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Filosofia com Poesia

2022, Filosofia com Poesia

Filosofia e poesia possuem uma forte relação de proximidade. A pergunta pelo Ser as une há muitos séculos. Os primeiros poetas do mundo helênico, os chamados aedos, cantavam, sob a inspiração das musas, versos que ecoavam o cerne do pensamento filosófico. Hesíodo, em sua Teogonia, escreve que “bem primeiro nasceu Caos". Mais do que um deus grego, a palavra kháos, em seu sentido originário, significa “abertura”, “espaço vazio”, “abismo”. Mas se kháos é o primeiro a nascer, a partir de onde ou no que se dá a “abertura”? O “vazio” se entenderia pelo “espaço” ainda inexistente? O quão profundo seria esse “abismo”? A poética filosófica, através da abordagem do sentir, estimula reflexões sobre a vida, a morte, a beleza e a própria existência. Nessa direção, reunindo ensaios filosóficos, prosas poéticas e poesias de diversos autores, a coletânea Filosofia com Poesia instiga a leitora e o leitor a questionar, refletir e, até mesmo, “filosofar” sobre essas temáticas, e a dizerem a si mesmos, como disse Brás Cubas pela pena de Machado de Assis21: “eu deixo-me estar entre o poeta e o sábio”. De forma distinta e sublime, a obra Filosofia com Poesia entrelaça esses dois mundos.

Filosofia com Poesia Filosofia com Poesia Amanda C. Schallenberger Schaurich Júlio da Silveira Moreira Junior Cunha Organizadores Primeira Edição E-book TOLEDO–PR 2022 © 2022 Instituto Quero Saber Gerente Editorial Junior Cunha Editora Adjunta Daniela Valentine Conselho Editorial Ana Karine Braggio Carlos Renato Moiteiro Eliana Nogueira Brito Saturnino José Francisco de Assis Dias Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Produção Editorial Amanda C. Schallenberger Schaurich Mônica Chiodi Instituto Quero Saber www.institutoquerosaber.org editora@institutoquerosaber.org Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) F488 Filosofia com poesia. / organizadores, Amanda C. Schallenberger Schaurich, Júlio da Silveira Moreira, Junior Cunha. 1. ed. e-book - Toledo, Pr.: Instituto Quero Saber, 2022. 244 p.: il; color. Modo de Acesso: World Wide Web: <https://www.institutoquerosaber.org/editora> ISBN: 978-65-87843-44-5 1. Filosofia. CDD 22. ed. 193 Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi – Bibliotecária CRB/9-1610 O teor da publicação é de responsabilidade exclusiva de seus respectivos autores. Ao manter a separação entre ciência e poesia, nossa cultura é tola, porque se torna míope para a complexidade e a beleza do mundo, reveladas por ambas. Carlo Rovelli Sumário Prefácio Por uma analítica ontológica: filosofia e poesia, unidas na pergunta pelo Ser.......................................................................................................................... 11 Amanda C. Schallenberger Schaurich, Júlio da Silveira Moreira & Junior Cunha Ensaios filosóficos “O mundo poderia ser tão belo!” Frankl e Van Gogh em face do sublime ........................................................................................................................ 27 Júlio da Silveira Moreira A questão filosófica brasileira — uma obra de arte ..................................43 André Luís Borges de Oliveira Vivência, experiência e narrativa a partir da filosofia de Walter Benjamin .................................................................................................................... 63 Cleiton Luiz Kerber “Mas para nós, a existência ainda é encantada”: sobre a existência, em Rilke e Heidegger .................................................................................................... 89 Daniel Rodrigues Ramos Filosofia com Poesia Prosas poéticas A dívida infinita da mulher artista.................................................................. 147 Talita Moreau Devaneios crônico-filosóficos ..............................................................................151 Arthur Alves Almeida Soares de Melo • A limpeza da casa em dois pra lá, dois pra cá ............................................ 151 • As goiabas do quintal da vizinha..................................................................... 154 • O que diria Espinosa sobre as Fake News.................................................... 156 O saber da vida se diz por meio de vibrações cósmicas ........................ 159 Jorge Luiz Domiciano Poesias Quatro poemas sobre poesia............................................................................. 165 Matheus Silveira de Souza Cosmopolitismo kantiano ................................................................................... 169 Carolina Moreira Paulsen............................................................................................. 169 Versos à contra-história da Filosofia — homenagem a Michel Onfray .......................................................................................................................... 171 André Pereira da Silva Essa tal filosofia ...................................................................................................... 173 Edy Braun Sobre os autores ................................................................................................... 