como as letras dos nomes.
(Calvino 2008: 125)
A rota que escolhi para chegar at a viso de mundo e a organizao
sociopoltica dos apiaks foi analisar as categorias misturados, mansos,
civilizados, bravos, comunidade e gente que vira bicho como expresses de
historicidade e socialidade. Isto em conformidade com importantes trabalhos
produzidos desde os anos 1980, inspirados na proposta de M. Sahlins. O conceito de
historicidade, inspirado nos trabalhos de C. Lefort,11 aponta para modos singulares de
elaborao simblica sobre o evento, permitindo superar impasses criados pelos
conceitos de memria e conscincia histrica. Por sua vez, o conceito de socialidade,
empregado por M. Strathern como ferramenta analtica para designar uma forma ativa
de criao e manuteno de relaes sociais, que envolve as pessoas numa trama de
interdependncias mtuas, permite capturar a viso prpria dos indgenas sobre o
sentido das suas vidas e a dinmica das suas atuaes no mundo (cf. McCallum 1998:
128).12 Pode-se dizer que socialidade correlata da humanidade como ideal moral
(humanity), que se distingue da humanidade como espcie (humankind), nos termos de
R. Wagner. O conceito de socialidade tambm abrange os aspectos moral, sentimental e
11

Lefort (1979) define sumariamente historicidade como a relao geral que os homens mantm com o
passado e o futuro. Ele prope que todas as sociedades tm de se reproduzir a cada novo dia e que
nenhuma compreensvel nos limites de um presente, sugerindo que Coloquemo-nos o problema em
outros termos: admite-se que haja, em toda sociedade, acontecimento, transformao cultural e retomada
vvida do passado pelo presente; possvel dizer, porm, que a reao ao acontecimento, transformao,
retomada do passado tenha sempre a mesma significao? (Lefort 1979: 46) E prossegue ponderando
que na sociedade a transformao no a passagem de um estado para outro, mas o encaminhamento
deste debate que antecipa o futuro referindo-o ao passado. O que significa ainda dizer que o histrico no
reside no acontecimento enquanto tal ou na transformao enquanto tal, mas em um estilo das relaes
sociais e das condutas em virtude do qual h colocao em jogo do sentido (: 47).
12
Ao longo da tese, retomarei diversas vezes os valiosos insights de Strathern sobre a pessoa e o social na
Melansia.

28

esttico da forma de constituio de relaes, filo explorado por J. Overing e exalunos.


Significativamente, P. Gow, um dos ex-alunos de Overing, enfrentou de modo
competente uma situao muito semelhante dos apiaks. Em sua monografia sobre os
aculturados povos nativos do baixo Urubamba, Gow tratou a categoria misturados
como cerne da socialidade nativa e como elemento mdio de um sistema classificatrio
que tem como plos os povos selvagens da floresta e os brancos citadinos. Um sistema
classificatrio anlogo foi elaborado pelos apiaks, que acreditam que um grupo de
parentes arredios ainda vive na rea do Pontal do Mato Grosso. Mesmo se definindo
como mansos e se organizando em comunidade, os apiaks com quem convivi no
admitem ser confundidos com os brancos regionais, aos quais se opem com base no
modo de vida coletivista. No entanto, a opo de Gow por no levar em considerao o
discurso poltico da identidade tnica, como se ele no fosse uma expresso legtima do
sistema classificatrio nativo, me parece inadequada. De minha parte, optei por
incorporar etnografia apiak sua prtica poltica, que no deve ser dissociada de sua
viso de mundo e de sua organizao social.
A comunidade apiak, um conjunto de famlias extensas sustentado
simbolicamente pela premissa de que todos os co-residentes so parentes, a formao
sociopoltica contempornea que condensa a historicidade apiak, aps o perodo em
que se uniram pessoas de lugares, lnguas e costumes diferentes, numa rea cultural
marcadamente tupi, para formar novos arranjos sociais, no cenrio da nacionalizao.
Esta formao aponta para a centralidade da residncia para os indgenas, uma vez que
se cr que a co-residncia capaz de mitigar a poro animal da pessoa, bem como a
alteridade dos parentes afastados e dos forasteiros. A consolidao da comunidade na
segunda metade do sculo XX deu ensejo a uma poltica matrimonial que deixa em
segundo plano as unies com kaiabis, mundurukus e regionais conhecidos, as quais
possibilitaram, contudo, o crescimento demogrfico e a reestruturao poltica dos
apiaks.
Desde os anos 1990, os apiaks tm preferido se casar com consangneos
distantes (como, por exemplo, a filha da filha da irm da me do pai (ffimP) para ego
masculino), mudana que confirma a tese de Lvi-Strauss a respeito de o parentesco ser
um dispositivo social que pode ser utilizado como parte de uma estratgia de abertura
ou fechamento para a histria, no sentido de remodelar ou manter a estrutura social.
Esta tese apresentada, sugestivamente, num artigo em que o autor emprega o conceito
29

de sociedade de casas (aquelas em que filiao e aliana se equivalem, a distino entre


linha paterna e linha materna parcialmente obliterada e a distino entre endogamia e
exogamia escamoteada pela linguagem do parentesco) e esclarece a distino
conceitual entre sociedades quentes e frias, enfatizando que se trata de duas atitudes
ideais bsicas frente histria. A propsito do casamento a uma distncia maior que
entre primos, Lvi-Strauss declara que ele geralmente adotado por sociedades que,
como acredito ser tambm o caso dos apiaks, s aspiram a se reproduzir e se submetem
mudana sem desej-la, encontrando no jogo das alianas matrimoniais o meio de se
abrirem histria e s condies de um futuro previsto (Lvi-Strauss 1999: 13).
Embora para os apiaks a afinidade no tenha grande rendimento simblico em
nvel local, ela parece servir como modelo para as relaes com os forasteiros em geral,
como comprova a narrativa de origem dos apiaks mansos (ver captulo 1), elemento
que os equipara a vrios povos amaznicos entre os quais, mesmo quando no h
afinidade real (matrimonial), a afinidade (potencial) predomina sobre a consanguinidade
enquanto princpio relacional (Viveiros de Castro 2002: 411).
Proponho, assim, que a resilincia demonstrada pelos apiaks merece figurar
no inventrio das culturas que, a exemplo do atlas do Grande Khan, precisamos
consultar para orientar nossas pesquisas. Enquanto se abre para o mundo, o inventrio
se complexifica e se enriquece. provvel que, neste movimento, venhamos a
compreender que ampliar o inventrio no nossa principal tarefa, e que passemos a
recusar a necessidade de sua existncia, em favor de formas menos assimtricas e
impositivas de conhecimento do Outro.
********

Para apreendermos as concepes apiaks sobre mudana, organizao


sociopoltica e identidade tnica, iniciaremos pelo cruzamento de relatos escritos e
narrativas orais sobre o passado. No captulo 1, delinearemos a agencialidade apiak
em meio s alteraes sociais profundas desencadeadas em meados do sculo XIX,
designadamente o trabalho forado, os deslocamentos espaciais, a catequizao, a
miscigenao, as perseguies, as epidemias e o consequente declnio populacional.
No captulo 2, detenho-me na formao da identidade tnica e procedo a uma
reviso bibliogrfica sobre etnicidade; as categorias sociais mansos/misturados,
bravos/puros e espalhados sero abordadas enquanto expresses da historicidade
apiak, levando-se em conta o papel do territrio no processo de reestruturao do
30

povo.
No captulo 3, descrevo a vida em comunidade, concentrando-me na
socialidade domstica e atentando para a articulao da lgica da ddiva economia
capitalista na qual esto inseridos os apiaks mansos.
No captulo 4, estudo as concepes e prticas nativas relativas ao parentesco
e pessoa, focalizando as relaes de parentesco e a ideologia matrimonial atuais, com
ateno especial instituio do compadrio.
Finalmente, no captulo 5, sero analisadas a dinmica do salo, a conduta das
pessoas influentes, a fala poltica informal (fofoca) e os mecanismos de obteno de
prestgio; estudo ainda os modos de articulao entre as vrias aldeias, bem como sua
insero em estruturas mais amplas, no interior da rede social da regio do rios
formadores do Tapajs.

Como de praxe, utilizo nomes fictcios para preservar o anonimato dos


indgenas.
As tradues dos trechos transcritos de obras em lngua estrangeira so de
minha autoria.

31

Pequeno Glossrio de Termos Regionais

Arig: migrante nordestino, empregado nos seringais


Banzeiro: agitao da gua do rio provocada pelo vento forte
Barraco: depsito de mercadorias e de bolas de borracha numa colocao
Colocao: o centro de um conjunto de estradas de seringa, geralmente
dotado de uma construo para abrigar os seringueiros e seus utenslios
Comunidade: formao sociopoltica caracterizada pela presena de salo,
escola, posto de sade, onde ocorrem eventos festivos e reunies de cunho
poltico
Guaxeba: homem de confiana do encarregado de um seringal ou barraco;
capanga
Liderana: pessoa influente na comunidade (cacique, vice-cacique,
professor, conselheiro etc.)
Misturado: descendente de um(a) apiak casado(a) com um(a) indgena de
uma etnia do tronco tupi ou com um(a) arig
Rebojo: redemoinho fluvial, causado por ventos fortes
Ribeirinho: indgena que mora em stio margem do rio, e no na aldeia,
embora mantenha vnculos de diversas naturezas com os moradores desta
Tratar (peixe ou carne de caa): retirar as escamas, plos e vsceras
Varar: cruzar, atravessar

32

Primeira Parte
Historicidade e Etnicismo

33

Prlogo

Nossa reflexo sobre as categorias apiaks que exprimem tempo, mudana e


agencialidade ser desenvolvida no horizonte conceitual da historicidade, conforme a
abordagem terico-metodolgica que se consolidou na antropologia social, nos anos
1980, como reao ao a-historicismo estruturalista, expresso principalmente na clebre
oposio lvi-straussiana entre sociedades quentes e sociedades frias, apresentada
em 1961.
Muito se escreveu a respeito da impropriedade de tais metforas, embora LviStrauss tenha esclarecido que no falava de tipos distintos de sociedade, mas sim de
imagens subjetivas que as sociedades fazem de si prprias (Lvi-Strauss 1999: 10;
ver tambm Goldman 1999). Lvi-Strauss demonstrou interesse pela obra de vrios
historiadores e pela forma como povos distintos concebem as inovaes.13 Desde
Histria e Etnologia (artigo publicado originalmente em 1949), porm, o dilogo com
a histria ficara em segundo plano em relao anlise estrutural de mitos. Apenas no
ltimo volume das Mitolgicas verifica-se uma integrao entre ambos os interesses
do autor; em Histria de Lince (publicado em 1991), a partir da anlise de mitos
americanos, Lvi-Strauss identificou no chamado dualismo amerndio uma atitude de
abertura para o outro, com importantes desdobramentos filosficos e ticos, que se
manifestou com toda a clareza quando dos primeiros contatos com os brancos, embora
estes fossem animados de disposies bem contrrias (Lvi-Strauss 1993: 14). Para
Lvi-Strauss, o lugar dos brancos est marcado em vazio nesses sistemas de
pensamento que desdobram seus termos sucessivamente e ao infinito (: 200), prezando
pelo dinamismo e rejeitando, assim, toda forma de fixidez e de identidade.
Desde os anos 1960, contudo, a questo da mudana cultural em contextos de
expanso colonial e nacionalizao passou a atrair a ateno dos antroplogos,14
fazendo-se acompanhar de uma crtica neutralidade do observador, atitude
identificada ao estruturalismo. F. Barth fora aluno de E. Leach, recusava o mtodo
estrutural e valorizava o trabalho de campo; nas pesquisas sobre nativos asiticos,
13

Em entrevista concedida a D. Eribon em 1988, Lvi-Strauss declarou: Meu respeito pela histria, o
gosto que tenho por ela, provm do sentimento que ela me d de que nenhuma construo do esprito
pode substituir a maneira imprevisvel como as coisas realmente aconteceram. O acontecimento, em sua
contingncia, aparece-me como um dado irredutvel. A anlise estrutural deve (...) faire avec. (LviStrauss & Eribon 2005: 178).
14
Dentre vrios outros trabalhos alinhados com tais preocupaes, h que citar a impressionante
etnografia de M. Taussig (1987) sobre a elaborao xamnica da violncia do boom da borracha pelos
habitantes da regio do Putumayo (Colmbia), no incio do sculo XX.

34

focalizou a questo da diversidade cultural e da ao poltica.15 Barth concentrou sua


anlise na fronteira tnica, um conjunto de prescries e critrios de avaliao e de
julgamento (valores) que governam as situaes de contato (: 34), recusando a
correspondncia necessria entre um grupo tnico e um conjunto de sinais culturais
diacrticos. O autor tornou explcito o aspecto relacional da identidade tnica e rejeitou
as definies de grupo tnico que no levavam em conta as categorias empregadas
pelos prprios atores (: 27).
No Brasil, foram produzidos importantes trabalhos em consonncia com tal
renovao disciplinar. A partir dos anos 1960, R. Cardoso de Oliveira realizou e
orientou pesquisas sobre povos indgenas amaznicos em situao de contato intenso
com a populao nacional. Este autor elaborou um importante referencial tericometodolgico para apreender as aes dos indgenas em meio a processos de frico
intertnica (Cardoso de Oliveira 1968, 1976a, 1976b, 1996; DaMatta & Laraia 1967,
entre outros). Cardoso de Oliveira estudou a formao da ideologia tnica, aquela que
articula relaes sociais a valores em situaes de contato intertnico (Cardoso de
Oliveira 1976: 100ss), concluindo que a etnia serve como o cdigo, a gramtica de
uma linguagem social, capaz de orientar os agentes de modo subliminar na situao
intertnica (: 101). A ideologia tnica seria, assim, a base de sustentao de
movimentos sociais de tipos variados, no horizonte do etnicismo (: 73), por oposio
ao caboclismo, a ideologia alienadora do indgena que se v com os olhos dos
brancos (: 74ss).
Por sua vez, os estudos sobre ndios do Nordeste, principalmente aqueles
realizados a partir dos anos 1970, tambm apontam para a necessidade de recorrer
histria e de levar em conta a relao da populao indgena com o Estado para
compreender a situao contempornea de povos socialmente marginalizados e os
respectivos processos de etnognese (ver Oliveira Filho 1998, 1999).
Nos anos 1980, M. Sahlins elaborou uma crtica contundente ao
estruturalismo, denunciando que este pensamento recusava a histria, o evento, a ao,
o mundo. Desde as pesquisas sobre a colonizao britnica no Hava, Sahlins (1990,
2008) enfrenta a questo da capacidade de uma dada cultura para se reproduzir como
histria. O projeto de sua antropologia histrica, que se tornou referncia para as

15

Em entrevista concedida em 1995, Barth disse: Acho que de algum modo o impulso terico do meu
trabalho tem sido mostrar as variaes, e tentar encontrar maneiras de construir modelos a partir de
situaes empricas que no as distoram no sentido de torn-las homogneas (Barth 2000b: 209).

35

pesquisas sobre mudana cultural, seria ento compreender de que maneira a cultura
reordenada enquanto ordena os eventos, ou seja, de que maneira a reproduo de uma
estrutura se torna sua prpria transformao. Neste sentido, a transformao estrutural
se d quando as categorias so expostas a uma revalorao pragmtica sem
precedentes; os valores adquiridos na prtica provocam efeitos sistmicos, alterando
radicalmente as relaes que configuram a estrutura (Sahlins 2008: 75).
Em 1988, a publicao da coletnea Rethinking History and Myth, reunindo
trabalhos sobre povos andinos e amaznicos, propunha pensar mito e histria como
modos complementares de conscincia social; analisando a forma como diversos povos
indgenas sul-americanos enfrentam situaes de contato, os vrios autores
demonstraram que, da perspectiva indgena, os modos de conscincia mtico e histrico
devem ser integrados em estratgias simblicas de compreenso e ao efetiva (Hill
1988: 14; Turner 1996). O artigo de A. Ramos (1988) sobre o movimento indgena no
Brasil esclarece que elaboraes singulares sobre o passado servem de base para a
atuao poltica no presente, evidenciando-se o panorama mais amplo em que se deve
inserir o caso apiak, ao qual a autora chama de indigenismo: um elaborado
construto ideolgico sobre alteridade e similaridade (sameness) no contexto da
etnicidade e da nacionalidade, de cuja constituio os indgenas participam ativamente
(Ramos 1998: 7).
A publicao da coletnea Histria dos ndios no Brasil, em 1992, sintetizou
esforos interdisciplinares no sentido de inserir os povos indgenas na histria do pas,
destacando sua agencialidade e apontando para a enorme complexidade das relaes
com os colonizadores, obscurecida pela histria oficial. Embora se partisse do
pressuposto de que a verso indgena da histria fonte importante de conhecimento
etnogrfico (Carneiro da Cunha 1992: 18), assumia-se que uma histria propriamente
indgena restava por ser feita (: 20). Fausto (1992) argumentou que os tupis
quinhentistas podem ser aproximados dos tupis amaznicos atuais devido forma no
elementar como elaboram a relao entre estrutura e evento, tomando este ltimo
como uma varivel estrutural, no como um elemento externo estrutura.
Pacificando o Branco, lanado em 2002, inaugurou uma aproximao efetiva
entre antropologia e histria, ao propor uma abordagem que articula as dimenses
histrica (processo colonial), poltica (estratgias de reproduo social) e simblica
(teorias da alteridade) embutidas tanto nas aes quanto nas interpretaes do contato
(Albert 2002: 10). Percebe-se nos vrios artigos ali reunidos o esforo de superar as
36

velhas dicotomias entre mito e histria, sociedades quentes e sociedades frias, rito e
poltica, reproduo e transformao, estrutura e ao, em conformidade com as ideias
de M. Sahlins.
Mais recentemente, a coletnea Time and Memory in Indigenous Amaznia
comprova que a aproximao entre etnologia e histria continua enriquecendo o
pensamento antropolgico. Ao adotar uma perspectiva diacrnica, os autores se
questionam sobre as formas diversas como os povos indgenas conceitualizam a
mudana e se debruam sobre os regimes de historicidade (conceito inspirado em
Claude Lefort) engendrados pela prtica, no mbito de uma nova escala de interao
intertnica (Fausto & Heckenberger 2007: 4). A partir do dilogo com Sahlins, rejeitase a distino ontolgica entre os domnios sociolgico e cosmolgico e parte-se do
princpio de que a transformao parte constitutiva da permanncia (: 5). Ao
empregar a noo de transformao topolgica (uma reabilitao crtica da noo lvistraussiana de transformao estrutural), os autores pretendem evitar qualquer recurso
noo romntica de identidade, pensada como essncia e auto-similaridade atravs do
tempo, bem como ao conceito de conscincia. Seu objetivo ltimo fazer se
comunicarem histrias alternativas (: 19) num mundo onde elas esto cada vez mais
imbricadas.
Ao levar a srio a intencionalidade dos povos indgenas, estamos em melhores
condies de perceber que a abertura para o evento que os caracteriza exprimiu-se e
ainda se exprime numa multiplicidade de formas de resistncia e reinveno, fenmeno
que podemos chamar de resilincia social. Por outro lado, submeter as categorias
antropolgicas a um exame crtico nos habilita a reconhecer a diversidade da
experincia histrica, o papel do imprevisto e a plasticidade sociolgica e cosmolgica
dos povos indgenas, ajudando-nos, assim, a dissipar o sentimento de desconfiana
diante de situaes concretas que desafiam esteretipos muitos dos quais,
infelizmente, fundamentam categorias que norteiam aes governamentais e tm
repercusses concretas no destino desses povos.
Neste sentido, importante compreender que a mistura a que se referem os
apiaks consiste na combinao de um idioma corporal a modos de vida dispostos
simbolicamente num continuum espaciocultural. O aspecto que os apiaks sublinham
quando falam em mistura sua progressiva civilizao. Mistura designa, assim,
uma concepo de histria calcada no processo social de fabricao de corpos e pessoas,
concepo claramente transformacional e plstica.
37

Figura 1.1- Mapa Etno-Histrico

38

Aldeias Apiak nos sculos XIX, XX e XXI- legenda do mapa etno-histrico


1. Tracu: existiu na primeira metade do sc. XX
2. Apiakatuba: existiu na primeira metade do sc. XX
3. Canind: existiu na primeira metade do sc. XX
4. Murilndia (ilha): existiu na primeira metade do sc. XX
5. Laje da Capivara: existiu nos anos 1970
6. Conceio ou Mucajazeiro: existiu nos anos 1970
7. Capo - colocao de seringueiros: existiu nos anos 1960
8. Taquarizal (ilha): existiu na primeira metade do sc. XX
9. Pontal
10. Oiavyt (Aldeia Distante): existiu na primeira metade do sc. XX
11. aldeia na ilha do Tabuleiro: existiu nos anos 1970
12. Bom Jardim: existiu nos anos 1970
13. Mairowy (antiga Terra Preta)
14. Veneza - colocao de seringueiros: existiu na primeira metade do sc. XX
15. Lago do Junco: existiu na primeira metade do sc. XX
16. Maloca: existiu na primeira metade do sc. XX
17. Tamanqueira: existiu na primeira metade do sc. XX
18. Carrapichal: existiu na primeira metade do sc. XX
19. Terra Preta: existiu na primeira metade do sc. XX
20. Aliana - colocao de seringueiros: existiu na primeira metade do sc. XX
21. Santa Cruz- colocao de seringueiros:existiu na primeira metade do sc. XX
22. Tabatinga - colocao de seringueiros: existiu na primeira metade do sc. XX
23. Nova Esperana: fundada no incio dos anos 1970 e extinta na dcada seguinte
24. Mayrob
25. Figueirinha
26. Vista Alegre
27. Bom Futuro
28. Minhocuu
I. aldeia sem nome entre o salto So Simo e o Salto Augusto (1872)
II. Salto Grande ou Salto Augusto (1812?)
III. Taquaralzinho (1861)
IV. Tacatinga (1819)
*Os nomes grifados correspondem s aldeias existentes em 2007
39

Captulo 1- Sobre patres, cunhados e onas


No creio que a histria obedea a um sistema,
nem que suas pretensas leis permitam deduzir as formas sociais, futuras ou presentes.
Acredito, porm, que tomar conscincia da relatividade, e portanto da arbitrariedade,
de um trao de nossa cultura j o desloca um pouco; e que a histria (no a cincia, mas seu
objeto) no mais que uma srie de deslocamentos imperceptveis.
T. Todorov. A Conquista da Amrica

O fato de os apiaks ainda existirem como povo uma prova de resilincia que
inspira admirao ao mesmo tempo em que convida reflexo antropolgica. Para
compreender as continuidades que permitem a um conjunto de pessoas continuar se
pensando como povo culturalmente diferenciado, a despeito de contingncias histricas
enormemente adversas, preciso olhar para o modo singular como seus antepassados
enfrentaram importantes transformaes ao longo de um sculo e meio.
Na segunda metade do sculo XIX, com a chegada de elementos no-indgenas
atrados pelo boom da borracha regio dos formadores do rio Tapajs, os indgenas
foram recrutados como mo-de-obra para os seringais, passando a viver longe de suas
aldeias por perodos cada vez mais longos, estando sujeitos a epidemias e a desmandos
dos patres. Dessa forma, os apiaks ficaram espalhados e acabaram se casando com
migrantes nordestinos, negros e ndios de outras etnias, arregimentados pela frente
extrativista, processo que, segundo meus interlocutores, enfraqueceu sua unidade
poltica e levou ao abandono da lngua, dos rituais e de diversas tcnicas e elementos de
cultura material. Nos ltimos anos do sculo XIX, os apiaks foram alvo de violncias
e massacres promovidos por vrios coletores de impostos e patres, o que quase causou
a extino do povo. Ao longo do sculo XX, as raras referncias escritas aos apiaks
informam sobre sua aculturao ou extino, a despeito dos remanescentes e at
mesmo das evidncias de uma frao arredia do povo s margens do rio So Tom,
afluente oriental do Juruena (ver Figura 1.1).16
No balano sobre a situao dos povos indgenas no Brasil elaborado por D.
Ribeiro nos anos 1950 (Ribeiro 2002)17, os apiaks foram classificados como povo
16

Encontram-se breves referncias aos apiaks vivendo nos cursos mdio e baixo do Teles Pires na
segunda metade do sculo XX em Rodrigues (1994 a e b) e Schiavini (2006).
17 No levantamento de D. Ribeiro sobre a situao dos grupos indgenas brasileiros em 1900, os apiaks
e os mundurukus so classificados como de contato permanente com a sociedade nacional, enquanto
os kaiabis aparecem como isolados (Ribeiro 2002: 256). No levantamento de 1957, os kaiabis j
estariam mantendo contato permanente com a sociedade nacional, assim como os mundurukus,
enquanto os apiaks so dados como extintos (: 263). Os maws aparecem como integrados em
ambos os levantamentos, ao passo que os kokamas, considerados integrados em 1900, so

40

extinto, com base num relatrio da Comisso Rondon escrito pelo capito Manoel
Teophilo Costa Pinheiro (Ribeiro 2002: 263), e assim seriam considerados pelo rgo
indigenista oficial (e tambm pelos antroplogos)18 at os anos 1980, pelo menos,
quando se uniram a vrios outros povos indgenas no Mato Grosso para impedir a
construo de uma usina hidreltrica no salto do Rio dos Peixes (ver captulo 5).
O cruzamento entre textos produzidos pelos brancos e narrativas orais apiaks
absolutamente necessrio para se compreender o longo movimento de fragmentao
demogrfica e poltica, bem como a forma recente de organizao social do povo e o
discurso da identidade tnica proferido pelos homens influentes no presente.
Empregaremos o conceito de territorializao cunhado por J. P. de Oliveira para
explicar que os grupos tnicos so constitudos numa interao processada dentro de
um quadro poltico preciso, cujos parmetros esto dados pelo Estado-nao (Oliveira
Filho 1998: 55). Nesse sentido, teremos em mente que um fato histrico a presena
colonial que instaura uma nova relao da sociedade com o territrio, deflagrando
transformaes em mltiplos nveis de sua existncia sociocultural (: 54).
O presente esforo para apreender o modo como os apiaks elaboram
simbolicamente o tempo, a mudana, a cultura, a identidade e a relao com os brancos
pretende produzir um deslocamento, ainda que sutil, na forma como contada a histria
dos povos indgenas da regio dos formadores do Tapajs, no apenas no sentido de
ajudar a repensar a maneira como os historiadores registraram as relaes estabelecidas
naquela rea, mas sobretudo no sentido de instaurar, no presente, um dilogo entre
regimes de historicidade distintos, tal como proposto por Fausto & Heckenberger
(2007: 19), um dilogo que tambm venha a contribuir efetivamente, num futuro
prximo, para que se respeitem os direitos constitucionais desse povo.

18

classificados como extintos em 1957 (idem, ibidem).


Exceo seja feita a Kietzman (1967), membro do Summer Institute of Linguistics que discordou da
classificao de Ribeiro, escrevendo o seguinte sobre os apiaks: A ltima tribo definitivamente Tupi
a ser listada nesta rea [Tapajs-Madeira]. A tribo foi dada como extinta, mas muitas famlias foram
encontradas no mdio Tapajs; vivendo entre os Munduruk num trecho limitado do rio Canum; e
sabidamente ao longo do baixo Juruena. Todos os indivduos parecem estar quase completamente
assimilados. O Munduruk e o portugus so geralmente falados de preferncia a sua prpria lngua.
(Kietzman 1967: 24)

41

1.1- O tempo das guerras


Misturado e espalhado so as principais categorias empregadas pelos
apiaks contemporneos quando rememoram seu passado, a mistura tnica surgindo nas
narrativas como decorrente da disperso e da dizimao ocorridas na virada para o
sculo XX. A construo do parentesco e a experincia da co-residncia so elementos
centrais das historicidades indgenas (Fausto & Heckenberger 2007: 11), como, por
exemplo, aquela elaborada pelos nativos do baixo Urubamba, na Amaznia peruana.
Misturados ou de sangre mezclada tambm a maneira como esses povos pensam a
si mesmos, em oposio a outros tipos de gente (Gow 1991: 85). P. Gow, que optou
por fazer uma etnografia clssica de um povo culturalmente descaracterizado, sublinha
a positividade da mistura de tipos de gente distintos para a produo das novas geraes
(sculo XX), que surgem sob o signo da liberdade e da civilizao, por oposio gente
pura do passado (sculo XIX), que vivia na escravido das fazendas, sem acesso
escola e s mercadorias. Neste sentido, os povos nativos do baixo Urubamba so
apresentados como progressistas, abertos a inovaes e voltados para o exterior; sua
cultura tratada como uma variante das estruturas sociais dos povos amaznicos
tradicionais (: 22).
Por sua vez, A-C. Taylor (2007) prope que os povos de lngua quchua da
Amaznia ocidental, tambm classificados como misturados ou aculturados,
formam sociedades hbridas, eminentemente transformacionais e ambivalentes, que
historicamente serviram de amortecedores para o avano dos colonizadores, permitindo
que seus vizinhos, os belicosos jvaros, mantivessem um grau mais alto de
independncia. Desse modo, os ndios mansos teriam elaborado um regime de
historicidade complementar quele elaborado pelos selvagens jvaros, a partir de um
fundo cultural comum, que explicaria a permeabilidade entre as identidades manso e
selvagem. Tais regimes de historicidade apontariam para uma modulao na relao
com a alteridade constitutiva do Eu (Taylor 2007: 158), sendo que o carter distintivo
das narrativas histricas contadas pelos ndios mansos consistiria na reorganizao
dos elementos de memria partilhados por todos os moradores de uma mesma regio
nos termos de uma estrutura ternria, que compreende os seguintes estgios de
socialidade imaginada: o tempo da selvageria, o tempo da escravido e o tempo
da civilizao (: 155ss).
Esses casos etnogrficos revelam a apurada conscincia histrica contida em
categorias sociais de povos que sofreram de maneira brutal o impacto das frentes
42

extrativistas na Amaznia e que, num vis culturalista, seriam considerados como de


baixa distintividade cultural, portanto indignos tanto do interesse antropolgico como
da assistncia estatal, uma postura fortemente criticada por J. P. de Oliveira (1998).
Ora, se o foco na coerncia e na integrao do grupo social se aplica mal a estes e a
outros povos notadamente os povos emergentes do Nordeste (ver J. P. de Oliveira
1999) no porque sua configurao sociocultural atual seja desinteressante em si,
mas porque as categorias analticas tradicional e aculturado so inadequadas para
proceder a uma anlise desse tipo de fenmeno. Por isso no apresentarei os apiaks
como mais um caso de desintegrao cultural e social; pretendo, antes, delinear os
contornos gerais e os termos centrais de suas narrativas sobre o passado, as quais
fundamentam o discurso poltico da identidade tnica no presente (a anlise da
categoria misturados propriamente ser desenvolvida no captulo 2).
Desse modo, podemos distinguir trs perodos na historicidade apiak,
atentando, como pondera A.-C. Taylor, para a tenso inerente ao processo de produo
de tipos apropriados de mediao em situaes de aguda assimetria de poder, a saber: o
tempo das guerras, o tempo do seringal e o tempo da comunidade (este captulo
dedicado aos dois primeiros perodos. O terceiro perodo ser tratado na Segunda
Parte). Tais perodos so entendidos como picos ou momentos crticos de mudana, e
no como uma progresso fluida e suave (Hill 1988: 7), e correspondem a categorias
sociais distintas. Os apiaks contemporneos afirmam que, quando no conheciam as
mercadorias, eram selvagens, assim como ainda o so os parentes que permanecem
na floresta; afirmam, tambm, que o acesso regular s mercadorias corresponde ao
momento do amansamento do povo, isto , cessao das guerras com povos
inimigos. Como se nota, a selvageria no concebida como uma condio
irremediavelmente superada, mas como um estilo de vida pelo qual se optou (ainda que
em condies adversas); tampouco a civilizao pensada como ruptura radical com
algo semelhante a uma natureza universal.
Comecemos pelos registros escritos. Desde o sculo XVIII foram produzidos
textos que expressam a perspectiva dos viajantes, missionrios e colonizadores a
respeito do encontro com os povos indgenas na regio dos formadores do Tapajs, os
quais nos permitem, todavia, entrever o contexto em que se deu esse encontro,
fornecendo assim importantes elementos por meio dos quais podemos nos aproximar da
concepo apiak sobre a histria, num perodo que a memria indgena no alcana ou
sobre o qual propositalmente lacnica.
43

De acordo com M. Menndez (1981, 1992), a rea entre os rios Madeira e


Tapajs caracteriza-se por uma alta densidade demogrfica indgena desde o sculo
XVII, sendo habitada por numerosos povos tupis e alguns povos macro-js altamente
mveis, que constituam uma rede de relaes intrincada por meio das guerras e das
trocas. possvel que tais povos no formassem unidades sociais discretas e
duradouras, a exemplo dos tupinambs quinhentistas, cujas aldeias, na costa,
compunham um conjunto informe de grupos locais circunvizinhos que no estava
sujeito a uma autoridade comum nem tinha fronteiras rgidas (Fausto 1992: 384). Para
Fausto:
A inimizade recproca distinguia grupos de aldeias aliadas, que
operavam segundo uma estrutura de tipo rede: as aldeias, unidas uma a um,
formavam um conjunto multicomunitrio capaz de se expandir e se contrair
conforme os jogos da aliana e da guerra. Os limites dessas unidades no so
palpveis nem definitivos: um dia poder-se-ia estar de um lad, no dia seguinte
do outro inimigos (e cunhados) eram justamente tobajara: os do outro lado,
como sugere a etimologia mais provvel do termo. (Fausto 1992: 384)
Os primeiros no-indgenas a se estabelecerem no vale do Tapajs e
formadores e a instalar a infraestrutura que possibilitaria sua ocupao posterior foram
os jesutas, na segunda metade do sculo XVII, os quais organizavam descimentos
com o intuito de fixar e catequizar os indgenas, caracterizando-se um primeiro
movimento de territorializao e consequente mistura tnica. O estabelecimento da
capitania de Mato Grosso e tambm da de Gois resultou das disputas territoriais entre
as monarquias ibricas em meados do sculo XVIII. Ao final do mesmo sculo, a
atividade da minerao, sustentculo da economia regional, conheceu seu declnio, e os
colonos migraram para outros locais, ao passo que a atividade missionria se
intensificou.
Antes dos jesutas, apenas se empreendiam viagens espordicas para
reconhecimento do territrio, captura de indgenas para escravizar19 e obteno de
drogas do serto e especiarias (leos de origem animal e vegetal, castanhas, madeiras,
sementes e plantas de utilidades variadas) as famosas entradas e bandeiras
provenientes do sul da Colnia. Os dois primeiros sculos da colonizao europeia da
Amaznia caracterizaram-se pela centralidade da atividade extrativista, em detrimento
da agricultura e mesmo da minerao. Como praticamente no tinham acesso a
19

A questo da mo-de-obra sempre foi um problema na Amaznia; a presena de escravos africanos era
nfima, em comparao com as provncias do sul e do nordeste. O recurso fora de trabalho indgena
foi motivo decisivo nos conflitos entre colonos e missionrios desde o sculo XVII.

44

escravos africanos, os colonizadores recorriam mo-de-obra indgena para a obteno


de produtos silvestres, decorrendo disso as disputas com os jesutas, os quais reuniam
os indgenas em aldeamentos e controlavam sua produo. Em 1757 foi estabelecido,
pelo Marqus de Pombal, o Diretrio dos ndios para o Maranho e o Gro-Par; o
decreto foi ampliado para toda a Colnia um ano mais tarde, tendo sido revogado em
1798. O Diretrio fazia parte da poltica de integrar os indgenas s populaes
regionais, tornando-os povoadores pacficos das reas remotas e trabalhadores
produtivos; assim, extinguia o regime das misses, transformando os aldeamentos em
vilas; expulsava os jesutas da Colnia, deixando a colonizao a cargo de particulares
civis; proibia o uso das lnguas indgenas e estipulava a adoo, pelos indgenas, de
sobrenomes portugueses; incentivava casamentos intertnicos; legitimava a ao das
tropas de resgate; institua o trabalho compulsrio e a cobrana de dzimo sobre toda
a produo indgena (para uma anlise detalhada do Diretrio e do contexto em que foi
forjado, ver Almeida 1997).
A descoberta do rio Tapajs ocorreu em 1592, quando Francisco de Orellana
separou-se da expedio do conquistador Gonzalo Pizarro Cordilheira dos Andes;
Orellana navegou pelo rio Napo at a confluncia com o Amazonas para obter
mantimentos para a expedio principal, chegando at a foz do rio Tapajs. A
explorao e ocupao do vale do Tapajs iniciou-se apenas na primeira metade do
sculo XVII, tendo como marcos a fundao da cidade de Belm em 1616 e o
reconhecimento da extenso do rio Tapajs em 1626, por Pedro Teixeira, que constatou
que os indgenas da regio mantinham relaes comerciais com castelhanos que
desciam o Amazonas (Leite 1943: 357). No entanto, a localizao das cabeceiras deste
rio deu-se somente em 1742, pelo explorador Leonardo de Oliveira. Desde meados do
sculo XVII, os jesutas e outros missionrios edificaram aldeias ao longo do Tapajs,
as quais foram elevadas a vilas em meados do sculo seguinte.20
Os primeiros exploradores da regio registraram o predomnio dos tupinambs
e tapajs, povos expansionistas e guerreiros, que praticavam o comrcio intertribal e a
escravizao e vassalagem de grupos menores, mas que sucumbiram em pouco tempo
ao contato com o branco, deixando de ser mencionados pelos cronistas aps 1690.
Ocorre que o espao deixado por esses dois grupos passa a ser rapidamente ocupado
por aqueles que se achavam sujeitados ou escravizados e registra-se o surgimento de
20

A Aldeia dos Tapajs ou de Todos os Santos, fundada em 1665, tornou-se vila de Santarm em 1758,
um centro regional importante, transformado em cidade em 1848.

45

novos agrupamentos (Menndez 1992: 282), sendo que os muras (famlia lingustica
isolada), os sater-maws (tronco tupi) e os mundurukus (tronco tupi) parecem ter
constitudo por longo tempo uma espcie de escudo protetor para os povos que
ocupavam posio mais interiorana na rea Tapajs-Madeira (Menndez 1989: 334).
Por sua vez, o povoamento efetivo da capitania de Mato Grosso iniciou-se na
primeira metade do sculo XVIII, motivado pela descoberta de minas de ouro e pedras
preciosas nos arredores de Diamantino, regio de cerrado ao sul da capitania, o que
tornava a ligao fluvial das reas interioranas com o porto de Belm uma necessidade
premente, a ser satisfeita apenas no sculo seguinte. A colonizao, porm, se dava de
forma rarefeita, e o interior da rea permaneceu desconhecido at o final do sculo
XIX, e ainda hoje no se pode dizer que a ocupao da poro noroeste do territrio do
atual estado de Mato Grosso esteja concluda.
No sculo XVIII, as informaes sobre aqueles vrios povos nohegemnicos, produzidas por religiosos, funcionrios do governo e viajantes, tratam
sobretudo de fixar nomes e localizaes, contribuindo para formar uma imagem esttica
e fragmentada de uma regio caracterizada pela movimentao intensa e por unidades
sociais extensas. Nesse sentido, Menndez adverte: Esses etnnimos so a chave para
uma compreenso mais precisa da configurao etnogrfica do territrio e, apesar de
serem sempre anotados como indicativos de povos ou naes diferentes, muitas vezes
correspondem a grupos locais que integram unidades sociais mais amplas (Menndez
1992: 281). O autor indica que trabalhos etnolgicos mais recentes levam a crer na
existncia de um continuum entre a sociedade igualitria e a sociedade segmentada
para a mesma cultura tupi adaptada mesma floresta tropical, desde povos sem
metades, cls ou fratrias, como os kaiabis, at povos com metades exgamas
patrilineares no-localizadas, como os mundurukus (Menndez 1981: 291).21
Os apiaks constituam um desses povos no-hegemnicos mais interioranos; a
extenso de seu territrio era determinada pela empresa guerreira e pela coleta de
pedras para seus machados e taquaras para fabricar flechas; percorriam ento vastas
extenses no encalo de seus inimigos tradicionais, os matanawis (no-identificados),
os tapaynas (ou beio-de-pau, do tronco macro-j), os mundurukus e os parabi-tats
21 No sculo XIX, o naturalista alemo Carl von Martius havia proposto que os ababas, apiaks,
kawahiwas, pochetys, tapirapes, temauangas e mundurukus, localizados na confluncia entre os rios
Arinos e Juruena e identificados como tupi centrais, pertenceriam a um nico povo, o qual, cindido-se
ao longo do tempo, teria dado origem a subgrupos que se expandiram territorialmente; restaria por
determinar se tais grupos so fraes dos apiak e munduruku ou se diferem deles (apud Menndez 1991:
290).

46

(possvel subgrupo apiak), demonstrando grande capacidade de mobilizao para a


guerra (Guimares 1865: 317; Nimuendaju 1963a, 1963b). As clebres tatuagens
faciais, marca distintiva do povo, retratadas por Hercules Florence no mbito da
expedio chefiada pelo baro de Langsdorff (Komissarov in Monteiro & Kaz 1988)
(ver Anexos),22 atestavam as proezas e valentias nos combates com inimigos, bem
como a participao nos ritos antropofgicos decorrentes das guerras (Castelnau 2000:
333; Guimares 1865: 312; Nimuendaju 1963a, 1963b). Ao final do sculo XVIII, terse-ia iniciado um movimento de expanso territorial apiak, que provocou um rearranjo
geopoltico na regio do mdio e baixo Arinos (Menndez 1981: 361).
A informao mais antiga de que se tem notcia sobre os apiaks data de 1746,
e de autoria de Joo de Souza Azevedo, o qual, por ocasio da primeira navegao
oficial do rio Tapajs a partir de Mato Grosso, menciona um reino dos Apiacs no
baixo Arinos (apud Fonseca 1880: 68). Naquele ano haviam sido descobertas jazidas de
diamante na provncia de Mato Grosso; sua notcia mobilizou inmeras entradas e
bandeiras que partiam de So Paulo em direo ao rio Cuiab e alm. A regio das
cabeceiras do rio Arinos ganhou destaque dois anos depois, em 1748, quando se
descobriram a minas de ouro e diamantes, dentre as quais as clebres minas de Santa
Isabel. O tenente-coronel Ricardo Franco de Almeida Serra relata, com pesar, que a
hostilidade dos apiaks foi um dos fatores determinantes do declnio daquelas minas
(Almeida Serra 1847: 11):
Na margem oriental do Arinos, e no longe da fronteira, lugar da foz do
Rio Negro, existem as minas de Santa Isabel, das quaes se fez partilha no anno
de 1749, a que concorreu bastante povo; mas a valente e temivel nao Apiass,
que habita aquelles terrenos, e carestia dos mantimentos e generos precisos para
a dispendiosa extraco do ouro, as poucas foras de Cuyab no 20. anno de
sua creao em villa, e finalmente a descoberta dos diamantes e ouro do
Paraguay, tudo foi caso urgente para se abandonarem as minas de Santa Isabel,
perdendo-se ainda a positiva certeza do lugar da sua antiga existencia. (Almeida
Serra 1869: 10).
No mesmo ano de 1748, Mato Grosso foi alada ao estatuto de capitania,
tornando-se independente da capitania de So Paulo. Nesse momento, j estavam em

22

A Expedio Langsdorff ao Brasil teve carter cientfico e foi fruto da cooperao diplomtica entre os
governos imperiais portugus e russo; percorreu por gua o longo e penoso trajeto do interior de So
Paulo at Santarm, via Arinos, Juruena e Tapajs, entre os anos de 1821 e 1829 (Komissarov in Monteiro
& Kaz 1988). Em 1828, Florence visitou trs aldeias apiaks nas margens dos rios Arinos e Juruena e
admirou-se da amabilidade do povo; em seu dirio, descreve os apiaks como alegres, hospitaleiros,
hbeis ceramistas e teceles, elogia seus enfeites de penas e a aparncia das mulheres, e afirma reinar em
sua sociedade absoluta igualdade (Florence 1941: 165ss).

47

curso as negociaes sobre o Tratado de Madri, assinado em 1750, uma soluo


diplomtica para as disputas entre Portugal e Espanha envolvendo as colnias da
Amrica do Sul. Em respeito ao princpio jurdico do uti possidetis (que consagrava a
ocupao efetiva do territrio) que regeu o Tratado, a enorme faixa de terra entre os rios
Paraguai, Guapor, Madeira, Tapajs e Tocantins foi ento integrada ao domnio
portugus. A presena de diversos povos indgenas no vale do Amazonas mostrou-se
estratgica para as pretenses expansionistas da Coroa portuguesa. Assim se exprime o
clebre cronista da Companhia de Jesus no Brasil, Serafim Leite, a respeito do processo
consagrado pelo Tratado de Madri:
(...) a Amaznia no cabia Amrica Portuguesa, pela famosa linha de
Tordesilhas. A sua conquista , por isso, facto de mxima importncia para o
alargamento do Brasil. E mais do que geralmente se julga, no tanto pela sua
contribuio em si, de aproveitamento econmico imediato, que o no foi nem
ainda , mas porque, no sendo castelhano, sendo portugus, o Amazonas
constitui-se a grande muralha de gua, ao abrigo da qual, no interior do Brasil, se
pde operar, a salvo, a magna gesta da ocupao efectiva. Quando em 1750
chegou a hora de se averiguar o que o Brasil j era, Alexandre de Gusmo no
fz mais que consagrar com habilidade uma obra, decidida por outros
anteriormente, custa de lutas e de sacrifcios que iam s vezes ao sangue.
(Leite 1943: XI)
Dentre os vrios povos indgenas que habitavam essa imensa rea, os
mundurukus se destacaram por seu nmero e belicosidade. Tendo inicialmente
assumido uma atitude hostil em relao aos colonizadores, em 1795, aps uma
expedio punitiva enviada pelo governo do Par ao alto Tapajs, os mundurukus
converteram-se em seus aliados e passaram a atuar como ponta de lana na ocupao
do territrio, organizando-se em tropas que empurravam os inimigos tradicionais para
outros pontos, onde no representassem obstculo colonizao, em troca de
mercadorias (Menndez 1981: 358).23 De outro modo, ainda de acordo com Menndez,
os apiaks, inimigos dos mundurukus, aliaram-se rapidamente aos brancos, tornando-se
colaboradores importantes das mones que atravessavam o Arinos, o Juruena e o
Tapajs (: 362) e tambm empregados nos entrepostos comerciais no Juruena.
importante lembrar que, no momento em que a frente da borracha avanava para a rea
(meados do sculo XIX), o governo e os religiosos estavam ausentes; nessa conjuntura,

23

Este um caso de ethnic soldiering, semelhante a tantos outros na Amrica Latina. A ttulo de
comparao, cito a atuao militar dos lokonos e karias conta povos vizinhos, no Suriname, no
sculo XVII, condicionada s disputas territoriais entre franceses, ingleses e holandeses (Whitehead
1996: 27).

48

os indgenas tinham duas opes: aceitar as condies impostas pelo colonizador ou


deslocar-se para zonas ainda no ocupadas pelos brancos.
O registro mais completo sobre os apiaks no sculo XIX foi escrito pelo
cnego jesuta Jos da Silva Guimares, que passou alguns dias em companhia de uma
comitiva apiak em viagem sede do governo provincial, em 1819. Esta viagem
especialmente interessante porque revela uma atitude de curiosidade em relao aos
agentes poderosos e detentores de mercadorias, combinada a um desejo de falar
diretamente ao chefe dos brancos (em detrimento dos representantes locais do poder
centralizado), que se manter constante at os dias atuais.24
A visita dos apiaks a Cuiab ocorria no momento da intensificao do
comrcio entre as provncias de Mato Grosso e Par, autorizada por D. Joo VI em
1815. A aliana com os apiaks, habitantes das margens do Arinos, rio por onde se
fazia o transporte de mercadorias, mostrava-se estratgica, da porque o ento
governador e capito-general de Mato Grosso, marqus de Aracati, ordenara que se
tratasse com a maior humanidade possvel a numerosa e guerreira nao Appiacs (:
305), que at poucos anos antes representava um obstculo s expedies oficiais,
como foi o caso da investida contra a expedio de Manoel Gomes dos Santos, em
1805, no Arinos (Castro & Frana 1868: 115). O cnego explica que
Vivia esta nao desconfiada, porque os primeiros navegantes do rio
Arinos tinham disparado alguns tiros de espingarda para se desembaraarem
defensivamente dos guerreiros della, que, vindo a reconhecel-os, principiaram
a fazer hostilidades, que se devia evitar, visto no attenderem aos signaes, que
se lhes dava de paz e concordia. Com a frequncia da navegao, e com os
presentes que lhes mandou fazer o dito Capito General, comearam a
apparecer aos viajantes, e at entraram a admitir em suas aldas alguns
Brazileiros, que ahi quizeram ficar, com os quaes se foram familiarisando, e
delles colheram as noticias precisas para o conhecimento que haviam ter do
nosso caracter e da nossa obsequiosa correspondencia. (Guimares 1865: 305)
Ao final da estada em Cuiab, anota Guimares, o governador teria
presenteado os indgenas com roupas e outros objetos, oferecendo ao cacique um
uniforme militar completo; o grupo teria se admirado sobretudo da espada, afirmando
que serviria para cortar as cabeas dos Tapanhnas, seus figadaes inimigos
(Guimares 1865: 314). A atitude pacfica em relao aos brancos contrastava, assim,
24 Os apiaks apreciam muito fazer e ouvir relatos sobre viagens. Os homens influentes se compraziam
em me contar diversas histrias sobre longas viagens, realizadas nos sculos XX e XXI, para centros
polticos como Alta Floresta, Apiacs, Cuiab e Braslia, aonde iam exigir respeito a seus direitos,
bem como sobre expedies em busca dos parentes isolados no Pontal e no rio Apiacs.

49

com o circuito de guerras de vingana ainda vigente com os povos vizinhos. Tendo
como intrprete um brasileiro que vivia havia alguns anos numa aldeia apiak e
acompanhava a comitiva, o religioso anotou que
Os Appiacs fazem a guerra, no por ambio, mas pelo desejo de
vingar sua nao, excitado pelos seus ancies, que conservando dio implacvel
a seus antigos inimigos, recontam em suas palestras as passadas affrontas que
sofreram desta ou daquella nao, estimulando assim os moos a procurar
vingana, que sempre lhes aconselha. Por isso a guerra amiudadas vezes
promovida pelo povo, que a pede ao cacique, e este outras vezes que a
determina, mandando fazer os aprestos necessrios, e solicitando o auxilio das
outras aldas, cujos caciques nunca o podem negar. (...) A guerra dos Appiacs
sempre feita por traio (...) Os seus prisioneiros so conduzidos s aldas,
onde com grande apparato so comidos, no s pelos guerreiros, como pelas
mais gentes das mesmas aldas; dando-se cuidadosamente esta vianda aos
meninos, aconselhando-os que sejam intrepidos desde j, para se regalarem com
to saborosa comida. Para se emprehender a guerra preciso consultar aos
pags, que so certos embusteiros mais espertos, que a massa geral da nao, os
quaes se dizem adevinhadores (...) (Guimares 1865: 308ss)
guisa de concluso, o religioso esclarece que:
(...) tudo escrevi, para que com o auxlio de taes noticias, e com o
socorro d'estes selvagens, se possa alcanar um dia a civilisao d'esta
nao, e de muitas outras, d'onde sahiro ainda grandes colonias
proveitosas, no s para salvao de tantas almas, que esto fora do
grmio da Igreja; como para augmento da populao da extensssima,
mas despovoada provncia de Matto Grosso, e para os novos
descobertos, que se podem esperar n'aquelle rico terreno, at agora
desconhecido (Guimares 1865: 307 nfase adicionada).
A partir de 1819, no mais se encontram menes a ataques de apiaks a
estabelecimentos de colonos, e sua cordialidade em relao aos viajantes ser ressaltada
da em diante. Os apiaks aparecem ento como colaboradores dos colonizadores,
atuando como remadores e guias valorosos, em troca de objetos industrializados,
durante o penoso processo de estabelecimento da rota comercial que ligava os
dilatados sertes do Tapajs ao importante porto de Belm.
Em 1844, o viajante francs F. de Castelnau conheceu alguns apiaks em
Diamantino, registrando que Os Apiacs vivem nas melhores relaes com os cristos,
mas mantm guerra permanente contra os outros ndios e devoram os prisioneiros
(Castelnau 2000: 329). Castelnau fornece informaes relevantes e detalhadas sobre o
povo, acrescentando que diversas pessoas que tinham visitado a referida tribo
confirmaram todos esses fatos (: 332). O tema principal do relato a guerra e os ritos
dela decorrentes, semelhantes aos ritos tupinambs (Fernandes 1970, Mtraux 1979),

50

mas h tambm menes crena na vida post mortem25 e ao padro de assentamento


que complementam o relato do cnego Guimares:
No dia 29, depois do meio-dia, trouxeram-nos vrios ndios Apiacs,
um dos quais era bastante inteligente e sabia falar um pouco de portugus. Este
homem tinha a pele muito clara e uma fisionomia to meiga que era difcil
imaginar-se que fizesse parte de um povo antropfago. O sinal caracterstico
desta tribo consiste em trs linhas horizontais, feitas com o suco do genipapo e
localizadas acima e abaixo da boca, de modo a formar uma espcie de
quadriltero. Obtive do ndio a que me refiro os seguintes informes: Os Apiacs
habitam os rios Arinos e Juruena; (...) Cada homem possui duas mulheres, s
aos chefes sendo permitido ter trs. (...) Estes ndios acreditam num Ente
Supremo, e parece mesmo que a este dirigem oraes. Admitem a imortalidade
da alma, pensando que aps a morte ela se vai para os campos, onde sem a
necessidade de fazer plantaes, medraro sempre bons frutos. Quando morre
algum, faz-se o enterramento dentro da prpria casa. Na guerra, os Apiacs
matam todos os inimigos adultos, deste ou daquele sexo; fazem-lhes depois o
corpo em pedaos e os assam. As crianas so feitas prisioneiras e levadas para
o aldeamento, onde so criadas com as outras e bem tratadas. Fazem-nas todavia
trabalhar no campo, amarrando-as duas a duas pelo pescoo, com uma corda.
Quando dois ou trs desses infelizes chegam aos doze ou catorze anos, faz-se
uma grande festa no aldeamento, ouvindo desde a manh soarem as trompas de
todos os lados. Toda a populao se veste com os ornatos mais vistosos de
penas de arara. Os pequenos prisioneiros so trazidos para o meio de um crculo
em que se alinha toda a tribo, ficando atrs deles os chefes das famlias que os
tomaram para criar. Estes, a um sinal dado fazem-lhes estourar a cabea a
macetadas, os corpos sendo em seguida devorados, por entre diablicas danas
que duram toda a noite. Ocasies h em que se poupam as raparigas durante
cinco ou seis anos antes de mat-las. Todos quantos no pertenam tribo sero
assim infalivelmente sacrificados. (...) De resto, os Apiacs matam os inimigos
no campo de batalha, mas no os torturam. (...) Os Apiacs mantm guerra
contra os Mutoniuenes e os Sitivas que so por igual antropfagos. O ouro,
segundo contam, abundante nas terras em que habitam, mas dele no fazem
nenhum caso, tendo-o como o deus dos brancos. Os Apiacs tm os seus
feiticeiros, dormem em redes e habitam aldeamentos constitudos de uma nica
habitao feita de paus e de tamanho bastante grande: para abrigar vrias
centenas de habitantes. Informou-me ainda o mesmo ndio que o rio Juruena
habitado por quatro naes indgenas: os Apiacs, os Oropis, que falam a
mesma lngua (...), os Borors e os Cauavas, que foram repelidos para as
margens do rio, pelos Apiacs (Castelnau 2000: 332-3).
As guerras de vingana, a captura de cabeas e os ritos antropofgicos
configuravam uma matriz cultural tupi na regio dos formadores do Tapajs. Numa
reinterpretao das guerras de vingana e dos ritos antropofgicos praticados pelos
25

A descrio de Castelnau sobre a vida post mortem apiak evoca o Guajupi, espcie de paraso
terrestre dos tupinambs antigos (Mtraux 1979: 112), para onde iam os guerreiros e demais homens
valorosos, onde as almas viviam em abundncia, saltando, cantando e divertindo-se sem cessar
(Fernandes 1949: 195). Os apiaks com quem convivi em 2007 dizem que a alma dos mortos vai para
o paraso, um lugar agradvel onde ficam na companhia de Bahra (ver captulo 4).

51

tupinambs, analisados por F. Fernandes nos anos 1950, Carneiro da Cunha e Viveiros
de Castro (1986) propem que a vida social daqueles indgenas era funo da produo
do par matador-inimigo, de tal modo que a necessidade de vingana, decorrente do
canibalismo, colocava em relao de hostilidade permanente os grupos envolvidos em
confrontos (Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro 1986: 65), no tanto no sentido de
evocar relaes passadas, mas, sobretudo, no de estabelecer as bases para relaes
futuras.
Para estes autores, o ponto principal que o inimigo morto em terreiro deixava
uma memria de vingana que cabia aos vivos honrar; dessa forma, os inimigos
passam a ser indispensveis para a continuidade do grupo, ou melhor, a sociedade
Tupinamb existe no e atravs do inimigo (: 70). A memria assim posta a servio do
futuro leva os autores a classificar as sociedades tupis como mquinas de tempo (em
oposio s mquinas de suprimir o tempo em que se constituiriam as sociedades
js), como sociedades que tm conscincia de sua histria e lhe conferem papel central
em sua auto-inteligibilidade (: 75). A guerra de vingana tupinamb exprimiria, pois, a
abertura para o alheio, o alhures e o alm: para a morte como positividade necessria
(: 76).
Reafirmando a tese de Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro, Fausto (1992)
explica que
A continuidade da vindita era fundamental para uma sociedade
que, em sua nica grande cerimnia coletiva, tinha em seu centro o inimigo, e
no a imagem unificadora da chefia ou de um corpo social homogneo, como
pensaria P. Clastres. Uma economia poltica da destruio, voltada para o
exterior, que fazia da morte (guerreira) uma condio da vida social. (Fausto
1992: 393)26
Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro afirmam que a quebra do crnio do
inimigo era mais importante que a antropofagia para os tupinambs quinhentistas
(Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro 1986: 60). Os apiaks e os kaiabis no
dedicavam s cabeas de inimigos o tratamento ritual altamente elaborado verificado
entre os mundurukus, mas um velho munduruku no baixo Teles Pires me disse que os

26

Ver o instigante artigo de Kelly Luciani (2001) para uma anlise das guerras e do processo de produo
de pessoas entre os tupinambs inspirada na teoria da troca melansia. O autor demonstra a
centralidade dos processos e substncias corporais para diversas concepes de pessoa na Amaznia,
interpretando-as do ponto de vista da pessoa melansia, eminentemente dual e divisvel,
transformacional e transacionvel. De modo a corroborar a hiptese de Luciani, recordo o argumento
de Fausto (1992: 392) de que a morte em praa pblica era a morte desejvel no apenas por ser
heroica, mas tambm por sublimar a poro corruptvel da pessoa.

52

apiaks antigos faziam cintos com dentes de inimigos mortos em guerra


(especialmente brancos), e Guimares (1865: 308) menciona que os homens apiaks
presenteavam suas esposas com colares de dentes de inimigos, enquanto os kaiabis
atribuam enorme importncia quebra do crnio (Senra 1999) e confeccionavam
colares com os dentes do inimigo.
P. Menget afirma que as cabeas valorizadas pelos mundurukus eram as de
inimigos de outros grupos, especialmente os parintintins, sater-maws e apiaks, no
havendo referncia caa a cabeas de brancos (Menget 1993: 314). As cabeas-trofu
eram objeto de um longo e complexo ritual que focalizava a dinmica da reproduo
geral (: 318) e exprimia a hostilidade em todos os nveis sociais e cosmolgicos (: 320),
evocando o evento da morte em terreiro dos inimigos dos tupinambs (: 315).27
Tais prticas, que tanto aguavam a curiosidade dos europeus, provavelmente
foram abandonadas na segunda metade do sculo XIX. Nesta poca, os povos indgenas
no norte da Provncia, estabelecidos ao longo do sistema fluvial Arinos-JuruenaTapajs, tornaram-se importantes para os governos de Mato Grosso e do Par (o rio So
Manoel, mais tarde batizado de Teles Pires, s seria explorado no sculo XX), regio
que abrigava muitas riquezas naturais, alvo do interesse de particulares paulistas e dos
governos provinciais de Mato Grosso e Par. Surgiu ento a necessidade de averiguar
ou, mais propriamente, de definir sua ndole em termos do grau de utilidade ou de
ameaa que representavam para os empreendimentos do governo centralizado.
Em 1837, o presidente da Cmara Legislativa Provincial em Cuiab, Jos
Antnio Pimenta Bueno, destaca a boa ndole dos apiaks e os servios que eles
poderiam prestar na navegao do Juruena para o Par. Em 1846, o presidente da
Provncia de Mato Grosso, Ricardo Jos Gomes Jardim, escreveu que os apiaks eram
uma nao pacfica e numerosa somavam ento aproximadamente 2.700 pessoas
que por si mesma tem procurado a civilisao (Gomes Jardim 1869: 550). Exmios
canoeiros, pescadores e agricultores, os apiaks colaboravam com os colonizadores na
navegao e no fornecimento de alimentos, grandes conhecedores que eram e so
daqueles rios e matas.
Nesse contexto poltico-administrativo, foi criada em 1848 a Diretoria Geral de
27

Os jurunas (tupis) tambm faziam trofus com cabeas de inimigos, mas, assim como parecia ocorrer
entre os apiaks e diferentemente do que se passava com os mundurukus, suas guerras no podem ser
caracterizadas propriamente como guerras de caa de cabeas. Os jurunas explicam o valor da
cabea-trofu pela alegria que ela lhes proporcionava durante as festas as grandes cauinagens que
encerravam os ritos de homicdio (Stolze Lima 1995: 335).

53

ndios da Provncia de Mato Grosso; num relatrio, o primeiro diretor geral classificava
da seguinte maneira as sociedades indgenas na Provncia: 1) as que vivem sob nossas
vistas; 2) as que, vivendo ainda no primitivo estado de independncia, todavia
relacionam-se connosco; 3) as que nos hostilizam e mostram-se no dispostas a mudar
seu modo de existncia. E. P. Barros (1987) demonstra como esse esquema
classificatrio norteou a poltica indigenista imperial at o final do sculo XIX. Os
apiaks, sublinhe-se, foram arrolados na segunda categoria, e a expresso primitivo
estado de independncia refere-se principalmente prtica de guerras e antropofagia.
Estabelecida, enfim, a rota comercial entre Cuiab e Belm, outro importante
problema se impunha aos governantes: o povoamento e a extrao organizada de
riqueza de uma regio considerada longnqua e inspita. Quais seriam, ento, os
melhores povoadores e os trabalhadores mais capazes? Nos registros da segunda
metade do sculo XIX, de maneira geral os apiaks figuram como dceis,
trabalhadores e sobretudo teis para o Imprio, em oposio aos ferozes e
perigosos

kaiabis

(tupi-guaranis),

tapaynas,

parintintins

(tupi-guaranis)

nambiquaras (famlia isolada). A referida colaborao, no entanto, no vigorou o tempo


todo, em toda parte; foi, antes, uma estratgia relacional localizada adotada pelos
ndios.
Assim, em 1854, um morador de Diamantino informou ao Presidente da
Provncia que os apiaks estavam reduzidos a menos da quarta parte da populao
registrada para os primeiros anos do sculo XIX, tendo sido salvos da extino pela
forte e guerreira nao Munduruku (Prudncio 1904: 7). A natureza da relao com
os mundurukus, no entanto, equvoca; o engenheiro M. G. Tocantins (1877), de
passagem pelo alto Tapajs em 1875, relatou que os mundurukus perseguiram os
apiaks at que estes se estabeleceram no Salto Augusto (mdio Juruena). Alguns anos
depois, em 1861, o gegrafo ingls W. Chandless, partindo de Diamantino, encontrou
ndios apiaks no rio Arinos, escrevendo que: Os Apiacares so uma pequena tribo, e a
primeira que encontramos que entende a Lngua Geral: diz-se que uma grande parte da
tribo, no desejando manter relao com os brancos, retirou-se e se estabeleceu no rio
So Manoel (Teles Pires) (Chandless 1862: 273).
Naquele momento, os apiaks iniciavam seu deslocamento para o norte, onde,
nas dcadas seguintes, acabaram se deparando com outras turmas de seringueiros,
provenientes do Par. Desenrolava-se ento a Guerra do Paraguai (1864-1870), que
isolara Cuiab e forava a intensificao do comrcio atravs dos tributrios orientais
54

do Amazonas, especialmente o Tapajs, em detrimento do Madeira.


Passemos agora ao estudo da concepo apiak sobre o contato e as mudanas
subsequentes, tendo em mente que a anlise das categorias centrais da historicidade
indgena pode nos ajudar a desnaturalizar conceitos que se emprega de modo muitas
vezes irrefletido, bem como a superar os termos do discurso simplista da aculturao. A
grande questo a considerar, e que, por ora, posso apenas enunciar, a dos mecanismos
indgenas de produo da transformao, algo como uma teoria nativa sobre o processo
de recriao das tradies.28

1.2- O tempo do seringal


O passado a que se referem os apiaks em suas narrativas corresponde aos
ltimos anos do sculo XIX, quando a frente da borracha estava plenamente
estabelecida na borda meridional da Amaznia. Tais narrativas tematizam o processo
de declnio populacional, mistura tnica, disperso territorial e progressiva
civilizao por que passaram estes indgenas. O trao mais marcante da memria
apiak a afirmao da adeso voluntria ao modo de vida civilizado que consiste,
basicamente, em acesso regular a mercadorias e contato com a f catlica. Estes apiaks
que se definem como mansos e que passaram a viver em comunidade no sculo
XX, opem-se aos parentes que se internaram na mata e ainda vivem de modo
independente e tradicional os isolados do Pontal.
Em meados do sculo XIX, o estabelecimento da frente da borracha assumiu
propores catastrficas para os povos indgenas da regio. As utilidades da Hevea
brasiliensis comearam a ser divulgadas na Europa pelo naturalista francs Charles de
La Condamine, que viajou pelo Amazonas em 1743 e observou que os indgenas
extraam um lquido viscoso daquela rvore, o qual, aps coagulado, transformava-se
numa substncia malevel, elstica e impermevel, porm muito sensvel a alteraes
de temperatura (Weinstein 1993: 22). A regio amaznica passou a exportar borracha
bruta para a Europa nas primeiras dcadas do sculo XIX, permanecendo como nica
produtora mundial at 1880. A baixa Amaznia foi a sub-regio com o envolvimento
28

Esta proposta aproxima-se do projeto de antropologia reversa de S. Kirsch (2006), inspirado na anlise
de R. Wagner sobre cargo cults na Melansia. Kirsch fala em modos indgenas de anlise e se prope
pensar de que forma eles impulsionam aes polticas num cenrio internacional dominado pelo
capital. O autor demonstra que, na Melansia, as transformaes sociais so concebidas como trocas
um timo exemplo de historicidade que manteremos em mente ao longo da tese.

55

mais longo com o negcio da borracha, sediando o mais importante centro comercial
regional, Belm. No Par, as maiores concentraes de Hevea ocorriam na regio das
ilhas e ao longo dos sistemas fluviais do Tapajs e do Xingu, cujos cursos principais
contam com muitas quedas dgua, o que torna a navegao extremamente difcil (: 57).
O aumento estrondoso da demanda por ltex foi impulsionado pelo
desenvolvimento da indstria de pneus, aps 1900. A partir de 1912, no entanto, pases
asiticos tiveram sucesso no cultivo da Hevea, sobrepujando a produo dos seringais
nativos amaznicos. De acordo com B. Weinstein, a borracha teve um impacto limitado
na economia amaznica, na medida em que as relaes tradicionais de produo e de
troca no foram alteradas significativamente; para a autora, a indstria da borracha
acomodou-se a um modo de produo pr-capitalista.
O negcio da borracha conheceu sucessivos momentos de pico e de declnio,
sujeito que estava s flutuaes de preos do mercado internacional e desamparado pelo
Estado brasileiro. O padre Joo de Moura e Silva, profundo conhecedor da regio, fala
em quatro etapas da indstria da borracha no norte de Mato Grosso, protagonizadas por
diferentes atores, a saber: i) nos anos 1870, o major Jos Vieira da Silva Coqueiro
atingiu o territrio rikbaktsa, ao longo dos formadores do Juruena; a Hevea era cortada
a machadinha e o ltex era defumado; ii) em 1912 foi lanado o Plano Brasileiro de
Defesa da Borracha, que contou com o apoio da linha telegrfica estabelecida por
Rondon; nesta etapa, o alego (faca afiada, retorcida e presa a um cabo) substituiu a
machadinha; iii) em 1942, Joo Alberto Lins de Barros retomou a explorao de
seringueiras, com apoio do Banco da Borracha, mais tarde incorporado ao Banco de
Crdito da Amaznia; o ltex passou a ser coagulado em canecos fixados ao p das
rvores; iv) a ltima etapa, iniciada em 1968, caracterizou-se pela explorao de
seringueiras enxertadas, incentivada pelo governo federal (Moura In Dornstauder 1975:
4).
Cercados por seringueiros, a maioria dos apiaks acabou se engajando na
extrao de ltex, mas, ao final do sculo XIX, uma frao do povo retornou para a
floresta, recusando terminantemente o contato com os brancos.
Em 1895, H. Coudreau registrou, no baixo Juruena, aproximadamente 100
ndios apiaks vivendo em cinco aldeias, duas delas chefiadas por seringueiros noindgenas (Coudreau s. d.: 238). O livro de Coudreau traz um desenho do capito
Benedito, chefe dos apiaks que viviam nas imediaes da cachoeira So Florncio,
bem como a informao de que a importante maloca apiak chamada Bananal Grande
56

havia sido incendiada, em 1892, pelos tapaynas, na ausncia de seus moradores (:


107). O capito Benedito o homem representado como no. 5 no Diagrama 5.1.
No alto curso do rio Tapajs, o viajante deparou-se com ndios sater-maws e
mundurukus engajados na indstria de extrao de ltex, reduzidos numericamente e
ligados a regates e seringalistas por relaes de dvida, no mbito do sistema de
aviamento. Por sua vez, acima do Salto Augusto, barreira natural no baixo curso do rio
Juruena, os tapaynas, nambiquaras, parintintins, bakairis (carib) e kaiabis ainda
resistiam bravamente ao contato com os brasileiros. O livro de Coudreau oferece um
rico panorama de todo o vale do Tapajs nos ltimos anos do sculo XIX. Chefiando
uma comisso cientfica enviada pelo governo do Par, Coudreau reuniu informaes
geogrficas, econmicas e etnogrficas com o objetivo declarado de fornecer ao
governo paraense elementos para uma estratgia de colonizao da regio do Pontal,
um tringulo de mata fechada delimitado pelos rios Juruena e Teles Pires, disputada,
naquela poca, com o governo mato-grossense.
Tendo como ponto de apoio na jornada casas de seringalistas e, como guias,
ndios das etnias apiak e sater-maw, a expedio atravessou a regio de seringais,
visitou aldeias e conviveu intimamente com os moradores brasileiros desse
Contestado,29 particulares que desenvolviam suas atividades comerciais sem a
autorizao do governo. Coudreau descreveu a rea como um deserto, contendo
riquezas naturais ainda inexploradas. Naquela poca (e ainda hoje), as cidades
paraenses de Itaituba e Santarm eram centros comerciais importantes, bastante
frequentados pelos mundurukus e apiaks.30
No ano de 1910, foi instalada a estao de telgrafo no alto Juruena, no
territrio nambiquara. Em dezembro de 1911, uma equipe da Comisso de Linhas
Telegrficas Estratgicas de Mato Grosso ao Amazonas foi incumbida de realizar a
explorao dos rios Juruena e Tapajs, a partir de Cuiab. O relatrio do capito
Manoel Theophilo da Costa Pinheiro informa que Os Apiacs, de que tinhamos certeza
encontrar no Salto Augusto, nem vestigios vimos, porm, no Salto Augusto, pela
margem esquerda, viram-se velhos signaes de um grande aldeiamento dos Apiacs (do
grupo tupi), de onde o barbaro collector do S. Manuel, Paulo Correia, posteriormente
assassinado pelos seus sequazes, mandra expulsar aquelles indios matando grande

29
30

At hoje o Pontal do Mato Grosso reivindicado pelo estado do Par.


Os primeiros assentamentos de colonos ao sul de Itaituba foram estabelecidos apenas nos anos 1850. A
navegao a vapor ligando Itaituba a Santarm foi inaugurada nos anos 1870.

57

parte delles, para roubar-lhes as mulheres (Rondon 1915: 42). A jusante da cachoeira
das Furnas (mdio Juruena), na margem esquerda do rio, os viajantes encontraram
campos bem cuidados, que parecem ser de Apiacs (: 72).
Informaes relevantes sobre a regio do alto Tapajs so encontradas no livro
do proeminente comerciante e prefeito de Itaituba, R. P. Brasil, publicado em 1910:
O Governo procurou chamar os Tapuyos do Tapajs ao convvio
social, aproveitando-lhes os braos para maior incremento da industria
extractiva e para a cultura do solo, mandando, por vezes, frades, em misso,
tratar da catechese. Nada, porm, de practico, positivo e til conseguiu, apezar
das quantias despendidas. Foram os negociantes que realizaram os desejos da
communhao paraense, aventurando-se, pouco a pouco, para alm e mais
distante, marcando os caminhos pelas cachoeiras e abrindo trilhos nas matas
densas. E hoje, com relativa felicidade, dado chegar aos limites do Estado e
amontoar os productos naturaes, que engrossam a fortuna publica (Brasil 1910:
10).
A contenda territorial e fiscal com o estado de Mato Grosso estendeu-se por
todo o sculo XX. Animados com os lucros provenientes da borracha, particulares
paraenses empreendiam a colonizao do alto Tapajs, chegando a solicitar o apoio de
missionrios que tornassem disponvel a fora de trabalho indgena por meio da
pacificao dos povos ainda arredios que habitavam a regio, porm recusando uma
presena mais efetiva do Estado: O Tapajs povoa-se s pelo esforo individual e
absolutamente no necessrio, para tanto, emprezas subvencionadas de povoamento e
civilizao (Brasil 1910: 63), decretava aquele negociante, ao mesmo tempo em que
exortava os patrcios a perseverarem na empresa colonizadora: As margens do
Tapajs, mesmo estas, nas cachoeiras e na maioria dos logares, esto ainda
inexploradas, inoccupadas. Todavia, tm borracha, muita borracha! (: 87). A propsito
da numerosa populao munduruku na regio, o comerciante vislumbrava os benefcios
advindos da explorao de sua fora de trabalho, especialmente no que toca o
transporte dos gneros, problema crucial numa rea de muitas cachoeiras:
Comprehende-se o que sera o aproveitamento desses dois mil braos
vadios e fortes nos diferentes servios do commercio e da industria. Basta dizer
que os negociantes da zona transportam com penosas difficuldades os cereaes de
primeira necessidade, todos importados, o que se tornaria desnecessrio se
houvesse as misses, pois que, com o aproveitamento dos ndios ociosos, ellas
produziriam fartamente os gneros de maior consumo no Tapajs (: 107).
A virada para o sculo XX foi um perodo particularmente nefasto para os
apiaks, que comearam a ser perseguidos sistematicamente em 1902, por ocasio da

58

instalao da sede da Coletoria de Impostos de Mato Grosso no local chamado Barra de


So Manoel (ponto a jusante da confluncia entre os rios Juruena e Teles Pires, j no
Tapajs, que hoje uma vila pertencente ao estado do Amazonas), dentro dos limites da
rea disputada com o governo do Par. Em 1910, a produo total de borracha do
municpio de Itaituba era de 655 mil quilos, mas o coletor do Mato-Grosso cobrava
impostos sobre a produo do baixo Teles Pires, na margem direita (lado paraense), que
chegava a 71 mil e quinhentos quilos (Brasil 1910: 90). R. P. Brasil exprimiu a
indignao dos negociantes paraenses com o fato:
Tenho procurado todos os meios para chamar a atteno sobre este
ponto, de modo que o municpio de Itaituba e o Estado do Par deixem de
soffrer tal leso. H mui pouco tempo, conferenciei, largamente, com os Ex.mos
Srs. Governador do Estado e Chefe de Policia, referindo todo o verdadeiro sobre
actos criminosos, de pura selvageria alguns, practicados pelos agentes fiscaes do
vizinho Estado homens que, por vezes, tm patenteado instinctos
sanguinrios. O penltimo agente, Paulo Corra, victima de seus prprios
sequazes, como consta, assassinou barbaramente diversos moradores daquella
abandonada regio; o actual, Francisco da Silva Paes, fero e truculento, tem
mandado assassinar diversos moradores, no respeitando os seus sequazes,
tambm para homicdios, o territrio paraense. Tudo isto ficou provado por
mim, na qualidade de Prefeito de Itaituba (Brasil 1910: 91).
Naquele momento, o preo da borracha no mercado internacional havia cado
consideravelmente. Sucessivamente, os quatro primeiros coletores em Mato Grosso,
Thomaz Carneiro, Ernesto Carneiro, Fabio Freire e Paulo Corra, moveram guerra
contra os apiaks, chegando a dizimar uma aldeia inteira na cachoeira So Florncio, no
baixo Juruena (Rondon 1915).
Um dos principais motivos alegados para as perseguies era a captura de
mulheres apiaks, mas a recorrncia dos massacres e violncias contra os trabalhadores
da frente da borracha indica que esta era a regra no regime de trabalho que ento
vigorava na regio, com o consentimento (tcito ou no) do Estado. Em conferncia
proferida em 1915, o Marechal Rondon denunciou os desmandos de Paulo Corra,
qualificando sua atitude como brbara e cruel (Rondon 1915: 42). Apenas por volta
de 1910 as violncias tiveram fim, com a chegada do coletor Jos Sotero Barreto, que
reuniu 32 sobreviventes apiaks na Barra de So Manoel, os mesmos que foram
encontrados pelo j citado capito Manoel Theophilo Costa Pinheiro, membro da
Comisso Rondon, em 1912 (Pyrineus de Sousa 1916, Rondon 1916: 218).
As relaes amigveis estabelecidas com os brancos no sculo XIX
deterioraram-se na virada para o sculo XX. Quando falam sobre a histria do povo, os
59

homens influentes destacam os massacres empreendidos por particulares contra o povo


naquele momento. Uma histria emblemtica para os apiaks a da morte do citado
Paulo Corra, patro poderoso, na primeira dcada do sculo XX. De acordo com um
dos ltimos falantes do idioma apiak:
Tinha uma ndia apiak, a mulher do Paulo Corra, era ela que atiava
o pessoal dele para matar apiak: Pode matar apiak, apiak no presta. A o
pessoal sentava o pau, l na Barra. A os apiaks fugiram da Barra, foram para o
So Tom, foram fazer a aldeia Apiakatuba: Aqui nosso lugar, Apiakatuba,
se escondendo por causa daquele pessoal. A foi indo, at que terminou essa
briga deles, os apiaks ficaram mansos, acabou o medo dos brancos. (...) Eles
pegaram a cabea do Paulo Corra l na Barra mesmo, o guaxeba dele, branco
mesmo, entregou para os apiaks: Aqui a cabea do seu cunhado; ele matava
um monte de parente de vocs, agora vocs levam para a aldeia de vocs. A
eles foram por terra de novo; atravessaram o rio Bararati e o Ximari, na banda
do Amazonas. Quando chegaram na boca do So Tom, atravessaram para esse
lado do Pontal. A pegaram a estrada deles e vieram embora. Chegaram na
aldeia, falaram: Olha a cabea do Paulo Corra. O amigo dele mesmo entregou
a cabea para fazer festa. Ento ns trouxemos. A pintaram a cabea dele de
urucum, botaram urucum no buraco dos olhos dele, riscaram tudo, passaram
jenipapo, ficou pretinho, tornaram a riscar do outro lado, aqueles riscos no rosto,
ficou diferente. Voc conhece aquele cara que matava nossos parentes? No.
Olha a ele, o capito dizia. Era assim. Mas era festa direto, vrios dias. Dizem
que ele matava gente demais, at branco ele matava.
Contando a mesma histria, o atual cacique de uma das aldeias apiaks, bem
mais jovem, acrescentou: Eles fizeram festa para comemorar a libertao do povo e a
morte da ona que estava comendo os parentes. Como se nota, o tempo do seringal
inicia-se com a ltima guerra travada nos moldes tradicionais. Os apiaks parecem
empregar o nome Paulo Corra como uma figura de linguagem, uma posio
discursiva que pode ser ocupada por diferentes pessoas, e que remete configurao do
modo de vida contemporneo.
O tratamento dispensado cabea de Paulo Corra destinava-se a torn-la
irreconhecvel, isto , a transform-la fisicamente em cabea de inimigo, para que
pudesse ocupar o lugar constitutivo reservado alteridade no simbolismo tupi. De
acordo com C. Fausto (2001), a diferena subjetivada do inimigo morto seria o
principal butim das guerras de vingana do passado. Este autor interpreta a guerra
amerndia como uma espcie de consumo produtivo, explicitando seu aspecto de
destruio e gasto produtivo. Afastando-se da hiptese de Lvi-Strauss (1976), segundo
a qual a guerra resulta de uma relao matrimonial ou comercial mal-sucedida,31 Fausto
31

O mrito da hiptese de Lvi-Strauss (1976) apontar para o carter integrativo da guerra e dos ritos

60

defende que a guerra no pode ser reduzida esfera da circulao nem confundida com
a operao da troca (: 328); sua posio a de que se deve olhar tambm para a
destruio e o consumo dos corpos para compreender o processo produtivo amerndio.
O abandono das guerras de vingana e da antropofagia, prticas de importncia
capital para os apiaks at a segunda metade do sculo XIX, de acordo com Guimares
(1865) e Nimuendaju (1963a, 1963b), trouxe consequncias decisivas para a
reproduo sociocultural do povo. No possvel avaliar em que medida a catequizao
e a reduo populacional devida a epidemias e a massacres influenciaram a renncia
coletiva, mas extremamente significativo constatar que a festa com a cabea de um
branco poderoso assinala, nas narrativas dos velhos apiaks, o desfecho da era das
guerras: A foi indo, at que terminou essa briga deles, os apiaks ficaram mansos. A
mansido que caracteriza os apiaks misturados no presente ganha assim uma
inscrio temporal mais ou menos precisa (incio do sculo XX) e uma nova camada de
significado, pois que no se refere apenas ao acesso regular a mercadorias e f
catlica, mas tambm cessao dos confrontos blicos.
A relao entre ambos os eventos acesso s mercadorias e ao catolicismo e
interrupo das guerras parece, alis, ser concebida pelos apiaks como uma
substituio brusca (e no uma evoluo linear) da qual eles foram co-autores em
alguma medida. Assim, as longas perseguies a inimigos a serem canibalizados foram
de certa forma substitudas pelo acesso negociado a bens industrializados e liturgia da
salvao, exprimindo o incio de uma nova poca histrica, em que os apiaks adotaram
um estilo de vida diferente no qual, contudo, a alteridade continua desempenhando
papel constitutivo.
C. Fausto cunhou o termo desjaguarificao para se referir negao do
canibalismo como condio geral do cosmos e mecanismo de reproduo social, tal
como experimentada, por exemplo, pelos guaranis contemporneos, cuja cosmologia se
caracteriza pela disjuno de elementos intimamente ligados em outras cosmologias
tupi-guaranis, designadamente o guerreiro e o xam (Fausto 2005: 396). Aps sculos
de contato intensivo com a f catlica, os guaranis teriam suplantado o plo-jaguar de
seu xamanismo, associado ao sangue, caa, morte, guerra e ao exterior, passando a
adotar a tica do amor e da mansido, voltada para o interior do grupo, e selecionada

antropofgicos dela decorrentes, que consistiria em prover uma imagem de grupo coeso em relao ao
exterior, bem como uma possibilidade de alterao de status social. Em linhas gerais, a tese de F.
Fernandes (1970) sobre a guerra tupinamb bastante semelhante de Lvi-Strauss.

