Um estudo do ciúme em Machado de Assis: as narrativas e os seus narradores
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Um estudo do ciúme em Machado de Assis - Darlan de Oliveira Lula
I. Os narradores do ciúme em Machado de Assis
O ciúme dói nos cotovelos
Na raiz dos cabelos
Gela a sola dos pés
Faz os músculos ficarem moles
E o estômago vão e sem fome
Dói da flor da pele ao pó do osso
Rói do cóccix até o pescoço
Caetano Veloso
É impossível compreender um século passado em sua plenitude. Ao falarmos, por exemplo, no século XIX, momento histórico fervilhante no cenário cultural brasileiro, principalmente em sua segunda metade, pensamos em importação de ideias, em reflexão sobre a nação, na abolição da escravatura, na presença de grandes intelectuais e escritores: Joaquim Nabuco, Taunay, José de Alencar, Castro Alves, José Veríssimo, Machado de Assis, entre outros.
Assim, ao nos reportarmos a esse século, levamos em conta o nosso repertório de leituras, as nossas experiências sobre os escritores desse período, tentando estabelecer um entendimento do que foi aquele momento, quais as características daquela sociedade, como ela refletia sobre a sua cultura, quais as ideologias presentes na comunidade, enfim, após um século e meio, carregados de pensamentos de nossa era, tentamos entender a segunda metade do século XIX, refletindo sobre ela à luz do nosso tempo, porém respeitando as particularidades daquele momento histórico. Assim é quando lemos narrativas desse período. Passamos a compreendê-las melhor quando mergulhamos na história dos comportamentos sociais do instante descrito.
Ao pensarmos na relação matrimonial, por exemplo, devemos levar minimamente em conta as regras do jogo
que, de lá para cá, tiveram mudanças em termos jurídicos. Para se ter em conta a complexidade do assunto, foi em 2003, com o início da vigência do novo Código Civil Brasileiro, em pleno século XXI, que diminuíram problemas discriminatórios em relação à mulher, ao seu papel na vida conjugal e, consequentemente, na sociedade. Antes da vigência do novo Código Civil (que substituiu o vetusto Código Civil de 1916), havia artigos que contrariavam o princípio da igualdade, tais como os que versavam sobre: o domicílio da mulher casada, a deserdação de filha desonesta que vivia na casa paterna, a chefia masculina da sociedade conjugal, o conceito de pátrio-poder (que conferia plenos poderes aos homens nas relações familiares; conceito diametralmente oposto ao atual poder familiar
que consta no atual Código Civil de 2002, onde os direitos e deveres são igualmente compartilhados entre os cônjuges) e a do marido na administração dos bens do casal, inclusive dos da mulher e, ainda, a anulação do casamento pelo homem se este viesse a descobrir o fato de a mulher já ter sido deflorada anteriormente ao matrimônio.
Nesse sentido, vivemos em um momento singular, em que os homens e as mulheres estão igualando os seus direitos não apenas no papel, mas também, paulatinamente, no âmbito ideológico, em que a sociedade brasileira começa a construir e a assimilar as tendências sociais e éticas ligadas aos gêneros, instaurando novas referências para as gerações futuras. Assim, se em nossa época estamos lidando com a condição da mulher na sociedade e com sua situação à luz do matrimônio, como seria essa relação no século XIX? Luis Filipe Ribeiro nos esclarece que, naquele século,
Na ausência, ainda, de um código civil, o direito de família é regulamentado pelas Ordenações Filipinas que, no essencial, reproduzem as normas ditadas pelo Concílio de Trento, no século XVI. Ali se reiterava a indissolubilidade do vínculo matrimonial, estabelecido pelo sacramento. Pelo Decreto de 3 de novembro de 1827, tornavam-se obrigatórias, no Brasil, as disposições do Concílio de Trento nas questões matrimoniais que só admitia a dissolução do casamento pela morte de um dos cônjuges. Nos casos de nulidade, por erro essencial de pessoa, o casamento e, portanto, o sacramento que o eterniza, é pura e simplesmente considerado inexistente (RIBEIRO, 2008, p. 417).