237 Prefácio Por uma analítica ontológica: filosofia e poesia, unidas na pergunta pelo Ser Amanda C. Schallenberger Schaurich, Júlio da Silveira Moreira & Junior Cunha Filosofia e poesia possuem uma forte relação de proximidade. A pergunta pelo Ser as une há muitos séculos. Os primeiros poetas do mundo helênico, os chamados aedos, cantavam, sob a inspiração das musas, versos que ecoavam o cerne do pensamento filosófico. Hesíodo, em sua Teogonia, escreve que “bem primeiro nasceu Caos” 1. Mais do que um deus grego, a palavra kháos, em seu sentido originário, significa “abertura”, “espaço vazio”, “abismo”. Mas se kháos é o primeiro a nascer, a partir de onde ou no que se dá a “abertura”? O “vazio” se entenderia pelo “espaço” ainda inexistente? O quão profundo seria esse “abismo”? Tales de Mileto, Parmênides, Heráclito, Anaximandro e incontáveis outros filósofos pré-socráticos se dedicaram ao “problema da physis”, a pergunta pela arché (origem) de tudo o que existe. E não 1 Hesíodo, 2007, p. 109 (v. 116) Filosofia com Poesia podemos nos esquecer do célebre aforisma de Heráclito: “se ouvirem, não a mim, mas ao logos, provarão ser sábios se admitirem que tudo é um” 2 — que evoca outra questão primordial do pensamento filosófico: a querela da unidade versus multiplicidade. Mas a pergunta pelo Ser não é exclusividade dos gregos antigos. Mudam-se as maneiras de formular a questão ou as tentativas de respondê-la, é verdade, mas o anseio em tentar desvelar o mistério que encobre as origens de tudo, talvez seja um dado próprio e intrínseco do ser humano. Já na era cristã, por exemplo, o Apóstolo João escreveu que “no princípio era o verbo” 3. Aqui, “verbo” se aproxima do sentido originário da palavra grega logos: “palavra”, “discurso”, “razão”. Assim, as palavras de João ecoam os primeiros versículos de Gênesis, nos quais a “palavra” de Deus é a expressão de seu poder criador — como se vê no v. 3: “Disse Deus: Haja luz; e houve luz” 4. Mais à frente, a pergunta pelo Ser, e os modos de respondê-la, ganha um novo contorno. O ser humano passa a colocar o foco da questão sobre a sua própria existência. “Ser ou não ser, essa é que é a questão” 5, diz o nobre e melancólico Príncipe da Dinamarca. “Penso, logo existo” 6, responde Descartes. Já na contemporaneidade, fazendo eco às canções dos aedos, Camus publica o seu Mito de Sísifo, mais uma vez, reformulando a questão: “só existe um problema filosófico 2 Berge, 1969, p. 259. João, 1:1. 4 Gênesis, 1:3. 5 Hm. 3.1.58. 6 Descartes, 1996, p. 38. 3 12 Filosofia com Poesia realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia” 7. E Sartre também faz sua tentativa de respondê-la, a “existência precede a essência” 8, escreve o filósofo em o Existencialismo é um Humanismo. Heidegger, um dos mais importantes filósofos da contemporaneidade, em sua obra Ser e Tempo, também reformula e tenta responder à pergunta pelo Ser. Sob a influência de Husserl e com base na fenomenologia, Heidegger propõe a analítica existencial, ou ontologia fundamental, como um novo meio de investigar o Ser. Buscando ir além da metodologia investigativa das ciências naturais, que se volta para os entes e elege objetos para suas análises — uma perspectiva ôntica, portanto —, Heidegger pergunta pela essência do Ser de forma ontológica: A analítica tem a tarefa de mostrar o todo de uma unidade de condições ontológicas. A analítica como analítica ontológica não é um decompor em elementos, mas a articulação da unidade de uma estrutura. Este é o fator essencial no meu conceito “analítica do Dasein”9. Uma vez que sabemos que, em Ser e tempo, Heidegger reformula a pergunta pelo Ser e que ela é feita de forma ontológica: quem profere e a quem é dirigida a questão? Ora, quando colocamos em foco a totalidade dos entes, um se destaca. Aquele que não podemos, a rigor, definir como os outros entes: o ser humano. 7 Camus, 2014, p. 17. Sartre, 1978, p. 5. 9 Heidegger, 2001, p. 142. 8 13 Filosofia com Poesia Não há ente que se compare ao ser humano, seu modo de existência o distingue das demais coisas existentes, de modo que nem mesmo podemos coisificá-lo, fazer dele um mero objeto. O ser humano é, em si mesmo, existência enquanto tal. O próprio Ser, ou, na linguagem heideggeriana, o Dasein, [...] o existir humano em seu fundamento essencial nunca é apenas um objeto simplesmente presente num lugar qualquer, e certamente não é um objeto encerrado em si. Ao contrário, este existir consiste de “meras” possibilidades de apreensão que apontam ao que lhe fala e o encontra e não podem ser apreendidas pela visão ou pelo tato [...]. O que o existir como Da-sein significa é um manter aberto de um âmbito de poder-apreender as significações daquilo que aparece e que se lhe fala a partir de sua clareira. O Da-sein humano como âmbito de poder-apreender nunca é um objeto simplesmente presente. Ao contrário, ele não é de forma alguma e, em nenhuma circunstância, algo passível de objetivação 10. Um dos traços característicos fundamentais (ou um existencial) que diferencia o Dasein dos demais entes é sua abertura para o mundo. Diferente dos demais entes, o Dasein é sempre lançado no mundo, de modo que é um ser-no-mundo e, inevitavelmente, não se encerra em si mesmo, não se limita a si próprio. Mas, assim como modifica o mundo ao agir, igualmente, está sujeito a modificações ao agir no mundo. Trata-se de um ser aberto. O Dasein é lançado ao mundo como nada. Possui suas características fundamentais (ou seus existenciais), mas carece de uma 10 Heidegger, 2001, p. 33. 