61

em detrimento de outros imperativos catlicos, como a punio e o inferno. Creio que


um processo anlogo se deu entre os apiaks no sculo XX (ver captulo 4).
Por sua vez, a ona, animal singular na cosmologia de vrios povos tupiguaranis, especialmente temida pelos apiaks, alm de ser o principal animal em que
um co-residente pode se metamorfosear para praticar aes nefastas na aldeia32 e o
pior xingamento que se pode dirigir a um afim que no corresponde s expectativas
criadas pelo casamento.33 significativo, pois, que num momento de crise o afim
poderoso tenha sido equacionado simbolicamente ao principal inimigo animal dos
apiaks, e que a ele tenha sido dispensado o tratamento ritual anteriormente reservado
aos inimigos indgenas, principalmente levando-se em conta a opo histrica dos
apiaks pela aliana com os brancos.
Alm disso, digno de nota que os apiaks que estavam na Barra de So
Manoel tenham retornado aldeia no interior da floresta para realizar a comemorao,
evocando os ritos decorrentes das guerras de vingana dos tupinambs quinhentistas
(Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro 1986; Fernandes 2006). Os apiaks dizem
que a Barra de So Manoel deveria ter se transformado numa cidade como Santarm,
pois uma povoao muito antiga. Porm, paira sobre ela uma maldio: Ali
aconteceu muita coisa feia, morreu muita gente, por isso no vai pra frente. Contam
que em suas imediaes existe um igarap onde at hoje, no vero, corre o sangue dos
apiaks aoitados no passado.
De modo complementar, proponho que a relao de afinidade mencionada na
narrativa, expressa na palavra cunhado, remete atitude amerndia de abertura para o
Outro que, de acordo com C. Lvi-Strauss, se manifestou com toda a clareza quando
dos primeiros contatos com os brancos, embora estes fossem animados de disposies
bem contrrias (Lvi-Strauss 1993: 14). O lugar dos brancos, marcado em vazio no
pensamento amerndio, foi assim preenchido pelos apiaks (e por muitos outros povos)
com uma relao de afinidade (Coelho de Souza 2008). Embora seja percebida pelos
apiaks como produtiva em muitos sentidos, a relao de afinidade estabelecida com
forasteiros jamais deixou de guardar seus riscos. No interior da comunidade apiak
contempornea, porm, a afinidade no tem grande rendimento simblico; casa-se com

32
33

O tema das metamorfoses ser desenvolvido no captulo 4.


De acordo com Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro (1986: 66), a ona podia desempenhar o papel
de cativo de guerra entre os tupinambs, sendo morta em terreiro e conferindo um nome a seu
matador, embora sua carne jamais fosse consumida; a ela destinava-se um discurso inverso ao da
vingana, na medida em que falava de esquecimento e no de novas mortes.

62

consanguneos distantes ou com forasteiros conhecidos de longa data, e concebe-se que


a co-residncia capaz de aplacar o componente de alteridade que caracteriza todos
aqueles que no so consanguneos prximos (ver captulos 3 e 4).
Mas, como sublinham meus interlocutores nessa narrativa de origem dos
apiaks misturados, o patro no agiu sozinho, ele contou com ajuda de uma mulher
apiak, uma traidora que atuou como elo de ligao entre duas categorias sociais
distintas. A morte de Paulo Corra constitui, de fato, um marco na histria do povo, um
ponto de referncia em relao ao qual se pode dizer que h um antes e um depois.
Entretanto, nesse movimento, a prpria identidade social de Paulo Corra colocada
em xeque: um patro que se torna afim e age como ona, desconsiderando a dimenso
de ddiva contida na relao matrimonial (aos olhos dos apiaks) e devorando as
pessoas, morto e festejado como um inimigo. Sua morte inaugura um novo perodo na
histria dos apiaks, que se tornam mansos (abandonam as guerras) e passam a ter
acesso a novos objetos e ideias.
Tal narrativa revela, pois, uma sociologia apiak, de acordo com a qual a
vestimenta, a habitao e a culinria, enquanto signos de estilos de vida diferentes,
foram selecionadas como reas crticas de aculturao, no interior de um jogo
intercultural da estrutura (Sahlins 2008: 64ss). Como demonstra Sahlins para o
contexto havaiano, em que os chefes nativos pareciam se precipitar ao encontro de sua
prpria perdio cultural, esse tipo de aculturao reflete princpios havaianos
bsicos e, em virtude desses princpios, tal aculturao mais seletiva que
indiscriminada. (: 64). Dessa forma,
um acordo intercultural bsico foi travado a respeito do valor das
diferenas entre europeus e havaianos, porque se, para os estrangeiros, elas
significavam a oposio entre civilizaoe barbrie, a distino havaiana
anloga entre chefes e pessoas do povo representava uma diferena entre cultura
e natureza. Para ambos (havaianos e estrangeiros), era importante como e se
estava vestido, como e o que se comia, onde se habitava (: 65)

Nesse sentido, falar sobre o ritual com a cabea de Paulo Corra nos dias de
hoje parece ser uma demonstrao da capacidade de superao de um perodo
especialmente traumtico. Os apiaks, de fato, quase foram dizimados e, sem dvida, se
transformaram, mas continuam concebendo a histria em termos prprios, isto ,
continuam acreditando que o inimigo indispensvel para a perpetuao do grupo.

63

Assim, se o pendor guerreiro desapareceu na prtica, permanece, contudo, bastante vivo


no discurso poltico.
O fato de os apiaks chamarem Paulo Corra de ona e de atriburem a um
no-indgena o uso do termo cunhado indica a insero da relao econmica no
esquema conceitual do parentesco, acionado pela lgica da ddiva. Nesse sentido, em
que pese o componente inegvel de explorao contido no sistema de aviamento, o
emprego de ambos os termos para se referir ao patro sugere que os apiaks
concentravam sua ateno no espao (e no tempo) deixado em aberto por este sistema
econmico, que eles preenchiam com uma relao de parentesco ou amizade, marcada
pela imprevisibilidade. A relao de patronagem mostrava-se em geral duradoura, e a
entrega das mercadorias era vista pelos indgenas como funo da generosidade do
patro, enquanto a quantidade e a variedade de bens que ele era capaz de acumular
exprimiam a medida de seu poder.
A memria coletiva apiak ativada sobretudo para explicar a atual
configurao sociocultural do povo, e empregada para fundamentar a luta pelos direitos
civis. Sempre que falam sobre a perda da lngua indgena, de itens de cultura material e
da pintura corporal, alm da drstica perda populacional, os homens politicamente
atuantes evocam a histria de Paulo Corra, destacando no tanto as perseguies
empreendidas pelos seringalistas, as disposies guerreiras do povo ou a festa com a
cabea do grande patro, mas principalmente os pesados castigos fsicos aplicados
contra os empregados que no cumpriam as exigncias do patro, a imposio do
portugus como lngua franca e os raptos de mulheres nos seringais. Por outro lado, o
que a fala do velho apiak sublinha o papel de afim desempenhado por Paulo Corra
casado com uma apiak que o incitava a perseguir os prprios parentes , o esforo
despendido em transformar a cabea desse afim perigoso num objeto culturalmente
valorizado (um trofu de guerra), a alegria e a durao da grande festa.
O casamento entre uma ndia apiak e um afim estrangeiro uma metfora
central na histria apiak, que evoca a relao entre Malinche e Cortez no Mxico
colonial.34 Houve realmente um casamento entre o coletor de impostos que teria posto
fim sequncia de massacres contra os apiaks na Barra de So Manoel, por volta de
34

Fausto (1992) afirma que os tupis quinhentistas viam os brancos como parceiros de guerra e de troca e
como xams poderosos, sugerindo que o termo caraba (utilizado para designar xam e branco)
exprime um deslizamento de significado que ilumina o crculo hermenutico de (des)entendimentos
recprocos da histria colonial (Fausto 1992: 386). O emprego do termo cunhado para designar
Paulo Corra parece indicar um deslizamento de significado anlogo no horizonte do (des)encontro
colonial experimentado pelos apiaks.

64

1910, e uma mulher indgena. A meno a esta aliana matrimonial factual est num
documento escrito em 1936 pelo Delegado Especial do Norte, do Servio de Proteo
aos ndios (SPI), endereado a seus superiores em resposta a um questionamento sobre
a atuao dos coletores de Mato Grosso no caso das perseguies aos apiaks,
denunciada no livro Os indgenas do Nordeste, de autoria de Estvo Pinto, nos
termos seguintes: Os Apiacs do Tapajoz recentemente destroados pelas foras
fiscaes de Matto-Grosso (...).
O delegado comunicou a seus superiores que as perseguies e destroos aos
ndios Apiacs pelas foras fiscaes do Estado distam j de muitos annos,
acrescentando que Para pr em relevo a cordialidade com que este exemplar exactor
(Jos Sotero Barreto) agia na zona com os Apiacs, basta dizer que se consorciou com
uma Apiac e tem os seus filhos cursando as academias de direito e medicina, em
Belm. (SPI. Documento enviado por Antonio Antero Paes de Barros, Delegado
Especial do Norte, para Carlos Murtinho, Presidente do Grmio Precursor
Mattogrossense do Instituto Rondon, em 16 de maro de 1936).
A confuso dos nomes de Paulo Corra, seringalista de pssima reputao na
regio, e Jos Sotero Barreto, saudado no SPI por sua amizade pelos indgenas, leva a
crer que os apiaks concebem os patres de forma genrica e estereotipada, em
conformidade com uma histria dos sentimentos (Santos-Granero 2007: 57) em que
sobressai o valor moral das relaes, em detrimento de uma suposta objetividade dos
fatos (Kurkiala 2002).
Durante a pesquisa de campo, vrios apiaks me diziam, com orgulho, que h
ndios desta etnia atuando como dentistas, pilotos de avio, mdicos e outras profisses
concebidas como importantes em grandes cidades do Norte, todos eles casados(as) com
regionais. Chegaram mesmo a afirmar que a tataraneta de H. Florence, que os visitou
em 1997 e os presenteou com o belo livro da Expedio Langsdorff ao Brasil, uma
apiak.35 Some-se a isto a veemncia com que o velho apiak fala sobre o protagonismo
da esposa indgena de Paulo Corra nas perseguies contra os indgenas, e se
vislumbrar o desejo de meus interlocutores de sublinhar a agencialidade histrica do
povo.
35

A tataraneta de Florence percorreu o mesmo trajeto que a Expedio Langsdorff, acompanhada de uma
equipe da BBC de Londres, que realizou o documentrio No Caminho da Expedio Langsdorff.
Este foi um evento importante no processo de reestruturao poltica apiak, pois contribuiu para o
aumento da auto-estima do povo. O citado livro foi dado ao cacique mais velho do Mayrob e
guardado como uma relquia. M. Bartolom (2006) fala sobre o recurso literatura como motivao
importante para processos de etnognese (ver captulo 2).

65

Ao identificar aspectos diversos da mesma narrativa enfatizados por diferentes


sujeitos os homens influentes e os velhos , estou sugerindo que a memria apiak,
seletiva como toda memria o , especialmente em contextos de intensa desigualdade,
omite certos fatos que so, de outro modo, bastante elaborados em outras narrativas
convergentes, a saber, as lies sobre como utilizar as mercadorias e a devastao
causada pelas epidemias. Com efeito, os aspectos distintamente enfatizados da narrativa
explicitam significados, sentimentos e emoes diversos: enquanto o homem mais
velho fala em briga e no desfecho dramtico de uma relao de afinidade com um
patro, condensada no termo cunhado, os homens jovens politicamente atuantes falam
sobre a injustia da explorao econmica e sobre o roubo de mulheres, prtica
comum nos seringais.
Mas digno de nota que ambos os discursos silenciem sobre os contra-ataques
aos moradores da Barra de So Manoel empreendidos pelos apiaks, eventos
mencionados apenas por alguns mundurukus e regionais mais velhos; j a respeito da
antropofagia, o silncio geral (embora os apiaks digam em conversas ocasionais que
os antigos comiam algumas partes do corpo de um inimigo morto em guerra). O fator
geracional tem muito a nos dizer nesse caso: aquilo que os mais velhos entendem como
um regime de ddivas, os mais jovens percebem como espoliao e inserem num
discurso altamente politizado em prol da melhoria das atuais condies de vida.
F. Santos-Granero (2007) mostra que os yaneshas, povo arawak do Peru,
procuram apagar as injustias do passado por meio da identificao mimtica com o
Outro e de uma dialtica de esquecimento e lembrana, empregando um dispositivo
simblico que leva negao do poder do Outro e corresponde ao desejo de supresso
do tempo. Ao contrrio dos yaneshas, os homens influentes apiaks abordam em suas
narrativas as mudanas que experimentaram no ltimo sculo e reafirmam a convico
na produtividade da relao com o Outro, desde que possam acomodar os resultados
dessa relao aos princpios partilhados pelo grupo. Significativamente, a forma que os
apiaks encontraram para assegurar tal produtividade simblica nos novos tempos foi
adotar a linguagem das relaes comerciais sem, contudo, assumir a posio social e
simblica de empregados, mas tentando, de modo singular, ocupar a posio de
parceiros daqueles brancos que veem como poderosos, desejando assim contrabalanar
a estrutura de dominao. Se hoje em dia no se pode mais buscar cabeas de inimigos
com as quais festejar, parecem cogitar os apiaks, os brancos devem fornecer ao menos

66

objetos exticos que, ao circular entre as famlias extensas, sirvam reafirmao do


ideal comunitrio.
consenso entre os povos indgenas vizinhos que os apiaks tiveram sucesso
na criao de suas comunidades, uma vez que se afirma que eles conseguem captar os
bens que lhes asseguram o bem-estar material (fator de atrao para os kaiabis do Rio
dos Peixes) ao mesmo tempo em que mantm as relaes entre os co-residentes em um
nvel

considerado

satisfatrio,

sufocando

os

impulsos

de

anti-socialidade,

especialmente a feitiaria (fator de atrao para os mundurukus), a despeito dos casos


de metamorfose temporria que ocorrem nas comunidades apiaks (ver captulo 4).

********
Em 1916, o etngrafo W. C. Farabee, ao cruzar a rea da foz do Teles Pires no
Tapajs, afirmou ter encontrado os ltimos remanescentes Apiacas, antigamente uma
tribo numerosa e feroz, que falava um dialeto da lngua Tupi (Farabee 1917: 126).
Farabee anotou: Segundo eles mesmos, eram originalmente canibais nus, que comiam
os corpos dos inimigos mortos em guerra. Hoje, embora o trao de comer carne tenha
desaparecido, eles usam roupas apenas quando vo para perto dos seringueiros (:
ibidem).
Deve-se enfatizar, contudo, que os registros escritos no fazem meno aos
sobreviventes daqueles massacres, rememorados pelos apiaks, que se dispersaram ao
longo dos afluentes orientais do Juruena e mais tarde seguiram para o rio Anipiri,
afluente oriental do Teles Pires, no estado do Par, os quais frequentavam a Misso
Franciscana no rio Cururu (PA), que atendia os mundurukus e mantinha um rico
barraco de mercadorias.36 De acordo com a memria dos apiaks mais velhos que
entrevistei em 2007, nas primeiras dcadas do sculo XX os apiaks do Anipiri iam
Misso para vender ltex, peles de felinos e produtos de atividade extrativista, para
participar de festas, casamentos e batizados e, especialmente, para adquirir bens
manufaturados. Ao recordar essa poca, os homens e mulheres mais velhos deixam
entrever sua concepo sobre a relao que estabeleciam com os padres, que se daria
36

Em 1872, os salesianos haviam estabelecido a Misso do Bacabal no alto Tapajs, para atender os
mundurukus. Porm a presso dos seringalistas de Itaituba pela mo-de-obra indgena foi to grande
que a Misso foi abandonada quatro anos depois (Murphy 1960: 41). Em 1911, missionrios
franciscanos alemes construram um misso na margem esquerda do rio Cururu, tambm para
catequizar os mundurukus (chamada de Misso Velha). Sete anos depois, a misso foi transferida para
a margem direita do mesmo rio, permanecendo l at hoje, com o nome de Misso Cururu (: 45). Ver
Collevatti (2006) para um estudo detalhado da histria desta Misso.

67

nos moldes de um intercmbio entre produtos da floresta e bens industrializados e da


participao dos indgenas nos sacramentos catlicos. Mas logo sobreveio novo
infortnio: uma devastadora epidemia de sarampo atingiu a rea, quase dizimando essa
parcela do povo.
Nas primeiras dcadas do sculo XX, o Servio de Proteo aos ndios,
fundado pelo Marechal Rondon, deu incio construo de Postos de atrao e
pacificao no Mato Grosso. Em 1927, o etnlogo M. Schmidt visitou o Posto Pedro
Dantas, fundado poucos anos antes no alto Teles Pires para civilizar os indmitos
kaiabis que hostilizavam as expedies destinadas a explorar caucho (Castilloa
elastica, rvore que produz ltex de qualidade inferior e em menor quantidade que a
Hevea)37 (Schmidt 1942: 1). Schmidt relata que os kaiabis apenas visitavam o Posto
para receber presentes, mostrando-se bastante desconfiados; suas palavras do a
entender que o clima no Posto era muito tenso. Ele afirma que os kaiabis faziam guerra
contra os bakairis e eram amigos dos apiaks: No se conhecem dados exatos sobre
suas relaes com estes ndios, mas parece que os Kayabs so, de qualquer maneira,
dependentes dos Apiaks (: 29). provvel que os apiaks visitassem o Posto Pedro
Dantas em companhia dos kaiabis, uma vez que o etnlogo menciona o seguinte:
Os empregados do posto me disseram que, muitas vezes, chegavam tambm
com os Kayabs Apiaks, mas como os ndios no acusavam nada a respeito de
sua origem tnica e estes Apiaks mostravam um porte completamente igual
quele dos Kayabs, era difcil diferenci-los destes, de modo que no se podia
constatar se estavam entre eles alguns indivduos Apiaks. Em geral se atribui
aos Apiak uma influncia m sobre os Kayabs. (Schmidt 1942: 12)
Na dcada de 1930 foi fundada a Misso Jesuta de Utiariti, que se
responsabilizou pela catequizao em todo o municpio de Diamantino (MT), que ento
correspondia a 354 mil quilmetros quadrados, habitados predominantemente por
diversos povos indgenas (Silva 1999). Os jesutas arregimentaram crianas das etnias
apiak, kaiabi, irantxe (famlia lingustica isolada), nambiquara, pareci (arawak) e
rikbaktsa (ou canoeiro, do tronco macro-j) para viver em regime de internato, num
ponto s margens do rio Papagaio (afluente do Juruena). Na Misso, os indgenas
aprendiam portugus, matemtica, geografia, histria, religio, artes e ofcios, como
tric, corte e costura, bordado, artes culinrias (atividades femininas) e marcenaria,
37

A Hevea brasiliensis pode ser sangrada por 50 anos ou mais. As rvores dispem-se de modo
extremamente esparso pela floresta. Estima-se uma mdia de sete rvores por acre na Amaznia
oriental (Weinstein 1993: 312).

68

pecuria, serraria e mecnica (atividades masculinas) (: 408). Em 1956, a Misso


Anchieta passou a administrar a Misso de Utiariti, dispondo ainda de equipes volantes
que percorriam os rios do norte do Mato Grosso para evangelizar indgenas e regionais.
O padre alemo Joo Dornstauder, membro da Misso Anchieta, destacou-se a partir
dos anos 1950 por suas longas viagens, pela facilidade com que aprendia lnguas
indgenas e pelo sucesso na pacificao de ndios arredios.38
Nos anos 1940, os apiaks, que ento viviam ao lado dos mundurukus no rio
Tapajs e dos kaiabis no Teles Pires, so classificados por administradores como
remanescentes integrados ao meio regional (Arnaud 1971: 48). No difcil entender
a falta de ateno dispensada aos apiaks pelo SPI. Os apiaks isolados do Pontal em
geral no atacavam os brancos, no ofereciam risco empresa extrativista, no se
justificando, assim, tentativas de pacificao (salvo raras excees), enquanto os
apiaks civilizados j se encontravam plenamente integrados economia regional,
no se justificando tampouco a assistncia governamental. Nos arquivos do SPI
depositados no Museu do ndio, a nica foto dos apiaks que encontrei foi feita no
Posto Indgena de Atrao (PIA) Jos Bezerra, em 1964 (ver Anexo), e traz como
legenda as seguintes palavras: Uma famlia de seringueiros descendentes de ndios
Apiak. A caracterizao lacnica entretanto suficiente para perceber a mudana de
status desses indgenas, de povo silvcola para trabalhadores nacionais individuais, a
categoria descendentes suprimindo o carter de coletividade (cf. Oliveira 1998: 58).
Observa-se que o elemento que aproxima as classificaes administrativa e
antropolgica no sculo XX o mecanismo de estabilizar e simplificar uma realidade
mutvel e heterognea. No caso dos religiosos e administradores, cumpria definir
tipologias com vistas ao direta, isto , havia que elaborar formas de ao para
converter almas e ter acesso mo-de-obra indgena por meio da fixao espacial de
povos altamente mveis, que constituam uma rede de relaes baseada na troca e na
guerra. Por sua vez, a classificao adotada por D. Ribeiro e por E. Arnaud no
problematiza a classificao administrativa, mas a reproduz e amplia para a totalidade
dos povos indgenas ento conhecidos no Brasil.39 Com isso, Ribeiro acaba por reificar
38

39

Em 1970, aps o Conclio do Vaticano II e a Conferncia de Medellin, a Misso de Utiariti foi


desativada e os indgenas retornaram a suas aldeias de origem. Mas ento muito dos territrios
indgenas encontravam-se invadidos por colonos e os povos haviam sofrido declnio populacional
devido a epidemias, a guerras com povos vizinhos e a ataques de regionais e seringueiros. A Misso
Anchieta ainda atua no norte mato-grossense como intermediria entre os povos indgenas, o Estado e
os particulares regionais.
O conceito de transfigurao tnica, cunhado por Ribeiro (2002: 241ss), articula-se imagem do

69

categorias e por congelar a histria desses povos; todavia, como sabido, muitos dos
povos classificados como extintos em 1957, ao lado dos apiaks, continuam existindo e
vm lutando por reconhecimento e melhoria das condies de vida, dentre os quais os
kokamas, os xipaias, os araras, os botocudos, os guats e os pataxs.
Tal mecanismo poltico-simblico no de modo algum uma inovao do
sculo XX. A propsito do perodo colonial, J. Monteiro (2001) faz uma importante
reconstituio histrica das categorias tupi e tapuia e seus correlatos, forjadas nos
sculos XVI e XVII com objetivos instrumentais especficos e apropriadas pelos
intelectuais brasileiros no sculo XIX, quando se tratava de inventar a nao brasileira.
Tal dinmica teve repercusses decisivas para as relaes concretas entre colonizadores
e nativos, na medida em que aquelas categorias foram reapropriadas por alguns povos
indgenas mais recentemente. O autor demonstra de que maneira as descries e
classificaes coloniais sobre os indgenas passaram ao estatuto de fatos etnogrficos
por obra da historiografia do sculo XIX, que produziu uma imagem esttica e
essencialista desses povos, imagem esta que ainda hoje influencia o modo como
pesquisadores e funcionrios governamentais pensam sobre eles. Sem descuidar do
aspecto etnocida da dominao colonial, Monteiro sublinha o carter poltico, relativo e
relacional das classificaes tnicas, definidas no embate entre o projeto colonial e os
projetos indgenas, surgindo da novos tipos de sociedade e novas identidades coletivas
(Monteiro 2001: 24ss).
J. Hill chama de geopolitizao das identidades amerndias (Hill 1996: 7ss)
prtica colonial de reduzir a complexidade e a riqueza de sistemas regionais
multiculturais e multilingusticos constitudos com base na guerra, no comrcio, em
alianas, sobreposies e fuses. Tal prtica, contudo, no teria conseguido sufocar
uma antiga tendncia emergncia de novas redes regionais multiculturais como nos
provam os apiaks, ao lado de tantos outros povos dados como extintos.
Durante a primeira metade do sculo XX, portanto, nenhum Posto Indgena ou
misso religiosa foi estabelecida para atender exclusivamente os apiaks, embora se
tivesse notcia de grupos isolados nos rios So Tom e Apiacs, ambos no estado do
ndio genrico, despojado de toda especificidade cultural, destino inexorvel dos povos indgenas
em contato intenso com a sociedade nacional. Tal conceito apoia-se numa concepo de grupos
tnicos como unidades discretas bem definidas. Em sua anlise dos povos nativos do Baixo
Urubamba, onde extremamente difcil distinguir os membros da sociedade nacional dos membros
das sociedades tribais (situao prxima da dos apiaks, como veremos no prximo captulo), P. Gow
indica que a manuteno das fronteiras tnicas no , contudo, a preocupao maior de povos que se
veem como misturados (Gow 1991: 13).

70

Mato Grosso. Os apiaks civilizados transitavam entre a Misso Cururu, no Par, que
assistia os mundurukus, e entre o Posto Indgena Munduruku (PA) e os sucessivos
Postos Indgenas nos cursos alto e mdio do rio Teles Pires (MT) destinados atrao
dos kaiabis. Por ocasio do incio da atuao do SPI no Tapajs, ao final dos anos 1940,
Arnaud informa que o objetivo do rgo era proporcionar aos ndios Munduruk (e
tambm aos Kayabi e remanescentes Apiak) melhores condies de existncia, que as
at ento desfrutadas entre leigos e religiosos (Arnaud 1974: 54, nfase adicionada).
Os relatrios dos encarregados de Postos Indgenas nos do a ver os
incessantes deslocamentos e as alianas diversificadas dos indgenas, o que causava
profunda exasperao aos administradores. Em relatrios de atividades do Posto
Indgena de Atrao Jos Bezerra (alto Teles Pires), datados de julho e setembro de
1946, consta que um grupo de kaiabis catequizados, que frequentara este Posto em
dcadas anteriores, se mudara para o Posto Caroal, no rio homnimo, afluente oriental
do rio das Tropas (PA), para junto dos apiaks e mundurukus. O encarregado registra o
pedido de alguns ndios para fazer uma viagem ao Posto Caroal, onde vivia uma
parenta que desejava retornar ao PIA Jos Bezerra, de onde sara em 1928 (SPI/ IR-6.
Resumo das Principais Ocorrncias Verificadas e dos Trabalhos Realizados no ms de
julho de 1946 no PIA Jos Bezerra; idem para ms de setembro). Em vrios relatrios
do PIA Jos Bezerra, os diversos encarregados informam que os kaiabis nunca
esquecem seu costume fazer seus passeios (sic), retornando constantemente s aldeias
na mata ou dirigindo-se aos barraces no Teles Pires, a permanecendo por grandes
perodos, o que revela uma forte resistncia a residir no Posto.40
Como se sabe, o objetivo explcito desses Postos era fixar os indgenas numa
rea definida e ensinar-lhes a viver da agricultura, prevenindo assim conflitos com as
frentes econmicas que avanavam para a Amaznia meridional. Um dado interessante
que emerge da leitura dos relatrios a prtica de dar brindes apenas aos ndios
visitantes, isto , arredios; os ndios que passavam a morar no Posto, chamados de
localizados, recebiam mercadorias somente em troca de trabalho braal, tendo suas
dvidas e saldos anotados em Notas de Fornecimento controladas pelo encarregado,
procedimento idntico ao empregado pelos patres locais e pelos missionrios, fato que
devia borrar a diferena presumida entre os funcionrios do SPI, missionrios e
encarregados dos barraces, possibilitando aos indgenas certa margem de manobra na
40

Ver A. Ramos (2000) sobre a insero dos mundurukus no sistema de postos, barraces e misses no
vale do Tapajs na primeira metade do sculo XX.

71

escolha do patro. Havia uma diferena importante, porm: enquanto os patres


seringalistas tratavam com os caciques e os chefes de famlia, os missionrios e os
encarregados dos Postos negociavam com cada ndio, recusando o carter coletivo da
produo (Murphy 1960: 163).
Os apiaks relacionavam-se com os kaiabis e mundurukus nesse circuito de
Postos, barraces e Misses, configurando-se uma ampla rede comercial em que se
trocavam fora de trabalho ou produtos da floresta por mercadorias. Mas tal circuito
diversificado de trocas abrangia outras coisas alm das mercadorias (ao menos para os
indgenas), tais como cnjuges e compadres. Foi este contexto relativamente mvel e
flexvel que deu origem auto-atribuda mistura tnica que caracteriza os apiaks
contemporneos, com consequncias cruciais para sua forma de organizao social
contempornea.
Para dar uma ideia das mltiplas origens das pessoas que constituam a frente da
borracha e da intensa movimentao espacial na regio dos formadores do Tapajs nas
primeiras dcadas do sculo XX, cito um trecho do panorama elaborado por E. Arnaud:
Alm de nordestinos, paraenses e cuiabanos, trabalhavam ento na extrao da
borracha negros mocambeiros estabelecidos em um seringal denominado So Jos
(ou Mocambo), no alto S. Manoel.41 Tambm venezuelanos, peruanos e
equatorianos penetraram no Tapajs sobretudo para extrair o caucho: o rio das
Almas e o Matrinxo foram explorados pelo equatoriano Joo Boenao, com a
participao dos ndios peruanos Cocamas, bem como, pelo venezuelano Carlos
B. Murillo e pelo peruano Eulogio Mori, a despeito dos constantes ataques
efetuados por ndios hostis [provavelmente rikbaktsa]. Da Barra de S. Manoel
para cima, todos os barraces eram aviados da firma J. S. Barreto, que lhes vendia
a crdito de 50 a 100 contos de ris; e eles, por sua vez, tambm vendiam por
igual modo aos seringueiros 3, 4 e mais contos de ris em mercadorias. (Arnaud
1974: 53)
O movimento de territorializao que sucedeu a frente extrativista da borracha
nesta regio, a partir de meados do sculo XX, conheceu vrias frentes, designadamente
o comrcio de peles de felinos, a atividade garimpeira,42 a explorao madeireira e a

41

42

Trata-se, provavelmente, de escravos foragidos dos arredores de Belm aps a revolta da Cabanagem,
que se estendeu de 1835 a 1839 (ver Weinstein 1993: 61ss).
A atividade garimpeira moderna na regio do alto Tapajs e dos formadores deste rio iniciou-se nos
anos 1950, com exploraes aurferas na Serra do Cachimbo e garimpo de cassiterita no rio das
Tropas, tendo por centros comerciais as cidades de Jacareacanga e Itaituba (Rodrigues 1994 b). O
impacto social e econmico causado por tal atividade foi to grande que at hoje, no comrcio das
cidades mato-grossenses de Colder e Alta Floresta, utilizam-se as balanas para pesar ouro e qualquer
pessoa sabe fazer a converso do preo de um objeto para gramas de ouro. Os impactos ambientais
so igualmente duradouros e devastadores.

72

pecuria, todas elas contando com mo-de-obra indgena e avanando sobre seus
territrios. Nos anos 1960, descendentes de famlias extensas apiaks que ainda
trabalhavam na extrao de ltex no baixo curso do rio Juruena, j ligados a ndios de
outras etnias e a arigs, foram realdeados a convite do missionrio jesuta Joo
Dornstauder, numa rea destinada aos kaiabis, no Rio dos Peixes (afluente oriental do
Arinos, ver Figura 1.1). Desde essa poca, quando foi restabelecido o contato com a
seo do povo que permanecera na regio do rio Cururu, os apiaks vm se
reestruturando politicamente e lutando pelo respeito aos direitos que a nova legislao
indigenista lhes garante.
A partir dos anos 1970, porm, a inteno governamental de finalmente
colonizar o norte do Mato Grosso por meio do Projeto Plo-Noroeste (agropecuria),
do Plano de Integrao Nacional, das aes da SUDAM, da construo da rodovia BR364 (Rangel 1987) e, mais recentemente, da construo de usinas hidreltricas, do
incentivo ao agronegcio (especialmente a soja), do turismo ecolgico e da criao de
Unidades de Conservao trouxe novos desafios para os povos indgenas que habitam
a regio. A chegada de colonos do sul do pas, movidos pela tica do enriquecimento e
do desenvolvimento econmico inexorvel, intensificou a presso sobre os territrios
indgenas, gerando um clima de grande tenso.

********
A frente da borracha arregimentava indgenas numa rea extensa para o
sistema de trabalho forado dos seringais, disseminando doenas contagiosas,
inviabilizando a vida ritual tradicional, impondo o uso exclusivo da lngua portuguesa,
reunindo arbitrariamente pessoas de etnias distintas e chancelando violncias de toda
ordem, incluindo massacres premeditados.43 Os homens influentes apiaks falam sobre
esse perodo como um momento de desestruturao social, quando passavam longos
perodos longe das aldeias, vivendo em colocaes de seringueiros muitas das quais

43

Tocantins (1877) fala em escravido de indgenas por dvida na regio do alto Tapajs no final do
sculo XIX, num contexto em que comerciantes de Itaituba disputavam com os missionrios franciscanos
da Misso de Bacabal a mo-de-obra dos mundurukus. Arnaud pronuncia-se nos seguintes termos: (...)
nos seringais imperava um regime de terror, principalmente entre os anos de 1909-1912, quando o
cuiabano Paulo Corra atuava em Itaituba como delegado de polcia, coletor estadual e comerciante. (...)
Segundo vrios testemunhos, os seringueiros que no satisfaziam seus interesses e de outros patres
eram submetidos ao castigo do tronco (uma reminiscncia da escravatura), aoitados at desfalecerem e
tambm assassinados a tiros. (...) No lugar denominado Praia do Sossego (acima da Barra do So
Manoel), dezenas de ndios foram trucidadas por determinao do citado delegado, sendo em seguida
divididos seus filhos e mulheres (Arnaud 1974: 9).

73

estabelecidas em pontos de antigas malocas apiaks e casavam-se com ndios


mundurukus, kaiabis, sater-maws e kokamas44 e com arigs, configurando-se assim a
auto-atribuda mistura tnica que caracteriza o grupo no presente.
O estabelecimento da frente da borracha na rea dos formadores do Tapajs
teve um peso decisivo na histria dos povos indgenas que ali viviam. Como se sabe, a
empresa extrativista baseava-se no endividamento progressivo e no trabalho forado
das populaes locais, controladas por prepostos de seringalistas, que s vezes
utilizavam mtodos violentos para obter excedente comercializvel; os prprios
seringalistas raramente visitavam os barraces, vivendo antes nas grandes cidades
amaznicas e obtendo crdito nos bancos a sediados. Aqueles a quem os apiaks se
referem como patres so, em geral, os representantes dos seringalistas, encarregados
de barraces que controlavam e distribuam as mercadorias em troca de ltex e
anotavam dvidas e crditos aquelas sempre superiores a estes em cadernos, o que
tornava a escrita uma importante fonte de poder.45
A atividade de extrao de ltex nos seringais nativos da Amaznia no
requeria a ocupao efetiva do territrio, a propriedade da terra ou o desenvolvimento
de atividades de cultivo, mais duradouras; contrariamente, os grandes contingentes de
homens empobrecidos provenientes dos estados da regio Nordeste e do Par buscavam
o enriquecimento rpido e se organizavam em grupos que mudavam de lugar to logo
as rvores dessem sinais de esgotamento. A subsistncia dessas pessoas consistia de
atividades de caa, pesca, coleta e agricultura, sendo que os migrantes devem ter se
beneficiado em muito do conhecimento ecolgico dos povos indgenas com que
interagiam.46 Todavia, muitos arigs e alguns prepostos de patres acabaram se fixando
na regio e unindo-se a mulheres indgenas.
Em um minucioso estudo sobre a expanso e a decadncia do negcio da
borracha na Amaznia, B. Weinstein (1993) chama a ateno para a adequao do
sistema de aviamento ao meio regional, uma vez que ele se baseava num pequeno
capital inicial e na apropriao do excedente a nvel de comercializao (e no de
produo), a expensas da propriedade rural regular. A acumulao de capital era, no
entanto, inibida pelo grande nmero de intermedirios que compunham a cadeia de
44

O kokama no uma lngua classificvel geneticamente, embora o tupinamb seja um dos idiomas que
a compem, ao lado do pano, do arawak e do espanhol (Cmara Cabral 1995).
45
Para uma anlise do sistema de aviamento em outra regio amaznica, o vale do Solimes, ver
Faulhaber 1987.
46
O corte da seringa era realizado na estao seca (entre abril e outubro, aproximadamente).

74

aviamento, fato que tambm inviabilizava avanos tcnicos e a formao de um


mercado interno significativo. A produo permanecia em grande medida sob controle
direto dos seringueiros que, a despeito da explorao sofrida, gozavam de certa margem
de manobra47 e usavam mesmo de trapaas quando a presso dos patres se
intensificava, ao mesmo tempo em que obtinham objetos industrializados e
experimentavam certa mobilidade espacial.
Weinstein explica que, na Amaznia oriental, na segunda metade do sculo
XIX, os seringueiros determinavam o prprio ritmo de trabalho, podiam mudar de
seringal sem saldar as dvidas com relativa impunidade e ainda tinham a chance de
vender o ltex para um regato que dispusesse de mercadorias de qualidade superior
quelas oferecidas por seu patro num dado momento. Com efeito, os regates eram
concorrentes diretos dos patres; R. Brasil chegou a afirmar que O regato uma
parasita que deve ser arrancada dos rios amaznicos para sossego dos nossos negcios
(Brasil 1910: 125).
Desse modo, certos aspectos do sistema de comercializao da borracha,
criados como meios de coero, foram subvertidos pelos seringueiros: Parece que os
seringueiros tinham passado a contar com um adiantamento em espcie, e o tratavam
como bonificao que no teriam de devolver (Weinstein 1993: 40). Alm do mais,
como um seringal podia ser explorado por at 50 anos, era de interesse do patro
estabelecer um relacionamento mais duradouro com os seringueiros, evitando
demonstraes exacerbadas de violncia (: 42). Ainda de acordo com a autora, a
complexa rede de aviamento consistia num sistema poroso, rico de variaes em todos
os nveis, em que as modalidades de troca variavam no apenas de propriedade para
propriedade, mas at mesmo de estrada para estrada, uma vez que cada um dos
aviados podia estabelecer acordos muito diversos com o respectivo patro (: 35).
Assim, seringueiros, patres, aviadores locais, membros da elite financeira em Belm e
Manaus e compradores estrangeiros engajavam-se numa cadeia de transaes
vulnervel a todo tipo de contingncias.
R. Brasil explica que Uma vez que os proprietrios de seringaes encontram
quem lhes fornea gneros e dinheiro sem a menor das garantias, justo que procedam
da mesma maneira. Assim que todos os patres tambm vendem a credito ao seu
47

A independncia relativa experimentada pelos seringueiros foi um dos fatores que levou a elite paraense
tradicional a rejeitar inicialmente o negcio da borracha, atemorizada que estava pela Cabanagem, da
qual resultara a expanso de uma populao cabocla que havia cortado os vnculos com a elite branca
(Weinstein 1993: 59).

75

pessoal nos sertes amaznicos, sem inquirir se o freguez poder ou no satisfazer os


compromissos contrahidos (Brasil 1910: 123).
As inmeras brechas do sistema de aviamento parecem ter sido especialmente
exploradas pelos indgenas que se engajavam no negcio da borracha. Obviamente, no
se trata de minimizar o carter conflituoso das relaes estabelecidas pelo negcio da
borracha, mas sim de compreender que, mesmo numa situao de explorao, os
apiaks souberam forjar espaos de independncia relativa, orientando-se pelo esquema
conceitual da ddiva. Embora os mais velhos no gostem de falar sobre o passado,
quando questionados, deixam claro que gozavam de grande liberdade de movimento,
lembrando as vrias viagens que faziam, e costumam mencionar os seguintes ndices de
civilizao: avio, sistema de radiofonia, voadeira com motor de popa, mercadorias,
remdios industrializados, roupas, utenslios de metal, fsforos, lngua portuguesa,
sedentarismo, ou seja, aquilo que marca sua entrada no mundo dos brancos. No entanto,
uma indagao recorrente arremata estas narrativas, indicando que, para os indgenas,
havia outras coisas em jogo: Pra que os brancos foram amansar a gente, dar
mianga, caf, acar, sabo? Pra que tirar a gente do mato, se agora nos
abandonaram?
Como vimos, embora Manoel Teophilo Costa Pinheiro fale em apenas 32
apiaks sobreviventes de massacres em 1912, os velhos apiaks informam que havia
uma grande aldeia no mato, no Pontal do Mato Grosso. Os apiaks bravos que
viviam ao longo do rio So Tom, afluente oriental do Juruena, mantinham contato com
os apiaks mansos, empregados de seringalistas locais. A prpria distino nativa entre
mansos e bravos parece datar do incio do sculo XX. Os indgenas mais velhos contam
divertidas histrias sobre os encontros entre essas duas sees do povo: Antes, quando
eles levavam anzol, fumo, isqueiro, acar, caf para (a antiga aldeia) Apiakatuba, os
outros perguntavam o que era aquilo, se era casa de cupim. No apenas os apiaks
mansos, mas tambm missionrios proviam mercadorias para os ndios bravos de
Apiakatuba:
O padre Plcido, da Misso Cururu, sempre vinha em Apiakatuba, todo
ms ele vinha; trazia fumo, anzol, linha, que a gente precisa mesmo. Alguns no
conheciam bem os materiais dos brancos; o padre deu uma caixa de fsforo para
um homem e disse: Voc quer fumar? Tem fsforo aqui. Ele fez um cigarro,
pegou a caixa de fsforo, acendeu e jogou o fsforo. O homem gritou: Que
diacho isso? O padre riu: Est com medo? No queima, no, fsforo,
assim, ensinou. E o homem: Eu no sabia, estava com medo, achei que fosse
queimar minha cara toda.

76

Os franciscanos da Misso Cururu tambm atuavam como patres, na medida


em que mantinham um barraco de mercadorias que trocavam por qualquer produto da
floresta que os indgenas ou civilizados levassem at l.48 Nas primeiras dcadas do
sculo XX, os apiaks que viviam no Anipiri faziam longas viagens at a Misso,
carregando carne salgada de caa e peixe, tracajs, castanhas, mel, peles de felinos,
leo de copaba, resinas etc. para trocar por querosene, sal, ralador de metal, redes de
dormir, mosquiteiros, espingardas, munio, anzois, linha de nilon, miangas e
panelas, itens muito apreciados.
O ponto a destacar nos relatos sobre aquela poca o interesse manifestado
pelos apiaks em estabelecer uma relao amistosa e diplomtica com esses brancos
detentores de mercadorias, de modo a obter os itens valorizados sem gerar confrontos,
no momento mesmo em que abandonavam as guerras com povos vizinhos. Pode-se
argumentar, provisoriamente, que as mercadorias, enquanto cones de uma alteridade
poderosa, satisfaziam a necessidade de signos de exterioridade para a constituio da
identidade apiak, mostrando-se equivalentes s cabeas festejadas (ver adiante).
Desse modo, como se os patres e missionrios fornecessem aos apiaks um novo
modelo de socialidade, mediado pelas mercadorias, enquanto se inviabilizava o antigo.
Os apiaks parecem ter aderido mais ou menos rapidamente ao novo estilo de vida,
embora no tenham jamais esquecido os ideais guerreiros e as rivalidades com povos
vizinhos, especialmente os kaiabis.

1.3- Civilizao apiak


De acordo com R. Williams: Em geral usa-se Civilizao hoje para designar
um estado ou condio consumada de vida social organizada. Como Cultura, com a
qual tem uma longa e difcil interao, a palavra se referia originalmente a um processo
e, em alguns contextos, esse sentido ainda sobrevive (Williams 2007: 82). E mais: o
sentido de um estado adquirido ainda tem fora suficiente para conservar alguma
qualidade normativa; assim, a civilizao, um modo civilizado de vida, as condies da
sociedade civilizada podem ser vistos como algo que se pode perder ou conquistar (:
85, nfases no original). Sugiro que este sentido de processo e aquisio transitria,
portanto reversvel, que os apiaks sublinham quando falam de sua civilizao.
48

Geralmente os apiaks se referem aos brancos pelo termo civilizados.

77

Ao recordar o passado, meus interlocutores mais velhos postulam trs


categorias de brancos: i) os padres, missionrios estrangeiros (religiosos alemes,
austracos e americanos); ii) os patres (seringalistas brasileiros e peruanos) e iii) os
arigs (migrantes maranhenses, cearenses e paraenses empobrecidos empregados nos
seringais). Quanto aos outros povos indgenas com que conviviam mais ou menos
intensamente ao longo do sculo XX, os apiaks mencionam os mundurukus, inimigos
de outrora que se tornaram aliados no sculo XIX, embora mantivessem com eles uma
relao tensa nos rios Anipiri e Cururu (PA); os kaiabis, antagonistas no Rio dos
Peixes; os belicosos rikbaktsas e os tapaynas que, nos anos 1950, atacavam
seringueiros no rio Juruena. Os etnnimos kokama e sater-maw (povos do tronco
tupi) no so discriminados nas narrativas apiaks, embora tenham se tornado os
principais cnjuges indgenas nos seringais; aos primeiros os apiaks se referem
geralmente como ndios peruanos e, aos segundos, como gente de Santarm. A
convivncia mais intensa com esses povos foi produto da expanso da frente da
borracha para a regio e do subsequente engajamento dos ndios no trabalho nos
seringais, bem como da atuao missionria.
Nas narrativas apiaks, o principal critrio utilizado para distinguir os brancos
entre si sua posio econmica; assim, h: a) os arigs, nordestinos49 e paraenses
pobres, cuja situao de explorao nos seringais era anloga dos apiaks, com os
quais muitas de suas mulheres se casaram, sendo que alguns deles tornavam-se
guaxebas, passando a perseguir mais diretamente os indgenas; e b) os brancos
provedores, patres e missionrios de distintas nacionalidades que detinham
mercadorias e inclusive, em certas ocasies, como expressa o registro do cnego
Guimares (1865), se tornavam aliados na luta contra povos inimigos. Os apiaks
desejavam relacionar-se com esses brancos, embora tivessem conscincia da
instabilidade dessa interao.50 Note-se que a diferena entre ambos os tipos de brancos
assentava-se em sua posio econmica, isto , so detentores e no-detentores de
mercadorias, sendo que os apiaks estabeleciam relaes matrimoniais tanto com arigs
como com patres, embora mais frequentemente com os primeiros.
49

A migrao nordestina para a Amaznia iniciou-se em 1877, em decorrncia de uma grande seca.
50 A ttulo de comparao, menciono o artigo de C. Howard (2002), que mostra como os waiwais (carib)
optaram por diversificar o leque de suas alianas polticas com os brancos para obter mercadorias, de
modo a evitar uma explorao mais sistemtica. De acordo com a autora, a circulao dos objetos
industrializados na complexa rede de relaes intertribais regional servia atualizao de relaes
sociais legtimas, e no representava, necessariamente, uma ameaa a elas, uma vez que eram
domesticados antes de serem consumidos.

78

Devo destacar que so os casamentos com esses brancos especficos e com


membros de etnias do tronco tupi que levam os apiaks a falar em mistura, termo que
remete fundamentalmente a modos de vida ou tipos de socialidade dispostos
simbolicamente num continuum espaciocultural. Mistura designa, assim, a concepo
do parentesco como processo histrico, num momento em que se uniam pessoas de
lugares, lnguas e costumes diferentes para formar novos arranjos sociais, num contexto
de nacionalizao.
O aspecto que os apiaks sublinham quando falam em mistura justamente
sua progressiva civilizao, no seu possvel branqueamento ou indiferenciao
tnica, e as categorias que empregam para falar sobre as duas sees de seu povo so
bravos e civilizados. Da mesma forma, no empregam tanto a categoria tnica
brancos quanto as categorias sociais patres, arigs e padres a no ser em discursos
politizados voltados para representantes do Estado e da sociedade nacional em geral. A
civilizao apiak implica principalmente o abandono das guerras e dos rituais dela
decorrentes, o acesso regular a mercadorias e a adeso seletiva de elementos de
catolicismo, mas no o individualismo ou a centralizao do poder, como veremos na
Segunda Parte.
Ademais, como bem o demonstra a narrativa sobre o episdio da morte de
Paulo Corra, branco no sempre sinnimo de civilizado, assim como o termo
manso no oblitera o recurso violncia. Neste sentido, o conceito de civilizao
entendido como um processo ambivalente de transculturao, isto , de transformao
de um modo de vida voltado para a guerra com inimigos indgenas, caracterizado por
uma tecnologia rudimentar, em um estilo de vida pacfico, em que objetos
industrializados e elementos de ideologia crist modulam as relaes na aldeia. Viver
em comunidade, ento, corresponde forma contempornea de se relacionar com
diversos Outros. Como se v, os apiaks parecem ter desenvolvido formas
(classificatrias, sociais e polticas) intermedirias para lidar com situaes extremas,
como diria Lvi-Strauss (1993).
A histria contada pelo velho apiak, transcrita acima, ocorreu nos primeiros
anos do sculo XX, momento em que as relaes entre apiaks e brasileiros evoluam
para o conflito aberto, tendo como causas principais as mulheres e a fora de trabalho
indgenas. Os massacres sofridos pelos apiaks, motivados por tentativas de roubo de
mulheres e de obteno forada de mo-de-obra, foram empreendidos por vrios

79

coletores. Ao que tudo indica, na perspectiva dos apiaks esses brancos poderosos
deveriam proceder como chefes, isto , engajar-se numa relao de troca com os
homens influentes apiaks, provendo mercadorias em troca de produtos da floresta e
estabelecendo alianas matrimoniais. Tais patres, concebidos como afins potenciais,
passaram entretanto a agir como ona, isto , quebraram as principais regras da
socialidade apiak, tomando mulheres sem apresentar a compensao devida;
devoraram os apiaks, ao invs de comer com eles; comportaram-se verdadeiramente
como inimigos, ou seja, como Outros, o que explica o tratamento dado cabea do
seringalista.
Nesses termos, o prprio trabalho extrativista realizado pelos ndios parece ter
sido apreendido pelos apiaks sob a lgica da ddiva, configurando-se um embate entre
valores distintos: se, de um lado, os seringalistas procuravam obter mais lucro em seu
negcio ao forar os ndios a trabalhar mais intensamente, por outro lado, os apiaks
buscavam manter uma aliana que percebiam como produtiva em outros termos. A
maneira como os apiaks pensam sua relao com os brancos aponta para a vigncia de
um sistema de trocas que se orienta pela lgica da ddiva, e que vigora ainda hoje nas
comunidades, como se ver na Segunda Parte. Conforme a lgica da ddiva, o valor dos
objetos consiste em se portar como instrumentos de relaes entre pessoas (Gregory
1982; Mauss 2003; Strathern 1992, 2006). Dessa forma, o sistema de aviamento,
baseado num hiato temporal entre a entrega das mercadorias e a entrega da produo de
ltex, bem como na confiana que unia patres e empregados, parece ter se encaixado
perfeitamente dinmica da reciprocidade, baseada no constrangimento. Tal dinmica
estabelece que os sujeitos ligados por uma ddiva ficam mutuamente obrigados,
formando-se uma densa teia de interdependncias. Dada a obrigao inelutvel de
retribuir, uma nica ddiva suficiente para desencadear um conjunto virtualmente
infinito de contra-ddivas e novas ddivas. Paulo Corra interrompeu indevidamente o
circuito e teve um fim nefasto.
A principal caracterstica distintiva desses brancos opulentos era o fato de
acumularem uma grande quantidade de bens, inesgotvel aos olhos dos ndios, e
controlarem sua distribuio entre os trabalhadores, ao fundamentalmente arbitrria,
posto que ancorada na ignorncia da dvida pelo devedor, uma vez que apenas o patro
podia ver o caderno, alm de ser um dos poucos que sabia fazer clculos e escrever.
Movidos pela conscincia dessa assimetria de saber e de poder, os apiaks hoje
valorizam sobremaneira a escola, e os caciques mantm cadernos onde anotam os bens
80

e os valores que entram e saem da comunidade. Porm, como se os apiaks no


valorizassem tanto as mercadorias em si, mas se interessassem sobretudo por sua
origem, pelo modo como foram obtidas e por seu destino social, isto , pelo circuito de
casas que iro percorrer na aldeia, pelas relaes que iro ativar, reduzindo com isso a
dimenso mercantil desses objetos para coloc-los a servio de relaes propriamente
sociais, aquelas orientadas para a intensificao do senso de comunidade.
Dada a longa convivncia entre apiaks e mundurukus, da qual resultou um
grande nmero de intercasamentos, julgo relevante determo-nos sobre a organizao
social e a histria dos mundurukus. Em seus estudos sobre mudana econmica e
social, R. Murphy (1958, 1960) comparou as aldeias mundurukus das savanas,
sociologicamente mais conservadoras, s aldeias j descaracterizadas s margens do rio
Cururu (PA), formadas em decorrncia da crescente insero dos mundurukus na
economia de mercado, ainda movimentada nos anos 1950 pela indstria da borracha.51
Murphy argumenta que, na primeira fase do contato (meados do sculo XIX), as
disposies guerreiras destes ndios interessavam aos brancos, que se aliaram a eles
para exterminar povos hostis. Naquele momento:
Na falta de uma forma forte de segmentao interna, a integrao social
era obtida por meio da oposio da tribo inteira ao mundo externo. Tal
direcionamento para fora do antagonismo funcionava para demarcar
rigidamente as fronteiras do sistema social, e para fornecer uma estrutura de
dever comum. Os laos oblquos de residncia e descendncia eram a base de
um senso de tribalismo altamente desenvolvido entre os homens Munduruc, e
facilitavam o recrutamento de destacamentos de guerra em vrias aldeias
(Murphy 1960: 186).
Entretanto, durante o boom da borracha, a fora produtiva dos mundurukus
passou a interessar mais aos brancos do que sua competncia blica, e as guerras tribais
foram abandonadas. Os mundurukus, que haviam estabelecido uma relao amistosa
com os colonizadores em 1795, engajaram-se no trabalho de corte da seringa e
passaram a desejar as mercadorias, afastando-se progressivamente das regras e
atividades tradicionais praticadas nas savanas. Segundo Murphy: A total falta de
atividade militar minou algumas das bases da solidariedade social munduruc e exps a
51

At a primeira dcada do sculo XX, os mundurukus das savanas, que tambm eram seringueiros
ativos, puderam preservar muito de sua organizao social porque, aps a poca do corte da seringa
(estao seca), retornavam s aldeias, onde experimentavam o modo de produo e consumo coletivo,
sendo que os chefes conservavam seu prestgio ao agirem como intermedirios entre seu povo e os
negociantes (Murphy 1960: 49). Por outro lado, as famlias nucleares que migravam para as margens
do Tapajs conheciam um individualismo crescente. Murphy demonstra, ainda, que a integrao das
aldeias no rio Cururu era bastante precria, devido ao trabalho na seringa.

81

instituio da chefia s rivalidades inerentes organizao poltica (: 187). Para o


autor, no eram as mercadorias em si, mas o modo de as obter o fator determinante da
transformao social, na medida em que os mundurukus se enredavam em relaes de
dependncia com os patres, as quais afetavam as relaes dentro da aldeia (: 4). Nos
anos 1950, o principal fator a manter a comunidade unida negociar com o mesmo
patro (: 21). Porm Murphy relata que mesmo as pessoas mais velhas diziam que o
principal dever dos chefes no passado era comprar objetos para o povo (: 25).
Embora correlacione a participao dos indgenas no sistema de aviamento amaznico
desintegrao social, o autor afirma que, em meados do sculo XX, os mundurukus
continuavam como continuam hoje, meio sculo depois existindo como uma
entidade social diferenciada.
O autor explica que o nome o principal critrio de pertencimento sociedade
munduruku e, conforme o princpio de descendncia patrilinear, o pai que transmite o
status social e a condio de membro de um cl ao filho (Murphy 1960: 82). A regra de
residncia uxorilocal, porm, leva situao de no-coincidncia entre as condies de
membro do cl e membro do grupo local, fazendo com que um homem seja sempre um
forasteiro na aldeia dos parentes da esposa (: 130).52 Tal discrepncia redundaria em
forte instabilidade, a qual conduziria, na ausncia de mecanismos internos de resoluo
de conflitos, migrao.
As margens do Cururu seriam o destino preferido pelos habitantes das savanas,
devido ao fato de se localizarem ali as estradas de seringa dos mundurukus; a maior
proximidade com patres e regates e o acesso facilitado a bens industrializados, como
canoas e espingardas, seriam os fatores determinantes da progressiva individualizao
observada entre eles, que se exprimia, primordialmente, no papel cada vez mais central
desempenhado pela famlia nuclear, s expensas do vnculo clnico e da famlia
extensa. Significativamente, as aldeias do Cururu jamais contaram com a casa dos
homens, instituio central da organizao poltica vigente nas savanas. No entanto, as
concepes relativas ao xamanismo eram idnticas em ambas as reas.
Revelando-se pessimista em relao ao futuro da organizao social
munduruku, especialmente porque tinha em mente uma configurao original
daquele sistema social, Murphy relata que:
No necessrio um motivo particularmente forte para que um
indgena deixe sua aldeia. As aldeias perderam todas as suas bases de coeso.
52

A questo do parentesco munduruku ser retomada no captulo 4.

82

As consideraes relativas ao trabalho cooperativo e organizao social, que


permitiam que as aldeias das savanas continuassem funcionando, entraram em
colapso. Os nicos fatores centrpetos remanescentes so o equipamento do
barraco de farinha, os laos de parentesco prximo e o desejo de sociabilidade.
Os ltimos dois fatores esto perdendo a importncia no Cururu. (: 176)
O autor acaba por reconhecer, porm, que a direo da mudana foi
profundamente influenciada pela estrutura da sociedade munduruku (: 180), indicando
que esta sociedade somente pode ser entendida em relao aos papis sociais do
inimigo e do comerciante (: 189). Contrapondo a configurao social da regio dos
formadores do Tapajs em 2007, delineada neste captulo, ao registro etnogrfico de
Murphy, tem-se a exata medida da resilincia caracterstica dos povos indgenas sulamericanos. Da mesma forma, fica-se com a impresso de que, onde o processo
colonial no foi capaz de eliminar fisicamente os povos indgenas, floresceram formas
singulares de organizao social. Assim, se os mundurukus no sofreram to
intensamente o impacto da frente da borracha devido sua reputao beligerante
(Murphy 1960: 188), os apiaks, por seu turno, so um desses povos que tiveram uma
experincia de contato traumtica, e pode-se dizer que no chegaram extino devido,
em grande parte, aliana com os mundurukus.
Neste sentido, o barraco de farinha, os laos de parentesco prximo e o desejo
de sociabilidade, por mais frgeis que parecessem a Murphy enquanto elementos de
integrao social, mostraram-se historicamente suficientes para aglutinar no apenas os
mundurukus, mas tambm os sobreviventes apiaks, ainda que isso implicasse uma
forma distinta da organizao tradicional observada nas savanas.

********
interessante notar, nas narrativas apiaks, que, se por um lado, ataques
blicos e intercasamentos marcam tanto as relaes com os brancos no incio do sculo
XX quanto as relaes com outros povos indgenas desde pelo menos o sculo XVIII,
por outro lado, as mercadorias e as epidemias singularizam, de modo ambivalente, a
interao com o branco. Desse modo, sugiro que, nas narrativas histricas, o branco
opulento, provedor de mercadorias, classificado simultaneamente como afim real e
inimigo perigoso, aparece em posio anloga do criador Bahra,53 o qual, nas

53

Bahra a verso apiak do heroi Mara de outros povos tupi-guaranis, assimilado pelos ndios a Jesus
Cristo; Tup aparece alternativamente a Bahra como sinnimo do Deus cristo, sendo associado
diretamente ao trovo (tupasing) e espingarda (tup). Voltaremos a isso no captulo 4.

83

narrativas de origem apiaks, dava aos homens objetos e ensinamentos teis para a vida
na mata. Todavia, como nos conta um homem apiak, enquanto Bahra, no comeo do
mundo, explicava aos antigos como utilizar o machado de pedra, os filhos deles, que
haviam nascido no meio dos brancos e j conheciam ferramentas de metal,
desdenhavam o instrumento. E aqui reencontramos a distino geracional que marca a
relao com os brancos. Pois o velho apiak alude a dois tempos distintos: um,
definitivamente superado, em que Bahra se relacionava diretamente com os humanos,
e outro (ainda em curso), em que os humanos preferiram se relacionar com os brancos
para adquirir objetos industrializados.
Os kawahiwas (tupi-guaranis) postulam de outro modo a relao entre Bahra e
os brancos. De acordo com Menndez (1989), Bahra, pretendendo amansar os
kawahiwas, jogou algumas pedras num poo e ordenou aos ndios que as apanhassem;
apenas alguns pularam e, quando retornaram superfcie, sua pele se soltou estes so
os brancos, aos quais Bahra deu espingardas, machados de ferro, roupas etc. Aqueles
que no quiseram ser amansados so os ndios do tempo histrico (Menndez 1989:
337). O autor sugere que a vivncia histrica (kawahiwa) no foi secularizada e
permanece mitificada (: 345), endossando a tese do contato como pura negatividade.
Minha abordagem afasta-se da proposta de Menndez tanto porque os apiaks (pelo
menos a maioria deles) estabeleceram uma relao positiva com os brancos, como
porque interpreto as narrativas transcritas como expresso de historicidade: no se trata
apenas de um comentrio crtico sobre o passado, mas tambm de uma reflexo sobre o
presente e de uma perspectiva de futuro, na medida em que sua lembrana fundamenta
de maneira concreta a reivindicao territorial do povo.
Na maioria de nossas conversas, os velhos apiaks sublinhavam que
Apiakatuba terra de apiak. Desse modo, a histria do amansamento concebido
como voluntrio, do processo de civilizao com o qual a maioria dos apiaks acabou
aquiescendo transforma-se, no discurso poltico dos homens influentes, num verdadeiro
lamento sobre as consequncias negativas da relao com os brancos, a saber: a
depopulao, a perda da lngua indgena e a perda do territrio. 54 Apiakatuba, registrese, ficava na regio central do territrio atualmente pleiteado pelo povo.

54

De acordo com B. Albert (2002), os yanomamis postulam uma relao explcita entre mercadorias e
doenas letais, formulando um mitologia metlica que se baseia na premissa cultural do canibalismo
da mercadoria. Tal mitologia, combinada s categorias ocidentais de territrio, cultura e meio
ambiente, fundamenta o discurso tnico no presente.

84

Observo que, para os apiaks, o processo de civilizao fundamentalmente


ambivalente, na medida em que a morte surge como correlata das mercadorias. O
perodo em que os apiaks viveram nas imediaes da Misso Cururu caracterizou-se
tanto pelo afluxo de mercadorias quanto pela ocorrncia de epidemias:
Quando ns samos da Misso, fomos para o Anipiri, l farto de
comida, peixe; a o pessoal comeou a se espalhar, e tinha muita doena,
sarampo, catapora, alastrina, doena feia. Eles no sabiam que diacho era aquilo
e banhavam no rio; a amanheciam duros, eram dois ou trs por noite, era assim,
morreu muita gente. A foi acabando apiak, s escaparam meu pai e o cunhado
dele.
Devo esclarecer, todavia, que os velhos apiaks s mencionavam as epidemias
quando eu os questionava diretamente sobre elas, e que o narrador em questo apenas
me contou que perdeu vrios irmos, vtimas de sarampo, aps dois meses de
convivncia intensa comigo. Indicativo dos efeitos traumticos da histria o fato de o
irmo e a irm mais velhos desse homem se negarem veementemente a falar sobre o
passado, afirmando constantemente que j se esqueceram, e que tenham deixado de
conversar com seus filhos e netos no idioma apiak, atualmente em desuso, apesar do
esforo de alguns professores indgenas em reativ-lo por meio da escola. Os homens
influentes me explicaram que, para ter informaes sobre o passado de seu povo,
muitas vezes tiveram de recorrer a velhos kaiabis e mundurukus, pois os velhos apiaks
no gostam de falar sobre o que viveram.55
Mais recentemente, nos anos 1950, no vale do Arinos, durante o auge da
explorao de caucho, os rikbaktsas desfechavam ataques violentos aos trabalhadores,
indgenas e arigs; o temor que inspiravam se devia principalmente a suas prticas
antropofgicas. Os apiaks e mundurukus mais velhos so unnimes em afirmar:
Morreu muita gente. Branco matou muito canoeiro e canoeiro matou muito branco e
ndio. Mas tambm no faltava mercadoria, era muita mercadoria. Os rikbaktsas no
mdio Juruena, os tapaynas no Arinos e os kaiabis no Rio dos Peixes representavam
um obstculo ocupao e ao desenvolvimento econmico da regio, tendo sido
pacificados pelo missionrio Joo Dornstauder, com apoio de seringalistas, a partir de
1955 (perodo da segunda borracha no norte mato-grossense).56 Os homens influentes
55

56

De acordo com B. Albert (2002), os yanomamis postulam uma relao explcita entre mercadorias e
doenas letais, formulando um mitologia metlica que se baseia na premissa cultural do canibalismo
da mercadoria. Tal mitologia, combinada s categorias ocidentais de territrio, cultura e meio
ambiente, fundamente o discurso tnico no presente.
Em seu livro de memrias, o padre Joo Dornstauder (1975) conta em detalhe as agruras por que
passou durante o longo processo de pacificao dos rikbaktsas, tapaynas e kaiabis, para o qual no

85

apiaks orgulham-se pelo fato de um homem de seu povo, ainda vivo, ter atuado na
atrao do ltimo grupo de tapaynas arredios, ancestrais do atual chefe do escritrio
da Funai de Colider (MT), cuja jurisdio abrange os apiaks.
Assim, o modo de vida civilizado do sculo XX caracteriza-se inicialmente
pela presena de mercadorias e, posteriormente, pelo abandono, pela ruptura de uma
relao que os apiaks haviam imaginado, de acordo com a lgica da ddiva, como de
cooperao e proviso de bens industrializados. Ainda hoje os brancos opulentos so
vistos como afins potenciais e parceiros comerciais e polticos prediletos, embora sejam
potencialmente perigosos. Por algum tempo, a Funai e os missionrios foram
concebidos como atores opulentos, fornecendo aos ndios bens valorizados.
Nos anos 1990, quando o fluxo de objetos comeou a escassear, porm, os
ndios tiveram de arranjar outro meio para obt-los, fosse junto a garimpeiros e
madeireiros que se multiplicavam ao longo do baixo curso dos rios Juruena e Teles
Pires, fosse junto a fazendeiros na regio de Juara (MT). Significativamente, os objetos
industrializados mais valorizados pelos apiaks so medicamentos, e a reorganizao
poltica na ltima dcada deve muito sua capacidade de obter e distribuir remdios
no apenas para as aldeias apiaks, como tambm para aldeias kaiabis e mundurukus no
Rio dos Peixes e no Teles Pires.
Em linhas gerais, a experincia histrica recente dos apiaks pode, portanto, ser
pensada como o projeto de transformar patres em parceiros e de impedir que estes
virem ona, ao passo que a comunidade se esfora para neutralizar o potencial
metamrfico das pessoas e inviabilizar a instituio de relaes de patronagem em seu
interior.

obteve apoio do SPI.

86

Captulo 2- Espalhados, misturados, mansos, resilientes


Uma unidade social somente existe quando assume o risco de existir
M. de Certeau. A Cultura no Plural

Apoiando-nos na contextualizao histrica regional e nos contornos gerais da


historicidade apiak, apresentados no captulo 1, estabelecemos que no se pode pensar
os apiaks contemporneos como uma unidade socialmente isolada ou congelada no
tempo. Os vnculos de aliana e antagonismo que ligavam os apiaks aos mundurukus e
kaiabis e que, at a primeira metade do sculo XX, evoluam por vezes para a guerra de
vingana, a antropofagia e a captura de cabeas-trofu, adquiriram novos contedos e
hoje vigoram, sob outras roupagens, no espao poltico criado por instituies estatais
presentes na regio, designadamente a Funai e a Funasa. O acesso a bens e prestgio
facultado por tais rgos uma varivel importante do projeto de reorganizao
sociopoltica e revitalizao cultural apiak. Nesse novo espao intertnico, as relaes
de hierarquia e simbiose (cf. Ramos 1980) que os apiaks mantm com os kaiabis e
os mundurukus so infletidas, gerando arranjos interessantes, em que velhas
hostilidades so frequentemente sustadas em nome de alianas circunstanciais
consideradas produtivas pelos indgenas.
Na base desses novos arranjos est uma aparente confuso tnica que reina
tanto nas aldeias no Rio dos Peixes como nos cursos mdio e baixo do rio Teles Pires.
Nessas duas micro-regies, o pesquisador pode ouvir respostas diferentes de uma
mesma pessoa a respeito de sua afiliao tnica, a depender da situao; a bem da
verdade, qual sua etnia no pergunta que se faa abertamente nesse contexto. Para
todos os efeitos, os moradores das comunidades apiaks so todos ndios, por
oposio aos brancos, duas categorias assumidamente genricas.
Em situaes normais, um munduruku se sentir to constrangido em declarar
publicamente sua origem numa aldeia classificada como apiak quanto um apiak ao se
identificar como tal numa comunidade kaiabi. Isto sem mencionar os sater-maws e os
kokamas, etnnimos deliberadamente absorvidos pelos demais e apenas assumidos por
seus portadores quando induzidos a isso. Quando tenses vm tona, porm, a etnia
dos oponentes rapidamente lembrada.

87

Do ponto de vista da organizao social, observa-se que indivduos


mundurukus e kaiabis identificam-se publicamente como apiaks quando vivem em
aldeias estabelecidas em territrio tradicional apiak, sob a representao de um
cacique apiak. Alternativamente, indivduos apiaks se apresentam como kaiabis ou
mundurukus, e chegam a falar uma ou at ambas as lnguas indgenas, quando vivem
em aldeias dentro do territrio kaiabi ou munduruku, sob a representao de kaiabis ou
mundurukus influentes.57 Isso indica que o local onde uma pessoa nasceu e se
socializou o eixo da identidade social nessa regio, evidenciando-se certo grau de
elasticidade das fronteiras culturais e lingusticas. Tal intercmbio no se verifica,
porm, entre os kaiabis e os mundurukus, que permanecem afastados tnica e
politicamente.
O resultado sociolgico desta dinmica identitria a configurao de aldeias
mistas, formadas por casais apiak-munduruku e, em menor medida, por casais apiakkaiabi, sem que se note um padro determinado por gnero nessas unies. Em aldeias
classificadas como apiaks, os filhos desses casamentos so considerados apiaks.
Podemos superar a provvel sensao de desconfiana diante dessa situao etnogrfica
se assumirmos que a realidade social dinmica e eivada de contradies; ento
perceberemos que apiak no uma condio imutvel, mas um status que se adquire
(ou se recusa) circunstancialmente, para parafrasear J-L. Amselle (1998: 52). De acordo
com este autor, os antroplogos no devem omitir vnculos histricos, territoriais,
polticos e outros a fim de delimitar unidades de anlise facilmente manejveis.
A lngua uma importante marca de pertencimento tnico nessa rea, embora
no seja a nica. A maioria dos apiaks fala apenas o portugus, mas aqueles casados
com mundurukus e kaiabis chegam a falar fluentemente uma dessas lnguas, ou ao
menos so capazes de compreend-la perfeitamente; o mebengokr, ouvido diariamente
por meio da radiofonia e na Casa de Sade em Colider, tambm razoavelmente
compreendido por vrios apiaks. preciso explicar que, embora os idiomas
munduruku e kaiabi sejam falados cotidianamente nas aldeias apiaks, especialmente
como veculo de comentrios que no devem ser ouvidos pelos apiaks, restringem-se
aos espaos domsticos e s conversas informais; a lngua do salo, isto , das
conversas formais, o portugus. Dessa forma, ainda que no possam impor sua lngua

57 curioso que, nas narrativas fundacionais kaiabis que me foram dirigidas, apiak e kaiabi formavam
originalmente um mesmo povo, at que os apiaks deixaram de se pintar com urucum. De sua parte, os
apiaks negam veementemente a identificao pretrita com os kaiabis.

88

aos mundurukus e kaiabis co-residentes, os apiaks ao menos conseguem impedir que


as lnguas desses povos tornem-se as lnguas oficiais nas aldeias apiaks. A lngua
portuguesa, neste contexto, funciona pois como instrumento de resistncia empregado
pelos apiaks para inviabilizar sua absoro cultural pelos mundurukus e kaiabis.
Porm, os kaiabis costumam dizer que os apiaks deixaram de ser ndios
porque abandonaram a lngua, ao passo que os mundurukus explicam tal abandono pelo
fato de os apiaks terem ficado espalhados, sem companheiros com quem
conversar na lngua indgena. Os mundurukus casados com apiaks estimulam seus
cnjuges a retomar a lngua e elogiam seus esforos para retomar a cultura. O
interessante que, a despeito da proximidade lingustica entre o apiak e o kaiabi
ambos os idiomas pertencem ao mesmo ramo da famlia tupi-guarani , os apiaks
insistem em marcar a diferena entre eles e no cogitam em ter professores de lngua
kaiabi em suas escolas, enquanto professores do aulas de munduruku (tronco tupi)
numa das aldeias apiaks sem causar nenhum estranhamento.
Para alm da lngua, um vasto conjunto de elementos histricos e culturais
pode ser acionado a ttulo de critrios de pertencimento tnico, sendo que os
posicionamentos divergentes dos mundurukus e kaiabis em relao lngua apiak
atestam a continuidade das fronteiras tnicas em funo da permanncia de identidades
contrastivas.58

Verifica-se, assim, que os traos culturais que do substncia

identidade e lhe servem de argumento esto submetidos historicidade que lhes


prpria (Bartolom 2006: 55). Alm do mais, tudo indica que a lngua portuguesa foi
considerada pelos indgenas como uma lngua franca adequada ao contexto multitnico
dos seringais e ao novo estilo de vida que se impunha.
A situao dos apiaks corrobora o argumento de J-L Amselle, para quem a
lngua, assim como a cultura, pode ser pensada como resultado de uma relao de
foras entre grupos, em vez de um mero conjunto de regras abstratas de comunicao
(Amselle 1998: 32). Na ltima dcada, os professores apiaks tm se empenhado em
retomar a lngua indgena por meio da escola, porm sem muito sucesso at o
momento; a revitalizao da lngua, a demarcao da terra e o encontro com os parentes
isolados no Pontal constituem, com efeito, os pilares do movimento de reestruturao
sociopoltica apiak iniciado nos anos 1980. Amselle argumenta que a lgica do
fenmeno de oscilao tnica marcada pela flexibilidade, elasticidade, plasticidade,
58

Em 1974, num seminrio sobre o conceito de identidade, Lvi-Strauss (1983) foi enftico ao afirmar o
carter de construto simblico e poltico de toda identidade.

89

reversibilidade, consistindo em produto de negociaes simblicas e polticas.


A esta altura, devem-se esclarecer dois pontos. Em primeiro lugar, na regio
dos formadores do Tapajs, os apiaks so os nicos que se dizem misturados. Os
kaiabis e os mundurukus, quando em seus respectivos territrios tradicionais,
distinguem nitidamente as etnias, referindo-se especialmente lngua como sinal
diacrtico. No curso baixo do Teles Pires, onde os mundurukus se tornaram dominantes,
os apiaks permaneceram invisveis por vrias dcadas. Em comunicao pessoal,
Patrcia de Mendona Rodrigues, antroploga que coordenou os trabalhos de
identificao da Terra Indgena Kayabi, em 1994, contou-me que os apiaks do Par
no se afirmavam como grupo diferenciado quando ela esteve na regio; eles
provavelmente se encontravam diludos nas aldeias mundurukus e kaiabis (estas
ltimas, estabelecidas mais ao sul), casados com pessoas dessas etnias, existindo como
minoria poltica e, em muitos casos, adotando a lngua daqueles povos. Alm do mais,
expor ostensivamente a identidade tnica diante dos kaiabis e mundurukus localmente
dominantes, naquele momento, poderia ter sido considerado um ato de enfrentamento,
com repercusses negativas para os apiaks.
De outro modo, no Rio dos Peixes, onde os kaiabis predominam
politicamente, o etnnimo apiak jamais foi absorvido; a distino tnica parece ter
sido antes alimentada pela proximidade geogrfica entre esses dois povos, que eram
inimigos no sculo XIX. Os apiaks atuam como elo poltico entre os kaiabis, os
mundurukus e os brancos aliados, configurando-se um sistema social regional
(Heckenberger 2001: 91; no confundir com as sociedades regionais do Xingu), um
conjunto de redes de interao e aliana em que se trocavam e ainda se trocam
pessoas, objetos e outros signos relacionais, e graas ao qual as diversas comunidades
apiaks, kaiabis e mundurukus puderam gozar de relativa autonomia. Tal sistema
proporcionou certo grau de equilbrio intertnico desde o sculo XIX, assegurando as
condies de sobrevivncia (fsica e poltica) do povo apiak.59
A deciso tomada pelos apiaks, de assumir o risco de existir como unidade
social, teve consequncias para a rede social regional como um todo, tornando explcita
59

Recordo que os apiaks, os mundurukus e os kaiabis agiram de maneiras distintas nos perodos colonial
e ps-colonial. Em que pese a multiplicidade de estratgias adotadas por fraes de um mesmo povo,
pode-se dizer que, de modo geral, os mundurukus aliaram-se aos brancos nos ltimos anos do sculo
XVIII, passando a atuar como seus mercenrios; os apiaks, como vimos, atuaram como guias, pilotos de
barco e fornecedores de alimentos para os brancos desde o incio do sculo XIX; enquanto os kaiabis
resistiram pacificao at os anos 1960.

90

uma propriedade fundamental do sistema, a saber, a interdependncia entre esses


povos, caracterizada pela hostilidade, pela rivalidade e pelas trocas. Como vimos no
captulo 1, tal sistema sustenta relaes que perduram h pelo menos dois sculos,
conquanto seus contedos tenham se alterado consideravelmente.
Um exemplo disso o acirramento da competio por bens fornecidos pela
Funai, Funasa e outras agncias locais. A visibilidade alcanada pelos apiaks na arena
das instituies governamentais e a consequente melhoria das condies de vida em
suas aldeias tm abalado levemente a superioridade kaiabi no Rio dos Peixes, ao passo
que um nmero considervel de famlias nucleares mundurukus do alto Tapajs vm se
mudando para aldeias apiaks, seja fugindo do circuito de feitiaria nas aldeias de
origem, seja em busca de remdios e da infraestrutura provida pelos apiaks. O
resultado dessa dinmica cclica o fortalecimento poltico dos apiaks, que ainda
concebem como vantajosa a aliana com os mundurukus, embora j se note o
crescimento das tenses entre os dois povos.
Em segundo lugar, temos que a configurao sociocultural atual do povo
apiak em grande medida produto das alianas estabelecidas com diversos povos
indgenas e com os brancos, a partir do incio do sculo XIX. Tais alianas mostraramse possveis no interior dessa rede social extremamente plstica que, naquela poca,
passou a ser unificada pela circulao de mercadorias, cujas fontes eram os
missionrios, os patres seringalistas e mais tarde os encarregados de Postos Indgenas
(PIn) do Servio de Proteo aos ndios (SPI). Propomos que a constelao de alianas
estabelecidas pelos apiaks, bem como as fronteiras tnicas porosas que se formaram,
so expresses de resilincia social, surgindo num momento de disperso territorial
forada e de brusco declnio populacional.
Neste

sentido,

uma

contribuio

terico-metodolgica

relevante

proporcionada por etnografias de povos misturados consiste na reflexo imperativa


sobre os limites epistemolgicos de certos conceitos e modelos caros ao pensamento
antropolgico. Iniciemos, ento, pela anlise de definies clssicas de etnia, grupo
tnico e cultura, e algumas crticas que se produziram a elas, com as quais estou
dialogando para construir nossa leitura do material apiak.

91

2.1- Historicidade e etnognese


O emprego de um conceito essencialista de cultura teria inviabilizado nossa
tentativa de apreender, em seus prprios termos, as concepes dos apiaks sobre a
histria, a cultura e a identidade. Todavia, mais que tentar compreender a substncia de
que feita a conscincia de seu prprio valor, que impele os apiaks a continuarem se
afirmando como povo e lutando pelo respeito a seus direitos, trata-se de estabelecer
com eles um dilogo efetivo e certamente enriquecedor para ambas as partes. De
acordo com A. Ramos (no prelo):
Reconhecer que as teorias nativas podem nos levar mais longe e mais fundo
do que as nossas rumo compreenso de determinado mundo indgena um
exerccio tanto de sabedoria antropolgica quanto de humildade cientfica, sem
a qual a almejada superao de nossas limitaes de conhecimento fica
seriamente comprometida. S podemos chegar possibilidade de um dilogo
franco e produtivo com os sujeitos das nossas etnografias, e assim elevar o
patamar da intercomunicabilidade, quando aprendermos a no reduzir suas
teorias s nossas, mas tomar ambas como vozes com iguais decibis que se
falam mutuamente.
Minhas primeiras impresses sobre o panorama tnico na regio dos
formadores do Tapajs foram muito parecidas com as primeiras impresses de P. Gow
no baixo Urubamba (Amaznia peruana), rea igualmente caracterizada pela
heterogeneidade tnica e pelo multilinguismo, onde a aculturao aparentemente forte
dos povos nativos dissimula a intensa adaptao dos forasteiros ao modo de vida
indgena (Gow 1991: 21).60 Transcrevo um trecho de seu depoimento para dar uma
ideia de sua perplexidade inicial, a qual, entretanto, foi transformada em problema
terico:
Muitas das pessoas nas trs comunidades em torno da barra do rio Huau
no so Piro, de acordo com nenhuma definio. Muitos so Campa, outros so
imigrantes do baixo Ucayali ou da cidade de Pucallpa. Muitos deles falam Piro,
mas muitos no falam. Mesmo entre as pessoas que se dizem Piro h aquelas
que no falam esta lngua, e o mesmo vlido para certos Campa (...). De modo
ainda mais confuso, o fato de uma pessoa ser Piro ou no dependia da pessoa
com quem eu falava: uma pessoa podia ser identificada por outra como Piro, por
outra como Campa, e por uma terceira como moza gente, um termo que pode ser
traduzido como mestio. De forma ainda mais confusa, cada pessoa podia
mudar sua auto-identificao de acordo com a ocasio. (...) Os Piro de todas as
comunidades ao longo do rio Sepahua enfatizavam que eram gente civilizada,
60

As semelhanas histricas e etnogrficas entre os povos nativos do baixo Urubamba e os apiak so


muitas e aparecero diversas vezes ao longo da tese. A opo terico-metodolgica de P. Gow por realizar
um estudo nos moldes clssicos de ndios aculturados e de analisar a fundo o idioma da mistura nos
servir de inspirao, o que no nos impede, contudo, de lhe formular uma crtica.