As regras do casamento eram similares às orquestradas pelo cristianismo, até porque as regras ditadas eram uma variante dos termos impostos pela Igreja daquele período. Soma-se a isso o fato de que havia no Brasil dos oitocentos um ambiente propício para a especulação matrimonial, isto é, o casamento era um recurso necessário para muitos homens ascenderem socialmente e se imporem diante dos dotes femininos – quantias generosas dadas pelos pais das noivas aos homens para eles poderem se firmar e iniciarem suas vidas de casados. O casamento passa a ser visto como uma corrida ao tesouro, ainda mais porque,
no mercado matrimonial desse então, com um desequilíbrio demográfico acentuado, a mulher tornara-se um bem extremamente valioso. No ano de 1850, o Rio de Janeiro conta com 205.906 habitantes, dos quais 120.730 eram homens e 85.176, mulheres. Ou seja, 58% de homens para 42% de mulheres. Essa escassez de mulheres agrava o mercado matrimonial (RIBEIRO, 2008, p. 119).
Havia mais homens que mulheres àquela época, sendo que, na maioria das vezes, eram os homens que iam à luta pelos corações e cofres das mulheres amadas e endinheiradas, cabendo, entretanto, acrescentar que elas detinham estratégia nesse jogo de poder que as colocava na situação de escolher os maridos, mesmo não sendo elas a darem o veredicto final. Não foi à toa, então, que muitas narrativas daquele período abordaram o assunto de diversas maneiras, mas sempre trazendo à tona a relação casamento-poder-dinheiro.
Em contrapartida, quando Luis Filipe Ribeiro analisa os romances de Machado de Assis, ele nos diz que o universo criado pelo discurso [de Machado] aborda o casamento por um outro viés: o do adultério. Não se trata mais das condições que conduzem ao casamento, mas do processo de sua vivência cotidiana
(RIBEIRO, 2008, p. 416). Assim, não importam mais as alianças econômicas, e sim a manutenção dos matrimônios, ainda que sob os auspícios do adultério. E entre homens e mulheres, os comportamentos diante de um adultério eram diferentes.
Um conto interessante de Machado de Assis que pode demonstrar uma das reações manifestadas por uma mulher enciumada e traída é A senhora do Galvão
(1884 – Gazeta de Notícias). Maria Olímpia, casada com o advogado Eduardo Galvão, não tem menos que 26 anos, e, já de início, temos um narrador que de chofre apresenta a situação de um modo um tanto quanto zombeteiro: Começaram a rosnar dos amores deste advogado com a viúva do brigadeiro, quando eles não tinham ainda passado dos primeiros obséquios
(ASSIS, 1997, vol. II, p. 462). Mesmo sendo, de início, um boato sem fundamento, logo depois, ele o sugere com o seguinte recurso retórico:
Com efeito, há vidas que só têm prólogo; mas toda a gente fala do grande livro que se lhe segue, e o autor morre com as folhas em branco. No presente caso, as folhas escreveram-se, formando todas um grosso volume de trezentas páginas compactas, sem contar as notas(ASSIS, 1997, vol. II, p. 463).
Em seguida, emenda com um bilhete anônimo entregue a Maria Olímpia. Ela, no exato instante da leitura, experimentava alguns xales, e o que sucedeu foi um aborrecimento leve, um misto de indiferença com uma acolhida parcial dos dizeres anônimos, chegando a uma vingança pecuniária de comprar dois xales, apesar de o marido haver recomendado cautela nos gastos.
O que se segue são descrições da personagem que demonstram um pouco sua personalidade frívola e afeita ao burburinho da vida exterior. Quando o marido se atrasa, ela se impacienta, mas tudo muda de figura quando ele a convida a irem ao teatro, o que vale uma nota:
Tenhamos pena da alma desta moça. Os primeiros acordes dos Lombardos ecoavam nela, enquanto a carta anônima lhe trazia uma nota lúgubre, espécie de requiem. E por que é que a carta não seria uma calúnia? Naturalmente não era outra cousa (ASSIS, 1997, vol. II, p. 464).