14 Filosofia com Poesia definição ou um fim específico — como se dá com outros entes, que são delimitados conforme sua natureza, no caso de seres vivos; ou conforme suas utilidades, no caso de objetos, por exemplo. Em razão disso, o Dasein é sempre um projeto. Dada a ausência de uma definição ou de algo que o defina, o Dasein está lançado no mundo como um projeto, possui uma quantidade inumerável de possibilidades diante dele. Desse modo, está constantemente colocado diante de escolhas que o obriga a projetar sua existência, que não se efetiva no pormenor de seu ser, isto porque o Dasein é, também, sempre um ser-para-o-outro. O Dasein é lançado ao mundo e está aberto a ele e aos outros seres humanos. Desse modo, a relação do Dasein com o mundo e com os outros seres humanos é distinta da relação dos entes com o mundo e com os outros entes. Há uma relação de afetividade do Dasein com o espaço onde ele está inserido e com os demais seres humanos. A ligação afetiva e a sua característica de projetar-se, de estar aberto a possibilidades, complementa mais um de seus existenciais: preocuparse e cuidar do espaço onde está inserido e dos demais seres humanos. E, assim como é aberto ao espaço, o Dasein é também aberto ao tempo, o qual “se mostra como a chave para o sentido de ser” 11. O passado, o presente e o futuro lhe afetam e exercem influência em seu projetar-se. O ser-no-mundo nunca é estático, estagnado, objetificado, 11 Gorner, 2017, p. 25. 15 Filosofia com Poesia mas ser em projeto, em processo. Ele vem a si, é e está por vir — formando uma temporalidade. O Dasein está voltado para futuro, mas, simultaneamente, está ligado ao seu passado e preso ao seu presente. De modo que todos os seus projetos estão sempre ligados ao passado, ao presente e ao futuro. Este último revela ao Dasein mais um de seus existenciais: ser-paramorte. Quando o Dasein se volta para o futuro, percebe que a única possibilidade inexorável é que sua existência possui um inevitável fim. O fim inevitável, no entanto, não é um convite à resignação. O Dasein é um Ser para morte, o que significa, também, estar aberto para a vida. Estar aberto para contemplar “o ocaso incandescente e tenebroso, com todo o horizonte tomado de nuvens multiformes e em constante transfiguração, de fantásticos perfis e cores sobrenaturais”, mas, também, “os desolados barracos cinzentos do campo de concentração e a lamacenta área onde é feita a chamada dos prisioneiros” 12. Júlio da Silveira Moreira, no primeiro texto da coletânea, mostranos que “mesmo nas situações mais difíceis, como estar dentro de um trem, sendo transportado de um campo de extermínio a outro, onde possivelmente será levado diretamente às câmaras de gás”, ou “nos momentos de maior criação, em que se parece que alguém tecla os dedos do escritor; que alguém fala pela boca do orador; que ‘os quadros 12 Frankl, 2020, p. 58. 16 Filosofia com Poesia pintam a si mesmos’; que os instrumentos musicais choram, roncam, gritam”, o Ser se desvela na inconstância multiforme do real. Não podemos esquecer que a pergunta pelo Ser está contida no fazer poético, no fazer filosófico, na afirmação poético-filosófica “O mundo poderia ser tão belo!”, pois está aí o paradoxo: o “poder ser” integra a existência, juntamente com o “ser” e o “dever ser”’. Ser para a morte, estar aberto para a vida, é também estar em face do sublime, assim, como estiveram Frankl, Van Gogh, outros tantos antes deles e muitos outros depois. Machado de Assis, Augusto dos Anjos, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, por exemplo, são autores que expressaram intuições metafísicas pelo viés literário 13. Ah, então quer dizer que os brasileiros também se laçam no fazer poético-filosófico? Ora, basta ler O Alienista de Machado, a Antologia Poética de Augusto, o Um sopro de vida de Clarice, a Terceira Margem do Rio de Guimarães para ver que sim. Um absoluto e enfático sim! Há, ainda, Farias Brito, Lima Barreto, Djamilla Ribeiro e outros tantos brasileiros que também se colocam às voltas da pergunta pelo Ser. No segundo texto da coletânea, André Luís Borges de Oliveira coloca em voga a questão filosófica brasileira — uma verdadeira obra de arte. É mais do que certo, portanto, que o Brasil é “gigante pela própria natureza” e “em teu seio” ostenta narradores de vivências e 13 Margutti, 2011. 17 Filosofia com Poesia experiências mil, como Graciliano Ramos, Lygia Fagundes ou Milton Hatoum. Mas, infelizmente, “são cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente”, escreve o filósofo Walter Benjamin 14. No terceiro texto da coletânea, Cleiton Luiz Kerber traz a lume “o processo de narrativa, entendido como uma forma de narrar a vivência carregada de sentido, elevado por Walter Benjamin à categoria de experiência e, sendo uma experiência, relacionando-se com a literatura”. São nossas vivências e experiências, narradas ou não, que em grande parte dão sentido à nossa existência, ao nosso ser. Nos tornando próximos daquilo que nos é mais íntimo. Mas somente aqueles que travam uma luta de vida e morte em busca do sentido do existir, podem dizer algo de essencial a respeito da existência: os que se lançam no fazer poético-filosófico. Daniel Rodrigues Ramos, no quarto texto da coletânea, destaca que como “tudo que é essencial ao homem, a poesia (res)guarda, sob a aparência de inutilidade, ineficácia e inocência, algo decisivo e perigoso 15: um espaço essencial de manifestação de sua existência e, assim, de decisão sobre seu destino histórico”. O fazer poético-filosófico desvela o encanto da existência, Rilke e Heidegger que o digam! Nas últimas décadas, a pergunta pelo Ser foi reformulada novamente. O Ser-mulher também passou a ocupar o foco da questão. Não que, antes, as mulheres não se colocassem às voltas com a questão 14 15 1994, p. 197. Heidegger, 1997, p. 128-133. 