92

e se comparavam aos Campa do Gran Pajonal e aos Amahuaca e Yaminahua


vivendo a leste do baixo Urubamba, que eram gente de monte, gente da floresta
ou ndios bravos. As pessoas me diziam que seus ancestrais tambm eram gente
da floresta, mas que elas prprias haviam se tornado civilizadas. Comentrios
pejorativos sobre os povos da floresta eram um elemento constante nas
conversas cotidianas (...). (Gow 1991: 5-6)
Gow no se deixou levar pelas aparncias e decidiu realizar uma etnografia
nos moldes clssicos, ouvindo o que aqueles indgenas tinham a dizer sobre seu
passado e seu presente e tomando as categorias nativas como objeto de anlise. Gow
trata ento da construo da socialidade piro (arawak) como um processo de mistura de
sangues. O autor demonstra a vigncia, entre os povos nativos do baixo Urubamba, de
um sistema classificatrio segundo o qual, do ponto de vista da gente mestia das
comunidades nativas, os povos da floresta vivem com um mnimo de mediao
cultural em relao ao meio ambiente, sendo que nativos e brancos formando os dois
plos de um continuum espaciocultural. Assim relacionados simbolicamente, povos da
floresta, ndios misturados e brancos civilizados ocupam no apenas espaos
fsicos distintos, mas tambm posies diferenciadas no acesso a elementos
caractersticos do modo de vida civilizado, designadamente as mercadorias.
O autor recusa explicitamente o conceito de etnia e sustenta que, se o foco na
coerncia e na integrao do grupo social se aplica mal a estes povos, que se autodefinem como misturados/de sangre mezclada (Gow 1991:283ss), no porque eles
sejam anmalos ou irremediavelmente descaracterizados, mas porque a dicotomia
analtica entre tradicional e aculturado no adequada para a anlise daquela
realidade social. Gow percebeu que, para esses povos, a dinmica histrica no
significou apenas desintegrao e perda, tendo sido incorporada mesmo como foramotriz do parentesco; assim, o idioma da mistura uma linguagem empregada pelos
povos do baixo Urubamba para falar sobre suas relaes sociais, sobre a novidade da
escola e do ttulo de propriedade da terra, sobre temporalidade, espao e tipos de gente,
pondo em relevo o fundamento histrico do parentesco.
Em que pesem as semelhanas histricas e etnogrficas entre os contextos da
regio dos formadores do Tapajs e do baixo Urubamba, salta aos olhos o fato de Gow
no se deter na ideologia tnica e no informar sobre a provvel mobilizao poltica
indgena em torno da titulao das terras, chamadas de Comunidades Nativas. De outro
modo, faremos aqui o esforo de correlacionar as categorias apiaks relativas a cultura,
identidade e mudana ao projeto de colonizao levado a cabo desde o sculo XVIII, na
93

rea delimitada pelos rios Juruena e Teles Pires, assim como situaremos a
reestruturao poltica do povo no cenrio indigenista nacional delineado desde os anos
1970 (ver Ramos 1998).
Bem, a grande questo que emerge dos dados etnogrficos que reuni durante o
ano de 2007 a seguinte: os apiaks estariam se afirmando hoje como povo,
independentemente das relaes estabelecidas com os mundurukus, os kaiabis, diversas
categorias de brancos e o Estado brasileiro? Para tentar responder a esta pergunta,
retomaremos alguns conceitos-chave da literatura sobre etnicidade.
Em 1967, F. Barth, que fora aluno de E. Leach, redefiniu o conceito de grupo
tnico, recusando a equao tradicional entre uma raa, uma cultura e uma lngua, bem
como a proposio de que uma sociedade uma unidade que rejeita e discrimina outros
(Barth 2000a: 27). O ponto de discordncia de Barth em relao definio at ento
aceita era seu carter preconcebido, que no levava em conta as categorias empregadas
pelos prprios atores (: ibidem). De outro modo, o autor sublinhava que a principal
caracterstica dos grupos tnicos, entendidos como tipos organizacionais, a de regular
as interaes entre as pessoas e, nesse sentido, as categorias tnicas oferecem um
recipiente organizacional que pode receber contedo em diferentes quantidades e
formas nos diversos sistemas socioculturais (: 33).
A nfase desse novo conceito de grupo tnico recai, assim, sobre a atribuio
tnica; o pertencimento ao grupo tnico passava a ser definido em termos de adeso e
compromisso, e o foco da anlise era deslocado da unidade cultural para a fronteira
tnica, um conjunto de prescries e critrios de avaliao e de julgamento (valores)
que governam as situaes de contato (: 34), no havendo, portanto, correspondncia
necessria entre um grupo tnico e um conjunto de sinais culturais diacrticos.
Em seus estudos sobre relaes entre indgenas e brancos no Brasil, R.
Cardoso de Oliveira dialogou com F. Barth, focalizando especialmente o carter
relacional (contrastivo) da identidade tnica e sua associao a valores. Em seu esforo
terico para constituir etnia como um conceito e um objeto de anlise sociolgica,
Cardoso de Oliveira combinou o empreendimento analtico empregado por C. LviStrauss para redefinir o totemismo ao conceito de ideologia proposto por N. Poulantzas.
Nesse horizonte, Cardoso de Oliveira comps a noo de ideologia tnica, aquela que
articula relaes sociais a valores em situaes de contato intertnico (Cardoso de
Oliveira 1976: 100ss). Este autor concluiu que a etnia serve como o cdigo, a
gramtica de uma linguagem social, capaz de orientar os agentes de modo subliminar
94

na situao intertnica (: 101). A ideologia tnica seria, assim, a base de sustentao


de movimentos sociais de tipos variados, no horizonte do etnicismo (: 73). Pensar a
etnia como classificador, como um sistema de categorizao, como faz Cardoso de
Oliveira, sem dvida nos aproxima das categorias empregadas pelos prprios atores, em
conformidade com a proposta de Barth, bem como permite analisar as relaes sociais
em sistema (intertnico), com uma estrutura e uma dinmica prprias.
Outra formulao de Cardoso de Oliveira que merece ateno diz respeito ao
caboclo. Insistindo na natureza ideolgica da identidade tnica (Cardoso de Oliveira
1976: 45), o autor fala em cultura do contato, um conjunto de representaes e
valores que um grupo tnico elabora sobre a situao de contato em que est inserido e
nos termos do qual classifica/identifica a si prprio e aos demais (: 23). Para Cardoso
de Oliveira, que tem como referencial etnogrfico o caso tikuna (famlia lingustica
isolada do alto Solimes), a categoria caboclo expressa uma ideologia tnica
altamente alienadora (: 47), na medida em que traduziria a introjeo da viso negativa
que o branco divulga sobre uma cultura nativa desfigurada.
interessante comparar a categoria caboclo categoria misturado,
empregada pelos apiaks, a qual no contm nenhum componente de alienao; ao
contrrio, o exame da categoria mistura, empreendido mais adiante, nos ajudar a
compreender aspectos centrais da concepo apiak de histria, organizao
sociopoltica e identidade tnica. Tal procedimento indica, ademais, que a opo por
compreender um povo em seus prprios termos no incompatvel com a anlise da
etnicidade; ao contrrio, elas so complementares.
Recordo de passagem que E. Leach chamava a ateno para a qualidade
ideal, dinmica e relativa da identidade social; a propsito do sistema social vigente
na Regio das Colinas de Kachin, na antiga Birmnia, Leach afirma que
Os kachins falam de pessoas que se tornaram gumlao ou que se
tornaram chans (...) Isso implica que os prprios kachins imaginam que a
diferena entre kachin gumsa e chan uma diferena de ideal, e no, como os
etnlogos gostariam de nos fazer crer, uma diferena de tipo tnico, cultural ou
racial. (...) A questo de saber se uma comunidade especfica gumlao, gumsa
ou chan no necessariamente determinvel no domnio dos fatos empricos;
uma questo, pelo menos em parte, das atitudes e ideias de indivduos
particulares num dado tempo (Leach 1996: 327) .
Em 1996, o termo etnognese foi empregado na importante coletnea
History, Power, and Identity, que recobre povos indgenas e afro-descendentes de

95

todo o continente americano, com o sentido de uma ferramenta analtica para se


desenvolverem abordagens histricas e crticas da cultura enquanto processo
continuado de conflito e luta em torno da existncia de um povo e seu posicionamento
dentro e contra uma histria geral de dominao (Hill 1996: 1). Dando continuidade
ao dilogo com a histria, iniciado com Rethinking History and Myth (Hill 1988), os
artigos ali reunidos tratam dos processos de reorganizao das formaes sociais
anteriores conquista europeia e de constituio de identidades tnicas em meio ao
colapso demogrfico causado por epidemias, escravido, guerras e perda do controle
sobre territrios e recursos naturais que caracterizaram o perodo colonial nas
Amricas. Hill sublinha que a imagem de populaes indgenas isoladas
anteriormente conquista reflete uma perspectiva histrica eurocntrica, que
desconsidera a existncia das vastas redes regionais multiculturais e multilingusticas
preexistentes (Hill 1996: 8).
No sculo XIX, com a instalao do Estado-nao de matriz europeia nas
Amricas, os povos indgenas adquiriram um status ambguo: eles se tornaram cidados
plenos dotados de direitos, mas continuaram a ser vistos como selvagens que deveriam
ser educados e assimilados vida da sociedade estatal (Hill 1996: 11). A ideologia
racista colonial conservava sua fora, passando a nortear os projetos de nacionalizao,
comprometidos com a centralizao poltica e a homogeneizao cultural. Desse modo,
os pases independentes no criaram um espao poltico para os povos indgenas
sobreviverem e prosperarem como cidados dentro do estado soberano e
simultaneamente como grupos tnicos culturalmente diferenciados (: 12).
Alguns sculos aps a conquista europeia, os indgenas desenvolveram
resistncia imunolgica a muitos dos microrganismos introduzidos pelos brancos e
houve uma melhora relativa de suas condies de vida, verificando-se uma recuperao
demogrfica significativa, acompanhada por uma maior expectativa de vida;
populaes assim recompostas passaram a se reorganizar social e culturalmente, e
atualmente posicionam-se como atores polticos coletivos que reivindicam direitos
assegurados por diversas Constituies latino-americanas, embora o status ambguo dos
indgenas perdure.
J. Hill pondera que as ideologias tnicas, ao afirmarem as diferenas culturais
contra ideologias oficiais homogeneizadoras, no representam nenhuma ameaa
soberania nacional, como muitas vezes proclamam membros de setores anti-indgenas
nacionais, mas, por outro lado, tornam explcitas crenas e prticas racistas e
96

etnocntricas que historicamente fundamentaram a atuao do Estado, abrindo assim a


possibilidade de que vencedores e vencidos gozem de direitos iguais, sem a ameaa de
etnocdio ou assimilao cultural (Hill 1996: 12).
Por sua vez, M. Bartolom, fazendo uma comparao entre casos de
etnognese em toda a Amrica Latina, emprega este conceito no plural e chama a
ateno para o fato de que tais fenmenos explicitam o dinamismo inerente aos
agrupamentos tnicos, cujas lgicas sociais revelam uma plasticidade e uma capacidade
adaptativa que nem sempre foram reconhecidas pela anlise antropolgica (Bartolom
2006: 40). O autor defende que se tente compreender as etnogneses do ponto de vista
dos indgenas e argumenta que muitas vezes, a sobrevalorizao de uma noo
substancializada da aculturao no atenta s ideologias tnicas influiu na aparente
extino de alguns grupos (: 48), como foi o caso dos apiaks e tambm o dos
kokamas (ver Gow 2003), entre outros.61
Inspirando-se nos Sistemas Polticos da Alta Birmnia, o africanista J-L.
Amselle (1998) empenhou-se em desconstruir o que chama de razo etnolgica, isto
, a maneira como a antropologia olha para os diferentes povos, com base numa reviso
da histria da disciplina que sublinha suas origens no Iluminismo. A partir de uma
longa experincia de campo na frica, Amselle prope pensar a cultura como coleo
de prticas internas ou externas a uma certa arena social que os atores mobilizam em
funo de uma ou outra conjuntura poltica. A cultura seria, assim, um meio instvel, de
perpetuao fortuita e aleatria: Cultura como identidade coletiva, como classificao,
continuamente o objeto de disputa poltica, de uma luta por reconhecimento que
assume a forma de uma incessante reclassificao, tanto assim que a prpria aparncia
da sociedade pode passar por redefinies constantes (Amselle 1998: 41).
De acordo com Amselle, as sociedades nativas so grupos fluidos e plsticos
que deixam espao para a novidade e a inveno. No horizonte dessa abordagem
construtivista e transacional da cultura e da identidade, ele sugere uma mudana
metodolgica radical, segundo a qual o todo deve ser mais valorizado que as vrias
partes, derivando da sua preferncia por sistemas de transformao em detrimento da
61

Bartolom sublinha ainda que o mito da existncia na Amrica Latina, no passado e no presente, de
sociedades puras, dotadas cada uma de uma cultura especfica e singular, um tanto enganoso e tem
sido criticado com base em distintos pontos de vista, assim como o fez Boccara (2000) ao insistir na
flexibilidade e na adaptabilidade dos grupos indgenas, cuja lgica poltica e social inclua uma abertura
s relaes interculturais (Bartolom 2006: 43). Bartolom chama de cegueira ontolgica atitude
poltica de suprimir a diversidade tnica presente nos processos de constituio das ideologias
nacionalistas (Bartolom 2006: 45).

97

imagem artificial de sociedades discretas, isoladas e estticas, e tambm sua hiptese de


um sincretismo ou mistura originria, cujas expresses seriam as lgicas mestias,
que se referem a unidades polticas indissociveis dispostas num continuum histricosocial (: 10).
Outro autor que se empenha em reformular o conceito antropolgico de
cultura no horizonte de uma dialtica da dominao G. Sider (1994). Analisando o
fenmeno de produo e reproduo de identidades indgenas nas colnias do sudeste
da Amrica do Norte, Sider delineia as formas de diferenciao das sociedades nativas
americanas, que teriam sido impostas de fora, como parte do processo de dominao
colonial, porm reivindicadas simultaneamente pelos povos indgenas para fazer frente
a essa mesma dominao (Sider 1994: 112).
Sider relaciona a intensificao do faccionalismo e das disputas internas a
esses povos, manifesta na multiplicao de identidades tnicas no perodo colonial, aos
usos que a economia poltica euro-americana fazia deles, apontando as contradies
subjacentes a essa dinmica. Desse modo, sua definio de etno-histria um nome
para as lutas em torno da produo e distribuio da cultura e da existncia de um povo
(: 115) implica uma concepo de cultura como locus de conflito, algo bem prximo
dos argumentos de E. Leach e de Amselle expostos acima. Sider prope que as tenses,
ambiguidades e conflitos em torno de valores e significados so produtivos na medida
em que fomentam novas formas de relaes entre pessoas, surgindo assim novas
divises, identidades e etno-histrias que expressam as diferentes maneiras como os
grupos se situam dentro de e contra a sociedade dominante.
No entanto, acredito que M. de Certeau quem formula a questo da maneira
mais incisiva: uma etnia um objeto de saber, ou antes aquilo que um grupo define
por seu ato? (de Certeau 2005: 154). Embora no trate de povos indgenas e sim de
nacionalismos, especialmente o breto, o ensaio de de Certeau oferece insights
proveitosos para pensar a dinmica identitria apiak:
o a priori do mtodo etnolgico suprime o ato pelo qual os bretes se
tornam bretes e falam, em seu nome, com a linguagem da sua vontade de viver,
os elementos culturais analisados pelo observador. Ora, no se pode fazer
abstrao do ato que mantm juntos todos esses elementos. Na medida em que
desejamos definir objetivamente os bretes, ns os reduzimos aos dados
descritos por um quadro econmico ou arqueolgico (...) Mas,
fundamentalmente, esse quadro no suficiente. Acrescentamos, desse modo,
os problemas polticos: h unidade poltica apenas a partir do momento em que
um grupo se d por objetivo e por tarefa existir como tal (de Certeau 2005: 154,
nfases no original).
98

Reconhecer e explicitar o carter eminentemente poltico das estratgias


tnicas , me parece, a melhor maneira de desnaturalizar a questo da identidade. Nesse
sentido, podemos falar num povo apiak apenas na medida em que um conjunto de
pessoas se pensa como grupo e partilha uma vontade poltica, qual seja, a de ter
respeitados direitos civis coletivos ligados a um nome e a uma histria singulares.
Sublinho que a evocao do nome apiak como unidade tnica surge no mbito da
situao colonial (Oliveira 1998: 54), como estratgia poltica de sobrevivncia de
uma coletividade diante do (e em interao com o) Estado e outras agncias que ento
consolidavam sua presena no norte do Mato Grosso, tendo por base a emergncia da
conscincia crtica do processo de explorao e esbulho vivenciado. O que mantm os
apiaks unidos no presente , pois, a memria de guerras e alianas passadas com os
kaiabis e os mundurukus, associada a uma perspectiva de futuro a ser vivido
conjuntamente.
********

Em sua reflexo a respeito dos ndios misturados do Nordeste, J. P. Oliveira


Filho (1998) dialoga com diversos autores que trataram da questo da etnicidade para
formular uma importante questo: Se a distintividade cultural que possibilita o
distanciamento e a objetividade, instaurando a no contemporaneidade entre o nativo e
o etnlogo, como possvel proceder com as culturas indgenas do Nordeste, que no
se apresentam como entidades descontnuas e discretas? (Oliveira Filho 1998: 49). Em
resposta a esta indagao, Oliveira prope o dilogo com a histria e emprega o
conceito de territorializao, como forma de desnaturalizar a ideia de mistura tnica e
de evitar uma etnologia das perdas e das ausncias culturais (: 62).
De acordo com Oliveira Filho, territorializao refere-se a um processo de
reorganizao social que apresenta quatro dimenses bsicas: 1) a criao de uma
nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade tnica
diferenciadora; 2) a constituio de mecanismos polticos especializados; 3) a
redefinio do controle social sobre os recursos ambientais; e 4) a reelaborao da
cultura e da relao com o passado (: 55). Podemos identificar tais dimenses na
histria recente do povo apiak. Vejamos primeiramente como se articulam as
dimenses 1 e 4 e, na prxima seo, estudaremos como se efetivou a dimenso 3. A
segunda dimenso do processo de territorializao ser analisada em detalhe na

99

Segunda Parte.
Na segunda metade do sculo XX, observou-se o fortalecimento da identidade
tnica apiak, que pode ser definido como reetnizao ou atualizao identitria
(Bartolom 2006: 57), na medida em que no ocorreu uma ruptura radical da memria
genealgica apiak, embora a coletividade tenha recorrido a novas representaes,
assumidas como fundamentais, numa conjuntura histrica em que se mantm as
fronteiras entre grupos que se percebem como diferentes. Simultaneamente, a ao
poltica desse novo sujeito coletivo, o povo apiak, foi canalizada para dignificar o
elemento tnico e para dar um sentido positivo condio indgena (: ibidem).
Foi a vontade de ficar perto dos parentes que levou os apiaks que haviam
permanecido separados, distribudos em famlias conjugais ou extensas, a se
reagruparem nos anos 1960, no Rio dos Peixes, por influncia do missionrio jesuta
Joo Dornstauder. Atualmente os apiaks aldeados somam cerca de 500 pessoas (censo
de 2007), distribudas em aldeias s margens dos rios Juruena, dos Peixes e Teles Pires;
centenas de parentes dos apiaks aldeados vivem em cidades dos estados de Mato
Grosso, Par e Amazonas.62 A populao total apiak, no presente, gira em torno de
800 a mil indivduos. Alguns homens influentes dizem que, se os apiaks que esto
espalhados fossem reunidos em aldeias, contabilizariam quase 5 mil, cifra que me
parece um tanto inflacionada. No entanto, os apiaks que vivem em aldeias em
territrio kaiabi e munduruku e, por vezes, dominam estes idiomas, se identificam
circunstancialmente como kaiabis ou mundurukus, o que torna meu censo algo
impreciso, por isso saliento que se trata de nmeros aproximados.63
Os apiaks contam que os Morim foram o primeiro de seus subgrupos a ser
amansado, nas primeiras dcadas do sculo XX, vivendo assim por mais tempo em
colocaes de seringueiros e casando-se com arigs e kokamas, na regio do baixo
curso dos rios Juruena e Teles Pires. Os subgrupos Kamassori e Paleci foram
amansados mais tarde, com a ajuda dos Morim, e viveram durante dcadas nas
imediaes da Misso Cururu, no Par, casando-se com os mundurukus e os kaiabis.
Os apiaks legtimos portam os nomes desses subgrupos Morim,
Kamassori e Paleci como sobrenomes tnicos distintivos, transmitidos tanto pela me

62

A estrutura poltica das aldeias ser discutida no captulo 5.


Para a realizao do censo, os dados demogrficos fornecidos pela FUNASA me foram bastante teis.
Agradeo aos funcionrios do DSEI Kayap, em Colider (MT), que os disponibilizaram para minha
pesquisa.
63

100

como pelo pai.64 Os apiaks orgulham-se por ter mantido seus sobrenomes, ao contrrio
dos kaiabis, que os teriam perdido; por outro lado, ressentem-se de uma memria
genealgica bastante restrita. A maioria das pessoas adultas com quem conversei
durante meu trabalho de campo sabia dizer apenas os nomes de seus pais e irmos e os
de um ou dois avs e tios paternos e maternos; por vezes, meu interlocutor sabia que
uma outra pessoa era um primo ou um tio, mas no conseguia traar a ligao
genealgica precisa. No entanto, aps oito meses de pesquisa de campo, consegui traar
um mapa genealgico bastante completo, alcanando a terceira gerao ascendente das
pessoas que hoje tm entre 20 e 40 anos.
Desde os anos 1990, os apiaks vm restringindo os casamentos com os
vizinhos kaiabis e mundurukus e com descendentes de arigs. Manifestam preferncia
declarada pelo casamento entre parentes distantes (ver captulo 4), como forma de
fortalecer o povo.
D. Gallois (2007) fala em etnognesis (no plural) entre os waipis (tupiguaranis), referindo-se a uma lgica indgena de gesto de relaes, no limitada ao
contexto colonial. A autora recusa a imagem de fechamento sociocosmolgico que se
forjou para definir as sociedades guianenses e prope que as redes de comunicao
regionais sejam analisadas a partir dos ricos processos por meio dos quais esses grupos
se reclassificam permanentemente aos outros e a si mesmos, em gradientes altamente
manipulveis de alteridade (Gallois 2007: 49). Empregando o conceito de agncia,
Gallois demonstra a existncia de um gradiente de alteridade em que se amparam os
critrios de julgamento ou classificadores de aparncias (substncias, aparncia fsica e
modo de vida) aplicados queles com quem os waipis se relacionam (: 55),
configurando-se um sistema relacional aberto, no seio do qual a dialtica de
proximidade e afastamento social se norteia pela possibilidade de domesticao.
Uma vez que os elementos culturais so concebidos como negociveis, a
proximidade seja ela promovida por troca de substncias ou em contato superficial
no uma posio ontolgica definitiva. o produto de um intercmbio agenciado (:
73). O pensamento waipi sobre a diferena pauta-se, assim, pelas interaes
especficas, efetivas:
(...) as apreciaes que os Waipi formulam sobre a proximidade entre
gente diferente podem ser alteradas com o desenrolar de experincias de
convivncia. No se trata, portanto, de pensar a diferena como algo dado a
64

Os Palecis so os descendentes dos nos. 17, 18 e 19; os Kamassori, do casal 21 e 22, e os Morims, dos
nos. 8, 9, 11, 12, 13, 14, 15 e 16 que constam no Diagrama 3.1 no captulo 3.

101

partir de essncias, mas como algo que se transforma por meio da troca de
substncias, que, at certo ponto, so passveis de mistura (...) (Gallois 2007:
65).
A noo de sistema relacional aberto aplica-se bem aos apiaks. Se eles
sustentassem um sistema relacional mais rgido, dificilmente teriam conseguido se
adaptar aos efeitos desagregadores da frente da borracha. Como vimos no captulo 1, a
ao dos apiaks na segunda metade do sculo XIX deu-se no sentido de incorporar
elementos estranhos e acomodar-se s circunstncias impostas. No sculo XX,
diluram-se entre os mundurukus do alto Tapajs, mas, assim que foi possvel
reorganizar-se como povo, eles passaram a afirmar uma especificidade cultural e
poltica.
O ponto a enfatizar aqui o fato de que as pessoas reorganizam as categorias
de classificao do mundo a partir da prtica, da ao no mundo. De acordo com M.
Sahlins:
A ao simblica um composto duplo, constitudo por um passado
inescapvel e por um presente irredutvel. Um passado inescapvel porque os
conceitos atravs dos quais a experincia organizada e comunicada procedem
do esquema cultural preexistente. E um presente irredutvel por causa da
singularidade do mundo em cada ao (...) A diferena reside na irredutibilidade
dos atores especficos e de seus conceitos empricos que nunca so precisamente
iguais a outros atores ou a outras situaes nunca possvel entrar no mesmo
rio duas vezes. (...) Porque, se sempre h um passado no presente, um sistema a
priori de interpretao, h tambm uma vida que se deseja a si mesma (como
diria Nietzsche) (Sahlins 1990: 189).
O prprio Lvi-Strauss reconheceu que os sistemas classificatrios permitem
integrar a histria, mesmo e sobretudo aquela que se poderia acreditar rebelde ao
sistema (Lvi-Strauss 1962: 270).
Por seu turno, B. Albert explica que
Na medida em que seus sistemas de construo simblica do Outro
constituem o quadro e a condio de possibilidade de sua autodefinio, as
sociedades indgenas, ao confrontarem os brancos, tm, necessariamente, que
passar por um processo de redefinio identitria no qual so reconstrudas as
fronteiras tradicionais da alteridade, desestabilizadas por esse encontro (Albert
2002: 13)
Desde os anos 1980, a cena poltica nacional caracteriza-se por um respeito
maior aos direitos dos povos indgenas; entretanto, a memria coletiva nem sempre
suficiente

para

garantir

os

direitos

constitucionais

povos

culturalmente

102

descaracterizados e/ou fortemente miscigenados. Recentemente os apiaks, assim como


vrios outros povos indgenas, comearam a investir naquilo a que chamam de resgate
das tradies, um processo de retomada ou recriao de sinais culturais diacrticos,
como a lngua, a tecelagem, as festas e as pinturas corporais,65 a fim de mostrar aos
forasteiros com que interagem (representantes de diversos setores do Estado,
antroplogos, profissionais da rea de sade, polticos e poderosos locais, financiadores
de projetos etc.) que so diferentes tanto dos brancos regionais quanto dos vizinhos
kaiabis e mundurukus. Tais tradies no devem ser compreendidas como meros
sinais diacrticos reificados e vazios de sentido; devem, antes, ser lidas como
emblemas, como propostas discursivas e performativas que implicam uma tentativa de
comunicao com Outros em contextos de assimetria de poder (ver Bartolom 2006:
63).
Como pondera Bartolom: Recupera-se um passado prprio, ou assumido
como prprio, a fim de reconstruir um pertencimento comunitrio que permita um
acesso mais digno ao presente (: ibidem). No se trata, todavia, de um romantismo
nostlgico, do qual s se esperam resultados gratificantes, mas da adoo deliberada de
uma condio tradicionalmente subalterna, qual se pretende imprimir uma nova
dignidade. Isto pressupe uma atitude contestatria e de desafio diante da sociedade
majoritria em que se gestou o preconceito (: 58). Neste sentido, o autor destaca que
o carter algo esquemtico das normatividades estatais e internacionais sobre as
definies do tnico faz com que, muitas vezes, a expresso nativa, ante essas
instncias, adquira um carter fundamentalista ou essencialista, em uma tentativa de
se legitimar em face das instituies que podem apoiar suas causas (: 60).
Os apiaks que vivem em aldeias onde tm ascendncia poltica se sentem
imensamente incomodados quando so confundidos com os kaiabis ou com os
mundurukus, ou ento quando so chamados de caboclos. Os homens influentes
atuais demonstram grande orgulho de seu povo; embora lamentem as consequncias
desastrosas do contato, reconhecem que o processo de civilizao vivenciado lhes
trouxe os conhecimentos necessrios para que no sejam mais enganados e explorados
pelos brancos, especialmente a escrita e a conscincia da legislao indigenista.
65

Os mundurukus e os kaiabis reconhecem que os cocares apiaks eram os mais bonitos da regio.
Atualmente, vrios rapazes apiaks confeccionam cocares de penas a partir das aquarelas de Florence,
reproduzidas no livro da Expedio Langsdorff presenteado pela tataraneta do desenhista, como j foi
mencionado. As pessoas mais velhas disseram lembrar-se da coroa radial emplumada da foto 18 dos
Anexos: Os antigo usavam isso nas festas, e informaram que as penas amarelas so do pssaro japu.

103

importante perceber que os apiaks muito provavelmente obteriam mais vantagens


materiais se permanecessem diludos entre os mundurukus, mas preferiram no fazlo. Tal atitude comprova que a organizao poltica apiak no se pauta por reles
oportunismo, mas sim pelo desejo de permanecer vivendo como parentes em
comunidades bonitas, harmoniosas e salubres.
A configurao da comunidade pelos apiaks se fez acompanhar de uma
reelaborao da cultura e da relao com o passado sustentada pelas categorias ndios
mansos/misturados/civilizados, em oposio aos ndios bravos/puros/selvagens, o que
pode ser definido como o modelo apiak de etnognese (Hill 1996: 157). Nesse sentido,
vale para os apiak um esquema classificatrio semelhante quele delineado por P. Gow
(1991) para os povos nativos do baixo Urubamba.
De acordo com Gow, os tipos de gente do baixo Urubamba ndios puros,
ndios misturados e brancos observariam relaes diferenciais com a terra e o sistema
econmico (a saber, o regime de aviamento, o mesmo que vigorou na Amaznia
brasileira, e que se baseia na circulao e no incremento inexorvel da dvida). Nesse
sentido, os povos nativos do baixo Urubamba so apresentados como progressistas,
abertos a inovaes e voltados para o exterior, sua configurao sociocultural
correspondendo a uma variao estrutural de outros sistemas de parentesco amaznicos.
Os apiaks que vivem na floresta, os isolados, so tambm chamados de
bravos e puros pelos apiaks que vivem em comunidade, os quais classificam a
si mesmos como misturados e um pouco civilizados; totalmente civilizados so
somente os brancos que vivem em rea urbana. Como se nota, a classificao apiak
dos diferentes tipos de pessoas no responde fundamentalmente a uma base racial, com
categorias discretas (algo como branco versus ndio), como poderia fazer crer,
primeira vista, a noo de mistura, mas sim a uma base social, que se expressa sob a
forma de um continuum espaciocultural e est sintetizada nas ideias correlatas de
civilizao e comunidade. Neste sentido, podemos falar numa tica espacial
anloga dos guarani-mbys, de acordo com a qual cada tipo de ser corresponde a uma
modalidade de espao (S. Guimares 2001; Ladeira 2001).
A ideia de pureza refere-se, fundamentalmente, a um estilo de vida silvcola,
adotado por pessoas que no dispem de mercadorias e dinheiro e no conhecem as
instituies e os cdigos ocidentais. Apesar da proximidade entre misturado e
caboclo no campo semntico da etnia (cf. Cardoso de Oliveira 1976: 45ss), no caso
dos apiaks, a primeira categoria no exprime alienao, constituindo, antes, uma
104

elaborao crtica sobre a histria e um impulso para a luta poltica.


Os apiaks puros formam uma categoria correlata da poca das aldeias
tradicionais, estabelecidas ao longo do rio So Tom (Pontal do Juruena). Os apiaks
puros so pouqussimos hoje em dia; ainda assim, aqueles que se casaram com
kaiabis e mundurukus so considerados ndios em oposio aos propriamente
misturados, descendentes de unies entre apiaks e arigs.
Porque foram afastados dessas aldeias, espalhados, e reunidos a pessoas
diferentes, num contexto novo, os apiaks adaptaram-se nova situao modificandose. Engajaram-se em relaes de outro tipo, desta vez com pessoas definidas por sua
posio numa hierarquia cuja base era o poder de mando e cuja ideologia justificava o
controle sobre a fora de trabalho alheia. Ao que tudo indica, os brancos envolvidos na
empresa seringalista viam os indgenas como fonte de lucro financeiro, enquanto os
indgenas viam nos brancos uma possibilidade de ganho de outra ordem.
Nas narrativas que me foram confiadas pelos apiaks mais velhos, percebe-se
o grande valor atribudo no apenas s mercadorias fornecidas pelos brancos, mas
tambm ao ensinamento do modo como utiliz-las. como se as narrativas tratassem
menos da aquisio pura e simples de objetos que do estabelecimento paulatino de uma
relao de troca que os apiaks consideravam ambgua, conquanto produtiva. Os
apiaks desempenharam papel ativo no movimento de civilizao progressiva que
teve lugar a partir das ltimas dcadas do sculo XIX, dando mostras daquela abertura
para o outro e daquela preferncia por formas intermedirias de que nos fala LviStrauss (1993).
Misturado , pois, um conceito nativo que sintetiza a histria dos apiaks
sob trs aspectos interdependentes: no tempo, no espao e no esquema de classificao
indgena das pessoas. A mistura concebida, portanto, como resultado direto da
disperso espacial a que o povo foi submetido desde meados do sculo XIX, no mbito
do avano da frente borracha para a regio dos formadores do Tapajs.
O que se deve ressaltar, no caso em estudo, pois o emprego eminentemente
poltico de uma categoria (mistura) que se refere a relaes de parentesco, emprego este
que apenas se faz possvel no interior do cdigo da etnia (cf. Cardoso de Oliveira 1976:
101), o qual remete, necessariamente, histria. Nesse sentido, os casamentos
intertnicos realizados pelos apiaks a partir do final do sculo XIX sinalizavam o
incio de um novo tempo, a adoo de um novo modo de vida, o estabelecimento de
relaes de um tipo singular e o surgimento de pessoas diferentes dos ndios bravos.
105

Este processo de amansamento e civilizao, concebido como voluntrio


pelos apiaks, requeria a elaborao de novos conceitos, e ento a etnia parece ter
surgido como classificador central (cf. Cardoso de Oliveira 1976: xviii), exprimindo, de
sada, seu carter relacional e contrastivo, ativado no seio de um sistema de frico
intertnica, em que as relaes se do em termos de dominao e sujeio (: 9). Num
primeiro momento, os apiaks eram apenas ndios, por oposio aos brancos. Na
interao conflituosa com patres, encarregados de barraces e arigs, exibir modos
civilizados fazia parte de uma estratgia de diversificao e ampliao de relaes
sociais, estratgia de outro modo recusada por aquela seo do povo que se internou na
mata. No sculo XXI, a relao com agncias governamentais e no-governamentais
levou os homens influentes apiaks a problematizarem a ideia de mistura e a reificar
sinais culturais diacrticos, como forma de ter os direitos constitucionais respeitados,
passando assim a acionar a identidade de povo apiak.
A categoria mistura nos mostra assim que, para os apiaks, ao menos no
momento histrico presente, as relaes sociais so mais relevantes que os sinais
diacrticos culturais e, ainda, que estes esto a servio daquelas, talvez porque sua
concepo do social seja bem mais plstica, politicamente fundamentada e esperanosa
do que nossas concepes de cultura, identidade social e etnia.

2.2- A nossa terra


A propsito da relao entre estrutura social e identidade tnica, R. Cardoso
de Oliveira demonstrou a importncia do territrio e da vida comunitria para se evitar
ou retardar o processo de assimilao dos povos indgenas sociedade brasileira, o qual
definiu como processo pelo qual um grupo tnico se incorpora noutro, perdendo sua
peculiaridade cultural e sua identificao tnica anterior (Cardoso de Oliveira 1976:
103). Com base na pesquisa comparativa com terenas aldeados e urbanos, realizada nos
anos 1950, ele escreveu:
A contrapartida do desaparecimento da antiga estrutura social foi a adoo
de um sistema associativo, de contorno ainda impreciso, mas que emergia das
comunidades brasileiras que se formavam ao longo das estradas de
desbravamento. A monogamia, a famlia nuclear como unidade de habitao, a
maior liberdade na escolha do cnjuge e o sistema de compadrio, por exemplo,
foram elementos culturais incorporados cultura tribal e que transformaram
completamente o tradicional estilo de vida. Mas, nem por isso, perderiam os
Terena sua conscincia tribal, apesar de traumatizada pelo rompimento da
antiga infraestrutura e por sua desarticulao com o antigo sistema de valores,
sua religio e mitologia. Pelo menos aqueles Terena que permaneceram em suas
106

aldeias, ou que se reorganizaram em comunidades relativamente autnomas (...)


puderam dispor de terras para morar e plantar e, consequentemente, ter uma
vida de grupo, mantendo vivo, portanto, o ns tribal e tornando longnqua sua
assimilao sociedade brasileira (Cardoso de Oliveira 1976: 108, nfase no
original).
Os apiak que sobreviveram aos massacres e epidemias nos rios Juruena,
Anipiri, Teles Pires e afluentes, j civilizados e casados com indgenas de outras
etnias e nordestinos, passaram a primeira metade do sculo XX espalhados na regio
do Pontal do Mato Grosso, organizados em segmentos autnomos de famlias extensas,
engajados na ento decadente indstria da borracha, ou ento vivendo como agregados
em aldeias kaiabis e mundurukus.
De acordo com as narrativas apiaks, foi o missionrio jesuta Joo
Dornstauder, ligado Misso Anchieta, quem, nos anos 1960, comeou a juntar o
povo de novo, convidando trs famlias apiaks que trabalhavam na rea do mdio
Juruena a se fixar no Posto Tatu (margem direita do Rio dos Peixes), fundado para
pacificar os kaiabis. Aps perodo inferior a uma dcada, essas famlias fundaram
uma aldeia na outra margem do Rio dos Peixes, chamada Nova Esperana, e
convenceram outros parentes que se encontravam espalhados a se mudarem para l.
Os moradores de Nova Esperana continuaram frequentando o Tatu, que ento contava
com um hospital, uma escola e um fluxo considervel de mercadorias controlado pelos
missionrios alemes e austracos, mas no cogitavam em voltar a viver no Posto:
Kaiabi nunca se deu com apiak, eles no gostavam muito que a gente morasse l,
explicaram-me alguns ex-moradores. Em 1968, foi criada a Reserva Kaiabi, que apenas
em 1988 foi transformada em Terra Indgena Apiak-Kaiabi, reduzida em milhares de
hectares (Rodrigues 1994a).
Podemos identificar nesse movimento a criao de uma nova unidade
sociocultural, que foi de fato mediada pela afirmao de uma identidade tnica
diferenciadora. Nos anos 1970, os apiaks no Rio dos Peixes estavam em condies de
se apresentar como povo distinto do kaiabi, especialmente porque dispunham de um
territrio, condio indispensvel para que o grupo tnico permanecesse existindo como
tipo organizacional (cf. Cardoso de Oliveira 1976: 63). Esse territrio, no entanto,
estava longe de satisfazer as necessidades dos apiaks, na medida em que os recursos
naturais tinham (e ainda tm) de ser partilhados com os kaiabis, inimigos tradicionais e
predominantes politicamente na regio; alm disso, em termos ambientais, o Rio dos

107

Peixes difere bastante do curso principal do Juruena e de seus afluentes setentrionais,


onde os apiaks se fixaram na segunda metade do sculo XIX.
Por isso, os apiaks nunca deixaram de empreender longas viagens para o
norte, para caar, pescar e realizar atividades extrativistas; nessas viagens, visitavam os
parentes que permaneciam espalhados e os convidavam para ir viver no Rio dos
Peixes; chegavam at a Misso Cururu, onde estreitaram laos com famlias extensas
mundurukus. A rea que os apiaks reivindicam hoje parte dessa regio do Pontal que
eles jamais abandonaram e que desejam utilizar de maneira exclusiva.
A rearticulao entre os grupos locais do Par (cursos mdio e baixo do Teles
Pires) e os do Mato Grosso (mdio e baixo Juruena) foi iniciativa dos parentes do
subgrupo Morim, do Rio dos Peixes, nos anos 1990, e pode ser considerada como uma
expresso de etnicismo, na medida em que se pautou claramente por uma ideologia
tnica (cf. Cardoso de Oliveira 1976: 73). Estes parentes ficaram sabendo das
condies de vida precrias da parentela Kamassori em territrio munduruku e, como
entendiam melhor o funcionamento do mundo dos brancos, decidiram ajud-los. Assim,
alguns apiaks da parentela Morim, com idades entre 25 e 40 anos, passaram a visitar
regularmente o Par, local de nascimento da maioria deles, aonde, entretanto, eles no
iam h dcadas. Os Morim sugeriram ento que os Kamassori trocassem de
Administrao Regional da Funai, de Itaituba (PA) para Colider (MT), onde os apiaks
do Rio dos Peixes eram atendidos, processo que demorou alguns anos, mas que
contribuiu para a consolidao da unidade poltica do povo.
Nesse perodo, os Morim convidaram os Kamassori para se mudar para o
Rio dos Peixes, mas estes preferiram manter e ampliar a ocupao no Pontal,
movimento que foi apoiado pelos Morim. A primeira ao concreta da luta pela
demarcao do Pontal foi a fundao da aldeia Mairowy, em 1999, sobreposta antiga
aldeia apiak Terra Preta, na margem esquerda do Teles Pires, dentro dos limites da TI
Kaiabi (ver Figura 1.1 para localizao das aldeias e captulo 5 para a anlise das
relaes entre as aldeias apiaks).
A atuao poltica dos homens influentes apiaks lembra as romarias
polticas das lideranas indgenas do Nordeste em busca do reconhecimento de seus
direitos (cf. Oliveira 1998: 65). Quando os caciques apiaks me falavam sobre sua vida,
enfatizavam a centralidade das viagens na consolidao poltica do grupo como tal,
viagens estas que se agrupam em dois tipos distintos: i) as expedies em busca de duas
sees do povo isoladas: uma no rio Apiac, afluente ocidental do Teles Pires, e outra
108

no rio so Tom, afluente oriental do Juruena, com o objetivo de recuperar os sinais


culturais diacrticos do povo, designadamente a lngua; ii) as viagens aos municpios de
Alta Floresta, Colider, Cuiab e Braslia, com o objetivo de obter recursos para as
aldeias e a demarcao de parcela do territrio tradicional (este tema ser retomado no
captulo 5).
O reagrupamento paulatino dos apiaks se deu por meio da constituio da
comunidade, um mecanismo poltico especializado, uma forma de organizao do
parentesco e da relao com diferentes outros, seus objetos e saberes. Comunidade
designa um conjunto de famlias extensas ligadas por laos de parentesco, compadrio,
polticos e econmicos, que ocupa e utiliza uma mesma poro territorial e reconhece a
autoridade poltica do cacique (ver Segunda Parte).
Ora, as comunidades existem dentro de Terras Indgenas, uma categoria
jurdica que sanciona certas prticas e probe outras, ao mesmo tempo em que enseja a
presena de instituies como a escola e o posto de sade; some-se a isto o assdio de
missionrios e a presso econmica de particulares que pretendem explorar recursos
naturais e teremos um cenrio marcado pela contradio entre novas necessidades e
velhos antagonismos, combustvel inequvoco para conflitos e cises.
O conceito apiak de comunidade pode ser melhor compreendido se situado
na rede social regional, pois o que eles exibem de mais tradicional justamente a
posio de mediadores num sistema que abrange os kaiabi, os munduruku e os brancos,
com uma base territorial bem definida.
Apresentar-se como ndios civilizados, diplomticos e com grande
conhecimento do mundo dos brancos, por oposio aos bravos kaiabis, uma
estratgia que tem se mostrado frutfera na interao com a Funai, a Funasa, patres
locais e agncias financiadoras de projetos, aps um sculo de abandono estatal.
digno de nota que os homens influentes apiaks se pensem hoje como mediadores,
como intermedirios entre as agncias governamentais, de um lado, e os ndios, isto
, os apiaks e tambm os vizinhos mundurukus e kaiabis, de outro. Ao que parece, os
apiaks esto cimentando uma aliana poltica mais ampla com esses povos a partir da
obteno e distribuio de recursos materiais e simblicos junto aos brancos.
A relao dos apiaks com o territrio elemento crucial de sua organizao
social, bem como estrutura a memria coletiva e fornece uma perspectiva de futuro
para o povo. Para ser boa de viver, uma aldeia deve ser estabelecida numa regio de
terra preta, mais frtil; deve ser circundada por mata fechada, onde haja abundncia de
109

macacos, queixadas, antas, pacas, cutias, tatus e vrias aves utilizadas na alimentao; o
rio deve oferecer diversidade de peixes e quelnios;66 na mata deve haver espcies
vegetais empregadas para fins medicinais e para se confeccionar anis, pulseiras,
colares, arcos, flechas, bordunas, cocares, bancos, peneiras, paneiros, tipoias, alm de
castanheiras, de rvores onde vrios tipos de abelhas constroem suas colmeias, das
palmeiras de cujos frutos se fazem vinhos (aa, bacaba, buriti, patau) e de cujas
folhas se faz a cobertura das casas (babau e inaj). O espao que se pode percorrer
durante caadas e viagens de coleta deve ser extenso, pois Apiak gosta de andar.
Neste sentido, os apiaks das aldeias Mairowy e Pontal so mais felizes que
os parentes do Mayrob porque comem tracajs no vero, caam queixadas gordos com
frequncia e encontram palha de babau para cobrir suas casas. Alguns moradores do
Mayrob chegam a viajar de canoa para o Arinos, no vero, para pescar tracajs; a
viagem dura sete dias e sete noites.
A semelhana desta concepo de aldeia com o conceito de tekoha dos
guaranis flagrante. Tekoha o conjunto formado pelo rio, pelos acidentes geogrficos,
pela mata e todos os seres que nela habitam (animais, vegetais e espritos); a
materialidade do territrio assim investida simbolicamente para constituir o espao
vital onde se efetivam as relaes sociais e o modo de ser guarani (para o caso mby,
ver S. Guimares 2001, 2004, 2006; Ladeira 2001).
Desde Boas e Mauss sabemos que o espao investido simbolicamente. K.
Basso (1996) mostrou como os apaches ocidentais historicizam seu territrio, indicando
que os termos histria indgena e etno-histria parecem cada vez mais ceder
terreno a um tipo de estudo antropolgico prximo a uma etno-geografia, uma vez
que muitos povos de tradio oral impregnam o espao de uma concepo sobre o
passar do tempo e de valores morais que tornam nica uma dada comunidade. Para os
apaches ocidentais, histria a arte narrativa de construir lugares por meio de
imagens do passado que aprofundam a conscincia do presente. dessa maneira que a
busca das concepes indgenas de histria adquire os contornos de uma etnografia
das topografias vividas (Basso 1996: 111), cuja densidade humana se expressa sob a
forma de quadros simblicos sobre o mundo fsico associados a padres de
comportamento socialmente sancionados.

66

O Juruena e o Teles Pires tambm so apreciados porque em seu curso, no vero, formam-se
praias onde as tartarugas pem ovos, os quais so considerados como verdadeiras iguarias pelos
apiaks.

110

Os apiaks falam apaixonadamente de um grupo de parentes que recusou o


contato com os brancos e voltou para a mata, no incio do sculo XX;67 esse grupo
faria visitas espordicas aos parentes mansos no rio Juruena, nos dias de hoje, guiado
por seus pajs. Os apiaks desejam fortemente o contato com esse grupo, como forma
de recuperar um pouco de sua cultura, e lutam para demarcar o territrio por onde
eles perambulam, como forma de proteg-los do contato com os brancos. Por outro
lado, revelam a inteno de amansar esses parentes, tomando para si a tarefa que os
patres e missionrios desempenharam no passado. A insistncia na presena de um
grupo isolado na rea reivindicada est longe de ser uma estratgia poltica para obter
vantagens materiais; trata-se, antes, do desejo de recuperar no apenas uma terra, mas
um lugar, isto , um contexto social e um modo de vida inviabilizado pela
colonizao. Na medida em que, para muitos povos, a relao com o lugar a base da
identidade, podemos compreender as palavras dos velhos apiaks como verdadeira
expresso da busca de um espao-tempo perdido: Apiakatuba, l nosso lugar, lugar
do povo Apiak, l rico.
No presente, os apiaks manifestam forte desejo de autonomia poltica frente
ao Estado, e fazem uso da diplomacia como poltica intertnica, divulgando uma
imagem de pacifismo; os homens influentes afirmam repetidamente que resolvem os
problemas por meio da palavra, no por meio da borduna. Como vimos no captulo
anterior, a transformao das relaes de guerra e hostilidade com os vizinhos
indgenas em alianas pontuais estratgicas, ocorrida nos sculos XIX e XX, deu-se
num contexto em que os apiaks tentaram transformar os patres em aliados, mas
acabaram se deparando com sua ferocidade. Naquele momento, as relaes entre os
povos indgenas tiveram de se rearranjar em funo das relaes com os brancos, o
belicismo e a troca comercial combinando-se e ajustando-se no interior das novas
estruturas burocrticas, das quais os apiaks vm se apropriando com rara habilidade no
sculo XXI, efetivamente mapeando novos futuros.68
Hoje em dia os apiaks postulam um gradiente de civilizao, isto , de
compreenso do funcionamento do mundo dos brancos e de apropriao de alguns de
seus costumes e objetos, no interior do qual situam os diversos grupos com os quais
67

Analogamente, Laraia fala sobre a insistncia com que os akuawa-asurinis, os surus e os kaapor, povos
tupi-guaranis, referem-se a outros ndios aparentados, aqueles que ficaram no mato, aqueles de quem se
separaram em funo de uma contenda violenta e grupos de caractersticas nitidamente mitolgicas
(Laraia 1984/85: 26), sugerindo a importncia deste tema para a compreenso do processo de segmentao
que teria originado os povos tupis contemporneos.
68
Estou parafraseando S. Kirsch 2002: 68.

111

convivem mais ou menos intensamente. Do ponto de vista dos apiaks, os kayaps


(js), por exemplo, embora disponham de muito dinheiro (proveniente de sua
associao, sediada em Colider), so ndios pouco civilizados, que no sabem
administrar sua riqueza; do mesmo modo, dizem, em tom de reprovao, que os kaiabis
no sabem conversar e usam de ameaas e fora bruta com frequncia.
Assim, se os missionrios foram importantes para garantir a convivncia
pacfica entre apiaks, kaiabis e mundurukus em meados do sculo XX, hoje em dia
tais grupos se rivalizam por intermdio de outros brancos e suas instituies (Funasa,
Funai, projetos de gerao de renda, fazendeiros e polticos locais etc.). No Rio dos
Peixes, os apiaks apropriaram-se da estrutura da Funasa e vm realizando um trabalho
reconhecidamente bom: enquanto os kayaps trabalhariam apenas para seu prprio
povo, os apiaks trabalhariam para todo o mundo (entenda-se: as outras etnias do
Distrito Sanitrio Especial Indgena e da Administrao Regional da Funai, quais
sejam, kaiabis e mundurukus).
No domnio domstico, porm, a hostilidade histrica em relao aos kaiabis
perpetuada, e os mundurukus no agem como aliados polticos em todas as ocasies. Os
apiaks continuam apreciando a parceria (comercial, poltica e, em menor medida,
matrimonial) com os brancos, sem esquecer, contudo, que parceiros podem virar
ona, o que parece ecoar uma opo antiga por relaes social e simbolicamente
produtivas.
Nada mais de guerras, nada mais de cabeas-trofu. O que interessa aos
apiaks hoje viver em aldeias bonitas, civilizadas e harmoniosas. O tempo das brigas
acabou, declaram os velhos; Agora nossa briga no papel, proclamam os homens
influentes. No entanto, as menes guerra no foram suprimidas de todo; a guerra
subsiste no discurso dos apiaks, no em qualquer discurso, est claro, mas nas
narrativas sobre o passado, marcando uma ruptura temporal e o advento de um novo
estilo de vida, a vida comunitria, forjada pelos apiaks misturados e mansos, no
mbito do processo de territorializao.
Novos tempos, novas brigas, velhos corpos: os casos de metamorfose
temporria continuam atestando a dualidade da pessoa. Novos tempos, novos objetos,
velhas formas de constituir a identidade e a diferena. Como veremos nos prximos
captulos, as festas ainda so a melhor maneira de reforar a auto-imagem do grupo
como grupo de parentes por meio do consumo de um elemento exgeno, embora hoje
em dia no se usem mais cabeas de inimigos, mas sim alimentos industrializados. O
112

outro permanece sendo necessrio; embora potencialmente perigoso, indispensvel


constituio do eu. O risco de se alterar radicalmente subjaz s relaes que se
estabelecem com diversos outros brancos, kaiabis, mundurukus, certos animais e
seres encantados. Ainda que tornar-se outro seja sempre uma possibilidade, e apesar
dos conflitos latentes na comunidade, os apiaks mansos optaram por se relacionar
como parentes, da a importncia da tica da generosidade e da moderao dentro da
aldeia e da postura diplomtica quando se trata de questes externas.
Encerremos esta Primeira Parte com uma importante exortao:
preciso no esquecer que os ndios esto h dcadas morrendo na Etnologia
Brasileira e no entanto a realidade parece ser bem outra; apesar de todos os
decretos (do Governo e dos etnlogos), apesar de todas as tragdias, crises,
doenas, espoliaes, perda de terras, enfim, de tudo o que de pior pode
acontecer a um grupo humano, os ndios esto a (DaMatta 1967: 32).

113

Segunda Parte
Organizao Sociopoltica

114

Prlogo

O objetivo desta Segunda Parte apreender o modo como os apiaks


concebem e criam relaes de parentesco no interior da forma sociopoltica a que
chamam comunidade, tendo por referncia o universo cultural tupi. Como veremos, a
reciprocidade o princpio social mais relevante; a lgica da ddiva subordina as
relaes mercantis, constitui os vnculos dentro da famlia extensa e fornece os
parmetros do prestgio poltico. Os apiaks empreendem um processo de
familiarizao cotidiana dos co-residentes, de modo que os kaiabis, mundurukus e
descendentes de arigs que vivem em suas aldeias partilham do senso de comunidade.
Nesse sentido, as festas de ddiva e as reunies que ocorrem no salo, bem
como o cadastramento da escola e do posto de sade realizado pelos apiaks so
mecanismos por meio dos quais aqueles antigos inimigos ou aliados instveis so
apiakalizados, isto , so tratados e classificados como apiaks, passando a se sentir
tambm um pouco apiak. Por outro lado, nas festas de branco verifica-se um
fenmeno de imitao dos brancos urbanos que expe as contradies da forma
comunitria.
certo que o processo de mistura tnica no apagou totalmente as diferenas
culturais, mas o que se afigura como relevante aqui o valor poltico da
convivialidade (Santos-Granero 2000), uma vez que a familiarizao de forasteiros
promovida pelos homens e mulheres influentes tambm uma forma de marcar a
diferena em relao aos kaiabis, mundurukus e brancos regionais, o que dialeticamente
fortalece a identidade tnica apiak. Em nvel local e supra-local, os apiaks
estabelecem uma relao de simbiose com os mundurukus e de hierarquia com os
kaiabis (ver Ramos 1980), com inflexes regionais: no Rio dos Peixes, os kaiabis
ocupam a posio superior na hierarquia intertribal, e os mundurukus aliam-se aos
apiaks para fazer frente a esta predominncia; no rio Teles Pires, os mundurukus
predominam e protegem os apiaks contra os kaiabis; mas so os kayaps, a quem os
apiak procuram se aliar de forma diplomtica, que detm as posies de maior
influncia no mbito da administrao da Funai e da Funasa. Ramos (1980) afirma que
experimentar a desintegrao social em meio a outros ndios muito diferente de
experiment-la entre brancos; no caso dos apiaks, como explicamos na Primeira Parte,
a convivncia com antigos inimigos assegurou-lhes a sobrevivncia enquanto povo.

115

A comunidade apiak est organizada de tal forma que as famlias extensas


so articuladas por uma esfera pblica, materializada no salo, espao de socialidade
que encontra paralelos tupi-guaranis, como a tekatawa parakan e a takana tapirap,
alm da eks dos mundurukus (tupis). A praa apiak no uma casa dos homens, no
ocupa uma posio espacial central na aldeia nem tampouco engloba completamente as
famlias extensas, mas constitui um espao destinado s conversas formais
(especialmente, mas no exclusivamente, entre homens) e s festas, em que se pode
alcanar prestgio e distino, onde os conflitos internos comunidade so mediados e
onde so forjadas as alianas com as demais aldeias apiaks, com as aldeias
mundurukus e kaiabis vizinhas e com os no-indgenas.
A propsito da tekatawa parakan, C. Fausto argumenta que esta a forma de
representao do grupo como uma totalidade provisria, relativa e representacional,
na qual os homens aparecem como os artfices das relaes suprafamiliares,
excluindo as mulheres (Fausto 2001: 241). O autor critica a oposio entre socialidade
poltica e socialidade domstica proposta por M. Strathern, defendendo que o que
prprio do poltico apropriar-se da representao da totalidade, relegando ao
domstico a particularidade (: 240).
Fausto endossa a tese de B. Albert e E. Viveiros de Castro sobre a necessidade
de ir alm do local e do parentesco para dar conta das propriedades globais do sistema,
preocupando-se particularmente com os dispositivos que fazem a mediao entre uma e
outra dimenso (afinidade potencial, relaes de terceiro includo etc.) e as relaes
hierrquicas entre os nveis (: 246) da sua nfase nas relaes externas mediadas
pela guerra e pelo xamanismo. Em artigo posterior, Fausto reconheceu a necessidade de
articular o campo das relaes externas s relaes internas ao grupo local, pensando a
antropofagia ritual e a comensalidade cotidiana como duas formas complementares de
produo de pessoas e de socialidade na Amaznia (Fausto 2002: 7).
Levando em conta a crtica de C. Fausto, acredito, porm, que a distino
efetuada por M. Strathern pode nos ajudar a compreender a organizao social, as
categorias sociais e a configurao poltica dos apiaks. A autora empregou o conceito
de socialidade como ferramenta analtica para designar uma forma ativa de criao e
manuteno de relaes sociais, que envolve as pessoas numa trama de
interdependncias mtuas (Strathern 2006: 153). De acordo com C. McCallum, o
conceito importante porque captura a viso prpria dos ndios sobre o sentido das
suas vidas e a dinmica das suas atuaes no mundo (McCallum 1998: 128). O termo
116

socialidade tambm abrange os aspectos moral, sentimental e esttico da forma de


constituio de relaes (o substantivo em ingls, de difcil traduo, relatedness),
filo explorado por J. Overing e ex-alunos (Overing 1991, 1999; Overing & Passes
2000) sob o rtulo de antropologia do cotidiano.
A obra de M. Strathern promoveu um avano terico considervel ao
desconstruir os conceitos do pensamento social ocidental inspirados em metforas de
posse designadamente, a mercadoria que as cincias sociais normalmente
empregam para apreender as formas como outros povos classificam os atributos das
pessoas e da coletividade e como conceitualizam a diferena. Ao se dedicar ao tema da
relao entre esferas pblica e domstica, a autora prope, com base no material
melansio, a simetria relativa e o imbricamento necessrio entre tais esferas (Strathern
2006: 172). Cada esfera ou domnio da vida social corresponderia a um tipo de
socialidade, assim: a) o poltico seria identificado ao domnio da ao coletiva, baseada
em identidades e objetivos compartilhados; e b) o domstico seria o domnio das
relaes particulares baseadas na diferena e na interdependncia (Strathern 2006: 151).
Entre os apiaks, a socialidade poltica realiza-se plenamente no salo,
canalizando foras sociais centrpetas; j a socialidade domstica, identificada s casas,
define-se tanto pela segurana psicolgica e material proporcionada pelos parentes
quanto pela fofoca e pelas acusaes de feitiaria, modalidades de fala privada que
podem ter efeitos polticos cruciais, exprimindo foras sociais centrfugas. A cada
domnio corresponde um idioma, a saber: o parentesco o idioma das relaes na
comunidade; a etnicidade o idioma dominante na arena poltica exterior aldeia.
As acusaes de feitiaria, ao assumirem a forma de relatos sobre pessoas
que viram bicho, tematizam a potencialidade animal da pessoa; por meio delas, os
apiaks postulam a instabilidade simblica da condio humana. A crena em
metamorfoses temporrias com propsitos nefastos uma maneira de afirmar que a
humanidade conquistada quando se domestica a poro animal da pessoa e,
reciprocamente, que ultrapassar negativamente os limites da socialidade tambm
deixar de ser humano. A persistncia desse simbolismo, que encontra paralelos entre
outros

povos

tupi-guaranis,

mesmo

aps

dcadas

de

disperso

territorial,

desestruturao social e catequizao, deve ser analisada a partir da noo de


transformao, proposta por C. Fausto em sua reviso crtica dos trabalhos sobre o
pensamento guarani: um processo que se desenrola no tempo (uma histria), uma

117

produo de um espao topolgico (uma estrutura) e uma categoria nativa (Fausto


2005: 386).
Percebe-se que os povos tupi-guaranis reagiram de formas diversas a coeres
e adversidades anlogas. Assim, enquanto os guaranis-mbys permanecem buscando a
Terra sem Mal, os arawets focalizam o canibalismo post mortem e os parakans
postulam um xamanismo guerreiro (para citar apenas alguns dos casos com os quais
estou dialogando mais diretamente), os apiaks internalizaram a alteridade e buscam
obter, no tempo e no espao da comunidade, uma vida plenamente social
caracterizada pela moderao, pela harmonia e pela generosidade.

118

Captulo 3- O tempo (e o espao) da comunidade

Somente o observador externo tende a supor que as mudanas na cultura e na organizao


estrutural de um grupo devem ter um significado desagregador. um preconceito do antroplogo
etnocntrico supor que a mudana destruidora da lei, da lgica e da conveno.
E. Leach. Sistemas Polticos da Alta Birmnia

Os apiaks que moram em aldeias afirmam com orgulho que hoje em dia
vivem em comunidade, uma forma de organizao social e poltica surgida na
segunda metade do sculo XX, que se distingue tanto das casas comunais (malocas) do
sculo XIX69 quanto dos pequenos grupos em constante deslocamento dos parentes
isolados que eles afirmam existir no Pontal. A comunidade equivale ao grupo local e
designa um nmero de famlias extensas ligadas por laos de parentesco, polticos e
econmicos, que ocupa e utiliza uma mesma poro territorial e reconhece a autoridade
poltica do cacique, podendo incluir tambm os ribeirinhos vizinhos.
Uma comunidade considerada boa aquela em que se observam os princpios
morais da generosidade, do pacifismo e da hospitalidade e onde existem escola, posto
de sade, salo, campo de futebol, pasto, casa de forno, cozinha e roa comunitrias,
estrada ou pista de pouso e bens materiais de uso coletivo (como voadeira, motor de
popa, tacho de metal para torrar farinha, caminhonete, moto-serra, aparelho de TV e
antena parablica, cabeas de gado etc.).70 As pessoas dizem que as aldeias apiaks so
bonitas, alegres e tranquilas. A comensalidade por ocasio das festas e a cooperao
durante a construo daqueles espaos de uso coletivo, a comear pela abertura da
clareira onde ser implantada a aldeia, formam as bases principais da solidariedade
comunitria.
Na aldeia Mayrob, o posto de sade uma construo de alvenaria que
comporta uma pequena farmcia, sala de atendimento, quarto e banheiro, enquanto no
Mairowy consiste numa modesta construo de adobe com apenas um cmodo. No
posto fica guardado o aparelho de radiofonia, o que o torna um espao bastante
69 As grandes casas comunais, que abrigavam mais de 100 pessoas, devem ter sido abandonadas em
meados do sculo XIX, pois em 1828 H. Florence ainda as encontrou na regio da embocadura do Arinos
no Juruena (Komissarov 1988). De acordo com a memria dos velhos apiak, as casas de pequenas
dimenses vigoraram durante todo o sculo XX.
70 O local onde os apiaks enterram os mortos tambm integra os domnios da aldeia. No Mayrob, foi
construdo um cemitrio nos anos 1980, distante alguns quilmetros das casas. Com o passar dos anos,
as casas se multiplicaram ao redor do cemitrio, que passou a ocupar uma posio geogrfica mais ou
menos central, fato que no visto com bons olhos pelos moradores. Os apiaks do Mairowy enterram
seus mortos num ponto no habitado, distante alguns quilmetros a jusante da aldeia.

119

frequentado. Em todas as aldeias, a escola uma construo de madeira, mas tanto o


Mayrob como o Mairowy aguardam recursos do governo estadual para levantar grandes
escolas de alvenaria com quadra de esportes (a aldeia Nova Munduruku, no Rio dos
Peixes, j possui uma escola de alvenaria, o que frustra os homens influentes apiaks).
Por fim, a existncia de moradores brancos considerados importantes ajuda a compor a
imagem civilizada da comunidade; as professoras no-indgenas, as tcnicas de
enfermagem no-indgenas e o padre (um missionrio jesuta que vive h duas dcadas
no Mayrob, tem formao em antropologia e ligado ao Conselho Indigenista
Missionrio) so concebidos tanto como fontes de bens e saberes exgenos quanto
como balizas de comportamento propriamente civilizado, para o bem e para o mal.
Em linhas gerais, esta entidade moral e poltica que a comunidade
concebida como o lugar adequado para a formao das pessoas e para a produo do
parentesco, caracterizada por uma socialidade pblica,71 que tem seu centro no salo, e
por certos mecanismos de regulao social, designadamente a fofoca e as acusaes de
feitiaria (a palavra apiak para feitio karura,72 o mesmo termo que se usa para
doena). A comunidade o espao por excelncia dos apiaks misturados, que fazem
um grande investimento fsico e simblico em sua produo e manuteno.
O sentido do termo comunidade, tal como empregado pelos apiaks,
corresponde a dois sentidos forjados pelo pensamento ocidental no sculo XVI, a partir
das palavras em latim communitatem (comunidade de relaes ou sentimentos) e
communis (comum), a saber: a) a condio de possuir algo em comum, como em
comunidade de interesses, comunidade de bens; e b) um senso de identidade e
caractersticas comuns, referindo-se a uma qualidade especfica de relao (Williams
2007: 103). R. Williams sublinha que: diferentemente de todos os outros termos de
71

Reconheo que as categorias pblico e privado, tributrias da tradio de pensamento liberal, no


do conta da complexidade da vida alde; contudo, na falta de termos mais apropriados, eu as
emprego provisoriamente, mas deixo claro que no se trata de domnios radicalmente separados, e sim
de tipos de socialidade em relao de englobamento parcial (ver Strathern 2006).
72
Para os teneteharas, karowara a designao genrica de seres sobrenaturais (Wagley & Galvo 1961:
107), uma derivao da palavra tupi-guarani karo, que tambm se transformou em trovo no
idioma tapirap, em senhor das guas em kaiabi, em arco-ris no guarani e em fora-mana em
akwawa e em kaapor (cf. Viveiros de Castro 1986: 256). Fausto (2001) afirma que a traduo literal de
karuguara, a provvel protoforma da palavra, aquele que come, e demonstra que, entre os
parakans, karowara um objeto patognico controlado pelos xams, associado ao anhanga dos tupis,
sublinhando seu aspecto canibal: Karowara o poder omofgico do xam, a representao do
xamanismo como uma operao canibal (Fausto 2001: 339). Ser necessrio obter mais dados
etnogrficos sobre as concepes apiaks sobre sade e doena para saber se eles tambm concebam
as doenas no horizonte simblico do canibalismo; por ora, posso apenas dizer que os apiaks, assim
como os parakans, interessam-se sobremaneira pelas relaes destrutivas entre as pessoas, em
detrimento de relaes negativas entre humanos e seres naturais.

120

organizao social (Estado, nao, sociedade etc.), ela [a comunidade] parece jamais ser
usada de modo desfavorvel e nunca receber nenhum termo positivo de oposio ou de
distino (: 104). Comunidade refere-se, assim, a um sistema de vida comum, a
relaes face a face e cooperao mtua, por oposio competio individual que
passa a informar o conceito ocidental de sociedade no incio do sculo XIX (: 382).
primeira vista, a vida cotidiana da comunidade apiak parece pautar-se pelo
ritmo imposto pela escola e pelo posto de sade; em geral as pessoas respeitam os
horrios para ir tomar remdios e para ir s aulas, e se queixam dos profissionais noindgenas que se atrasam para suas tarefas. O outro espao social capaz de impor seu
ritmo ao cotidiano o salo; aproximadamente uma vez por semana, normalmente pela
manh, o cacique faz soar o sino do salo, conclamando os moradores a se dirigirem at
l para discutir algum assunto concernente coletividade, como a preparao de uma
festa ou o conserto do motor de popa da voadeira da comunidade o debate sendo
geralmente acompanhado por um cafezinho preparado pela cacica ou por alguma outra
mulher influente. No Mayrob, o salo ainda palco das missas dominicais, celebradas
de manh pelo padre que ali reside. Por volta das cinco horas da tarde, especialmente
nos finais de semana, muitos homens e algumas moas ocupam o campo de futebol
para, divididos em times de solteiros e casados, jogar animadas partidas observadas
alegremente pelos co-residentes.
Mas a verdade que essas atividades programadas ficam em segundo plano em
relao s expedies de caa, pesca e coleta, ao plantio e limpeza da roa, colheita,
ao cuidado dos filhos ou irmos menores, ao beneficiamento da castanha-do-par,
confeco de artefatos e vrias outras ocupaes imperiosas, que acontecem sem hora
marcada, para a exasperao de professores, enfermeiras e por vezes tambm dos
caciques. Os apiaks levantam-se pouco antes dos primeiros raios de sol, por volta das
5h30, tomam um desjejum composto pelas sobras da refeio da noite anterior e por
caf, e comeam a planejar seu dia sem muita convico. Perto das 7h, alguns homens
se dirigem para a casa do cacique, para tomar caf e discutir alguma questo de ordem
particular ou coletiva. As crianas frequentemente faltam aula ou se atrasam, e muitos
adultos perdem a hora para tomar um remdio no posto. Costuma-se ir roa
diariamente pela manh. Enquanto os homens saem para pescar, caar ou coletar algum
fruto ou mel na mata, as mulheres dedicam-se ao cuidado dos filhos e da casa e ao
preparo das refeies, geralmente duas: almoo, aps as 10h, e jantar, ao cair da tarde.

121

Assim, se o posto de sade atrai muita gente pela manh e no fim da tarde, no
tanto pela necessidade de remdios,73 mas sim pela vontade de saber o que se passa
nas outras aldeias, vontade que satisfeita por meio do sistema de radiofonia. J no que
toca escola, existe um desejo unnime de que as crianas aprendam a ler, a escrever e
a realizar as operaes matemticas bsicas, para saber se virar no mundo dos
brancos. A aquisio dos saberes dos brancos, contudo, no exime as crianas de
aprenderem as tcnicas de caa, pesca, coleta, agricultura, culinria, artesanato etc. e,
enquanto perfeitamente aceitvel que uma criana de 10 anos no saiba escrever seu
nome, um menino da mesma idade que no saiba pescar ou uma menina que no saiba
tratar o peixe algo impensvel.
A organizao das atividades econmicas e de lazer pauta-se efetivamente pela
alternncia das duas principais unidades de tempo: o vero ou estao seca e o
inverno ou estao chuvosa. No ecossistema amaznico, a variao do nvel dos rios
pode chegar a 10 metros, alterando bastante o aspecto das aldeias; no vero, preciso
ter habilidade para subir e descer o amplo plano ngreme que se forma na margem. O
vero a poca de maior fartura alimentar, quando se colhem vrios tubrculos e outros
vegetais, se pescam tracajs e tartarugas e se apanham seus ovos nas praias, se coletam
o aa, o buriti, a bacaba, o patau e outros frutos para preparar vinhos (sucos); h
muito peixe no rio e muita caa na mata, alm de diversas larvas e cogumelos. A
maioria dos banquetes festivos ocorre no vero. O inverno triste porque difcil sair
para caar e as roas ainda no esto produzindo, embora seja possvel coletar diversos
frutos silvestres (ver Tabela 3.1). Novembro tempo de espiar sava, cujo traseiro
consumido sob a forma de farofa, misturado farinha; entre dezembro e fevereiro
poca de quebrar castanha e de ir para a cidade comprar objetos industrializados.

73

Uma palavra sobre os frmacos. Diversos antroplogos salientaram que os frmacos so inseridos no
circuito indgena de ddivas, e muitas vezes tm subvertidas suas funes medicinais. Registro que os
apiaks tambm atribuem um valor de uso e um valor de troca aos remdios industrializados, mas no
apenas os remdios so inseridos no circuito de ddivas: as enfermeiras so chamadas a participar
desse circuito e, assim, aquelas que do mais remdios (anti-helmnticos, analgsicos) ganham mais
alimentos dos moradores da aldeia, so consideradas boas e, por isso, podem ser chamadas a batizar
uma criana sero boas madrinhas porque j compreenderam a lgica socioeconmica local.
Esclareo que as enfermeiras trabalham em sistema de rodzio: passam um ms numa aldeia e, em
seguida folga, so enviadas para outra aldeia; nunca se sabe ao certo quando elas retornaro para a
primeira aldeia.

122

3.1- Cultivando lugares


As aldeias apiaks contemporneas situam-se em terra firme (no-alagvel),
geralmente em curva de rio, prximo a remansos onde os indgenas pescam e a crregos
de onde retiram gua limpa para seu consumo dirio; h sempre um ponto mais alto que
garante uma vista privilegiada do curso dgua, com funo estratgica: Daqui a gente
sempre pode ver quem est chegando, antes que eles nos vejam, dizem. A clareira
inicialmente aberta na mata para construir a aldeia pequena, e os apiaks preferem
pontos de terra preta, mais frtil, escolha que requer um conhecimento apurado sobre
extensas pores territoriais. O local onde existiu uma aldeia apiak continua sendo
frequentado por muito tempo depois que os moradores se mudaram; tanto assim que os
apiaks do Rio dos Peixes e do Teles Pires nunca deixaram de percorrer o baixo Juruena
para atividades de coleta, caa e pesca. At hoje eles viajam para l em busca de
seringueiras nativas, castanheiras, copaibeiras, palha de babau, plantas medicinais,
frutos silvestres, espcies de peixe e animais de caa que existem apenas naquele bioma.
Nas imediaes das aldeias, ao longo das margens do rio, vivem ainda
segmentos de famlias extensas dispersas, sob a rbita de uma comunidade, sendo que
seus membros frequentam a aldeia com alguma regularidade, participam das festas,
recebem atendimento sade e reconhecem a autoridade do cacique so os
ribeirinhos, geralmente parentes afastados e compadres dos moradores da aldeia. A
categoria ribeirinho foi introduzida recentemente, por ocasio dos cadastramentos
efetuados para a Funasa e a escola, sendo rapidamente apropriada pelos indgenas. Nas
contagens populacionais que realizam periodicamente para fins burocrticos, os
professores e agentes indgenas de sade incluem os ribeirinhos como moradores da
aldeia; assim, embora no sejam considerados como co-residentes, esses ribeirinhos
fazem parte da comunidade, entendida como entidade poltica.
A aldeia e seu entorno imediato compem o nico espao concebido como
propriamente social e adequado para os humanos, similar quilo que P. Gow (1991)
escreveu sobre os povos nativos do baixo Urubamba (Peru). A aldeia ope-se ao fundo
do rio e floresta, lugares que encerram muitos mistrios e perigos para as pessoas e
que abrigam seres monstruosos, da o zelo demonstrado pelos mais velhos em relao s
crianas e s mulheres que saem sozinhas dos limites da aldeia, e o desejo de possuir

123

ces de guarda74 para proteger as casas. O mundo subaqutico concebido como uma
rplica do mundo humano, com roados e casas; os temidos seres encantados que a
habitam, designadamente a me dgua (em apiak: ajng),75 a sucuriju (mosaha, a
dona dos peixes) e os botos (piraputa), por vezes tentam seduzir as pessoas; quando
conseguem capturar a sombra (sinnimo de esprito e alma, ver captulo 4) de uma
pessoa, seu corpo pode definhar at a morte. A vtima desses seres torna-se aptica,
pode apresentar febre e inapetncia, ter pesadelos, delrios e passar a recusar o convvio
dos co-residentes; preciso ento acionar um rezador, que faz oraes e agita folhas de
pio-roxo (Jatropha gossypiifolia) sobre o corpo do doente.
Na mata existem o sirura, ser antropomrfico que confunde o caador,
fazendo com que se perca; a cobra jiboia e uma certa liana (cip-alho) tambm
desorientam o homem, que passa a andar em crculos e perde a trilha; o macaco
jurupari,76 que ataca noite, degolando a vtima e sugando seu sangue; o capelobo (ou
mapinguari), ser fedorento que causa morte aos homens; os bandos de queixada que, se
desafiados com atitudes inadequadas da parte do caador, como gritos e gargalhadas,
podem capturar seu esprito, a cura desse mal sendo obtida por meio de banhos com
plantas da floresta;77 o sirurekandga, dono, chefe e esprito das espcies animais, que
no representa propriamente um perigo para os homens, no pode ser alvejado (O
sirurekanjga um vaqueiro, o porco a vaca dele)78 para assegurar a abundncia
de caa, costuma-se agrad-lo, deixando um cigarro na cavidade de um tronco. Como se
74

Os apiaks dizem que o co paj, pois ele v coisas que as pessoas comuns no enxergam; explicam
que, para conseguir ver bichos e espritos, pode-se colocar a secreo dos olhos do co sobre os prprios
olhos, mas muito ruim, porque a pessoa no consegue mais dormir.
75
Anhanga uma espcie de demnio da tradio tupi-guarani e o esprito canibal associado aos mortos
dos tupinambs antigos (Mtraux 1979: 56). Para vrios povos tupi-guaranis contemporneos,
anhanga o espectro do morto (cf. Viveiros de Castro 1986: 255; ver especialmente o anhang
kagwahiv in Kracke 1978 e o anchunga tapirap in Wagley 1988), associao que os apiaks jamais
explicitaram, mas que perfeitamente compatvel com suas concepes sobre o sobrenatural.
76
Jurupari para os antigos tupis do norte era um esprito perverso que povoava a floresta e perseguia os
ndios (Mtraux 1979: 58). provavelmente uma variao do temido jupar ou macaco-da-noite
(Potos flavus) conhecido pelos tupi-guaranis amaznicos, associado morte; os arawets, por
exemplo, dizem que ele estrangula as pessoas adormecidas que encontra (Viveiros de Castro 1986:
198, 503). Os teneteharas associam o zurupari ao demnio cristo (Wagley & Galvo 1961: 108). Os
mundurukus tambm temem o yurupar, espritos que atacam os humanos arbitrariamente (Murphy
1958: 17).
77
O queixada um animal importante nas narrativas mticas tupis. A caa aos queixadas entre os jurunas
tambm cercada de prescries especiais, designadamente o silncio (Stolze Lima 1986: 159; 1995:
107). A autora insere o mito juruna da origem dos porcos selvagens na srie mtica analisada no
primeiro volume das Mitolgicas (que inclui um mito munduruku), em que Lvi-Strauss a explica
como resultado de um conflito entre aliados em que tomadores de mulheres foram transformados em
porcos como castigo por uma conduta a-social, relativa a contraprestaes alimentares (: 164).
78
Lembro que, para os xipaias (tupis), existe um homem-porco, com funes de paj, o mesmo que os
jurunas chamam de Huza ekia, descrito como um homenzinho que vai montado em um porco da
vara e que v tais porcos como seu gado (C. Nimuendaju citado por Stolze Lima 1986: 165).

124

nota, a relao com o dono dos animais define-se como uma espcie de camaradagem
respeitosa: possvel convenc-lo, mediante presentes, a liberar uma quantidade
razovel de caa para a alimentao.
Em meio a tantos perigos e mistrios, a aldeia surge como produto fsico do
trabalho continuado de transformao do ambiente executado pelos co-residentes (Gow
1991: 179). Diariamente, as mulheres apiaks varrem e capinam seu terreiro; uma vez
por semana, elas varrem a rea comum em torno do salo, auxiliadas por crianas que
recolhem e descartam o lixo, composto basicamente por embalagens de objetos
industrializados. O trabalho, realizado por mulheres e crianas, determinado e por
vezes coordenado pelos homens influentes. Aldeias bonitas e limpas so motivo de
orgulho para os apiaks, que no deixam de comentar a meia-voz a m aparncia das
aldeias kaiabis, referindo-se existncia de mato e lixo nos terreiros e caminhos.
As roas dos apiaks so outro motivo de orgulho para seus donos, sendo que
os produtos agrcolas, especialmente os tubrculos, constituem a base da alimentao
cotidiana. O tamanho das roas varia na proporo do nmero de membros da famlia
conjugal e da disposio do homem para o trabalho, j que ele o responsvel pela
derrubada. As roas distribuem-se de modo arbitrrio no territrio da aldeia, de acordo
com o desejo de cada famlia conjugal, e localizam-se a uma distncia que varia de 10 a
40 minutos de caminhada em relao s casas.79 Todo o territrio da aldeia, isto , o
entorno das casas utilizado para atividades econmicas, de posse coletiva. No existe
propriedade privada da terra, o que existe o direito de uso de cada famlia conjugal,
que vigora por tempo indeterminado. comum uma famlia deixar de usar a parte de
mata que derrubou porque vai passar um tempo na aldeia dos pais de um dos cnjuges,
por exemplo, e ento cede este terreno para algum co-residente, cessando assim seu
direito de uso.
Os apiaks praticam a agricultura de coivara, na qual se efetuam a derrubada e
a demarcao das roas a partir do ms de abril, e a reunio e a queimada dos troncos e
galhos em agosto, isto , na estao seca; o plantio inicia-se em meados de setembro,
com as primeiras chuvas. Utiliza-se o sistema de pousio, no qual uma parte da rea
desmatada fica descansando enquanto se trabalha outro trecho, de modo a intensificar a

79

No Mayrob, hoje preciso cruzar o rio para chegar s roas (ver Figura 3.2). Como a aldeia cresceu
demais, a terra na margem direita do rio tornou-se infrtil, e os apiaks passaram a utilizar uma poro
da margem esquerda, de posse dos kaiabis do Tatu.

