Arte na educação básica (VOL. 2): Experiências, processos e práticas contemporâneas
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Arte na educação básica (VOL. 2) - Daniel Costa
APRESENTAÇÃO
PERSISTENTES DESAFIOS DA ARTE NA EDUCAÇÃO BÁSICA
Este segundo volume acontece pelo desejo e necessidade de pensarmos as práticas e experiências em Arte na escola frente à persistente situação social e política que nos vemos inseridos. Em tempos de incertezas é preciso repensarmos nossa atuação docente e suas implicações pedagógicas e sociais. A Arte não é e não pode ser neutra, ela perpassa pelos campos mais intrincados da percepção do nosso cotidiano e está imersa em diferentes contextos e situações que nos provocam, nos marcam e pode evocar diversas manifestações expressivas ativas.
Contrapondo a arte como objeto, ferramenta ou instrumento para servir a outra linguagem, projeto ou ação que ainda persiste na escola, propomos olhar para práticas enviesadas ou sistematizadas através da experiência e como propriedade de manifestações legítimas. Por ser um lugar possível de experimentar e expressar, a escola não é campo sem partido-agrupamento-coletividade, não se isenta, não é indiferente ao que acontece numa comunidade/sociedade, por isso é um espaço de manifestação política de vidas pulsantes e persistentes numa imperativa busca por identidades, equidades, oportunidades e espaços coabitados por alteridades contíguas. A escola é habitada pela diferença, pela desigualdade e tenta manejar com elas para (sobre)viver. A escola implica um campo de ação política que, por vezes, é ouvido por segmentos da sociedade atados às concepções de mundo que os rodeiam. Não queremos uma escola partida, buscamos por múltiplas vozes, histórias imbricadas entre vida e arte, conflitos e dificuldades, iniciação ou legitimação em espaços do fazer docente na educação básica.
Há na escola mais perguntas que respostas. Constituir questionamentos e possibilidade de indagar podem fazer surgir fagulhas de ações que reflitam sobre o fazer cotidiano da arte no chão da escola, tornando-nos questionadores sobre nossos próprios processos da vida, na intenção de inventar outros caminhos para uma arte que esteja presente, integral e possível na educação. Das fagulhas, das f(r)estas, podemos nos resvalar em potências para fazer vivo o pensamento artístico no espaço escolar. Enquanto a Arte instaura-se nas aberturas, nas descontinuidades, percebemos forças que insistem num status quo da educação enquanto ferramenta, instrumento, conteúdo decorado e a classificação ordinária do conhecimento medidas entre tintas e folhas de papel.
Entendemos que sempre habitou a escola uma configuração das informações sobre muitas coisas e junto delas, sobre arte, que também podem ser entendidas como conteúdo. Porém, se pensamos que a arte demanda uma experiência¹, podemos perceber como ela tem se apresentado na educação, está mais para ensino como referencial sobre a arte do que para proposições ativas e/ou criativas, a fim de gerar significâncias atravessadas no convívio no chão da escola. A experiência pressupõe o sujeito como lugar da produção do conhecimento reverberado de atravessamentos e de transformações.
O chão da escola
o qual nos referimos é o da escola pública, municipal e estadual, as quais possuem públicos específicos, que em sua maioria configura-se nas origens de uma população empobrecida, que em sua condição, usualmente, está colocada distanciada dos museus, das galerias e dos espaços que são considerados portadores da arte
. Percebemos esse distanciamento ainda mais profundo quando voltamos o olhar para os interiores do país.
Se pensarmos que a situação geográfica de distância pode ter uma relação histórica de uma sociedade que desde sua reformação² definiu a quem a arte se destinava, podemos compreender que até os dias atuais os resquícios dessa longitude entre a arte e uma comunidade desvalida são presentes.
Sabemos, como afirma Ana Mae Barbosa quando se debruça sobre a história da arte na educação, que o intuito de criar um espaço para ensinar
arte era o de
[...] formar uma elite que defendesse a colônia dos invasores e que movimentasse culturalmente a Corte, enquanto que durante os primeiros anos da República, foi a necessidade de uma elite que governasse o país o que norteou o pensamento educacional brasileiro. (Barbosa, 2012, p. 16)
Percebemos que o intuito de criar para este país uma elite governante se deu na instauração de um cenário que se formou especificamente pela importação de artistas europeus e também a partir da criação da Academia Imperial de Belas Artes³, a fim de criar suas bases num conhecimento dominante, que sobrepôs um pensamento hegemônico a um fazer local que já havia posteriormente. Sobre isso, ainda nos inteira Barbosa (2012, p. 19), nossos artistas, todos de origem popular, mestiços em sua maioria, eram vistos pelas camadas superiores como simples artesãos
.
