O romance morreu
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O romance morreu - Rubem Fonseca
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
R747r
2. ed. Fonseca, Rubem, 1925-
O romance morreu : crônicas / Rubem Fonseca. - 2. ed. - Rio de Janeiro :
Nova Fronteira, 2014.
ISBN 978.85.209.4021-1
1. Contos brasileiros. I. Título.
CDD: 869.98
CDU: 821.134.3(81)-8
Sumário
O romance morreu?
A pornografia começou com a Vênus de Willendorf?
Primeiras lembranças de Nova York
La rubia cabeza de Fonseca
Exitus letalis
Ambiguidades, simbolismos, metáforas, obscuridades, enigmas, alegorias
Pipoca
Cinema e literatura
Jack, o Estripador
Viagens
Reminiscências de Berlim
O maior órgão do corpo
O mar, a praia e o sol
Macacos escritores
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Masturbação
Desventuras de um dendrólatra
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O autor
Notas
O ROMANCE MORREU?
Muito antes de publicar o meu primeiro livro eu já ouvia dizer que o romance, a literatura de ficção estavam mortos. Parece que a primeira morte teria sido anunciada ainda em 1880, não obstante, como todos sabem, Emily Dickinson, Tchekhov, Proust, Joyce, Kafka, Maupassant, Henry James, o nosso Machado, Eça, Mallarmé, as Brontë, Fernando Pessoa (um pouco mais tarde) estivessem ativos naquela época.
No início do século xx, com o lançamento, por Henry Ford, do Ford Model T, um automóvel popular, construído numa linha de montagem, um carro barato que em poucos anos vendeu mais de 15 milhões de unidades, as cassandras afirmaram que agora a literatura de ficção, na qual se incluía a poesia, estava mesmo com os dias contados. Dentro de pouco tempo todas as pessoas teriam automóvel e usariam o carro para passear, fazer compras, namorar em vez de ficar em casa lendo. Ou porque não soubessem o que lhes reservava o futuro ou lá porque fosse, o certo é que muitos escritores, como Yeats, Benavente, Galsworthy, Selma Lagerlöf, Rilke, Kavafis, Edna St. Vincent Millay, continuaram escrevendo, e talvez até tivessem um Model T na garagem.
Nova anunciação mortal veio logo em seguida, causada pelo cinema, denominado de sétima arte. Uma pesquisa da época mostrou que em cada cem pessoas oitenta frequentavam o cinema e duas (duas!) liam livros de ficção. Agora mesmo é que a literatura, enfim, havia morrido. Desta vez não tinha salvação. Mas Sinclair Lewis, Thomas Mann, Bunin, Céline, Anna Akhmatova, O’Neill, Pirandello e muitos outros não sabiam disso. (Os dois últimos são autores de teatro, mas o teatro começou a morrer antes.)
Depois, nova morte foi profetizada quando do advento da televisão. Mas William Faulkner, Eliot, Gide, Hesse, Quasimodo, Pasternak, Camus, Hemingway, Beckett, Seféris, Kawabata, Mauriac, Steinbeck e muitos mais não pararam de escrever. Que diabo, esses caras não liam os jornais? Não sabiam que a literatura de ficção havia morrido?
Afinal veio o golpe de misericórdia: o computador e a internet. Era a pá de cal. Mas o que estava acontecendo? Quem são (ou eram) esses loucos escrevendo poesia e romance — Carlos Drummond de Andrade, Czesław Miłosz, João Cabral, Pablo Neruda, Montale, Heinrich Böll, Saul Bellow, Isaac Bashevis Singer, Octavio Paz, Brodsky, García Márquez (se você diz que o romance está morto, não é o romance, é você que está morto
), Canetti, Günter Grass, Kenzaburo Oe, Saramago, João Ubaldo, Ferreira Gullar e um montão de outros? O que na realidade está acontecendo?
Existem muitos estudos interessantes e extensos sobre o assunto, como o da ensaísta Leyla Perrone-Moisés, em seu livro Altas literaturas (Companhia das Letras, 1998). Uma coisa talvez esteja acontecendo: a literatura de ficção não acabou, o que está acabando é o leitor. Poderá vir a ocorrer esse paradoxo, o leitor acaba mas não o escritor? Ou seja, a literatura de ficção e a poesia continuam existindo, mesmo que os escritores escrevam apenas para meia dúzia de gatos-pingados?