125

fertilidade do solo; assim, uma famlia pode possuir simultaneamente at trs roas em
estgios diferentes: uma em descanso, outra produzindo e uma terceira recm-plantada.
Os produtos da roa jamais so vendidos dentro da aldeia, eles no so
comercializveis, no tm valor econmico.80 Quando desejam um abacaxi ou uma
melancia da roa de um co-residente no-aparentado ou apenas remotamente
aparentado, os apiaks costumam perguntar em tom retrico, em pblico: Por quanto
voc vende esse abacaxi? Sugerir a compra de um produto da roa deixa o dono do
produto numa situao de grande constrangimento, e ele geralmente acaba dando e
no vendendo o que foi pedido. Assaltar a roa de outrem outro expediente
relativamente comum, que gera forte sentimento de raiva na vtima, a qual, entretanto,
jamais acusa publicamente o infrator, mesmo quando todos sabem de quem se trata e
os suspeitos so, normalmente, adultos solteiros e meninos desocupados. Por outro lado,
a farinha de mandioca e a tapioca so livremente vendidas no s para forasteiros como
tambm para qualquer pessoa de fora da famlia extensa. Observo que pedir em pblico
algo extremamente mal-visto. Membros de uma famlia extensa jamais pedem algo
formalmente ou em pblico, eles apenas insinuam um desejo que deve ser prontamente
atendido; rudos nesta forma de comunicao indicam srias tenses latentes. Pedidos
para o cnjuge tambm se fazem em particular.
Ao lado da agricultura, a pesca, a caa e a coleta so, nesta ordem, as principais
atividades de subsistncia nas aldeias. A utilizao das diversas tcnicas de pesca
depende da estao do ano: no inverno, quando o rio est cheio, os homens pescam em
remansos com a canoa parada, valendo-se de canio, linha e anzol e da isca preferida
pelo peixe visado; noite, armam espinhel, uma armadilha feita com linha de nilon e
isca; durante o dia, fazem esperinha (armadilha) tambm com linha de nilon e isca.
No vero, dirigem-se s quedas dgua para pescar peixes grandes com arpo ou arco e
flecha; fazem excurses a lagoas para bater timb, uma liana que retira o oxignio da
gua; colocam tapagens (armadilhas) em igaraps; em noites de luar, saem para
zagaiar (para pescar com zagaia). Tracajs so pescados com linha e anzol ou com
arpo. Hoje em dia os apiaks caam mais com espingardas, mas ainda utilizam arco e
80

Minhas consideraes sobre a mercadoria baseiam-se nos artigos de Appadurai (1986) e Kopytoff
(1986), que definem a mercadoria como uma fase na vida de qualquer objeto. Enquanto Appadurai
fala em regimes de valor e em controle poltico da demanda, recusando a distino radical entre troca
de mercadorias, troca de ddivas e escambo, Kopytoff trata da biografia cultural dos objetos,
defendendo que h um paralelismo na forma como as sociedades produzem objetos e pessoas.
Debatendo com a economia poltica marxista, ambos focalizam a troca como fonte de valor e pensam
a poltica como nvel intermedirio entre troca e valor.

126

flecha; costumam sair em grupos pequenos, noite, para fazer espera, isto , aguardar
a presa de cima da copa das rvores. O homem faz a coleta de frutos de palmeiras
galgando as rvores com o auxlio de uma tira de envira e cortando os cachos maduros
com faco.
A comida de ndio ou comida de verdade, consumida no dia-a-dia, compe
uma cozinha sofisticada, e consiste em diversos tipos de peixe ou carne de caa muito
bem cozidos; essas carnes so consumidas assadas; sob a forma de caldo; sob a forma
de mingau (mujica); ou moqueados, envolvidos em folha de pacova, forma conhecida
regionalmente como pupecado, e invariavelmente so acompanhadas de farinha de
mandioca.81 Embora o peixe seja o alimento cotidiano, a carne de caa considerada a
comida de ndio por excelncia. Aps trs dias de refeies compostas de peixe,
comum ouvir as pessoas dizerem: Estamos sem comida, os homens tm que ir caar.
A qualidade mais apreciada da carne sua gordura; os caadores desprezam presas
muito magras, pois consideram a ausncia de gordura um sinal de doena. A carne de
caa circula obrigatoriamente no interior da famlia extensa e no comercializvel;
grandes quantidades de carne de caa do ensejo a banquetes no salo, como veremos.
Os apiaks tambm consomem frutos silvestres e cultivados, crus e sob a forma
de vinhos, acompanhados de farinha;82 bolos de mandioca, beiju e tapioca; tubrculos e
legumes cozidos e sob a forma de mingau (bebida no-fermentada); chicha (bebida
fermentada) de mandioca e milho; mel; cogumelos silvestres; palmito; larvas de
palmeiras; filhotes de marimbondo; a parte posterior da sava. Os pratos preferidos e
mais raramente consumidos pelos apiak, verdadeiras iguarias que distinguem sua
cultura daquela dos brancos e de outros povos indgenas (principalmente os kaiabis,
mundurukus e kayaps), so a carne de macaco cozida com leite de castanha-do-par e
o tracaj assado no casco. Os apiaks so seletivos em sua dieta; das cerca de 170
espcies conhecidas de aves, 60 de mamferos e quase 100 de peixes, consomem apenas
as que esto discriminadas na Tabela 3.1.83 So tambm excelentes agricultores, como
comprova a Tabela 3.1. A tabela 3.3 distingue as espcies animais e vegetais em termos
de sua circulao econmica.84
81

Os apiaks no praticam xamanismo alimentar, mas dizem que, quando um tipo de carne
(especialmente jabuti, queixada e macaco) faz mal para uma pessoa, ela deve consumir um pedao
carbonizado dessa carne, preparado por outra pessoa, como medida profiltica.
82
Preparam-se vinhos de aa, bacaba, buriti, murici, patau e uxi.
83
Quando indagados sobre caa, os apiaks mencionam as aves em primeiro lugar, seguidas dos macacos,
grandes mamferos e pequenos mamferos.
84
Acrescento que, no Mairowy, todo tipo de alimento passou a ser comercializvel em 2008, quando a

127

Caa

Pesca

Coleta

Anta

Aracu (5 tipos)

Abiu

Arara (azul e vermelha)

Barbado

Aa

Catete

Bod (3 tipos)

Bacaba

Cigana (ave)

Chinelo

Buriti

Cujubim

Cruvina

Caf-de-macaco

Cutia

Curimat

Castanha-do-par

Galega (ave)

Dourada

Gog-de-cigana

Jacamim

Filhote

Ing

Jacu

Jandi

Jub

Macaco boca dgua

Jeju

Maaranduba

Macaco casemira

Lalau (3 tipos)

Mangaba

Macaco cuamba (aranha ou Mandi (4 tipos)

Mo-de-jabuti

coat)

Matrinx (2 tipos)

Mo-de-cachorra

Macaco cuxi

Pacu (12 tipos)

Mesca

Macaco prego

Peixe-cachorra

Murici

Marreco

Pescada

Patau

Mutum (pinima e carij)

Piau

Pequi

Nambu

Piranha (6 tipos)

Pupunha

Paca

Sarap

Tapereb

Pato selvagem

Surubim (pintado)

Tucum

Queixada

Tambaqui

Uxi

Tatu (4 tipos)85

Trara

Tucano

Tucunar (2 tipos)

Veado ( considerado tabu

Mel
Filhotes de marimbondo

pelos velhos)
escola estadual comeou a comprar alimentos produzidos na prpria aldeia para a merenda dos alunos.
Existe uma lista de equivalncias monetrias baseada em pesos e medidas; assim, por exemplo, um
quilo de queixada vale o mesmo que um quilo de alcatra na cidade de Colider. Embora os indgenas
apreciem o fato de a merenda ser composta por alimentos culturalmente corretos, a maior
quantidade de dinheiro disponvel e a concorrncia que se estabeleceu entre as famlias geraram um
clima de muita tenso e maior individualismo na aldeia.
85
O tatu-canastra tabu alimentar: Se a gente come a carne dele, no outro dia algum da nossa famlia
adoece e morre.
86
Alm da carne desses animais, consomem-se tambm seus ovos salgados e sob a forma de gemada.

128

Tracaj

tartaruga Sava (o modo como este

(quelnios aquticos) so inseto obtido consiste


classificados

como num misto de coleta e

peixes. A classificao caa)


do

jabuti

(quelnio

terrestre) incerta

86

Tabela 3.1: Principais espcies animais e vegetais utilizadas na alimentao

Produtos agrcolas

No.

de

variedades
Abacaxi

Abbora

Amendoim

Banana

Batata-doce

Caju

Cana-de-acar

Car

Feijo

Ing

Mamo

Mandioca amarga

Mandioca doce

Mangarito

Maracuj

Melancia

Milho

Pepino

Timb

Tabela 3.2: Principais produtos agrcolas


129

Vende-se na aldeia (fora Vende-se para forasteiros


do crculo da famlia
extensa)
Farinha de mandioca
Farinha de mandioca

Carne de caa

Tapioca

Tapioca

Bolos de mandioca e beiju

Peixes

Peixes

Frutos

Mel

Mel

exceo da castanha)

No se vende

silvestres

Patos, galinhas e ovos(com Castanha-do-par

Mingaus e chicha

restries)87

Produtos agrcolas

Carne de boi

Tartaruga

(com

Vegetais da horta

Tracaj

Tabela 3.3: Alimentos comercializveis e no-comercializveis

********
Muitas pessoas recebem salrios pelos empregos na escola e no Posto de Sade
da aldeia, assim como aposentadoria e benefcios do governo federal; parte desse
dinheiro empregada para adquirir alimentos e objetos industrializados, de uso privado,
na cidade mais prxima; parte utilizada na aquisio e manuteno dos bens de uso
coletivo da aldeia. Na medida em que se presta compra de alimentos dentro e fora da
aldeia, o dinheiro desobriga os homens de grande parte das atividades de subsistncia;
durante o tempo livre, eles fazem poltica e festas. Assim, aqueles que recebem dinheiro
mensalmente devem contribuir com alimentos industrializados por ocasio de visitas de
forasteiros (brancos ou indgenas) e de comemoraes de datas do calendrio nacional,
momentos em que se preparam refeies extraordinrias, compostas de arroz, feijo,
macarro e suco em p, alm de carne de galinha (comida de civilizado ou comida de
luxo) ou algum peixe grande.
Para os apiaks, a hospitalidade com efeito um valor central na relao com
os outros, brancos e indgenas. Por ocasio da recepo de visitantes forasteiros, a
beleza e a organizao da aldeia so enfatizadas pelos homens influentes, bem como os
modos civilizados do cacique e de sua esposa. Aos forasteiros, especialmente aos
brancos amigos, aliados em potencial, oferecido tudo o que h de melhor na aldeia:
durante a refeio, pratos, talheres, copos decorados, boa comida (leia-se: comida de
87

Algumas mulheres me disseram que no vendem patos, galinhas e seus ovos porque isto atrairia m
sorte, isto , a criao comearia a definhar subitamente.

130

civilizado), caf; antes ou aps a refeio, o cacique ou seu substituto passeia com o
visitante pela aldeia, indicando tal ou qual elemento valorizado (rvores frutferas, casas
bem-construdas, a escola, a farmcia etc.), e pode tambm lev-lo a sua roa; se a visita
se estender, o anfitrio pode convidar o visitante para um passeio de voadeira pelos
arredores da aldeia. Nessas ocasies, o cacique sempre pergunta ao visitante se est
gostando da aldeia e quando pretende fazer nova visita, e invariavelmente faz a
comparao: Aqui assim, mas os kaiabis no recebem gente de fora desse jeito, no.
Os visitantes podem ser apresentados oficialmente no salo, para o que se
convoca uma reunio, mas normalmente na casa do cacique que so alimentados e
ficam acomodados. As esposas do cacique e dos homens influentes contribuem de
maneira decisiva para o bom desempenho da performance dos maridos;
responsabilidade delas preparar a refeio com capricho, deixar a casa apresentvel e
afastar polidamente eventuais penetras. Um cacique apiak mal escondia sua
insatisfao com a esposa que no dominava a etiqueta civilizada e por vezes fazia
feio diante de visitantes brancos, esquecendo-se de pr sabo no jirau para lavar as
mos aps a refeio, por exemplo. Possuir e ostentar objetos e alimentos refinados so
prerrogativas dos homens influentes; embora na maior parte do tempo eles se vistam e
se alimentem da mesma forma que os demais co-residentes, existe a expectativa
generalizada de que o cacique em especial passe uma imagem civilizada para os
visitantes. Beneficiando-se desta expectativa, o cacique utiliza objetos e modos
civilizados para obter prestgio dentro e fora da aldeia: junto a seus co-residentes, por
certo, mas tambm junto aos caciques das aldeias vizinhas, com os quais sempre se
podem estabelecer alianas vantajosas.

********
As casas dos apiaks contam com um terreiro, que serve de abertura para o
espao pblico, lugar de sociabilidade intensa, onde se pode comer em ocasies
especiais e realizar atividades como conversas informais, sesses de vinhos de frutas
silvestres, confeco de artesanato e cata de piolhos, que uma das maiores
demonstraes de cuidado entre os membros da famlia extensa.88 Belos ps de tucum e
inaj, nativos ou cultivados, adornam os terreiros; as sementes de seus frutos so

88

A famlia extensa apiak no uma categoria residencial fixa. Como veremos adiante, a maioria das
casas abriga famlias conjugais na maior parte do tempo, mas a proximidade fsica das casas de
membros de uma famlia extensa permite falar em conjuntos residenciais ou clusters.

131

utilizadas na fabricao de anis, pulseiras e colares. Ao lado dessas palmeiras,


encontram-se ps de limo, tangerina, goiaba, manga, ara, acerola, amora, jabuticaba,
ing, murici, jenipapo e urucum, que atraem pssaros e crianas.89 Muitas mulheres
possuem canteiros de plantas guisa de hortas no terreiro, que consistem em uma canoa
velha suspensa por estacas, onde h cebolinha, pimenta e plantas medicinais,
propriedade que a dona trata com muito zelo. As mulheres tambm criam patos e
galinhas,90 que andam livremente pelos terreiros das casas, mas que so objeto de
grande ateno por parte da dona; o desaparecimento de um desses animais suscita
animosidade contra as vizinhas no diretamente aparentadas. Verduras dos canteiros,
patos, galinhas e seus ovos podem ser vendidos a pessoas que no pertencem a famlia
extensa da dona, embora a prtica seja bastante recriminada, mas plantas medicinais
jamais so vendidas.
A roa, trecho de floresta domesticado, o reservatrio de alimentos vegetais e
de lenha da famlia conjugal,91 onde os membros de uma mesma famlia extensa tm
trnsito relativamente livre, embora todo vegetal tenha um dono(a), a saber, a pessoa
que o plantou e cultivou. A derrubada e a queima da rea agricultvel so atividades que
podem envolver todos os homens da aldeia; j o cultivo, a manuteno e a colheita dos
vegetais so atividades da famlia conjugal, que em geral recebe apoio de membros da
famlia extensa.
A casa ope-se tanto ao salo, espao pblico e lugar da poltica formal (o
aspecto pblico/poltico do salo ser desenvolvido no captulo 5), quanto mata e ao
fundo do rio, espaos no-humanizados que encerram muitos perigos naturais e
sobrenaturais, como vimos. A beira do rio, no entanto, um espao onde se realizam
atividades particulares, embora a interao seja intensa; o trecho de rio socializado
que compe a beira propriamente dita coincide com o permetro formado pelas casas;
ali que so fixadas as tbuas onde as pessoas de uma mesma famlia extensa tomam
banho, manipulam peixes, caa e vegetais so os portos; nesse lugar, povoado
durante todo o dia, as pessoas pescam, partem e chegam de outros lugares, trazendo
notcias, objetos e por vezes pessoas de fora. Em geral, no se vai sozinho para a beira;
formam-se pequenos grupos de consanguneos ou casais que conferem um trao privado
89

As rvores frutferas ocorrem em maior quantidade e variedade no Mayrob e no Bom Futuro, aldeias
maiores e mais antigas.
90
Patos e galinhas so considerados de propriedade individual; por exemplo: um rapaz solteiro pode ser
dono de vrios patos, dos quais sua me toma conta.
91
A lenha tambm concebida como produto do trabalho humano, na medida em que resulta da
queimada realizada para a abertura do roado e fica armazenada neste espao domesticado.

132

s atividades que tm lugar ali. Alis, um dos maiores sinais de intimidade entre um
homem e sua esposa irem para a beira juntos, j que, em pblico, marido e esposa
geralmente evitam um ao outro.
As convenes sociais garantem alguma privacidade em certas ocasies:
nenhum adulto dirige olhares ou palavras para os outros quando, por exemplo, retornam
da beira para suas casas, molhados, carregando por vezes peixes e caa tratados.
Porm, todos sabem, normalmente, o que os co-residentes esto fazendo, onde e com
quem, e praticamente impossvel cruzar a aldeia sem ser percebido e por vezes
indagado: Vai aonde?, o que exprime o carter altamente pblico da vida diria
(Gregor 1982: 102). Nesse sentido, o salo e os terreiros so reas pblicas de alta
visibilidade, enquanto as casas so as regies privadas, de recato (: 60).
Geralmente, durante o crepsculo, crianas e adolescentes tomam conta dos
terreiros e do salo, divertindo-se com brinquedos improvisados e correndo de um lado
para outro, enchendo a atmosfera de alegria, espera do ronco do gerador de energia
que permitir o prolongamento do tempo de lazer at perto das 22h. Quando h diesel
para o gerador, as pessoas aglomeram-se no salo ou na sala das casas que possuem
aparelho de TV para assistir ao jornal e novela das oito. Os apiaks demonstram
grande curiosidade pelo modo de vida urbano exibido nas novelas, e chegam a adotar
algumas expresses verbais e gestuais, embora o comportamento amoroso dos brancos
lhes cause certa repulsa; as msicas que se ouve na TV so rapidamente memorizadas e
passam a ser cantadas no dia-a-dia, at mesmo pelas crianas menores. Crianas,
adultos e velhos so fs incondicionais do desenho do Pica-Pau, o que sugere uma
identificao com a premissa de que a astcia a arma dos mais fracos.
O crepsculo tambm a hora das visitas formais; depois de cumprirem a
maior parte das atividades domsticas, as mulheres, acompanhadas pelo marido e/ou
filhos pequenos, perfumadas e arrumadas, vo visitar suas mes, irms, cunhadas ou
comadres; este o momento das conversas descontradas, que tm lugar dentro de casa
ou no terreiro, acompanhadas por caf ou por um convite para jantar, se h fartura. De
outro modo, quando falta o diesel, os mais velhos apressam-se em colocar as crianas
pequenas para dentro de casa, temendo o ataque de onas e de espritos malignos;92 os
adultos da famlia extensa renem-se na casa (ou, quando a noite est agradvel, no
terreiro) de um de seus membros e as conversas so mantidas at altas horas, regadas a
92

Os teneteharas tambm ameaam os filhos desobedientes com a figura dos azang (espritos) (Wagley &
Galvo 1961: 83).

133

caf e eventuais guloseimas servidas pela dona da casa. Em geral so os homens que
falam, e os mais velhos podem contar histrias sobre o passado ou sobre pessoas que
viram bicho (ver adiante) sem ser interrompidos.
A mulher mais velha do Mairowy (no. 37 no Diagrama 3.1) demonstrava
grande preocupao quando seus netos pequenos recusavam-se a ir para casa noite,
preferindo correr por entre as casas, enquanto o gerador estava ligado. Ela costumava
bradar: Vai pra casa, menino! Sai do escuro! Ajng vai te pegar, tem bicho feio por
a! Uma histria sobre o canc (Cyanocorax cyanopogon), pssaro onvoro,93 fala da
guerra que alguns animais travam contra os humanos:
O pessoal da aldeia chegou perto de um crrego, um falou: Olha,
aqueles ndios queriam fazer guerra conosco, mas papai cortou a corda do arco
deles, seno eles teriam nos matado. Anoiteceram nessa aldeia, um falou:
Mulher, ns vamos fazer um jirau. Ela estava gestante do ndio e o ndio ia
lev-la para a aldeia; ele no tinha o que fazer, degolou a filha dele, a mocinha.
A o dono da filha falou: Cad minha filha, a mocinha no levanta? A foram
fazer o mingau deles, a chicha deles olha como estava de sangue! Agora
vocs vo pagar. Eles tinham levado a cabea da irm dele. O irmo dela
chorava. O homem falou: Cacique, ns vamos naquela aldeia. Eles tm que
pagar essa morte. Chegaram l, estava a mulher com uma banda na panela de
barro, o caldo estava amarelinho, estavam cozinhando a mocinha pra comer.
Eles pensavam que era pessoal deles que estava tomando conta da panela, mas
se enganaram. Eles pensam que vo danar com a cabea da minha irm, mas
no vo, ns vamos acabar com eles. Anoiteceu, e os guerreiros esperando. Eu
tenho que levar um, mataram minha irm. Quando a festa estava boa, atacaram.
Quando eles foram pegar os arcos deles, cad? As cordas estavam todas
cortadas. De manh, ele pegou o pedao da carne da irm dele, pegou a cabea
dela, colocou na pira e trouxe para a aldeia. Agora est pago. Na outra noite,
outro de novo, os cancs, parecia uma peste. Que negcio esse? Ns
acabamos com o cara, agora tem outro! Ningum quis mexer com ele. De vez
em quando, ele passava na porta do pessoal. Ele foi certo onde estava a menina.
A amarraram o camarada, bem amarrado no esteio, mas no deu jeito. Ele
olhava para o pessoal, com os olhos pequenos. um bicho, o pessoal dizia. O
pai da menina estava bravo: Ns vamos matar esse peste! O bicho criou perna,
asa, tudo: canc. Esse camarada mesmo, querendo levar a menina. Cantou: Eu
vim aqui na aldeia de vocs, espantar a filha de vocs. A um canc falou:
Vamos embora. Ns vamos pegar peixe l em cima. Foram embora. Por isso
eu digo para esses meninos no irem longe, tem muito bicho feio por a.
Observa-se aqui um procedimento de evocar condutas adequadas em relao a
lugares anlogo forma como os apaches empregam os topnimos, atribuindo-lhes um
valor moral e pedaggico; para os apaches, o discurso centrado em topnimos consiste
num gnero discursivo refinado, embebido de saber social, que explicita a premissa de
93

Os pssaros so muito importantes na cultura apiak; embora os indgenas conheam uma variedade
enorme deles, utilizam apenas algumas espcies na alimentao e na confeco de artefatos.

134

que no existem eventos descolados de lugares (Basso 1996: 107ss). Este um


procedimento simblico comum ao pensamento mtico, o qual, de acordo com M.
Leenhardt, articulado por uma paisagem scio-mtica (apud Clifford 1986: 7).
Leenhardt utiliza a expresso mito vivido para se referir a um modo de conhecimento
em que o espao assume uma densidade inacessvel a qualquer mapa, uma sobreposio
de realidades culturais, sociais, ecolgicas e cosmolgicas: A pessoa vive uma srie
descontnua de tempos e espaos scio-mticos menos como um ser distinto que como
um conjunto de relaes (: ibidem). No apenas animais e seres sobrenaturais
amedrontam os apiaks; os mais velhos temem igualmente ataques de ndios bravos, e
frequentemente se lembram de fugas de ataques de rikbaktsas ocorridas nos anos 1950
na regio do Pontal. Neste sentido, as aldeias contemporneas so concebidas como os
nicos lugares seguros para os apiaks, inseridas como esto numa paisagem cultural e
historicamente densa.
A respeito das visitas formais, importante dizer que constituem uma espcie
de termmetro do prestgio de uma casa. Normalmente, a casa do cacique a mais
frequentada, no apenas por homens influentes, suas esposas e filhos, que aparecem
para discutir assuntos de interesse coletivo durante o caf da manh ou o jantar, mas
tambm por qualquer morador que precise de uma informao, um conselho, um favor
ou um pouco de acar. Presenciei ocasies em que a cacica se via atribulada para
providenciar caf e biscoitos para mais de 15 pessoas que se amontoavam em sua
cozinha, engajadas numa conversa animada com o cacique. Por outro lado, as pessoas
comuns quase no recebem visitas formais, chegando a evit-las explicitamente, porque
ficariam bastante constrangidas em receber um forasteiro quando no tm sequer caf
para servir. Alimentos rotineiros, como caldo de peixe e farinha, definitivamente no
so dotados do mesmo valor social que alimentos industrializados ou caas nobres, cuja
existncia numa casa motivo legtimo para suscitar visitas formais de parentes
distantes e compadres.
J as visitas fortuitas de pessoas de fora da famlia extensa podem ocorrer a
qualquer hora do dia, e em geral destinam-se a obter notcias, a fazer fofoca ou a
fiscalizar os alimentos e objetos da dona da casa. Assim, por exemplo, no caminho para
a roa, uma mulher que no integra a famlia extensa da cacica aproveita a porta aberta
e entra para tomar um caf, avistando um jogo de copos novos; essa mulher conta a
novidade a suas irms, filhas, cunhadas e comadres e ao seu marido. Em poucas horas
ou dentro de alguns dias, o marido repassa a informao para seus irmos, compadres e
135

filhos do sexo masculino, e a aldeia toda pode especular a respeito da origem do


dinheiro com que os copos foram comprados.
A cozinha comunitria e a casa de forno comunitria so dois espaos de
interao mais ou menos intensa, onde se processam alimentos de origem vegetal e
industrializados. A casa de forno fica na margem do rio94 e consiste numa estrutura
aberta, coberta com palha de babau, que protege um tacho de cobre sobre um forno de
barro, alm de uma prensa e de um ralador mecnico. O forno de propriedade da
comunidade, e utilizado em sistema de rodzio pelas diversas famlias extensas.
Quando vo preparar farinha, as mulheres levam suas prprias bacias de alumnio,
peneira e abano de fibra vegetal, alm de um remo de propriedade de um homem da
famlia extensa, que faz as vezes de p.
Embora a casa de forno seja um espao mais feminino que masculino, os
homens apiaks orgulham-se de auxiliar suas esposas na produo de farinha,
encarregando-se de partir lenha, carregar gua, serrar a mandioca e especialmente torrar
a farinha, a tarefa considerada mais penosa. Em tese qualquer pessoa pode se aproximar
da casa de forno onde as pessoas de outra famlia extensa estiverem trabalhando, mas
raramente algum o faz, pois sua simples presena ali engendraria a obrigao de ddiva
de farinha. As vrias etapas de fabricao da farinha fazem com que, enquanto uma
famlia tem mandioca ngua ou na prensa, outra esteja torrando sua farinha; assim,
comum ver as pessoas que esto aguardando para utilizar o forno ajudarem aquelas que
esto torrando sua farinha, ou simplesmente conversando e tomando caf ali, para o
servio acabar mais rpido.
Com efeito, a fabricao da farinha de mandioca puba a atividade mais
penosa e que consome mais tempo, especialmente para as mulheres. Quando a
mandioca brava est madura, os casais a colhem e a depositam numa canoa ou voadeira
na beira, onde ela fica submersa por trs ou quatro dias, para pubar. Em seguida, o
casal leva a mandioca para a casa de forno, onde ela ser descascada, sendo que a massa
assim obtida colocada num cocho; a massa ento depositada na prensa mecnica
vertical, para retirar o cido prssico, que descartado. Aps um dia na prensa, a massa
peneirada; depois de seca, ela enfim torrada. Os apiaks apreciam a farinha de
mistura, que consiste na farinha puba misturada com a farinha seca, cujo preparo
substitui a fase da puba pelo processo de ralar a mandioca no caititu (ralador mecnico),
94

Apenas o Mayrob conta com mais de uma casa de forno da comunidade. No Mairowy, alm da casa de
forno comunitria, h uma casa de forno particular, utilizada por duas famlias conjugais vizinhas.

136

as demais fases sendo idnticas da farinha puba. Em geral, uma famlia conjugal,
auxiliada por membros da famlia extensa, prepara seis latas de 18 litros por vez,
produo que dificilmente dura mais de um ms, visto que distribuda entre outros
membros da famlia extensa.
Alm da farinha, as mulheres preparam na casa de forno: i) a tapioca, uma
farinha branca, de gros grandes, produzida a partir do polvilho da mandioca ralada que
se decanta na gua em que a massa foi lavada, ii) o bolo de mandioca com castanha
assado em folha de pacova e iii) a orelha-de-pau, uma espcie de bolacha fina, dura e
crocante, feita de mandioca e castanha.95 Se a produo da farinha e da tapioca requer a
ajuda dos homens, que se encarregam da torra, o preparo do bolo e da orelha-de-pau
tarefa exclusivamente feminina e agrega as mulheres da famlia extensa na casa de
forno; a produo de diversos tipos de mingaus igualmente tarefa exclusivamente
feminina, a qual tem lugar, entretanto, na cozinha da casa da mulher mais velha.96
Enquanto a farinha e a tapioca so comercializveis, seria simplesmente ridculo vender
um bolo de mandioca, uma orelha-de-pau ou uma cuia de mingau.
A cozinha comunitria uma estrutura fechada, de planta retangular,
semelhante s demais casas, que conta com um jirau e um fogo a lenha, onde ficam
armazenados os alimentos industrializados (arroz, feijo, sal, acar, leo, caf,
biscoitos etc.) que compem a merenda escolar, fornecida pela Secretaria de Educao.
Na cozinha comunitria, as cozinheiras voluntrias, mulheres influentes, que no
recebem remunerao pela tarefa, preparam grandes refeies para eventos
comunitrios. Apenas os homens influentes adentram a cozinha comunitria quando as
mulheres esto preparando a refeio especial; qualquer outra pessoa que entrasse e no
trabalhasse seria acusada de comportamento imprprio. Mais recentemente, as
merendeiras contratadas pela escola preparam a as refeies para os alunos, quando h
alimento.

95
96

Algumas mulheres mundurukus preparam beijus de mandioca em casa.


Os mais velhos recordam-se dos mingaus de manicuera (uma variedade de mandioca) com milho, de
crueiro (grumos da mandioca que foi peneirada), de milho verde com banana grande, de mangarito, de
massa de mandioca lavada com castanha-do-par, de car com mel de uruu, fabricados em grande
quantidade e consumidos em festas. Diferente da chicha, o mingau levado ao fogo.

137

3.2- Alimentando relaes


possvel identificar trs formas alimentares bsicas na vida social apiak: a
alimentao cotidiana, que implica a famlia conjugal e, em menor medida, a famlia
extensa; o resguardo de parto, que concerne especialmente famlia conjugal; e os
banquetes festivos, que envolvem idealmente todas as famlias extensas.97 Os banquetes
festivos, por sua vez, subdividem-se em trs modalidades: a) festas de ddiva sem data
preestabelecida, b) festas em datas comemorativas do calendrio nacional,
designadamente: dia do ndio, Pscoa, dia das mes, festa junina ou dia de So Joo, dia
dos pais, dia das crianas e Natal e c) festas de branco, que podem ou no ter lugar em
datas comemorativas do calendrio nacional.98 As duas primeiras modalidade de festa
renem apenas os moradores da aldeia, enquanto a terceira conta com a participao de
kaiabis e mundurukus de aldeias vizinhas e de brancos regionais aliados. Vejamos.
No salo, durante o vero, estao caracterizada pela fartura alimentar,
ocorrem frequentemente o que chamo de festas de ddiva, sesses diurnas ou noturnas
de vinho de aa, buriti ou patau promovidas por uma mulher em geral, a esposa de
um homem influente que preparou bebida em grande quantidade com apoio das
mulheres de sua famlia extensa, em sua prpria casa ou na cozinha comunitria. Nessas
ocasies, algum toca o sino do salo a pedido desta mulher e todos os moradores se
dirigem ao salo, munidos de copos, caneces e colheres; quem tiver bastante farinha e
acar em casa leva uma grande poro para o salo, para partilhar com os demais.
Como todos sabem quando um grupo de pessoas sai para coletar frutos na mata, a
informao sobre uma quantidade abundante de frutos trazida pelos coletores
condio suficiente para haver sesso de vinho no salo, de modo que todas as casas
ficam a aguardar apenas o convite formal, por meio do soar do sino.
As enormes panelas de alumnio contendo bebida, ao lado de cuias e panelas
com farinha e acar, so colocadas sobre uma mesa no meio do salo; comumente a
pessoa de status mais elevado que diz a frase solene: Tem vinho!, em resposta ao que
as mulheres servem a si, a seus filhos e maridos. Aps uma primeira rodada mais
contida, cada qual passa a se servir vontade, com voracidade, at se esvaziarem
97

O termo em ingls feeding captura de modo mais adequado o processo de construo de relaes
sociais por meio da ao de alimentar algum.
98
As festas por ocasio de aniversrio, casamento e batismo so muito raras para constituir uma
modalidade parte; nelas so convidados apenas os membros da famlia extensa, compadres e aliados
polticos, para uma refeio de carne de galinha ou pato e alimentos industrializados, que ocorre no
interior da casa do homenageado e normalmente suscita comentrios sobre a falta de generosidade da
famlia conjugal.

138

completamente as panelas. Geralmente os muitos litros de bebida acabam em alguns


minutos de uma reunio que transcorre praticamente em silncio. Crianas ou moas
podem levar um caneco de bebida para os parentes que no foram at o salo. Aps a
sesso, todos retomam sua rotina normalmente.
O vinho de frutas um dos poucos alimentos que se prestam partilha no
salo, atualmente. Os apiak do Mayrob lembram com nostalgia o tempo em que o
finado cacique Andr Morim (no. 16 no Diagrama 3.1) coordenava caadas coletivas e
a posterior distribuio equitativa da carne obtida, bem como animadas sesses
coletivas para consumo de mingaus e chicha: Quando a mulherada ia fazer bolo de
mandioca ou tapioca, todo o mundo na aldeia ganhava um pouco. Era s ir casa de
forno para pegar sua parte. Ningum deixava de comer. Agora no, muita gente,
aumentou muito; se for fazer bolo para todo o mundo, tem que passar a vida inteira
fazendo bolo, comentou certa vez uma mulher jovem da parentela Morim. Suponho
que a ideia de que todo o mundo recebia seu quinho explicita uma nostalgia da
coincidncia entre parentela e aldeia, devendo-se ao fato de que, nos anos 1980, quando
o finado Andr era cacique, a aldeia era composta apenas por famlias extensas do
subgrupo Morim, o alimento em geral percorrendo ento, como hoje, os caminhos do
parentesco. Se a partilha da comida j no universal, tudo indica que porque o
universo aldeo se ampliou, passando a incorporar pessoas pertencentes a outras
parentelas e etnias.
Alm dos vinhos, pode haver refeies coletivas extraordinrias no salo
quando um grupo de homens traz grande quantidade de carne de queixada, de tracajs
ou de peixes grandes (como o tucunar) para a aldeia e, simultaneamente, as casas
possuem alimentos industrializados (arroz, feijo e macarro) e farinha suficientes para
se realizar uma refeio coletiva. Quando os homens regressam da caada ou pescaria,
algum que se encontra na beira (e sempre h algum na beira) se encarrega de
transmitir pela aldeia a informao sobre a quantidade de alimento trazido. Logo
algumas mulheres se dirigem para a beira, enquanto os homens vo se banhar,
normalmente depois de terem retirado a pele e dividido o animal em quartos (quando se
trata de caa grande, como anta ou queixada). As mulheres ento se incumbem de tratar
a caa ou os peixes e depois seguem para a cozinha comunitria, onde iro preparar a
refeio. Cada casa contribui com um pacote de macarro ou de arroz, um litro de leo,
alguns litros de farinha ou um quilo de sal. As mulheres levam as panelas para o salo.
Quando o sino toca, todos os moradores se dirigem para l, levando pratos e colheres.
139

Novamente, os alimentos so postos sobre uma mesa que ocupa posio de destaque e
as mulheres tomam a dianteira na tarefa de servir os demais. Estas refeies, que no
chegam a ocorrer uma vez por ms na estao seca, tendem a ser mais animadas e
demoradas que as sesses de vinho.
Nas celebraes de datas comemorativas do calendrio nacional, o banquete
que tem lugar no salo deve contar com animais de criao (patos e galinhas) cozidos e
arroz, feijo, macarro e suco industrializado ou refrigerante. O objetivo dessas festas,
que em geral contam com ribeirinhos e moradores de aldeias vizinhas, homenagear
uma categoria de pessoa em particular: mes, pais, filhos, ndios. As festas realmente
boas so aquelas em que, alm dessa refeio, que pode ser almoo ou jantar, h
tambm caf da manh especial, em que se servem caf, biscoitos, bolo de mandioca e
at mesmo bolo de farinha de trigo, po e refrigerante.99 Esses produtos so comprados
com parte do salrio dos empregados da escola e do posto de sade. Nestas ocasies, as
mulheres influentes tomam a frente e organizam filas para distribuir os alimentos, de
modo a conter o tumulto e a avidez exacerbada, semelhantes descrio de Viveiros de
Castro sobre os banquetes coletivos arawets, que ele define como uma modalidade de
relao jocosa, uma estrutura cerimonial de hospitalidade, onde a violncia revela e
oculta a reciprocidade (Viveiros de Castro 1986: 292).100 Os alimentos exgenos
parecem sublinhar a assimetria social, numa situao em que os assalariados oferecem
alimentos extraordinrios para o conjunto da comunidade.
No entanto, tais banquetes contribuem para intensificar os laos de
solidariedade entre co-residentes no interior da aldeia; eles so pensados como uma
forma de sociabilidade controlada que visa infundir nas pessoas as virtudes sociais
necessrias ao bem-viver, de modo semelhante ao que ocorre entre os yaneshas do Peru
(Santos-Granero 2000: 271). digno de nota que os alimentos que engendram refeies
coletivas no salo sejam provenientes da coleta, da caa e da compra (alm da pesca e
dos animais de criao, em menor medida), quando se sabe que um produto agrcola
(o milho ou a mandioca fermentada) portanto um alimento cultivado no espao
domesticado que a roa o eixo do principal ritual praticado por diversos povos tupis,
a cauinagem, que tambm antecedia os ritos antropofgicos entre os antigos
tupinambs.

99

Na festa do dia das crianas que presenciei no Mayrob, houve ainda distribuio de balas e pirulitos.
A voracidade e o tumulto que caracterizam as refeies no salo contrastam vivamente com as
refeies cotidianas em contexto domstico, quando as pessoas mostram grande polidez.

100

140

E. Viveiros de Castro fala da cauinagem arawet como cerimnia de guerra, na


medida em que precedida por uma excurso de caa liderada pelo matador-cantador,
uma posio altamente ambgua (Viveiros de Castro 1986: 350). T. Stolze Lima (1986,
1995) analisou a cauinagem juruna do ponto de vista da teoria lvi-straussiana da
aliana, demonstrando que o cauim uma contraprestao alimentar de uma prestao
matrimonial (1986: 32), e que os homens embriagados vivenciam o antagonismo
derivado do carter desigual de toda troca matrimonial (a irm doada nunca igual
esposa recebida...) (: 169); o consumo contemporneo da bebida fermentada o ponto
alto da sociabilidade dos jurunas, fornecendo ocasio para pensar (e agir) sobre a
relao de afinidade, bem como para rememorar o passado de guerras, captura de
inimigos e antropofagia. Entre os parakans, o cauim deve tornar os homens caadores
geis e vorazes (Fausto 2005: 399). Nas sociedades arawet, juruna e parakan, a
posio de matador especialmente valorizada, assim como o era entre os apiaks no
sculo XIX. De sua parte, os guarani-kaiovs transformaram radicalmente a funo do
cauim, utilizando-o em rituais como o batismo do milho, que tm por finalidade
tornar as pessoas leves, pacficas, e aproxim-las das divindades (: ibidem).
Ora, hoje os apiaks quase no preparam cauim (ou chicha, como preferem
dizer), bebida que consumiam diariamente e ofereciam aos visitantes no sculo XIX
(Castro & Frana 1868: 112; Guimares 1865: 311), e as poucas refeies comunitrias
que organizam dificilmente podem ser vistas como festivais relacionados guerra,
antropofagia ou ascese. Todavia, a comensalidade, valor celebrado nos banquetes
festivos antigos e contemporneos, tambm comporta um elemento de alteridade, que
pode ser mais bem divisado quando se leva em conta um outro tipo de festa realizada
pelos apiaks, as festas de branco, que reservam lugar para os excessos coibidos no
dia-a-dia. Ou seja, a funo social das festas permanece a mesma: o consumo coletivo
de um objeto exgeno, transformado dentro da aldeia, intensifica o senso de
coletividade e reafirma o prestgio dos organizadores (homens influentes).
As festas de branco, ocasies em que se imita o estilo de vida dos brancos
urbanos, so eventos raros, em que os apiaks vestem suas melhores roupas, exibem
comportamento contido, modos civilizados (como comer de garfo e faca) e danam
forr no salo. Presenciei uma nica festa de branco no Mayrob, para comemorar o dia
dos pais, embora ela tenha ocorrido trs semanas depois da data oficial. A festa contou
com a presena de um cantor profissional, aclamado na cidade de Juara, e distinguiu-se
por uma inovao, de resto bastante criticada: a venda de cerveja e de churrasco de
141

carne de boi.101 A festa foi organizada pela associao indgena, entidade para a qual o
(pequeno) lucro da festa foi revertido. Apesar do cartaz de No vendemos fiado,
afixado no salo, vendeu-se muito fiado e, devido s inmeras crticas que receberam,
posteriormente os organizadores acabaram por desistir de cobrar as dvidas. As pessoas
que podiam pagar pela comida e pela bebida eram os funcionrios da escola; os demais
consumiram muito pouco ou quase nada.
Os kaiabis e mundurukus das aldeias vizinhas reclamaram bastante, pois
evidentemente no levavam dinheiro, mas nem por isso deixaram de comer e beber:
ocorre que conseguiram constranger os anfitries a demonstrarem generosidade, e
puderam comprar fiado. Os dilogos diante do caixa forneciam um espetculo parte;
homens j um tanto embriagados apelavam para uma relao de parentesco ou de
compadrio para forar os companheiros a lhes pagar mais uma cerveja; no entanto, as
vtimas preferidas eram os no-indgenas, profissionais de sade e convidados de
Juara que ficaram exasperados com a situao. Houve concurso de dana e sorteio de
brindes, todos vencidos pelos apiaks, no sem alguma ajuda dos organizadores da
festa, o que despertou entre os kaiabis e mundurukus comentrios sobre a
(im)parcialidade dos jurados.
O cantor, que iniciara o show por volta das 21h do sbado, fez uma pausa s 7h
da manh do dia seguinte, sob protestos. Durante a manh do domingo, diversas pessoas
se divertiam no salo ao som de CDs, queixando-se de que o cantor no era de nada.
Houve torneio de futebol,102 dividido em masculino e feminino, sendo que os homens
apiaks demonstraram enorme insatisfao ao entregar o trofu de campeo aos kaiabis;
alguns apiaks, mais exaltados, quase partiram para as vias de fato. Durante os dois dias
de festa, os homens influentes apiaks serviam-se do microfone no palco para enaltecer
a comunidade diante dos forasteiros e pedir para que os companheiros no fizessem
nenhuma besteira, apenas se divertissem, de modo a aplacar os nimos, acirrados pela
presena dos kaiabis e mundurukus. Ocorre que, dias antes da festa, circulava o boato
de que os kaiabis iriam fechar a estrada que d acesso ao Mayrob, para impedir que o
cantor e os convidados de Juara chegassem aldeia; alm disso, alguns mundurukus
101

O boi foi comprado numa fazenda vizinha especialmente para esse fim. No acredito que carne de caa
pudesse ter sido vendida.
102
comum moradores de aldeias vizinhas reunirem-se para jogar futebol nos fins-de-semana. A visita
dos jogadores e seus acompanhantes a uma aldeia apiak sempre enseja algum nvel de tenso, mas
tambm uma oportunidade para troca de informaes entre aldeias. Se um jogo ocorreu numa aldeia
apiak, o prximo ser na aldeia dos visitantes. Mulheres jovens tambm jogam futebol, mas raro
que viajem para jogar em outras aldeias.

142

influentes da Aldeia Nova no compareceram, o que foi interpretado como afronta pelos
organizadores.
tarde, o cantor deu continuidade ao show, encerrado por volta das 18h, mas
a o descontentamento daqueles que no haviam participado da festa j se somava
exaltao dos embriagados, minando o clima de euforia. Vrios homens ainda
permaneceram no salo durante a madrugada, bebendo de graa. Na mesma noite,
houve uma briga envolvendo um ribeirinho apiak e uma mulher de uma famlia apiak
marginalizada na aldeia, desencadeada por uma proposta de casamento recusada.103 Nos
dias que se seguiram festa, as conversas foram dominadas por comentrios em tom de
reprovao e desapontamento; a festa fora um fiasco, afinal, vender comida para os
parentes algo que os apiaks no toleram. Pois, se se comprazem em exibir uma
aparncia civilizada, danando forr de modo respeitoso e jogando partidas de futebol
bem organizadas, os apiaks recusam contudo o individualismo que caracteriza o modo
de vida dos brancos que vivem na cidade: transformar comida em mercadoria, assim
abertamente, no salo, a negao mais contundente da lgica da ddiva, cujo ideal
sustenta a organizao comunitria, um empreendimento que pe em destaque a posio
de alteridade geralmente ocupada por homens influentes.
Aqui, no se trata portanto de devorar inimigos capturados fora ou de voltar-se
para o plano exterior da divindade, mas sim de fitar uma potencialidade simblica e
sociolgica que est no mago da comunidade que se apresenta ambiguamente como
civilizada: o risco de virar branco. H que notar, contudo, a exterioridade do modelo
imitado (brancos urbanos, individualistas, que estabelecem relaes por meio do
dinheiro), o que evoca a tese de Viveiros de Castro (1986: 390) sobre o fundamento da
sociedade tupi-guarani lhe ser exterior no tempo e no espao, bem como exprime a
ambivalncia do Outro, desejado na mesma medida em que temido. No caso das festas
de branco, os apiaks parecem incorporar momentaneamente o estilo de vida civilizado
pleno, identificado aos brancos urbanos; alm disso, pretendem tambm justificar as
escolhas residenciais e celebrar a unidade alde frente aos vizinhos (indgenas e
brancos). Pode-se dizer, ademais, que as festas de branco fornecem o contexto ritual
para se virar bicho de modo controlado, o que significa propor que, em tais festas, que
se opem simbolicamente s aes cotidianas de aparentamento, os apiaks se
metamorfoseiam (viram brancos) de modo assumidamente incompleto.
103

Os apiaks, geralmente muito calmos e auto-contidos, tornam-se algo agressivos quando tomam
bebida alcolica na aldeia.

143

O valor da comensalidade para a produo da pessoa, do parentesco e da


socialidade na Amaznia indgena foi ressaltado por diversos antroplogos (Gow 1991;
Overing & Passes 2000; Vilaa 1992). Numa tentativa de articular comensalidade
(associada caa e ao interior) e antropofagia (associada guerra e ao exterior) como
diferentes modalidades de constituio da identidade e da diferena, C. Fausto (2002)
efetuou a distino entre o consumo do outro enquanto pessoa (sujeito) e o consumo do
outro enquanto comida (objeto), inspirado na anlise de M. Strathern sobre a
partibilidade da pessoa melansia. De acordo com o autor, deixar de comer como e com
algum recusar o aparentamento, tal recusa equivalendo a se colocar na posio de
inimigo. Nesse sentido, o parentesco surge como a questo tica central na Amaznia e
predomina sobre a relao entre humanos e animais categorias que no so separadas
por uma barreira ontolgica.104
Embora a socialidade apiak no permita endossar automaticamente a
proposio de que a nica posio alternativa ao parente a de inimigo,105 eu gostaria
de reter da discusso realizada por Fausto o carter transformacional tanto do fogo de
cozinha quanto dos ritos antropofgicos, que visam tornar o animal, o inimigo ou o
parente morto em outra coisa. Consumir coletivamente um signo de alteridade
dessubjetivado uma das formas mais eficientes de transformar pessoas em parentes
(Fausto 2002: 15), especialmente quando se trata de coletivos compostos por pessoas de
origens distintas. Assim, se elementos exteriores so necessrios para construir a
comunidade como o universo da consanguinidade, marcando sua diferena em relao
aos de fora, preciso contudo tomar cuidado para que as relaes que constituem
esses objetos fora no se tornem o modelo dentro.
Digo isto porque os alimentos industrializados que figuram em algumas
refeies coletivas em datas comemorativas nacionais so comprados com dinheiro da
comunidade (fundo composto por parte do rendimento das pessoas assalariadas, ponto
que ser desenvolvido no captulo 5) e distribudos a todos os moradores da aldeia, que
os consomem sob a forma de banquete. Nesse sentido, pode-se dizer que o dinheiro
digerido como ddiva, pois a relao de compra transformada em relao de ddiva e
os alimentos cumprem sua funo de combustvel da socialidade alde. Ainda que os
apiaks no vejam problema em se vestir e se comportar como branco nas festas de
104

A anlise do simbolismo e das prticas de caa e pesca entre os apiaks no ser empreendida nesta
tese.
105
Tenho em mente o fato de que, para os apiaks, forasteiros no so primeiramente inimigos, mas
potencialmente cnjuges e parceiros polticos e econmicos valorizados.

144

branco, o que no admitem adotar a socialidade do branco, isto , vender comida e


bebida para os co-residentes, comer e beber individualmente, na medida em que s
come/bebe quem dispe de dinheiro. Aquilo que a festa fracassada demonstra, portanto,
o desejo dos apiaks por certos objetos exgenos, embora recusem a forma das
relaes que os produzem. Tais objetos interessam, assim, apenas na medida em que sua
dimenso diferencial serve ao incremento da socialidade alde. Temos que, se o veculo
de aquisio branco, seu consumo plenamente apiak, uma vez que os objetos so
domesticados pelo princpio da comunalidade.
Bem, as refeies coletivas de carter festivo so um dos principais elementos
de civilizao exibidos pelos apiaks, na medida em que singularizam os apiak
mansos, que assim se distinguem tanto dos brancos, que no costumam dar comida (em
vez disso, eles a vendem), como dos parentes bravos no Pontal, que no
desenvolveram uma vida comunitria. O grau de civilizao a que aludem os apiaks
consiste no tipo de acesso que se tem aos elementos materiais e imateriais do mundo
civilizado, que denota estilos de vida diferenciados; isto remete a um gradiente de
civilizao em que os apiaks misturados, que vivem atualmente em comunidade,
ocupam posio intermediria em relao aos brancos, dispostos no plo mais
civilizado, e aos ndios bravos, dispostos no plo menos civilizado.
Com efeito, a grande diferena entre os apiaks que vivem em comunidade e
os parentes isolados o acesso regular e o conhecimento do modo como utilizar a
mercadorias, ao dinheiro, aos medicamentos e aos sacramentos catlicos, alm da
intimidade com a lngua portuguesa e a escrita. Mas, alm do simples acesso a
elementos do mundo civilizado, os apiaks valorizam a forma como tais elementos so
apropriados; assim, enquanto os brancos compram objetos industrializados e os
consomem individualmente, os ndios mansos os partilham (sobretudo os alimentos),
isto , consomem-nos coletivamente, de acordo com a tica da generosidade que rege a
vida comunitria.
Sobre a questo da relao dos povos indgenas com a economia de mercado,
gostaria de mencionar a minuciosa etnografia do consumo xikrin (povo j) realizada por
C. Gordon (2006). Este autor afirma que, no contexto em que os ndios recebem h
alguns anos volumosas quantias em dinheiro de uma empresa mineradora que se
estabeleceu nas imediaes de seu territrio, o dinheiro concebido como um signo de
relao com o Outro, e no como essncia da coisa a ser possuda (Gordon 2006: 279).
Aps descrever e analisar as estratgias xikrins para obter mais dinheiro e,
145

consequentemente, mais objetos industrializados, bem como os intrincados caminhos


percorridos por tais objetos no interior do sistema de parentesco, o autor permanece sem
resposta para o paradoxo entre o consumo inflacionrio controlado pelos chefes e a
lgica da ddiva, admitindo (sem, no entanto, explorar a fundo as consequncias
tericas da decorrentes) que:
talvez no seja vivel para os chefes obviamente, em certo limite
realizar esse ideal de pagamento xikrin (a comunidade como um todo, para
todo mundo, o tempo todo) sob o risco de verem dissolvidos ('comunizados ao
limite') os ndices de sua diferena. O risco inverso, porm, o esticamento
ilimitado dessa distncia at a esgaradura, que pode levar indesejvel ruptura
das relaes, e ao desmembramento da comunidade; em outras palavras, fisso
alde (Gordon 2006: 287).
Todavia, ao final do livro, o autor deixa claro que, se as hierarquias internas
sociedade xikrin so anteriores ao contato com os brancos e seus avatares, de outro
modo o afluxo crescente de dinheiro impe aos xikrins a questo candente da
transformao cultural, na medida em que as instituies indgenas tradicionais tm
dado sinais de esgotamento ao tentar controlar a lgica predatria do capital. nesse
sentido que, de acordo com o autor: Os parentes comeam a se estranhar. Comeam a
no se reconhecer (: 413), deixando-nos com srias dvidas a respeito dos limites e
armadilhas da indigenizao da mercadoria, num momento em que a escala de
interao com a sociedade nacional comea a fugir ao controle dos chefes uma crtica
contida, ademais, no lcido prefcio de C. Fausto (: 24).
Na comunidade apiak, o dinheiro e as mercadorias so transformados em
ddiva, por vezes com alguma relutncia, uma vez que so inseridos num circuito de
reciprocidade que serve consolidao de vnculos de parentesco e solidariedade.
Observa-se, assim, que os objetos e alimentos industrializados so utilizados tanto para
estreitar laos entre famlias extensas como para os homens influentes exercitarem um
estilo de hospitalidade civilizado para com forasteiros, o que serve a propsitos
polticos, uma vez que a capacidade de distribuir tais itens e de forjar alianas para obtlos a principal fonte de prestgio.106
Brancos e ndios bravos ocupam, pois, os plos extremos de um continuum
espaciocultural: se os brancos vivem na cidade, lugar onde se deve pagar por tudo (At
106

Quando se comea a planejar uma festa por ocasio de data comemorativa oficial, uma das primeiras
medidas do cacique reunir os assalariados no salo e lhes dizer qual a quantia necessria para
comprar os itens desejados. Percebe-se, assim, que o dinheiro dos cargos remunerados coletivizado;
parte dele se torna ddiva, uma maneira de mant-lo sob o controle da comunidade e de refrear
impulsos consumistas/individualistas.

146

mesmo pela comida), e os ndios isolados vivem na floresta, onde no existe relao
mediatizada pelo dinheiro ou pela tica da generosidade, nem sequer objetos
industrializados, os apiak mansos vivem a meio caminho entre a cidade e a floresta,
nas margens de grandes rios que do acesso a cidades, por onde passam balsas e
regates. Esta situao se assemelha quela descrita por P. Gow a respeito dos povos
nativos do baixo Urubamba (1991: 89), como vimos nos captulos 1 e 2. Diferentes
tipos de gente experimentam, assim, estilos de vida diversos. De modo complementar,
devo acrescentar que os apiaks tm suas prprias aldeias em alta conta, distinguindo-as
tanto das aldeias kaiabis, onde no se dispensaria hospitalidade aos forasteiros, como
das aldeias mundurukus, onde haveria muita doena causada por feitio.
Se a instabilidade ontolgica de fato aquilo que singulariza os povos tupis, eu
diria que o ser apiak no se pensa tanto como habitando um plano cultural que se ope
a um plano natural e a outro sobrenatural, como props E. Viveiros de Castro (1986),
mas elabora antes sobre categorias sociais mais ou menos intercambiveis que se
relacionam distintamente com uma natureza dotada de agencialidade, dispostas num
gradiente de civilizao em que a comunidade surge como forma sociolgica a ocupar a
posio mdia. Para alm da comunidade h os ndios bravos e os brancos urbanos; para
alm das categorias sociais, e agindo contra elas, h os seres encantados (habitantes do
rio e da floresta) e as pessoas que viram bicho (ver captulo 4). Tal gradiente
classificatrio imbudo de valores morais, e cada uma de suas categorias comporta
ambivalncias. Assim, aos olhos dos apiaks mansos, os ndios bravos, que no tm
tacho para torrar farinha, levam, contudo, uma vida livre e independente, enquanto os
brancos, que criam seus filhos presos em casa, desfrutam entretanto dos confortos da
cidade, como geladeiras e carros.
O prprio idioma da mistura, empregado pelos apiaks mansos que vivem em
comunidades idealmente pacficas, indica que o parentesco continua fornecendo o
cdigo para a apreenso das mudanas e a classificao das pessoas, e pode ser
considerado como expresso de resilincia social. Isto porque a ideia de mistura no se
refere unicamente ao sangue (unio de pessoas de etnias distintas), mas compreende
tambm o estilo de vida, a posio ocupada naquele continuum espaciocultural. Ao
longo do sculo XX, os apiaks deram seguimento aos casamentos intertnicos,
preferindo sempre, note-se, pessoas conhecidas de longa data, antigos vizinhos,
independentemente da etnia, embora fossem todos pertencentes ao tronco tupi.

147

Desde a ltima dcada, porm, eles decidiram restringir os casamentos ao


interior das aldeias classificadas como apiaks, em detrimento dos kaiabis e
mundurukus das aldeias prximas. Esta opo insere-se no projeto mais amplo de
revitalizao da cultura apiak, que inclui a retomada da lngua indgena e de elementos
de cultura material e a luta pela regularizao de uma poro de seu territrio
tradicional. No mbito desse projeto poltico, intensificaram-se as visitas entre as
aldeias do Par e as do Mato Grosso, e dessas viagens resultaram vrios casamentos
classificados como exclusivamente apiaks.

3.3- Famlia conjugal e famlia extensa


Nas aldeias apiaks, as famlias conjugais so unidades residenciais que se
articulam em famlias extensas; estas ltimas constituem a principal unidade de
produo e consumo na aldeia, no interior da qual o alimento, os objetos
industrializados e os artefatos circulam sob a forma de ddivas. A famlia extensa a
unidade poltica bsica na aldeia, e sua articulao recproca se d por meio de uma rede
de transaes econmicas, laos polticos e vnculos de parentesco (incluindo o
compadrio) que abrange virtualmente, embora em diferentes graus, todos os coresidentes. A ciso alde incide sobre a famlia extensa, a qual se muda praticamente
inteira quando h algum conflito mais srio; tal configurao aproxima-se da situao
arawet, onde as famlias extensas existem como aldeias em potencial (Viveiros de
Castro 1986: 310), e tambm da organizao social dos teneteharas (Wagley & Galvo
1961: 39). Do ponto de vista dos apiaks, todos os membros da comunidade so
parentes (embora nem todos o sejam no mesmo grau e intensidade), o que nos leva a
crer que a residncia o principal fator estrutural nessa organizao social.

148

149

Diagrama 3.1: Conexes entre as parentelas Morim, Kamassori e Paleci


(Esto representadas apenas as pessoas diretamente implicadas na discusso)

Legenda do diagrama 3.1

Vejamos como se origina uma famlia conjugal. Os apiaks dizem que um


rapaz por volta de 15 anos e uma moa de aproximadamente 13 anos esto aptos a se
casar e ter sua prpria famlia.107 De fato, nessa idade, o rapaz domina as tcnicas de
caa, pesca, coleta, sabe quebrar castanha e, portanto, pode dispor de uma renda em
dinheiro, aprendeu a ler e a escrever, sua voz j engrossou e est perdendo a vergonha
de falar em pblico e, se pretende mesmo se casar, j possui uma roa. Por seu turno, a
moa, que j deve ter tido sua primeira menstruao, capaz de cuidar de uma casa e de
crianas, de cozinhar, de criar patos e galinhas, de manter uma roa e de preparar
farinha de mandioca e vinhos de frutas em grandes quantidades. A ligao amorosa
107

O casamento de moas de 13 anos, que parece precoce a olhos ocidentais, explicado pelos apiaks
como forma de evitar filhos ilegtimos.

150

formalmente iniciada pelo rapaz, que pede a moa em namoro; ela ento consulta sua
me, que conhece de antemo as preferncias do pai, a quem comunica a novidade, se
julgar conveniente.
Durante algumas semanas, o rapaz entrega cartas de amor e presentes
namorada; os mimos mais apreciados so objetos industrializados comprados a um
regato ou na cidade mais prxima, como miangas, perfumes e bibels coloridos. Os
jovens no namoram em pblico; medida que os comentrios sobre a relao avultam
na aldeia, os pais da moa comeam a considerar seriamente o casamento, tanto mais
desejvel quanto mais trabalhador e respeitador for o genro em potencial. A
oficializao da relao implica uma visita formal dos pais do noivo aos pais da noiva
para tratar do casamento. Se h padre disponvel, realiza-se a cerimnia catlica e
possivelmente um almoo especial, aps o que um dos cnjuges se muda para a casa do
outro, levando apenas seus objetos pessoais.108 Quando no se pode contar com um
sacerdote, a ligao consumada e o casal fica espera de uma ocasio propcia para
obter a bno.
O local da residncia de um jovem casal uma das decises mais delicadas na
vida social. A co-residncia no importante apenas do ponto de vista das relaes de
parentesco, mas tambm dos pontos de vista poltico e econmico. Existe a expectativa
da uxorilocalidade, que no se traduz numa regra rgida. Em princpio, um homem
recm-casado deve mudar-se para a casa dos sogros e prestar-lhes o servio da noiva
por um ano, aproximadamente; aps o nascimento dos primeiros filhos, ele deve
construir a casa da nova famlia conjugal, idealmente vizinha dos sogros. A residncia
uxorilocal uma prtica temporria ou de aplicao poltica entre os tupis-guaranis,
que permite aos lderes reter os filhos e atrair genros, constituindo o fundamento da
chefia alde (Viveiros de Castro 1986: 315). Para os apiaks, o cnjuge ideal
basicamente aquele que no pretende fazer migrar o membro da aldeia onde contraiu
casamento.109
108

Em 2007, assisti a um casamento de luxo no Mayrob, prtica bastante recente, criticada pelos mais
velhos. Naquela ocasio, a moa usou um vestido de noiva branco, alugado em Juara, maquiou-se e
foi conduzida ao salo pelo pai, ao estilo ocidental. Aps a cerimnia, houve um grande churrasco na
casa do pai do noivo, um homem influente, que estava construindo uma casa com vrios quartos para
abrigar os filhos adultos e seus cnjuges. Para o banquete foram convidados apenas os membros das
famlias extensas de ambos os noivos, o que suscitou reprovao por parte do restante da comunidade.
109
Wagley & Galvo explicam que o casamento de uma jovem tenetehara um problema para a famlia
extensa, pois por meio dele se obtm novos trabalhadores masculinos para o grupo: Um pai, em
geral, prefere para marido da filha um rapaz da mesma aldeia, porque este, aps um ou dois anos de
residncia com o sogro (perodo de servio da noiva), ter menos motivos para se mudar ou deixar a
aldeia. (Wagley & Galvo 1961: 95).

151

Alm do mais, o apelo existncia de ndices de civilizao em uma aldeia


serve como justificativa irrepreensvel para a opo residencial de um casal. Ora,
nenhum parente poder legitimamente opor-se mxima: Vamos morar em outra
aldeia porque l tem farmcia e escola para as crianas.110 Valendo-se de alegaes
desse tipo, bem como da oportunidade de ganhar um salrio ao trabalhar como professor
ou agente de sade em outra aldeia, genros podem, com alguma tranquilidade, furtar-se
a prestar o servio da noiva ou esquivar-se de presses demasiado intensas. Se, de outro
modo, apenas um dos cnjuges quer se mudar, pode ocorrer divrcio, prtica
relativamente comum entre os apiaks, que, assim como os casos extra-conjugais e os
filhos ilegtimos,111 no suscita grande comoo, salvo raras excees.
No perodo em que vive na casa dos sogros, o rapaz os ajuda na maioria das
atividades cotidianas e estabelece com eles uma relao de evitao, respeito e
vergonha; a relao entre a nora e seus sogros tambm de respeito, mostrando-se
porm um pouco mais amena; j a relao entre cunhados de mesmo sexo e de sexos
opostos comporta brincadeiras e mesmo alguma camaradagem, podendo assumir a
forma de relaes jocosas. A cumplicidade a marca da relao entre marido e esposa,
ao passo que a afeio caracteriza a relao entre pais e filhos e a solidariedade, a
relao entre irmos de sexo oposto.112 A relao entre irmos do sexo masculino
adultos de afastamento e, por vezes, rivalidade. Irms adultas costumam cooperar na
produo de alimentos e partilham comida e objetos, mas sua relao se estabelece por
intermdio da figura da me ela que congrega as filhas casadas. Com efeito, as
mulheres tentam prolongar ao mximo o tempo de permanncia junto a seus pais e
irms; suas casas podem mesmo permanecer meses ou anos sem um fogo a lenha,
enquanto a cozinha de sua me partilhada com outras irms, solteiras e casadas.

110

Tambm para os povos nativos do Baixo Urubamba a escola um fator determinante nas escolhas
residenciais pois, ao mesmo tempo em que um lugar onde as crianas podem aprender
conhecimentos civilizados, que impediro que sejam escravizadas como seus pais, ainda liga adultos
como co-residentes que atualmente no so parentes prximos ou reais, mas que iro se tornar
parentes por intermdio dos filhos (Gow 1991: 250).
111 Filhos de pais separados ou de unies fugazes, bem como rfos, geralmente so criados pelos avs
(geralmente, os avs maternos), mas tambm podem ser admitidos na famlia extensa mais influente,
onde permanecem como agregados e provveis aliados futuros. A despeito da grande quantidade de
casos extra-conjugais, os apiaks reprovam publicamente o adultrio e veem as (poucas) mes
solteiras como um grave problema social a ser rapidamente resolvido por meio do casamento da
mulher. Geralmente, os homens que se furtam a assumir filhos ilegtimos so homens influentes ou
filhos de homens influentes.
112
Mesmo quando adultos, os irmos de sexo oposto se preocupam com o bem-estar um do outro; sempre
que um tem grande quantidade de comida ou guloseimas apreciadas, manda uma parte para o outro.

152

Na aldeia Mayrob, conheci um casal jovem, com dois filhos pequenos,


composto por um rapaz proveniente do Par e uma moa do Mato Grosso, que
enfrentava problemas com seus respectivos pais e sogros; em visita ao Rio dos Peixes, o
rapaz pediu a moa em casamento e, em seguida, voltou com ela para o Par, sem
prestar o servio da noiva aos sogros, que apenas o dispensaram porque se tratava de um
jovem influente, filho do principal cacique apiak, cuja presena se fazia necessria na
aldeia de origem. A moa foi visitar sua aldeia natal aps dois anos de casada, o que
gerou forte ansiedade por parte de seus pais em relao ao marido dela; durante a visita,
que se estendeu por mais de um ms, a permanncia definitiva do casal no Mato Grosso
foi assunto da maioria das conversas mantidas por todos os membros de sua famlia
extensa. Esse caso especialmente complicado porque a moa afirmava que gostaria de
voltar para o Par, ao passo que o rapaz era considerado um genro exemplar pelos
sogros. Como seus filhos adoeceram, ela se sentiu ainda mais insegura na aldeia natal e
insistiu para retornar para a aldeia dos sogros, o que acabou acontecendo, para desgosto
de seus pais.
O casamento marca a entrada dos jovens na vida adulta e redefine as relaes
entre os pais de ambos os cnjuges, que passam a se tratar com certa deferncia. Esperase que o casal se torne uma clula econmica e poltica com algum grau de
independncia em relao aos respectivos pais, embora a cooperao e a solidariedade
que existe entre eles jamais cesse de todo. Entre os apiaks no vigora uma rgida
dicotomia de gnero; h, sim, atividades associadas s mulheres (cuidado da casa e dos
filhos, cultivo das roas e hortas, preparao e distribuio da comida, confeco de
artesanato de sementes e miangas e de tipoias etc.) e atividades associadas aos homens
(preparo do terreno da roa, obteno de alimento por meio da caa, da pesca e da
coleta, confeco de canoas e cestos de fibra vegetal, confeco de cocares, confeco
de zagaias, arpes, arcos e flechas, interao com os forasteiros, poltica formal etc.),
desempenhadas em relao de complementaridade.
No raro ver mulheres pescando ou se pronunciando em reunies no salo,
assim como, ocasionalmente, homens podem cuidar da casa e ajudar no preparo das
refeies; por outro lado, h o consenso de que as atividades femininas so mais
montonas que as masculinas, por isso os homens s vezes levam suas esposas para a
cidade, para uma pescaria ou para os acampamentos de castanha na mata, o que
percebido como passeio pelas mulheres. O papel ativo das mulheres na produo da
socialidade domstica, em oposio prerrogativa masculina no trato com o exterior,
153

evoca a categorizao arawet da sociedade como domnio feminino (Viveiros de


Castro 1986: 364), diferente do que se passa, por exemplo, nas sociedades do alto Rio
Negro, que atribuem mulher uma posio ambgua e potencialmente perigosa.113
A interdependncia entre os gneros manifesta-se em todas as esferas da vida
social, assim: a) na socializao das crianas, com a me dispensando-lhes os cuidados
cotidianos, enquanto o pai deve prover-lhes alimento de origem animal e objetos
industrializados, principalmente roupas; b) na esfera produtiva, em que ao homem cabe,
fundamentalmente, obter alimento fora da aldeia (no rio, na floresta, na cidade),
enquanto a mulher se encarrega de sua transformao em comida no domnio
domstico: tudo o que eles capturam, matam e coletam, em atividades caracterizadas
por um misto de perigo e aventura, elas tratam e alteram; c) na esfera da cultura
material, em que os homens fabricam utenslios de fibras vegetais (cestos, paneiros,
jamaxins, peneiras etc.) para as mulheres, enquanto estas confeccionam enfeites
(colares, pulseiras e anis mas no cocares) para eles; e d) na organizao poltica da
comunidade, que prev cargos em pares, ou seja, ao posto de cacique corresponde o de
cacica,114 e ao posto de vice-cacique, o de vice-cacica, embora a poltica seja
concebida como atividade masculina.
A interao com seres outros e espaos extra-domsticos, incluindo os
brancos, prerrogativa masculina. Aos homens cabe derrubar o trecho de mata em que
se far o roado, retirar frutos silvestres e mel, torrar farinha, prover a casa de caa,
peixe e objetos industrializados. s mulheres cabe semear, cultivar (a roa, hortalias no
canteiro), carregar (lenha, frutos silvestres, produtos da roa), criar (os filhos, os
animais domsticos, os xerimbabos115), colher (embora os homens ajudem suas esposas,
o cuidado da roa atribuio da mulher) peneirar (a farinha, os frutos silvestres de que
se fazem vinhos), limpar (a casa, o terreiro, a roa), cozinhar (para as refeies
cotidianas e os banquetes no salo), beneficiar a castanha destinada venda. Observo
que o termo trabalho s usado para se referir s atividades agrcolas e, nesse sentido,

113

Cabe aqui recordar o protagonismo da esposa apiak de Paulo Corra na narrativa de origem dos
apiaks misturados; ela no vista como um ser eminentemente destruidor da ordem social, mas sim
como a responsvel pelo surgimento de uma nova configurao social, que se comportou como noparente, algo que pode acontecer com qualquer pessoa.
114
Os arawets tambm postulam um casal de lderes, os t , fundadores e donos da aldeia (Viveiros
de Castro 1986: 311).
115
Os apiak criam papagaios, jacamins, mutuns, macacos, cutias, ces de pequeno porte e gatos
domsticos como xerimbabos. As mulheres os alimentam como a crianas pequenas e todas as pessoas
da famlia em geral lhes tm grande afeio. Admite-se que se vendam xerimbabos, embora a prtica
no seja frequente.

154

pode-se afirmar que as mulheres trabalham mais que os homens.


Tomemos um caso concreto, que observei de perto, e que o tipo de
casamento desejvel, cada vez mais comum entre os apiaks. O Diagrama 3.2 reproduz
e expande o Diagrama 3.1. A filha nica do cacique de uma aldeia apiak (no. 61 no
Diagrama 3.2), de 13 anos, casou-se com um rapaz de 19 anos (no. 59), seu FFIPmP,
que residia na mesma aldeia. O rapaz, que filho de um homem influente (no. 24),
mudou-se para a casa dos pais da esposa; o jovem casal ocupava ali um quarto prprio.
O genro passou a auxiliar o sogro (no. 46) em todas as tarefas cotidianas: na construo
da casa nova, na abertura da roa, na quebra da castanha, nas caadas e pescarias,
assumindo a funo de provedor da casa na ausncia do sogro, que passava dias a fio na
cidade. A relao do rapaz com os sogros era de respeito absoluto, mas sua relao com
o irmo mais novo (no. 62) e o irmo mais velho (solteiro) (no. 60) da esposa era de
grande camaradagem.
O casal decidiu esperar algum tempo para ter filhos, pois o rapaz estava
fazendo um curso para agente de sade e a moa, cursando a quinta srie do primeiro
grau. Os jovens esposos abriram uma roa prpria e comearam a comprar objetos para
a casa que construiriam no futuro prximo, ao lado da casa dos pais da moa, como
fogo e colcho de casal. Dentro da casa dos pais da moa, o casal gozava de alguma
autonomia apenas quando aqueles estavam fora; nessas ocasies, os recm-casados
recebiam visitas de outros jovens casais e assumiam todas as funes cotidianas junto
aos irmos da moa.
Algumas semanas aps o casamento, a irm da me da moa (no. 55)
comentava em voz baixa que a tia da moa havia se tornado sua cunhada, uma vez que a
irm mais velha do rapaz (no. 58) era casada com o irmo da me da moa (no. 56). A
relao entre a moa (no. 61) e sua tia/cunhada (no. 58) era de evitao tnue. A relao
entre a me da moa (no. 57), essa irm mais nova e a cunhada delas era de cooperao
e intimidade. possvel que a irm mais velha do rapaz fosse considerada uma
substituta da me, a qual acompanhava o marido, que passava longos perodos fora da
aldeia devido a seu emprego de chefe de posto. Alm disso, comentava-se no mbito da
parentela do cacique que seu filho mais novo (no. 62), ento com 11 anos, se casaria
com a filha do casal formado pelos nos. 56 e 58, de 9 anos (no. 63).
Dentro de poucos anos, os dois irmos dessa moa iro se casar, e provvel
que ao menos um deles mude de casa, seno de aldeia. A separao geogrfica de
irmos do sexo masculino adultos geralmente enseja rivalidade poltica entre eles,
155

especialmente se a diferena de idade for muito grande, e aqui verificamos aquilo que
Fortes afirma sobre o ciclo de desenvolvimento do grupo domstico, a saber, que ele
um processo interno ao domnio domstico governado por suas relaes com o campo
poltico mais amplo (Fortes 1958: 2). Filhos de homens influentes tendem a seguir os
passos do pai. Quando a competio entre os irmos leva ao conflito aberto, no raro
que um deles decida fundar outra aldeia, levando consigo sua famlia extensa e alguns
aliados polticos.116

Diagrama

3.2:

Casamento

entre

parentes

distantes,

Mayrob

(Esto

representadas apenas as pessoas diretamente implicadas no caso analisado)

116

Nos dois casos concretos que conheo, foi o irmo mais novo que se mudou.

156

Observando a configurao residencial numa perspectiva diacrnica,


percebemos que a famlia conjugal uma fase no ciclo de desenvolvimento do grupo
domstico, como props M. Fortes (1958). A situao de um casal na faixa dos 35 anos,
seus filhos pequenos e jovens, sendo que um ou mais deles j casado e pode mesmo
ter um beb, corresponde fase de disperso do grupo domstico, que se segue
fase de expanso (casamento e nascimento dos filhos) e antecede a fase de
substituio, a qual culmina com a morte dos pais e a reposio de sua famlia pelas
famlias dos filhos (Fortes 1958: 4). No caso dos apiaks, semelhante ao que ocorre
entre os ibans citados por Fortes, que tambm no possuem conceito de descendncia
unilinear, o lao conjugal tem prioridade sobre o lao entre irmos, sendo que o casal
investido de autoridade sobre os recursos produtivos e reprodutivos de seu grupo
domstico. Assim, idealmente, as crianas apiaks crescem, casam-se com parente
distante ou forasteiro conhecido,117 passam algum tempo na casa dos pais da moa
(servio da noiva) e estabelecem uma casa prpria ao lado da casa destes, aps o
nascimento do primeiro filho.118

********
As casas dos apiaks so dispostas de modo irregular pelo terreno, distando
aproximadamente 10 metros uma da outra, e abrigam em mdia 6 pessoas. Como
espao socialmente circunscrito, as casas dos apiaks compreendem uma regio privada
e uma regio pblica. A construo geralmente pequena (mdia de 4m x 5m), de
planta retangular, com paredes de adobe ou de ripas de madeira, telhado de quatro guas
(tacania) feito de palha de babau, que pode ser substituda por tabuinhas ou, mais
recentemente, por telhas de amianto, portas e janelas estreitas de madeira (que deixam o
interior escuro) e cho de terra batida ou cimento a qualidade da construo denotando
o nvel de prosperidade dos donos.
A casa dividida em dois ou mais cmodos por uma ou duas meias-paredes:
uma cozinha interna com jirau, que tambm serve de sala de estar, regio pblica, onde
se recebem as visitas e se preparam e consomem os alimentos e onde tambm so
117

Os forasteiros com que os apiaks se casam so kaiabis, mundurukus e descendentes de arigs com
que convivem h vrias geraes no baixo curso dos rios Juruena e Teles Pires.
118
Tambm entre os teneteharas as casas abrigam famlias simples, construdas contguas ou prximas s
de outras famlias do mesmo parentesco (Wagley & Gavo 1961: 173). Os autores afirmam que, a
despeito das profundas mudanas pelas quais o povo vinha passando, o sistema bilateral de parentesco
e o grupo de famlia extensa, com residncia matrilocal, permaneciam como elementos
organizacionais fundamentais nos anos 1940 (: 172).

157

guardados arcos, flechas, apetrechos de pesca, arpo, zagaia, remos, peneiras, pilo
cilndrico, faces, cabaas, sendo que as panelas de alumnio e os cestos so suspensos
por pregos fixados na parede;119 e um ou mais quartos onde as pessoas dormem, tm
seus momentos de intimidade, guardam seus objetos mais preciosos (roupas, sapatos,
bibels, sabonetes, sabo em barra, sementes e miangas para artesanato, espingarda,
munio, latas com farinha de mandioca e tapioca, alimentos industrializados, cadernos,
canetas etc.), espao onde so admitidos apenas os membros da famlia conjugal.
Todos os objetos mantidos na cozinha so visualizados por qualquer um que
visite a casa e podem ser emprestados, mas o mesmo no ocorre com os objetos
protegidos pelo maior isolamento do quarto: embora uma mulher saiba que uma vizinha
no-aparentada possui miangas, dificilmente vai lhe pedir emprestado, a menos que
circule a informao de que a quantidade realmente grande. Um remo ou uma peneira
tomado emprestado em geral devolvido rapidamente, no engendrando nenhum tipo
de obrigao de reciprocidade.120 O zelo dispensado aos objetos industrializados vai
amainando com o passar do tempo, e um jogo de jantar que, logo aps ser adquirido, era
utilizado apenas em ocasies especiais, comunicando o status de seu dono, pode ser
encontrado aos pedaos no terreiro alguns meses mais tarde, despojado de qualquer
lampejo de requinte que lhe fora atribudo inicialmente. como se o potencial de
prestgio atribudo a determinado objeto tivesse um prazo de validade relativamente
curto (algumas semanas ou meses para os objetos durveis); aps consumido este
potencial, o objeto se v destitudo de seu valor de uso e facilmente descartado
exceo feita s miangas.
As paredes da cozinha e dos quartos muitas vezes so decoradas com cartazes
obtidos no comrcio regional, recortes de jornal, calendrios com imagens catlicas e
fotos de polticos; os mais vistosos so colocados na posio de maior visibilidade da
casa, geralmente a cozinha. A moblia da maioria das casas bastante simples e
limitada, fabricada na prpria aldeia, com matria-prima local; homens com habilidades
de marceneiro confeccionam mesas, bancos e jiraus em forma de prateleiras. As redes
de dormir so adquiridas no comrcio regional, bem como as panelas de alumnio, cuja
quantidade e qualidade so a medida do prestgio da dona da casa. Nas casas das
pessoas mais influentes, porm, encontram-se mveis comprados em lojas, como
119

Alguns adultos disseram lembrar-se de panelas de cermica feitas por velhas apiaks, mas h algumas
dcadas eles utilizam apenas panelas de alumnio.
120
Aquilo que se pede emprestado geralmente so alimentos e objetos industrializados, ou ento
instrumentos de trabalho.

158

armrios, camas e colches, alm de utenslios de cozinha variados. As pessoas


influentes, especialmente o cacique, so as primeiras a aderir s novidades; quando,
digamos, os copos de um modelo X introduzidos pelo cacique passam a ser encontrados
em diversas casas da aldeia, ele declara que aqueles copos no so grande coisa, e os
substitui por outros, mais caros, de modo a conservar sua prerrogativa de distino,
renovadamente abalada. Hoje a maioria das casas conta com fogo a gs, mas nem por
isso as mulheres abandonaram totalmente o forno a lenha. Ser proprietria de um fogo
a gs confere certo prestgio mulher, na medida em que ela pode preparar pes e bolos
de farinha de trigo, guloseimas altamente apreciadas, que atraem visitas formais e
podem enobrecer festas de aniversrio, de batizado e de casamento.
A construo de uma casa uma das atividades que requer mais trabalho e
recursos, para a qual o casal aciona os homens de sua famlia extensa, alm do(s)
compadre(s) e amigos. A dona da casa nova providencia as refeies para os
trabalhadores, enquanto o dono supervisiona a obra, raramente assumindo alguma tarefa
braal, e garante bebida alcolica, geralmente cachaa, o que confere um carter festivo
ao trabalho. Apenas os homens influentes podem pagar dirias a homens com mais
habilidade tcnica, como se usa na cidade; os homens comuns participam de um circuito
de troca de trabalho (mutiro) em que uns ajudam a construir a casa dos outros,
reciprocamente, em sistema de rodzio. A casa do cacique, nas aldeias apiak
contemporneas, a maior e mais bonita.121
As casas comeam a ruir depois de seis ou sete anos; a ligao afetiva dos
donos com sua casa to forte que as pessoas dizem que uma casa nunca desaba em
cima do dono, isto , ela apenas vem abaixo quando ele est ausente. Embora a mulher
seja a responsvel pela manuteno da casa, o homem sempre lembra os esforos que
despendeu para sua construo, o que nos leva a crer que a casa de fato pensada como
propriedade do casal, e no apenas do marido ou da esposa; porm, por ocasio de uma
separao, mais comum o homem deixar a casa. A casa que j no oferece condio
de uso, seja porque sua cobertura est estragada ou porque uma parede se desmanchou
com as chuvas, transforma-se em depsito dos donos (a se guarda lenha, castanha para
a venda, utenslios agrcolas e de pesca), e pode vir a ser reconstruda para morada de
um(a) filho(o) recm-casado(a). Geralmente, as pessoas constroem a casa nova ao lado

121 Na aldeia Mayrob, a casa do cacique era feita de madeira, coberta com folhas de amianto, cho de
cimento vermelho, com uma rea aproximada de 40 metros quadrados, e um p direito bastante alto,
dividindo-se em 5 cmodos e uma varanda coberta.