Se analisarmos tais informações, poderemos construir dois cenários: um que diz respeito ao que poderia ser considerado arte sob a égide de um pensamento hegemônico e outro a respeito da acesso à arte apenas por uma elite dominante, neste último quem participava da Academia era parte de uma aristocracia social, ou seja, um número incipiente de pessoas que tinham acesso a um determinado tipo de conhecimento sobre a arte, que se baseava em um saber predominante sobre os demais.
Os acontecimentos revelados pela história e pela realidade atual, que sofre dos seus resquícios que recai na arte e na educação, indicam que é preciso resistir e subverter. Nesse contexto, a resistência está colocada como possibilidade e necessidade de insistir para que a arte seja inserida de maneira integral a um campo frutífero na educação, e que seu acesso seja igualitário considerando os saberes locais.
Assim, questionamos: como pensar a arte na escola, se ainda persiste os resquícios de um ideal elitizado no que concerne ao campo da arte? Arte para quê? Arte para quem? Arte por quê? Anuncia-se um campo vasto sobre a colonização do fazer artístico e uma desobediência epistêmica que pulsa no âmago dos imensos brasis e suas monumentais variáveis. Quando chegamos numa encruzilhada, espaço de conflito, não há como não rumar outros horizontes. Anuncia-se, portanto, um giro decolonial sobre o fazer artístico e tal perspectiva aponta para necessárias mudanças paradigmáticas nos processos de ensino e, consequentemente, das diversas aprendizagens. Que pulsem novos saberes, outros olhares e que tenhamos entusiastas docentes prontos/as a emergir nesses campos de batalhas que é a Arte no currículo escolar. Que aleques já imersos possam emergir com suas experiências abrindo-se verdadeiramente aos anseios que palpitam reflexividade e ação tal qual nos postulou, desde o século passado, tantos autores estrangeiros, mas também nosso patrono Paulo Freire. Viva!!!
A contribuição desta coletânea não é dar respostas para determinada demanda, mas revisitar processos e experiências para subsidiar nosso fazer. Não se trata de método, mas colaborações com o que fazemos para repensarmos constantemente. Trata-se de apresentar práticas, processos e experiências contemporâneas de docentes inquietos em abrir as tessituras de suas trajetórias e pronúncias da arte no contexto da educação básica, sempre em tempos de crises e, recentemente, de distanciamento social.
Notas
1. Aqui a experiência é entendida sob os conceitos trazidos por Jorge Larrosa, especificamente no seu texto Experiência e Alteridade em educação que concerne à educação e ainda sob um ponto de vista filosófico de John Dewey no seu livro Arte como experiência.
2. O termo reformação é tomado aqui entendendo que a sociedade no nosso território não foi formada a partir da sua invasão em 1500, mas sim reformada sob o estabelecimento do poder e da violência sobre os povos que aqui já habitavam.
3. Concebida e instaurada no território nacional a partir de um Decreto em 1816 (Barbosa, 2012, p. 16).
1.
DIÁLOGO, INQUIETAÇÕES E EXPERIÊNCIAS DOCENTE NAS ARTES VISUAIS E NA DANÇA
Daniel Santos Costa
Tiago Samuel Bassani
Decidimos por tecer um diálogo sobre as inquietações que nos habitam a respeito da possibilidade de interações entre linguagens, especificamente sobre a Dança e as Artes Visuais, fruto de experiências de trocas e compartilhamentos na arte e na educação que tivemos desde muito tempo. Trocamos correspondências entre estados, casas, lugares de confinamentos e isolamentos, nos quais estavam contidos proximidades e distanciamentos; um perto-longe. Tal interação tornou possível por meio de articulações do pensamento e das inquietações, sobre o olhar do trabalho do professor que é circundado pelas políticas públicas e fundado na estruturação do ensino de arte nas escolas. Percebemos no decorrer do diálogo que somos permeados por tais campos e dos quais é difícil distanciar-se. Por certo, são questões que ecoa em muitos de nós, professores e que poderão alimentar outras inquietações, novos diálogos e experiências.