18 Filosofia com Poesia do Ser, mas nem sempre a questão do Ser comtemplou o feminino, perguntou pelo Ser-mulher ou questionou o sentido do existir-mulher — lembrando, por exemplo, de Simone Weil e Edith Stein. E há distinção entre o Ser-homem e o Ser-mulher? A resposta é um infeliz e sonoro sim, pois toda mulher nasce “herdeira de uma dívida, uma dívida infinita, passada de geração em geração, sempre atualizada, recalculada para o seu tempo social e histórico”, escreve Talita Moreau, em seu instigante texto que abre a seção de prosas poéticas. De prosa em prosa, passamos aos devaneios crônico-filosóficos de Arthur Alves Almeida Soares de Melo, que na relativamente simples tarefa da limpeza da casa em dois pra lá, dois pra cá, se dá conta que “o que é complexo pode ser reduzido a partes simples e claras e assim inteligíveis”. Sem dúvida, o mesmo vale para as goiabas do quintal da vizinha. No campo da imaginação, entre um café e outro, Espinosa não hesitaria em exclamar que as goiabas do quintal da vizinha também são modos da mesma substância e que as Fake News não passam de “informações do campo do ‘ouvi dizer’”. De todos os modos, “há coisas na vida que não podem ser explicadas” — ou como diria Hamlet: “Há mais coisas, Horácio, em céus e terras / Do que sonhou nossa filosofia” 16. Aliás, “se olhamos com atenção, veremos que quase nada na vida é completamente explicável”. 16 Hm. 1.1.172-173. 19 Filosofia com Poesia Para Jorge Luiz Domiciano, no texto que encerra a seção de prosas poéticas, o saber da vida se diz por meio de vibrações cósmicas. Mas talvez seja “só mais um desvario” (ou não). A terceira seção da coletânea é formada por quatro poesias. Na primeira delas, Matheus Silveira de Souza mostra que a poesia “carrega tamanha potência de significação da existência que é capaz de criar mundos externos e internos pela linguagem. Sublimar as inevitáveis dores presentes na vida. Diluir e tornar mais leves as angústias que presenciamos”. Carolina Moreira Paulsen, na segunda poesia, faz um apelo ao cosmopolitismo kantiano como “o plano da Providência. Destino do gênero humano, que após tantas guerras, calamidades e atrocidades, encontraria no cosmopolitismo a constituição perfeita, a paz, a mútua beneficência”. Na terceira poesia, André Pereira da Silva faz uma homenagem a Michel Onfray compondo versos à contra-história da Filosofia. Bradando por “uma Filosofia feita por seres livres, libertinos e libertários. Uma filosofia que dance alegre e que em sua companhia possamos seguir livres da retórica apodrecida, dos que aprenderam a servir”. E Essa tal filosofia, de Edy Braun, conclui a coletânea, mas não lhe dá fim, pois para o “Ser poder Ser, para o vir acontecer, o vir a Ser deve ser um eterno retorno”. Fazendo eco a Teogonia de Hesíodo, a coletânea Filosofia com Poesia é um kháos. Uma abertura a reflexões, percepções e afetos. Assim, se Spinoza estiver correto em sua afirmação 20 Filosofia com Poesia de que “tudo o que é precioso é tão difícil como raro” 17, nossos sentidos devem estar sempre aguçados para apreendermos a beleza de Ser. “Apreensão pelos sentidos” ou “percepção” é o sentido originário da palavra Estética, que provém do grego aisthesis 18. A palavra Estética foi primeiro utilizada por Alexander Baumgarten em 1750, a partir da expressão épistemé aisthetikê. Desde a formulação do termo, essa disciplina filosófica se voltava para o conhecimento sensorial: “as representações obtidas através da parte inferior da faculdade cognitiva são sensitivas” 19. Essas representações se dão no sujeito como sensações, e geram afetos. É poético provocar afetos, e é sumamente poético provocar afetos muito intensos. Assim, O discurso sensível perfeito é o POEMA; O conjunto das regras às quais o poema deve se submeter é a POÉTICA; A ciência da poética é a POÉTICA FILOSÓFICA; A aptidão para elaborar um poema é a arte da POESIA; Aquele que possui esta aptidão é um POETA 20. A poética filosófica, através da abordagem do sentir, estimula reflexões sobre a vida, a morte, a beleza e a própria existência. Nessa direção, reunindo ensaios filosóficos, prosas poéticas e poesias de diversos autores, a coletânea Filosofia com Poesia instiga a leitora e o leitor a questionar, refletir e, até mesmo, “filosofar” sobre essas temáticas, e a dizerem a si mesmos, como disse Brás Cubas pela pena 17 Spinoza, 2019, p. 238. Almeida, 2012, p. 385. 19 Baumgarten, 1993, p. 12. 20 Idem, p. 13. 18 21 Filosofia com Poesia de Machado de Assis 21: “eu deixo-me estar entre o poeta e o sábio”. De forma distinta e sublime, a obra Filosofia com Poesia entrelaça esses dois mundos. Boa leitura! Agosto de 2022 Referências Almeida, Aires. Estética e Filosofia da Arte. Galvão, Pedro. et. al. Filosofia: uma introdução por disciplinas. Lisboa: Edições 70, 2012. Assis, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 23. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998. Baumgarten, Alexander Gottlieb. Estética: a lógica da arte e do poema. Rio de Janeiro: Vozes, 1993. Berge, Damião. O Logos Heraclitiano: introdução ao estudo dos fragmentos. Rio de Janeiro: INL – Instituto Nacional do Livro, 1969. Benjamin, Walter. O narrador. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994b. Bíblia. Versão Almeida. São Paulo: Mundo Cristão, 1994. Camus, Albert. O Mito de Sísifo. 11. ed. Rio de Janeiro: Record, 2014. Descartes, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 21 1998, p. 19. 22 Filosofia com Poesia Frankl, Viktor Emil. Em busca de sentido. Um psicólogo no campo de concentração. 51. ed. Petrópolis: Vozes, 2020. Gorner, Paul. Ser e Tempo: uma chave de leitura. Petrópolis: Vozes, 2017. Heidegger, Martin. Hölderlin y la esencia de la poesia. Arte e Poesia. México: Fundo de Cultura Econômica, 1997. Heidegger, Martin. Ser e Tempo. 10. ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2015. Hesíodo. Teogonia: a origem dos deuses. 7. ed. São Paulo: Iluminuras, 2007. Margutti, Paulo. A religiosidade mística em Wittgenstein. IHU On-Line, nº 362, 23 mai. 2011. Disponível em: www.ihuonline.unisinos.br/artigo/3879paulo-margutti-2. Acesso em: 14 abr. 2022. Sartre, Jean-Paul. Existencialismo é um Humanismo. São Paulo: Abril Cultura, 1978. Shakespeare, William. Tragédias e comédias sombrias. São Paulo: Nova Aguilar, 2016. Spinoza, Benedictus de. Ética. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. 23 Ensaios filosóficos “O mundo poderia ser tão belo!” Frankl e Van Gogh em face do sublime Júlio da Silveira Moreira Agora eu entendo O que você tentou me dizer E como você sofreu por sua sanidade E como você tentou libertá-los Eles não te ouviam, não sabiam como Talvez agora eles te ouçam Don McLean A história dos campos de extermínio nazistas durante a Segunda Guerra Mundial é amplamente conhecida. Que chocantes são as imagens de homens e mulheres raquíticos e amontoados em beliches, entre 4 e 5 em cada cama, onde só se podem ver suas cabeças e seus pratos servindo de travesseiro. Seus corpos repousavam nesses barracões depois de longas jornadas de trabalhos forçados, cavando túneis, construindo estradas e removendo blocos de gelo. Onde, a cada novo dia, ser eleitos para os trabalhos forçados representava a salvação Filosofia com Poesia de suas vidas, e permitir-se adoecer representava o risco de ser escolhido para a aniquilação. Imagem 1 — Auschwitz-Birkenau, por Frederick Wallace: “As it looked on the 60th anniversary of liberation on January 28th, 2005”. Fonte: unsplash.com/photos/nzy7affZEEw. Em um cenário assim, Viktor Frankl 1 narra essa passagem: Outra vez, à noitinha, estávamos estendidos no chão de terra do barracão, mortos de cansaço, o prato de sopa na mão, quando entrou um companheiro correndo e mandou-nos depressa para a área de chamada da turma, apesar de toda a nossa fadiga e do frio lá fora, só para não perdermos uma visão magnífica do pôr do sol. Vimos, então, o ocaso incandescente e tenebroso, com todo o horizonte tomado de 1 2020a, p. 58. 28 Filosofia com Poesia nuvens multiformes e em constante transfiguração, de fantásticos perfis e cores sobrenaturais, desde o azul cobalto até o escarlate sangue, contrastando pouco mais abaixo com os desolados barracos cinzentos do campo de concentração e a lamacenta área onde é feita a chamada dos prisioneiros, em cujas poças ainda se refletia o céu incandescente. E alguém exclamou após alguns minutos de silêncio arrebatado: “O mundo poderia ser tão belo!”. As palavras acima bem poderiam representar uma pintura. E são de fato uma peça literária de enorme valor, considerando o contexto em que essa cena foi vivida pelo narrador. Qualquer tentativa de reproduzir ou explicar esse “quadro” terminaria por diminuir o conteúdo que ele já possui, pois, como diz Goethe 2, “a arte é uma mediadora do indizível”. Tentar extrair uma “ideia” do belo é tão fugaz como tentar explicar o sublime; buscar um “entendimento” é como querer mediar “o que há de mais nobre com o que há de mais ordinário”. Rudolf Otto 3 confirma essa dimensão indizível do sublime/excelso (das Erhabene): Essa harmonia de contrastes no teor e na qualidade do mistério que tentamos e não conseguimos descrever pode ser vagamente insinuada por uma correspondência oriunda não da religião, mas da estética, embora seja apenas pálido reflexo do nosso objeto e em si mesmo seja mal definível: o excelso [das Erhabene]. Esse sublime pode ser sentido na definição de mysterium tremendum et fascinans, um evento fora do domínio do sujeito, terrível e fascinante ao mesmo tempo. 2 3 2005, p. 257. 2007. 29 Filosofia com Poesia O narrador da cena inicial constrói a imagem pelo próprio testemunho — na qualidade de quem estava presente na experiência. Essa passagem é parte de um relato autobiográfico (que o autor, na qualidade de cientista da medicina, chama de um estudo psicológico — sobre si mesmo). Nesse capítulo, relata várias situações em que o belo arrebatou o olhar dos prisioneiros mesmo nas situações mais difíceis, como estar dentro de um trem que os transportava de um campo de extermínio a outro, onde possivelmente seriam levados diretamente às câmaras de gás... Certa vez, no transporte de prisioneiros de Auschwitz para o campo de concentração na Baviera, estávamos de novo olhando por entre as grades da abertura de um vagão. Quem tivesse visto nossos semblantes arrebatados, a contemplar as montanhas de Salzburgo, cujos picos resplandeciam as cores rubras do sol poente, jamais acreditaria tratar-se de rostos de pessoas que nada mais esperavam da vida 4. 