159

da casa antiga, o terreno do terreiro permanecendo o mesmo. O momento em que o


casal constroi sua terceira casa coincide com a fase de expanso da famlia conjugal; a
esta altura, o filho mais velho est perto de se casar ou acabou de faz-lo.
Do ponto de vista da residncia ps-marital, temos o seguinte cenrio para o
Mayrob, em 2007, considerando 40 casamentos: 3 homens (apiaks) residindo
temporariamente na casa dos sogros; 4 homens (sendo 2 apiaks e 2 kaiabis) que se
mudaram para a aldeia da esposa aps o casamento e construram uma casa prpria; 1
moa (apiak) residindo na casa dos sogros; 10 mulheres (sendo 3 apiaks, 4 kaiabis e 3
mundurukus) que se mudaram para a aldeia do marido aps o casamento; 17 casais
formados por pessoas que moravam no Mayrob antes de se casarem e l
permaneceram;122 5 casais (1 formado por um homem apiak e uma mulher munduruku,
1 formado por homem e mulher mundurukus, 1 formado por homem kaiabi e mulher
apiak, 1 formado por homem apiak e mulher kaiabi, 1 formado por homem e mulher
apiaks) com filhos e 1 homem vivo (apiak) com filhos e neta provenientes de outras
aldeias. A quantidade de homens residindo na casa dos pais da esposa (3) deve ser
relativizada em termos diacrnicos, uma vez que a grande maioria dos homens adultos
j passou por essa fase. Quanto a estes 5 ltimos casais, um deles proveniente da
aldeia PIn Teles Pires e o outro, da aldeia Cururuzinho, ambas na TI Kaiabi, no rio
Teles Pires. J aqueles homens e mulheres que se mudaram para o Mayrob aps o
casamento so provenientes da aldeia Tatu, no Rio dos Peixes, TI Apiak-Kaiabi.
A situao do Mairowy, aldeia menor e mais recente que o Mayrob, a
seguinte: os cnjuges dos 5 siblings filhos da mulher mais velha da aldeia, uma apiak
pura, j viva, mudaram-se todos para junto dela; antes de abrirem o Mairowy,
moraram na aldeia Bom Futuro, onde ainda reside o segundo filho desta mulher, junto
com sua famlia extensa. Em 2007, no havia homens prestando o servio da noiva no
Mairowy, mas 4 daqueles siblings conseguiam reter na aldeia os cnjuges da maioria de
seus filhos, que so mundurukus e descendentes de arigs provenientes do alto Tapajs
(da TI Munduruku e de vilas e cidades na margem esquerda do Tapajs), pessoas que os
moradores do Mairowy conhecem de longa data.123 Os outros moradores da aldeia eram
os filhos e netos de uma viva munduruku, unida por um vnculo de amizade com a
122

Esses casais so descendentes do pai do fundador da aldeia, Andr Morim (apiak), seu genro
Sebastio Krixi (munduruku) e seu compadre Jorge Burum (munduruku) e respectivas esposas,
provenientes do Par. Todos esses descendentes se consideram, e so considerados, apiaks, embora
muitos falem a lngua munduruku.
123
Em 2006, o filho primognito daquela mulher fundou uma nova aldeia no rio Juruena, levando consigo
a esposa, um filho casado e a esposa dele, mais dois casais aliados.

160

viva apiak, igualmente casados com mundurukus e descendentes de arigs


provenientes do alto Tapajs. Dois rapazes casados e com filhos pequenos
responsabilizavam-se pela me separada e os irmos menores. Havia ainda um casal
munduruku que se mudara para a aldeia devido ao emprego do homem (ele foi
requisitado como professor), no tendo ali parentes ou compadres.
W. Goodenough (1956) fez uma advertncia importante sobre as regras de
residncia ao enfatizar que o recenseamento e as estatsticas so mtodos necessrios,
mas no suficientes para apreender o padro de residncia de uma sociedade. De acordo
com ele, preciso integrar os dados assim obtidos ao contexto social e cultural em
questo, descobrir as opes reais de residncia de que as pessoas dispem, e no
apenas se deter na classificao da residncia dos casais tomados individualmente
(Goodenough 1956: 4). Levando em conta a posio deste autor, possvel afirmar que
os apiaks sustentam um ideal de residncia uxorilocal temporria, infletido pelo peso
poltico do sogro, que pode reter em sua casa alguns filhos do sexo masculino, as filhas
e tambm os genros.
O desejvel que um casal deixe a casa dos pais da moa aps o nascimento
do primeiro filho e v constituir uma famlia conjugal, geograficamente prxima quela
casa. A proximidade espacial entre me e filhas adultas garante cooperao no trabalho
na roa, na preparao de certos alimentos e na socializao das crianas, ao passo que a
proximidade entre um homem, seu(s) genro(s) e cunhado(s) normalmente assegura
apoio poltico. Com efeito, a aliana matrimonial com consanguneos distantes ou com
forasteiros conhecidos a base da organizao sociopoltica apiak, sendo que a
proeminncia poltica de um homem depende em grande parte de sua capacidade de
manter junto a si filhos do sexo masculino, filhas, genros, cunhados e compadres.
A cristalizao de famlias extensas desse tipo pode assumir a forma de
conjuntos residenciais ou clusters em aldeias grandes (com mais de 100 pessoas), como
se observa no Mayrob (ver Figuras 3.1 e 3.2). Quando os cnjuges so de aldeias
distintas, aps o rapaz prestar o servio da noiva, o casal pode escolher entre
permanecer na aldeia dos pais da moa ou se mudar para a aldeia do pai do rapaz.
Diversos fatores so ento avaliados, como o prestgio do pai de cada cnjuge, as
condies materiais de vida, o peso do estatuto de forasteiro(a) em cada aldeia, a
existncia de outros membros da famlia extensa do forasteiro para a aldeia de destino, o
fato de um dos cnjuges ser assalariado, entre outros.

161

Examinemos um caso concreto. Uma mulher kaiabi nascida na aldeia Tatu


(Rio dos Peixes) casou-se com um homem apiak pertencente parentela Morim; no
primeiro ano de casamento, o casal viveu no Tatu (uxorilocalmente, portanto), mas
depois se mudou para o Mayrob, onde a mulher tornou-se professora. Os irmos adultos
deste homem requeriam sua permanncia na aldeia, e diziam no se incomodar com o
fato de sua esposa ser kaiabi porque conviviam com sua famlia h tempos (isto , desde
o realdeamento dos apiaks, nos anos 1960). Do ponto de vista da mulher, a mudana
de aldeia no representava grandes problemas, uma vez que ela no era hostilizada,
tinha um bom emprego, integrara-se parentela apiak mais importante, continuava
perto de seus irmos e sobrinhos (o Tatu fica a poucos quilmetros de distncia do
Mayrob; a viagem pode ser feita de caminhonete, voadeira, canoa ou mesmo a p) e,
aparentemente, se sentia feliz no Mayrob, que considerava uma aldeia bonita e
organizada.
Mais recentemente, a filha da irm desta mulher, rf, casou-se com outro
homem influente da parentela Morim e mudou-se para o Mayrob, onde vive muito
bem. Os filhos dessas mulheres so considerados apiaks. As duas mulheres visitam o
Tatu frequentemente e tambm recebem visitas de alguns parentes kaiabis. Por ocasio
de uma festa de branco (descrita acima), as duas mulheres veiculavam a boca pequena a
inteno dos kaiabis de colocar barreiras na estrada para que os convidados dos apiaks
no pudessem chegar ao Mayrob. Quando os kaiabis do Tatu tomam alguma atitude
que desagrada os apiaks, os nomes e a etnia dessas mulheres sempre so lembrados
com algum rancor.
Outro elemento importante que no revelado pelos nmeros a marca
geracional dos casamentos recenseados, que decorre da poltica matrimonial levada a
cabo pelos apiaks na ltima dcada. Nos anos 1980, assim que recobraram as
condies mnimas para a reproduo sociocultural, designadamente uma aldeia prpria
e um contingente de pessoas casveis, os apiaks comearam a incentivar casamentos
entre pessoas conhecidas, o que inclua alguns kaiabis do Tatu com quem haviam
estabelecido relaes amistosas e tambm os membros de uma famlia extensa
munduruku unidos ao velho Andr Morim por laos de afinidade e compadrio (ver
captulo 5 sobre a formao de cada aldeia apiak). Dessa forma, as pessoas que se
casaram antes dos anos 1990 ainda estabeleceram unies mistas, o que passou a ser
evitado paulatinamente. Cada vez mais os jovens apiaks tm optado por cnjuges
apiaks, em detrimento dos kaiabis, mundurukus e brancos vizinhos. Atualmente, os
162

jovens do Mayrob tm mais facilidade que os do Mairowy para obter esses cnjuges
socialmente aprovados (ver adiante).
A despeito da preferncia pelo casamento com parente distante, de um modo
geral, para os apiaks, os estranhos so afinizveis: todo aquele que estabelece uma
relao (poltica, econmica, profissional etc.) amigvel passvel de familiarizao
e, assim, pode se tornar um afim pela via do casamento. Os Outros, signos da alteridade
radical, no so os afins, so segmentos embebidos de histria, so, como veremos no
captulo 4, marcos espciotemporais vivos os Pombos no Mairowy, a famlia extensa
Kamassori no Mayrob.
Observo, ainda, que o nmero de homens no Mairowy e no Mayrob supera
ligeiramente o de mulheres (48 contra 45 na primeira aldeia, 106 contra 102 na
segunda), e que a populao de ambas as aldeias bastante jovem, com
aproximadamente 67,5% de pessoas menores de 20 anos no Mairowy e 66,5% no
Mayrob; a porcentagem de pessoas com mais de 50 anos muito baixa em ambas as
aldeias, como se pode constatar na Tabela 3.4 adiante.

3.4- Dar, receber, retribuir


O ideal de vida social apiak baseia-se na generosidade. Dar, receber e retribuir
so de fato consideradas obrigaes fundamentais. Nas aldeias apiaks, praticamente
inexiste acumulao stricto sensu; quase tudo que produzido ou obtido rapidamente
consumido. Acumular, reter, recusar-se a dar so atitudes associais; a mesquinharia,
sobretudo a alimentar, o pior defeito de uma pessoa, e no tolerada nem mesmo
entre crianas muito pequenas. Os sovinas so mal-vistos e mal-falados. Dessa forma,
o objetivo das trocas no obter o maior lucro possvel nem tampouco desprezar
completamente qualquer ganho material para subjugar os co-residentes em termos de
prestgio; o problema das trocas nas aldeias apiaks consiste no dilema de continuar
respeitando a lgica alde da reciprocidade num contexto externo (capitalista) em que a
capacidade de reter objetos industrializados confere prestgio. Dada a longa e intensa
insero dos apiaks na economia de mercado, o ponto a sublinhar sua habilidade em
manter em funcionamento a zona cinzenta da ddiva (ver Diagrama 3.1). Neste
sentido, as pessoas influentes, especialmente os caciques, vivem de modo
particulamente aflitivo, j que almejam obter reconhecimento em dois mundos distintos,

163

o da aldeia e o da cidade, e tm de manejar os respectivos cdigos de conduta; sua


balana, contudo, normalmente pende para o lado dos parentes.124
As formas de circulao de alimentos e objetos no interior das aldeias apiaks
so basicamente a partilha, a ddiva e a compra/venda. A troca mercantil discreta,
mediada por dinheiro, ocorre apenas com pessoas de fora da aldeia, seja com brancos,
seja com povos indgenas vizinhos.125 As ferramentas agrcolas fornecidas pela Funai
so concebidas como ddivas.126 Os apiaks no realizam trocas cerimoniais intertribais
nem tampouco se organizam formalmente em grupos para trocar cnjuges ou objetos,
como fazem diversos povos da Oceania, terra natal da teoria clssica sobre a ddiva.
No entanto, muito daquilo que se escreveu sobre a troca nas ilhas do Pacfico, desde
Malinowski e Mauss, nos ajuda a pensar sobre as transaes de alimentos e objetos
realizadas pelos apiaks.
As diversas modalidades cotidianas de circulao econmica entre os apiaks
associam-se a diferentes crculos de pessoas, sendo possvel estabelecer uma
classificao em termos de crculos concntricos de intimidade por meio dos tipos de
transaes. Assim, enquanto a partilha ocorre mais intensamente no interior da casa, a
troca de ddivas se d no interior da famlia extensa e pode ligar duas ou mais casas, e a
venda singulariza relaes estabelecidas com co-residentes no-aparentados ou
remotamente aparentados, suscitando em geral sentimentos negativos: um tracaj
comprado a um co-residente pode fazer mal a quem dele comer, visto que foi
sovinado (no foi dado, como seria o correto, mas vendido); uma mulher que comea
a ter azar com as criaes deve ter se recusado a vender um pato para uma co-residente;
a farinha comprada a um parente distante sempre de qualidade inferior quela que o
comprador costuma fabricar e assim por diante.
Ademais, existe um tipo de pedido retrico que funciona como termmetro da
relao entre duas pessoas ou duas famlias mais ou menos prximas; quando um coresidente influente deseja, digamos, ovos de tracaj que sabe existir na casa de um

124

O nico cacique apiak que desprezou a lgica da ddiva foi proscrito (ver captulo 5). Todos os
caciques com quem convivi so categricos ao afirmar que preferem viver entre parentes a se mudar
para a cidade, apesar do peso representado pela posio de chefia e da dificuldade em obter o
reconhecimento dos seus.
125
No quero negar o interesse propriamente mercantil dos apiaks em algumas transaes nem tampouco
o eventual aspecto mercantil de trocas do tipo ddiva. Por ora, pretendo apenas enfatizar que
transaes que primeira vista parecem puramente mercantis esto inseridas na lgica da ddiva e do
ensejo a complicados clculos sociais no horizonte do parentesco e da poltica alde. Este um ponto
que evidentemente exige mais pesquisa de campo e uma anlise mais acurada.
126
Geralmente, so entregues aos caciques, que as redistribuem para todos os homens da aldeia.

164

parente distante, envia um filho ou sobrinho solteiro at a referida casa com a misso de
comprar a iguaria. A criana deve dizer algo como: Papai quer comprar ovos, frase
que d ensejo a complexos clculos sociais, uma vez que, por exemplo, se o dono dos
ovos os entregar a ttulo de ddiva, ser instado por outros co-residentes a fazer o
mesmo e poder ver o alimento desaparecer dentro de minutos; por outro lado, se fixar
um preo para os ovos, ter de arcar com as conseqncias do fato de que o co-residente
influente entender que o dono dos ovos no lhe tem em alta conta nesse momento. Em
suma, a venda dentro da aldeia concebida negativamente como uma interrupo do
circuito de ddivas.
Num artigo instigante em que analisa o processo de reproduo social na antiga
Melansia, A. Gell (1992) prope que a troca de mercadorias o prottipo para o
regime de troca de ddivas reprodutivas e no o contrrio. De acordo com o autor:
o que distingue ddivas de mercadorias o contexto social de uma
transao particular, e no o carter da relao entre pessoas e coisas
(alienveis/no-alienveis)
ou
entre
pessoas
e
pessoas
(independentes/dependentes). (...) ddivas so transaes de objetos que
ocorrem no cenrio contextual da reproduo social atravs do casamento, da
afinidade e da aliana. Transaes de mercadorias so transaes de objetos
num cenrio definido como comrcio, escambo e equivalentes. (Gell 1992:
146, nfase no original)
A distino proposta por Gell entre trocas mercantis, que estabelecem parcerias
comerciais, e transaes que integram o processo de reproduo social, o qual condensa
uma moral associada domesticidade, til para analisar o caso dos apiaks.127
Contudo, julgo relevante dividir as transaes que integram o processo de reproduo
social em partilha e troca de ddivas.
O fluxo intenso de alimentos e objetos que une firmemente pais e filhos no
pode ser visto como ddivas puras ou livres; trata-se, antes, de dever familiar, de uma
obrigao moral relacionada a agencialidades complementares (ver a discusso sobre a

127

A. Weiner (1980) tambm prope um modelo de reproduo que leva em conta a regenerao de
pessoas, objetos e relaes, cujo conceito central seria o de substituio. A autora focaliza a interao
do ciclo vital das pessoas com as trajetrias dos recursos materiais e imateriais em meio aos cls
trobriandeses, e afirma que, diante dos problemas envolvendo a morte natural e a feitiaria, os processos
de regenerao constituem uma tentativa de fazer frente ameaa constante de deteriorao, degenerao,
infertilidade e perda (Weiner 1980: 72). A incorporao do aspecto temporal dos processos de troca e do
clculo subjacente a toda relao de reciprocidade, dimenses enfatizadas por P. Bourdieu, leva a autora a
estabelecer que os objetos no criam obrigaes apenas entre dois indivduos ou dois grupos, mas, de
outro modo, no curso de sua circulao, ao longo dos anos, relaes sociais mais amplas so
reproduzidas, nutridas e regeneradas (: 80). O conceito de reproduo igualmente central para C.
Gregory (1982), que segue Marx ao estabelecer que a reproduo de objetos e pessoas forma uma
totalidade em que os processos de produo, o consumo, a distribuio e a troca so inextricveis.

165

complementaridade produtiva entre homens e mulheres). Como sugeriu Gell, a partilha


que caracteriza as relaes domsticas remete a uma economia indgena de servios
deflagrada pelo casamento, que se ope troca mercantil (Gell 1992: 152), uma vez que
esta ltima permite s pessoas escapar s obrigaes morais e obter vantagens materiais.
Para os apiaks, os pais tm a obrigao de alimentar e vestir os filhos, o genro tem a
obrigao de cooperar com os sogros nas atividades produtivas, enquanto os demais
membros da famlia extensa tm a obrigao tcita de atender os desejos uns dos outros
por meio de ddivas (especialmente de alimentos), muito embora tais obrigaes no se
exprimam sob a forma de exigncias verbalizadas, mas de dever familiar tcito, o qual
se estende aos compadres. Por sua vez, cnjuges podem fazer exigncias recprocas.
Trocas mediadas por dinheiro ocorrem fora da famlia extensa, constituindo o modelo
para as interaes com os kaiabis e mundurukus de outras aldeias e com brancos
regionais.
As ddivas que ocorrem no interior da famlia extensa baseiam-se na
complementaridade produtiva das pessoas e se caracterizam por certo grau de
ambiguidade. Assim, um casal que possui uma grande roa e capaz de produzir
bastante farinha pode, por exemplo, prover a casa da irm da mulher com este produto,
esperando receber em troca alimentos industrializados, comprados com o salrio do
marido dela. No necessrio nenhum pedido explcito por parte de um dos casais, e a
meno a dinheiro vivo seria considerada uma ofensa. Pedir algo a outrem, alis, algo
que se faz com muita cautela, visto que todo pedido obriga a uma retribuio no futuro e
enseja consideraes sobre o status de quem pediu. Percebe-se que o dinheiro no afeta
tanto relaes entre parentes prximos, podendo mesmo se transformar em ddiva no
interior da famlia extensa; neste ponto realiza-se a transio da economia mercantil
para a economia de ddivas.
Como se v no diagrama abaixo, as trocas sob a forma de ddiva (2)
constituem uma zona cinzenta entre os crculos respectivos da partilha (1) e da troca
mercantil (3):

166

Diagrama 3.3: Modos de circulao de objetos e nichos de intimidade

********
A comercializao de alimentos mais intensa no Mayrob que no Mairowy,
mas os moradores de ambas as aldeias recriminam todo ato de compra e venda ocorrido
dentro da aldeia, lamentando o fato de que o costume do branco esteja ganhando
espao na comunidade: Antes no era assim, se Fulano pescava muito tracaj,
distribua para todas as casas. Hoje no, j vende. Muitos ganham salrio e podem

167

pagar.

128

Com efeito, a introduo de salrios modificou o padro de consumo das

famlias, mas preciso deixar claro que na aldeia no existe operao de compra-venda
propriamente, mas uma relao de troca mercantil protelada, baseada na confiana, uma
vez que quase ningum guarda dinheiro vivo em casa. A despeito do nmero crescente
de assalariados, o dinheiro ainda no foi plenamente incorporado pelos apiaks,
continua sendo uma virtualidade. O dinheiro fica depositado no banco, na cidade; s
retirado quando seu portador vai at l, e l mesmo gasto, integralmente. Aquilo que
chega aldeia so os objetos comprados por meio do dinheiro. Assim, quando algum
compra um tracaj de um co-residente, normalmente compra fiado, isto , comprometese a pagar quando sair o salrio.129
Ocorre que, durante o intervalo de tempo entre a compra e o recebimento do
salrio, muita coisa pode acontecer. O comprador pode, por exemplo, lembrar-se de
que, h alguns meses, aquele que lhe vendeu o tracaj havia-lhe comprado uma lata de
farinha, sem jamais ter efetuado o pagamento; a dvida fica assim quitada, ao menos da
perspectiva de uma das partes, e no se fala mais nisso isto , no se fala sobre o caso
com o credor/devedor, mas sempre se fala a seu respeito boca pequena. Mas tambm
pode ser que no haja crdito anterior presente compra (ou que ele seja to antigo que
acabou sendo esquecido), e o pagamento em dinheiro acaba sendo feito. De todo modo,
a compra mediada por dinheiro no se baseia numa quantidade fixa pr-determinada;
comum, por exemplo, que uma pessoa que comprou um quilo de tapioca a R$10,00 de
uma co-residente no-aparentada, ao ver sua proviso findar, mande um filho casa da
vendedora pegar mais tapioca (sem realizar novo pagamento). como se o dinheiro
fosse convertido em ddiva: a compra no um fim em si, mas uma troca
momentaneamente desequilibrada que enseja uma espcie de direito do comprador
sobre a produo do vendedor.
Alm de certos alimentos, produzem-se e vendem-se na aldeia tipoias (vegetais
e de tear), cestos e peneiras de fibra vegetal, remos, canoas, bordunas, colares, brincos e
pulseiras de sementes e miangas. O preo desses objetos estipulado a partir de uma
128

129

O escambo, ou troca imediata e formalizada de um objeto por outro, sem recurso a dinheiro, uma
prtica pouco frequente entre os apiaks, e no goza da mesma inportncia que a ddiva e a relao de
compra e venda (a crdito ou em dinheiro).
No cheguei a investigar a forma como o valor monetrio de um alimento determinado, mas notei
uma certa equivalncia entre os preos de peixes praticados na aldeia e aqueles praticados nas cidades
frequentadas pelos indgenas. Por vezes, o pescador pode exigir um preo mais elevado, a depender
das circunstncias da pescaria; assim, podem compor o clculo do valor do peixe a quantidade de
anzois gastos, o tempo de luta com o peixe, a distncia percorrida a remo at o ponto do rio onde se
pescou etc.

168

srie de fatores, dentre os quais o tipo de relao que se tem com o comprador, o nvel
de esforo despendido para sua produo e o conhecimento sobre a quantia de dinheiro
de que ele dispe no momento da transao. O pagamento por tais objetos mais
rigoroso que o pagamento por alimentos. Dentro da famlia extensa, eles normalmente
circulam como presentes. raro que algum produza um alimento ou objeto destinado
exclusivamente para a venda, exceo feita castanha-do-par. s vezes, um coresidente encomenda, digamos, um remo a outro homem, sem que se estabelea prazo
de entrega ou valor. A transao em si pode demorar semanas para ocorrer, e possvel
que o comprador desista do negcio nesse meio-tempo. Jamais se oferece um objeto
para que um co-residente o compre; a motivao para a transao sempre parte do
comprador, que normalmente tem informaes prvias sobre o alimento/objeto em
questo.
A venda, troca mediada por dinheiro (troca mercantil propriamente),
considerada uma relao apropriada apenas com forasteiros, especialmente os brancos.
Para eles vendem-se castanha-do-par, farinha, artesanato, peixes grandes, aa (mas
no carne de caa); deles compra-se uma srie de alimentos industrializados e objetos
que conferem status ao portador: roupas em geral,130 bolsas, cintos, chinelos, sapatos,
culos escuros, relgios, perfumes, celulares, lanternas, espingarda, bijuterias,
miangas, maquiagem, tesouras, anzois, linha de nilon para pesca, isqueiros, pratos,
copos, panelas, talheres, garrafa trmica, potes de plstico, aparelhos de TV,131 de som e
DVD, rdio, bicicleta, fogo a gs, mveis de fbrica (especialmente cama, colcho,
mesa de jantar e cadeiras). Os alimentos industrializados considerados bsicos so: sal,
acar, caf e leo. Mas nas casas mais abastadas h alimentos finos e guloseimas como
arroz, feijo, macarro, leite, suco em p, po e biscoitos. Alm disso, sabo em barra,
esponja de ao, escovo, bacias, fsforos, velas, pilhas e munio so produtos
considerados indispensveis. As mercadorias mais raras e mais apreciadas so balas,
bombons e cigarros. A medida de status de uma pessoa estabelecida no apenas pela
qualidade dos objetos que se possui e consome, mas tambm pela quantidade de que se

130

As pessoas mais abastadas possuem, alm de roupas simples para o dia-a-dia, roupas mais elegantes
para as festas na aldeia e as idas cidade.
131
Em 2007, no Mairowy, apenas uma professora possua aparelho de TV; no Mayrob, oito pessoas
tinham TV em casa. Os donos de TV normalmente deixam a porta de casa aberta para receber coresidentes que queiram assistir a.

169

dispe.132 Nas aldeias apiak, a casa do cacique aquela em que se v a maior


quantidade e variedade desses objetos.
preciso sublinhar que a acumulao concebida como legtima apenas na
medida em que permanece como etapa anterior distribuio. Como veremos no
captulo 5, quando o cacique falha como distribuidor de objetos exgenos, deixa de
contar com o apoio dos afins e demais co-residentes.
Inseridos num regime de valor (Appadurai 1986) distinto daquele que os
produziu, tais objetos servem a propsitos especficos. Nesse sentido, o cacique de uma
das aldeias onde morei esforava-se por exibir maneiras mesa altamente civilizadas na
minha presena, auxiliado por um jogo de jantar de porcelana e um jogo de talheres
recm-adquiridos na cidade, demonstrando grande conhecimento de um estilo de vida
que sabia ser o meu, pensando conquistar assim minha considerao e maior prestgio
junto a seus co-residentes, que costumavam assistir a nossas refeies admirados. Este
homem havia aprendido maneiras civilizadas durante os anos em que trabalhara como
braal em fazendas no regio do Rio dos Peixes.
S. Hugh-Jones (1992) chama a ateno para a necessidade de levar em conta o
papel ativo dos indgenas no comrcio intertnico, especialmente o dos middlemen, de
modo a articular as trocas realizadas dentro da aldeia s transaes econmicas com os
brancos. Ele afirma que visitar, trabalhar e comerciar com os brancos visto
simultaneamente como um meio de adquirir mercadorias, um passatempo, uma forma
de entretenimento, uma forma de estabelecer contatos com forasteiros e um fim em si:
a associao com forasteiros representa (...) a oportunidade de adquirir conhecimento e
experincia no mundo exterior e de adquirir status e prestgio aos olhos dos outros
indgenas e dos brancos (...) parte do valor dos bens manufaturados reside no ato de
obt-los, no contexto em que foram obtidos e nas pessoas de quem se os obteve (HughJones 1992: 67). O perodo de convivncia com brancos pode ser encarado como uma
espcie de rito de passagem masculino. O autor tambm relaciona o maior acesso a
mercadorias a mudanas polticas nas relaes entre homens e mulheres, jovens e
velhos. No captulo 5 tratarei do papel da interao poltica e econmica com os brancos
na configurao contempornea da chefia apiak.
No que se refere minha estada nas aldeias, observo que com o tempo as
pessoas comearam a me pedir objetos que me pareciam despropositados porque eu no
132

Igualmente, ces grandes de caa e ces menores, de estimao, obtidos na cidade, so expresses de
status de um casal.

170

conseguia reconhecer seu valor de uso naquele contexto (como, por exemplo, uma
mulher analfabeta que queria um relgio de pulso), e tambm passaram a me fazer
presentes de alimentos e artesanato. Aos poucos percebi que os pedidos e os presentes
pouco tinham a ver com a utilidade das coisas em si; eles exprimiam, antes, o desejo
de se relacionar comigo, de estabelecer um vnculo, de obter de mim uma lembrana
que persistiria aps minha partida. Quando retornei ao Mairowy, um ano aps minha
pesquisa de campo, a maioria dos objetos que eu havia dado s pessoas j no existia,
mas, durante conversas descontradas, as mulheres falavam com alegria daquela bacia
de plstico que fora quebrada por uma neta descuidada, daquela presilha despedaada
por uma filha pequena, daquele pano de prato que se puiu com o uso, daquele sabo que
durava mais que os outros etc.
Mesmo a troca mediada por dinheiro raramente vista como um fim em si; os
homens influentes costumam convidar os regates ou compradores de castanha que vo
at a aldeia para almoar ou tomar um caf, prtica da qual se vangloriam; por outro
lado, tornam-se fregueses de determinadas lojas na cidade e, quando so bem-tratados e
fazem amizade com o gerente ou o dono da loja, convidam-no para ir passar um fim de
semana na aldeia. Estabelecer uma relao amigvel com o forasteiro que dispe de
dinheiro ou mercadorias to importante quanto o pagamento ou as mercadorias. O
dinheiro concebido pela maioria como um mal necessrio, algo de que se precisa para
adquirir uma lista cada vez mais extensa de itens que no se pode produzir, alguns dos
quais so valorizados exatamente porque so produzidos fora da aldeia.
Trocas mercantis tambm podem dar ensejo a alianas polticas supra-aldes, e
vice-versa. Os apiaks do Mayrob comentam, por exemplo, que vendem farinha para os
kaiabis do Tatu; a parceria comercial estabelecida entre homens por vezes se traduz em
apoio poltico em questes que envolvem a interao com o Estado, a despeito da
hostilidade velada entre esses povos. De outro modo, os moradores do Mayrob recorrem
aos pajs kaiabis quando enfrentam problemas de natureza espiritual; a esses pajs do
anzois, linha de pesca, fumo, miangas e outros produtos industrializados de valor
relativamente baixo, diferente do pagamento em dinheiro que se faz a pajs
provenientes do Parque do Xingu, chamados a resolver os casos mais graves.
A distino entre partilha e relaes de compra/venda pe uma questo
importante do ponto de vista da aliana matrimonial: as mesmas unidades (famlias
extensas distintas ou aldeias) que realizam trocas mercantis so aquelas que trocam
cnjuges, ou seja, os cnjuges so obtidos no mesmo lugar em que so obtidas
171

mercadorias ou dinheiro.133 Neste sentido, os cnjuges so sempre gente de fora.


Bem, a obrigatoriedade de distribuir comida e objetos sob a forma de ddiva mais
premente no interior da famlia extensa, e digno de nota que a comensalidade seja
tanto mais intensa quanto maior a proximidade fsica entre as casas, que podem vir a se
organizar em conjuntos residenciais, como vimos.
Significativamente, ao mesmo tempo em que o parente afim produz
consanguneos (ver captulo 4), as relaes mercantis tendem a tornar-se trocas de
ddivas. Aqui no tenho em mente apenas o servio da noiva que o jovem genro deve
prestar ao sogros, quando o alimento e os objetos so consumidos sob a forma de
partilha (ver Gell 1992: 155). Penso, por exemplo, em ocasies como esta: quando uma
mulher envia uma panela com tapioca como presente para a me de seu genro, espera
uma retribuio, que jamais imediata;134 dias ou semanas depois, quando, digamos, o
marido da mulher presenteada fizer uma pescaria abundante, parte do peixe ser
destinada primeira mulher. Esta transao assume a forma de ddiva, assim como a
maioria das transaes entre famlias extensas unidas por um casamento. Trata-se
basicamente da operao de transformar o distante em ntimo, estruturada pela equao:
cnjuge est para familiaridade assim como dinheiro/objetos industrializados esto para
ddiva.
Essas trocas tambm contribuem para impedir a coincidncia entre a unidade
de produo e a unidade de consumo, anulando assim o potencial de autonomia
econmica da famlia conjugal e tambm o da famlia extensa (ver Stolze Lima 1986:
69 para uma situao anloga entre os jurunas, cujas famlias extensas fazem ddivas de
peixes entre si). Com efeito, as famlias extensas apiaks produzem o suficiente para seu
prprio sustento, mas sua preocupao principal no com a capacidade produtiva da
famlia extensa, tida como inquestionvel, e sim com o estabelecimento/consolidao de
relaes com as demais famlias extensas, nos termos de uma economia de ddivas (ver
Gregory 1982: 101). A produo e o consumo so fenmenos eminentemente coletivos.
Podemos afirmar, parafraseando M. Mauss, que a vida nas aldeias apiaks
um constante dar e receber (Mauss 2003: 226, citando Malinowski), configurando-se
uma teia em que as pessoas se obrigam mutuamente por meio das coisas (: 216). Ao se
dedicar s formas de troca vigentes em diversas sociedades primitivas, Mauss
133

134

Esclareo que as famlias extensas e as aldeias no atuam como grupos de troca, seja de objetos, seja
de cnjuges. A organizao do parentesco ser discutida no captulo 4.
de bom-tom um casal convidar os pais de um genro ou de uma nora para participar de refeies
especiais, compostas de alimentos industrializados.

172

comentava que uma parte da humanidade, relativamente rica, trabalhadora, criadora de


excedentes importantes, soube e sabe trocar coisas considerveis, sob outras formas e
por razes diferentes das que conhecemos (: 231). Todas as trocas realizadas pelos
apiaks, seja sob a forma de ddiva, seja sob a forma mercantil, fazem com que os coresidentes

fiquem

mutuamente obrigados,

formando-se uma densa teia de

interdependncias que se dilata e se contrai dia a dia. Dada a obrigao inelutvel de


retribuir, uma nica ddiva suficiente para desencadear um conjunto virtualmente
infinito de contra-ddivas e novas ddivas, de modo que a reciprocidade baseia-se, aqui
como em toda parte, no constrangimento. precisamente a isto que Mauss se refere
quando define a ddiva como fenmeno social total: as prestaes econmicas no
so dissociveis da moral, da poltica, da religio, da esttica (: 187).
A tese de Mauss sobre a troca de ddivas, classificada como troca de objetos
inalienveis entre pessoas num estado de dependncia recproca, foi empregada por C.
Gregory (1982) como fundamento da economia de ddivas, em oposio conceitual
economia mercantil, na qual a troca estabelece uma relao entre os objetos (Gregory
1982: 19). O autor explica que, em economias de ddivas, o consumo predomina sobre
a produo, uma vez que o ato de consumir converte coisas em pessoas (: 90). Seguindo
Gregory, M. Strathern (2006) afirma que a lgica da ddiva constitui uma forma de
conceber os objetos como instrumentos de relaes, numa economia em que o consumo
de objetos visa a produo de pessoas a produo consumptiva, conceito presente na
obra de Marx. O carter compulsrio de retribuir uma ddiva no assenta pois sobre o
objeto, mas sobre a relao em si, sobre o vnculo que foi estabelecido ou reforado.
Para a autora (Strathern 1992), o valor reside naquilo que os objetos revelam a respeito
das aes das pessoas. Na economia de ddivas, os princpios que norteiam a troca de
objetos devem ser explicados com referncia ao controle sobre nascimentos, casamentos
e mortes, e no ao controle sobre a fora de trabalho (Gregory 1982: 101); as coisas so
criadas pela transao, no pelo trabalho as coisas so sobretudo instrumentos das
relaes.
Inspirada na tese de C. Gregory (1982), Strathern delineou assim o contraste
entre duas grandes metforas do modo de organizao das relaes sociais e de
produo da desigualdade: a metfora mercantil, que pode ser utilizada para definir a
economia poltica ocidental, baseada na propriedade de recursos, ope-se metfora da
ddiva, que caracteriza povos como os melansios, que organizam as relaes sociais
com base na transao de ddivas. A autora explica que ddiva versus mercadoria
173

um eixo ficcional para examinar uma srie de oposies entre diferentes sociedades:
se, numa economia mercantil, as pessoas e as coisas assumem a forma social de coisas,
numa economia de ddivas elas assumem a forma social de pessoas (Strathern 2006:
208).
A despeito das relevantes crticas polarizao analtica entre ddiva e
mercadoria, empregada por C. Gregory e M. Strathern (ver Appadurai 1986; HughJones 1992, entre outros), e a despeito do acesso crescente dos apiaks ao dinheiro e a
mercadorias, creio que a lgica da ddiva ainda predominante nas aldeias apiaks.
Tanto assim que a partilha (expresso da moral reprodutiva que caracteriza o mbito
domstico, de acordo com Gell 1992) e no a igualdade de condies ou o desejo por
objetos (caractersticos da parceria comercial, associada ao exterior do espao
domstico) que fornece o modelo para todas as relaes que tm lugar dentro da
aldeia, configurando as bases para a reproduo da comunidade como um todo.
As ddivas de alimentos entre famlias extensas e a celebrao peridica da
convivncia (banquetes festivos) selam relaes com parentes afastados, afins e
forasteiros, constituindo-se como eixo da sociabilidade alde, cifrada no idioma do
parentesco, de modo anlogo ao que P. Gow (1991) escreveu a propsito dos povos
nativos do Baixo Urubamba. Os apiaks acreditam que a convivncia alde, mediada
pela partilha de alimentos, crenas, costumes e valores morais, transforma os coresidentes em parentes. Com efeito, o pertencimento a uma comunidade apiak
depende tanto de uma conexo genealgica como do tipo de relao que se estabelece
com os co-residentes. Neste sentido, na comunidade o parentesco se torna verdadeiro
meio de vida. Assim como para vrios povos guianeses, a comunidade apiak um
fenmeno de parentesco, bem como, reciprocamente, o parentesco um fenmeno da
comunidade (Gow 1991: 195). A premissa subjacente a essas definies mtuas a de
que a ao funda a relao; sua inspirao a capacidade exibida pelos sistemas de
parentesco de absorver a mudana histrica. Na tese sustentada por P. Gow, o
parentesco se substancializa como memria dos cuidados recebidos ao longo da vida
o aspecto enfatizado nas relaes entre parentes no , pois, a descendncia ou o
vnculo genealgico, mas os laos afetivos. Os valores da comunidade so, portanto, os
valores do parentesco (: 2).
Assim, crianas so socializadas, parentes distantes tornam-se parentes de
verdade e forasteiros so domesticados de modo a imprimir-lhes as virtudes de
generosidade e pacifismo, reduzindo-se seu potencial de alteridade, para que mais
174

consanguneos sejam produzidos e a harmonia na comunidade seja mantida.135 Tais


valores constituem o substrato da organizao social e das personalidades individuais. O
coletivo, pensado como um corpo de parentes (cf. Viveiros de Castro 2002: 445),
consolidado pelo fluxo cotidiano de comida, mercadorias e ajuda mtua, e se ope a um
exterior habitado por ndios bravos, brancos civilizados, antigos inimigos e seres
encantados, imagens da alteridade com as quais os apiaks flertam de maneiras diversas.
No entanto, como veremos no prximo captulo, a alteridade tambm est inscrita no
corpo da pessoa e pode se manifestar sob a forma de agresses aos co-residentes.
Vamos, pois, aos parentes antes de nos dedicarmos aos Outros.

135

Me parece desnecessrio demonstrar o quo tnue a domesticao de forasteiros pela via da troca de
ddivas.

175

176

Legenda da Figura 3.1- Mairowy, 2007

1- casas
13 a- casa abandonada pela famlia conjugal que hoje habita a casa 13
I- casa de forno particular, pertencente aos donos da casa 15
II- casa de forno comunitria
III- depsito comunitrio
IV- posto de sade
V- casa da enfermeira
VI- cozinha comunitria

De um total de 15 casas, 10 (ou 66,5% aproximadamente) eram formadas por


um casal e seus filhos solteiros; 2 (ou 13%) por um casal e a me separada do rapaz,
alm de irmos pequenos deste; 1 (ou 6,5%) por uma viva e 5 netos solteiros; 1 (ou
6,5%) por um casal, seus filhos solteiros, uma filha separada com um filho pequeno; 1
(ou 6,5%) por uma viva e seus quatro filhos adultos solteiros. As duas principais
famlias extensas no chegam a formar arranjos residenciais como no Mayrob,
distribuindo-se, antes, em duas ruas (ver Figura 3.1). Registro, porm, que o rapaz
casado com a filha de uma mulher influente morou um ano na casa desta e, aps o
nascimento da primeira filha, construiu uma casa prpria ao lado da casa dos sogros. De
outro modo, um rapaz da famlia extensa marginalizada, ao casar-se com uma moa
cujo pai abandonara a famlia, foi morar na casa onde sua me separada vivia com trs
filhos pequenos, perto da casa ocupada pela av materna e os irmos da me dele;
rapidamente o rapaz assumiu a funo de provedor e, quando os moradores da aldeia se
referem quela casa, geralmente dizem a casa do Fulano, e no a casa da Fulana (sua
me).

177

178

Legenda da Figura 3.2- Mayrob 2007


1- casas
I- casa de forno comunitria
II- casa de forno comunitria
III- casa de forno comunitria
IV- cozinha comunitria
V- casa da enfermeira
VI- casa do enfermeiro
VII- casa do padre
VIII- caixa dgua
+ cemitrio

De um total de 37 casas, 25 encontravam-se na fase de expanso, compostas


por um casal e seus filhos solteiros, o que corresponde a aproximadamente 67,5%. As
demais casas eram habitadas por: i) um casal, filhos jovens e o cnjuge de um ou dois
deles (3 casas ou 8%); ii) um casal, filhos pequenos e jovens, o marido da filha e seu
filho pequeno (1 casa ou 2,5%); iii) um casal, filhos jovens e um ou mais netos
pequenos, nascidos de unies fortuitas de uma filha (2 casas ou 5,5%); iv) um casal sem
filhos (2 casas ou 5,5%); v) uma mulher bastante idosa, uma filha adulta e seu marido (1
casa ou 2,5%); vi) um casal com netos pequenos (1 casa ou 2,5%); vii) um vivo, dois
filhos e a filha da filha solteira (1 casa ou 2,5%); viii) um casal, seus filhos pequenos e
os irmos pequenos da mulher (1 casa ou 2,5%).136 As famlias extensas formam
arranjos residenciais de contornos mais ou menos ntidos. Assim, a casa no. 1 habitada
por uma filha do casal que habita a casa no. 5. A casa no. 7 habitada por um filho da
mulher que mora na casa no. 6. Esta mulher me adotiva da dona da casa no. 5. A casa
no. 2, a casa do cacique, est ao lado da casa de uma irm da esposa do cacique (no. 3),
de um irmo desta mulher (no. 4), e prxima casa dos sogros do cacique (no. 10). Na
casa no. 13 vive uma filha e, na no. 15, um filho do casal que mora na casa no. 18; na
casa no. 17, mora o irmo do dono da casa no. 17. As casas no. 21 e 22 so habitadas
pelas filhas do casal que mora na casa no. 20. Na casa no. 24 mora o filho do casal da
casa no. 23. Na casa no. 29 mora um filho e, na casa no. 30, uma filha do casal que vive
na casa no. 31; na casa no. 32 mora a irm da dona da casa no. 31.

136

Os valores das porcentagens foram arredondados.

179

Tabela 3.4: Aldeias apiaks em 2007

Nome da
aldeia

Ano de
fundao

Parentela mais
influente

Nmero de
habitantes

Localizao

Bom
Futuro

1976

Kamassori

58

Figueirinha

1998

Morim

33

Mairowy

1997

Kamassori

93

Mayrob

1982

Morim

208

Minhocuu

anos 1990

10

Pontal

2006

Kamassori

14

Vista
Alegre

anos 1990

Morim

14

margem direita do
rio Teles Pires,
curso baixo, TI
Munduruku (PA)
margem direita do
Rio dos Peixes,
curso mdio, TI
Apiak-Kaiabi
(MT)
margem esquerda
do rio Teles Pires,
curso baixo, TI
Kaiabi (MT)
margem direita do
Rio dos Peixes,
curso mdio, TI
Apiak-Kaiabi
(MT)
margem direita do
rio Teles Pires,
curso mdio, TI
Kaiabi (PA)
margem direita do
rio Juruena, curso
baixo (MT)
margem direita do
rio Teles Pires,
curso baixo, TI
Munduruku (PA)

Total137

137

430

No esto includos os ribeirinhos nem tampouco os apiaks vivendo em aldeias em territrios de


outras etnias e em cidades amaznicas.

180

Tabela 3.5: Distribuio da populao por sexo e idade

a) Mairowy, 2007 (93 habitantes)


Idade

Homem

Mulher

0 a 10 anos

24

21

11 a 20 anos

10

21 a 30 anos

31 a 40 anos

41 a 50 anos

51 a 60 anos

61 a 70 anos

71 a 80 anos

Total

48

45

b) Mayrob, 2007 (208 habitantes)


Idade

Homem

Mulher

0 a 10 anos

42

47

11 a 20 anos

26

23

21 a 30 anos

15

13

31 a 40 anos

41 a 50 anos

51 a 60 anos

61 a 70 anos

71 a 80 anos

81 a 90 anos

Total

106

102

181

Captulo 4- Somos todos parentes


Nos mesmos rios entramos e no entramos, somos e no somos.
Herclito. Alegorias, 24

Conforme ficou demonstrado no captulo anterior, a aldeia ou, mais


propriamente, a comunidade concebida pelos apiaks como o local adequado para se
viver com e como parentes. Neste captulo estudaremos a concepo de pessoa, a
organizao das relaes de parentesco e o lugar dos Outros.
Os apiaks concebem como negativo seu conhecimento fragmentrio da
genealogia, atribuindo-o disperso forada do povo: Ns vivemos espalhados, cada
famlia em um lugar, no crescemos na companhia dos nossos avs, no sabemos dizer
o nome de todos os parentes. Por outro lado, nomes de casais falecidos que chefiavam
famlias extensas importantes so lembrados pelos adultos (pessoas entre 20 e 40 anos,
que ainda no tm netos adultos).138 Assim, quando eu perguntava sobre o passado,
meus interlocutores mencionavam as seguintes pessoas da segunda ou terceira gerao
ascendente, jovens ou adultas nos anos de 1940: o finado Norberto Morim (no. 3 no
Diagrama 3.1) e suas sucessivas esposas Edna (descendente de arigs, no. 2), Jlia
(apiak, no. 4) e Teodora (kokama, no. 1); o finado Leonardo Kamassori (no. 5) e sua
esposa, a finada Dolores Paleci (n. 6); o finado Rinaldo Paleci (no. 19) e suas esposas
sucessivas Renata (apiak, no. 20) e Jlia (kaiabi, no representada); o velho Rodrigo
Hirowy (hoje, um centenrio bastante doente) e sua esposa Moema (munduruku),
falecida (no representados).
Um ascendente comum a pessoa de referncia em torno da qual se organizam
as relaes familiares. Assim, por exemplo, as pessoas representadas com os nmeros
45, 46, 47 e 48 no Diagrama 3.1 abaixo, bem como seus descendentes, se definem e so
reconhecidas como os filhos e netos de no. 33. Cada grupo de famlias extensas
identificado ao lugar onde viveu por mais tempo. Desse modo, os Morim so
associados ao Rio dos Peixes; os Kamassori, ao rios Anipiri e baixo Tapajs; os Paleci,
ao Anipiri e ao mdio Teles Pires.
A pouca profundidade da memria genealgica pode ser explicada pelo
processo histrico (em que se destacam as rupturas genealgicas resultantes de

138

Classifico tais pessoas na gerao 0. Os apiaks chamam de velhos(as) as pessoas que tm netos
casados ou em idade de se casar, o que geralmente ocorre por volta dos 45 anos.

182

massacres e epidemias) combinado ao costume de no pronunciar os nomes dos


mortos,139 mas, para compreend-la, devemos atentar tambm para a concepo de
parentesco elaborada pelos apiaks, que remete, sobretudo, memria de casamentos,
de processos de fundao e fisso de aldeias e da socializao de crianas.
Para os apiaks, os vnculos de parentesco podem ser infletidos pelas aes das
pessoas e, nesse sentido, tm de ser atualizados cotidianamente. O elemento mais
importante no processo de aparentamento a memria dos atos de partilhar e
dar/receber, especialmente alimentos. Os apiaks aplicam energia considervel no
cuidado de suas crianas. Homens adultos geralmente afirmam que precisam ganhar
algum dinheiro para comprar roupas, sapatos e guloseimas para os filhos.140 As mes
constantemente buscam obter miangas para confeccionar colares para as crianas. A
maioria dos adultos concorda em mandar as crianas para a escola e, diante de uma
doena mais grave, pagam pelo trabalho de um paj das redondezas ou exigem
atendimento mdico na cidade.
As famlias mais abastadas empenham-se em fazer festas por ocasio do
batizado, aniversrio ou casamento de um(a) filho(a). A relao entre pais e filhos
pequenos de carinho, preocupao e indulgncia; as crianas se sentem seguras e
felizes perto dos pais; os filhos so normalmente motivo de alegria para toda a famlia
extensa. Mes e pais de crianas que andam sujas, maltrapilhas e apresentam peso e
altura abaixo da mdia so recriminados veladamente pelos co-residentes. No ser capaz
de alimentar e cuidar de um filho um defeito imperdovel; homens e mulheres nessa
situao so francamente desprezados, parecem no ser considerados adultos plenos.141
A categoria de pessoa cujo estatuto depende em maior medida da atualizao
de laos sociais a de parentes distantes, na qual se encontram os cnjuges legtimos.
Os apiaks no dizem que praticam o casamento preferencial entre primos cruzados,
como os demais tupis, postulando uma distncia (social) maior nos casamentos

139

Os apiaks no gostam de falar sobre morte e vida post mortem. Schaden encontrou a mesma
dificuldade com os guaranis: Um dos assuntos de conversa mais difcil com um Guarani qualquer
que seja o subgrupo a que pertena o que se refere morte e s prticas funerrias. Tal o medo
dos defuntos que os informantes em geral emudecem logo que a conversa toque nesse domnio
(Schaden 1962: 134).
140
Muito embora as mulheres afirmem que os homens gostam de gastar dinheiro com bobagens, sendo
que s vezes eles consomem o salrio com divertimentos na cidade.
141
Em casos de grande penria, o cacique envia comida a ttulo de ddiva para uma famlia noaparentada ou remotamente aparentada; receber esta ddiva, porm, motivo de constrangimento e
expresso da situao marginal de uma famlia conjugal ou extensa. Como diria Mauss, a caridade
ofende aquele que a recebe. O ganho poltico obtido com a troca de ddivas, a partilha, o emprstimo
e a caridade ser analisado no captulo 5.

183

contemporneos. evidente que a prima paralela ser sempre a prima legtima, no


importando muito o tipo de relao afetiva que um ego masculino venha a estabelecer
com a filha da irm da me/filha do irmo do pai; neste caso, a proximidade do sangue
o elemento decisivo. Um filho da filha da irm, porm, pode ou no ser considerado
parente verdadeiro, a depender do lugar onde vive atualmente, das trocas que faz com os
membros da famlia extensa da me, do apoio poltico e da colaborao econmica com
tais parentes. Este Ffi de ego masculino pode, por exemplo, tornar-se um rival poltico,
ou ento mudar de aldeia e raramente visitar seus pais. A distncia espacial e emocional
leva os parentes distantes a esquecerem-se uns dos outros (ver Gow 1991: 167ss). Mas
este rapaz tambm pode permanecer na aldeia onde nasceu, pode ter uma boa relao
com, digamos, um filho do Imm, e tornar-se seu compadre aps o nascimento de um
filho. De outro modo, a irm desse rapaz pode se casar com um filho do filho do irmo
da me de sua me (FFImm).
Esse tipo de casamento retira parte do peso da uxorilocalidade, visto que o
rapaz recm-casado ir para a casa de uma mulher a quem chamava de tia antes do
casamento,142 com a qual normalmente tem uma boa relao. Aps o casamento, ele no
a chamar mais dessa forma, passando a usar apenas interjeies, como Hei!, !.
As duas famlias extensas formadas a partir de um par de irmos de sexo oposto voltam
a se unir aps uma ou duas geraes, como se fosse necessrio esperar algum tempo e
produzir alguma mistura (por meio de cnjuges no-aparentados ou remotamente
aparentados) antes de forjar a unio socialmente legtima, isto , entre parentes
distantes. Ambas as famlias extensas, unidas por um maior ou menor fluxo de
alimentos e objetos, passam a estar unidas agora por uma aliana matrimonial, o que
leva a uma intensificao no fluxo de alimentos e objetos sob as formas de partilha e de
troca de ddivas. O que se verifica, portanto, a possibilidade sistmica de transformar
consanguneos distantes em afins imediatos tanto pela via do compadrio como pela via
do casamento, sendo que tais arranjos contribuem para a produo de mais
consanguneos, como ser discutido adiante.
Por outro lado, existe a convico de que um forasteiro (branco, kaiabi,
munduruku ou membro de outra etnia do Mato Grosso) que demonstre uma atitude
amigvel em relao aos apiaks tem potencial para viver com e como os apiaks.

142

Os apiaks chamam de tio e tia aos primos cruzados e paralelos dos pais. Cada cnjuge deve chamar
os parentes consanguneos do outro pelos mesmos termos que este utiliza; assim, todos os avs,
tios(as), primos (as) e sobrinhos (as) de um homem sero tratados da mesma forma por sua esposa.

184

Demonstrar simpatia, respeito, educao e deferncia, compartilhar certos hbitos,


especialmente os alimentares, ter interesse pela cultura so atitudes que habilitam uma
pessoa a ser aceita pela comunidade. Dessa forma, virtualmente qualquer aproximao
avaliada como positiva pode levar incorporao do forasteiro, que convidado a
morar na aldeia e encorajado a procurar um cnjuge apiak.143 Se o forasteiro segue as
regras estabelecidas, se se mostra trabalhador, se participa do circuito de ddivas de sua
famlia extensa e no se ope abertamente aos homens influentes, dentro de alguns anos
ele ser plenamente aceito como um membro da comunidade. Seus filhos sero
considerados apiaks e em breve os laos de afinidade configurados no casamento
produziro laos de consanguinidade, aos quais podem se somar vnculos de compadrio.
Assim, a distncia social anulada pela via da afinidade. No espao de uma gerao o
forasteiro ter passado de co-residente a parente, muito embora sua condio de
estrangeiro no seja de todo anulada: seu estatuto certamente ser lembrado pelos coresidentes quando algo de errado ocorrer no mbito de sua famlia conjugal.
O grande empenho na construo de boas relaes entre os co-residentes
assenta-se na premissa de que todas as pessoas podem virar bicho e agir de modo
agressivo, pondo em risco a prpria existncia da comunidade. Comecemos pela
concepo apiak de pessoa.

4.1- A pessoa apiak


O nascimento e o casamento so os dois momentos na biografia da pessoa mais
valorizados pelos apiaks, enquanto a morte e a vida post mortem so minimamente
elaboradas do ponto de vista simblico. A teoria da concepo apiak prev a
participao distinta e complementar do pai e da me na produo de um novo ser.
Assim, enquanto o pai transmite o sobrenome, a me transmite um sangue mais
forte,144 com uma nuance, porm: os apiaks dizem que a filha do pai, enquanto o
filho da me, proposio enigmtica sobre a qual no consegui obter qualquer
informao mais detalhada.145
143

Embora os apiaks venham restringindo progressivamente o casamento com forasteiros, aceitam


aquelas unies em que o(a) forasteiro(a) se muda para a aldeia e se integra comunidade,
especialmente no Mairowy, onde os cnjuges apropriados (consanguneos distantes) so raros.
144
O sangue, o smen, o leite materno, o suor, as excrees, a gordura corporal e as lgrimas so ndices
da sade da pessoa cuja liberao desregrada pode afetar o bem-estar da famlia conjugal e de toda a
comunidade. Mais adiante discuto as restries relacionadas ao sangue menstrual.
145
Os apiaks nada me disseram a respeito do smen como formador da criana, nem tampouco sobre o

185

Hoje em dia, os casais jovens esperam alguns meses ou mais de um ano para
ter filhos, porque desejam concluir o ensino fundamental ou mdio ou porque
pretendem realizar curso tcnico ou superior, o que requer seu afastamento da aldeia.
Aqueles que so oficialmente casados, isto , que receberam as bnos de um padre,
so motivo de orgulho e alegria para as respectivas famlias. Idealmente, o jovem
marido se muda para a casa dos pais da esposa e toma parte ativa na maioria das
atividades econmicas desempenhadas pela famlia dela. A consolidao da famlia
conjugal se d com o nascimento dos filhos e se baseia tanto na partilha cotidiana do
alimento quanto na prtica do resguardo de parto.
A me da moa a primeira a saber que a filha est grvida e ambas aguardam
algumas semanas para dar a notcia famlia. No h grandes especulaes a respeito
do sexo da criana, mas todos desejam ter um nmero equilibrado de meninos e
meninas; o nmero ideal de filhos por casal parece ser quatro; casais que tm apenas
meninos ou apenas meninas, ou que tm mais de cinco filhos so motivo de comentrios
jocosos por parte dos co-residentes. Os apiaks conhecem duas plantas silvestres com
cujas folhas a mulher deve bater na pelve do homem para que o filho seja do sexo
esperado. Dizem que uma mulher no deve engravidar enquanto o filho mais novo ainda
mama, pois o lactente sugaria os olhos do irmo ainda no-nascido; o espao mnimo
entre duas gestaes parece ser de dois anos.
Logo a moa comea a fazer acompanhamento pr-natal no posto de sade da
aldeia, e em questo de dias todos os co-residentes ficam sabendo da novidade. A
gestante continua com suas atividades rotineiras at a vspera do parto, embora seu
estado inspire algum cuidado. A mulher grvida deve tomar banho com as folhas que se
depositam no suspiro da paca (buraco no cho por onde a paca sai, quando acuada)
para o parto ser fcil. Ela no deve passar sob a corda de um varal, sob pena de o cordo
umbilical se enrolar no pescoo do feto. Igualmente, no deve passar sobre a corda que
prende a canoa terra, seno seu filho nascer com cauda. Diz-se que mulheres que
esto esperando uma menina so perseguidas por calangos; j os urubus a abominam: o
papel de recipiente atribudo me por vrios povos tupi-guaranis. Perguntas diretas desse tipo, bem
como perguntas sobre a alma e seu destino post mortem, geravam intenso constrangimento e evasivas.
Os arawets, que apresentam uma teoria da concepo patrilinear, dizem que filhos so coisa do pai,
e filhas, coisa da me (Viveiros de Castro 1986: 417), mas tambm reconhecem o fundamento
bilateral da comunidade de substncia, mobilizada por ocasio do resguardo de doena (: 439). Por
sua vez, Schaden afirma que, entre os guaranis, a filha concebida como filha da me, enquanto o
filho concebido como filho do pai, isto apesar de na estrutura da famlia o parentesco ser
considerado bilateral e no bilinear e de, por exemplo, ser o pai sujeito couvade tambm quando lhe
nasce uma filha (Schaden 1962: 112).

186

urubu vomita quando a v porque a mulher no mata nenhum bicho que ele possa
aproveitar; grvidas no so atacadas por cobras, mas atraem onas. Elas no podem
participar de expedies de coleta de sava porque, em sua presena, as formigas no
saem dos buracos no solo (ficam pesadas demais e no conseguem alar voo). Tambm
no podem participar de excurses de pesca com timb, seno os peixinhos no
morrem.146 Se tocarem na cabea de uma criana pequena, os cabelos desta cairo. Os
apiaks contam que, antigamente, as mulheres solteiras que engravidavam eram
queimadas com seus filhos, porque os pajs diziam que eram filhos de bicho; a prtica
teria sido abandonada nos anos 1970, por influncia dos missionrios.
Se a gravidez considerada de risco, a mulher levada para a Casa de Sade
do ndio (CASAI) mais prxima, procedimento que as mulheres costumam evitar e que
inspira o descontentamento de seus parentes. Nas semanas que antecedem o parto, as
mulheres pertencentes s famlias mais abastadas j tero reunido fraldas de tecido
bordadas, roupinhas, miangas para fazer colares e pulseiras, bacia para os primeiros
banhos e um papeiro de alumnio. O parto no cercado de grandes mistrios. Os
apiaks me disseram que qualquer mulher que tenha muitos filhos pode desempenhar o
papel de parteira, e que o pai da criana pode assistir ao evento. O parto normal
acontece dentro da casa do casal, de onde pai, me e recm-nascido no devero sair por
pelo menos uma semana aps o nascimento.
Imediatamente aps o parto, me e filho devem tomar banho com gua morna,
dentro de casa. Mulher de resguardo coisa fina, no pode carregar peso, ter
aborrecimentos, ouvir barulhos extraordinrios ou espantar-se. Durante o resguardo, a
me s pode comer algumas aves, alm de peixes selecionados: piau (exceto a cabea,
se comer a cabea, os dentes da criana vm quebrados), aracu, pacuzinho, ou seja,
peixes de escama pequenos, que no contm muito sangue; tambm pode comer
mingau, arroz, macarro, farinha puba (mas as farinhas embuga147 e seca so mais
apropriadas), leite e caf. Como se nota, algumas comidas de branco auxiliam a
mulher a suportar o perodo do resguardo, pois no so classificadas como tabus. As
restries alimentares em geral condensam um simbolismo analgico.
146

A associao simblica entre relao sexual e o timb tambm postulada pelos kagwahivs, para os
quais proibido ter relaes sexuais antes ou durante pescarias com timb (Kracke 1978: 261).
147 A farinha embuga preparada com os caroos torrados que sobram quando se peneira a farinha
(crueiro), deixados secar ao sol por seis ou sete dias e, em seguida, pilados e torrados; a farinha
embuga deve ser misturada com sal de inaj, considerado fraco. Esta tambm a farinha ideal para
preparar mujica, prato em que o peixe cozido inteiro triturado com o auxlio de dois pauzinhos em
forma de cruz. Hoje em dia quase no se prepara a farinha embuga.

187

Carnes reimosas, como as dos peixes piranha, filhote, pintado, barbado, jandi,
mandub, ja e matrinx, peixes grandes, carnvoros e com muito sangue, so muito
perigosas, assim como o tracaj, a anta, o veado, o jacamim, o mutum e as diversas
espcies de macaco: Isso vai para o leite, a criana mama, faz mal, explicavam as
mulheres. Alm do efeito nefasto sobre o corpo da criana, h efeitos negativos tambm
para sua alma: A anta leva o esprito da criana; hoje a anta est aqui no mato, da
ela vai para a gua, cai ngua, mergulha, atravessa o rio, pega o mato, sobe de novo na
beira do barranco, e vai embora; o esprito da criana no alcana, no acompanha o
bicho, a a criana fica doente. As carnes reimosas s fazem mal para pessoas em
momentos crticos do ciclo vital; em condies normais, so a comida preferida dos
indgenas.148

Aves e mamferos

Peixes

Anta

Barbado

Jacamim

Filhote

Macaco

Jandi

Mutum

Ja

Tracaj

Mandub

Veado

Matrinx
Pintado
Pirarara

Tabela 4.1: Carnes reimosas

Durante um ms, o pai no pode amarrar nem torcer nenhum objeto,


especialmente a palha de babau, que reimosa, seno a criana fica com
espremedeira (clica); no pode pescar com anzol (a nfase recai sobre o movimento
de fisgar), atirar com flecha ou espingarda, cortar com machado, manipular motor de
popa, tecer paneiros, pregar pregos ou calafetar canoas; o cedro tambm perigoso
( amargo, tem cheiro muito forte, no pode mexer com ele): O pai s pode mesmo
sair com os amigos, dar uma volta, mas sem triscar em nada. Se o recm-nascido for
148

O resguardo de parto ou couvade prtica comum a vrios povos indgenas sul-americanos. Para uma
anlise da categoria sensvel reimoso, das prticas de resguardo de parto e menstruao e do complexo
da panema, em outro contexto etnogrfico, o leste de Roraima, ver Tempesta 2004.

188

do sexo masculino, as restries para o pai devem ser observadas ainda mais
rigidamente. Se o umbigo da criana estiver ferido, qualquer ao dos pais pode piorar
esse estado. As restries de alimentos e atividades vo se atenuando gradativamente ao
longo de um ano aps o nascimento, at cessarem por completo.
A placenta deve ser enterrada em local seguro, onde no corra o risco de ser
encontrada e revirada por animais domsticos; se, por exemplo, um co remexer a
placenta, o beb adoecer; quando o parto acontece no hospital, a placenta
simplesmente descartada. As mulheres apiaks me falaram sobre a me do corpo, uma
poro do corpo da mulher que causa dores abdominais e no pode, em hiptese
alguma, deixar seu corpo, por ocasio do parto, seno a mulher morre.
Assim que possvel a criana deve ser batizada. O ritual do batismo parece ser
concebido pelos apiaks como uma operao importante para ajudar a fechar o corpo da
criana, a fixar a alma no corpo. Os padrinhos podem ser irmos do pai ou da me, avs
paternos ou maternos, primos cruzados ou paralelos de ambos os pais, co-residentes
amigos ou parceiros polticos e econmicos de outras aldeias; profissionais da rea de
sade, professoras brancas e mesmo padres frequentemente so convidados a apadrinhar
crianas. Espera-se que os padrinhos deem um bom presente para a criana, geralmente
roupas. Nas primeiras semanas de vida, a me apressa-se em amarrar fios vermelhos nos
pulsos e abaixo dos joelhos do beb; tambm comum enfeit-lo com colares de
miangas e sementes e colocar uma trouxinha com um dente de alho em seu pescoo
para no adoecer. Estes enfeites so na verdade a roupa cotidiana das crianas, mas
parecem consistir igualmente numa espcie de proteo contra entes malignos. As
roupas industrializadas e as fraldas sero usadas apenas em ocasies especiais, j que o
beb passa a maior parte do tempo nu, em contato direto com o corpo da me,
aconchegado na tipoia.
O nome do filho escolhido pelos pais logo aps o nascimento. Os nomes dos
apiaks so derivaes criativas dos nomes brasileiros regionais, oficializados no
batismo. Em geral os nomes dos filhos de um casal comeam com a mesma inicial do
nome do pai, ou so combinaes inventivas do nome do pai e da me, como por
exemplo: um casal formado por um homem chamado Adenir e uma mulher chamada
Clenilda, com filhos chamados Aldair, Clair, Aldeir, Cleonir, Laisa e Ademir.149 Tais

149

Observo que esta tendncia de batizar os filhos com combinaes do nome dos pais comea a aparecer
na gerao +1, isto , a gerao dos pais das pessoas que hoje tm entre 20 e 40 anos,
aproximadamente.

189

nomes so empregados predominantemente na interao com os brancos, por ocasio de


cadastramentos diversos, visitas ao posto de sade, matrcula de crianas na escola,
viagens para a cidade etc.
No cotidiano na aldeia, porm, crianas, adultos e velhos de ambos os sexos
so chamados por apelidos adquiridos na juventude que em geral reportam a alguma
particularidade biogrfica ou fsica e podem ter conotao jocosa; muitas pessoas tm
dois ou mais apelidos, e preciso algum tempo de convivncia para conhecer todos os
apelidos de algum. Eu mesma ganhei dois apelidos de pessoas diferentes: J e Jogita.
Adriana Florence, a tataraneta do pintor Hercules Florence, que visitou a aldeia Mayrob
em 1997, foi apelidada de Patrcia. Enquanto os apelidos das mulheres so geralmente
abreviaes ou corruptelas de seus nomes de batismo (Clau o apelido de Claunizete;
Leca, o de Letcia) ou, mais raramente, menes a um evento biogrfico (Pelada o
apelido de uma moa que teve uma doena que a deixou temporariamente careca), os
apelidos dos homens so frequentemente nomes de animais ou seres encantados: Saba,
Calango, Porco, Minhoco, Caba, Chinelo (nome de um peixe), Barbado (nome de um
peixe), Touro, Lebro, Capelobo, Siruria etc. A combinao de nomes e apelidos
masculinos parece corresponder onomstica tupi-guarani clssica que, de acordo com
Viveiros de Castro, recorre ao extra-social como fonte e possui uma funo
essencialmente individualizadora, concentrando-se mais na aquisio de novos nomes
que na conservao de um repertrio fechado, mais na histria social e pessoal que na
referncia mitolgica, mais na abertura para o futuro que na continuidade com o
passado, mais na captura de distintividades suplementares no exterior que na articulao
de identidades complementares internas ao grupo (Viveiros de Castro 1986: 388).
Quando uma pessoa se apresenta a um desconhecido, diz seu nome de batismo,
jamais seu apelido. Por outro lado, os nomes de batismo podem se repetir ao longo das
geraes, mas no os apelidos, como por exemplo: Benedito Kamassori era o av
paterno de um homem que batizou seu primognito com este nome; Norberto Morim
transmitiu seu nome a um filho de um de seus filhos do sexo masculino; Ismlia o
nome de uma mulher e de uma sobrinha sua (fFim). No ocorre troca de nomes ao
longo da vida.
Na ltima dcada, por ocasio do cadastramento da FUNASA nas aldeias
apiaks, os indgenas tm escolhido os sobrenomes apiaks (Morim, Kamassori ou
Paleci que designam as principais parentelas sobreviventes das epidemias e massacres
no sculo XX) para batizar os filhos de mulheres apiaks mesmo quando o pai kaiabi,
190

munduruku, no-indgena ou outro; outra alternativa batizar os filhos com ambos os


sobrenomes, o da me e do pai. Numa aldeia apiak, uma mulher que porte um desses
trs sobrenomes no o substitui pelo sobrenome do marido; contrariamente, mulheres de
outras etnias que se casam com um homem das parentelas Morim, Kamassori ou Paleci
adotam o sobrenome do cnjuge; homens de outras etnias que se casam com uma
mulher pertencente a um desses subgrupos podem vir a adotar o sobrenome da esposa
combinado ao seu prprio.

********
Com alguns meses, a criana pode ser submetida a algumas operaes que
visam melhorar ou acelerar seu desenvolvimento, como a ao de amarrar o nervo da
perna do veado ou do massarico na perna do menino, para que ele aprenda a andar
rpido, o que no deve ser feito com meninas, seno elas se tornaro andadeiras, um
eufemismo para moas irrequietas que tm muitos namorados. Para serem boas
nadadoras, as crianas engolem pequenas piabas cruas durante alguns dias
consecutivos.150
Crianas pequenas so extremamente vulnerveis aos atos das pessoas e ao
de sobrenaturais. Os apiaks temem o quebranto (kaux) e o peito aberto, cujos sintomas
so apatia, moleza, diarreia e magreza excessiva, e podem levar morte. O quebranto
pode ser causado involuntariamente por uma pessoa (at mesmo o pai e a me) que
chega da roa cansada, suada e com fome; basta que ela olhe para a criana ou toque
nela para que ela adoea. Adultos e animais domsticos tambm so vtimas de
quebranto. Manter um jabuti dentro de casa uma forma eficaz de evitar esse problema,
pois se acredita que o animal absorve a energia malfica.151
Quando o filho completa um ano, desejvel que o pai construa uma casa ao
lado da casa dos sogros, para onde a nova famlia conjugal se mudar. Em alguns casos,

150

Schaden relata vrias prticas anlogas, relativas ao corpo das crianas, entre os guaranis, como, por
exemplo: os pais de recm-nascido passam sobre a boca deste uma orelha de pau (yrup), para que
no se torne desbocado e no se acostume a dizer grosserias (Schaden 1962: 69).
151
Usa-se levantar a criana doente trs vezes em direo ao telhado, sob a porta de casa, rezando; podese tambm colocar a criana sobre o batente da porta e varrer para fora; se essas medidas no forem
eficazes, os pais devem procurar um paj. Para curar peito aberto preciso passar a criana entre um arco
esticado, colocado na porta de casa, ou entre as pernas arqueadas da me, trs vezes, durante trs dias
consecutivos; ou ento passar a criana por baixo dos punhos da rede do pai trs vezes e amarrar seu
peito com uma fralda. Os apiaks dizem que o arco paj; o objeto tambm fixado no terreiro, na
direo contrria do vento, durante tempestades de vero, para aplacar a fria da chuva. Os arcos
apiaks, assim como os kaiabis, so feitos da palmeira siriva (Bactris macana).

191

quando a famlia de origem no abastada, o jovem casal pode passar alguns anos na
casa dos pais da moa, situao que considerada incmoda por todos.
A criana passa a ser vista como uma pessoa verdadeira depois que comea a
andar e a falar. Gradualmente, vai ganhando independncia em relao me e comea
a ser cuidada por uma irm mais velha, pelas irms da me ou pelas avs. Por volta dos
trs anos, meninos e meninas perambulam pela aldeia em companhia de irmos ou
primos maiores. A partir de cinco anos, mais ou menos, formam-se grupinhos de
meninos que passeiam livremente pelos arredores da aldeia, alvejando passarinhos com
estilingue, assaltando roas, pescando pequenos peixes com linha e anzol ou
simplesmente fazendo arte, enquanto as meninas assumem algumas responsabilidades
domsticas, como lavar roupas e louas e cuidar dos irmos menores. A vida escolar
comea por volta dos sete anos, e atualmente vista como alternativa ao trabalho
agrcola, tido como muito sofrido.
A separao entre os sexos aumenta com os anos, e atinge seu pice aps os
dez anos, quando os adultos comeam a especular sobre os possveis cnjuges dos
filhos. Ao que parece, a vida sexual de moas e rapazes inicia-se perto dos doze anos,
mas apenas aps a primeira menstruao que uma garota pode se casar. Normalmente
um rapaz de quatorze anos e uma moa de doze so capazes de formar uma unidade
social relativamente autnoma, pois j dominam as tcnicas e saberes bsicos para a
vida na aldeia; tudo o que precisam saber foi aprendido desde a mais tenra idade, por
meio de observao e participao direta, mas gradual, nas atividades e assuntos dos
adultos.
Os meninos so educados para serem bons pescadores, caadores, agricultores
e, em menor medida, para serem professores e agentes de sade o que absolutamente
no exclui as habilidades anteriores. Saber falar um dos atributos masculinos mais
valorizados, ao lado de uma combatividade moderada, expresso de virilidade. As
meninas so educadas para serem boas donas-de-casa, mes zelosas, boas agricultoras e
cozinheiras; algumas delas tambm querem ser professoras ou agentes de sade. Fazer
fofoca um dos comportamentos femininos mais reprovveis. O desejo de viajar, o
gosto por aventuras e a vontade de conhecer outros lugares e pessoas so sancionados
para os homens, especialmente os jovens, mas no para as mulheres.
Os apiaks no tm ritos de iniciao masculina ou feminina, mas atribuem
grande importncia ao resguardo de menstruao. Quando est no seu tempo, a
mulher no pode comer alimentos reimosos, como os peixes filhote e barbado, seno
192

ter hemorragia; tambm no pode ingerir alimentos doces ou azedos; ela s pode
comer peixes pequenos, carne de pombo, cujubim e galinha, alm de farinha embuga. A
mulher menstruada deve beber muita gua e tomar muitos banhos de rio, porque o
sangue est quente e o banho esfria, e no pode tomar sol. Alm desses cuidados que
visam assegurar a sade da prpria mulher, o resguardo de menstruao serve
igualmente para assegurar o bem-estar da comunidade, na medida em que a mulher
nesse estado pode causar danos, involuntariamente, aos co-residentes. Assim como
ocorre com as grvidas, a presena de uma mulher menstruada estraga expedies de
pesca com timb152 e de coleta de savas. Durante esse perodo, a mulher tampouco
pode preparar tapioca, pois o amido no decantar, estragando a massa.
Uma mulher menstruada ou grvida causa panema (em apiak: iparen) no
marido se tocar nos restos da caa que ele matou, na sua espingarda, canio, flecha ou
arco.153 A panema um fenmeno bastante difundido na regio amaznica e consiste
num estado de desnimo geral, azar nas caadas e pescarias, que acomete o homem.
Abordando a panema de uma perspectiva estrutural, R. DaMatta definiu o fenmeno
como um operador que permite passar da probabilidade e incerteza determinao e
certeza (DaMatta 1977: 72), expresso acabada da lgica ultradeterminstica do
pensamento selvagem (: ibidem). A caa e a pesca so atividades que envolvem riscos
de ordem sobrenatural e que devem se pautar por regras especficas que visam preparar
o caador (ou pescador) para se confundir com o reino natural e depois separar-se dele
(: 79). Dentre outros seres e elementos ambguos, mulheres grvidas e menstruadas
oferecem perigo para o caador/pescador e para a vida social em geral, na medida em
que so associadas simbolicamente ao plano da natureza, cujas foras no podem ser
controladas pelos humanos. A lgica da panema opera, portanto, no sentido de unir o
152

As expedies de pesca com timb no Mayrob renem dezenas de pessoas, entre homens, mulheres e
crianas, extravasando os limites da famlia extensa, e consistem em eventos bastante animados, que
rendem quantidades enormes de peixinhos e podem acabar numa farta piracaia, um piquenique na
margem do rio.
153
Os apiaks conhecem vrios remdios (mohng) para curar panema. Um deles ralar o cip-taia,
coloc-lo n'gua e lavar as mos, o canio, a flecha, o arco, mas no a espingarda; se o homem est
panema, sua espingarda tambm fica, a ento corta-se o cip-amb, pinga-se a seiva dentro do cano da
espingarda ou se carrega o cartucho e d trs tiros, ou ento atira-se no ninho da perigosa vespa apiak
(ver Introduo). O homem tambm pode amarrar um pedao de cip-taia no pulso at seu brao
adormecer. A espingarda tambm fica "ruim" quando o caador atira em marreca, pato, capivara, jabuti,
ariranha, jacar, animais que passam a maior parte do tempo na gua; ento, preciso fazer remdio para
a arma. O co tambm pode ficar panema; para recuperar seu faro, o dono deve fazer o marimbondo
caadeira morder seu focinho trs vezes, e o co espirrar trs vezes. Banhos com sumo de mastruz e de
mucurac so eficazes para curar panema. De outro modo, se o homem est com pulgas, tem azar na
pescaria.

193

que deveria ficar separado, e de separar aquilo que deveria permanecer unido,
permitindo traduzir relaes entre domnios antitticos (natureza-sociedade, prximodistante, pblico-privado) em relaes morais. Dessa forma, o caador torna-se culpado
pelo prprio insucesso (: 91).
A vigilncia sobre o comportamento das mulheres, especialmente em
momentos crticos do ciclo vital (menstruao, gestao, puerprio), remete aos bons
modos em geral e implica um padro de medida especfico. Assim, de acordo com a
anlise dos mitos americanos realizada por Lvi-Strauss (2006), as mulheres so seres
peridicos que podem colocar o universo em risco, pois elas trazem em seus corpos a
marca da periodicidade biolgica, que faz eco s periodicidades sazonal e csmica. A
uma regularidade temporal corresponderia, portanto, um distanciamento espacial, no
sentido de que, em determinados momentos, as mulheres devem se manter afastadas das
outras pessoas e de certos objetos e seres.154
Outro momento do ciclo vital em que se observa resguardo por ocasio da
morte de um consanguneo prximo (pais, irmos, filhos) e do cnjuge. Durante o luto,
os parentes prximos e o cnjuge devem ficar em casa durante uma semana; no podem
comer banana branca, do contrrio, morrer uma pessoa da famlia a cada ano, porque,
quando madura, a banana branca cai toda de uma vez.155 Alm disso, eles no devem se
lavar com gua fria durante um ano, sob pena de terem reumatismo na velhice ( preciso
amornar a gua para o banho). As mulheres mais velhas mantm o hbito de cortar o
cabelo aps a morte do marido. Diferente do cadver dos adultos, o cadver de crianas
pequenas no libera odor ruim, porque elas no tinham pecados, assertiva que indica a
crena numa poro corruptvel da pessoa que se desenvolve ao longo da vida e perece
aps a morte, anloga ao conceito de anguery dos nhandevas e kaiovs (Schaden 1962:
116). O espectro terrestre dos mortos apresenta-se sob a forma de fantasmas que rondam
as covas noite e gemem, os quais so temidos pelos apiaks assim como os azang
pelos teneteharas (Wagley & Galvo 1961: 111).
Hoje em dia as pessoas so enterradas em caixo de madeira junto com sua
rede, algumas roupas, colares e pulseiras; a maior parte dos objetos pessoais queimada
154

No terceiro volume das Mitolgicas, Lvi-Strauss afirma que a mitologia encerra tambm uma
moral, porm infelizmente mais afastada da nossa do que sua lgica o de nossa lgica (Lvi-Strauss
2006: 460). Ao tratar da questo do decoro, condensada na imagem dos modos mesa, Lvi-Strauss
prope que ele exprimiria a deferncia amerndia manifesta nas trocas entre as pessoas e o mundo,
bem como o elogio da civilidade e da moderao, elementos que claramente regem a vida comunitria
apiak.
155
Os apiaks explicam o fato de no comerem tatu-canastra por sua associao com a morte: Se a gente
come esse bicho, pode contar que logo morre algum da nossa famlia.

194

ou dada a um no-parente; se houver algum objeto ainda novo ou de grande valor, os


parentes consanguneos da mesma gerao ou da primeira gerao ascendente ficam
com ele, como lembrana do morto.156

No passado, de acordo com Guimares

(1865), o cadver de uma pessoa casada era enterrado em sua casa, embaixo da rede em
que dormia; o(a) vivo(a) podia alimentar-se apenas de cauim e devia permanecer
recluso at que os ossos do morto fossem desenterrados, um momento ritual importante,
quando eram depositados numa rede nova, a ser dependurada no teto da casa; quando
esta rede apodrecia, os ossos eram recolocados na sepultura, consumando-se ento a
morte (Guimares 1865: 310).
Emoes fortes em geral so reprimidas pelos apiaks; exploses de raiva ou
alegria, sentimentos de amor exacerbado, cime, inveja, tristeza e dor so abominados;
o choro especialmente reprimido; o desejo de estar s encarado como expresso de
srio distrbio emocional. O cotidiano nas aldeias apiaks regido por uma tica da
moderao e do auto-controle. A boa medida ensinada s crianas desde que elas
mostrem alguma capacidade de entendimento; crianas demonstram notvel controle do
frio e da fome; no comum v-las gritando ou brigando seriamente; crianas
preguiosas, briguentas, mesquinhas e aquelas que no respeitam os adultos so
castigadas pelos pais e adquirem m reputao. A sovinice o pior defeito de uma
pessoa, e isso vale mesmo para crianas de um ano de idade. Depois dela, a preguia e a
agressividade exacerbada so outros defeitos muito graves. Vigora o imperativo de que
no se briga com um parente. Assim como os kagwahivs (tupi-guaranis), os apiaks em
geral exibem um semblante tranquilo e alegre; a agressividade, que antigamente era
dirigida aos inimigos e no sculo XXI manifesta-se apenas durante bebedeiras coletivas,
concebida como o preldio de um conflito que levar fisso alde; por sua vez, a
maior expresso de amor a ddiva/partilha de comida e objetos (Kracke 1978: 21ss).
Cr-se que a pessoa fora de si capaz de tudo, todos tm medo dela. Os
apiaks explicam que qualquer pessoa, homem ou mulher, pode se metamorfosear em
animal, bastando para isso despir sua roupa humana, pois o avesso de todas as
pessoas animal, sendo que, no estado animal, a cabea fica no lugar do traseiro e viceversa.157 Porm apenas aqueles iniciados no xamanismo e movidos por intenes
156

157

No Mayrob, havia uma mquina de costura que pertencera a uma mulher e fora apropriada,
indevidamente segundo seus filhos, pela filha de uma irm dela, aps sua morte.
Durante minha estada no Mayrob, os moradores compraziam-se em assistir a uma novela sobre seres
mutantes. Os adultos, com olhos vidrados na TV, diziam, para terror das crianas: Olha l, branco
tambm vira bicho, olha como eles fazem!

