Carne Crua
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Carne Crua - Rubem Fonseca
Copyright © 2018 by Rubem Fonseca
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
F747c
Fonseca, Rubem, 1925-
Carne crua / Rubem Fonseca. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2018.
144 p.
ISBN 978-85-209-4336-6
1. Contos brasileiros. I. Título
18-52565
CDD: 869.3
CDU: 82-34(81)
SUMÁRIO
Capa
Folha de rosto
Ficha catalográfica
A praça
Amor e outros prolegômenos
Aparecida
Boceta
Boceta — parte II
Cafetões
Carne crua
Cornos
Desculpas esfarrapadas
Diarreia
Falsificado
Feitiço brasileiro
Gosto de ver o mar
Grande amor
Homens e mulheres
Igreja Nossa Senhora da Penha
Nada de novo
Noel
O mundo vai mal
O ser é breve
Oropa
Os originais e as imitações
Os pobres, os ricos, os pretos e a barriga
Papai Noel
Penso e falo
Tecido
O autor
Colofão
A PRAÇA
Moro sozinho, num apartamento de sala e dois quartos, perto da praça. É uma dessas praças com árvores, cujos nomes não sei, mesas de cimento com quatro bancos, também de cimento, onde toda tarde uns velhotes gordos jogam cartas. Eu só vejo gente gorda andando na rua, homens e mulheres de todas as idades. Li que a obesidade é um fenômeno mundial, ligado à alimentação errada, na maioria das vezes, conquanto existam alguns casos de origem genética.
Fico sentado no banco da praça alguns minutos, todos os dias, pela manhã, para receber um pouco de sol na pele. Li, na internet — hoje ninguém vive sem a internet, mas essa é outra história —, que todas as formas de vida do planeta necessitam, direta ou indiretamente, dos efeitos da luz solar para viver. No caso dos humanos, além da manutenção da temperatura corporal, a incidência dos raios solares permite processos químicos importantes, como a produção de vitamina D, responsável pela fixação do cálcio em nosso corpo.
Mas tem gente que não gosta de sol, antigamente as mulheres saíam na rua abrigadas por uma sombrinha e os homens usavam chapé-panamá, que na verdade é feito de palha do Equador, mas isso é outra história, fica para depois.
A luz solar é fundamental, ainda, para que as plantas da minha praça possam realizar a fotossíntese, processo através do qual os vegetais transformam gás carbônico em glicose (que é absorvida por eles) e em oxigênio (liberado para a atmosfera).
A glicose produzida nos vegetais irá transmitir energia a toda a cadeia alimentar que vem adiante, nas várias espécies de animais que se alimentarão das plantas, nos animais que se alimentarão desses animais etc. Mas a glicose pode ser um problema, quando ela é alta pode causar diabetes, doença comum nas pessoas obesas. Quando eu ando pela rua, a cada dez pessoas que vejo, homens e mulheres, seis são obesos.
Novamente, nós, seres humanos, acabamos sendo beneficiados pela luz solar — já que também nos alimentamos dessas plantas e/ou animais e retiramos deles a nossa energia. O calor do sol (que resulta de partes da luz solar invisíveis aos nossos olhos) tem, também, a função de acelerar a quebra das moléculas de proteínas e, em alguns casos, regula diretamente a temperatura corporal de animais como peixes, anfíbios e répteis.
De volta aos seres humanos, a parte visível da luz solar tem a função de regular o nosso ritmo biológico e todas as suas atividades, como a liberação de hormônios durante nossas atividades diárias e durante o sono. É também com a ajuda da luz solar que desenvolvemos a nossa capacidade natural de visão. Sei que mesmo com todos esses benefícios, a ação dos raios solares sobre nossa pele, em excesso, pode causar danos, levando ao desequilíbrio celular e ao surgimento de doenças, como o câncer de pele. Por isso, é importante equilibrar a exposição ao sol tomando cuidados como evitar horários de forte incidência de raios (entre 12h e 15h) e utilizar, sempre que possível, protetor solar.
Perto da praça tem um botequim. Toda tarde eu vou lá, tomar um cafezinho. Odeio café, essa porcaria me faz mal, mas o café é um pretexto para ver Odete. Acho que ela é mulata, mas não parece. Aqui neste país, e também na Colômbia, muitos negros vieram plantar café, os donos das fazendas fornicavam as negras e mulatos e mulatas foram nascendo. Enfim, gente mestiça, mesmo que isso não apareça na cor da pele, existe numa proporção imensa. O que é bom, a mistura de raças é benéfica sob todos os aspectos.
Hoje fui ao botequim. Odete estava lá, de saia preta, blusa preta e avental preto. O botequim, que é muito pequeno, tem apenas dois empregados, Odete e um sujeito magrinho, vestido de preto, que não usa avental. Além deles há o patrão, um português de cabeça branca, um cara legal que me cumprimenta amistosamente quando eu apareço.
Odete veio me atender.
Um cafezinho, por favor, adoçante separado.
Sou magro, mas tenho horror de ficar gordo. Meu pai era magro e minha mãe que era inda mais magra dizia a gordura é mortal, não coma porcarias, meu filho
. Eles morreram cedo, magrinhos, mas não quero pensar nisso.
Naquele dia, no botequim, enchi-me de coragem, e quando Odete trouxe o café eu disse meu nome é José
.
Ela sorriu. Um sorriso lindo.
O meu é Odete
, ela disse.
Era o nome da namorada do Fernando Pessoa
, eu disse.
É o meu poeta favorito
, disse Odete. O poeta é um fingidor, finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.
Meu amor por Odete cresceu tanto que meu coração começou a bater desordenadamente, pensei que ia morrer.
Mas não morri. Agora, Odete e eu tomamos sol juntos na praça e ela está morando na minha casa.
AMOR E OUTROS PROLEGÔMENOS
Um filósofo, de cujo nome não me lembro, disse que a vida se resumia em nascer, comer, defecar e morrer. Ele está parcialmente certo. De fato, a vida começa quando o bebê nasce. Ele depois come, toma o leite do peito da mãe ou de alguma doadora, e defeca — os bebês defecam sem parar, existem fraldas descartáveis, mas quem é pobre tem que limpar o cocô da bunda e da fralda do bebê, lavar, quarar, um trabalho ininterrupto. Mas bebê não morre, não é? Alguns morrem, a maioria no entanto sobrevive, tanto que existe cada vez mais pessoas no mundo, já somos alguns bilhões espalhados pela Terra. Sim, o bebê nasce, come, defeca, e depois quer andar. Primeiro engatinha, mas quer andar, e quando anda gosta de dar