4 Frankl, 2020a, p. 57. 30 Filosofia com Poesia Imagem 2 — Paisagem de Salzburgo, por Kateryna, publicada em 2020. Fonte: unsplash.com/photos/86CYiW-WP1g. Analisando os estados psíquicos no aprisionamento, o autor mostra um processo de interiorização, um voltar-se para si mesmo, recordando-se de coisas corriqueiras do seu passado, como “recurso para escapar do vazio, da desolação e da pobreza espiritual de sua existência atual” 5. Esse processo pode resultar na “mais viva percepção da arte ou da natureza” 6. Como é possível que o voltar-se para o interior permita uma percepção mais sensível do mundo “exterior” (a arte e a natureza)? De 5 6 Idem, p. 57. Idem, p. 57. 31 Filosofia com Poesia acordo com a fenomenologia de Husserl, embora a qualidade do belo seja inerente à coisa, a sua percepção é um ato do indivíduo, como “ser aberto ao mundo” na expressão de Scheler, ou como explica Ales Bello 7: “todos têm e operam com a percepção, a recordação, a imaginação, a fantasia e a capacidade de refletir… Nem todos ativam esses atos em um dado momento, porém, potencialmente, todos eles estão em cada um dos seres humanos”. Também Harada 8 nos ajuda a responder: A reflexão é um voltar-me sobre mim mesmo, não para julgar e moralizar meus pensamentos, atos ou sentimentos, mas sim para aprender a ver a realidade na sua riqueza e complexidade. É portanto um exercício de intuição, isto é, um exercício para adquirir um olhar mais profundo da realidade em mim. Em Psicoterapia, Arte e Religião 9, Frankl relata o caso de uma paciente em busca de sentido em sua vida pessoal e profissional, estancada em crises e vazio existencial, que vai, ao longo da terapia, liberando sua criatividade artística na pintura e seu reencontro com o sagrado. Nesse processo, através de exercícios sistemáticos de relaxamento (uma técnica elaborada pelo psiquiatra alemão J. H. Schultz, chamada de treinamento autógeno), a paciente trazia sua consciência para si, deixando fluir sua intuição nas pinturas. Em momentos de crise, insistia por trazer à tela as imagens que lhe ocupavam os sonhos: “Por que não posso fazê-lo? Provavelmente, 7 2006, p. 50. 2021, s/p. 9 2020b. 8 32 Filosofia com Poesia porque quero fazê-lo” 10. Em outro momento relatado, estava ocupada em afazeres pessoais (receber convidados e atender o telefone), e aproveitava para pintar nos intervalos – quando se encontrou em sua plena ação criativa: “a uma louca velocidade, ‘os quadros pintaram a si mesmos’. Entusiasticamente feliz. Logo que fecho os olhos, uma imagem vem atrás da outra; memórias e novas pinturas de coisas vistas há pouco” 11. O fenômeno percebido pela artista é semelhante às atividades artísticas e criativas que surgem por inspiração. Nos momentos de maior criação, parece que alguém tecla os dedos do escritor; alguém fala pela boca do orador; “os quadros pintam a si mesmos”; os instrumentos musicais choram, roncam, gritam. Na doutrina cristã, é a clara evidência do Espírito Santo. Na Logoterapia, é a libertação da dimensão noética do humano, a manifestação do inconsciente espiritual: “a antecipação espiritual ocorre num ato de ‘visão’. Assim, pois, a consciência se revela como função essencialmente intuitiva” 12. As cenas que arrebatavam o olhar dos prisioneiros tiveram esse significado porque remetiam a algo que já estava dentro deles. Aquelas visões comunicavam com algo em um nível profundo de sua consciência. Pois “a alma se alegra e se reconhece em algo que lhe é congênito, ou seja, que tem a mesma gênese sua, como princípio; pois ela mesma é da natureza divina das coisas que sempre são” 13. 10 Frankl, 2020b, p. 179 Idem, p. 180. 12 Frankl apud Peter, 1999, p. 65. 11 13 Plotino, 2021, p. 109. 33 Filosofia com Poesia Seja o pôr do sol radiante sobre os barracões cinzentos, sejam as montanhas vermelhas vistas de dentro de um trem pavoroso, ambas imagens são contrastantes, contraditórias, paradoxais — tal qual a vida mesma nos campos de extermínio (ou em situações-limite). Frankl 14 ao lembrar de outras situações, como as funções teatrais dentro dos barracões e um companheiro que, na distribuição da sopa, subia em um tonel e cantava música lírica, reconhece o paradoxo: a experiência ligada de alguma forma à arte “provinha antes do tremendo contraste entre o que era apresentado e o pano de fundo da desolada vida no campo”. Esses contrastes estão relacionados ao modo próprio do desenvolvimento humano, na explicação da logoterapia. Assim define a noodinâmica, como tensão entre um sentido a ser realizado e a pessoa que deve realizá-lo — diferente das teorias motivacionais baseadas na paz interior. Viver uma realidade desafiadora está no cerne da busca por sentido, que é o motor da saúde mental. A logoterapia se baseia numa filosofia de vida explícita e muito próxima das filosofias existencialistas. A busca por sentido na vida define as ações humanas mais que o princípio de prazer e a vontade de poder, e se funda no binômio liberdade e responsabilidade. Assumir a responsabilidade diante da vida repercute numa tensão interior que mira não no conformismo com o presente, mas na realização daquilo que deveria ser. “Se tomarmos o homem como ele é, nós o tornaremos pior; se 14 2020, p. 61. 