195

nefastas conseguem se metamorfosear de maneira controlada, o que expe o fenmeno


de um xamanismo sem xams, isto , embora os apiaks mansos digam que j no tm
pajs, no desapareceram as crenas de natureza xamnica, canalizadas com o recurso a
pajs de outras etnias. Ademais, eles afirmam que os parentes isolados do So Tom
contam com xams poderosos que os orientam em suas viagens, e explicam que os
caciques antigos eram tambm pajs, mas ser paj no bom, o paj no v as coisas
como a gente v: o car pra ele milho, as batatas so ratos, as fezes so uma ona.
Hoje, quando uma pessoa manifesta o dom da previso, sonhando com eventos que se
mostram reais, ela curada, isto , seus olhos so lavados com o sumo de uma raiz
encontrada na floresta para que no tenha mais sonhos desse tipo.
No Rio dos Peixes, mesmo possvel divisar uma espcie de diviso de
trabalho entre apiaks e kaiabis nas esferas poltica e religiosa: enquanto os primeiros
esforam-se por formar homens influentes, que estabeleam relaes diplomticas com
os brancos para obter bens e servios para o conjunto das aldeias, os segundos
encarregam-se de sua proteo espiritual.
A noo de roupa como marca de identidade extremamente interessante e
aponta para a centralidade dos processos envolvendo o corpo e a pessoa para os povos
indgenas sul-americanos, conforme o clebre artigo de inspirao maussiana de Seeger,
DaMatta e Viveiros de Castro (1987). Ao afirmarem a dupla natureza de todas as
pessoas, os apiaks parecem declarar a posio interna (tanto do ponto de vista social
como do ponto de vista fisiolgico) dos Outros, bem como as potencialidades
antagnicas da pessoa, ao mesmo tempo em que sublinham a necessidade de se
suplantar esse aspecto animal, anti-social, com uma convivncia pacfica e solidria.
Inversamente ao que se passa com os wari,158 que viram branco ao vestir roupas
industrializadas (exgenas), os apiaks viram bicho ao exteriorizar a poro interna de
seu corpo, sua prpria pele sendo concebida como roupa. A ideia de uma alteridade
constitutiva identificada a uma alma animal comum a vrios povos tupis, e remete

158

A Vilaa (2007) escreve a respeito da inscrio, por meio das roupas, de uma dupla identidade,
indgena e branca, no corpo dos wari (pakaa nova, famlia lingustica isolada) contemporneos, uma
possibilidade simblica antecipada pelos xams. De acordo com este e outros povos indgenas sulamericanos, o corpo a sede da diferena e do ponto de vista, algo a ser construdo ao longo da vida
por meio de relaes sociais apropriadas (Vilaa 2007: 174). Para os wari, o xam dotado de dois
corpos, um humano e um animal, e, tanto quanto curar doenas, ele deve fazer os espritos dos
animais verem o mundo de modo apropriado, para que no representem ameaa aos humanos. Mas o
xam wari tambm pode se transformar em animal involuntariamente e tornar-se um grande perigo
para seus co-residentes, fornecendo ao grupo, de acordo com a autora, a chance de experimentar
indiretamente o ponto de vista animal (: 180).

196

diretamente tupichua dos guaranis-mbys, para os quais o destino daquele que se


deixa dominar pela alma animal, ignorando as normas culturais, tornar-se ona (H.
Clastres 1978: 94; ver tambm Fausto 2005: 396 e S. Guimares 2001 sobre os guaranimbys contemporneos).159
Para os apiaks, alma sinnimo de esprito ou sombra.160 O termo apiak para
alma ang, provavelmente o mesmo princpio vital dos tupinambs antigos, an, que
designava a alma unida ao corpo. De acordo com A. Mtraux, que cita Ives dvreux:
quando separada (do corpo) tinha a designao de Angoure (Angueira) (...). Esta
ltima palavra teria significado, igualmente, tudo o que anuncia morte iminente, coisa
pouco clara ao prprio gentio brasileiro, e, por semelhante razo, to temvel que o
mesmo desfalecia sob o puro efeito desse terror vo e sbito (Mtraux 1979: 110).
Embora os apiaks reconheam que cada criana tem uma personalidade
prpria, afirmam que os pais tm grande responsabilidade sobre a conduta e o destino
social dos filhos. Nesse sentido, os pais devem atuar tanto como provedores de
alimentos e objetos industrializados quanto como arrimos espirituais dos filhos,
respeitando o resguardo de parto, escolhendo bons padrinhos, dando-lhes bons nomes,
inculcando-lhes os valores morais legtimos, ensinando-lhes as tcnicas e saberes
necessrios para a vida na aldeia. Poderamos dizer que tambm entre os apiaks a
pessoa um microcosmo de relaes (Strathern 2006: 204), e que os corpos so
registros significativos de seus encontros uns com os outros (: 171). Assim como a
pessoa melansia, a pessoa apiak uma comemorao viva das aes que a
produziram (: 437). De acordo com M. Strathern, a pessoa no existe num estado
permanente, seja de subjetividade, seja de objetividade (: 475); antes no ponto de
interao, no evento, que as identidades singulares so estabelecidas (: 152).
Eu mesma fui alvo da noo performativa de pessoa sustentada pelos apiaks.
Assim que cheguei ao Mairowy, aldeia cujos moradores tm um contato restrito com a
vida urbana, percebi que os adultos no sabiam bem como me classificar; eu partilhava
mais da companhia dos homens, especialmente dos homens influentes, que queriam ter
159

De acordo com H. Clastres, agir como animal seria uma das formas possveis de ultrapassar os limites
da sociedade, por meio da atualizao da alma animal, em oposio busca da Terra sem Mal, que
condensaria uma negao do social pela via da ascese, por meio da atualizao da alma palavra divina
e da realizao do homem como deus, da o papel de destaque atribudo ao profeta, em detrimento do
chefe. A oposio conceitual entre xam e chefe evoca a posio ambivalente da pessoa tupi-guarani,
situada entre dois plos opostos: a natureza e a divindade (Clastres 1978: 93ss).
160
Tambm para os guaranis a alma visvel sob a forma de sombra. Schaden afirma que a noo de
alma humana, tal qual a concebe o Guarani, constitui a chave indispensvel compreenso de todo o
sistema religioso (Schaden 1962: 111).

197

suas falas formais registradas em gravador e se inteirar do meu trabalho. As mulheres se


aproximaram aos poucos, indecisas quanto minha performance de gnero; eu no me
parecia com uma delas na forma de falar, vestir ou tratar as pessoas, no tinha filhos e
no estava acompanhada de meu marido, no sabia fazer farinha nem tratar peixes e
caas, tinha os cabelos curtos e tropeava no barranco na beira do rio, mesmo sem estar
equilibrando uma bacia abarrotada de loua na cabea. Acredito que os apiaks me viam
como uma pessoa incompleta, um ser de status social indefinido. Eu tinha muito a
aprender para me tornar uma mulher verdadeira, certamente muito mais do que foi
possvel durante a pesquisa de campo.
Mas, medida que comecei a perguntar, a observar e a participar mais do
cotidiano das mulheres, senti que fui alocada de modo menos equvoco na esfera
feminina. Ainda que eu fosse incapaz de descascar mandioca sem me ferir com a faca, o
fato de eu me interessar por assuntos apreciados pelas mulheres, como culinria,
resguardo e problemas de famlia, me tornava, a seus olhos, uma potencial mulher
verdadeira. Mas o ponto importante a ressaltar que o ato de classificar minha pessoa se
fez acompanhar de uma interao de um tipo especfico, isto , as mulheres indgenas
estavam empenhadas, em nossos encontros, em fazer com que eu apreendesse o modo
como uma mulher (apiak) deve se portar e agisse de acordo com o padro moral local.
Considero que esse processo pedaggico sutil teve xito, assim como ocorre com as
crianas apiaks; desde a mais tenra infncia, meninas so ensinadas a cuidar da casa e
dos irmos menores, enquanto os meninos entram em contato com valores masculinos
como a coragem, a capacidade de iniciativa e o gosto por aventuras. Como no h
separao rgida de gnero, verifica-se que meninas e meninos comeam a cooperar
desde cedo nas atividades cotidianas, sua identidade de gnero se formando no decorrer
dessas interaes.
Presenciei situaes em que, na ausncia dos pais, irmos muito pequenos (em
torno dos 7 anos) podiam se virar sozinhos; embora sob os cuidados de uma av ou tia,
as crianas realizavam todas as atividades domsticas: o irmo mais velho ia pescar
prximo aldeia, entregava os peixes obtidos irm mais velha, que os tratava e
cozinhava, lavava as louas e roupas usadas por eles e varria a casa; as crianas
terminavam o dia no salo, em companhia de outras crianas e alguns adultos,
assistindo TV. Via de regra, a irm mais velha assumia a responsabilidade pela casa,
enquanto ao irmo mais velho cabia prover a casa de peixe. Quando vo para a cidade
passar alguns dias, os pais preocupam-se apenas com o estoque de farinha deixado para
198

os filhos pequenos, pois sabem que os demais alimentos sero obtidos dia a dia; no se
espera que as crianas produzam todo o alimento que iro consumir, mas se sabe, por
outro lado, que o circuito de ddivas continuar funcionando de modo a contemplar as
crianas, das quais se espera que participem das transaes de acordo com suas
capacidades. Assim, certa vez um rapazinho teve sorte na pescaria; sua irm apressou-se
em enviar parte dos peixes para a esposa do irmo de sua me ausente, que lhe dera
bananas e outros alimentos alguns dias antes.
Ao demonstrar capacidades produtivas e se inserir nos crculos de trocas na
aldeia, as crianas vo paulatinamente se tornando homens e mulheres, isto , pessoas
plenas. Note-se que as capacidades produtivas esto relacionadas corporalidade. O
fato de uma menina de trs anos ser capaz de descascar mandioca com uma faca de
tamanho equivalente sua altura revela que foi engajada num tipo de socializao
especfico, que visa desenvolver capacidades produtivas determinadas pelo gnero
desde muito cedo. A capacidade produtiva feminina no se define per se, mas sim como
contrapartida da capacidade produtiva masculina, identificada s habilidades para caar,
pescar, coletar e fabricar certos artefatos, da o valor do casal (no necessariamente em
termos conjugais) como unidade produtiva bsica. Capaz de produzir aquilo de que
necessita para sobreviver, o casal deve mostrar tambm habilidade para participar do
circuito de ddivas que movimenta a aldeia. neste sentido que podemos concordar
com Strathern a propsito da definio da pessoa como microcosmo de relaes, do
corpo como registro de encontros e da identidade como estado estabelecido no evento.
neste sentido, igualmente, que creio ter me apiakalizado em alguma medida, uma vez
que os apiaks nunca deixavam de comentar alegremente, aps alguns meses de
convivncia, que eu estava mais parecida com eles, que havia engordado com o vinho
de aa, que meu cabelo estava crescendo, que eu j no tropeava tanto nos seixos da
beira, comemorando assim as aes empreendidas com a inteno de me transformar
em uma pessoa plena.
Explorando as ideias de M. Strathern no contexto etnogrfico amaznico, os
antroplogos da chamada antropologia do cotidiano realizaram um deslocamento em
relao proposta de Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro ao focalizarem a construo
do social pela via da corporalidade. Um conceito central desses trabalhos o de agency
(agencialidade), que significa capacidade de ao, reflexo e sentimento; embora
praticamente todos os seres do universo sejam dotados de agencialidade, apenas os

199

humanos dedicam-se a desenvolver suas habilidades para a socialidade (ver artigos


reunidos em Overing & Passes 2000).161
Agency articula-se a outro conceito fundamental, relatedness, o sentimento de
estar relacionado a outros, produzido por meio de aes cotidianas como as descritas
para os apiaks (partilha, ddivas alimentares, resguardos, socializao das crianas
etc.), quando as pessoas so criadas simultaneamente como parentes e como
semelhantes (ver Gow 1991).162 Como vimos no captulo anterior, a forma como os
objetos industrializados adentram e circulam no interior das aldeias difere da circulao
capitalista; no contexto aldeo, tais objetos satisfazem necessidades singulares e tm por
funo principal criar e intensificar vnculos entre pessoas que se concebem como
parentes.
Bem, o que se verifica entre os apiaks e outros povos indgenas amaznicos
a equao entre os processos de produo de laos sociais e de seres humanos plenos.
como se a pessoa apiak plena apenas pudesse existir no interior dos limites da aldeia,
isto , dentro da esfera de socialidade tida como apropriada.
********
A tica da moderao, combinada ao imperativo de generosidade, fundamenta a
imagem da comunidade apiak como corpo de parentes (semelhantes). Reciprocamente,
a pessoa que no age de acordo com esse modelo est se comportando como bicho. A
premissa parece ser a de que, se todos podem ser bichos, preciso ensin-los a se
portar como parentes. Como seria de esperar, a harmonia na comunidade mais um
ideal do que uma realidade cotidiana. A articulao de diversas famlias extensas com
interesses por vezes opostos no isenta de tenses e antagonismos, especialmente
quando se trata de comunidades formadas por pessoas de grupos tnicos que
antigamente se viam como inimigos. Como o potencial de conflito na aldeia
relativamente alto e os impulsos de anti-socialidade (McCallum 1998) se mostram
muitas vezes incontrolveis, irrompem com alguma frequncia acusaes de feitiaria.
161

Muitos povos amerndios, dentre os quais os apiaks, postulam que a humanidade extensvel a todos
os seres do universo; neste sentido, a forma corporal assumida contingencialmente por diferentes seres
(pessoas, animais, espritos) pensada como roupa. Inspirado em G. Deleuze, Viveiros de Castro
(2002: 373ss) chama de perspectivismo ao esquema conceitual que atribui agencialidade a nohumanos, e prope uma anlise das posies contextuais de sujeito e objeto tomadas como pontos de
vista. Este autor prope pensar a identidade como relao, no como essncia sempre coincidente
consigo mesma.
162
Algo parecido ocorre entre os povos do alto rio Negro, onde o processo de construo da comunidade
de parentes como comunidade de similares depende, em larga medida, de um investimento na
conciliao entre os interesses individuais (ou familiares) e o interesse comunal (Lasmar 2005: 72).

200

Tais acusaes podem assumir a forma de histrias de co-residentes que se transformam


em bicho temporariamente e praticam roubos e estupros. As acusaes de feitiaria so
veiculadas no regime enunciativo da fofoca, e podem ser vistas como um mecanismo
regulador de condutas.
Os ecos cristos da definio apiak de comunidade explicam-se, em parte,
pela longa convivncia com missionrios catlicos, e assemelham-se a outras definies
indgenas de comunidade, como, por exemplo, aquela empregada pelos povos do alto
rio Negro, catequizados pelos salesianos (Lasmar 2005). Sugiro que a rpida aceitao
do discurso da comunidade e do ritual do batismo aponta para a convergncia entre a
centralidade do parentesco para os apiaks (e para vrios outros povos indgenas) e o
local de destaque que o discurso catlico, especialmente aquele utilizado por
missionrios inspirados pela teologia da libertao, confere fraternidade, ao amor
filial e resoluo pacfica de conflitos, num momento histrico em que as guerras
foram fortemente reprimidas pelos brancos.
O longo contato com o catolicismo no resultou, porm, em abandono
completo da cosmologia tupi-guarani. Para os apiaks, a ambivalncia da alteridade
replica a ambivalncia da pessoa. Sempre que algum adoece sem motivo aparente, ou
ento um animal de estimao ou uma pessoa morre de forma inesperada, pensa-se logo
em feitiaria, referida sob a expresso coisa ruim. As doenas (karura) e a morte so
atribudas ao humana. Embora na maioria das vezes as enfermidades sejam
resultado das ms intenes das pessoas, uma me, por exemplo, pode causar doena
em seu filho involuntariamente, ao lhe recusar um pouco de caf, por exemplo. Os
apiaks acreditam que as palavras, os pensamentos e os sentimentos das pessoas tm um
peso crucial no destino de cada um. Uma mulher me relatou, aos prantos, a morte da
me, uma mulher de idade avanada e sade frgil: Ela foi para Jacareacanga, saiu
daqui boazinha. Uma noite, a mulher do sobrinho dela pediu emprestada a canoa; ela
disse que no emprestava. A mulher ficou com raiva e fez coisa ruim pra ela, s por
causa da canoa. Ela chegou aqui ruim, ficou com o peito inchado, uma coisa feia... A
prpria mulher do meu primo! O desconsolo da minha interlocutora aumentava a cada
vez que ela repetia: A prpria mulher do meu primo!, como a indicar que, embora
qualquer morador da cidade de Jacareacanga pudesse ter causado a morte de sua me, o
fato era tanto mais grave porque a culpada era um membro de sua parentela, uma
pessoa da famlia que se comportou como um outro.

201

Os mundurukus tambm atribuem todas as doenas ao humana, bem como


sua cura; assim, os xams so muito valorizados, mas ocupam uma posio
ambivalente, pois, da mesma forma que curam doenas, tambm so capazes de causlas (Murphy 1960: 135). Nas aldeias mundurukus, quando se descobre que um feiticeiro
causou mal a algum, normalmente ele assassinado. Nesse sentido, de acordo com
Murphy, os feiticeiros so uma vlvula de escape para o antagonismo reprimido pela
sociedade munduruku. Nos anos 1950, contudo, a falta de consenso sobre a execuo de
feiticeiros nas aldeias das savanas paraenses consistia numa das principais causas de
migrao para as margens dos rios Cururu e Tapajs (: 187).
Na sociedade munduruku, onde hostilidades abertas entre homens no so
toleradas, o xamanismo inseparvel da feitiaria, sendo que esta prtica ocupa papel
central na vida social munduruku at hoje, como confirmaram os mundurukus com
quem convivi, os quais partilham da crena de que pessoas podem virar bicho para fazer
mal aos co-residentes. O feiticeiro concebido como uma pessoa que pratica o mal
contra a sociedade em geral, o que coerente com as ondas epidmicas, que matam
indiscriminadamente; por isso os co-residentes creem poder erradicar o mal que os
aflige por meio do assassinato do feiticeiro (Murphy 1958: 137). Murphy explica a
vitalidade da feitiaria entre os mundurukus e outros povos amerndios como uma parte
florescente de culturas radicalmente transformadas, como expresses de sistemas sociais
modificados, o que no deve ser pensado como um fenmeno recente (: 140).
Para os apiaks, as pessoas no so responsveis apenas pelo adoecimento de
outros, mas tambm pelo seu prprio, o que toca a conduta reprovvel. Assim, a pessoa
pode ficar desmentida (isto , contundida, com mau-jeito, dores e febre) como
consequncia de uma ao imoderada, como subir numa rvore alta demais; nesse caso,
ela recorre a um puxador da prpria aldeia, que lhe aplica massagens e cremes
preparados com gordura animal; o desmentido um mal que preocupa muito os
apiaks, revestindo-se de uma aura sobrenatural. Muito embora eu no tenha
investigado a fundo o simbolismo do desmentido, possvel inferir um fundamento
xamnico da prtica de cura mobilizada, uma vez que a massagem uma tcnica
utilizada pelos pajs kaiabis para retirar do corpo da vtima o objeto enviado pelos
espritos mamaes, que causa dores localizadas (Lins 1984/85: 131). Os curadores
mundurukus tambm utilizam uma tcnica de massagem para curar luxaes, tores e
fraturas (Schiavini 2006: 67). Algo semelhante faziam os pajs tapiraps para curar
doenas causadas por anchunga (Wagley 1988: 186) e tambm os pajs teneteharas para
202

extrair o yma, objeto inserido no corpo da vtima pelos seres sobrenaturais (Wagley &
Galvo 1961: 117). Por sua vez, um homem que atira pedras no rio quando avista um
boto pode ser atacado por ele e vir a adoecer; neste caso, deve procurar um rezador que
cura proferindo oraes, agitando um feixe de folhas sobre seu corpo ou prescrevendolhe banhos com certas plantas silvestres (ver captulo 3).
Assim como a crena zande na bruxaria, as crenas apiaks em feitiaria e em
pessoas que viram bicho so acionadas para explicar infortnios, expressando um
sistema de valores que regula a conduta humana (Evans-Pritchard 1978: 56) e
fornecendo um idioma para falar sobre comportamentos socialmente condenveis.
Nesse sentido, se ocorre um fato extraordinrio, como o desaparecimento de algumas
peas de roupa do varal de uma mulher, no mesmo dia em que algum viu um animal
com caractersticas estranhas (uma anta prximo s casas, por exemplo), os dois eventos
so postos em relao de causalidade e o nome do culpado rapidamente proferido a
boca pequena ou em tom jocoso: Isto o Fulano que est com saudade da namorada!,
diro alguns. As pessoas vo procurar saber o que Fulano estava fazendo quela hora e,
se no descobrirem, ficar comprovada sua culpa. Vale para os apiaks a mesma
considerao de Schaden sobre os guaranis, a saber, que o comportamento no decorre
do carter, mas o carter do comportamento (Schaden 1962: 118).
Quando fatos como este ocorrem com frequncia, um xam de longe,
geralmente um kamaiur do Parque do Xingu,163 acionado pelo cacique para descobrir
quem est virando bicho. Identificado o feiticeiro, espera-se que o cacique tente
convenc-lo a deixar de praticar aes nefastas; se o acusado se recusar a cooperar, deve
ser expulso da aldeia. interessante que o incidente que prejudica uma pessoa ou
famlia conjugal assuma as propores de uma ofensa ao conjunto da comunidade, que
se v compelida a agir para suplantar a fonte de perigo. Aps a mudana do feiticeiro, as
pessoas evitam sua companhia, mas no a dos demais membros daquela famlia extensa,
que so tratados com a hospitalidade costumeira, embora por vezes algum cogite a
possibilidade de o cnjuge do(a) feiticeiro(a) tambm ser capaz de virar bicho.
As acusaes de feitiaria sob a forma de histrias de transformao temporria
de gente em animal condensam o idioma da violncia e da hostilidade, elementos que
no so totalmente suprimidos pela tica da generosidade e do pacifismo apregoada

163

O recurso a pajs do Xingu explica-se pelo fato de que os kaiabis do Tatu costumam fazer visitas ao
Xingu, para visitar seus parentes, e assim tomam conhecimento sobre os pajs mais poderosos que
interagem com aqueles kaiabis residentes no Parque.

203

pelas pessoas influentes da aldeia. A pessoa que vira bicho chamada de paj do mal
ou feiticeiro (pasa o termo que designa tanto o feiticeiro como o paj em apiak)164
e age sempre noite. Este no um tema sobre o qual os apiaks gostam de conversar,
fato que dificultou bastante a obteno de informaes sistemticas durante a pesquisa
de campo. Quando eu interrogava diretamente algum sobre o assunto, recebia
invariavelmente a resposta taxativa: Sobre gente que vira bicho eu no sei falar, eu no
viro bicho!, o mesmo tipo de reao que Evans-Pritchard percebeu entre os Azande
quando os interrogava sobre bruxaria (Evans-Pritchard 1978: 49), e que explicita uma
nfase nos aspectos moral e utilitrio do conhecimento: saber falar sobre, conhecer,
implica sempre um saber fazer avaliado de acordo com rgidos parmetros morais;
falar sobre aquilo que no se sabe por experincia prpria seria considerado uma
leviandade.
O pouco que descobri sobre pessoas que viram bicho foi durante conversas
informais, em noites em que no havia leo para o gerador de energia e, portanto, no se
podia assistir TV. Numa dessas noites, um homem na faixa dos 40 anos contou a
seguinte histria:
Um homem que cortava seringa deixava a mulher e a filha pequena em
casa; a casa era cercada de tbua. Um dia, ele saiu para cortar e disse: Vocs
matam o tracaj, ajeitam o arroz, e deixam tudo no jeito. Ele foi embora, passou
um tempo e elas ouviram gritar no mato; a menina disse: Olha, mame, papai j
vem. A mulher pegou uma escada, trepou l em cima, ficou prestando ateno,
a disse: Minha filha, no teu pai, bicho. Quando ele entrou, no pde nem
varar pela porta: ele era dessa grossura! Ele foi destampando as panelas,
metendo a boca nas panelas, comendo arroz, tracaj. E a mulher s prestando
ateno. Aquele monte de cabelo, quando pela, fica deste tamanhinho; a boca
dele no existe. Ele foi embora. A mulher disse: Minha filha, no acredito que
este bicho acertou esta casa assim. Ela desconfiou que era o marido dela, o
prprio marido virou bicho, veio em casa comer e foi embora. Quando ele
chegou, ela falou: Marido, veio um bicho aqui. Era ele, ele mesmo virou bicho;
ele tira a roupa, e joga assim (no avesso): j virou ona; joga de novo e vira
gente. No PIn Teles Pires, tem um homem chamado Fulano, ele vai at a beira,
tira a roupa e vira boto, cai dentro d'gua; ele vem, veste a roupa de novo e vai
pra casa. Isso certo, ns j vimos. Por que mataram o Sicrano l? Por causa
disso, ele virava capivara noite; o pessoal atirava na cabea dele e nunca
matava, at que o Beltrano o acertou no traseiro, ele adoeceu com chumbo na
cabea. A gente v cada coisa feia...

164

Os apiaks distinguem os pajs do mal dos pajs do bem, aqueles que curam doenas. Por ocasio da
defesa da tese, Fausto me chamou a ateno para o fato de que os apiaks parecem equacionar o paj
do bem a forasteiro e o paj do mal a parente/co-residente, sugerindo uma oposio simblica entre os
processos de fazer parente (de acordo com a tica da moderao) e virar bicho (tema das
metamorfoses); pretendo aprofundar a anlise de tal oposio em outra oportunidade.

204

As pessoas geralmente desconfiam de animais que exibem caractersticas


fsicas ou um comportamento estranho: um tatu que anda muito devagar, uma capivara
sem barba, um peixe boiando de barriga para cima no rio, um co que estranha o
compadre do dono, uma lagarta grande na rede, um porco domstico que ronda a casa
noite so motivos para suspeita entre os co-residentes.165 Os moradores do Mayrob
relataram que, certa noite, um boi pisou sobre cacos de vidro no terreiro do cacique; no
dia seguinte, um co-residente kaiabi apareceu com os ps cortados, e as pessoas
afirmaram que ele havia virado bicho.
Uma pessoa que j viu outra transformada em bicho fica com receio de andar
sozinha pela aldeia e mesmo de visitar os co-residentes que no fazem parte de sua
famlia extensa; uma mulher kaiabi certa vez me disse: Por isso eu no ando pelas
casas dos outros, sei l se eu estou tomando caf de gente ou de bicho! Por isso no
bom andar por a noite, aqui tem muitos cantos escuros. A mesma mulher relacionou
metamorfose temporria a certas prticas de casamento, afirmando que os mundurukus,
que se casam com os primos legtimos, que gostam de virar bicho. Pessoas
metamorfoseadas em animal raramente atacam membros da prpria famlia extensa e
jamais atacam consanguneos imediatos. Todos os casos que ouvi sobre pessoas que se
transformavam em bicho se referiam a co-residentes kaiabis ou mundurukus; a nica
histria envolvendo um homem apiak versava sobre um recm-chegado, proveniente
do rio Cururu, onde, dizem, a feitiaria endmica. Ningum jamais disse que um
homem influente se transforma em bicho, mas ouvi relatos de homens influentes que
foram atacados por co-residentes metamorfoseados. Embora no se admita
explicitamente que uma pessoa possa ser morta por um co-residente metamorfoseado,
possvel deduzir das narrativas sobre feitiaria que uma pessoa que costuma virar bicho
capaz de causar a morte de outra.
A metamorfose como uma potencialidade da pessoa figura na narrativa de
origem do povo apiak, transcrita abaixo:166
O nosso povo apiak surgiu de um peixe chamado jacund, quando ele
pulou em terra e no conseguiu mais cair na gua. O sol estava muito quente, o
peixe estava com sede e seu limo foi acabando. Ele estava com sede, mas no
achou gua para beber, sua cabea foi ficando redonda e as suas duas abinhas
foram crescendo. Seu rabo foi ficando comprido e ele se transformou em um
homem forte e grande. Este foi o primeiro ndio apiak que surgiu. Com o passar
do tempo, o tatu foi pescar na beira do rio, jogou na gua a linhada, que era cip,
165
166

Os apiaks no criam porcos.


As narrativas que se seguem foram editadas, sem prejuzo de contedo, para facilitar a leitura.

205

e o seu anzol era uma unha de gavio real. Esperou poucas horas. De repente, a
linha comeou a puxar e o tatu, que estava com muita vontade de comer um
peixe assado, fisgou o peixe, jogando-o para a terra, mas no o matou. De
repente, o peixe comeou a falar e foi se transformando em uma mulher muito
bonita. O tatu ficou assustado e perguntou: Onde voc mora? A mulher
respondeu: Eu morava dentro do rio, mas agora vou morar em terra, estou
procurando meu marido que j veio morar em terra. O tatu, muito curioso,
falou: Eu vi o seu marido. Ele est morando na beira de um lago onde existem
muitos peixes chamados jacund. O tatu levou a mulher at a casa onde seu
marido estava morando. Quando chegaram perto, ouviram cantos que ele estava
cantando para seus parentes, que j se preparavam para sair da gua e ir para a
terra. Poucas horas depois, todos estavam em terra: estes eram os seus parentes.
Outra verso dessa histria atribui a Jesus a criao do povo:
Comecinho de apiak foi assim: Jesus, que Bahra, andava sozinho, a
encontrou os tatus, eram todos solteiros. Jesus pegou peixe, jogou pra trs, virou
uma mulher, Nossa Senhora. A o tatu disse: Tambm fao! Ele jogou o
canio dele, quando olhou pra trs: Peguei foi peixe. Jesus falou: Deixa de
ser besta, no est vendo que uma mulher? Agora no vai dar mais certo.
Assim foi comeando. A veio o veado: Eu vou pegar tambm. E pelejou,
jogando o canio, nada! Tentou de novo pegar uma senhorinha pra ele, e Jesus
espiando: No vai pegar nada. Jesus falou com o tatuzinho: Sabe como vai
ser o nome desse peixe? peixe, mas vai virar gente. Eu vou escolher um nome
bonito: apiak. ramos ns, a viramos. Dizem que o jacund nosso
conterrneo. Ele virou gente, somos ns.
Os mosquitos igualmente originaram-se de uma metamorfose definitiva devida
a um descuido humano.
A origem deles piracu (farinha) de ndio. Outra tribo brigou com
apiak, a apiak fez farinha de gente. Era para o ndio no andar mais na rea
deles, para se afastar mais um pouco. Torraram e fizeram, experimentaram
comer: No vai, no. A a me de uma mocinha falou: Vai jogar isso ngua.
Mas ela jogou em terra mesmo, preguiosa! De primeiro, no tinha esses
mosquitos nem mutuca, nada. A mocinha pegou a peneira com o p do piracu,
desceu para a lixeira, um pouco virou lambari, um pouco virou piunzinho, um
pouco virou borrachudo.
A histria da origem das Pliades, chamada de histria da ona no cu pelos
apiaks, tambm tem como eixo a metamorfose, agora temporria ou reversvel:
Uma mulher, me de dois rapazes, criava uma dessas oncinhas que
andam no mato. A ona estava matando muita gente, ela era gente, mas depois
virou bicho. Os dois rapazes saam para caar e no traziam nada para sua me,
que logo ficou desconfiada. Certo dia, eles convidaram o neto da velha para ir
caar e o ensinaram a virar ona para capturar uma paca. A ona soprava as
patas para sarem as unhas, o dente, o cabelo, tudo. Todos os dias, eles matavam
porco, matavam ndio bravo. Um dia eles mataram muito porco, pediram para a

206

me fazer um moqum e saram; a me ficou vigiando e viu um deles virar


bicho. Os dois papagaios e os periquitos de estimao alertaram a mulher sobre a
prtica dos filhos. Ela ento colocou um pequeno sapo (no-identificado) na
chicha que serviu aos rapazes. O filho mais velho logo percebeu que havia algo
errado com a bebida e interrogou a me, que lhe respondeu: Meu filho, acho
que isso o sangue das caas que vocs engoliram, vocs gostam de fazer essas
coisas, vocs beberam sangue de bicho por a, isso. A mulher golpeou os dois
filhos e o neto com uma mo-de-pilo e pediu s aves de estimao que fossem
buscar os xams apiaks de uma aldeia muito distante. Os xams fizeram a
grande viagem em canoas de casca de pau, fumando longos cigarros. Quando
chegaram casa da mulher, os xams defumaram os corpos dos rapazes e os
colocaram no cu, onde eram vigiados por outro xam; deram-lhes um veado
para comer. Este o sete-estrelo: uma ona devorando um veado. Quando esta
ona sair do cu, o mundo vai se acabar.167
A metamorfose temporria aparece ainda numa histria sobre a pesca de
tracajs que envolve um xam e um mapinguari, ser da mata que ameaa os humanos
(ver captulo 3):
Isto de l de Apiakatuba. O paj foi andar com a mulher dele; tinham
um gurizinho, ela botou na tipoia e foram embora. O velho agarrou a flecha e
foram. Todo tempo o crrego limpinho, era s cascalho mesmo, pra c, a no rio
So Tom. A chegaram, ele falou para a mulher: Voc fica aqui bem longe,
que eu vou l, vou vestir a roupa dele. Porque roupa mesmo a do mapinguari,
dizem que gente. Ele foi devagar, o mapinguari estava pegando cada tracaj
porreta no lago, tinha deixado a roupa pendurada numa travessa, o paj vestiu e
disse: Vou pegar um tracaj desse para eu comer em casa. A o dono da roupa
vinha voltando com o tracaj, chegou, olhou assim, ficou com medo do paj,
mas o paj falou: No tenha medo que eu no vou mexer com voc. A ele foi
de novo, no demorou, trouxe muitos tracajs. O mapinguari lhe deu trs
tracajs. O paj estava com a camisa do mapinguari, a roupa do mapinguari
come gente. O mapinguari se afastou. O paj tirou a roupa do mapinguari e foi
embora, deixou l. A o mapinguari veio, vestiu a roupa dele, a camisa dele
mesmo comeu um pedao da barriga dele. Quando o paj chegou na aldeia, os
outros disseram: Ns vamos l buscar tracaj. E o paj: No, l vocs no
andam, l perigoso, l tem mapinguari, tem todo bicho l. Parece que o lago
baixo, a gua bate bem no pescoo do mapinguari. gente mesmo. L s vai
pessoa com corpo fechado. No outro dia, o paj veio sozinho, no trouxe mais a
mulher. Os tracajs estavam l, o mapinguari estava morto, com a barriga
inchada: Era gente, mas agora bicho. Enquanto estava mergulhando, era
167

A propsito do fim do mundo atual, h outra histria em que a lua se apaga durante uma festa em que
os apiaks consumiam uma grande quantidade de porcos selvagens: O paj foi l no cu, falou com
Jesus: O senhor queria acabar com o mundo todo? No faa isso. Ah, vocs esto vivos?, ele falou.
Estamos, sim, somos poucos, mas estamos vivendo. Ento est bom, enquanto vocs esto vivos, a lua
estar aprumada, falou Jesus. A os pajs desceram de novo para o cho, os outros perguntaram o que
Jesus tinha falado, e eles: Jesus falou que no vai mais acontecer nada, ele estava s experimentando o
fio dele. Ns o ajeitamos, agora est bom. Dizem que Jesus est sentado na portinha dele, olhando pra
baixo; dizem que pertinho, quando a gente est falando mal dos outros, ele escuta. Dizem que muito
perto da terra.

207

gente, o brao dele era fino, perna, p, mas agora um bicho. A a roupa desse
bicho caiu ngua, com medo do paj. Ento o paj no deixou ningum mais
andar para o rumo desse lago, perto do salto So Simo. L muito farto de
comida.
Do ponto de vista da cosmologia, as metamorfoses atestam a capacidade de
agencialidade partilhada por todos os seres do cosmos um cosmos caracterizado,
ademais, por um potencial transformacional generalizado. Pessoas que viram bichos
quando desejam fazer mal a um co-residente, peixes que se transformam
definitivamente em pessoas; corpos de ndios inimigos que, cozidos, tornam-se insetos
(ou, como dizem os apiaks, pragas); pessoas que viram corpos celestes devido a seu
comportamento imprprio; sobrenaturais que assumem a forma humana para obter um
alimento apreciado pelos apiaks, tudo isso indica que o corpo pensado/vivido como
um envelope fsico circunstancial, uma roupa que pode ser temporariamente
abandonada ou perdida definitivamente. Dessa forma, assim como ocorre entre vrios
povos indgenas, se tudo pode ser humano, ento nada humano inequivocamente. A
humanidade de fundo torna problemtica a humanidade de forma (Viveiros de Castro
2002: 377). O maior problema experimentado pelos apiaks , com efeito, circunscrever
a forma humana ao comportamento e ao espao que lhe so adequados, de modo a
impedir que a experincia da pessoa venha a se dissipar no horizonte da alteridade o
que, do ponto de vista dos humanos, denota a morte.
De acordo com Viveiros de Castro (1986), as cosmologias tupi-guaranis no se
encaixam na grande oposio entre Natureza e Cultura delineada por C. Lvi-Strauss,
mas compreendem um terceiro domnio ontolgico, a que ele chama de Sobrenatureza.
Porm, como vimos, o pensamento social apiak no se encaixa num esquema bipartite
ou tripartite, que impe uma barreira ontolgica entre domnios simblicos. Ao
focalizar a transformao da pessoa em
exclusivamente) em ona,

168

animal, especialmente (mas no

os apiaks demonstram acreditar que a humanidade no

logicamente oposta animalidade; esta seria, ao contrrio, uma potencialidade daquela.


Seria mais apropriado, portanto, falar em algo como um continuum de humanidade,

168

Isto em detrimento de outras potencialidades da pessoa focalizadas por outros tupi-guaranis, como o
inimigo ou a divindade. Para os arawets e os guarani-mbys, por exemplo, as metamorfoses,
concebidas como irreversveis, ocorrem aps a morte, ao passo que, para os apiaks, elas so
reversveis e ocorrem em vida.

208

diferencialmente ocupado pelos seres do cosmos, todos eles irmanados pela


agencialidade.169
A alma-animal (gue) dos guarani-mbys concebida como uma poro
corruptvel, telrica, da pessoa, assimilada sombra, que se ope alma-palavra de
origem divina (nhee), associada ao nome (H. Clastres 1978; Guimares 2001, 2004,
2006). Em sua anlise das marchas cerimoniais em busca da terra sem mal
contemporneas, Guimares afirma que a transfigurao em outro-imortal, a
transcendncia da condio humana, maior desejo dos mbys, uma operao sobre o
corpo, no sobre a alma (S. Guimares 2004: 182). Os mbys acreditam que hoje vivem
numa terra imperfeita, por isso buscam a proteo de xams, pessoas sbias, sensatas,
prudentes e discretas, que exibem corpos leves e zelam pela harmonia na comunidade (:
181). Eles creem que as ameaas ao bem viver vm de dentro da prpria comunidade,
assim, o que leva um mby a matar outro a presena de um bicho ruim no matador,
isto , do crescente peso da poro terrena na pessoa (: ibidem).
De sua parte, os apiaks sublinham, por meio da questo da metamorfose, a
ambivalncia constitutiva que caracteriza tanto a pessoa como a comunidade; eles
focalizam o componente agonstico de sua organizao social, admitindo que sempre
possvel resvalar para a animalidade. Creio que a fraca nfase atualmente atribuda
vida aps a morte est relacionada ausncia de xams apiaks, ao trmino da poca
das guerras de vingana e convivncia com missionrios catlicos, mas no de um
modo automtico. A organizao social dos apiaks misturados pauta-se por um modo
de pensamento heterogneo e criativo, em que certas ideias exgenas foram apropriadas
de forma singular.
Nesse sentido, o domnio religioso ficou a cargo dos missionrios e padres da
Misso Cururu, muito embora os conceitos de mal, pecado original, culpa, inferno e
redeno no faam muito sentido para os apiaks. O que lhes interessa so as
cerimnias que marcam perodos importantes na vida da pessoa, como o batismo e o
casamento, alm das missas peridicas, quando o religioso exorta os moradores da
aldeia a viver de acordo com a mesma tica da moderao advogada pelos apiaks
influentes. A propsito das relaes entre a religio guarani e o cristianismo, Schaden
(1962) identificou
169

tanto

concepes

fundamentalmente irreconciliveis

como

A metamorfose tambm um conceito importante para os sanums (subgrupo yanomami), os quais


postulam um processo contnuo de adequao do cosmos e dos corpos de todos os seres (Guimares
2005: 64); nesta cosmologia, o objetivo das pessoas no transcender a condio humana, mas sim
caminhar a seu encontro, no sentido de aprimor-la, diversificando-a (: 46).

209

semelhanas e analogias entre ambos os sistemas de crenas. Assim, os guaranis no


aceitavam a noo crist de que, aps a morte, a alma ser julgada de acordo com a
conduta moral do indivduo, mas apropriaram-se rapidamente da figura da liderana
religiosa e da mirade de santos e anjos catlicos; de igual forma, a doutrina das
inclinaes boas e ms da alma ou levaria a uma identificao com duas almas, uma boa
e outra m, ou iria de encontro (sic) ao primitivo dualismo ou pluralismo da alma
humana (Schaden 1962: 109).
Por outro lado, os herois culturais no foram esquecidos, e sua assimilao a
entidades catlicas por parte dos missionrios no os descaracterizou em absoluto aos
olhos dos indgenas. Alm disso, se a Palavra da Salvao no suplantou a concepo
nativa de pessoa, como demonstrei, tampouco se pode afirmar que os apiaks aderiram
crena catlica, se por crena entendermos obedincia, sujeio, reverncia, temor,
adorao, abdicao da vontade prpria. Viveiros de Castro (2002) mostrou como o
virar branco e cristo dos tupinambs quinhentistas no correspondia em nada ao
desejo dos jesutas.170
Ademais, teramos de nos perguntar em que medida os ensinamentos catlicos
no foram, inversamente, apiakalizados, diante de narrativas que no evocam
absolutamente a figura catlica do mrtir que redime os pecados da humanidade.
Bahra, assimilado a Jesus Cristo e por vezes tambm identificado a Tup, exibe
caractersticas de xam e heroi civilizador, tem atitudes e sentimentos humanos,
associado a fenmenos meteorolgicos (relmpago, trovo e raio) e a bens culturais
preciosos (fogo culinrio, machado de pedra, espingarda e plvora).
A ttulo de ilustrao, transcrevo duas histrias que me foram contadas pelos
velhos apiaks. Na primeira, Bahra se mostra bastante prximo aos homens, comendo
junto com eles e pregando-lhes uma pea; entrega-lhes o fogo culinrio sob a forma de
ddiva, j que espera uma retribuio: uma poro de peixe.
170

Em sua anlise da reao inconstante dos tupis quinhentistas aos ensinamentos dos jesutas, Viveiros
de Castro faz uma crtica acepo substantivista do conceito de cultura, a partir de imagens
contrastivas retiradas do mundo natural: Nossa ideia corrente de cultura projeta uma paisagem
antropolgica povoada de esttuas de mrmore, no de murta (...) Entendemos que toda sociedade
tende a perseverar no seu prprio ser, e que a cultura a forma reflexiva deste ser; pensamos que
necessrio uma presso violenta, macia, para que ela se deforme e transforme. Mas, sobretudo,
cremos que o ser de uma sociedade seu perseverar: a memria e a tradio so o mrmore identitrio
de que feita a cultura. Estimamos, por fim, que, uma vez convertidas em outras que si mesmas, as
sociedades que perderam a tradio no tm volta. No h retroceder, a forma anterior foi ferida de
morte; o mximo que se pode esperar a emergncia de um simulacro inautntico de memria, onde a
etnicidade e a m conscincia partilham o espao da cultura extinta. Talvez, porm, para sociedades
cujo (in)fundamento a relao aos outros, no a coincidncia consigo mesmas, nada disso faa o
menor sentido. (Viveiros de Castro 2002: 195).

210

A noite escureceu, ficou tudo turvo. Eles estavam apalpando, no tinha


luz, no tinha nada, a um falou: Como ns podemos andar? O outro rapaz
falou: eu vou acender um pau na ponta de uma pedra. O outro foi, pegou uma
cera de piro, que tinha molhado Jesus. Jesus falou: Ento leva isso para voc
acender fogo, mas cuidado, seno a brasa vai derramar e voc nunca vai fazer
fogo. O homem queria assar um matrinx para comer com a famlia. A Jesus
disse: Voc traz um pedao pra mim? Vou te dar mais uma brasa. Jesus ficou
espiando. O homem foi fazer farofa: Ei pessoal, chega aqui, vamos comer
farofa de jatuarana! E Jesus l, comendo junto com o pessoal. E esse homem?
Jesus, ele morou no cu. Jesus falou pra eles: Fechem os olhos. Onde ns
estamos? Vocs esto no cu, Jesus falou. Pxa, no faa isso, leva a gente
de novo. Era s para vocs conhecerem o cu, no era para malinar. A ele
desceu: Agora vocs esto nessa terra de novo.
Na segunda histria, Bahra mostra uma outra face, apresentando-se como
entidade inacessvel aos homens comuns, poderosa e vingativa, dialogando apenas com
os xams:
O paj falou: Vamos l, buscar um remdio para a gente banhar?
Quando chegaram no fim do caminho deles, sentaram. A o trovo comeou a
estrondar, eles no sabiam o que era. O trovo danado, a o paj falou para o
pessoal: Aquele Jesus, ele est bravo. E como voc o viu? Eu vi, eu fui
casa dele, eu conheo a casa dele, a comida dele s farinha de amendoim
insossa. Vocs querem ver? Chama Jesus para ns vermos? Vocs
aguentam mesmo? Ele forte. A testa dele d choque. A ele gritou para o
relmpago: O pessoal quer te ver. O relmpago parou. O relmpago chegou e
perguntou: Cad o pessoal que queria me ver? Saa fogo pelo nariz dele. Eles
morreram. O paj: Est vendo? Por isso no presta teimar com os outros que
sabem mais. Bahra subiu de novo. O paj foi avisar o pessoal que o relmpago
tinha matado o pessoal: Eu falei que era gente mesmo, ele forte, eles disseram
que aguentavam... A colocaram os mortos dentro das redes, enterraram.
Bahra uma variao do heroi civilizador dos tupinambs e outros tupiguaranis, Mara ou, mais propriamente, o Mair-Munh, equivalente de Irin-Mag, o
sucessor de Monan (o pai, o antigo, aquele que deu o fogo aos humanos, criou o cu e a
terra e por fim destruiu o primeiro mundo). Mar-Munh associado chuva e foi o
responsvel pela introduo da agricultura aos humanos; tambm identificado a Tup,
que tem como atributos as nuvens, a gua, o som, o fogo e a agricultura (Mtraux 1979:
1ss). O equacionamento de Bahra a Jesus Cristo provavelmente faz parte de uma
estratgia mais ampla de converso adotada pelos jesutas, de conferir novos
significados aos termos nativos.
A. Mtraux falava num estoque comum da religio de todas as tribos tupiguaranis, derivada dos tupinambs quinhentistas; seus elementos principais eram a
saudao lacrimosa, a antropofagia ritual e a crena na terra sem mal (Mtraux 1979:

211

XXXV). Baseado em textos de cronistas e em etnografias do incio do sculo XX, este


autor advogava uma continuidade cultural entre os tupinambs quinhentistas e os povos
tupi-guaranis contemporneos. 171
Numa bela anlise da vida e da obra do missionrio-antroplogo Maurice
Leenhardt, J. Clifford (1982) trata das ambiguidades envolvidas no processo de
emergncia do indivduo cristo no conflituoso contexto da colonizao da Nova
Calednia (Melansia), no incio do sculo XX. Para Leenhardt, a constituio de uma
conscincia moral individual baseada na comunho ntima com Cristo no deveria ser
apenas um processo de separao (no que se refere relao com a terra, estrutura de
parentesco tradicional e ao pensamento mtico) e aquisio de auto-conscincia e livrearbtrio, mas deveria se dar por meio da traduo, da busca de equivalncias e
mediaes que unissem o antigo e o novo, o pago e o cristo, o mtico e o racional
(Clifford 1982: 78ss). Creio que operao semelhante foi realizada pelos missionrios
jesutas que convivem h dcadas com os apiaks, e lembro que dois deles so formados
em antropologia.
Leenhardt acreditava que a evangelizao consistia numa revoluo profunda e
geral nas formas como a pessoa v e se relaciona com o mundo (: 84) e que, num
contexto em transformao, novos modos de pensamento eram necessrios para lidar
com novas condies, por isso empenhou-se em compreender a fundo o sistema scioreligioso canaque.172 Para Leenhardt, leitor de Heidegger, haveria que se desenvolver,
nas primeiras dcadas do sculo XX, uma nova pessoa canaque, menos externalizada e
participatria, mais centrada num ego definido individualmente (: 89). Contudo o
missionrio no desejava que o Bao cristo se transformasse em mera ferramenta para
compreenso e controle dos eventos imediatos, uma vez que, a seu ver, tal
desenvolvimento encorajaria apenas a obscuridade da crena e promoveria o
crescimento do messianismo e da feitiaria, meios instveis (a seu ver) de resolver
problemas scio-religiosos. Conexes afetivas e simblicas mais profundas se faziam
171

172

A. Mtraux falava num estoque comum da religio de todas as tribos tupi-guaranis, derivada dos
tupinambs quinhentistas; seus elementos principais eram a saudao lacrimosa, a antropofagia ritual
e a crena na terra sem mal (Mtraux 1979: XXXV). Baseado em textos de cronistas e em etnografias
do incio do sculo XX, este autor advogava uma continuidade cultural entre os tupinambs
quinhentistas e os povos tupi-guaranis contemporneos. Tal continuidade foi endossada por Viveiros
de Castro (1986) na construo de seu modelo de anlise das cosmologias tupi-guaranis.
O cristianismo tambm foi um dos principais agentes de mudana na frica do Sul. Jean e John
Comaroff (1991) demonstram em sua minuciosa etnografia que o objetivo final dos missionrios
britnicos era colonizar a conscincia dos tswanas, travando-se assim uma verdadeira luta
simblica. Durante o longo processo de colonizao da conscincia, porm, os povos nativos
desenvolveram uma conscincia da colonizao que lhes permitiu reagir dominao colonial.

212

ento necessrias (: ibidem). Com o passar dos anos, porm, Leenhardt comeou a
recear que a aculturao destrusse o fundamento da personalidade canaque, definida
como a capacidade de partilhar em conjunto o tempo de outros, seres mticos e humanos
(: 187).
O mais interessante da anlise de Clifford a demonstrao do movimento
gradual de alargamento do conceito cristo de Deus realizado por Leenhardt a partir do
dilogo com os pastores canaques. O novo Deus cristo dos canaques era uma entidade
andrgina, um misto de identificao totmica e culto aos ancestrais que unia vida
feminina e poder masculino (: 90). Alm disso, aquele autor esclarece que, enquanto
Leenhardt acreditava ter dado aos canaques a noo de esprito, estes afirmavam que o
que ele lhes ensinara fora a noo de corpo (: 172). O antroplogo-missionrio no
concebia a religio como um sistema fechado de crenas ou smbolos, mas sim como
um campo aberto de expresses de formulao parcial. Para ele, a percepo mtica
canaque no era algo misterioso, mas um procedimento intelectual concreto,
constitutivo da pessoa e do territrio (: 180).
Ora, no improvvel que, no momento em que os apiaks tentavam se
reestruturar como povo, reunindo-se em parcela de seu territrio tradicional (anos
1960), a mensagem dos missionrios se ajustasse perfeitamente s concepes indgenas
de parentesco, focalizando a famlia (sobretudo as crianas), dirigindo-se para o futuro,
reforando laos de solidariedade geracional e insistindo na superioridade das relaes
entre as pessoas sobre os objetos. Com efeito, os apiaks misturados veem na
socialidade alde (e no na vida post mortem) o lugar da realizao plena da pessoa, e
por isso dedicam-se sublimao de sua poro animal. O chefe, no o guerreiro ou o
xam, o modelo ideal masculino, e sua funo basicamente falar, isto , negociar
com os brancos e outros povos indgenas para obter melhorias para a aldeia. As festas
no so realizadas visando a comunicao com os deuses, mas sim com o objetivo de
intensificar os laos entre co-residentes. O grande Outro externo com que os apiaks se
relacionam hoje so os brancos, e o maior desafio no presente incorporar seus objetos
e instituies sem se tornar um deles, isto , sem adotar tambm seu modelo de relao
social.
R. Murphy (1958) produziu uma anlise fatalista sobre a religio munduruku,
influenciada como foi por missionrios salesianos e franciscanos, aps ter sido
praticamente inviabilizada pelo engajamento destes indgenas na indstria da borracha,
no final do sculo XIX. De acordo com o autor, no sculo XX desapareceram crenas e
213

prticas religiosas que constituam o cerne da religio munduruku, baseada na estreita


relao entre humanos e animais de caa. O fim das guerras e a inexistncia de xams
poderosos seriam os fatores responsveis pela apatia demonstrada pelos mundurukus
em relao sua cultura (Murphy 1958: 133). Todavia, nos anos 1950, persistiam a
prtica de cura xamnica de pessoas acometidas por perda da alma e as acusaes de
feitiaria. Murphy tambm conta que, a despeito dos esforos de evangelizao, os
mundurukus geralmente aceitavam apenas a forma das ideias catlicas, e no seu
significado: Nos casos em que a forma de uma crena catlica se integravam cultura,
ela se tornava significativa nos termos Mundurucu, sendo que a forma efetiva
invariavelmente sofria alguma transmutao no processo (: 24). O conceito munduruku
de alma assim como o conceito apiak permaneceu bastante diferente daquele
ensinado pelos missionrios, muito mais ligado s aes da alma neste mundo do que
em seu destino post mortem.
Do ponto de vista da organizao social apiak, casos de pessoas que se
transformam em bicho para fazer mal aos co-residentes parecem ter relao com a
densidade populacional das aldeias; no Mairowy, uma aldeia considerada pequena (93
habitantes), os moradores dizem que ningum se transforma em bicho, mas ouvi relatos
de casos no Mayrob, uma aldeia bem maior (208 habitantes). Os apiaks e os
mundurukus que vivem em aldeias apiaks dizem que os mundurukus do Cururu e do
Tapajs fazem muito feitio. Por sua vez, os mundurukus normalmente justificam a
migrao de segmentos de famlia extensa para o Teles Pires e o Rio dos Peixes pelo
desejo de se distanciar do circuito de feitiaria que produz muitas mortes e doenas em
sua terra natal. Desta forma, essas famlias de migrantes tanto constituem um ponto de
apoio para os demais membros do cl que permaneceram nas aldeias de origem quanto
provm cnjuges para os apiaks.
Disso tudo depreende-se que manter a harmonia na aldeia implica assegurar o
bem-estar de todos os co-residentes, de modo a impedir a ecloso de conflitos que
podem resultar em ciso poltica, doena e morte. Se as guerras e as festas com cabea
de inimigo acabaram h muito, o lugar constitutivo do Outro permanece presente no
pensamento e na organizao social apiak. Como estabelecer e manejar a boa
distncia quando se mora com outros parece ser a principal questo sociolgica
nesse contexto. Como vimos, a nfase na residncia como fator estrutural de
organizao social aponta para uma inteno de classificar as pessoas mais em termos
de espao e de convivncia (onde, como e com quem se vive) do que em termos de
214

tempo e de memria (muito embora os sobrenomes de alguns antepassados


transformados em nomes de parentelas constituam elemento central da identidade
tnica apiak).
Assim, as relaes de parentesco so consolidadas mais com base no espao
da residncia do que no tempo da descendncia. Se a histria produziu desagregao,
parecem cogitar os apiaks, o territrio um elemento de re-unio no presente, da a
posio de destaque que a reivindicao territorial ocupa no discurso dos homens
influentes. Co-residncia e aliana matrimonial encontram-se necessariamente
imbricados numa espcie de geopoltica do casamento (Ramos 1990: 177), na medida
em que os bons casamentos so tanto aqueles entre parentes distantes que vivem na
mesma aldeia como aqueles com pessoas de aldeias distintas, mas conhecidas de longa
data.

4.2- Elaborando a consanguinidade e a afinidade


Num artigo em que discute a tese de R. Murphy sobre o sistema de parentesco
munduruku, A. Ramos (1978) refuta a ideia de que teria havido uma mudana radical,
no sculo XIX, da regra de residncia virilocal para a regra de residncia uxorilocal,
induzida pela crescente participao das mulheres no mercado regional, por meio da
venda de farinha de mandioca para os seringueiros (Murphy 1960: 80). Murphy e outros
antroplogos seus contemporneos esperavam que os sistemas de parentesco
amaznicos fossem harmnicos, isto , a um sistema de descendncia patrilinear deveria
corresponder necessariamente uma regra de residncia uxorilocal, a anomalia
munduruku consistindo, assim, na divergncia entre patrilinearidade e uxorilocalidade,
supostamente surgida no sculo XX.
De acordo com Ramos, no entanto, a ausncia de continuidade genealgica, de
co-residncia de parentes agnatos e de direitos de propriedade coletivos (ou seja, de
grupos corporados propriamente) entre os mundurukus contemporneos no diminui o
valor do princpio patrilinear como um idioma, como um sistema de ideias por meio do
qual os mundurukus se distinguem internamente e se identificam face ao mundo exterior
(Ramos 1978: 686), organizados que esto em metades exogmicas, cls e fratrias.
Nesse sentido, o sistema munduruku no seria anmalo, mas constituiria, antes, um
sistema desarmnico, semelhante a tantos outros sistemas sul-americanos, em que o
princpio de filiao, combinado co-residncia, orienta a organizao das atividades
215

concretas no cotidiano (: ibidem). A autora apresenta uma importante advertncia a


respeito da tentao de se atribuir problemas no compreendidos aos efeitos de
mudana, propondo que se considere a possibilidade de que a fonte de sentido dessas
anomalias possa j estar dentro do prprio processo de funcionamento do sistema em
questo (Ramos 1990: 122), advertncia que manteremos em mente ao longo da
anlise da organizao social apiak.
E. Wenzel (1999), o missionrio que viveu por duas dcadas entre os apiaks
no Rio dos Peixes, afirma, com base em dados de campo dos anos 1970 e 1980, que os
casamentos intratribais se davam ento entre primos cruzados e obedeciam regra de
residncia patrilocal; os casamentos intertnicos, por outro lado, seguiam a regra de
residncia uxorilocal, de modo que os homens de outra etnia passavam a residir junto
aos pais da mulher apiak.
Meus dados de 2007, que contemplam tambm apiaks de outras microregies, contrariam os dados de Wenzel. No observei preferncia por casamento entre
primos cruzados nem tampouco uma regra de residncia patrilocal. Com efeito, no
possvel identificar regras prescritivas de casamento; existe apenas a proibio de
casamento entre consanguneos prximos ou imediatos, que so, para ego masculino:
avs materna e paterna, me, irm da me, irm do pai, irm, filha da irm, filha do
irmo, filha e neta.173 Casamentos entre primos (cruzados e paralelos de primeiro grau)
eram tolerados at a ltima dcada; no Mayrob, num universo de 40 casamentos,
verifiquei trs unies entre primos cruzados de primeiro grau que cresceram juntos
(sendo que um desses casais formado por filhos de unies distintas do av comum),
todos com idade inferior a 30 anos, classificados como imprprios; alm de trs
casamentos entre primos paralelos, a respeito dos quais jamais me foi dirigido qualquer
tipo de comentrio, sendo que dois desses casais so compostos por pessoas que
cresceram na mesma aldeia e esto na faixa dos 20 anos, e o terceiro composto por um
homem e uma mulher na faixa dos 40 anos, que viveram em aldeias distintas e se
uniram em segundas npcias, ambos com filhos adultos. (Como veremos adiante, a
convivncia um critrio fundamental no estabelecimento de relaes matrimoniais.)174
173

Da mesma forma, entre os teneteharas, cujo contato intenso com os brancos se iniciou em meados do
sculo XVII, a unio com a irm da me, a irm do pai, a prima, a filha da irm e a filha de todas
aquelas chamadas de irms era proibida nos anos 1940 (Wagley & Galvo 1961: 95).

174

Embora identifiquemos casamentos entre primos cruzados e casamentos avunculares nos diagramas de
parentesco apresentados (verso tica), optei por analisar os discursos dos apiaks sobre os
casamentos (verso mica).

216

Os casamentos preferenciais so aqueles estabelecidos com parentes


classificados como distantes, que so, para ego masculino: a filha da filha da irm da
me (ffim), a filha da filha do irmo do pai do pai (ffIPP), a filha da filha da irm da
me do pai (ffimP), a filha do filho da filha do filho do irmo do pai do pai (fFfFIPP) e
assim por diante.175 Casa-se tambm, de modo apropriado, embora cada vez menos
desejvel, com kaiabis e mundurukus de aldeias vizinhas e com brancos regionais
conhecidos de longa data.
De outro modo, como vimos no captulo 3, existe uma expectativa de
uxorilocalidade, e eu gostaria de mencionar que a aldeia Mayrob consolidou-se em
torno de um homem apiak influente, apoiado pelos missionrios, um filho casado com
uma munduruku e duas filhas casadas, respectivamente, com um munduruku e um
arig, evidenciando-se o valor poltico da uxorilocalidade (ponto retomado no captulo
5). Alm disso, hoje em dia raro que um(a) apiak se mude para uma aldeia
munduruku ou kaiabi por motivo de casamento, a situao inversa sendo a mais comum,
isto , os apiaks tm conseguido atrair cnjuges dessas duas etnias, de ambos os sexos,
para suas aldeias, cuja qualidade de vida amplamente reconhecida.
Vigora o princpio de filiao cogntica ou bilateral, associado exogamia
tanto de famlia extensa como de aldeia; a parentela ou kindred de uma pessoa
(categoria que engloba todos parentes colaterais de ego) tem grande importncia
tambm na esfera poltica. O casamento associa-se inexoravelmente a localidade, uma
vez que as alianas matrimoniais consolidam ou criam novas alianas polticas e
econmicas, ampliando-se os vnculos dentro da aldeia e tambm no interior da rede
social regional.
possvel que o casamento entre primos cruzados fosse apenas uma
possibilidade entre outras nos anos 1970, e no uma regra, possibilidade que mostrouse til no perodo em que os apiaks se reorganizavam como povo, ao lado dos kaiabis e
dos missionrios jesutas no Rio dos Peixes, levando a crer que consistiram ento numa
estratgia de fortalecimento do grupo. Nos anos 1990, fortalecidos demogrfica, social e
politicamente e intensamente catequizados, os apiaks teriam se permitido casar-se a
uma distncia maior. Alm disso, seria possvel conjecturar sobre a natureza
175

Um homem chegou a me dizer que, se o primeiro cacique do Mayrob, av de dois primos cruzados
que se tornaram cnjuges, ainda fosse vivo no teria permitido o casamento. No entanto, um casamento
de filhos de primos paralelos que no cresceram na mesma aldeia e dois casamentos de filhos de primos
cruzados (todas essas pessoas tm menos de 20 anos) so considerados apropriados. No Mairowy, no
registrei nenhum casamento entre primos cruzados ou paralelos.

217

desarmnica do sistema de parentesco apiak, a exemplo do sistema munduruku, mas


este no nosso objetivo. No pretendemos sustentar o postulado de uma estrutura
harmnica corrompida pela histria nem tampouco cair no extremo oposto de analisar o
parentesco sem considerar o processo histrico.176 Visamos, antes, apreender o modo de
funcionamento e as concepes mobilizadas pelos apiaks para justificar uma
atualizao possvel de um sistema caracterizado pela plasticidade. A hiptese a de
que, em face do processo de violento decrscimo populacional e disperso territorial
iniciado na segunda metade do sculo XIX, uma situao indita e sem dvida
desestabilizadora, o sistema de parentesco apiak modificou-se enquanto se reproduzia.
Como diria Sahlins (2008: 98), os valores adquiridos na prtica retornaram estrutura
como novas relaes entre as categorias desta estrutura.
O regime matrimonial e residencial apiak no pode ser desvinculado da
historicidade. As relaes de parentesco contemporneas revelam grande capacidade de
adaptao a novas situaes, constituindo o fundamento da resilincia social desse
povo. No contexto do trabalho nos seringais da regio dos formadores do Tapajs, os
apiaks foram levados a diversificar seus arranjos matrimoniais, passando a casar-se
com pessoas das etnias munduruku, kokama, sater-maw, com arigs e mais tarde,
com kaiabis, tornando-se misturados e civilizando-se, em suas prprias palavras.
Neste sentido, os apiaks contemporneos falam de si mesmos como descendentes da
multiplicidade das alianas dos sobreviventes dos massacres e epidemias do sculo XIX
este o plano simblico e histrico que, no presente, orienta sua vida social. Se o
casamento de primos cruzados era vivel no momento do realdeamento (anos 1960),
deve ter se mostrado por demais restritivo no contexto de convivncia com os kaiabis e
com missionrios. Ao que tudo indica, foi necessrio ampliar o leque de opes
matrimoniais para que os apiaks no sucumbissem demogrfica e politicamente e no
desaparecessem como povo, diluindo-se entre os kaiabis. Ademais, os casamentos entre

176

R. Laraia (1971) listou os seguintes traos bsicos dos sistemas tupis quinhentistas: descendncia
patrilinear, residncia patrilocal com possibilidade de uxorilocalidade temporria, chefia hereditria e
possibilidade de existncia de metades. Ele props que os sistemas de parentesco dos povos tupi-guaranis
contemporneos reproduzem aqueles traos gerais, embora tenha registrado diversos casos de
havaianizao, a saber, entre os kamayurs, os teneteharas, os tapiraps e os kayos, atribuindo-os a
uma mudana decorrente de fatores externos (Laraia 1971: 187). O fato de os apiaks mais velhos
tratarem seus primos e primas paralelos e cruzados com o mesmo termo aplicado aos irmos (manos), a
tendncia a marcar a idade relativa no discurso e a ausncia do casamento preferencial com a prima
cruzada permitiria classificar os apiaks como mais um caso de havaianizao. Todavia, parece-nos mais
adequado, para a anlise do caso apiak, no tomar tal modelo como um postulado ou uma necessidade
lgica, de modo a respeitar sua especificidade histrica.

218

apiak e kaiabi no Rio dos Peixes datam dos anos 1980; antes disso, os apiaks do Rio
dos Peixes preferiam casar-se com mundurukus migrados do rio Cururu.
Dialogando com os historiadores, Lvi-Strauss se perguntou em que
condies e sob que formas o pensamento coletivo e os indivduos se abrem para a
histria? Quando e como, em vez de olh-la como uma desordem e uma ameaa, nela
veem um instrumento para agir sobre o presente e transform-lo? (Lvi-Strauss 1999:
10). A resposta a tal indagao, absolutamente pertinente no caso apiak, elaborada a
partir do dilema enfrentado pela aristocracia japonesa medieval: aderir ou no ao
casamento entre primos. De acordo com o autor, o Japo antigo descobria que
sociedades que s aspiram a se reproduzir e se submetem mudana sem desej-la
podem, sem abandonar as vias do parentesco, encontrar no grande jogo das alianas
matrimoniais o meio de se abrirem histria e s condies de um futuro previsto (:
13).
Tanto os casamentos com indgenas de outras etnias e com arigs quanto o
casamento com consanguneo distante, praticados pelos apiaks atualmente, devem ser
lidos como meios de rearranjar componentes de uma estrutura que sempre esteve e
sempre estar sujeita histria, evidenciando-se uma tendncia de abertura a novos
eventos e adaptao s contingncias. Para Lvi-Strauss, o casamento a uma distncia
maior (que aquele entre primos), se de um lado expe-se ao risco e aventura, por outro
permite a especulao: estabelece alianas inditas e movimenta a histria graas ao
de novas coalizes (Lvi-Strauss 1999: 11). Nesse sentido, o deslocamento da
linguagem do parentesco para fins polticos oblitera parcialmente, a um s tempo, a
distino entre linha paterna e linha materna, assim como a distino entre endogamia e
exogamia, resultando em regimes cognticos nos quais a regra de descendncia no
pertinente e a relao de troca predomina sobre o critrio unilinear (: 19). Tal
configurao remete s sociedades de casas, entidades morais em que a filiao
equivale aliana e vice-versa (: 23), encontradas entre povos to distintos como os
indgenas americanos, os polinsios, os africanos, a aristocracia europeia do sculo XVI
e os camponeses franceses no sculo XIX.
Na ltima dcada, os casamentos de apiaks com forasteiros conhecidos
(mundurukus, kaiabis e brancos regionais) passaram a ser preteridos em favor do
casamento com consanguneo distante.

177

177

No Mayrob, aldeia populosa, os jovens na

Entre os apiaks no se verificam casamentos polignicos.

219

faixa dos 14 anos encontram cnjuges adequados sem sair da aldeia, como a filha da
filha da irm da me do pai (ffimP) para ego masculino, que ento precisa apenas mudar
de casa (ver captulo 3). De outro modo, no Mairowy, rapazes e moas dessa idade
enfrentam dificuldade para encontrar um cnjuge, j que so quase todos primos
legtimos (filhos de cinco siblings Kamassori, nos. 93, 95, 96, 97 e 99 no Diagrama
5.1) e no podem casar entre si. Assim, moas e rapazes tm de recorrer a regionais ou a
mundurukus do Tapajs dispostos a se mudar para a aldeia, ou ento seguir a carreira de
namoradores, pessoas que tm apenas casos fortuitos, o que no visto com bons
olhos pelos mais velhos. Esses regionais e mundurukus no so, entretanto, completos
desconhecidos; so muitas vezes parentes entre si ou consanguneos afastados de um
dos pais do cnjuge apiak.178 Embora sejam desejveis, os casamentos entre jovens do
Mayrob e do Mairowy apresentam uma desvantagem para o rapaz, que deve se mudar
para cumprir o servio da noiva na aldeia dos sogros; dada a distncia que separa as
duas aldeias (algo em torno de 500 quilmetros, a serem percorridos metade de
voadeira, metade por estradas precrias), muito difcil que ele possa visitar os pais
com frequncia, e a mudana tende a ser definitiva.

********
Desde que foram contatados por missionrios no incio do sculo XX, os
apiaks adotaram uma estratgia importante em termos de ampliao dos laos de
parentesco, o compadrio (parentesco fictcio, parentesco espiritual ou pseudoparentesco), instituio que exprime o parentesco voluntrio e ritual (Ghasarian 1996:
188) e a orientao das relaes sociais para o futuro. O compadrio uma relao
oficializada no ritual catlico do batismo, que determina que um casal adquire certas
obrigaes em relao ao() afilhado(a). Atualmente, no Rio dos Peixes, o padre que
realiza os batismos o jesuta que mora na aldeia h mais de vinte anos; no baixo Teles
Pires, as pessoas recorrem aos sacerdotes franciscanos da Misso Cururu. Espera-se dos
padrinhos que eles presenteiem a criana no aniversrio e no Natal, que a aconselham e
que tomem conta dela em caso de morte dos pais. Por ocasio de uma cerimnia
coletiva de batismo no Mayrob, as madrinhas das crianas prepararam bolos de
178

Por exemplo: o marido de uma das irms Kamassori de Mairowy descendente de arig; uma irm
dele casada com outro irmo Kamassori, que vive no Bom Futuro. Um filho de outro sibling da
parentela Kamassori casado com uma munduruku proveniente da Misso; aps seu casamento, outro
morador da aldeia, descendente dos Pombos, casou-se com uma prima dela, a qual tambm se mudou
para o Mairowy.

220

mandioca e providenciaram guloseimas industrializadas para distribuir no salo aps o


sacramento. O batismo concebido como uma espcie de proteo espiritual para a
criana; os apiaks dizem que as crianas batizadas adoecem menos e tm mais chances
de sobreviver que aquelas ainda no batizadas.179
Os apiaks enfatizam mais o vnculo horizontal entre os compadres que o
vnculo vertical entre padrinhos e afilhado, valorizado pela igreja. Para os apiaks, o
compadrio consiste fundamentalmente na ligao estabelecida entre dois casais
(previamente unidos por laos de consanguinidade, afinidade ou amizade) por
intermdio de uma criana.180 Os quatro adultos assim interligados passam a se chamar
publicamente de compadre e comadre, vocativos que implicam algum grau de
reverncia, e exortam o afilhado a tomar a bno a seus padrinhos sempre que os
encontra. Entre compadres, vigora a obrigao de hospitalidade, ajuda mtua e
generosidade irrestrita em matria de alimentos e objetos em geral. Compadres no
fazem trocas mercantis entre si.
O nmero de afilhados uma medida do prestgio de um casal, embora possa
vir a se transformar num fardo. Uma mulher influente no Mayrob orgulhava-se de ser
madrinha de nove crianas, muitas das quais no eram parentes prximos. Geralmente,
casais menos abastados escolhem casais mais abastados para batizar seus filhos, fiandose na obrigao de generosidade assim estabelecida. Por isso, a esposa de um cacique
apiak me disse que no aceitaria mais nenhum convite para ser madrinha de batismo:
Os compadres pegam confiana, comeam a pedir demais e at faltam com o respeito
com a gente.
O compadrio consagra relaes de parentesco e solidariedade pr-estabelecidas
e representa a possibilidade de ampliao da parentela e, portanto, da rede de relaes
de um casal para fora da famlia extensa, o que intensifica a coeso poltica e econmica
dentro da aldeia e tambm entre aldeias vizinhas, alm de reforar alianas polticas e
econmicas com brancos. O compadrio uma forma de conceber a co-residncia no

179

Alm do batismo, o casamento, a primeira comunho e a morte so outros momentos crticos que
exigem a atuao do padre no Mayrob, um forasteiro que se comunica com o sagrado e que, por no
ter vnculos de parentesco na aldeia, transita livremente pelas casas e obtm informaes de fontes
variadas, o que lhe confere um conhecimento global da vida social, conhecimento este que serve de
base a suas pregaes dominicais.
180
A respeito dos povos nativos do baixo Urubamba, que tambm atribuem grande valor ao compadrio,
Gow afirma que, no Baixo Urubamba, o compadrio uma importante relao semi-afim/semiconsangunea que dois homens estabelecem com base na criana, transformando parentes distantes em
parentes reais (Gow 1991: 172ss).

221

horizonte do parentesco, na medida em que estabelece uma espcie de filiao ritual


(vnculo vertical) combinada a uma espcie de afinidade ritual (vnculo horizontal).
Neste sentido, o compadrio uma espcie de modelo reduzido da afinidade,
repercutindo concretamente apenas sobre a trade pais-afilhado-padrinhos.
relativamente comum que casais troquem afilhados (um casal batiza o filho do casal
que havia batizado um filho seu), sendo que esses dois afilhados ficam como irmos
e, se forem de sexos opostos, no podem se casar. Porm no h nenhuma sano sobre
o casamento entre os siblings dos respectivos afilhados. Ou seja, a proibio de
casamento no elstica, no se estende para alm dos diretamente envolvidos.
O fenmeno do compadrio entre povos indgenas contemporneos ainda no
recebeu grande ateno por parte dos etnlogos brasileiros, exceo feita a R. Cardoso
de Oliveira, que demonstrou ser este um importante mecanismo de ampliao da rede de
parentesco entre os terenas (arawak) contemporneos, especialmente entre aqueles
vivendo em cidades. De acordo com o autor, a instituio do compadrio constitui uma
projeo do grupo de orientao pessoal no nvel do parentesco. E no por outra razo
que vemos o compadrio ser adotado em tantas sociedades indgenas quantas foram
colonizadas por segmentos catlicos da sociedade nacional (ou colonial) e trazidas ao
convvio intertnico (Cardoso de Oliveira 1968: 174ss).
Em artigo publicado na mesma poca, num livro sobre sociedades camponesas,
S. Mintz e E. Wolf (1967) traam o histrico do compadrio como instituio sancionada
pela igreja catlica durante o perodo feudal, focalizando as conexes entre parentesco
ritual e sistema econmico. Os autores atribuem a rpida difuso dessa instituio
europeia em terras americanas natureza flexvel e adaptvel do mecanismo do
compadrio; entre povos indgenas e camponeses, a relao entre compadres sobrepuja a
relao entre o padrinho e seu afilhado (Mintz & Wolf 1967: 187) e fomenta a criao
de uma rede de solidariedade na comunidade, tornando o ambiente social mais estvel e
seus membros, mais interdependentes e seguros (: 188). De acordo com Mintz e Wolf, o
compadrio funcional em contextos onde prevalecem as relaes face a face e a famlia
a unidade bsica de produo. Aps rpida anlise de cinco pequenas comunidades
latino-americanas com diferentes tipos de insero no capitalismo industrial, os autores
concluem que o compadrio consiste na tentativa de retardar o processo de incorporao
de grupos tradicionais economia de mercado (: 196).
No caso dos apiaks, o compadrio no responde apenas a uma necessidade de
ordem social e econmica, responde igualmente a uma necessidade de ordem simblica
222

e poltica, pois a intensificao de laos de solidariedade com base no idioma do


parentesco sustenta a auto-imagem da comunidade como grupo de parentes e favorece a
consolidao de vnculos supra-aldeos e intertnicos. Num pequeno artigo de 1943,
Lvi-Strauss trata da instituio do cunhadio entre os nambiquaras (famlia lingustica
isolada), que lhe chamara a ateno quando do primeiro encontro entre dois subgrupos
que se fundiram posteriormente.181 A singularidade do evento reside no fato de que o
idioma escolhido para o tratamento recproco entre os homens no tenha sido o da
fraternidade, mas o do cunhadio, sendo que os vocativos exprimiam uma relao entre
um homem e seus aliados colaterais sem que tivesse ocorrido casamento. Da a
explicao oferecida pelo autor, segundo o qual a relao entre cunhados extravasa o
domnio do parentesco, consistindo num modo de assegurar intercasamentos e assim
amalgamar grupos sociais ou familiares previamente heterogneos em uma nova
unidade homognea (Lvi-Strauss 1943: 407).
O compadrio ocidental foi rapidamente incorporado pelos tupis da costa,
poca da conquista, devido analogia que apresentava com o cunhadio. Apesar das
aparncias, Lvi-Strauss aponta para a diferena estrutural entre o compadrio europeu e
o cunhadio amerndio, afirmando que, enquanto na sociedade latino-mediterrnea
verifica-se que o vnculo mstico pode se tornar um vnculo de parentesco real por meio
do casamento (j que o compadre um cunhado em potencial), para os nambiquaras
contemporneos e os tupis antigos o parentesco real que fornece o modelo para
estabelecer relaes mais amplas (: 408). Entre os apiaks, pode-se dizer que dois casais
de compadres se tratam como afins, assim como os forasteiros usualmente se tornam
cunhados(as) ou genros(noras).
Para os apiaks, a relao de compadrio soma-se s alianas matrimoniais em
regime cogntico no sentido de criar mais parentesco, novas aldeias e laos mais fortes
entre aldeias, ampliando-se e intensificando-se os vnculos em escala regional.
possvel dizer, assim, que o espao o princpio relevante para organizar a vida social, o
que tem repercusses polticas importantes, na medida em que a observao das regras
do modo de vida comunitrio consiste num dos principais critrios de atribuio de
identidade tnica apiak, a expensas de sinais culturais diacrticos; afinal, quem vive
como parente por um longo tempo acaba se tornando, de fato, parente, geralmente pela
via do casamento.182
181
182

Os nambiquaras praticavam o casamento entre primos cruzados.


Viveiros de Castro prope que, em toda a Amaznia, observam-se socialidades pautadas pela

223

Combinando fisiologia e reflexo sobre o social, os apiaks explicam a


proibio de casar com a prima legtima (prima cruzada ou paralela) pela proximidade
excessiva do sangue: A gente no casa com prima legtima porque o sangue muito
perto; agora, com a filha da prima a gente pode casar, porque o sangue j mais longe.
Casar com branco, munduruku, kaiabi ruim, porque d muita desavena, briga. O bom
casar com pessoa conhecida, a no d briga, contou-me um velho apiak. O
casamento entre primos de primeiro grau (legtimos) concebido como imoral,
embora eu tenha registrado alguns casos; os apiaks comparam a regra de casamento
munduruku com a sua prpria: Para eles, bom casar com a prima legtima, mas com a
gente diferente, dizem. A prtica de casamento com parente distante deve ter
recebido um reforo ideolgico suplementar, em meados do sculo XX, da parte dos
missionrios jesutas, que pregariam a proibio catlica de casamento com a prima
legtima.183
Como se v, o clculo genealgico apiak combinado ao critrio da
convivncia (que, por sua vez, remete ao fator residencial) para produzir bons
casamentos ou casamentos boa distncia, aqueles que no suscitam conflitos, quais
sejam, aqueles que se do entre membros de famlias extensas distintas, que
estabeleceram uma relao harmoniosa, contribuindo para a coeso da comunidade, que
pode assim continuar a se ver como grupo de parentes, ou ento para reforar laos
entre comunidades distintas.184 A medida de distncia que faculta ou veda o casamento
entre duas pessoas consiste, portanto, na combinao de trs fatores: o critrio

distino entre o prximo e o distante, pela predominncia da residncia sobre a descendncia, da


contiguidade espacial sobre a continuidade temporal, da ramificao lateral de parentelas sobre a
verticalidade piramidal de genealogias (Viveiros de Castro 2002: 130). O autor destaca a noo de
troca do campo do parentesco e afirma que a troca amaznica consiste na predao ontolgica, sem
demonstrar, contudo, o vnculo necessrio entre esta e a afinidade potencial. Por outro lado, ele indica,
acertadamente a meu ver, a assimetria entre a consanguinidade e a afinidade nesse contexto
etnogrfico, afirmando que O gradiente de distncia o terreno por excelncia da performao, da
interao entre norma e ao, estrutura e histria (: 133) e chamado a ateno para o fato de que
preciso verificar quais os contedos que o gradiente de distncia recebe em cada caso (: 134).
183
Com relao transformao histrica do casamento entre primos cruzados de uma possibilidade para
uma proibio, verificada entre os povos nativos do Baixo Urubamba, Gow apresenta a justificativa
dada pelos indgenas, de que os missionrios franciscanos desaprovavam este costume (Gow 1991:
148). O sistema de parentesco dos povos do Baixo Urubamba apresenta diversas semelhanas com o
dos apiaks, a saber: ausncia de regra de casamento de primos cruzados e do modelo de aliana
simtrica; vigncia de parentesco cogntico ou bilateral; possibilidade de os cnjuges morarem na
aldeia dos parentes de qualquer um deles (ambilocalidade); casamento com parentes distantes e falta
de interesse na identidade categorial do cnjuge, o que indica um sistema de parentesco caracterizado
pela recusa ao fechamento (Gow 1991: 199).
184
digno de nota que pessoas no diretamente aparentadas ou remotamente aparentadas com os homens
e mulheres mais velhos das aldeias (um FFfim de um ego na faixa dos sessenta anos, por exemplo) os
chamam convictamente de titio, titia, vov ou vov.