Tiago Bassani: Há muitas questões e proposições a respeito do trabalho de professores que são realizados em conjunto entre disciplinas diferentes ou até entre linguagens. Usa-se muitos termos como: trabalho por projeto, inter e transdisciplinares e, até como apresentado na BNCC (Base Nacional Comum Curricular) artes integradas. Será possível que a relação ou a integração de duas linguagens - aqui proponho pensar as artes visuais e a dança -, seja satisfatória? Sem que uma se preocupe com questões específicas em detrimento da outra? Seria possível pensarmos para além de um remendo e pensarmos numa real mistura que proporcione uma experiência que não delimite os campos da linguagem?
Daniel Costa: Acredito que as interações são possíveis e que aconteçam a todo momento em virtude do modo como docente se constitui. Há também a possibilidade do diálogo entre linguagens que sejam necessárias para o desenvolvimento de uma ou outra atividade. Entretanto, cabe ao docente especializado numa linguagem específica evidenciar e aprofundar as dimensões que os campos das Artes Visuais e da Dança possui. Tal como as Artes Visuais, a Dança também se constitui de múltiplas complexidades, o que nos permitiria identificar tal componente como Danças, no plural mesmo. Para a integração de duas linguagens precisaremos do diálogo não hierárquico entre estas linguagens, e, mais que isso entre docentes atuantes na educação básica com plano de ensino que seja pensado nas especificidades e nas possibilidades dos encontros. Ao longo do tempo, a experiência como docente polivalente (que ministra todas as linguagens da Arte) me mostrou as limitações deste tipo de atuação. A Arte precisa ser pensada como campo de conhecimento autônomo e que tenham suas especificidades resguardadas e que cada componente possa valer-se de estratégias eficazes para a formação dos estudantes da educação básica, distante das tentativas de interdisciplinaridade que tentam nos impor através de projetos e ideias rasas de interações de linguagens, especialmente por parte daqueles que nos chama sempre para enfeitar e tornar o projeto de outra área mais atraente. Com isso, podemos adentrar em outras discussões ao longo deste diálogo, mas no momento queria lhe perguntar sobre como pensar esse lugar de um docente com formação específica e que possa atuar na escola na sua linguagem específica. Quais políticas de formação pública poderão ser pensadas para ampliação dessa possibilidade olhando para o vasto território brasileiro e as diversas redes de educação, pública, privadas e filantrópicas?
Tiago Bassani: É preciso imaginar o vasto território brasileiro
para perceber que há profundas diferenças sociais, políticas e culturais, as quais fazem agir diferentes faces da educação. Na vastidão dos mapas, as escolas, principalmente as das redes públicas, carecem de estruturas; não só físicas; sabemos que os professores trabalham há muito tempo na polivalência. Rumo ao norte do país pude perceber, principalmente nos interiores dos estados, que os professores complementam suas cargas horárias com conteúdos de áreas completamente diferentes das suas de formação. Há cidades onde sequer existe um professor formado em alguma linguagem da arte. Isso deve também ao fato de que no país, ser professor não é considerado uma boa opção para ser
, e o fator determinante da escolha de ser muitas vezes é a baixa remuneração em contraposição à alta quantidade de trabalho e a responsabilidade que ao professor é delegada. Pensando na condição de trabalhos, sabemos que para um(a) professor(a) ter uma renda minimamente adequada ele(a) precisa trabalhar mais de um turno. Se ele(a) tiver vinte horas semanais de trabalho, leciona em entre treze e dezesseis turmas, com cerca de trinta estudantes. Isso porque no currículo a arte ocupa uma ou duas aulas semanais. É importante compreendermos tal cenário, uma vez que esta condição afeta diretamente em como as aulas serão ministradas. Podemos identificar que para que as escolas possam oferecer todas as linguagens é preciso repensar a estrutura da educação, que já foi reorganizada outras vezes, nenhuma se mostrou satisfatória, uma vez que não houve significativas mudanças. Para pensar em políticas de formação é preciso aceitar que a Educação precisa ser reestruturada, mas para isso é preciso investimento. Não consigo pensar em outra coisa, senão numa ampliação de investimento para que seja possível uma reestruturação que as redes necessitam há muito tempo. Agora, tendo em vista, a condição de trabalho que envolve sem fugas da hora-aula e de quantidades que estão expressas em tempos e espaços, você acha possível pensarmos em qualidade em relação ao conteúdo e condições de trabalho? E ainda, é possível pensar numa inter/transdisciplinaridade entre linguagens com tais condições?