34 Filosofia com Poesia tomarmos o homem como ele deve ser, nós o ajudaremos a tornar-se o que ele pode ser” 15. Esse sujeito com uma história em constante desenrolar-se, aberto ao mundo, não se realiza numa qualidade de coisa, mas sim nas suas potencialidades, é o “ser-aí”, o “Dasein”, na maneira como Heidegger compreende o humano. Na frase “o mundo poderia ser tão belo!” há um paradoxo, pois os que a proferem já estão contemplando a beleza. O poder-ser belo se referia a um anseio de que sua condição de presos no campo de extermínio fosse outra. Apesar daquela explosão de cores que vinha do céu, os corpos dos prisioneiros estavam condicionados ao cinza lamacento dos barracões. O “poderia” representa o objetivo, a meta a se alcançar fora dali, após a libertação: “aqueles que sabiam que havia uma tarefa esperando por eles tinham as maiores chances de sobreviver” 16. O “poder ser” integra a existência, juntamente com o “ser” e o “dever ser”. Como um vir-a-ser, ou um ser-aí, reflete a autotranscendência humana, que Frankl encontrou como a chave para a sobrevivência no campo: encontrar o sentido em sua vida apoiandose no amor daqueles que o esperam do lado de fora, e relembrar os versos de Goethe, de que o homem se define por suas potencialidades, pelo seu vir-a-ser. Vincent Van Gogh é conhecido mundialmente por quadros que marcam o conceito de arte moderna, e também por sua biografia, sua vida intensa e seus sofrimentos. As circunstâncias controvertidas de sua 15 16 Goethe, apud Frankl, 2020b, p. 32. Frankl, 2020a, p. 129. 35 Filosofia com Poesia morte e os dois anos que a antecederam, incluindo sua automutilação e internações, colocam em evidência um ser humano em sofrimento mental, lutando pela sobrevivência material e sofrendo hostilidade de vizinhos. Frankl alerta, em seus textos sobre arte e psiquiatria, que não se deve relacionar a obra de um artista a seu estado mental, nem para justificar a grandeza de uma obra numa psicose, nem para, ao contrário, fazer diagnósticos a partir de sua obra: “assim como não se pode atribuir à doença como tal qualquer energia criativa, não se poderia tampouco opor a realidade de uma doença mental ao valor artístico de uma criação” 17. Por outro lado, é possível que, em algumas situações, o conflito com uma situação de sofrimento mental pode levar o sujeito a realizar o máximo em energia criativa. A leitura atenta dos escritos confidenciais de Van Gogh, publicados em centenas de cartas enviadas a seu irmão Théo, além de sua irmã, mãe e amigos, mostram uma pessoa estudiosa, metódica, com formação em disciplina religiosa, dedicada ao trabalho da arte, e com profundas reflexões sobre o sentido da vida. Sua técnica, desenvolvida em uma curta carreira, inovou em conceitos de cores e movimentos, e captou através do conceito de turbulência os movimentos mais sutis da natureza. Assim continuo sempre entre duas correntes de ideias. A primeira: as dificuldades materiais, virar e tornar a se virar para se sustentar. A seguir: o estudo da cor. Continuo a ter sempre a esperança de 17 Frankl, 2018, p. 158. 36 Filosofia com Poesia encontrar aí mais alguma coisa. Exprimir o amor de dois namorados pelo casamento de dois complementares, sua combinação e suas oposições, as vibrações misteriosas dos tons aproximados. Exprimir o pensamento de uma cabeça pela irradiação de um tom claro num fundo escuro. Exprimir a esperança por alguma estrela. O ardor de um ser pelo brilho de um pôr de sol. Certamente não se trata aqui de ilusão realista, mas não são coisas que realmente existem? 18 Em uma carta datada de 1885, reconhece sua vulnerabilidade, expressa sentimentos de tristeza em uma paisagem de inverno e observa a vida dura dos camponeses. Ao mesmo tempo, relata sua profunda relação de aprendizagem com a natureza e critica os especialistas em arte que vivem nas grandes cidades em salões fechados e se distanciam da natureza como fonte de inspiração. Ressalta também sua determinação em seguir seu trabalho apesar do julgamento dos outros: E esta é a razão pela qual digo a meu próprio respeito: se não valho nada agora, não valerei mais no futuro, mas se eu valer alguma coisa mais tarde, é porque também valho alguma coisa agora. Pois o trigo é trigo, mesmo que algumas pessoas da cidade no início o tomem por capim e vice-versa 19. Essa aguda percepção do desenvolvimento humano, tão próxima à visão da Logoterapia, Van Gogh 20 já expressava sete anos antes, em uma carta de 1878, quando analisava a frase “nós somos hoje o que éramos ontem”: 18 Van Gogh, 1997, p. 272. Van Gogh, 1997, p. 138. 20 1997, p. 28. 