224

etnofisiolgico (grau de proximidade do sangue), o fator geracional e a qualidade da


interao social: a filha do filho da filha do irmo do pai que more na mesma aldeia
onde vive um ego masculino, por exemplo, considerada uma cnjuge adequada,
embora ningum apele para o fator genealgico para justificar a legitimidade do
casamento.
A ausncia da regra de casamento de primos cruzados entre os apiaks aponta
para a inexistncia de categorias afins a priori. Se a aliana no herdada, se no
perdura ao longo das geraes, no se verifica aquela oposio entre parentes
consanguneos e afins anterior ao casamento que, de acordo com L. Dumont (1953),
caracteriza o sistema dravidiano. Entre os apiaks, tudo indica que os afins so apenas o
resultado de casamentos especficos. Por sua vez, a importncia maior desses afins
produzir consanguneos. Neste sentido, observam-se dois tipos de casamento com
repercusses idnticas: i) com forasteiros conhecidos, que no transmitem afinidade,
unio mais comum entre os anos 1960 e 1990 e ii) com consanguneos afastados que
so tornados afins apenas pela via do casamento, mas cuja afinidade no transmitida
para as geraes seguintes, unio cuja frequncia tem aumentado desde os anos 1990.
A nfase do parentesco apiak recai sobre o casamento, sobre o casal
propriamente, que deve produzir consanguneos; a afinidade, assim reduzida ao mnimo
necessrio, exprime-se de modo mais ou menos tnue no campo das atitudes de
parentesco, a saber: i) entre cada cnjuge e seus sogros, no sentido de maior respeito e
evitao; ii) entre os pares de sogros, que passam a se tratar com alguma deferncia
aps o casamento dos respectivos filhos; iii) entre o marido e os irmos da esposa, que
passam a colaborar em algumas atividades, como a construo da casa e a abertura da
roa, e tambm a apoiar-se mutuamente na esfera poltica; iv) entre a esposa e as irms
do marido, que passam a colaborar na preparao de farinha de mandioca e na
socializao dos filhos; v) entre dois casais de compadres, que se tratam com
deferncia. Um casamento entre pessoas de duas famlias extensas no enseja a
expectativa de novas alianas ou proibies entre elas; no existe nada como a formao
de grupos que devem ou que so impedidos de replicar alianas entre si. Os afins no
so fundamentalmente outros, no carregam aquele peso de mal necessrio como
ocorre entre os sanums (Ramos 1990: 163), para dar um exemplo contrastivo.185

185

Ramos (2006) explica que, entre os sanums, que desenvolveram um sistema desarmnico, com
descendncia patrilinear e residncia matrilocal, a afinidade, cuja expresso mais pungente a dade
genro-sogra, implica tenso e assimetria, ao passo que a relao entre consanguneos, especialmente

225

Mas, embora a afinidade no tenha grande rendimento simblico a nvel local,


ela parece servir como modelo para as relaes com no co-residentes em geral.
Relembro aqui a narrativa de origem dos apiaks misturados, que faz referncia ao
casamento entre o seringalista Paulo Corra e uma mulher apiak (ver captulo 1). A
relao de afinidade expressa na instituio do cunhadio ocupa lugar de destaque na
narrativa, que tematiza o fim do perodo das guerras de vingana e o incio de um novo
tempo, marcado por um estilo de vida diferente, qualificado como civilizado. Do ponto
de vista dos apiaks, a unio de uma mulher apiak com aquele civilizado deveria
consolidar tambm uma aliana em termos polticos e econmicos, expectativa frustrada
no apenas pelo afim poderoso como tambm pela mulher, a qual se voltou contra o
prprio povo.
A afinidade ocupa um papel complexo nas filosofias tupis, articulando-se ao
padro de residncia e organizao poltica de modo singular. Endossando a tese de H.
Clastres, Viveiros de Castro estabelece que a vingana tupinamb era uma vingana
contra a morte e contra a afinidade as bases da condio humana e da sociedade
(Viveiros de Castro 1986: 680). Por seu turno, os arawets creem que a pessoa se realiza
plenamente apenas na morte, quando passa para o reino do Alm, universo da afinidade.
A clebre equao tupi entre inimigo e cunhado (tovaja) apontaria, assim, para o valor
poltico da uxorilocalidade e do casamento avuncular praticados pelos tupinambs.186
De acordo com esse autor, entre os tupis e tambm entre os povos guianeses, tais
prticas integram uma estratgia geral de endogamia, que inflete ou cria solues
residenciais a posteriori sempre a partir de um atrator uxorilocal de base, mas do
qual se quer e se pode (...) escapar (: 686).
A uxorilocalidade tupi operaria a abertura do sistema de parentesco ao evento,
e responderia em parte pela instabilidade e pela frouxido morfolgica das aldeias. O
lder-guerreiro era antes de tudo um sogro e um chefe de maloca, e as aldeias
tupinambs eram agregados de malocas fundados na afinidade e voltados para a guerra,
sendo que o prestgio derivado do nmero de inimigos mortos em combate permitia aos
homens escapar residncia uxorilocal, reter os filhos homens, atrair genros, ter
casamentos poligmicos e fundar novas malocas (: 689).

186

irmo e irm, marcada por absoluta lealdade. A formao de linhagens (bem como sua manuteno)
depende da rara possibilidade de alguns homens no precisarem deixar a aldeia natal para se casar
(Ramos 2006: 10).
A equao contempla ainda o cativo de guerra e um importante classificador de alteridade para os
tupis (Fausto 1992).

226

Como vimos, tambm entre os apiaks a uxorilocalidade uma expectativa


qual o homem pode furtar-se, especialmente quando se trata de homem de prestgio
prestgio este que obtido no mais na guerra, mas sim na relao exitosa com
forasteiros poderosos. Geralmente, os homens influentes apiaks conseguem reter filhos
e atrair genros sem causar descontentamento famlia destes, pois se sabe que ele ter
acesso a bens industrializados e poder tornar-se igualmente um homem influente, o que
acabar beneficiando, em alguma medida, sua famlia de origem.
A caracterizao da comunidade apiak como universo do parentesco e da
semelhana, que se relaciona com o exterior de modo ambguo, ecoa o modelo
elaborado por P. Rivire para a Guiana, regio na qual o parentesco constitui o principal
idioma das relaes sociais, propiciando-lhes uma continuidade ordenada (Rivire 2001:
13).187 No prefcio edio brasileira, Rivire, valendo-se da tipologia proposta por P.
Descola (1992), 188 distingue os povos da Guiana dos povos tupi-guaranis estudados por
Viveiros de Castro com base na forma como eles se relacionam com diferentes outros
pessoas, seres naturais e sobrenaturais. Ainda que todos esses povos partilhem um
sistema anmico (aquele em que a sociedade fornece o modelo para a relao com a
natureza, em oposio a sistemas totmicos), os primeiros fariam do conceito de troca o
cerne de suas ideias sociais e cosmolgicas (modelo da reciprocidade), enquanto os
segundos baseariam suas relaes com o exterior na guerra e na vingana (modelo da
predao).189
187

No que se refere residncia, fator central da organizao social guianense, Rivire afirma que a nica
regra expressa na regio a obrigao de morar com todos os parentes, uma impossibilidade de ordem
prtica que cabe ao chefe administrar. Ver tambm Overing 1973, 1981.
188
Em dilogo com as teses de Marx e Lvi-Strauss sobre as relaes diferenciais que as sociedades
estabelecem com o meio ambiente, Descola (1992) focaliza os princpios de identidade e diferena
que organizam a prtica e postula uma homologia entre a forma como uma sociedade concebe a
natureza e a forma como concebe os outros. O autor define animismo como uma forma de
objetificao social da natureza em que os seres naturais tm o status de pessoas que exibem emoes
e habilidades humanas e atributos sociais (falam, se apaixonam, tm regras de parentesco e normas de
conduta); a relao que os humanos estabelecem com eles da ordem da metonmia, manifestando-se
sob a forma de relaes de proteo, seduo, hostilidade, aliana ou troca de servios (Descola 1992:
114). Natureza e sociedade no so, portanto, separadas por fronterias ontolgicas. Muitos sistemas
anmicos amaznicos baseiam-se numa viso do mundo como um grande circuito fechado no interior
do qual circulam substncias, almas e identidades necessrias perpetuao equilibrada da ordem
social, ameaada pela morte (: 116). Os modos de representao da relao com a natureza consistem
numa padronizao especfica da interao mente-matria; sua anlise pode ajudar a explicar o grau
diferencial de transformao das sociedades, na medida em que algumas so capazes de reter
esquemas de prtica por mais tempo que outras, em face de mudanas de ordem econmica, poltica e
organizacional (: 123).
189
Arhem (1996) demonstrou, por meio da anlise do material makuna (tukano), que existem sistemas
que combinam elementos anmicos e totmicos. Os makunas pensam toda morte como predao e
reconstroem esta relao em termos de troca, que contribui para a regenerao da vida (Arhem 1996:
189).

227

Bem, a anlise desenvolvida at aqui nos autoriza a dizer que os apiaks, que
so tupi-guaranis, concebem suas relaes com o mundo exterior aldeia no horizonte
da troca, em que pese a relao de inimizade secular com os kaiabis. Nesse sentido, as
transformaes que tm lugar nas festas de branco (imitao) e nas alianas
matrimoniais com forasteiros (familiarizao), analisadas no captulo 3, indicam que,
para os apiaks, a alteridade no sinnimo de perigo apenas: ela tambm uma
necessidade e um desejo. Alm do mais, concebe-se que a co-residncia capaz de
mitigar a poro animal da pessoa, bem como a alteridade dos parentes afastados e dos
forasteiros.
Viveiros de Castro afirmou que a filosofia social dos povos da Guiana a que
mais se aproxima daquela dos tupis, com uma diferena importante: ambas as filosofias
exibem um desejo de endogamia que dissolva e dispense a afinidade, mas, enquanto os
guianeses postulam uma imagem do exterior como pura negatividade (o que Rivire
qualificou como fico), os tupis demonstram uma necessidade absoluta do Outro, a
qual informa sua concepo de pessoa (Viveiros de Castro 1986: 682).
Discutindo a vigncia do sistema dravidiano na Amaznia indgena, Viveiros
de Castro afastou-se dos conceitos dumontianos de hierarquia e englobamento dos
contrrios e empregou o contraste entre dado e construdo, no qual R. Wagner se apoiou
para analisar povos melansios. Viveiros de Castro prope ento que, na Amaznia, e
especialmente na Guiana, mesmo nos casos em que no h afinidade real (matrimonial),
a afinidade (potencial) predomina sobre a consanguinidade enquanto princpio
relacional (Viveiros de Castro 2002: 411), surgindo como o dado, ou seja, como
operador cosmolgico, modo genrico da relao social e fundamento da ligao
entre grupos locais que se pensam como parentelas endogmicas. Este autor afirma que,
no contexto amaznico, consanguinidade e afinidade no so categorias descontnuas,
mas plos de uma estrutura em desequilbrio perptuo. A afinidade seria, assim, o
princpio de instabilidade responsvel pela continuidade do processo de parentesco (:
432), respondendo por aquela abertura ao Outro que, nas palavras de Lvi-Strauss,
caracteriza o pensamento amerndio. Embora a generalizao desta tese para todos os
povos amaznicos seja um tanto forada, ela se mostra til para refletir sobre o caso
apiak.
Durante meio sculo, na falta de pessoas relacionadas de maneira apropriada
com quem casar, os apiaks recorreram a pessoas de outras etnias, misturando-se.
Entretanto,

quando

se

realdearam,

o(a)

cnjuge

forasteiro(a),

devidamente
228

familiarizado, passou a atuar como reprodutor(a) de apiaks, sem transmitir afinidade, e


os filhos desses casais, independentemente do gnero dos pais, passaram a ser
classificados como apiaks. A situao histrica singular vivida pelos apiaks os levou a
pensar a reproduo fsica do grupo como uma base sobre a qual novas relaes
poderiam ser construdas; assim, no momento atual, quando se preza uma comunidade
harmoniosa, no convm acirrar divises de carter tnico. Nesse sentido, a capacidade
de atrair pessoas provenientes de aldeias vizinhas pela via do casamento e de as
familiarizar propicia o fortalecimento poltico dos apiaks como etnia, pois, quando
concordam em viver entre e como os apiaks, os forasteiros tambm esto aceitando
tacitamente ser classificados como apiaks. digno de nota que os mundurukus, muito
mais numerosos e politicamente mais fortes, aceitem tal situao com bastante
tranquilidade.
Os conflitos matrimoniais de que falava o homem apiak no se do
propriamente entre cnjuges, mas entre suas respectivas famlias extensas, sendo
motivados principalmente por sovinice, eclodindo quando algum que possui muitos
objetos ou alimentos se recusa a distribu-los, ou os distribui de forma insatisfatria. A
harmonia na comunidade depende, portanto, da anulao cotidianamente forjada do
estatuto de forasteiro de alguns cnjuges, ou seja, do xito no processo de sua
familiarizao. Em sua dimenso propriamente simblica, a comunidade seria a forma
social contempornea onde se constroi a consanguinidade a partir do que seria um
inesgotvel manancial do qual se pode extrair sociabilidade (o que Viveiros de Castro
chamou de fundo infinito de socialidade virtual, 2002: 418). Nesse sentido, o
parentesco tem de ser laboriosamente constitudo por meio da partilha (e tambm da
abstinncia, no caso dos resguardos) de alimentos e valores morais e da ddiva de
objetos. De outro modo, como demonstrei no captulo 3, a troca mediada pelo dinheiro
serve de modelo para todas as relaes travadas fora da famlia extensa, isto , com os
outros os apiaks moradores de outras aldeias, os mundurukus, os kaiabis e os
brancos.190
Assim, ao mesmo tempo em que sinaliza uma abertura para a diferena, o
casamento com forasteiros permite aos co-residentes manejar, no prprio campo do
190

O casamento com parente distante tambm vigora entre os povos nativos do Baixo Urubamba, os
canelos quichua, os cocamilla e os shipibo-conibo, sociedades da Amaznia ocidental cujos sistemas
de parentesco operam no sentido de produzir novas aldeias, e no no de replicar alianas prvias (Gow
1991: 198). De acordo com P. Gow, para esses povos a comunidade local o centro de uma rede
ampla de laos de parentesco e de alianas matrimoniais que se estende por um vasto territrio (: 199),
exatamente como ocorre com os apiak.

229

parentesco, lealdades fundamentalmente polticas, inclusive os vnculos entre aldeias


distintas. Um certo grau de afastamento e de diferena , pois, importante para conferir
dinamismo s relaes sociais e para assegurar o controle poltico apiak. Alm do
mais, pode-se ver no valor atribudo pelos apiaks convivncia ou co-residncia um
fator que, na segunda metade do sculo XIX, teria facilitado a integrao de forasteiros
pela via do casamento. Tal conjectura baseia-se no fato de que, a despeito dos
deslocamentos forados, os apiaks no foram totalmente removidos do territrio onde
viviam desde o sculo XVIII, sendo que os arigs se adaptavam ao modo de vida
indgena, e no o contrrio, o que nos leva a constatar que a transformao da cultura
apiak no se deve tanto ao contato com povos radicalmente diferentes, mas sobretudo
depopulao causada por doenas contagiosas e massacres.

********
Como vimos no captulo 1, a relao dos apiaks com os outros, os de fora
da aldeia, apresenta um carter ambivalente. At meados do sculo XIX, eles
guerreavam com povos vizinhos e colaboravam pacificamente com os brancos; embora
os brancos sejam concebidos como parceiros em termos econmicos e polticos, o
casamento com eles tem sido evitado nas duas ltimas dcadas; os kaiabis so inimigos
fiis de longa data, dos quais os apiaks no se separam. Enquanto desejam virar
brancos parcial ou momentaneamente, os apiaks aceitam Outros como co-residentes
(os Kamassori no Mayrob, os Pombos no Mairowy), embora os marginalizem.
No Mayrob, onde a parentela influente a Morim, vive h mais de 10 anos
um segmento da parentela Kamassori, encabeado pelo homem de no. 39 no Diagrama
3.1, proveniente do mdio Teles Pires. Ele um dos ltimos falantes plenos do idioma,
e o informante mais disposto, mas os apiaks parecem no perdoar o fato de ele ter
vivido muitos anos entre os kaiabis, parentes de sua esposa. Embora os homens
influentes reconheam o valor poltico do saber deste homem, sua famlia
politicamente marginalizada e seus filhos tm dificuldades para encontrar cnjuges na
aldeia. como se este homem tivesse se kaiabizado, tornando-se diferente dos
Morim devido convivncia prolongada com os kaiabis.
No Mairowy, a famlia extensa dos Pombos encabeada pela viva
munduruku (no. 69) de um apiak, o velho Pombo (no.68), que atuou como guaxeba de

230

seringalista em meados do sculo XX, cometendo violncias contra o prprio povo.191


Esta mulher amiga antiga da mulher apiak que fundou, junto com o marido, a aldeia
Bom Futuro e depois mudou-se para o Mairowy (ver captulo 5). A viva munduruku
mora no Mairowy com seus quatro filhos adultos (trs homens e uma mulher; nos. 73,
74, 75 e 76 no Diagrama 4.1), solteiros na faixa dos quarenta anos, dois netos adultos
(nos. 78 e 79) e seus respectivos filhos e netos.
Os moradores da aldeia no demonstram nenhuma considerao para com eles,
mas concordam em classific-los como apiaks; dizem que so mal-educados,
preguiosos, no batem bem da cabea e s sabem pedir.192 O cacique justifica a
convivncia incmoda pela longa amizade entre a viva e sua prpria me, mas recorda
com frequncia: O pai deles matou muito apiak e agora eles vivem aqui no meio da
gente. Se fosse outro povo, no permitia isso. Se verdade que os apiaks toleram os
Pombos e permitem que faam parte da comunidade, reservam-lhes contudo uma
posio social perifrica, tratam-nos como bode expiatrio e, o mais importante, no
lhes do cnjuges.
A viva do velho Pombo no se casou novamente, seus filhos do sexo
masculino (nos. 73, 74 e 75) so celibatrios e sua filha (no. 76) teve uma filha (no. 79)
e um filho (no. 80) em unies sexuais fortuitas. A mulher que aparece como no. 79 no
diagrama tampouco se casou, mas teve cinco filhos em quatro unies amorosas
passageiras; tal mulher e seus trs filhos mais novos (nos. 85, 86 e 87) vivem na casa e
partilham a roa do filho mais velho (no. 88), que se casou com uma moa que no
pertence famlia mais influente na aldeia (no. 84). A viva (no. 69) mora com os
quatro filhos celibatrios, que se beneficiam de sua aposentadoria; apenas um deles
possui roa, sendo que a filha (no. 76) tem parte na roa de seu filho (no. 80), que
casado com uma munduruku separada proveniente da Misso Cururu (no. 81). Outra
filha do velho Pombo (no. 77) casou-se recentemente, em segundas npcias, com um
homem da parentela Kamassori (no. 78), e vive com ele e os filhos pequenos na aldeia
PIn Teles Pires; este homem filho do irmo da mulher (no. 38) que mantm uma longa
relao de amizade com a viva munduruku. A filha do primeiro casamento da mulher
de no. 77 casou-se, por sua vez, com um homem da parentela Morim (no. 42), que no
influente no Mairowy.
191

Os Kamassori e os Morim costumam dizer que o velho Pombo era guaxeba de Paulo Corra, o que
cronologicamente improvvel (o seringalista faleceu antes de 1910), mas muito significativo do ponto
de vista simblico.
192
No foi possvel identificar o problema mental que com efeito acomete dois deles.

231

Por sua vez o irmo do finado Pombo (no. 67), um sexagenrio casado com
uma mulher munduruku, mora numa casa distante poucos quilmetros a jusante do
Mairowy; sua famlia extensa classificada como ribeirinha e visita a aldeia com
frequncia. Quando os filhos do velho Pombo se sentem especialmente insultados,
costumam passar alguns dias na residncia desse casal, fato que exaspera os membros
da parentela Kamassori porque depe contra a imagem de harmonia na comunidade.
Apenas a gerao -2, que compreende pessoas menores de 20 anos, parece fornecer
cnjuges legtimos para a famlia influente da aldeia; tanto assim que se comentava que
a garota de no. 87 no diagrama estava namorando um rapaz da parentela Kamassori; por
seu turno, a moa de no. 83 casou-se com o irmo do no. 42. Os nos. 85, 86, 89 e 90
ainda no tinham idade para casar em 2007. Parece que a convivncia intensa, gerao
aps gerao, apaga as mgoas passadas, pois as pessoas da parentela Kamassori dizem
que os descendentes da gerao -2 dos Pombos so diferentes de seus pais, no so
doidos como estes.

Diagrama 4.1: Famlia extensa dos Pombos, Mairowy (Esto reproduzidas as


seguintes posies do Diagrama 3.1: 30, 31, 37, 38, 42, 43)

232

Os Pombos no so os nicos co-residentes a representar a memria viva de


um passado de violncia e explorao econmica. No Mairowy vive tambm a filha de
um antigo guaxeba de um patro da colocao Veneza (ver Figura 1.1), que existiu
nos anos 1970, no baixo Teles Pires, onde trabalharam muitos apiaks. Esta mulher
casada com um homem da parentela Kamassori (no. 95 no Diagrama 5.1, no prximo
captulo), com quem tem oito filhos, sendo que o primognito age como um homem
influente em potencial. A irm mais velha desta mulher mora hoje no Mayrob; ela
viva do antigo cacique, Andr Morim (no. 16 no Diagrama 3.1), que se casou com ela
em segundas npcias, e por isso goza de certo prestgio na comunidade.
Tais outros internos parecem ser concebidos como repositrio vivo da
histria dos apiaks. Por sua vez, os kaiabis do Tatu so vistos como eternos rivais,
com os quais os apiaks mantm uma relao de hostilidade necessria, mais ou menos
velada. J os mundurukus do baixo Teles Pires so vistos como aliados instveis. Os
brancos so a fonte de mercadorias, a baliza do comportamento civilizado e o meio de
acesso aos direitos constitucionais.
Com todas essas categorias de pessoas, os apiaks se relacionam de modo
diplomtico, empenhando-se em estabelecer uma interao amistosa. Neste sentido, as
festas e os jogos de futebol entre times de diversas aldeias, ocasies em que se do
mostras de hospitalidade, so dispositivos que intensificam os laos supra-aldeos e
compem uma rede social na regio delimitada pelos rios Juruena e Teles Pires, no
interior da qual circulam objetos, pessoas e informaes. Agora nos voltaremos para o
aspecto propriamente poltico da organizao das aldeias apiaks e para a forma como
elas esto interligadas.

233

Captulo 5- Poltica comunitria


Um tipo de sociedade se distingue de outro em razo de uma mise en forme
das relaes entre homens, classes ou grupos, cujo princpio est ligado
ao modo de se gerar e de se representar o poder
C. Lefort. Desafios da Escrita Poltica

Como ocorre entre vrios povos amaznicos (Gow 1991; Kracke 1978;
Rivire 2001, entre outros), a existncia das aldeias apiaks em grande parte produto
da ao dos caciques. Algumas informaes sobre a chefia apiak encontram-se nos
captulos anteriores, mas aqui analisaremos mais detidamente a forma e a funo da
chefia contempornea, a partir do processo de constituio de aldeias na segunda
metade do sculo XX.
Para ser cacique, um homem deve demonstrar habilidade para conduzir os
assuntos que dizem respeito coletividade; os principais atributos de um cacique so a
eloquncia, a generosidade e a moderao. Uma lista de qualidades partilhada em
maior ou menor medida pelos caciques que conheci: auto-confiana, empatia,
sagacidade,

serenidade,

diligncia,

curiosidade,

ousadia,

narcisismo,

altivez,

competitividade, carisma. A figura do lder-sogro, proeminente at os anos 1990, vem


perdendo espao para a figura do lder-diplomata, que conhece o funcionamento do
mundo dos brancos.
Em linhas gerais, o que leva uma famlia extensa a permanecer numa
determinada aldeia a medida de seu prprio bem-estar; quando h abundncia de caa,
peixes e frutos no entorno, quando a terra frtil e em quantidade suficiente para as
roas, onde as acusaes de feitiaria se mantm em nvel tolervel, quando alm disso
h escola para as crianas, remdios e alguma circulao de bens industrializados, isto ,
quando se trata de uma comunidade prspera, bonita e salubre, o contingente
populacional tende a aumentar. Como vimos no captulo 3, uma vez cumprido o servio
da noiva, a nova famlia conjugal pode se mudar para onde melhor lhe aprouver;
usualmente buscar uma aldeia onde pelo menos um dos cnjuges tenha parentes e/ou
compadres, mas o principal critrio de escolha ser o estado moral e material da
comunidade, considerado de responsabilidade do cacique, que assim atrai seguidores e
obtm prestgio.
O cacique apiak contemporneo antes de tudo um intermedirio entre o
mundo da aldeia e o mundo exterior, povoado por antigos inimigos indgenas e pelos
brancos, Outros com os quais os apiaks estabelecem relaes de naturezas variadas.

234

Pode-se afirmar que a comunidade apiak voltada para fora (Gow 1991: 276) e que a
parceria comercial (por oposio partilha e ddiva) o modelo das relaes
estabelecidas pelos homens influentes no mundo exterior aldeia (Gell 1992: 158).
Com efeito, para existir, a comunidade depende da regularizao jurdico-administrativa
do territrio, e os elementos materiais que a caracterizam tacho de farinha, voadeira,
escola, posto de sade, frmacos, aparelho de TV etc. devem ser adquiridos fora dela,
junto aos brancos, sendo que a forma encontrada pelos apiaks para os obter foi a
diplomacia. A homogeneidade social e a valorizao das relaes internas aldeia
tampouco caracterizavam a sociedade dos tupinambs, ancestrais dos apiaks.
De acordo com F. Fernandes (1949), nas esferas em que atuavam os
guerreiros, pajs e chefes vigoravam processos competitivos de interao social,
infletindo o carter cooperativo dos demais setores da organizao social, evidenciandose o duplo carter competitivo-cooperativo da organizao social tupinamb. O
conselho de chefes era a nica esfera poltica da sociedade tupinamb, com atribuies
executivas e deliberativas, especialmente com relao guerra. Este conselho era
liderado pelos ancios, embora os pajs desempenhassem a papel importante, na
medida em que eram os intermedirios entre os antepassados e os homens comuns. O
conselho levava os membros de um grupo local ou de uma tribo a se comportarem como
componentes de uma unidade social mais ampla que a famlia extensa, voltada para o
exterior.193
A coletividade apiak se v propriamente como comunidade no discurso do
cacique. Se pensarmos a chefia como um conjunto de funes relativas coletividade,
que visa a formao e a manuteno do grupo e a evitao de sua fisso (Kracke
1978),194 temos que, por um lado, o cacique deve negociar com os forasteiros e agentes
do Estado e, por outro lado, deve zelar para que os co-residentes sigam a tica da
193

Lembro que a sociedade arawet igualmente voltada para o alhures e o alm, a autoridade do cacique
derivando da relao que estabelece com Outros: deuses, mortos e inimigos (Viveiros de Castro 1986:
319). Para os arawets, o lder aquele que comea uma ao, no o que a ordena (: 302), aquele que
no tem medo-vergonha de se destacar, de propor empresas (: 305); ele no tem poder, mas alguma
ascendncia sobre os co-residentes; ele bem posicionado genealogicamente e condensa atributos
diversos: personalidade forte, lder de famlia extensa, domnio da oratria, capacidade de forjar
alianas produtivas. Entre os teneteharas, os verdadeiros chefes so os chefes de famlia extensa
(Wagley & Galvo 1961: 172).
194
Kracke (1978) elaborou uma interessante anlise da chegia kawahiv a partir do dilogo com a
psicologia, o que o aproxima do insight de Lvi-Strauss (1944) sobre os materiais psicolgicos crus a
partir dos quais toda cultura feita: h chefes porque h, em qualquer grupo humano, homens que,
diferente da maioria dos companheiros, apreciam o prestgio per se, tm um forte sentimento de
responsabilidade e para quem o peso dos negcios pblicos traz recompensa. (Lvi-Strauss 1944:
31).

235

moderao e se tratem como parentes (ver captulos 3 e 4). O cacique deve dar o
exemplo e tomar a frente nos empreendimentos coletivos; o cacique jamais ordena:
ele convida a iniciar um trabalho ou uma reunio; ele quem organiza as festas, as
expedies de caa coletivas e a operao de derrubada da mata para novas roas;195 as
pessoas o procuram para ouvir conselhos quando h desentendimentos entre moradores
de duas casas e tambm para pr fim a brigas durante as festas; ele deve, ainda, manter
boas relaes com os demais caciques apiaks e os caciques de outras etnias das aldeias
vizinhas. o cacique quem escolhe o stio para abrir uma nova aldeia, bem como seu
nome; ele quem autoriza uma nova famlia a morar na aldeia e a abrir uma roa; de
outro modo, uma famlia que queira se mudar para outra aldeia deve antes conversar
com ele.
O cacique ganha o respeito dos moradores da aldeia quando se comporta de
acordo com o padro moral estabelecido, quando demonstra hospitalidade para com os
co-residentes e os forasteiros e quando obtm benefcios concretos para a comunidade.
Viajantes que passaram pelas malocas apiaks no sculo XIX surpreendiam-se com a
hospitalidade desses ndios:
Os Apiac eram hospitaleiros, embora recebessem visitantes
desconhecidos com gritos e demonstraes guerreiras. O chefe, coberto de
ornamentos, dirigia-se ao visitante e ordenava-lhe que ficasse. Isto feito, ele
amarrava a canoa, dava-lhe uma rede na maloca e lhe oferecia chicha. Ento eles
lhe apresentavam suas esposas e filhos. Eles davam suprimentos e ornamentos
de penas para os visitantes europeus, pedindo ferramentas de ferro em troca.
Embora perfeitamente honestos entre si, sua avidez por ferramentas de ferro
levou-os a roubar dos brancos em 1819. (...) (Nimuendaju 1963a: 317)
Mas o cacique no atua sozinho; a seu lado esto a cacica (sua esposa), um
vice-cacique (normalmente um filho, genro ou compadre) e sua esposa (a vice-cacica) e
diversas outras lideranas masculinas e femininas que atuam no sentido de favorecer a
cooperao e o sentimento de solidariedade entre os co-residentes. De sua prpria
perspectiva, o cacique realiza pouco trabalho braal (a nica casa da aldeia em que
frequentemente falta farinha de mandioca a sua); ele fundamentalmente coordena
atividades coletivas, orquestra a obteno de consenso nos negcios polmicos nas
reunies no salo, lida com forasteiros e viaja para lugares distantes para resolver os
problemas e satisfazer as necessidades da comunidade. Um bom cacique, portanto,
aquele que utiliza um certo estilo retrico (ele deve falar forte quando necessrio)
195

A distribuio festiva de comida e a coordenao da abertura da roa coletiva tambm so duas das
principais atribuies do cacique kawahiv (Kracke 1978).

236

para estabelecer o consenso, dirimir conflitos e mediar confrontos, bem como para
traduzir o mundo dos brancos para seu povo.
Espera-se que os homens e mulheres influentes cuidem da comunidade como
pais cuidam dos filhos. De fato os caciques dedicam muito de sua energia ao processo
cotidiano de criao e manuteno de laos sociais e afetivos entre as famlias extensas
que compem a comunidade. Os apiaks assumem que a comunidade encerra perigos,
desigualdades e desmedidas, e que as tenses fazem parte do dia-a-dia; embora no
cotidiano as pessoas raramente se exaltem, por vezes os conflitos eclodem no salo,
durante reunies ou festas. O salo o locus da poltica, da fala formal, dos negcios da
comunidade, administrados principalmente pelos homens, que procuram resolver
questes coletivas de modo pacfico. O salo evoca a tekatawa dos parakans orientais
(tupi-guaranis), associada a uma concepo de chefia modelada no na figura do chefe
de guerra, mas sim na figura do mediador, do propiciador da conversa (Fausto 2000:
226). No possvel saber se os apiaks contavam com um espao precursor do salo
no sculo XIX, mas muito provvel que sua funo no sculo XX tenha recebido um
reforo ideolgico da parte dos missionrios influenciados pela teologia da libertao.196
A respeito da adeso dos guaranis f catlica, C. Fausto se pergunta qual
teria sido a brecha atravs da qual a mensagem crist do amor universal e da irmandade
entre os seres humanos penetrou no mundo vivido indgena (Fausto 2005: 405). Cada
povo reage sua maneira a mudanas histricas profundas. Como vimos na Primeira
Parte, os apiaks abandonaram as guerras de vingana somente na segunda metade do
sculo XIX, num contexto de violenta depopulao causada por epidemias e por
massacres ordenados por seringalistas, que levaram a um quadro de profunda
desorganizao sociocultural. Na primeira metade do sculo XX, algumas famlias
sobreviventes do genocdio foram buscar refgio junto a uma Misso no rio Cururu
(PA), que atendia os antigos inimigos mundurukus; outras famlias dispersaram-se ao
longo do baixo curso dos rios Juruena e Teles Pires, empregando-se de modo
intermitente nos seringais que l existiam, at serem convidadas a se reunir em torno de
outros missionrios, no Rio do Peixes (MT), e de outros inimigos, nem to antigos
assim: os kaiabis.
196

A teologia da libertao, pensamento que ganhou fora nos anos 1970, caracteriza-se pela opo
preferencial pelos pobres e pela transformao de realidades injustas, tendo como clulas as Comunidades
Eclesiais de Base; ela inspirou religiosos e telogos progressistas, voltados para a prtica pastoral (viver
com os pobres) e que se interessavam pelas cincias sociais. Dois missionrios que moraram por muitos
anos entre os apiaks do Rio dos Peixes fizeram mestrado em antropologia.

237

Com os missionrios franciscanos e jesutas, os apiaks aprenderam o


simbolismo cristo, do qual se apropriaram para construir um novo estilo de vida que
exclui as prticas associadas guerra e ao canibalismo. Agora, afirmam os homens
influentes, suas guerras se fazem com papel e caneta, e apenas depois de muita conversa
com o inimigo. No interior do complexo cenrio intertnico em causa, os homens
apiaks j no se definem como guerreiros, mas como mestres de oratria, e os brancos
so o grande inimigo com o qual no se pode, entretanto, guerrear abertamente. Hoje, o
discurso da comunidade, cifrado no idioma do parentesco, o eixo da vida social
apiak. Vejamos de que maneira os processos de chefia (Kracke 1978) atualizam este
ideal e expem suas contradies e ambiguidades.

5.1- As aldeias apiaks no sculo XX197


O termo em apiak para cacique nhandererekohra ga, literalmente aquele
que cuida de ns, expresso que explicita a centralidade do cuidado, da prtica do
aparentamento tambm para a socialidade pblica.198 At hoje o velho Andr Morim
(no. 16 no Diagrama 3.1, no captulo 3), falecido nos anos 1990, lembrado como
modelo de cacique.199 Filho de um homem e uma mulher apiaks sobreviventes dos
massacres ocorridos no Juruena na virada para o sculo XX, Andr cresceu na Misso
Cururu e passou a juventude cortando seringa no baixo Teles Pires. Conta-se que seu
pai, o velho Norberto Morim (no. 3 no Diagrama 3.1), liderou a operao de
localizao e pacificao da parentela Kamassori, na regio dos tributrios orientais do
Juruena, nas primeiras dcadas do sculo XX.200
Dentre as vrias verses desta histria, a mais detalhada aquela narrada por
um homem da parentela Kamassori, de 64 anos:
O finado Norberto tirou esse pessoal do mato. O padre, frei Hugo,
mandou o Norberto vir de l da Misso Cururu. Vieram com ele duas mulheres,
uma era mulher do finado Norberto (Teodora, kokama), a outra era munduruku,
197

Ver Figura 3.3 para as datas de fundao e localizao de todas as aldeias mencionadas nesta seo.
Ver Figura 1.1-Mapa Etno-Histrico para uma contextualizao regional.
198
Os guaranis nhandeva e mby estudados por Schaden nos anos 1940 chamavam o chefe religioso e o
chefe de famlia extensa de nhander (nosso pai), sustentavam um princpio de chefia hereditria e
tinham no capito uma espcie de lder carismtico, o representante da aldeia frente aos brasileiros
(Schaden 1962: 99ss).
199
Alguns de seus descendentes me disseram que ele era tambm paj. Descendentes do finado Norberto
me disseram o mesmo a seu respeito.
200
Nos anos 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, ocorreu um novo boom da borracha na Amaznia
meridional.

238

e o finado Andr Morim era rapazinho. Escolheram o capanga, finado Rinaldo


Paleci, que era apiak, e a mulher dele, munduruku. Deixaram a canoa deles na
boca do So Tom (afluente oriental do Juruena) e comearam a andar por terra.
Onde viam vestgio deles, mato quebrado, diziam: Est por aqui. Est nada,
est longe. Ns temos que achar esse pessoal. O finado Andr andava com
um saquinho de farinha nas costas, a me dele, com as panelinhas para cozinhar,
a mulher do capanga levava uma cuia para tomar xib, e assim foram. Quando
estavam com dois meses no mato, nada! Trepavam num pauzo para procurar
fumaa da aldeia deles, no viam nada; subiam numa serra, nada; olhavam por
todo canto, tudo quieto. J estava com dois meses no mato e a farinha deles
findou, a ficaram comendo s castanha com porco, tiravam palmito de aa
tambm. Um tempo desse (fim de julho), poca de tocar fogo na roa, no viam
fumaa. A andavam, andavam, andavam. Anoitecia, faziam fogo. J estava
chegando o fim do ms de novo, Norberto perguntou: Pxa, ns vamos passar
uns trs meses dentro do mato sem comer farinha, vocs aguentam?
Aguentamos! Iam de novo. Amanhecia, eles embolavam a redinha deles,
faziam fogo para fazer merenda, merendavam e andavam de novo. Esse velhinho
Norberto era danado mesmo para trepar em pau. Quando foi na derradeira subida
da serra, ele olhou pra frente e viu a fumaa saindo longe. A ele ficou animado.
Andaram muitos dias, viram de novo a fumaa. Eles ficaram animados: Agora
ns vamos ver nossos parentes! Como que uma pessoa anda assim,
carregando forno pelo mato? Por que ? Por causa dos canoeiros (rikbaktsa), eles
no queriam briga com canoeiro. A tocaram pra frente de novo. Logo apareceu
de novo a picada da estrada deles. Foram andando devagar, sem fazer barulho,
mas a casa deles estava longe ainda. Eles andavam o tempo todo pelo cerrado,
fora do caminho. Quando um frenteiro cansava, o outro passava pra frente. A
eles chegaram numa estrada mais nova. O velhinho falou: Ns j estamos com
seis meses. A eles chegaram onde estava bem batido mesmo. Pousaram l, a
aldeia estava longe (cerca de 10 Km), eles estavam cansados. As mulheres deles
tinham ouricinho de castanha para fazer mutap, socando, fazer mujiquinha... eles
no tinham dente, tambm. Eu achava graa de ouvir os velhos contando isso. O
velho Norberto disse: Amanh eu vou falar, vocs ficam aqui, caladinhos. Ele
dormiu perto da aldeia deles e foi de manh; tinha o caminho de eles banharem,
e tinha umas casas por cobrir. Nesse dia, no saiu ningum para canto nenhum,
ficaram para cobrir as casas deles. O velho estava escondido atrs de uma
sapopemba, e o porto onde eles se lavavam estava bem ali. Uma menina trouxe o
irmozinho nas costas, cantando. Ele desceu, ficaram brincando dentro dgua.
O velho Norberto s espiando, a mocinha no o viu. Ela se sentou para esfregar
o irmo dela, a o velho falou: So vocs, eu ando atrs de vocs. Essa
mocinha saiu doida, gritando: Tapuynha, tapuynha! (ndio! ndio!) Caiu aqui
e acol, com o irmozinho nas costas. Os trabalhadores escutaram: Como essa
conversa, ndio? Parece que , o ndio est pegando a menina! A os
guerreiros arriaram um monte de flecha, botaram no terreiro: Agora ns vamos
brigar mesmo! A mocinha chegou contando que tinha tapuynha no toco do
pau. Eles foram l, levaram a mocinha, meio desconfiada: Tapuynha velho.
Um correu por cima do outro. Se o velho no falasse (em apiak)... A falou pra
eles. Se for nosso parente, fala. A ele disse (em apiak) quem era ele, deu
fala. Foi assim. A eles arriaram as armas e o levaram para a casa deles,
explicaram: Quando voc quiser nos procurar, no vem com roupa, anda pelado
como ns. Ns pensamos que era canoeiro, amos passar o pau. Fala com a gente

239

no idioma que a gente responde. Deram bebida para o velho, deram comida
para o velho, ele comeu bastante. Conversa vem, conversa vai: Hoje noite ns
vamos danar um pouquinho. Chegou nosso parente, ele andava nos procurando,
at que deu a fala, quase morreu, ns no sabamos que era ele. Mas ele tinha
parente tambm nessa turma, parece que era uma irm dele. Se ele falasse
portugus, ele tinha rodado, ns amos pensar que era a turma do Paulo Corra,
ns somos desconfiados. Perguntaram se ele vinha sozinho, ele disse que no:
Por que no manda chamar seu pessoal? Mandaram uma mocinha ir chamar o
pessoalzinho dele, foi logo um bocado de mulherada: Ns vamos trazer a
mulher para ela comer conosco. A que foi a conversa, o finado Norberto falou
com meu pai, perguntaram se ele podia voltar outra vez, e o velhinho disse:
No sei se o pessoal quer voltar, porque, do jeito que ns viemos, um sacrifcio
danado, com criana, no sei. Danaram at de manh, a perguntaram para os
maridos das mulheres: Munduruku tem aquele assim? Tem peito? Tem cheiro
igual a ns? Eles no conheciam. Nessa festa, era para eles falarem com os
outros que vinham vindo, mas no deu. Eles so mais do que ns, muitos
mesmo, muito apiak. Norberto j estava acampado, j tinha casa. A vieram pra
c (Juruena) de novo.
Observo que esta verso no tem um final preciso, isto , o narrador no
explica para onde Norberto e seus companheiros foram aps a festa nem tampouco por
que esses apiaks se dispersaram aps a visita. Em outras ocasies, o narrador relatou
apenas que seus pais se mudaram nessa poca para a Misso Cururu, onde ele e seus
irmos cresceram. O pai do narrador, Leonardo Kamassori, era ento cacique, assim
como o fora anteriormente seu av paterno, o capito Benedito Kamassori. Nos anos
1940, os Kamassori enfrentaram uma epidemia de sarampo no rio Anipiri; dos dez
irmos do narrador, sobreviveram apenas trs alm dele prprio. Os velhos mundurukus
com quem conversei disseram que seus pais lhes contavam histrias sobre festas com
cabeas de inimigos realizadas pelos apiaks e sobre os colares e cintures
confeccionados com dentes de inimigos. Os mundurukus tambm afirmam que o
Anipiri era territrio apiak no incio do sculo XX; com efeito, os apiaks provenientes
do Pontal estabeleceram sucessivamente sete aldeias ao longo deste rio (ver Figura 1.1),
cujos moradores frequentavam a Misso Cururu para trocar produtos da floresta por
mercadorias. Os velhos apiaks dizem que deixaram o Anipiri porque l no havia
fartura de peixe e caa. Diga-se de passagem que a fartura alimentar um ideal moral e
esttico para os apiaks.
Enquanto os mundurukus relacionavam-se com os apiaks de forma pacfica,
continuavam a perseguir os kaiabis ao longo do rio Teles Pires e imediaes at meados
do sculo XX. Uma mulher kaiabi de 54 anos, casada com um apiak, me disse que sua
me lhe contava histrias de guerras envolvendo os trs povos:
240

A mame sempre falava que a gente no devia dormir muito, tinha que
ficar alerta de noite, porque podia vir ndio bravo pegar a gente. s vezes, o
homem saa e, quando voltava para a aldeia, o munduruku tinha carregado todo
o mundo. Canoeiro (rikbaktsa) tambm era bravo. Uma vez, uma amiga da
mame escapou de morrer na mo do munduruku; ela fugiu por gua, mas os
ndios comeram o filho dela, eles tiravam a ponta da banana branca e passavam
no sangue da criana para comer...
Em suas festas, os mundurukus chamavam os kaiabis de mutum e os apiaks,
de porco. Ela tambm relatou que os kaiabis gostavam de adotar crianas noindgenas e que seus prprios pais cuidaram da me de um homem apiak que hoje
seu co-residente; esta mulher apiak sobrevivera a um ataque kaiabi nos anos 1960, no
Rio dos Peixes, e foi criada pelos raptores dos pais. Nesta regio, so raros os
casamentos entre kaiabi e munduruku.

Diagrama 5.1: Parentela Kamassori (O nos. 5, 6, 21, 22, 37, 38 e 39 tambm


aparecem no Diagrama 3.1)201

201

A mulher de no. 98 vive na cidade de Jacareacanga (PA).

241

Nos anos 1970, os descendentes dos Kamassori estabeleceram-se no baixo


curso do rio Teles Pires, enquanto os descendentes dos Morim separaram-se em
famlias extensas que trabalhavam na extrao de seringa, caucho e balata no baixo
Juruena e seus afluentes, sem moradia fixa, tendo a vila da Barra de So Manoel como
referncia. Outras famlias extensas dispersaram-se ao longo dos afluentes do alto curso
do Tapajs. O narrador da histria transcrita acima vive hoje no Mayrob; sua irm vive
no Mairowy e seu irmo vive no PIn Teles Pires; a outra irm sobrevivente da epidemia
morreu h alguns anos, na cidade paraense de Itaituba.
Outra verso da mesma histria, veiculada por velhos kaiabis, indica que
Norberto teria sido obrigado por patres a tirar os parentes do mato para que eles
trabalhassem nos seringais nativos no Teles Pires. De acordo com esta verso, Norberto
convenceu dezenas de apiaks a entrar numa grande embarcao fornecida por um
seringalista; quando chegaram a uma cachoeira, os tripulantes brancos jogaram os
velhos no rio, muitos adultos e crianas fugiram, percebendo que se tratava de uma
emboscada, outros foram levados para o rio Cururu. Os apiaks afirmam que as pessoas
que fugiram naquela ocasio permanecem selvagens no Pontal so os isolados
que eles tanto querem encontrar. Nesse sentido, enquanto a verso apiak confere
agencialidade ao povo (muitos no quiseram seguir com Norberto), a verso kaiabi
representa os apiaks como vtimas (de uma emboscada).
Como j foi mencionado, no incio dos anos 1960 o missionrio jesuta Joo
Dornstauder, que pacificara diversos povos na bacia do Juruena, dentre os quais os
rikbaktsas, tentava atrair os kaiabis para um lugar chamado Tatu, no curso mdio do
Rio dos Peixes, margem esquerda.202 Nesta poca, as margens do Rio dos Peixes
haviam sido tomadas por fazendas e pequenos povoados que ainda sobreviviam da
indstria da borracha; a CONOMALI (Companhia Colonizadora Noroeste Mato202

1966 foi o ano da Operao Cayabi, a transferncia dos kaiabis para o PIn Xingu, coordenada pelos
irmos Villas-Bas, de acordo com os quais at os anos 1960 o vale do Teles Pires era uma rea perigosa
e inexplorada, mas, a partir da notcia de que os caiabis, tatus e apiacs estavam em paz com a
Expedio, o vale comeou a ser ocupado. Povoaes, vilas e cidades comearam a nascer no grande
vale: Sinop, Peixoto de Azevedo, Matup e inmeras outras. (Villas-Bas 1994: 516) Eles informam,
ainda, que desde que chegamos no vale do So Manoel ou Telles Pires vimos lutando com ndios
arredios. Primeiro foram os caiabis, depois os tatus, perseguimos os apiacs, agora os crenacarores. O
vale do So Manoel ou Telles Pires, em verdade, era praticamente interditado ao avano. Agora [1972],
com as notcias que j correm sobre a paz no vale, com a emigrao espontnea dos caiabis para o Xingu,
seduzidos pelos nossos caminhos deixados no divisor, o retraimento dos tatus para as bandas do Arinos,
os apiacs fugindo para o longnquo divisor do Juruena, e finalmente os gigantes (panars) prestes a dar
fala, o vale voltou a ser namorado pelos extrativistas da seringueira, da castanha e dos garimpos. (:
529)

242

Grossense) tornara-se proprietria da Gleba Arinos, terreno onde foi fundada a cidade
de Porto dos Gachos. A CONOMALI era a empresa que monopolizava a extrao e o
comrcio do ltex na regio, famosa pelo fato de seus capatazes no usarem de
violncia com os trabalhadores, diferentemente das empresas concorrentes, que faziam
dos castigos fsicos e dos assassinatos a regra. Homens e mulheres que hoje tm mais de
50 anos contam histrias horrendas a respeito das condies de trabalho nos seringais
administrados por outras empresas.
Numa de suas viagens pelo Juruena, o missionrio deparou-se com uma famlia
apiak empregada da CONOMALI. Trata-se de um segmento da famlia extensa de
Norberto Morim, formado por filhos do seu terceiro casamento com uma mulher da
etnia kokama, Teodora (no. 1 no Diagrama 3.1). No momento do contato com o
missionrio, este ncleo familiar estava composto da seguinte maneira: o filho mais
velho do terceiro casamento de Norberto (no. 8) e sua esposa (no. 7), proveniente de
Santarm (algumas pessoas me disseram que ela era negra; outras, que era satermaw), alm do irmo desta (no representado), que se casou com Teodora aps a
morte de Norberto; dois filhos solteiros do segundo casamento de Norberto; duas filhas
casadas com arigs (uma delas a no. 9).
Note-se que as famlias apiaks que se mudaram para o Tatu decidiram abrir
mo de obter dinheiro e mercadorias individualmente em nome de uma apropriao
coletiva da terra e diversos bens oferecidos pelos missionrios, tais como educao
escolar e atendimento mdico, assistncia que, segundo contam os velhos apiaks,
deveriam impedir que seus filhos sofressem os mesmos reveses enfrentados pelos
antepassados. Estas pessoas mudaram-se para a aldeia Tatu em 1967, onde
permaneceram por apenas um ano, devido hostilidade dos kaiabis. Fundaram ento a
aldeia Nova Esperana, na margem direita do Rio dos Peixes, quase em frente ao Tatu,
local que continuaram frequentando, devido presena de missionrios alemes e
austracos que haviam implantado ali uma boa infraestrutura. Os apiaks mais velhos
recordam que, nos anos 1970, o Tatu era uma aldeia muito bonita e rica; l havia um
grande hospital de alvenaria, escola, um grande depsito de borracha, barraco de
mercadorias e cerimnias religiosas regulares.
O filho mais velho de Norberto, Paulo Morim (no. 8 no Diagrama 3.1), era o
cacique de Nova Esperana, mas no gozava de grande prestgio; sua esposa era
acusada de feitiaria e o casal era criticado por no receber bem os parentes em sua casa
receber bem revela-se, assim, uma importante prtica poltica. No incio dos anos
243

1970, Andr, o meio-irmo do cacique, que vivia no rio Anipiri (afluente oriental do
Teles Pires, no curso baixo, perto da embocadura no Juruena), enviou uma carta ao Rio
dos Peixes, queixando-se das condies de vida no Par. O cacique fez uma viagem
para l e trouxe no apenas o meio-irmo, como tambm alguns mundurukus ligados a
ele por meio do casamento de sua filha (no. 34). Os adultos de hoje comentam que
Nova Esperana era uma aldeia grande e bonita: Era muito maior que o Mayrob. Tinha
muito boi, as casas formavam ruas, no barraco da cooperativa tinha muita mercadoria.
No fosse a briga deles, hoje l teria mais de mil apiaks.
A briga remete ciso ocorrida na virada para os anos 1980, motivada por
conflitos entre o cacique e seu cunhado arig. As pessoas contam que a maioria dos
moradores daquela aldeia frequentava a casa da irm do cacique, casada com um arig
com certo tino comercial, que incentivava os parentes afins a vender castanha-do-par
por um bom preo e ajudava a administrar a cooperativa; este casal era generoso com as
visitas: Tudo o que tinha eu colocava para eles comerem; caf, bolo, peixe... Se no
tinha, eu no dava, mas se tinha, eu deixava comer vontade, explicou-me a mulher
(no. 9), que hoje vive com o marido, filhos e netos na cidade de Porto dos Gachos.
Alis, a frase Todo mundo que vem a minha casa come o que tiver, s no come se no
tiver nada mesmo emblemtica dos caciques apiaks. Seu marido (no. 10) me disse
que seu cunhado ficou com inveja e comeou a dizer que ele estava querendo tomar
seu lugar; o conflito terminou com a expulso desta famlia conjugal em 1979,
chancelada pela Funai.203
Ocorre que, aps algum tempo, aquele meio-irmo do cacique proveniente do
Par, inconformado com o que entendia como uma injustia, expulsou o cacique e sua
esposa da aldeia. Outras pessoas afirmam que os dois meio-irmos brigaram por causa
da venda de algumas cabeas de gado da comunidade.204 Paulo e sua esposa mudaramse para os arredores do Arinos; outros membros de sua famlia extensa dispersaram-se
por cidades e fazendas no vale do Arinos e os apiaks do Rio dos Peixes no voltaram a
ter notcias deles.
Encontramos aqui o limite da plasticidade da organizao social apiak:
quando as normas de convivncia so desrespeitadas, quando falha o princpio de
203

O casal guarda at hoje a carta da Funai em que foi determinada a expulso do arig da aldeia. Sua
esposa no podia conceber que ele fosse embora sozinho, e o acompanhou, juntamente com os filhos
pequenos, deixando apenas o primognito, casado com a filha de Andr. O casal lembra a histria com
ressentimento e nunca mais voltou ao Rio dos Peixes.
204
O rebanho havia sido doado comunidade pelos missionrios do Tatu.

244

distribuio de comida e bens, a comunidade entra em crise e pode se cindir. O processo


que culminou no abandono de Nova Esperana foi determinado pela falta de
generosidade do cacique para com seus co-residentes e, consequentemente, pela ruptura
da aliana com o parente afim. Mas interessante observar que, embora a rivalidade
tenha se estabelecido entre um homem e seu cunhado, ao falar sobre o conflito, os
indgenas atribuem aos dois meio-irmos a responsabilidade pela extino da aldeia:
Era feio, brigava irmo com irmo!, reiteravam.
A crtica parece dirigir-se ento incapacidade que aquelas pessoas
demonstraram de fazer prevalecer os princpios coletivistas sobre os interesses
individuais, o cunhado no-indgena surgindo como o exemplo de bom comportamento
a reforar a falta do cacique apiak que se deixava influenciar pela esposa (no. 7) que,
por seu turno, tampouco agia de acordo com o que se espera de uma cacica. De outro
modo, pode-se ler este conflito como resultado da falta de habilidade do cacique para se
relacionar com seu afim, tratando-o como inimigo, no como aliado. R. Laraia fala da
existncia de um grupo de irmos numa mesma unidade residencial, aliada
convergncia de interesses entre pais, filhos e irmos, como um foco potencial de ciso,
trao comum a vrios povos tupi-guaranis (Laraia 1971: 182).
Muitos antroplogos insistiram no fato de que as emoes tm um peso
poltico importante na Amaznia. Ao tratar da relao entre convivialidade e fisso
alde entre os yaneshas, Santos-Granero focalizou os conflitos entre irmos na histria
poltica e na mitologia desse povo, percebendo que naquele contexto a fisso alde
percorre o caminho dos laos consanguneos (Santos-Granero 2000: 275). Os apiaks
com quem conversei relatavam com grande desgosto a histria da desagregao de
Nova Esperana e explicavam a disperso de seus moradores pelo intenso mal-estar
causado pelo desentendimento entre os meio-irmos, indicando que a convivialidade
havia realmente se esgarado.
Os atuais homens influentes apiaks so unnimes quanto ao papel
desempenhado pelo missionrio Joo Dornstauder na ocasio do conflito em Nova
Esperana: Se ele no tivesse chamado os velhos para conversar, eles teriam voltado
para o Par, teriam se espalhado de novo, e hoje no existiria o Mayrob. O missionrio
de fato convenceu o ncleo de Andr a se mudar para um ponto a jusante no Rio dos
Peixes, na mesma margem direita. Quem abriu de fato o Mayrob, em 1982, foi um
filho de Andr, Rodolfo (no. 29 no Diagrama 3.1). Logo Andr mudou-se para l e
tornou-se cacique, tendo este filho assumido a posio de vice-cacique. A liderana de
245

Andr era reconhecida pelos missionrios do Tatu, uma vez que, de acordo com vrias
pessoas que o conheceram, ele falava a lngua apiak, seguia as normas de conduta, era
um homem trabalhador e sereno, procedia distribuio de carne de caa e peixes
quando obtida em grande quantidade e organizava festas de mingau. Andr havia se
casado, em segundas npcias, com a filha de um patro que possua um barraco no
baixo Teles Pires (no representada). Sua esposa arig esforava-se, porm, para
aprender a histria, a lngua e os costumes do povo e cuidava dos filhos do primeiro
casamento e dos netos rfos do marido. Alm do filho solteiro que atuava como vicecacique, Andr contava com o apoio de dois genros: o munduruku proveniente do
Anipiri (no. 27) e o filho de sua meio-irm (no. 25), a qual se retirara de Nova
Esperana em 1979.
Os primeiros moradores do Mayrob foram, assim, os membros da famlia
extensa de Andr, estruturada em torno das duas filhas casadas, alm de dois filhos
jovens de Paulo (nos. 23 e 24 no Diagrama 3.1). Aps um ano mais ou menos, Andr
comeou a fazer viagens ao Pontal para convidar aliados mundurukus a viver no
Mayrob, provavelmente devido falta de cnjuges considerados adequados para seus
filhos e netos (naquele momento, os apiaks no desejavam estabelecer alianas
matrimoniais com os kaiabis do Tatu). Foi assim que se mudaram para o Mayrob um
filho e uma filha de casamentos anteriores de Sebastio Krixi (no. 27), alm de alguns
parentes mundurukus da esposa do filho de Andr, a mulher de no. 28 (no
representados), pertencentes aos cls Burum e Krepu.
Ainda nos anos 1970, D. Laura Kamassori (no. 37 no Diagrama 3.1) e seu
segundo marido, um arig, fundaram a aldeia Bom Futuro, no baixo Teles Pires, no
territrio ento dominado pelos mundurukus. Seu marido faleceu logo e ela permaneceu
ali com um filho do primeiro casamento e quatro filhos do segundo casamento, alm
dos cnjuges destes e de uma amiga munduruku, viva de um apiak que atuara como
guaxeba de um seringalista.
Rodolfo, filho de Andr, hoje com 54 anos, contou-me sua histria de vida
nesses termos:205
Depois que teve o massacre, espalhou tudo. De primeirinho, o nosso
bisav morava na Aliana; depois vieram para dentro do Anipiri, outra
aldeiazinha, chamada Carrapichal. Depois eles abriram a Tamanqueira, na
entrada de uma estrada que ia para a Misso Cururu. A enjoaram de l, fizeram
outra aldeia, l na Maloca, ali a gente parou, cresceu. Ali pra baixo do Cristvo,
205

A localizao das aldeias mencionadas est representada no Mapa Etno-Histrico.

246

no rio Tele Pires, na boca do paran, tem uma casa do lado do Mato Grosso, que
do Z e do Simo, depois tem outra mais pra baixo, perto de uma ressaca, onde
hoje mora o Paulo; o pai dele morreu e ele ficou. Logo abaixo era a aldeia do
pessoal do velho Paulo Kamassori, o Bom Jardim, do lado do Mato Grosso, bem
na beira da serra, do lado de baixo tem uma ressaca. L eles fizeram umas seis
casas; depois que eles saram, morou um bocado de gente ali; velho Paulo e essa
irm dele que depois foi para o Pimental, a Terncia (filha dos nos. 21 e 22 no
Diagrama 3.1), moravam l. (...) Eu sa da companhia do meu pai, na Veneza,
quando eu tinha uns 16 anos. Ns tnhamos uma maloca dentro do Anipiri, do
lado do Par, que se chamava Maloca mesmo, perto da Misso. Eu sa e fui
trabalhar sozinho, a achei essa Minerao (perto da barra do rio Ximari, do lado
do Par), e foi o tempo em que os Villas-Bas estavam juntando todos os ndios
para levar para o Xingu. Eu andei pelo igarap da Maloca, andava at aqui por
trs, de canoa ou a p. Mas nunca ningum encontrou esses que esto no mato,
mas a gente via vestgio deles. E essa maloca aqui em Alta Floresta... tinha dois
fornos de cobre que o pai desse velho Paulo Kamassori largou nas pedras, para
eles buscarem; nunca foram, e o velho tambm no acertou mais o caminho.
Esses fornos o pessoal de Alta Floresta achou esses tempos; era a nica aldeia
dos apiak que tinha no rio Apiacazinho. A Minerao ia ser uma fazenda, mas
os kaiabi entraram l, a... Eu trabalhava cortando arroz, de canoa; eles
plantaram no ms de janeiro, quando estava comeando a amadurecer, a gente
colhia de canoa, dentro do banhado. A meu tio foi pra l, (Paulo Morim) pai do
Norberto, foi ver o irmo dele; parou na Veneza, onde meu finado pai morava.
L tinha um regato subindo, ele mandou recado pra mim, para eu descer, que
ele queria conversar comigo, a eu vim. Isso era ms de janeiro. Fizemos farinha,
ainda voltamos, descemos de novo para a Barra, passamos uns trs dias l,
depois subimos para o Juruena. Primeiro, tinha o filho do velho Paulo (Morim),
Potoca o nome dele era Renato , morava l; ns fizemos farinha l; a viemos
aqui pra cima, onde o Simio Coelho mora hoje em dia aquele velho antigo
ali! Ns paramos l mais dois dias, depois viemos para a boca do So Tom;
bem na pontinha ali tinha uma casa de perambulao dos apiak mesmo, sempre
a gente parava l. De l que ns viemos pra c, para o Mato Grosso. Ns
ficamos uns seis dias de l at aquele garimpo da Murilndia, que estava
comeando. A gente sabia todos os contatos, o pessoal do garimpo tinha rdio,
mas s se comunicava com Porto dos Gachos; aqui no Tatu tinha o rdio da
Misso, aqueles rdios de antigamente, sem ser desse a que ns temos, era
diferente. A comunicaram pra l, com quatro dias o pessoal chegou l: o pai do
Adriano e o Jlio Hermindo foram nos buscar. A ns chegamos Nova
Esperana, naquele tempo a aldeia era ali embaixo. Eu conheci minha velha no
Par. Nesse tempo mesmo, ms de janeiro, ela veio com o primo dela. A viagem
foi um sofrimento danado, chuva noite e dia. Ns casamos na Misso Cururu;
fomos de canoa, a me dela morava l. Quando tinha a Nova Esperana, eu
cortava seringa; primeiro eu trabalhei em fazenda, no gostei, trabalhando para
os outros... a eu cortei seringa aqui (Mayrob). Tinha s mesmo a barraquinha de
seringueiro, era s eu mesmo. A eu gostei daqui, comecei a abrir um pouquinho
ali embaixo. A desci para o Par de novo, passei mais dois anos l na
Conceio, onde a me da Edite morava, quase na ponta, onde tem um
mucajazal, e daquele lado tem um campo. Ns ficamos l e eles sempre
entravam em contato pelo rdio. Na Primavera, tinha um regato muito forte,
chamado Sulta; ali era um povoadinho, com casa de comrcio, todo o mundo ia

247

l comprar; hoje em dia acabou tudo, s tem um mato. Ns ficamos dois anos
l, mas no dava, eu sempre lembrava do meu pai, a a gente entrou em contato
com eles e foram l nos buscar de novo, meu finado pai foi atrs de ns, a ns
viemos de novo. O finado pai j tinha aberto aqui (o Mayrob), maior, com esses
meninos, o Edson, o Elias, o genro dele que faleceu, finado Sebastio, com a
esposa (Mirna). Na Nova Esperana, eles tiveram um conflito entre irmos,
ficou tudo abandonado l, gado... eles tinham no sei quantas cabeas de gado,
eles eram como que fazendeiros. A ficou tudo abandonado, boi tudo choco...
Mandaram aviso pra mim, dizendo que j estavam morando aqui, como ns
podamos fazer? O velho tambm era um pouco bravo, no tinha muito
conhecimento das coisas, no pensou em juntar o povo, as coisas dos bois. Eu
mandei recado pra ele: Ento vocs do um jeito de arrumar um recurso, uns
dois mil pra leo, gasolina. A arrumaram com o finado padre Joo
(Dornstauder), desceram de barco, ns viemos. Cheguei aqui, estava tudo
abandonado mesmo. E o velho Paulo Morim j tinha ido para Juara; a mulher
dele era branca, ela era l das bandas de Santarm, ele a trouxe de l. Chegamos
aqui, j estava tudo povoado, tinha roa, tinha uma derrubadinha ali. Como
vamos fazer para buscar o gado? Foi, foi, viramos, ficamos uns quatro anos,
roamos, derrubamos, fizemos esse pasto; a gente ia mantendo o gado com
embaba, trouxemos tudo pra c. O que ficou pra ele (Paulo), ele vendeu,
comeu; o que ficou pra ns, trouxemos pra c. A o pessoal foi chegando, os
meninos foram crescendo, foram casando, a abrimos essa aldeia. Eu nem fiquei
aqui muito tempo, foram mais eles que abriram aqui do que eu, eu s a anunciei:
Mayrob, quer dizer papagaio da cabea amarela. Mairowy ns colocamos
porque o pequenininho, aquela jandaia, o bichinho, a curiquinha. Quem
arrumou as coisas l no Mairowy foi o Edson, na Funai, o Carlos era meio novo,
eles comearam. Todo projeto que saa para ns, ns dividamos bem no meio,
mandvamos coisa de comer pra eles, para eles trabalharem, abrirem l. (...) O
Pimental do tempo do finado vov. L os kayaps roubavam coisas do
mercadinho dos brancos; eles tinham medo de os kayaps os matarem, mas o
finado vov no tinha medo, ento os brancos foram atrs dele na Barra, e
pediram para ele ir atrs dos kayaps, pegar de volta as armas e as comidas que
eles tinham levado. Ele foi sozinho, e trouxe o que os kayap roubaram. Por isso
at hoje em dia tem uns kayap velhos que falam: Apiak perigoso, no pode
brigar, eles brigam muito. Apiak bom, o outro ndio que no sabe, fica
roubando coisa dos outros, no pode, eles ficam com raiva. Quando o finado pai
era vivo, tinha um pouco de contato com eles. Esses apiak que esto no
Pimental agora so nossos sobrinhos, povo do velho Paulo Kamassori, da irm
dele, Terncia, a famlia dela; ela casou com branco e arrumou famlia pra l
mesmo. (...) Minha me foi enterrada num cemitrio grande, abaixo do PIn Teles
Pires, perto da beira do rio, desse lado do Mato Grosso; depois teve um foco de
ouro ali, as balsas entraram, acho que at acabaram com o cemitrio, isso faz
tempo.
Em 1984, um evento importante contribuiu para a insero dos apiaks no
movimento indgena nacional e para a consolidao do discurso da identidade tnica: o
incio da construo de uma usina hidreltrica no salto do Rio dos Peixes, considerado
sagrado pelos kaiabis. Durante semanas, ndios de doze etnias mato-grossenses uniram-

248

se no canteiro de obras da usina e impediram os empregados de trabalhar. Este


momento lembrado pelos homens influentes de hoje como um marco na histria da
reestruturao poltica do povo apiak, levando tambm os indgenas do Rio dos Peixes
a reivindicar a instalao de um Posto da Funai na rea, o que ocorreu em 1985. Em
1999, um filho de Paulo assumiu o cargo de chefe de Posto, que ocupa at hoje. O
dilogo com homens influentes de outros povos ajudou os jovens adultos apiaks a
adquirirem conscincia de sua situao e a perceberem que precisavam se organizar
para lutar por seus direitos, mesmo que com isto contrariassem os velhos, que tinham
medo de partir para a luta pelos direitos.
********
Hoje, as aldeias classificadas como propriamente apiaks so aquelas
estabelecidas em territrio tradicional deste povo e lideradas por um cacique apiak
(leia-se: homens pertencentes s parentelas Morim, Kamassori ou Paleci),
independentemente de sua composio demogrfica atual, que inclui indivduos das
etnias munduruku, kaiabi, sater-maw, nambiquara, kokama e descendentes de arigs,
sendo que pessoas dessas etnias chegam a se identificar como apiak em determinadas
situaes.
As sete aldeias classificadas como apiaks no estado do Mato Grosso so:
Mayrob e Figueirinha,206 no Rio dos Peixes, TI Apiak-Kayabi e Pontal, no rio Juruena,
Minhocuu207 e Mairowy, no rio Teles Pires, TI Kayabi; e no estado do Par so: Vista
Alegre e Bom Futuro, tambm s margens do rio Teles Pires, na TI Munduruku (ver
Tabela 3.3). Estas aldeias so unidas por vnculos de parentesco e de compadrio, mas a
relao entre seus moradores um misto de solidariedade e rivalidade. Embora possam
vir a juntar foras para a resoluo de questes que afetem a todas, como, por exemplo,
a demarcao da rea do Pontal, essas aldeias existem como unidades polticas
independentes. Existem ainda cerca de 70 apiaks da parentela Kamassori morando na
vila de Pimental, perto de Itaituba (PA), que comearam a estabelecer contato com os
moradores do Mairowy h um ano. Pode-se dizer que o mais importante fator de coeso
do povo apiak no presente a histria comum que sustenta a luta atual pela terra, ou

206

207

possvel que os kaiabis reivindiquem Figueirinha como aldeia sua, uma vez que formada pela
famlia extensa de um homem kaiabi e uma mulher apiak.
Os kaiabis tambm reivindicam o Minhocuu como aldeia sua, uma vez que ela formada pelo
segmento de famlia extensa de um homem apiak e sua esposa kaiabi. Este homem um dos poucos
velhos que fala fluentemente a lngua apiak.

249

seja, a memria coletiva constitui o fundamento da identidade tnica e da articulao


poltica supra-alde.
As duas aldeias politicamente mais importantes so Mayrob (no Rio dos
Peixes) e Mairowy (no rio Teles Pires), sendo que os homens influentes do Bom Futuro
(o no. 94 no Diagrama 5.1 e um filho do homem de no. 38 do Diagrama 3.1) afastaramse temporariamente do movimento de fortalecimento da identidade tnica levado a cabo
pelos apiaks das demais aldeias. Os habitantes de Mayrob referem-se a Mairowy como
um desdobramento daquela aldeia. Com efeito, Mairowy foi fundada com o apoio de
homens influentes de Mayrob, h menos de uma dcada. A aldeia Figueirinha (Rio dos
Peixes), situada poucos quilmetros a jusante de Mayrob, foi fundada nos anos 1990 por
uma famlia extensa dissidente do Mayrob, encabeada por uma mulher do subgrupo
Morim (filha dos no.s 7 e 8 do Diagrama 3.1) e seu marido, um kaiabi proveniente da
aldeia Tatu.
Ainda no Rio dos Peixes, existe a Aldeia Nova Munduruku, fundada em 1988
pelo filho de um dos pioneiros mundurukus da aldeia Mayrob, vindo da Misso Cururu
(PA) em companhia do patriarca Morim; os homens influentes desta aldeia geralmente
apoiam os apiaks em suas disputas com os kaiabis. Ao longo do Teles Pires h a aldeia
Minhocuu, que consiste em uma famlia extensa formada por um homem do subgrupo
Paleci (no. 35 no Diagrama 3.1) e sua esposa kaiabi, oriunda da aldeia kaiabi
Kururuzinho, situada alguns quilmetros a montante dela; os apiaks criticam este
homem por preferir viver junto aos kaiabis a mudar-se para uma aldeia apiak. No baixo
curso do rio Teles Pires, os mundurukus de algumas aldeias na TI Munduruku
costumam apoiar os apiaks do Mairowy em suas querelas com os kaiabis. No Par, h
as aldeias apiaks Bom Futuro, formada por membros da parentela Kamassori, e Vista
Alegre, formada por duas irms Morim (filhas dos nos. 30 e 31 do Diagrama 3.1), seus
maridos no-indgenas e filhos pequenos.
A fundao do Mairowy e do Pontal deu-se no contexto da reestruturao
poltica iniciada nos anos 1980. O homem que batizou a aldeia Mairowy foi o primeiro
cacique do Mayrob, Rodolfo Morim (no. 29 do Diagrama 3.1). Certa vez ele me
explicou que Mayrob o papagaio-madeira grande (com uma mancha amarela na
cabea), e Mairowy, o papagaio pequeno da mesma espcie: Mayrob a central,
Mairowy a filial, porque menor. Em 2006, dando seguimento ao processo de
retomada do territrio tradicional apiak, foi fundada a aldeia Pontal, na margem direita
do Juruena (curso baixo). At hoje o cacique o filho do primeiro casamento da mulher
250

da parentela Kamassori de no. 37 no Diagrama 3.1, sendo que o filho do segundo


casamento que havia sido dado em adoo tornou-se cacique do Mairowy, embora sua
esposa munduruku no seja aceita como cacica.
Os apiaks do Mayrob estabeleceram uma relao paternal com os apiaks do
Mairowy e do Pontal; dizem que os parentes de l vivem longe da cidade e no
conhecem bem as leis dos brancos, sendo preciso ajud-los. O cacique do Pontal, por
ser irmo mais velho do cacique do Mairowy, tambm o trata de forma paternal,
comentando que ele tem dificuldade em atuar como chefe. H alguns anos, os apiaks
do Mayrob fundaram uma associao sem fins lucrativos para gerenciar projetos em
diversas reas apenas em sua aldeia.
Existem, portanto, dois blocos micro-regionais de aldeias apiaks: aquelas no
Rio dos Peixes, cujo centro poltico Mayrob, e aquelas nos rios Teles Pires e Juruena,
tendo por centro o Mairowy. No Mato Grosso, a chefia e a maioria dos cargos
remunerados esto nas mos dos Morim; j o Par domnio poltico dos Kamassori;
ao passo que os Paleci no constituem grupo influente em nenhuma rea.208 Numa
escala geopoltica mais ampla, porm, o Par ainda considerado territrio poltico
munduruku, enquanto no Rio dos Peixes predominam politicamente os kaiabis. Nesse
sentido, a aldeia Pontal foi fundada com o intuito de consolidar o domnio poltico
apiak sobre uma rea ocupada tradicionalmente por este povo. Como foi explicado no
captulo 3, entre os apiaks e kaiabis no Rio dos Peixes, no se desenvolveram, na
primeira gerao de co-residentes (anos 1960), os mesmos laos de casamento e
cooperao que uniram apiaks e mundurukus nos rios Teles Pires e Cururu, embora
tenha havido vrios casamentos entre apiaks e kaiabis na primeira e na segunda
geraes descendentes, no Rio dos Peixes.
Ocorrem casos em que uma famlia extensa decide deixar a comunidade, por
motivos diversos, que vo desde um desentendimento com um co-residente at
acusaes de feitiaria. A depender da natureza da separao (mais ou menos
conflituosa), a famlia pode estabelecer nova morada nas imediaes da aldeia de
origem e pode continuar a frequent-la. Por outro lado, quando uma famlia passa a
viver numa aldeia onde no tem parentes prximos, deve, por algum tempo, prestar
alguns servios para o cacique, como dar-lhe alguns litros de farinha de mandioca ou

208

Pelo que pude entender da rpida visita que fiz ao Minhocuu, os filhos do casal fundador da aldeia se
identificam como kaiabis. Desse modo, no se pode afirmar que a parentela Paleci seja a mais
influente naquela aldeia.

251

enviar as filhas para auxiliar a cacica nos afazeres domsticos, o que concebido como
retribuio pela moradia e pelo trecho de terra cultivvel recebidos. Geralmente, as
famlias recm-chegadas so alojadas em casas abandonadas.
Quando uma aldeia se cinde, os antigos moradores de cada aldeia no gostam
de ficar por baixo dos antigos co-residentes; quando se visitam, vestem as melhores
roupas e no veiculam queixas sobre o novo local de moradia. As visitas recprocas
entre moradores de aldeias distintas so ocasies para partilhar alimentos com os
parentes com os quais j no se convive, para realizar trocas mercantis, selar relaes de
apoio poltico em questes pontuais e estabelecer relaes amorosas.
Em termos de distribuio de territrio e recursos naturais no interior das
Terras Indgenas (TI) Apiak-Kayabi, Munduruku e Kayabi, existe uma acomodao
recproca entre os povos que as habitam que, entretanto, no livre de tenses e
conflitos eventuais. Na primeira dessas TIs, convencionou-se que os apiaks habitariam
a poro norte em relao ao rio e os kaiabis, a poro sul; acordou-se que as estradas
abertas no tempo da extrao de ltex e os castanhais seriam divididos de forma
equnime entre ambos os povos. Na TI Munduruku, os apiaks ocupam e utilizam a
poro extremo-sul h mais de trinta anos. O segmento apiak dissidente deste local
passou a ocupar, na ltima dcada, o extremo norte da TI Kayabi, rea que j era
utilizada pelos apiaks h dcadas para atividades de subsistncia, sendo que os kaiabis
ocupam e utilizam toda a poro sul.
Pode-se dizer que as aldeias apiaks tendem para a disperso territorial. Novas
aldeias so formadas em geral devido a desentendimentos entre germanos masculinos
que raramente resultam em confronto aberto. Observa-se uma certa rivalidade entre os
caciques apiaks das diversas aldeias. As pessoas dizem que, quando a comunidade
cresce demais (algo acima de 150 pessoas), torna-se mais difcil obter o consenso nas
reunies no salo e as pessoas comeam a falar mal dos homens influentes, passando a
existir muita fofoca. As aldeias apiaks, kaiabis e mundurukus dispostas ao longo dos
formadores do Tapajs formam uma rede social regional, no interior da qual se
rivalizam por meio dos brancos, seus bens e instituies.
Os apiaks do Rio dos Peixes queixam-se de que os kaiabis se apropriam da
maioria dos recursos e pessoas (profissionais no-indgenas) que deveriam ser
repartidos entre ambas as etnias dentro da Terra Indgena. Todavia, nos ltimos anos, os
apiaks tm conseguido ocupar posies estratgicas na burocracia indigenista, fato que
lhes garante maior acesso a recursos de toda ordem. Tanto assim que o chefe do Posto
252

Tatu um apiak do subgrupo Morim, que ocupa o cargo h oito anos. Nas Terras
Indgenas Kayabi e Munduruku, as necessidades dos apiaks ficam em segundo plano
em relao s etnias predominantes.

5.2- Os meandros da chefia


O locus atual da organizao poltica apiak o salo, espao da poltica
formal, esfera mais masculina que feminina, onde a comunidade adquire expresso
efetiva, aonde as pessoas vo para serem vistas e ouvidas pelos co-residentes. O salo
caracteriza-se por um tipo de fala mais formal, que se distingue de uma fala censurada,
a fofoca. O salo parece ter sido introduzido nas aldeias apiaks nos anos 1970, por
influncia dos missionrios jesutas que atuavam no Posto Tatu; uma construo
aberta, ampla o suficiente para acomodar quase todos os moradores da aldeia, uma
estrutura retangular de madeira, coberta de palha de babau e com piso de terra batida
no Mairowy e, no Mayrob, coberta de telhas de amianto e com piso de cimento, com
uma ou mais entradas, vrios bancos e cadeiras de madeira.
no salo que fica o aparelho de TV da comunidade e, no Mayrob, ele
funciona ainda como sala de aula durante o dia e espao de celebraes catlicas. Ali
acontecem, pela manh ou noite, as reunies peridicas da comunidade e as reunies
da sade e da educao,209 e tambm as festas, as sesses coletivas de vinho de
frutas silvestres, a apresentao de forasteiros, a venda da castanha-do-par para os
castanheiros (compradores intermedirios). As pessoas comuns vo ao salo para se
inteirar dos acontecimentos, para ouvir as notcias trazidas por aqueles (normalmente
homens) que foram cidade ou a outras aldeias, notcias que os membros da famlia
extensa destes j ouviram em casa.
A poltica formal conduzida pelo cacique, o qual, junto com os homens e
mulheres influentes, decide sobre os assuntos que dizem respeito coletividade, tanto
interna quanto externamente aldeia.210
209 Trata-se de longas reunies dos conselhos local e regional de sade ligados ao DSEI Kayap, cuja
sede fica em Colider (MT), ou ao conselho de educao ligado ao municpio. Teoricamente, qualquer
morador pode participar dessas reunies e mesmo ser eleito conselheiro. Na prtica, as coisas so um
pouco diferentes, como veremos adiante.
210
Podemos traar um paralelo esclarecedor entre os homens influentes apiaks e o grande homem
melansio descrito por M. Sahlins (1963). De acordo com este autor, o grande homem pode ser
aproximado ao esteretipo burgus, definido como a combinao de interesse em promover o bem-estar
geral e a astcia empregada em benefcio prprio. O status do grande homem resultado de uma srie de
atos que elevam uma pessoa acima do rebanho comum e atraem uma coorte de homens leais e menos

253

O cacique apiak tem como ponto de sustentao de sua posio poltica o


conjunto de seguidores formado por seus cunhados, genros, compadres e sogro. Dessa
forma, se a afinidade se dilui no mbito do parentesco, ela se destaca no campo poltico.
O cacique apiak emprega uma generosidade calculada para ampliar sua esfera de
influncia na aldeia: ao receber bem e oferecer alimentos aos co-residentes, ele est
literalmente nutrindo sua base de sustentao poltica. Inversamente, o pior defeito de
um cacique no receber bem os co-residentes em sua casa. Tanto assim que esta falta
geralmente apontada como a causa da ciso da aldeia Nova Esperana, tratada acima.
No dia-a-dia, fora do salo e na ausncia de visitantes, o cacique um homem
como qualquer outro; no se distingue por sinais exteriores nem alvo de atitudes de
reverncia. Embora no tenham propriamente poderes espirituais, os caciques fumam e
dizem ter sonhos premonitrios a respeito de caadas e de eventos sociais importantes.
Um deles me explicou que s no se transforma em xam porque vai com frequncia
cidade, ambiente que repele os espritos, os quais abominam claridade e barulho
excessivos, movimento exagerado e grande concentrao de pessoas.
Bem, se o cacique no faz o mesmo tipo de trabalho que seus co-residentes, se
quase no lhe sobra tempo para cuidar da roa, caar ou pescar com regularidade, ele
em geral dispe de maior quantidade de bens industrializados, adquiridos em suas
viagens ou ento na interao com brancos aliados. Como no recebe salrio por seu
importantes, sendo que dentre seus atributos destaca-se o domnio da oratria (Sahlins 1963: 5). O
segredo do grande homem , portanto, prestar auxlio de modo a deixar o receptor em dvida moral para
com ele. Nesse sentido, o prestgio do grande homem melansio uma criao do corpo de seguidores
(Sahlins 1963: 7), e a lealdade pessoal tem de ser continuamente forjada e reforada, pois, se houver
descontentamento, ela pode ser rompida (: 9). Esse renome baseado numa generosidade calculada
aumenta na proporo direta da habilidade do grande homem para canalizar seus esforos numa certa
direo e manter vivos os laos de lealdade e obrigao com um certo nmero de pessoas, especialmente
seus parentes mais prximos, acumulando e distribuindo bens de modo a construir sua reputao de
soberba generosidade, seno mesmo de compaixo (: 7). Sob esta perspectiva, um grande homem
aquele que pode criar e usar relaes sociais que lhe conferem vantagem sobre a produo de outros e tem
a habilidade de canalizar um excedente (fundo de poder) (: 8). Percebe-se assim o papel de destaque
desempenhado pelos afins (cunhados, genros, compadres e filhos adotivos) e pelas mercadorias na
manuteno do renome e do status do grande homem. Os grandes homens so meios indispensveis para
se criar uma organizao supra-local, na medida em que eles se rivalizam em renome e ampliam as
esferas cerimonial, da recreao, da arte, da colaborao econmica e da guerra (Sahlins 1963: 9). Para
Sahlins, o limite desse tipo de chefia reside no fato de que, ao gerar uma dinmica forte na busca do
mximo de renome, o grande homem provavelmente produzir uma contradio em suas relaes com
seus seguidores, de modo tal que, ao estimular a produo, ele acaba encorajando deseres ou pior,
uma rebelio igualitria (: 10). A instabilidade poltica e a ausncia de excedentes politicamente
utilizveis, caractersticas desse tipo de chefia, imporiam limites intransponveis ao surgimento de uma
organizao poltica mais complexa: As restries internas exprimem-se sob a forma de tetos para a
intensificao da autoridade poltica, da produo domstica por meios polticos e do desvio da produo
domstica para o sustento de uma organizao poltica mais ampla (: 11). A chefia melansia exprime a
capacidade de povos no-ocidentais de gerar e manter o progresso poltico, o que nos faz ver que a
inexistncia de Estado entre eles uma opo histrica.