Para se tranquilizar ainda mais diante do acontecido, Maria Olímpia resolve aplicar um teste, consultando o marido a ver se ele convidaria a viúva. A resposta foi negativa e ela se contenta com o episódio. Percebe-se que a tentativa de desqualificar a carta anônima é mais forte que a ânsia pela verdade. Foram aos Lombardos e lá encontraram a viúva e sua mãe, mas a sensação entre os homens que Maria Olímpia causara fora o suficiente para fazê-la esquecer-se momentaneamente da presença da outra.
No entanto, apesar do coração generoso da esposa de Eduardo, as cartas anônimas se seguiram uma por semana, durante três meses. Desse feito, enquanto Maria Olímpia fazia de tudo para esquecer os ditos das cartas, o seu marido Galvão ficara sabendo que a mulher recebia cartas pelo correio. Vejamos como o narrador se posiciona:
Entretanto, constou ao marido que a mulher recebia cartas pelo correio. Cartas de quem? Esta notícia foi um golpe duro e inesperado. Galvão examinou de memória as pessoas que lhe frequentavam a casa, as que podiam encontrá-la em teatros ou bailes, e achou muitas figuras verossímeis. Em verdade, não lhe faltavam adoradores.
- Cartas de quem? repetia ele mordendo o beiço e franzindo a testa.
Durante sete dias passou uma vida inquieta e aborrecida, espiando a mulher e gastando em casa grande parte do tempo, no oitavo dia, veio uma carta.
- Para mim? disse ele vivamente.
- Não; é para mim, respondeu Maria Olímpia, lendo o sobrescrito; parece letra de Mariana ou de Lulu Fontoura...
Não queria vê-la; mas o marido disse que a lesse; podia ser alguma notícia grave. Maria Olímpia leu a carta e dobrou-a, sorrindo; ia guardá-la, quando o marido desejou ver o que era.
- Você sorriu, disse ele gracejando; há de ser algum epigrama comigo.
- Qual! é um negócio de moldes.
- Mas deixa ver.
- Para quê, Eduardo?
- Que tem? Você, que não quer mostrar, por algum motivo há de ser. Dê cá (ASSIS, 1997, vol. II, p. 466-467).
Ao contrário do que acontecera com Maria Olímpia, assim que Eduardo desconfiara dela, ele mudara sua rotina, ficando inquieto e aborrecido. A atitude da esposa diante de uma carta que não queria ler foi o suficiente para fazê-lo explodir em desconfianças, obrigando-a a lê-la em sua frente. É interessante percebermos o comportamento dos dois diante desse episódio de dúvidas: enquanto Maria Olímpia tenta resguardar o marido de sua própria pretensa traição, a mínima desconfiança produzida nele gera uma reação intempestiva e grosseira.
Já não sorria; tinha a voz trêmula. Ela ainda recusou a carta, uma, duas, três vezes. Teve mesmo a idéia de rasgá-la, mas era pior, e não conseguiria fazê-lo até o fim. Realmente era uma situação original. Quando ela viu que não tinha remédio, determinou ceder. Que melhor ocasião para ler no rosto dele a expressão da verdade? A carta era das mais explícitas; falava da viúva em termos crus. Maria Olímpia entregou-lha.
- Não queria mostrar esta, disse-lhe ela primeiro, como não mostrei outras que tenho recebido e botado fora; são tolices, intrigas, que andam fazendo para... Leia, leia a carta.
Galvão abriu a carta e deitou-lhe os olhos ávidos. Ela enterrou a cabeça na cintura, para ver de perto a franja do vestido. Não o viu empalidecer. Quando ele, depois de alguns minutos, proferiu duas ou três palavras, tinha já a fisionomia composta e um esboço de sorriso. Mas a mulher, que o não adivinhava, respondeu ainda de cabeça baixa; só a levantou daí a três ou quatro minutos, e não para fitá-lo de uma vez, mas aos pedaços, como se temesse descobrir-lhe nos olhos a confirmação do anônimo. Vendo-lhe, ao contrário, um sorriso, achou que era o da inocência, e falou de outra coisa (ASSIS, 1997, vol. II, p. 466-467).