Daniel Costa: Sua pergunta me indaga a pensar no necessário investimento a educação e da polêmica que envolve toda essa discussão, visto o caso da difícil aprovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), e as dificuldades impostas à sua implementação e as tantas tentativas de voltar-se a uma melhor estrutura para educação. Além disso, há uma estrutura de investimento na formação pessoal que demanda tempo, dinheiro e planejamento. O exercício da docência, especialmente o docente, servidor público, tem sido alvo constante de críticas e atravessamentos da incoerência social vivida. Minha dificuldade nessa articulação sobre investimento e qualidade está num lugar de perceber uma necessidade urgente de um plano de formação docente nas tantas iniciativas que patinam a muito tempo. O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) iniciou um desejo se incentivar e inovar esse projeto estimulando às práticas docentes para educação básica. Hoje, em virtude das mudanças de governanças vemos a tentativa deste projeto ser substituído por um novo modelo, a Residência Pedagógica. Há uma falta de diálogo crescente entre a Educação Básica e o Ensino Superior nas estratégias coletivas de formação e iniciação à docência. Hoje, sou docente num Colégio de Aplicação Federal, a Escola de Educação Básica da Universidade Federal de Uberlândia (Eseba-UFU) e, atualmente, ocupando a função de diretor. Há uma falta de perspectiva que possa clarear uma possibilidade de estimular, incentivar e propor práticas inovadoras de ensino por parte das diversas licenciaturas. Os Colégios/Escolas de aplicação tem por finalidade desenvolver práticas pedagógicas inovadoras, além de ser campo prioritário dos programas institucionais de iniciação à docência. Na prática, há um desinteresse de ambos os lados em tal desenvolvimento e percebo que o investimento financeiro é uma das possibilidades de implementação de tais realizações, mas enquanto não tivermos um plano de formação a docência para educação básica fortalecido em políticas públicas de Estado estaremos fadados aos populismo de governos e governos, uma mais outros menos, comprometidos com a educação básica. Tais atuações impactarão, sempre, o lado mais fraco que compõem o currículo escolar, a Arte e outras linguagens não instrumentais.
Tiago Bassani: Suas palavras fizeram emergir um pensamento sobre os lugares que colocam muito bem separados a Educação Básica da Educação Superior, todavia sabemos que são interdependentes. A formação em arte na educação superior, suas áreas e linguagens guardam um grande abismo entre a licenciatura e o bacharelado. Desde quando estive na graduação como estudante e agora como docente, percebo que a licenciatura sobrevive sempre em desvantagem, porque ainda sobressai um pensamento, no qual ser artista é mais glamuroso e mais interessante do que ser professor de arte. Sobre isso, me ocorre muito claramente de um trabalho do Ivald Granato (1977); que era um impresso com a seguinte frase Adote o artista, não deixe ele virar professor
. É precisamente contundente a mensagem que a frase carrega; e ela é capaz de gerar um descontentamento certeiro em um(a) professor(a). Já ouvi nos muitos corredores por onde circulei, que quando não se é um bom
artista, torna-se professor. Eu diria que todos deveríamos virar
professores, quem sabe, poderíamos compreender porque vemos mostras, exposições e espetáculos tão esvaziados ou cheios dos mesmos. Temos uma vala que separa a arte da comunidade e a possibilidade de criar uma ponte sólida com a arte na educação e vice e versa, constantemente é rebatida. Seguimos nesta tentativa. Também lembro da minha colação de grau, quando eu e outros cinco colegas fomos receber nossos certificados de licenciados, de uma turma de trinta. A frase de Granato também me coloca a pensar se é possível ser artista e ser professor concomitantemente, especificamente pensando nos professores que atuam na educação básica. A Rita Irwin (Dias; Irwin, 2013) nos mostra conceitualmente e ainda por suas experiências sobre o ser artista-pesquisador-professor e é uma abordagem muito significante, mas sempre me pego a pensar em como não ser engolido pelas atribuições do sistema da educação? Percebo que passo por extensas fases de suspensão na produção artística, porque a docência demanda um tempo/espaço, energia, que não tenho força na produção. Um embate constante entre ensinar-pesquisar-produzir, não nessa ordem, mas como compreender os ciclos que cada ação pode formar? Se