Uma pesquisa recente sobre hábitos de leitura no meio universitário chegou a conclusões espantosas: 36% dos pesquisados nunca, repito, nunca haviam lido sequer um livro de ficção. Uma minoria lia um ou dois livros de ficção durante o ano. Um número grande lera apenas um livro a vida inteira. Estamos falando de universitários.
Não quero tirar conclusões a partir dessa pesquisa. Elas seriam sombrias demais. Li recentemente, em um estudo das professoras Isabel Sampaio e Acácia Angeli dos Santos, que as chamadas dificuldades de leitura e redação referem-se, na verdade, a deficiências em capacidades cognitivas básicas, como a habilidade de compreender variáveis, fazer proposições, identificar lacunas de informação, distinguir entre observações e inferências, raciocinar hipoteticamente e exercitar a metacognição. Vivendo numa sociedade em que a capacidade de processamento de informações deixou de ser apenas habilidade intelectual para transformar-se em condição de sobrevivência econômica, o indivíduo privado das ferramentas da leitura e da escrita está sujeito à marginalização — pessoal, profissional e social.
Será que os universitários sabem disso?
Kafka escrevia para um único leitor: ele mesmo. Recordo Camões. Ele era um arruaceiro e acabou na prisão, ou por suas rixas ou por ter se envolvido com a infanta dona Maria, irmã do rei João iii. Para obter o perdão do rei ele se propôs a servi-lo na Índia, como soldado. Lá ficou 16 anos e, afinal, voltou para Portugal a bordo de um navio, acompanhado de uma jovem indiana que ele amava e a quem dedicou o lindo soneto Alma minha gentil, que te partiste
. O navio naufragou, e Camões só pensou, durante o naufrágio, em uma coisa: salvar o manuscrito d’Os Lusíadas e dos seus poemas. Deixou a mulher amada morrer afogada (confesso que especulo) e perdeu todos os seus bens, mas salvou os seus manuscritos. Para quem ler? Estávamos no século xvi e muito pouca gente em Portugal sabia ler. Mas Camões pensou nesse punhado de leitores, era para eles que Camões escrevia, não importava quantos fossem.
Os leitores vão acabar? Talvez. Mas os escritores não. A síndrome de Camões vai continuar. O escritor vai resistir.
A PORNOGRAFIA COMEÇOU COM A VÊNUS DE WILLENDORF?
A mais antiga representação conhecida de um ser humano é a Vênus de Willendorf, uma mulher nua da época paleolítica, esculpida em calcário, com cerca de 11 centímetros de altura e provavelmente vinte mil anos de idade.
Assim a descreveu J. Szombathy, um dos seus descobridores:
A escultura representa uma mulher gorda, inchada, com grandes glândulas mamárias, uma barriga saliente, cadeiras e coxas grossas [...] Os labia minora estão claramente indicados [...] Toda a figura mostra que o artista possuía um excelente domínio da forma humana e que deliberadamente enfatizou as partes referentes à função reprodutora.
O rosto — olhos, nariz, boca — é pouco definido. Pode-se dizer que o artista, ao representar a figura humana da Vênus de Willendorf de maneira distorcida, planejou produzir não apenas a primeira escultura como também a primeira caricatura
(do italiano caricare, exagerar) conhecida.
A caricatura surgiu realmente na Renascença e na Reforma, ainda que já tivesse existido no Egito antigo e na Grécia, porém sem relevância. Leonardo, Holbein, Dürer, Brueghel, Bosch fizeram caricatura, mas os especialistas afirmam que ela teria começado com Agostino Carracci, nascido em Bolonha em 1557 e falecido em Parma antes de completar 45 anos. É interessante notar que existe outra escultura do mesmo período aurinhacense em que foi esculpida a Willendorf, só que alguns mil anos mais nova, a Vênus de Brassempouy, cuja forma, apesar de mutilada, permite supor uma acentuada e caricatural linha esteatopígica.