254

posto, o cacique tambm pode, eventualmente, apropriar-se de uma pequena parte do


dinheiro da comunidade para cobrir suas despesas, sem necessariamente causar
descontentamento. Tais bens industrializados, especialmente alimentos, fumo e
utenslios de plantio, caa e pesca (cavadeira, anzois, linha de nilon, espingarda,
munio etc.), no so todos consumidos no interior da famlia conjugal do cacique;
eles se tornam, antes, itens de troca por alimentos produzidos/obtidos na prpria aldeia,
preferencialmente dentro de sua famlia extensa. O fluxo contnuo de objetos
industrializados, num sentido, e alimentos produzidos localmente, no outro, fundamenta
a relao de apoio poltico entre o cacique e seus seguidores. Quando tudo ocorre
conforme o esperado, o consumo desses itens se d na casa do cacique, de modo festivo,
celebrando-se a unio da famlia extensa. Mas as coisas nem sempre ocorrem conforme
o esperado, como veremos.
O cargo de cacique no transmitido automaticamente de pai para filho,
embora algumas pessoas afirmem que no passado o sucessor legtimo de um cacique
era seu primognito, e o primognito do cacique costume alimentar a expectativa de
seguir os passos polticos do pai. Com base em registros do sculo XIX, Nimuendaju
(1963: 316) explica que, antigamente, o cargo era transmitido de pai para filho, o
cacique era o nico que podia ter at trs esposas, mas gozava de autoridade apenas em
tempos de guerra, sendo que a igualdade reinava na maloca em tempos de paz. A
ideologia da sucesso patrilinear tambm vigora entre os kawahivs (Kracke 1978: 79),
mas proponho que ela deve ser pensada como ideologia a legitimar a ocupao efetiva
do cargo ou a sustentar reivindicaes a ele; trata-se sobretudo de disputas por status
expressas sob a forma de divergncias ideolgicas (Leach 1996: 71).
Um jovem que pretende ser cacique, em geral o filho de algum ex-cacique ou
homem influente, deve trabalhar pela comunidade voluntariamente por alguns anos. Os
caciques so eleitos em assembleia no salo e dificilmente so depostos diretamente; na
verdade, os dois homens que a comunidade considera serem os mais preparados so
apontados numa reunio e devem dizer se aceitam ou no as incumbncias de cacique e
vice-cacique. Em geral, a cacica automaticamente a esposa do cacique, e a vicecacica, a esposa do vice-cacique, a menos que elas recusem explicitamente o ttulo. Os
cargos de cacique, cacica, vice-cacique, vice-cacica e conselheiros da sade e da
educao no so remunerados e as pessoas so eleitas pelo perodo mnimo de um ano,
aps o que podem permanecer no cargo indefinidamente, at que aleguem
publicamente cansao. Professores indgenas e agentes indgenas de sade tambm
255

so pessoas influentes, com a diferena de que recebem salrio mensal. Aos professores
e agentes de sade cabe obter bens e conhecimentos de fora e distribu-los
equitativamente para toda a comunidade. Tais cargos tambm esto sujeitos
aprovao da comunidade, dinmica que se adapta bem s instncias burocrticas
descentralizadas dos Conselhos Locais de Sade e de Educao.
Embora no haja transmisso automtica ou hereditria de posio ou cargo, h
mecanismos sociais que so manejados de modo a assegurar a ascendncia de uma
famlia extensa dentro da aldeia e mesmo fora dela. Dessa forma, tanto o posto de
cacique como os empregos remunerados esto sujeitos s decises tomadas pela
coletividade no salo. Ocorre que nem todos os moradores de uma aldeia se sentem
vontade para participar das reunies e apenas uma parte ainda menor deles toma a
palavra para expor sua opinio. As reunies da comunidade no contemplam, assim, as
aspiraes de todos os moradores da aldeia, mas to-somente os interesses daqueles que
a dirigem, gerando-se um ciclo vicioso do qual apenas se consegue sair quando se tem
algum prestgio para liderar a mudana da prpria famlia extensa para outra aldeia ou a
fundao de uma nova aldeia.
Nessas reunies, o cacique e os demais homens influentes falam sobre o estado
das relaes da comunidade com as demais aldeias (apiak, kaiabi e munduruku), as
estruturas estatais e os parceiros comerciais no-indgenas, e informam sobre
oportunidades diversas, como recursos para a participao em reunies de cunho
religioso, poltico ou tcnico em cidades distantes; novos compradores de castanha-dopar; projetos nas mais diversas reas (educao, sade, gerao de renda etc.), bolsas
de estudo e atividades remuneradas ou no. Em geral, os candidatos no apresentam
abertamente sua candidatura; um conjunto de aliados previamente contatados que
sugere seu nome e prope a votao. Assim so alocados os empregos de agente de
sade, agente de saneamento, professor, funcionrios da escola, diretoria de associao
etc., os quais, em todas as aldeias apiaks, concentram-se nas mos de uma nica
famlia extensa. J os papis no-remunerados de conselheiros da sade e da educao,
previstos no desenho estatal atual da assistncia sade e da educao, so distribudos
de forma mais livre.
Em sua anlise dos cargos remunerados em aldeias no alto rio Negro, C.
Lasmar trabalha com o conceito de sistema de prestgio empregado por Ortner &
Whitehead para propor que as pessoas manejam posies sociais e valores para ter
reconhecimento e prestgio. Nesse sentido, ela afirma que: Na prtica, os indivduos
256

que ocupam os cargos comunitrios se especializam em estimular a realizao de


eventos que renem toda a comunidade, como reunies deliberativas, festas ou trabalho
comunitrio, e assumem um compromisso com a mitigao dos conflitos internos. Eles
atuam, portanto, como agentes institudos da sociabilidade cotidiana (Lasmar 2005:
92). Nas aldeias apiaks, os professores e agentes de sade auxiliam o cacique, a cacica,
o vive-cacique e a vice-cacica na difcil tarefa de manter a harmonia e o moral alto da
comunidade, seja aconselhando antagonistas, servindo caf no salo ou organizando a
limpeza semanal das reas de uso comum.
Ao concentrar status, a famlia extensa consegue concentrar tambm dinheiro e
bens industrializados, os quais podem ser empregados, ciclicamente, na ampliao da
rede alde de apoio poltico. Ento, aquilo que as pessoas influentes detm,
basicamente, informao, a qual obtida fora da aldeia, durante viagens cidade. Se
uma famlia extensa consegue eleger um membro para um cargo externo aldeia, como
a chefia do Posto Indgena,211 provvel que ele venha a concentrar grande volume de
informao, riqueza e, portanto, prestgio, fato que deve atrair novos membros/aliados
para o grupo. Os co-residentes que no estabelecerem nenhum tipo de vnculo com esse
grupo tm conscincia de que constituiro uma seo parte na comunidade,
abandonada mesmo, nas palavras de alguns apiaks.
Tais so as pessoas que prestaro pequenos servios remunerados para os
assalariados, j que estes, como vimos, dispem de dinheiro e podem, portanto, deixar
de acionar laos de parentesco e compadrio para algumas atividades cotidianas, embora
apenas o faam quando as relaes no interior da famlia extensa esto desgastadas. A
ajuda mtua, que integra um idioma prprio ao circuito de parentesco, assim
substituda pelo idioma mercantil do pagamento, operao extremamente mal-vista pela
maioria dos apiaks, na medida em que remete forma de agir dos patres brancos.
Como j dissemos, a venda de alimento ou objetos e o pagamento por servios so
impensveis no interior da famlia extensa.
Com efeito, a grande maioria dos apiaks despreza o lucro financeiro, sendo
que o dinheiro no concebido como valor em si, mas como um meio de manter em
funcionamento as redes de interdependncia dentro e fora da aldeia. O acmulo de
riqueza individual percebido assim como ameaa ao status quo na medida em que
211 As pessoas influentes que viajam com frequncia ou que precisam alugar uma casa na cidade em
funo de seu emprego no se cansam de depreciar a vida na cidade e de enumerar as privaes que
passam quando tm de sair da aldeia; costumam dizer que no gostam de passar mais que um dia fora
da aldeia.

257

permite a alguns subtrarem-se a essas redes. A independncia individual no um valor


positivo, j que negar os vnculos de dependncia alde negar o parentesco e a coresidncia (Gow 2003: 65). Da a reao violenta de muitas pessoas ao comportamento
qualificado por vezes como ganancioso, exibicionista e avaro de algumas pessoas
influentes que se deixam seduzir pela miragem de distino e prestgio. A distino ou o
prestgio em si no o problema espera-se dos chefes que apresentem atributos e
comportamentos singulares; o problema, para os apiaks, quando os chefes pretendem
transformar o prestgio em poder de mando ou quando deixam de usar o prestgio em
benefcio da coletividade.
O descontentamento com esse tipo de comportamento aciona um dispositivo
de regulao social operado predominantemente pelas mulheres na esfera domstica: a
fofoca, regime comunicativo que tem efeitos polticos concretos.
Por meio da fofoca os apiaks reafirmam os valores morais de generosidade,
pacifismo e hospitalidade, legitimam certas atitudes e ideias, exercem controle coletivo
sobre as informaes e valores exgenos, assegurando que as transformaes
concebidas como desagregadoras sejam refreadas; tambm por meio da fofoca
conserva-se a hostilidade em relao aos kaiabis e a desconfiana em relao aos
mundurukus. Trata-se, portanto, de uma rede informal de comunicao que pode
canalizar informaes falsas ou distorcidas, caracterstica de uma instituio acfala e
eficiente que faculta o controle difuso da informao e a regulao social dos
comportamentos; por meio dela, as pessoas constroem e destroem reputaes com
rapidez considervel. Nas aldeias apiaks, as maiores difusoras de fofoca eram mulheres
que, no momento da pesquisa de campo, no ocupavam posio poltica de destaque e
que no pertenciam s famlias extensas mais influentes (embora no fossem, de modo
algum,

marginalizadas);

ao

veicular

fofocas,

essas

mulheres

pretendiam

simultaneamente desmoralizar o cacique e sublinhar o valor de seus maridos, caciques


em potencial. Outros difusores importantes da fofoca so as crianas, na medida em que
passeiam livremente pelas casas e veiculam informaes espontaneamente.
Existe ainda um outro tipo de performance verbal, uma espcie de pardia da
fofoca, tido por inofensivo e divertido: so os jogos de palavras de cunho sexual, do
qual participam adultos de fora do crculo de parentes prximos, mas entre os quais h
um vnculo afetivo. Os apiaks perceberam com admirao e simpatia o fato de eu ter
aprendido a participar desses jogos aps dois meses na aldeia, dominando o cdigo de
etiqueta em torno do qual eles se articulam. O jogo requer a participao de pelo menos
258

trs pessoas, sendo que aquela que inicia a brincadeira visa constranger as outras duas.
Assim, uma mulher A pergunta a uma mulher B, sua prima, digamos, se ela comeu a
carne de anta caada pelo homem C (que no seu marido), provocando gargalhadas. A
mulher B pode retorquir: Foi ela quem comeu a carne trazida por C! Ou ento o
homem replica: Ela queria ter comido a carne trazida por D (outro homem
remotamente aparentado ou no-aparentado)! Uma nora ou um genro no faz esse tipo
de brincadeira com os sogros; jogos de palavras so impensveis entre siblings adultos
de sexo oposto e entre primos de primeiro grau de sexo oposto. Se estiverem apenas
entre mulheres, duas comadres podem engajar-se nesses jogos. Ao que parece, homens
apenas fazem esse tipo de brincadeira na presena de mulheres. A frequncia de tais
performances, assim como das sesses de vinho no salo e dos jogos de futebol, indica
o nvel do moral comunitrio.
Os apiaks fazem fofoca dentro de casa ou no terreiro, em voz baixa e
cuidando para no serem ouvidos por terceiros, fato que caracteriza as atividades
privadas. Assim como os mehinkus, povo arawak no Parque do Xingu (T. Gregor
1982: 81ss), os apiaks so to unnimes em depreciar a fofoca quanto em alimentar sua
circulao na aldeia; como de se esperar, no se faz fofoca sobre um membro da
famlia extensa, a menos que se trate de afins descontentes com o homem influente a
que do sustentao poltica. Enquanto classe de discurso marcada por gnero, entre os
apiaks a fofoca se distingue tipologicamente tanto da fala formal do salo como das
notcias e das histrias sobre o passado (todas as trs, prerrogativas dos homens) e como
das conversas casuais dentro de casa ou no terreiro (travadas tanto por homens como
por mulheres).
M. Gluckman (1963) defendia que os antroplogos tratassem a fofoca como
tcnica cultural, como um jogo de normas culturalmente definidas, com importantes
funes sociais. Gluckman selecionou a etnografia de E. Colson sobre os culturalmente
indiferenciados makah (indgenas norte-americanos) para demonstrar o valor positivo
da fofoca e do escndalo em grupos pequenos. Entre os makah, o mexerico era o nico
meio de reafirmar valores e tradies que os distinguiam tanto da sociedade norteamericana quanto de outros povos indgenas, e as acusaes mtuas eram usadas para
manter o princpio de igualdade entre os membros do grupo (Gluckman 1963: 311). Na
medida em que apenas se faz fofoca sobre pessoas com quem se tem um vnculo social
estreito, o alto nvel de hostilidade deve ser apreendido como expresso de que o grupo
permanece unido e deseja ser uma comunidade, no apenas um aglomerado de casas (:
259

313). Nesse sentido, a fofoca refora o senso de comunidade ao habilitar o grupo a


avaliar as pessoas por seu trabalho, suas qualidades de liderana e seu carter, sem
confront-las diretamente (: 313). Eu diria que tambm para os apiaks a fofoca um
mecanismo de integrao social e de reafirmao de valores morais que os distinguem
tanto dos brancos regionais como dos kaiabis e mundurukus. Observo ainda que,
enquanto no salo apenas se fala o portugus, as intrigas veiculadas em mbito
domstico podem s-lo em idioma kaiabi ou munduruku.
De uma perspectiva interacionista, R. Abrahams (1970/71) prope que a fofoca
deve ser restituda ao sistema local de ideais e tcnicas para adquirir status em grupos
que exibem uma cultura essencialmente oral. Ele define a fofoca como uma
performance verbal que focaliza a moralidade pblica, em soluo de continuidade com
outras modalidades de performance nas quais o prestgio individual est em jogo. A
fofoca potencialmente disruptiva, pois traz tona as contradies entre fidelidades
conflitantes ( famlia e aos amigos). Em oposio fala sensata, que, no caso dos
apiaks, a fala do salo, a fofoca um meio ativo de garantir um certo nvel de
homogeneidade de ideais e prticas sociais, assim:
Os homens falam uns sobre os outros primeiramente em termos de quo
bem eles demonstram sua masculinidade (no preparo fsico, na relao com as
mulheres, na conduo de um negcio, no nmero de filhos que eles fizeram)
ou como eles partilham e cooperam com os outros, ou ento de quantos amigos
eles tm. Os homens falam sobre as mulheres em termos de quo selvagens
elas so isto , quem viola os ideais de confiana que se supe fundamentar as
relaes entre homens e mulheres. Este ideal de confiana estabelece,
primeiramente, que uma moa no deve conversar com ou ser amiga de
mais de um homem ao mesmo tempo (...). Mulheres falam de outras mulheres
com relao a suas habilidades para manter a casa em ordem, tanto em termos de
asseio quanto em termos do comportamento dos membros da famlia. Cuidar
mal das crianas um tpico importante da fofoca, bem como a forma como a
mulher mantm o homem na linha. (Abrahams 1970/71: 297)
Durante minha pesquisa de campo, alm dos temas arrolados por Abrahams, o
principal assunto das fofocas em ambas as aldeias eram os bens adquiridos
recentemente pelos caciques. A trama das conversas informais consistia no estilo de
vida individualista que se sobrepunha ao estilo de vida aldeo. Aquilo que a fofoca
apiak traz tona so, portanto, as contradies entre o ideal igualitrio da comunidade
e a crescente diferenciao econmica que se verifica na prtica. Desse modo, em
episdios de descontentamento com lderes polticos, a fofoca apresenta-se como modo
de protesto contra a acumulao econmica individual e a diferenciao social extrema,

260

evidenciando-se ento a ausncia de separao rgida entre as esferas pblica e privada.


O que existe uma diferena entre duas formas de socialidade (Strathern 2006) que,
longe de constiturem domnios estanques, esto em relao de englobamento parcial. A
socialidade pblica no se sobrepe completamente socialidade domstica, persistindo
antes uma tenso entre ambas.
Com base em ampla reviso bibliogrfica sobre o gnero rumor, Trajano Filho
(2000) identifica uma deficincia importante nas tentativas de distinguir rumor e
mexerico (sinnimo de fofoca), a saber, a premissa equivocada da universalidade da
separao entre as esferas pblica e privada. O autor argumenta que tal distino
careceria de significao em contextos sociais onde as duas esferas no so to
claramente separadas (Trajano Filho 2000: 23),212 como o caso da Guin-Bissau e
tambm das aldeias apiaks. A definio de rumor oferecida pelo autor, que pode ser
estendida, creio, fofoca, a de um gnero narrativo oral complexo que se caracteriza
por uma estrutura de transmisso aberta, dialgica e dramtica, por um forte valor
performativo e pelo poder evocativo que cria descontinuidades constituintes de
identidades e diferenas.
Trajano Filho (1993, 2000) e S. Kirsch (2002) tratam de rumores em contextos
de nacionalizao recente e conflituosa, incluindo rumores em meio impresso e virtual,
na Guin-Bissau e na Papua Ocidental, respectivamente. Nessas situaes, os rumores
veiculam a percepo das pessoas sobre os conflitos, as assimetrias e a violncia
vigentes na sociedade, oferecendo-se como importante material de anlise sobre os
processos polticos.
Os rumores que circulam nas aldeias apiaks sobre os povos indgenas vizinhos
e os brancos do uma ideia do estado das relaes intertnicas em cada momento. Por
ocasio da festa de branco descrita no captulo 3, vimos que havia a expectativa de que
os kaiabis impedissem o trnsito na estrada que d acesso aldeia apiak. Dias antes da

212

A. Ramos definiu o rumor como um modo estruturado de comunicao, manifestado de maneira


informal e que enfatiza aspectos de uma situao social que no so normalmente verbalizados pelos
atores. (...) Ele reflete os anseios, as perplexidades, os esteretipos, os temores daqueles que o
fabricam, em relao aos componentes humanos, materiais ou situacionais que entram na sua trama
(Ramos 1980: 126). Os gregos antigos atribuam tanto valor ao rumor que chegaram a identific-lo a
um deus. Assim M. Detienne define o rumor: Maneira de mandar embora o tempo e de esquecer o
aleatrio do porvir. Mas tambm convico de que o rumor, longe de ser uma alterao menor do real,
uma grande divindade subterrnea, constitutiva daquilo que se tem por verdadeiro, das crenas
profundas nas quais a tradio viva vai buscar gua; e de que suas modalidades de transmisso e de
difuso, pondo em jogo a aprendizagem pelo ouvido e pela boca, so meios, mdia conspiradora e
permanente, de tal maneira que no se pode achar coisa alguma de mais certo na sociedade.
(Detienne 1991: 114)

261

festa, mulheres kaiabis residentes no Mayrob, que haviam estado recentemente com
seus parentes do Tatu, comentavam discretamente que os homens kaiabis estavam
zangados com o cacique apiak, por motivo que nunca me foi revelado. Numa visita a
uma famlia apiak residente em Porto dos Gachos, que fiz acompanhada pelo cacique,
constatei que a relao com os kaiabis realmente estava estremecida.
Comentou-se ento que os kaiabis teriam dito que iriam cortar a cabea do
cacique, ameaa que este enfrentava com prudncia, afirmando que, se o pior
acontecesse, apiaks do Mayrob, do Par e de cidades do norte mato-grossense iriam
at o Tatu para ving-lo. Nessa poca, foram-me contadas histrias sobre guerras e
desentendimentos antigos entre ambos os povos. Os apiaks se lembram de trs grandes
brigas com os kaiabis, ocorridas no sculo XX. A primeira consistiu num ataque
kaiabi a uma aldeia apiak prximo Ilha do Pavilho (curso mdio do rio Teles Pires,
do lado paraense); os kaiabis mataram o pai de um homem apiak que hoje vive no
Mayrob e levaram sua me e dois irmos pequenos para o Rio dos Peixes. Depois de
algum tempo, os apiaks foram ao encalo dos kaiabis e recuperaram as crianas, mas
teve muito sangue. A segunda briga deveu-se ao roubo de um papagaio domstico dos
apiaks por um grupo de kaiabis, fato que deu ensejo a uma longa perseguio at o
ponto ento batizado de Crrego da Briga. O terceiro e ltimo confronto rememorado
ocorreu quando os kaiabis foram buscar taquaras na poro norte da rea do Rio dos
Peixes, de posse dos apiaks, os quais revidaram a ousadia com flechadas fatais. Por
isso apiak no gosta de kaiabi e kaiabi no gosta de apiak; meu pai passou isso pra
mim, eu passo isso para o meu filho, no vai acabar nunca, disse-me um homem
apiak. Embora o rumor e a tenso aumentassem de intensidade com o passar dos dias,
durante a festa nada aconteceu; a estrada no foi fechada, diversos homens influentes do
Tatu compareceram e no causaram nenhum dissabor.
Em que pese a importncia desses rumores, o tema preferido pelos apiaks o
comportamento das pessoas influentes da comunidade, fato que atesta a interioridade da
alteridade em sua viso de mundo. Para os apiaks, a principal ameaa ao grupo no
vem de fora, mas de dentro. Tive a chance de observar de perto o processo de
destituio de um cacique apiak, um perodo de muita ansiedade e angstia, quando os
rumores circulavam vertiginosamente na aldeia; a acusao principal era a de que o
cacique estava utilizando dinheiro da comunidade para construir sua casa nova e
comprar objetos industrializados para sua esposa. Nesse caso, a intensificao da fofoca
provocou grande constrangimento nas pessoas que constituam seu alvo, especialmente
262

a esposa do cacique, que tinha todos os atos vigiados, at ficar socialmente isolada e
desabafar com o marido. Este hesitou por algum tempo, mas acabou renunciando ao
cargo, empregando o argumento socialmente aprovado do cansao: Eu estou
cansado, j trabalhei muito pela comunidade, agora um mais novo tem que assumir.
Agora eu vou cuidar da minha famlia, foram algumas de suas ltimas palavras como
cacique.
Resumidamente, a organizao poltica apiak faculta comunidade recordar
periodicamente s pessoas influentes os perigos envolvidos em tentar se transformar
naquilo que se quer englobar, impedindo assim a cristalizao da autoridade e a
concentrao da riqueza. Nesse sentido, a forma comunidade assentada sobre as
transaes de ddivas voltadas para a produo de parentesco e regidas pela tica da
generosidade ela mesma a expresso histrico-social do postulado cultural da
inviabilidade da transformao completa dos apiaks em civilizados.

********
Nas duas aldeias apiaks onde passei mais tempo, fui deliberadamente
monopolizada pelos caciques e convidada a morar em suas casas. Os caciques no
foram anfitries apenas; foram meus principais interlocutores e em vrios momentos
portaram-se como verdadeiros pesquisadores, me indicando pessoas importantes com
quem conversar e as melhores perguntas a fazer, me mostrando lugares que julgavam
relevantes e discutindo comigo a questo da conscincia histrica e o estado atual da
cultura apiak. Depois de algum tempo, passaram a me tratar por amiga e a me
apresentar para outras pessoas, tanto indgenas como no-indgenas, como a mulher que
os estava ajudando a registrar sua cultura. As esposas dos caciques viam em mim uma
confidente, uma forasteira a quem elas podiam confiar os dissabores com os coresidentes, os quais sempre maldiziam injustamente seus maridos. A proximidade
afetiva que se estabeleceu entre mim e as famlias nucleares de cada cacique foi
fundamental para eu apreender o aspecto humano e os bastidores da chefia, o que
enriquecer a presente reflexo sobre a organizao poltica apiak. A biografia de
quatro homens influentes que apresentarei a seguir serve a esse fim.
Inicio pelo mais velho deles, Rodolfo Datx (no. 93 no Diagrama 5.1), cacique
da aldeia Pontal, estabelecida em 2006 na margem direita do rio Juruena, no Par,
numa das extremidades da rea reivindicada pelo grupo. Rodolfo, que nasceu em 1958
na extinta aldeia Bom Jardim (margem direita do Teles Pires), um cacique respeitado
263

pelos apiaks de todas as aldeias; um homem sereno, com algum entendimento do


mundo dos brancos, mas que luta com convico pela defesa dos direitos de seu povo.
Filho de me apiak (parentela Kamassori) e de pai munduruku, Rodolfo identifica-se
como apiak a despeito das maiores vantagens que poderia obter identificando-se
como munduruku e j foi cacique das aldeias Bom Futuro e Mairowy.
Quando fala sobre sua vida, Rodolfo d destaque s viagens que realizou,
inicialmente na companhia de seus parentes maternos, e depois ao lado dos
companheiros de luta. Logo na infncia, aps a morte do pai, ele se mudou com a me
para a extinta aldeia Maloca, na margem direita do rio Anipiri, um afluente oriental do
Teles Pires, onde se encontravam seus avs maternos, alguns tios e tios-avs maternos.
Um pouco depois, ele comeou a participar, junto com esses parentes consanguneos, de
expedies ao rio Apiacs, em busca dos parentes isolados, os quais ainda no foram
encontrados:
Ns passvamos um ms, dois meses, at trs meses ns passamos
andando dentro das florestas, procura deles. Tinha vestgio, mas era muito
velho, de muito tempo. Andavam meu tio (materno), velho Paulo (Kamassori),
Leonardo (Kamassori), o pai dele, e outro por nome Andr (Morim), com a
famlia dele, todos nessa viagem. Mas era bom, eu gostava demais. A gente
comeava a viajar um tempo desse (ms de maio, incio da estao seca ou
vero). A gente descia, tirava aquelas cascas de pau (para fazer canoa), meu tio
e meu av tiravam, para a gente descer o rio Apiacs at onde ficava mais
prximo para pegar outro barco para ns descermos, para voltarmos para nossa
aldeia, nossos remos eram de casca de pau. A ns chegvamos no rio Teles
Pires e descamos, chegvamos na nossa aldeia no rio Anipiri, e ficvamos ali
cuidando de roa, essas coisas. E quando chegava um tempo desse, ns
saamos de novo; a gente comia s peixe moqueado, piracu (farinha de peixe),
frutas, tirvamos sal do inajazeiro, at quando eu fiquei rapaz, passei a
trabalhar por minha conta, arrumei famlia (ele se casou com uma munduruku
desaldeada) e voltei a trabalhar novamente... a me responsabilizar por uma
comunidade, isso faz uns 25 anos. A a gente voltou, veio morar no Bom
Futuro, eu como cacique, a comunidade era de 86 pessoas; s no Bom Futuro
ns moramos nove anos. Depois ns moramos na aldeia (PIn) Teles Pires (TI
Kaiabi) por trs anos. Depois a gente saiu de l e veio morar aqui pra baixo,
na beira do rio So Manoel (Teles Pires, margem direita), uns dois anos. A a
gente saiu de novo e voltou para o Bom Futuro, ficamos mais ou menos uns
trs anos l.
Na poca em que retornou ao Bom Futuro (anos 1990), Rodolfo passou a
receber apoio dos homens influentes do Mayrob, que sugeriram que os parentes do Par
trocassem de Administrao Regional da Funai, de Itaituba (PA) para Colider (MT),
onde os apiaks do Rio dos Peixes eram atendidos, processo que demorou alguns anos.
Vencida esta batalha burocrtica, os apiaks do Par comearam a lutar pela sade,
264

isto , a reivindicar melhor atendimento por parte da FUNASA. Nesse perodo, os


Morim convidaram os Kamassori para se mudar para o Rio dos Peixes, mas estes
preferiram manter e ampliar a ocupao territorial no Pontal, movimento que foi
apoiado pelos Morim. A primeira ao concreta na luta pela demarcao da rea do
Pontal foi a fundao da aldeia Mairowy, em 1999, sobreposta antiga aldeia apiak
Terra Preta, na margem esquerda do Teles Pires, dentro dos limites da TI Kaiabi. A
aldeia foi formada pelas famlias nucleares de Rodolfo e seus meio-irmos, alm da me
deles e de uma famlia extensa encabeada pela viva de um apiak que atuara como
guaxeba de seringalistas; todos eles eram provenientes da aldeia Bom Futuro, onde
permaneceram apenas um meio-irmo (no. 94 no Diagrama 4.1) e um primo cruzado
matrilateral de Rodolfo, com suas respectivas famlias nucleares.
Rodolfo foi cacique do Mairowy at 2006, ano em que se mudou com esposa e
filhos para o rio Juruena, onde fundou a aldeia Pontal, com o apoio de Carlos, homem
influente empregado do escritrio da Funai de Colider. Carlos foi um nome importante
no movimento de reorganizao poltica dos apiak, colocando-se frente dos
companheiros nas viagens a Cuiab e a Braslia, mas deixou de ser respeitado devido ao
comportamento desvairado que adotou nos ltimos anos. Carlos, nascido em 1968 nas
margens do rio Juruena, filho de me sater-maw e pai arig, passou a infncia no Rio
dos Peixes; aps a morte do pai, ele continuou vivendo com a me e uma irm no meio
dos apiaks, considerando-se e sendo considerado como um deles.213 Em maro de
2007, quando o encontrei em Colider, ele se apresentou como cacique geral dos
apiak e me disse que iniciou sua luta junto a este povo em 1985, no citado movimento
contra a construo da usina hidreltrica no Rio dos Peixes. Depois disso, ele participou
das expedies dos apiaks do Rio dos Peixes ao Juruena, em busca dos isolados, e h
alguns anos luta pela demarcao do Pontal. Carlos fala com orgulho sobre as aldeias
apiaks que ele ajudou a estruturar:
Hoje as nossas aldeias tm escola, luz eltrica, posto de sade; diferente
das aldeias antigas. Agora nossa luta no papel. Quem mandou o branco dar
instruo pra gente? Agora a gente consegue tudo o que quer. Nossa luta na lei,
essa foi a arma que o branco nos deu. Os brancos falam que ns j viramos
branco, que no temos mais cultura, que no nos pintamos mais. Hoje ns s nos
pintamos para a guerra. Se voc vir os apiak pintados, pode saber que vai
acontecer alguma coisa sria.

213 A me de Carlos e esta irm, casada com um kaiabi, moram hoje na aldeia Tatu, no Rio dos Peixes.

265

Carlos fala bem o portugus, politizado, tem muitos aliados brancos e


conhece a dinmica da burocracia da Funai, fatores que lhe renderam a posio de
destaque entre os apiaks que ocupou durante anos. Recentemente, no entanto, os
parentes de Carlos retiraram-lhe a sustentao poltica e passaram a dizer que ele no
apiak. Todos dizem que ele enlouqueceu quando passou a fazer negcios obscuros
com o dinheiro e os bens das aldeias e quando abandonou a esposa (filha de me
nambiquara e pai kaiabi) e alguns filhos pequenos para viver com uma jovem que mora
na aldeia Minhocuu, filha de me kaiabi e de pai apiak legtimo, do subgrupo
Paleci.
Aps a mudana da famlia conjugal de Rodolfo Datx para a aldeia Pontal,
quem assumiu o cargo de cacique no Mairowy foi seu meio-irmo por parte de me,
Renato Kamassori, o Piracema (no. 97 no Diagrama 5.1), nascido em 1972, na ilha do
Pavilho (rio Teles Pires), filho de pai arig. Aps a morte deste, sua me o entregou a
um casal de brancos de Itaituba (PA), cidade onde ele passou a maior parte da vida, sem
saber da ascendncia indgena. J adulto, Piracema descobriu que sua me e seus irmos
biolgicos estavam vivos e moravam na aldeia Bom Futuro, e decidiu se juntar a eles.
Piracema e a esposa munduruku estabeleceram-se ento no Bom Futuro e tornaram-se
empregados da escola. Graas aos conhecimentos que adquiriu do mundo dos brancos,
Piracema contribuiu ativamente para a melhoria das condies de vida na aldeia,
especialmente no que se refere a questes burocrticas e financeiras. A relao entre
Piracema e Rodolfo nunca foi tranquila, mas raramente redundou em conflito aberto.
Agora que cada um cacique de uma aldeia, eles se respeitam e mantm certa distncia
social. Piracema no gosta de falar sobre sua vida pessoal, mas evidente que se
empenha frente aos co-residentes em demonstrar que aprecia o estilo de vida na aldeia e
que conhece a histria de seu povo. Piracema conta a histria de seu povo nesses
termos:
Esse pai da minha me, finado Leonardo, dizem que quando ele saiu do
mato, ele foi pegado na marra. Depois que amansou, pronto, a ficou no meio do
povo. Tem muita gente que conta essas coisas. Os velhos contavam, to bonito
ouvi-los; bom, uma parte bonita, a outra sofrida, porque o povo apiak sofreu
muito. Depois eles contavam as histrias ruins. Nosso povo foi massacrado, ns
sentimos na pele o que aconteceu. Hoje ns no temos nossa cultura, no somos
reconhecidos como apiaks por causa disso a. Hoje ns estamos aqui na terra e
ningum est deixando ningum nos massacrar mais; na raa mesmo. Nem que
o povo fale: Isso a no ndio, branco. Mas ns vivemos na nossa aldeia, no
nosso local, no nosso ambiente de que ns gostamos. Se passar um ms todo na
cidade, o povo adoece. Diz no livro (publicao sobre a Expedio Langsdorff

266

ao Brasil) que ns ramos 15 mil ndios e hoje, se juntar todo o mundo, no d 2


mil. (...) Naquele tempo da Expedio Madeirinha,214 estava bom de pegar
aqueles ndios, que no tinha muito branco andando, eles andavam na beira do
rio; agora no, eles andam mais no meio da mata. No Juruena, em 2005, tinha
um garimpeiro explorando; o caminho dele era aqui, do outro lado era o deles,
tudo quebradinho, perseguindo ele. O cara que cortava copaba l deixou de
cortar, porque ele deixava tampado, quando voltava, estava tudo destapado, com
uma peninha vermelha enfiada no buraco. Para ns que conhecemos, vermelho
sangue, ns sabemos: se ele botou a pena vermelha, ns sabemos, ningum vai
porque ele quer guerra. Ns temos de arrumar uma forma de mostrar pra eles
que ns no queremos guerra, ns queremos paz. Quando ns fomos fazer a
expedio, ns erramos, porque ns botamos mianga na linha vermelha e linha
vermelha nos paus enfiados. Eles no pegaram nada por isso, porque pra eles
isso significa guerra e pra ns tambm. Eles pegaram bacia, tesoura, panela,
faco, mas eles enfiaram a faca na linha, no corte da bananeira, a todo o mundo
ficou com medo de entrar no mato e eles pararam de circular nesse lugar. Eu
acho que so eles que esto no mato. Ns temos vontade de ach-los, de irmos
at a aldeia deles e de eles virem nossa, porque ns queremos que nossas
crianas entrem no meio deles para aprender a lngua. Eu tambm acho que no
bom traz-los para esse lugar, mas ns podemos aprender com eles, porque ns
temos um povo fora e um povo dentro da mata. Ns somos apiaks, mas l fora
ningum reconhecido como apiak. Ns somos daqui, estamos aqui, nunca
tivemos vontade de ir embora. No Juruena ns vimos rastro de criana pequena;
s que os apiaks... se voc o frenteiro, todo o mundo pisa dentro do seu rastro;
os pequenos pisam do lado, mas os grandes pisam dentro. Voc olha e pensa:
Que ndio tem p deste tamanho? Mas so muitos, eles podem ser 150, 200,
mas s pisam dentro de uma trilha, na lama.
O mais ativo dos caciques apiaks Edson Morim (no. 46 do Diagrama 3.1),
nascido em 1973 num stio na altura do mdio curso do Teles Pires, na margem
esquerda. Seu pai era arig e morreu cedo; sua me, Slvia Morim (no. 31), e outros
dois irmos pequenos foram socorridos pelo seu av materno, Andr Morim, naquela
poca estabelecido no Rio dos Peixes. Os trs irmos Morim passaram a infncia na
aldeia Mayrob, ao lado de outros dois meio-irmos por parte de me; Slvia no
demorou a falecer e seus filhos ficaram sob os cuidados do referido av materno, agora
casado com uma arig bem mais jovem. Devido aos maus-tratos recebidos dessa nova
esposa do av, os meninos foram tentar a vida trabalhando como braais em fazendas de
gado na regio de Porto dos Gachos, retornando aldeia Mayrob de tempos em
tempos. Os trs rapazes tambm passaram algum tempo em cidades no norte matogrossense e adquiriram grande conhecimento do mundo dos brancos, embora no
tenham tido a chance de frequentar a escola; no entanto, foram instados a retornar
214

No final dos anos 1990, uma equipe da Funai fez algumas incurses em busca dos ndios isolados no
Pontal, sem chegar a resultados conclusivos.

267

aldeia por um tio materno, que era cacique, e se casaram com mulheres das etnias kaiabi
e munduruku, filhas de aliados polticos dos apiaks.
Devo caracterizar brevemente o contexto regional nos anos 1970, a fim de
esclarecer qual foi o modelo de relao com o branco em que esses homens se
inseriram. Pode-se afirmar que houve uma continuidade nas condies de trabalho em
toda a regio dos formadores do Tapajs desde a segunda metade do sculo XIX at os
anos 1980. As sucessivas levas extrativistas que se dirigiram para l valiam-se da mode-obra local e do sistema de aviamento, em que mercadorias eram entregues pelos
regates em troca de produtos da floresta, em operaes nas quais os indgenas
inexoravelmente contraam novas dvidas, apesar de a circulao de dinheiro ser
bastante limitada.
Em que pesem as sucessivas altas e quedas no preo da borracha, a extrao de
seringa foi a principal atividade econmica na bacia do Juruena at pouco tempo atrs;
em meados do sculo XX, contudo, os poderosos patres regionais, agora provenientes
do sul do pas, organizaram-se em cooperativas, passaram a patrocinar a colonizao da
rea e fundaram cidades, enquanto os missionrios jesutas pacificavam povos
indgenas arredios, como os rikbaktsas (canoeiros), os kaiabis e os tapaynas (beiose-pau) (Dornstauder, 1975) (ver captulo 1). Durante o perodo de declnio da borracha,
a explorao madeireira devastou rapidamente a regio do Rio dos Peixes e, em
seguida, comearam a se estabelecer as fazendas de gado; nos rios Juruena e Teles
Pires, os anos 1970 e 1980 foram marcados, tambm, pela atividade garimpeira e pelo
comrcio de peles de felinos.
Aquilo que no se alterou ao longo desses ciclos econmicos foi a vigncia da
lei do mais forte e as condies de trabalho precrias experimentadas pelos indgenas.
So inmeras as histrias de violncia, tortura e assassinato ocorridas nos seringais no
vale do Juruena nos anos 1960 e nas fazendas ao redor do Rio dos Peixes nos anos
1970: Se o sujeito no andasse na linha, o patro mandava os guaxebas sumirem com
ele, a frase mais recorrente nos relatos dos indgenas sobre essa poca. Para os
apiaks, essa situao no difere muito daquela enfrentada por seus antepassados na
amaldioada Barra de So Manoel.
Desde os anos 1980, o posto de cacique na aldeia Mayrob ocupado
sucessivamente por cada um desses irmos Morim (nos. 45, 46 e 47 no Diagrama 3.1),
pelo referido tio materno e pelo seu filho nico, que tambm professor na aldeia.
Como era de se esperar, a relao de mesma gerao entre os trs irmos e seu primo
268

cruzado bastante tensa, especialmente porque este primo casado com a meio-irm
daqueles trs homens e, em questes controversas, o tio materno, que ainda goza de
alguma ascendncia na aldeia, evidentemente toma o partido de seu prprio filho, contra
os sobrinhos. A esfera de influncia dos trs irmos no se restringe, contudo, aldeia.
Foram eles que lideraram o processo de restabelecimento da articulao poltica com os
demais grupos locais apiaks, e protagonizam a luta pela demarcao do Pontal dos
Apiak; eles tambm tm muitos aliados brancos nas cidades prximas a Mayrob e, nos
ltimos anos, assumiram postos importantes na FUNASA e cimentaram a aliana com
os poderosos kayaps, chefe do escritrio regional da Funai. Um desses irmos pretende
inclusive lanar sua candidatura a um cargo legislativo num municpio mato-grossense.
Uma das caractersticas que mais me chamou a ateno nos homens influentes a
recusa enftica de estabelecer relaes paternalistas com os brancos: esses homens no
costumam pedir nada, eles propem aes e mencionam sempre uma contrapartida
da comunidade para diversos projetos; seu modelo de relao parece ser o da parceria
(econmica, poltica, matrimonial), no o da doao assistencialista.
Dos caciques que me receberam, Edson foi tanto aquele que mostrou maior
interesse em minha pesquisa quanto aquele que mais sabia sobre a histria de seu povo;
ele tambm o que mais se aproxima do prottipo do grande homem descrito por
Sahlins (1963). Edson um homem cheio de planos, respeitado por alguns fazendeiros e
comerciantes locais,215 que rivaliza com seu irmo mais novo e o referido primo pelo
apoio poltico dos co-residentes; durante os anos em que esteve frente da aldeia,
obteve incrementos materiais e administrativos significativos,216 manejando com
desenvoltura a lgica do mercado e tentando equilibrar seu tino comercial com atos
de generosidade calculada na aldeia, mas sua personalidade reputada como mais
individualista revelou-se a causa de seu declnio.
Edson o cacique que encarna de modo mais dramtico as ambiguidades dos
middlemen. Extremamente civilizado nos modos, orgulhoso de seus conhecimentos de
matemtica, dono de uma personalidade forte que jamais se furta a apresentar uma
opinio taxativa diante de todo e qualquer assunto, ele no deixa, contudo, de salientar
sua ascendncia indgena diante de um tracaj gordo ou de um belo peixe. Diversas
215

De modo anlogo, entre os teneteharas era grande o prestgio, quer entre brasileiros, quer dentro de
seu prprio grupo, de lderes como Camirang, capazes de organizar a produo e comerciar em escala
maior (Wagley & Galvo 1961: 70).
216 Especialmente a aquisio de energia eltrica gerada por motor a diesel, alguns chafarizes, voadeira
com motor de popa, caminhonete, posto de sade com farmcia, escola estadual, projeto de segurana
alimentar, algumas cabeas de gado.

269

vezes eu o ouvi dizer para algum rapaz desanimado: Eu sou mais ndio que vocs
todos! Eu nunca tive preguia de caar ou pescar. Eu sei quantos quilos pesa o peixe
que eu pesco, eu conheo esse rio melhor que ningum. Ou ento: Ningum me bate
na castanha. Eu no tenho preguia de andar no mato. Orador habilidoso, Edson sabia
bem como estabelecer o consenso (ainda que muitas vezes provisrio) nas reunies no
salo, aconselhar aqueles que o procuravam em casa e conquistar a simpatia dos
visitantes forasteiros, transformando muitos deles em verdadeiros aliados. Aos
forasteiros, alis, explicava que era filho de pai arig, que no sabe falar a lngua
indgena porque passou muito tempo longe da aldeia,217 e jamais perdia a chance de
elogiar seu povo: Os apiak so corajosos, trabalhadores, nossas aldeias so bonitas,
organizadas; ns somos limpos, ns sabemos conversar, no vamos pegando logo a
borduna como o kaiabi.
Todas as vezes em que falava sobre sua vida, Edson comovia-se ao lembrar a
infncia sofrida e o duro aprendizado no mundo dos brancos; repetia com frequncia
que: Quem me v hoje acha que eu sempre fui bem tratado, que sou estudado... que
nada! Outro em meu lugar, depois de passar o que eu passei, teria ido para a cidade, mas
eu fiquei aqui e sempre lutei pelo meu povo. s vezes, eles acham ruim comigo, mas no
fundo sabem que tudo o que eu fao para o bem deles.
Sublinho que os apiaks no veem problema em eleger como caciques homens
que moraram muito tempo fora da aldeia ou que sequer fazem parte do grupo, como foi
o caso do peruano Donlojo, nas imediaes do rio Apiacs, nos anos 1950. Nisto se
assemelham aos jurunas que, no passado, transformavam os inimigos capturados em
chefes (Stolze Lima 1995: 345), os quais existiam como figuras atravs das quais o
grupo gostava de admirar a prpria imagem (: 350), exprimindo a ideologia de que os
Outros, os inimigos, esto aqui entre ns, tanto quanto esto do lado de fora (: 354).

217 Nenhum dos caciques mencionados sabe falar a lngua apiak; o cacique mais antigo da aldeia
Mayrob compreende a lngua, mas no falante. Os nicos falantes plenos de apiak so trs irmos
da parentela Kamassori e um homem da parentela Paleci, todos com mais de 50 anos.

270

5.3- A coletividade contra o individualismo


De um modo geral, os caciques dizem que s desejam o bem da comunidade,
que conhecem os meios para desenvolver materialmente a aldeia e que os co-residentes
no os compreendem. De fato, ocorrem diversos mal-entendidos envolvendo as
aquisies materiais do cacique; as pessoas frequentemente se perguntam, a boca
pequena, se os objetos comprados pelo cacique o foram com dinheiro prprio ou com
dinheiro da comunidade, e se as viagens realizadas pelos caciques foram motivadas
por interesse particular ou se o objetivo foi o de resolver questes de interesse da
comunidade.
A desconfiana, latente ou declarada, a tnica da relao entre o cacique e os
co-residentes. Estes, por seu turno, julgando-se sempre no direito de tomar parte nos
bens do cacique, podem se sentir ofendidos quando este no leva a cabo a partilha
esperada. Vale a mxima de que o dinheiro (ou o trabalho que o origina) que advm da
comunidade deve ser integralmente restitudo comunidade. Aqueles mais atrevidos
podem mesmo subtrair impunemente um isqueiro ou uma lata de leo da cozinha da
cacica, fiando-se na legitimidade social da premissa de que errado no repartir o que
se possui em excesso e no apoderar-se de um objeto ou alimento de que se necessita.
Ademais, parece vigorar nas aldeias apiaks a ideia tcita de que aquilo que
pertence ao cacique pertence a todos. De fato, a apropriao da maioria dos bens se d
de forma coletiva, enquanto sua circulao obedece tica da generosidade, com o
objetivo de expandir a rede de relaes sociais, tanto interna quanto externamente.
Assim, os caciques mais individualistas e pretensiosos usam de todos os artifcios para
impedir a apropriao comunal de seus bens, mas jamais podero recusar abertamente
um alimento solicitado por qualquer co-residente, especialmente se se tratar de um
consanguneo afastado ou um afim. J os caciques realmente generosos podem chegar
ao ponto de tirar comida da boca dos filhos pequenos para entregar a um co-residente,
para evitar serem taxados de sovinas.
Mas preciso salientar que a apropriao comunal ou a subtrao de objetos da
famlia conjugal do cacique ocorre apenas na presena de quantidades de bens
consideradas grandes. As pessoas no esperam que o cacique deixe de alimentar seus
filhos, nem tampouco ele admitir de bom grado que o fez. H duas coisas em jogo
aqui: primeiro, o desejo de manter a fama de generoso, sem a qual ele no se sustenta no
cargo; segundo, a rejeio ao acmulo material endossada por todos.

271

Manter um estoque de comida uma ao impossvel numa aldeia apiak;


guardar alimentos para o futuro (mesmo que esse futuro contemple apenas a semana
seguinte) impensvel. Diante de uma grande quantidade de alimentos, s h uma
atitude correta a tomar: distribu-los entre todas as famlias extensas e consumi-los
rapidamente. Minhas prprias provises foram inseridas nessa lgica, e, numa das
aldeias, me vi quase sem alimentos industrializados aps 15 dias, quando eu esperava
que eles durassem dois meses... No entanto, no houve dia em que eu no tivesse nada
para comer, mesmo que fosse apenas um caldo de peixe com farinha partilhado com
meus anfitries, que gostavam de repetir: No se preocupe: enquanto a gente estiver
comendo, voc vai comer. S no vai comer quando no tiver mais nada; mas a no vai
passar fome sozinha, vai passar fome junto com a gente! Com o tempo tornei-me capaz
de compreender que, para meus anfitries, passar fome no o maior dos problemas
estar longe dos parentes sim.
Por outro lado, os dois caciques que foram meus anfitries desejavam
intensamente monopolizar os objetos que eu levara para dar de presente aos demais
moradores. O controle sobre tais objetos era tanto uma demonstrao de prestgio para
seus co-residentes quanto uma estratgia de distribuio de bens de acordo com critrios
locais os quais eu evidentemente no dominava.
Os caciques que acumulam muitos bens so alvo de inveja, vivem angustiados
e preocupados, queixam-se com frequncia de problemas nos rins e no fgado, e temem
que os co-residentes faam quebranto (cauxi) para seus filhos pequenos (ver captulo 4).
Duas das cacicas com quem convivi de perto deixaram de visitar as co-residentes e
mesmo de andar calmamente pela aldeia. Saam de casa apenas para ir beira e para
fazer visitas rpidas s suas parentas consanguneas. Socialmente isoladas pelas outras
mulheres, relativamente constrangidas, impossibilitadas de ter gosto com as
aquisies materiais dos maridos, elas discutiam com eles em particular. Por sua vez, os
caciques se queixavam de jamais poder desfrutar tranquilamente de um bem e em geral
acabavam convidando alguns vizinhos a partilhar dele, para angariar sua simpatia. Mas
uma simpatia assim constituda no pode durar muito tempo, e os nimos contrrios ao
cacique acirravam-se, na medida em que aqueles que se viam excludos passavam a
alimentar o circuito da fofoca, corroendo-se assim sua reputao.
Isso tudo nos reenvia ao conceito de economia poltica de ddivas empregado
por M. Strathern (2006), pois, como vimos anteriormente, a estrutura social apiak
trabalha para manter as trocas entre as famlias extensas sob o regime da ddiva,
272

impedindo que elas assumam totalmente a forma de commodities, submetendo assim a


economia poltica e moralidade. As mercadorias so sobretudo meios econmicos
para atingir fins sociopolticos. A estratificao social, o individualismo, a primazia dos
objetos sobre as pessoas e a instituio do poder de mando so combatidos
energicamente, com os dispositivos sociais tradicionais. Assim, a impermanncia
relativa da chefia apiak exprime igualmente a supremacia da coletividade sobre cada
indivduo e as limitaes ao aprofundamento de desigualdades sociais.
digna de nota a energia que os apiaks investem contra a fixao prolongada
de um nico homem ou grupo de cognatos no cargo de cacique, especialmente porque
ele, em geral, aquele que se destaca dos demais pelo acmulo de bens materiais e
prestgio. No entanto, como vimos, o imperativo moral da generosidade que deve
impedir que esse acmulo se cristalize nem sempre respeitado. Nota-se que a
acumulao de bens tolerada apenas enquanto etapa preliminar da distribuio.
Quando os atos do cacique passam a contradizer suas palavras, quando a distribuio de
bens no se faz na medida esperada, quando ele tenta pr a aldeia a seu servio, pode-se
afirmar, com P. Clastres, que a comunidade o lembra de que o espao da chefia no o
lugar do poder (Clastres 1982: 143), e que ele apenas um instrumento apto a realizar
a vontade dela (: 146):
Em funo de qu a tribo estima que tal homem digno de ser um chefe?
No fim das contas, somente em funo de sua competncia tcnica: dons
oratrios, habilidade como caador, capacidade de coordenar as atividades
guerreiras, ofensivas ou defensivas. E, de forma alguma, a sociedade deixa o
chefe ir alm desse limite tcnico, ela jamais deixa uma superioridade tcnica se
transformar em autoridade poltica. O chefe est a servio da sociedade, a
sociedade em si mesma o verdadeiro lugar do poder que exerce como tal sua
autoridade sobre o chefe. por isso que impossvel para o chefe alterar essa
relao em seu proveito, colocar a sociedade a seu prprio servio, exercer sobre
a tribo o que denominamos poder: a sociedade primitiva nunca tolerar que seu
chefe se transforme em dspota. (Clastres 1982: 144)
P. Clastres fundamenta sua teoria sobre a sociedade primitiva na equao
entre poder, coero e diviso. Assim, ao se recusar a se submeter a uma instncia
descolada de si mesma (o Estado ou qualquer forma de governo centralizada), a
sociedade primitiva teria optado, em nvel inconsciente, pela liberdade, ao contrrio de
todas as outras sociedades com Estado; por isso o poder do chefe indgena vazio,
enquanto o da comunidade pleno. Como se v, Clastres endossa a tese, cara filosofia
da histria, da ruptura radical na histria da humanidade, que atestaria a

273

descontinuidade original entre dois grandes blocos de sociedades, separados pelo modo
de organizao poltica.
Dialogando com Clastres, C. Lefort recusa tal ruptura radical e prope que um
tipo de sociedade se distingue de outro em razo de uma mise en forme das relaes
entre homens, classes ou grupos, cujo princpio est ligado ao modo de se gerar e de se
representar o poder (Lefort 1999: 309). Para Lefort, as sociedades primitivas
caracterizam-se por uma maneira singular de ser no Tempo (: 305), por um modo
especfico de instituio do social (: 307) e por uma alteridade necessria, onipresente e
inlocalizvel (: 322). Neste sentido, o poltico no uma escolha dos homens, mas a
expresso de uma elaborao e uma experincia da condio humana em circunstncias
dadas (: ibidem, nfases no original).
Tambm dialogando com Clastres, mas a propsito da chefia tupinamb,
Fausto demonstra o carter performativo da estrutura tupi, argumentando que, nessas
sociedades, a estrutura do poder depende do evento, da circunstncia, dos caprichos do
acontecimento (Fausto 1992: 390). Neste sentido,
(...) em vez de exorcizar o evento, faz dele uma varivel estrutural,
preservando sempre um resduo de incerteza no redutvel distino norma e
prtica que aponta para uma noo no elementar de regra (Viveiros de
Castro 1987). Esse intervalo, esse resduo de incerteza justamente o espao
do poltico na sociedade tupinamb. Assim, o acesso chefia e seu exerccio
dependiam antes do processo de constituio das unidades domsticas, das
estratgias matrimoniais e das virtudes pessoais do indivduo, do que de uma
autoridade emanada de um lugar da chefia. Era preciso ser capaz de articular
uma parentela forte, ser temido e respeitado como guerreiro, e ser como os
xams, grande orador (alguns principais eram tambm pajs). A poligamia e a
virilidade no eram privilgios da chefia, mas antes elementos do processo
poltico de constituio de um chefe: ter muitas mulheres, e no se sujeitar ao
servio da noiva devido ao sogro, para quem pode (e pode quem temido e
respeitado). Guerra e troca matrimonial articulavam-se no desenvolvimento das
parentelas e na poltica alde. (: 390)
Veremos como o evento e o resduo de incerteza incidem em cheio sobre a
constituio da chefia apiak. Os caciques apiaks corporificam a contradio,
vivenciada pelo povo no ltimo sculo, entre o desejo pelos ndices de civilizao e a
conscincia de seus efeitos colaterais perversos. Nesse sentido, o drama apiak pode ser
expresso no oxmoro como ter indivduos sem individualismo, uma vez que sua
concepo de civilizao remete a um estilo de vida essencialmente coletivista. Sob
esta perspectiva, o cacique uma espcie de bode expiatrio para os anseios da
comunidade; ele deve adquirir no mundo dos brancos a maior quantidade possvel de

274

bens industrializados para promover melhorias materiais na aldeia, sem, contudo,


deixar-se inebriar pela chance de se diferenciar dos demais, facultada pelo trnsito no
mundo das mercadorias, e sem agir como alguns patres brancos do passado, que
exerciam brutalmente o poder de mando.
Sempre que um cacique se deixa seduzir por tal ideia, ele forado a
abandonar seu posto, como se, por meio desse evento, o frgil e tcito compromisso de
no virar branco fosse periodicamente reafirmado por toda a comunidade a
manuteno do estilo de vida comunitrio mostra-se, assim, verdadeira tarefa de Ssifo.
Quando um cacique abdica do posto nessas circunstncias, o desejo de posse e o desejo
de mando so simbolicamente afastados da comunidade. Eis que reencontramos aqui,
no seio da organizao poltica, o mecanismo apiak de domesticao no apenas de
objetos industrializados, mas sobretudo do tipo especfico de relao que tais objetos
ensejam.
Afastando-se do pensamento marxista, Clastres afirma que a verdadeira fonte
de transformao da sociedade indgena, definida como sociedade contra o Estado,
o surgimento da dominao em seu seio, uma revoluo de ordem propriamente
poltica, portanto, e no uma modificao das relaes de produo (Clastres 1982:
141). Todavia, como pretendo demonstrar, ao menos para o caso apiak, no h como
pensar a transformao poltica independentemente das relaes econmicas , as quais,
diga-se de passagem, alteraram-se radicalmente com a introduo de objetos
industrializados e do dinheiro. A esta altura, quero concordar com C. Lefort quando
prope que o poltico no tem a ver apenas com a determinao do lugar do poder, nem
tampouco se deixa reduzir a uma pura escolha dos homens (mesmo quando
considerada inconsciente) (...), [mas] atesta ao mesmo tempo uma elaborao e uma
experincia da condio humana em circunstncias dadas (Lefort 1999: 322, nfases
no original).
Como j foi mencionado no captulo 3, os apiaks que hoje vivem em aldeias
se pensam como pessoas que recusaram a vida na floresta em nome da maior
proximidade com brancos que viam como aliados polticos e provedores de
mercadorias. Eles se orgulham da aparncia civilizada de suas aldeias e buscam
constantemente increment-las, seja por meio da instalao de uma escola estadual, de
um posto de sade melhor equipado, da implantao de energia eltrica ou do
encanamento da gua. Ora, esses itens de infraestrutura representam a maior presena
do Estado na aldeia, e suas implicaes burocrticas no so vistas com bons olhos
275

pelos indgenas. A imposio da rgida lgica burocrtica e disciplinar ao cotidiano da


aldeia repelida com veemncia, embora os salrios sejam recebidos de bom grado.
Entretanto, os apiaks j perceberam que os cargos remunerados tendem a gerar srias
desigualdades sociais, e vm tentando regular sua distribuio e suas consequncias.
A maior parte dos apiaks engajou-se rapidamente em relaes comerciais com
os brancos e deixou-se seduzir por seus objetos; ainda que continuem despendendo
energia considervel para submeter as mercadorias, o dinheiro e as instituies estatais a
suas prprias regras, impossvel prever as transformaes futuras de sua organizao
social. Por outro lado, possvel identificar alguns elementos estruturais que
sobrevivem s transformaes, transformando-se. Verifica-se, assim, que persiste um
mecanismo poltico atuando no sentido de reduzir o poder de mando do chefe, baseado
no padro de assentamento e, portanto, no territrio.
Quero dizer com isso que um territrio amplo permite que sees descontentes
da comunidade fundem novas aldeias, sem romper totalmente com os moradores da
aldeia de origem. Se o prestgio de um cacique funo do nmero de aliados, a sada
de um contingente da aldeia lhe serve como sinal de que sua postura precisa mudar, sob
pena de perder mais aliados. V-se, pois, que os valores morais de recusa ao poder de
mando e ao individualismo se apoiam em uma dinmica sociopoltica especfica e
condensam uma experincia poltica singular, muito parecida com a chefia entre os
bandos nambiquaras, analisada por Lvi-Strauss (1944), que acreditou ter encontrado
uma das formas mais simples de organizao social e poltica nas savanas de Mato
Grosso.
A tese do autor, que pode ser estendida para muitos povos sul-americanos, a
de que a chefia no existe como resultado das necessidades do grupo, mas, antes, o
grupo recebe sua forma, seu tamanho e at mesmo sua origem do chefe potencial que o
antecede (Lvi-Strauss 1944: 21). Com efeito, pode-se dizer que tambm para os
apiaks a principal funo do chefe manter o grupo unido com base no consenso; para
isso, ele conta apenas com o prestgio pessoal, funo da generosidade, e a habilidade
de inspirar confiana. Igualmente, o cacique apiak destaca-se muito menos por se
gabar de uma improvvel posio de autoridade do que por se exasperar diante de tantas
obrigaes e responsabilidades (: 22). como se o grupo, tendo concedido certas
vantagens ao chefe, esperasse dele a satisfao de suas necessidades e a garantia de sua
segurana (: 25). No caso dos apiaks, as vantagens atribudas ao cacique hoje em dia
so da ordem do acmulo material (e no mais a poligamia, como ocorria at o sculo
276

XIX); como vimos, ao cacique dado ter um pouco mais de objetos industrializados
que os demais co-residentes, mas isto apenas enquanto o grupo detm o controle sobre
seu estoque e recebe melhorias de ordem coletiva e individual (belas festas na aldeia,
a reforma da escola, um bom aparelho de radiofonia; galochas para a coleta da castanhado-par, um quilo de sal num momento de dificuldade etc.).
*******

Os apiaks esforam-se para transformar em parceiros os brancos de seu


convvio direto, forando uma relao de igualdade. Apresento um exemplo etnogrfico
mais concreto que exprime a negatividade atribuda a qualquer tipo de diferenciao
social, valor moral que permanece vlido a despeito do crescimento real das assimetrias
nas aldeias. Na poca da coleta da castanha-do-par, entre dezembro e fevereiro,
aproximadamente, a vida na aldeia fica mais agitada. No Mato Grosso, onde observei
diretamente esse perodo, alguns castanheiros (compradores ou atravessadores
brancos) costumavam visitar a aldeia para negociar com o cacique o preo do quilo do
produto e a quantidade de sacas a ser comprada. O cacique dispensava aos castanheiros
o tratamento reservado aos forasteiros importantes, oferecendo-lhes, em sua casa, uma
boa refeio, caf, vinho de frutas, a melhor rede para descansar e eventualmente
passeios pelos arredores da aldeia; conversava com eles num tom bonacho, fazendo
com que se sentissem em casa e advertindo-os sobre as malcias dos vizinhos e,
nesse contexto, concorrentes comerciais kaiabis. Os visitantes sempre elogiavam a
recepo e despediam-se garantindo que a comunidade no sairia perdendo no negcio.
O cacique estipulava uma produo alta, e dizia, lastimoso, que a comunidade
s no quebrava mais castanha porque no queria. Essa uma frase proferida com
frequncia pelos caciques: A comunidade s no est melhor porque as pessoas no
sabem ganhar dinheiro, no entendem como o mundo funciona hoje. Por seu turno, os
caciques so aqueles que sabem/querem ganhar dinheiro, e tentam ensinar a
comunidade como fazer isso, em geral sem sucesso.
Diferente da venda, a atividade de coleta no coordenada pelo cacique, mas
responde aos propsitos da famlia extensa. Dessa forma, um casal estabelece quanto
tempo e energia pretende despender nesse trabalho; se dispe dos objetos necessrios
tarefa (galochas, faces, sacos de rfia, garrafa trmica, lona para montar barracos,
espingarda e munio, anzois, lanterna, pilhas, isqueiros, alm de farinha, sal, leo,
acar, p de caf, arroz, sabo), parte com os filhos maiores e por vezes seus cnjuges,
277

deixando um ou dois filhos para cuidar da casa, dos filhos menores e netos;218 sees de
famlias extensas distintas ou casais de compadres podem se associar para a atividade.
Antes de partir, as pessoas j sabem quais os castanhais que esto produzindo, isto ,
sobre os pontos do territrio em que as castanheiras liberaram os ourios. O grupo ento
se dirige, de canoa, para um castanhal de posse dos apiaks, distante vrios quilmetros
da aldeia; monta acampamento e passa ali o perodo estipulado, que vai de alguns dias a
vrias semanas.
Diariamente os homens saem, armados, antes de amanhecer, em busca das
castanheiras, enquanto a maioria das mulheres permanece no acampamento, cozinhando
e conversando; as mais dispostas podem acompanhar o marido. Enquanto uma pessoa
recolhe os ourios, a outra os abre a golpes de faco; no meio da tarde, os grupos voltam
ao acampamento; se aqueles que saram munidos de espingarda e anzois tiveram sorte,
haver alguma carne para o jantar. comum que cada homem adulto estipule uma
produo para si; alcanado o peso pretendido, este homem pode retornar aldeia.
Decorrido o perodo estipulado, o grupo retorna aldeia com a canoa carregada com
numerosas sacas de castanha suja. Na aldeia, a castanha ser lavada no rio e posta para
secar ao sol no terreiro, atividades levadas a cabo geralmente pelas mulheres e crianas.
Finalmente, aps separarem as mais gradas para consumo familiar,219 as mulheres
ensacam as castanhas e as acomodam no quarto do casal, at a visita do castanheiro.
Quando retorna aldeia para efetivar o negcio, o castanheiro levado ao
salo, onde a castanha pesada na balana do castanheiro e realizado o pagamento
em dinheiro para cada chefe de famlia, de acordo com a quantidade de castanha
entregue. Paira alguma tenso no ar. Aps a transao, os indgenas carregam as sacas
para o caminho. Geralmente h reclamaes veladas sobre a negociao levada a cabo
pelo cacique; na viso dos apiaks, o preo baixo220 compensado pela certeza da
venda e pela comodidade, j que no precisam levar o produto at a cidade. As
mulheres, que trabalharam intensamente no beneficiamento da castanha, no participam
do momento da venda.

218

O homem que no dispe desses apetrechos procura o cacique e os toma em regime de aviamento; os
objetos ou o valor equivalente em dinheiro devem ser retribudos ao cacique aps a venda da castanha.
219
A castanha-do-par ocupa papel de destaque na alimentao apiak. Ela consumida crua, adicionada
a bolos e mingaus, e seu sumo transformado em caldo para cozinhar peixes e caas. Em 2008, os
apiaks do Mayrob receberam do Ministrio da Cultura um prmio por um projeto de valorizao da
alimentao tradicional que teve a castanha como foco.
220
Em dezembro de 2007, o castanheiro pagou R$1,00 por quilo de castanha beneficiada, enquanto em
Braslia o produto era vendido nos supermercados por um valor pelo menos 10 vezes maior.

278

As pessoas falam do perodo nos castanhais com animao, recordando as


caas e peixes que foram consumidos assados, o caf coado ainda durante a madrugada,
a quantidade abundante e a qualidade dos ourios encontrados, mas no deixam de
mencionar tambm a malria que no d trgua, o silncio excessivo, um ataque de
cobra ou de ona, uma vtima de ourio (no raro que, ao cair da rvora, que mede em
torno de 30 metros, um ourio atinja um coletor distrado, provocando srios
ferimentos), o cansao extraordinrio devido s grandes distncias percorridas a p, com
sacas de at 80 quilos nas costas.
Como pude verificar, se de fato quisesse, a maioria das famlias extensas
poderia vender quantidades enormes de castanha e ganhar um bom dinheiro, mas h
sempre a vontade de comer um peixe especial ou de sair atrs de uma caa gorda, uma
pendncia para resolver na cidade, o sol que est muito quente e tantos outros
obstculos mxima produo que esta, afinal, no pode se concretizar. A recusa
deliberada em pautar a vida pelo dinheiro e pelo desejo de ganho demonstrada pela
maioria das pessoas tem como implicao a forte vigilncia sobre as disposies mais
individualistas e gananciosas do cacique.
por esse motivo que a produo da aldeia jamais alcana as previses do
cacique, e que os meses da coleta da castanha so aqueles em que o clima na aldeia fica
mais tenso. O frenesi causado pela maior circulao de dinheiro e objetos
industrializados paradoxalmente faz com que as pessoas se deem conta da segregao
social iminente, sintetizada na figura do cacique, que em alguns casos age como
parceiro dos castanheiros e em detrimento da comunidade, fixando preos distintos para
a produo de sua prpria famlia extensa e a dos demais habitantes da aldeia. Em
resposta a esse estado de coisas, o circuito da fofoca ganha velocidade assombrosa, o
mecanismo do constrangimento opera com mais fora sobre a famlia extensa do
cacique e as reunies no salo ficam mais quentes. Sempre que necessrio, portanto,
os co-residentes recordam ao cacique que ele quem est a servio da comunidade, e
pelo tempo que lhes aprouver. 221

221 Participei de algumas reunies na aldeia Mairowy, nas quais eu era instada a explicar questes que
as lideranas no entendiam bem, como a legislao referente demarcao de Terras Indgenas. Na
aldeia Mayrob, jamais fui convidada a participar de nenhuma reunio, a no ser nos momentos de me
apresentar e de me despedir da aldeia; certa vez, em resposta a minha indagao, ouvi do cacique a
seguinte frase, em tom taxativo: Nas reunies a gente trata de assunto nosso. Quase tudo o que
escrevo a respeito das reunies baseia-se naquilo que me foi contado pelas mulheres ou pelos prprios
homens, em casa.

279

O panorama que apresentei difere da situao dos chefes marubos (grupo de


lngua pano), tal como exposta por J. Melatti (1985), os quais atuavam como patres
dentro de suas prprias aldeias, entregando diretamente mercadorias em troca da
produo de borracha a seus co-residentes. Melatti destaca o conhecimento da lngua
portuguesa e da contabilidade como habilidade importante para alguns marubos se
tornarem parceiros comerciais dos brancos regionais e assumirem o lugar dos regates
nas aldeias, manobrando assim a cadeia do aviamento em benefcio prprio. Por outro
lado, o papel de patro confrontava e exclua o papel de paj, as duas posies mais
prestigiadas na sociedade marubo, na medida em que o conhecimento novo do mundo
dos brancos e o conhecimento tradicional do mundo dos espritos no se mostravam
compatveis, tal como se expressa na sentena: Paj forte perde o portugus (Melatti
1985: 183). A existncia de patres dentro das aldeias marubos no est isenta de
ambiguidades e tenses; se a estrutura social no contm totalmente o surgimento dos
patres, por sua vez as obrigaes de parentesco atuam no sentido, no de impedir,
mas pelo menos de arrefecer a marcha da acumulao pelo patro (: 192), impondo
limites ao aprofundamento das desigualdades sociais.
O comrcio da castanha entre os apiaks difere, ainda, do modo de
engajamento dos surus, akuwa-asurin e gavies na empresa extrativista no Tocantins,
nos anos 1960, analisado por R. Laraia e R. DaMatta (1978). Aqui so os prprios
indgenas que coletam e beneficiam a castanha dentro de seu territrio, mantendo algum
poder de negociao com os compradores no-indgenas, embora se verifiquem a
presso externa sobre os recursos naturais utilizados pelo povo e o esteretipo do ndio
preguioso.
O caso apiak aproxima-se mais da situao atual dos ashaninkas do rio
Amnia (arawak), tal como descrita por J. Pimenta (2006). De acordo com o autor, o
sucesso de um certo grupo domstico no gerenciamento de uma cooperativa deveu-se
maestria com que alguns de seus lderes, os mesmos homens que se destacaram na luta
pela demarcao da Terra Indgena, manejaram as lgicas contrastivas da ddiva e do
mercado. Entretanto, para os apiaks como para os ashaninkas, o equilbrio entre ambas
as lgicas mostrou-se bastante delicado, e a insero na economia de mercado acabou
dando ensejo concentrao de poder e riqueza nas mos de poucos e formao de
uma chefia hereditria incipiente (Pimenta 2006: 24).
Seria possvel estender bastante a lista de casos etnogrficos em que a lgica
do mercado desafia a lgica da ddiva, tema cada vez mais recorrente nos trabalhos de
280

etnologia indgena. Para no ampliar exaustivamente o quadro de referncias, cito


apenas um ltimo caso, o dos paumaris (arawak), os quais, de acordo com O. Bonilla
(2005), interiorizaram o idioma comercial e as posies estruturais de patro e
empregado, sob as quais apreendem todas as suas relaes sociais. Para os paumaris, a
relao do empregado com o patro compreendia historicamente no apenas um fluxo
de mercadorias, mas tambm proteo e vnculos de parentesco fictcio, incluindo a
transmisso de bens simblicos como nomes e sobrenomes de brancos. Numa anlise
bastante sensvel, a autora prope que os paumaris se colocam na posio de
empregados/presas domesticveis de modo a forar a assuno, por parte dos patres, da
posio de pacificador/domesticador, e no a de predador/inimigo. Ao adotar tal
estratgia simblica, os paumaris estariam forando os brancos a se comportar como
seus protetores, e no como exploradores.
Se verdade que o sucesso das organizaes polticas primitivas depende do
grau de controle que se pode desenvolver sobre a produo dos grupos domsticos que
as compem (Sahlins 1963: 19), vimos que entre os apiaks os limites desse controle
esto dados na prpria estrutura da comunidade, especialmente no que concerne
fragilidade dos laos entre as vrias famlias extensas. O cacique que busca conquistar a
considerao dos brancos aumentando a presso sobre os seguidores mais prximos
gera srios ressentimentos. Com efeito, o estado de nimo dos membros da famlia
extensa do cacique serve como termmetro para aferir sua sustentao poltica. Quando
os afins e os compadres do cacique comeam a dar sinais de descontentamento,
rareando as visitas a sua casa, por exemplo, hora de recuar. Quando at mesmo o
apoio dentro da famlia conjugal arrefece, com demonstraes reiteradas de irritao por
parte da cacica, por exemplo, no h mais muito a fazer, a no ser abdicar do cargo,
como normalmente ocorre. E ento outro homem influente experimentar as vantagens
e as agruras do cargo.
Depreende-se do exposto que, apesar de conviverem com patres h um
sculo e meio, os apiaks teimam em impedir a consolidao de relaes de patronagem
dentro de suas aldeias, empregando os mecanismos de controle tradicionais.

281

Consideraes Finais

Como vimos ao longo das pginas precedentes, o estilo de vida dos apiaks
contemporneos pensado como resultado da ruptura da relao com um cunhado
civilizado e identificado comunidade, um modo especfico de instituio do social (C.
Lefort 1999: 305), correlato das categorias mansos e misturados. Os apiaks afirmam
que aderiram voluntariamente ao processo de civilizao ou amansamento depois que
perderam o medo dos brancos, o que teria ocorrido aps uma sucesso de ataques
promovidos por seringalistas sediados na Barra de So Manoel, no incio do sculo XX,
porm tal afirmao compreende uma dimenso crtica, atualizada pelos homens
influentes em suas reivindicaes atuais, amparadas no respeito a direitos que a nova
legislao indigenista brasileira assegura aos povos indgenas.
Estes homens, chamados localmente de lideranas, enfatizam que o processo
de amansamento implicou no apenas o acesso a mercadorias e o contato com a f
catlica, mas tambm disperso territorial forada e casamentos com pessoas de etnias
distintas (nordestinos, paraenses e povos do tronco tupi), elementos que teriam
descaracterizado o estilo de vida tradicional do povo, paradoxalmente o mesmo que
hoje exigido aos apiaks como condio para que se demarquem suas terras e se
destinem recursos financeiros para as aldeias.
Os apiaks conseguiram superar todos os obstculos e hoje em dia vivem em
comunidades bonitas e salubres. Recuperaram-se demograficamente por meio de
casamentos com pessoas de outros povos do tronco tupi e descendentes de arigs, e se
reestruturaram politicamente graas convivncia com os kaiabis e os mundurukus.
A metfora da travessia de banzeiros que d ttulo a esta tese exprime a atitude
dos apiaks diante da histria. Hbeis canoeiros, os apiaks, quando em suas viagens se
veem diante de guas revolvidas pelo vento, analisam a situao e procuram uma brecha
por onde enveredar com alguma segurana. A sabedoria para cruzar banzeiros e desviar
de rebojos sem deixar a embarcao naufragar advm de uma longa experincia no
meio fluvial. Da mesma forma, a sabedoria para superar adversidades foi adquirida na
prtica, a duras penas. Os apiaks sabem que, nas atuais circunstncias, partir para o
enfrentamento no a melhor estratgia diante das muralhas aparentemente perfeitas e
implacveis do poder centralizado. Na busca pelo respeito aos direitos bsicos
garantidos pela legislao indigenista especialmente o direito de voltar a morar na

282

terra de fartura onde viveram seus antepassados e onde ainda vivem, acreditam, seus
parentes arredios , optaram pela via da diplomacia e do convencimento.
Os apiaks, assim como vrios povos indgenas do Nordeste (Oliveira Filho
1999), tambm concebem o fortalecimento da identidade tnica como uma viagem,
mais propriamente uma viagem fluvial, a qual jamais deixa intactos os viajantes. Eles
sabem que o tempo que se leva para descer o rio no idntico ao tempo gasto para
subi-lo; aqueles que retornam no so idnticos aos que foram, e, no final das contas,
tampouco o rio o mesmo.
Vrios so os mitos norte-americanos analisados por Lvi-Strauss (2006) que
tratam de uma viagem de canoa e das transformaes que ela engendra. Parafraseando
este autor (Lvi-Strauss & Eribon 2005: 192), diramos que, em sua atuao poltica, os
homens influentes apiaks tencionam fazer surgir relaes entre outras relaes de
poder j dadas no tempo. Os homens influentes apiaks me falaram diversas vezes sobre
como seria bom ter um livro sobre sua cultura: Ns sabemos que apiak existe, ns
estamos aqui na nossa aldeia. Mas os outros l fora, os brancos, no sabem. A, quando
ns vamos para Cuiab, para Braslia, atrs de nossos direitos, muitas vezes somos
discriminados.
Historicdio o nome da prtica de remoo dos povos da histria, da qual os
apiaks foram vtimas; trata-se de uma maneira de obscurecer os processos histricos
que produziram as hierarquias raciais prevalecentes nas Amricas. De acordo com J.
Hill, o poder de controlar e definir o passado histrico talvez a forma ltima de
hegemonia (Hill 1996: 16).
Cada Estado-nao se viu como o centro daquele estgio histrico, e as
crnicas apropriadas foram escritas. Enquanto os povos dominantes continuam a
escrever desta perspectiva, eles se tornam cada vez menos capazes de discernir a
presena, mesmo em seu teatro imediato da histria, de outros povos a seu lado,
exceto como obstculos temporrios a sua dominao, como remanescentes em
vias de extino, ou como persistentes povos retrgrados que no podem ser
alocados na mesma categoria que a nao dominante. A padronizao da histria
foi um processo destrutivo, que eliminou da esfera do conhecimento histrico
centenas de povos que, da mesma forma que os povos dominantes, tinham
histrias. Ela foi mais destrutiva que a padronizao da linguagem, porque
removeu da perspectiva geral totalidades culturais, e no apenas um aspecto de
uma cultura (E. Spicer 1992: 43-44, apud Hill 1996: 16-17).
O conceito de historicdio nos faz pensar de modo crtico na relao de poder
constitutiva de todo esforo de saber. J. Clifford se perguntou sobre a possibilidade de
estudar outros povos sem exercer poder sobre eles, argumentando que

283

Espcimes antropolgicos textos e artefatos trazidos do campo no


deveriam ser vistos primeiramente como evidncias de uma realidade distinta ou
mesmo como signos, traos a serem interpretados, do ponto de vista nativo. Os
dados antropolgicos deveriam ser vistos, antes, como se referindo ao processo
de pesquisa em si, refletindo sua dialtica especfica de poder, de traduo, de
troca interpessoal (Clifford 1982: 125).
O presente trabalho pautou-se por uma preocupao tica. Esforcei-me por
demonstrar que, a despeito de todas as tentativas de apagamento fsico, poltico e
cultural, a histria dos apiaks, bem como a dos povos do Nordeste, a recente
homologao da Terra Indgena Raposa Serra do Sol, em Roraima, e tantos outros casos
similares, so provas de que a resilincia social a marca registrada dos amerndios.
Contrariando toda razo prtica, os sobreviventes de projetos coloniais genocidas
continuam exibindo sua dignidade e procurando brechas onde deitar razes para
florescer com a vitalidade e a persistncia das mirtceas.

********

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Anexos

300

Aldeias apiaks, 2007

Foto 1: Dois irmos Kamassori ao lado de uma antiga conhecida munduruku ( direita)

Foto 2: O terceiro irmo Kamassori, com a filha, mostrando peneiras de fibra de arum
confeccionadas por ele e utilizadas para coar mel e chs

301

Foto 3: Abrindo o arapari para construir a canoa de casca de pau, que serve apenas
para navegar a favor da correnteza

302

Foto 4: Os alunos da escola da aldeia Mayrob observaram atentamente todas as etapas e


fizeram uma canoa menor, de brinquedo

Foto 5: O tracaj assado no casco um dos pratos prediletos dos apiaks

303

Foto 6: Machado de pedra encontrado s margens do Rio dos Peixes

Foto 7: Pote de cermica encontrado s margens do Rio dos Peixes

304

Foto 8: Limpeza da castanha-do-par

Foto 9: Mulheres descascando castanha-do-par, no salo, para preparar os bolos da


festa de batizado coletivo

305

Foto 10: Preparando bolo de mandioca para a Festa do Dia das Mes; ao fundo, o rio
Teles Pires

Foto 11: Torneio de futebol masculino durante a festa do Dia dos Pais, Mayrob

306

Foto 12: Rio dos Peixes no inverno (note o joo-de-pau na popa da canoa)

Foto 13: Meninos entre 5 e 12 anos formam grupinhos que perambulam alegremente
pelos arredores da aldeia, Mairowy

307

Foto 14: Moas na beira, tratando peixes e carne de queixada trazidos pelos homens,
Mairowy

Foto 15: A construo da casa uma das atividades que demanda mais esforos dos
homens. Na rea do Teles Pires, h palha de babau em quantidade para os telhados; no
Rio dos Peixes, preciso recorrer a tabuinhas

308

Foto 16: Casal preparando farinha de mandioca na casa de forno comunitria; ao fundo,
o Rio dos Peixes (note a peneira de fibra vegetal quadrada sobre a canoa e a prensa
mecnica, ao fundo)

309

Foto 17: As mulheres carregam os filhos pequenos em tipoias de l ou de


entrecasca de rvore

310

Cocares apiaks obtidos por pesquisadores e colecionadores em meados


Acervo Museu do ndio/Funai. Foto: Giovana Acacia Tempesta

do sculo XX,

Foto 18: 6163- Coroa radial emplumada: constituda de duas abas de palha tranada
com fieira de penas nas cores amarelo e vermelho dispostas entre ela, no mesmo
plano, em sentido radial. Mato Grosso. 1954. 28,0 cm de dimetro; 35,0 cm de
largura. (Darcy Ribeiro)

311

Foto 19: Detalhe da coroa da foto 18

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Foto 20: 8509- Coroa radial emplumada: constituda de duas abas de madeira
revestidas com tecido de fio de algodo. Apresenta entre o tecido fieira de
penas nas cores amarelo, vermelho, azul e marrom dispostas entre si em
sentido radial. Compe um cobre-nuca de fios de penas nas cores
vermelho(Arara), amarelo(Arara) e branco com marrom(Gavio) em formato
de emplumao em roseta de plumas alternadas. Mato Grosso. 1957. 87,0cm
de comprimento; 68,0cm de largura. (Leilo Museu Simoens da Silva)

313

Foto 21: 8521- Coifa: composta por uma cobertura flexvel para a cabea
confeccionada com fibra de buriti em forma de touca e revestida de tufos de
penas na cor branca. Mato Grosso. 1957. 15,0cm de dimetro; 20,0cm de
altura. (Leilo Museu Simoens da Silva)

314

Foto 22: Parte interna da coifa

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Foto 23: 8522- Novelo de linha: Novelo de linha de algodo (Gossypium sppp.) na cor
branca natural, constitudo de inmeras voltas de formato ovalado. Mato
Grosso. 1957. 8,0 cm de dimento x 7,0 cm de altura (medida aproximada
por tratar-se de objeto irregular ). (Leilo Museu Simoens da Silva)

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1964, PIA Jos Bezerra, alto Teles Pires- Acervo Museu do ndio/Funai

Foto 24: Uma famlia de seringueiros descendentes de ndios Apiaks


(SPI, Inspetoria Regional 6, JB 03)

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Aquarelas de Hercules Florence, datadas de 1828, feitas durante a viagem da


Expedio Langsdorff ao Brasil, reproduzidas de Monteiro & Kaz 1988, vol. 3: 72-79

Aquarela 1: 118- Apiak em Diamantino


119- Apiak trabalhando em Diamantino de Mato Grosso

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Aquarela 2: 120- ndia Apiak em Diamantino de Mato Grosso

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Aquarela 3: 127- Maloca dos Apiak no rio Arinos

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Aquarela 4: Detalhe de 127

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Aquarela 5: Detalhe de 127

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