Ao cabo da discussão, a única solução era a esposa ceder e aproveitar a situação para ler no rosto do marido a expressão da verdade
. No entanto, assim que ele pegou a carta, Maria Olímpia enterrou a cabeça na cintura
. Essa é a atitude de quem quer ver a expressão da verdade
? Tanto é assim que ela perdera o principal indício da culpa do marido: empalidecera lendo a missiva. Após o tempo suficiente para se recompor, ele proferiu algumas palavras, ao que a esposa, ainda de cabeça baixa
, mostrou-se temerosa de descobrir nos olhos dele a confirmação dos dizeres anônimos.
Assim, a atitude do narrador diante dos acontecimentos nos sugere muitas coisas: ele desenvolve a sua narrativa tentando nos colocar uma pulga atrás da orelha em relação às atitudes do personagem Eduardo; em nenhum momento o narrador expõe claramente a traição e nem a nega, ficando, porém, nos dizeres provocativos: redobraram as cautelas do marido
, a viúva, tendo notícia das cartas, sentiu-se envergonhada
.
Por fim, em uma noite, num baile em que a viúva era objeto de todas as admirações possíveis, e com a cabeça adornada por uma joia, pretendida por Maria Olímpia, surge o seguinte diálogo:
- Hoje quase não tenho tido tempo de estar com você, disse ela a Maria Olímpia, perto de meia-noite.
- Naturalmente, disse a outra abrindo e fechando o leque; e, depois de umedecer os lábios, como para chamar a eles todo o veneno que tinha no coração: - Ipiranga, você está hoje uma viúva deliciosa... Vem seduzir mais algum marido? (ASSIS, 1997, vol. II, p. 468).
A partir daí, deixaram de ser amigas. Neste conto, podemos perceber o comportamento de um narrador investigador do ciúme, mostrando-nos instâncias das personagens que nos levam a desenhar um quadro com base nas atitudes delas.
Um exemplo de ciúme que se situa sobre a figura masculina é o do conto Singular ocorrência
(1883 – Gazeta de Notícias), em que se percebe de imediato que o narrador sai de cena, distribuindo as vozes entre dois personagens que se encontram na rua, conversando à toa, quando avistam uma senhora entrando em uma igreja, logo virando ela a personagem principal de suas falas. Um deles diz conhecê-la. Era familiarmente chamada de Marocas, uma prostituta que virou os olhos e os sentidos de Andrade, um amigo de 26 anos de um dos interlocutores, meio advogado, meio político, nascido nas Alagoas, casado na Bahia, com uma mulher afetuosa, meiga, resignada, com uma filhinha, à época, de 2 anos. Assim que conheceu Marocas, a paixão foi fulminante, no fim de quinze dias amavam-se loucamente
. A moça passou a viver por ele e para ele. Os dois desfrutavam uma verdadeira lua de mel, até que um tal Leandro apareceu na história, contando ao Andrade, sem pretensões, coincidentemente, um caso fortuito e erótico, uma relação com a sua Marocas.
A dama vinha atrás dele, e mais depressa; ao passar rentezinha com ele, fitou-lhe muito os olhos, e foi andando devagar, como quem espera. O pobre-diabo imaginou que era engano de pessoa; confessou ao Andrade que, apesar da roupa simples, viu logo que não era cousa para os seus beiços. Foi andando; a mulher, parada, fitou-o outra vez, mas com tal instância, que ele chegou a atrever-se um pouco; ela atreveu-se o resto... Ah! um anjo! E que casa, que sala rica! Cousa papa-fina. E depois o desinteresse... Olhe, acrescentou ele, para V.Sa. é que era um bom arranjo.
Andrade abanou a cabeça; não lhe