Seria esse escultor da Idade da Pedra que esculpiu a Vênus de Willendorf destacando e deformando as suas características sexuais o primeiro artista pornográfico da história
, como querem alguns? "Mesmo comparada com as construções repelentes que os antropólogos fazem da mulher de Neandertal, a Vênus de Willendorf é simplesmente repulsiva, disse um historiador. Repulsiva? Por terem sido realçados os seus órgãos sexuais, certamente. O conceito de pornografia tem variado no tempo e no espaço, mas sempre subordinado ao corpo humano, sua nudez e suas secreções e excreções — esperma, fezes, urina —, refletindo o preconceito antibiológico presente, em maior ou menor grau, em quase toda a história da civilização. É comum ouvir-se, hoje, de maneira lamuriante na maioria das vezes, que esse tabu milenar não existiria mais, principalmente nas sociedades urbanas, depois que a ciência e os meios de divulgação se encarregaram de desmitificá-lo. (
O único ato sexual anormal é aquele que você não pode realizar, Kinsey.) O critério de moralidade, dizem, teria sofrido profundas modificações, e pornografia (como sinônimo de obscenidade) não mais se aplicaria ao corpo e ao sexo. O surgimento de
novas pornografias" — a da morte, a da violência, a da miséria — comprovaria esse ponto de vista. A liberdade sexual teria sido afinal conquistada.
Na verdade, o preconceito não cessou de existir. A liberdade sexual acabou virando uma nova forma de puritanismo. Eu defino puritanismo como um estado de alienação: a emoção separada da razão, o corpo usado como máquina
(Rollo May). Muitos alegam que o cinema, o teatro e a literatura nunca tiveram tanta franquia para exibir as obras repulsivamente mais pornográficas
. Para essas pessoas, entre as quais se incluem escritores, educadores, sociólogos, filósofos, a pornografia deve ser controlada porque é uma fantasia infantil sem fundamento na realidade, um sonho sórdido em que o sexo é separado do seu contexto humano
. A utilização da censura não podia deixar de ser defendida por essas pessoas: Se tolerarmos a pornografia e não permitirmos que a censura a restrinja, nossa sociedade se tornará cada vez mais vulgar, brutal, ansiosa, indiferente, desumana e, afinal, poderá se desintegrar totalmente
(Ernest van den Haag). Curioso o ponto de vista de um escritor que, no seu horror à pornografia, disse isto: "Como um ato contra a sociedade, escrever, publicar e distribuir um livro como Trópico de Câncer é mais grave do que escrever, publicar e distribuir um panfleto que advogue a derrubada violenta do governo" (George P. Elliott). Outra curiosidade: o decreto-lei no 1.077, de 26 de janeiro de 1970, usado para proibir a publicação e a circulação de livros no Brasil — Feliz Ano Novo foi um deles —, diz, numa das suas justificativas, que as manifestações contrárias à moral e aos bons costumes, que pretende coibir, fazem parte de um plano subversivo que põe em risco a segurança nacional
.
Cabe aqui uma pequena digressão. A censura não deve ser encarada apenas como a ação reacionária e obscurantista de certas agências e agentes do Estado. A censura é um subsistema cultural (e ideológico) que serve para preservar os valores que uma determinada cultura considera ameaçados. O agente do Estado não passa de alguém que trata do negócio por conta alheia
, ainda que exorbite, muitas vezes — e quanto mais autoritário o Estado, mais oportunidade têm o agente e a agência de desviarem-se da norma. Mas não é preciso que se excedam os justos limites da regra
para reprimir o comportamento individual ou a manifestação artística. Os piores censores são aqueles que obedecem estritamente à norma do sistema cultural dominante. A literatura, evidentemente, não tem escapado dessa ação repressiva. O caso Moors, ocorrido na Inglaterra, em que dois criminosos, um homem e uma mulher, mataram suas vítimas com requintes de crueldade, foi usado como prova definitiva e exemplar da influência deletéria da literatura pornográfica, devido ao fato de o assassino, de nome Brady, ser leitor e admirador de Sade. Mas, como disse Anthony Burgess, uma natureza perversa pode ser estimulada por qualquer coisa. Um assassino de crianças, nos Estados Unidos, confessou que ao cometer os crimes fora inspirado pelo episódio de Abraão e Isaac no Velho Testamento. Proibindo-se o Marquês de Sade, a Bíblia teria também que ser proibida, pelos mesmos motivos
.
Pesquisa feita na Brown University comprovou que a pornografia não tem a menor influência prejudicial sobre as pessoas. Na verdade, quer seja encarada do ponto de vista da história social, da psicologia ou da arte (perspectivas essenciais
do fenômeno, conforme Susan Sontag), ela nunca será realmente nociva. Certo tipo de pessoa pode até se beneficiar da pornografia, tanto mental como emocionalmente. (E também comercialmente, como editores, distribuidores e autores...)
Teriam existido e sido destruídas pelos defensores da moral, dos bons costumes, do bom gosto, outras Vênus de Willendorf? Por querer dizer o indizível e mostrar o invisível (aquilo que não deve ser visto),