19 37 Filosofia com Poesia Aquele que vive sinceramente e encontra aflições verdadeiras e desilusões, e que jamais se deixa abater por elas, vale mais que os que sempre vão de vento em popa, e que conheceriam uma prosperidade apenas relativa. […] A partir do momento em que nos esforcemos em viver sinceramente, tudo irá bem, mesmo que tenhamos inevitavelmente que passar por aflições sinceras e verdadeiras desilusões; cometeremos provavelmente também pesados erros e cumpriremos más ações, mas é verdade que é preferível ter o espírito ardente, por mais que tenhamos que cometer mais erros, do que ser mesquinho e demasiado prudente. Observemos a semelhança com as palavras de Frankl 21, demonstrando a aproximação entre ambos com uma consciência de liberdade/responsabilidade e tensão criadora da existência humana: A consciência de qualquer pessoa, assim como qualquer coisa humana, está sujeita ao erro; mas isto não exime o homem de sua obrigação de obedecer a ela - a existência envolve o risco do erro. O ser humano deve arriscar-se a se comprometer com uma causa que pode não ser digna de seu compromisso. Talvez meu compromisso para com a causa da logoterapia seja equivocado. Mas eu prefiro viver num mundo em que o homem tenha o direito de fazer escolhas, mesmo que sejam erradas, a viver num mundo em que não haja nenhuma escolha disponível. Considerado o seu último trabalho e um dos mais conhecidos, o Campo de Trigo com Corvos (1890), Van Gogh expressa definitivamente o sublime/excelso. A paisagem que arrebata os olhos com uma beleza e ao mesmo tempo uma dor, que muito se parece com a recordação de Frankl do pôr do sol no campo de extermínio, com seu 21 2020b, p. 33. 38 Filosofia com Poesia “ocaso incandescente e tenebroso”, uma pintura em movimento que se conecta ao íntimo da existência. O ocaso da experiência de Van Gogh no mundo, o seu fechar os olhos. Imagem 3 — Wheatfield with Crows. Fonte: Van Gogh Museum, Amsterdam (Vincent van Gogh Foundation). Em uma das cartas, ao refletir sobre a morte, Van Gogh 22 invoca sua transcendência: “os pintores [...] estando mortos e enterrados, falam à geração seguinte ou a várias gerações seguintes por suas obras”, e questiona se há algo mais — assim como um trem pode ser um meio para conhecer a Terra em vida, a morte pode ser o meio para conhecer as estrelas. Quando ambos, Van Gogh e Frankl, expressam cenas de profunda beleza e dor, ambos estão a refletir sobre o sentido da vida, mais propriamente o sentido diante do sofrimento (na narrativa de Frankl sobre os barracões de Auschwitz) e o sentido diante da morte 22 1997, p. 239. 39 Filosofia com Poesia (na pintura e reflexão de Van Gogh). O contato com o sublime, nos dois casos, se assemelha aos versos de Fausto 23: O estremecimento é o melhor que há na humanidade. Por mais que o mundo lhe dificulte o sentimento, Arrebatado, ele sente fundo o assombroso. Referências Ales Bello, Angela. Introdução à fenomenologia. Bauru: Edusc, 2006. Frankl, Viktor Emil. Em busca de sentido. Um psicólogo no campo de concentração. 51. ed. Petrópolis: Vozes, 2020a. Frankl, Viktor Emil. Psicoterapia e existencialismo. Textos selecionados em logoterapia. São Paulo: É Realizações, 2020b. Frankl, Viktor Emil. Psicoterapia para todos: uma psicoterapia coletiva para contrapor-se à neurose coletiva. Petrópolis: Vozes, 2018. Goethe, Johann Wolfgang von. Escritos sobre arte. São Paulo: Humanitas/Imprensa Oficial, 2005. Harada, Hermógenes. De como fazer a reflexão. Acervo Harada. Campo Largo/PR: Fraternidade Franciscana São Boaventura. 2021. Otto, Rudolf. O Sagrado: os aspectos irracionais na noção de divino e sua relação com o racional, São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, 2007. Peter, Ricardo. Viktor Frankl: a antropologia como terapia. São Paulo: Paulus, 1999. 23 Goethe apud Otto, 2007, p. 81. 40 Filosofia com Poesia Plotino. Enéadas I e II. João Pessoa: Ideia, 2021. Van Gogh, Vincent. Cartas a Théo. Porto Alegre: L&PM, 1997. 41 A questão filosófica brasileira — uma obra de arte André Luís Borges de Oliveira Por que convém pensar a respeito? Há cem anos, ocorria a Semana de 22 e os pilares do que conhecíamos sobre arte de modo geral mudaram para sempre no Brasil. Entretanto, no que tange aos estudos filosóficos não tradicionais, permanecemos um tanto quanto antiquados. De algum modo, sempre houve algo de forçadamente calado na filosofia tradicional, isto é, hegemonicamente europeia, branca, masculina etc. Não obstante, quando se observa como a filosofia feita cá encara uma outra perspectiva de compreensão da realidade ou de como ela se compreende, nota-se ainda certo desconforto. Não aquele causado pelo espanto, propulsor do saber, mas um desconforto como o que se sente ao se deparar, alarmado, com estranhos na vizinhança. Isso porque a filosofia — tal como tem sido feita no Brasil — não esteve até então voltada a origens senão anglo-, franco-, teuto-, greco- e latinas. Busca-se por uma origem no passado de outrem, quer Filosofia com Poesia se chegar a algum lugar que não este em que nos encontramos, aparentemente. Nossa filosofia já teria nascido adulta, falando o código da época 1. Ou estaríamos nos furtando de nos pensar para pensar a questão já pronta? Por essa razão, convém perguntar sobre a filosofia feita no Brasil e, principalmente, a partir do Brasil. O intuito, aqui, não é responder se já é merecida a alcunha de brasileira à filosofia em terra mãe gentil ou se ela ainda está restrita a apenas ser feita por brasileiros, mas em buscar pelo potencial de pensar nossa realidade a partir de nós mesmos. Isto significaria traduzir a realidade a termos filosóficos que nos façam sentido? Isso não só daria realces de nascentes e riacho às clareiras, às Lichtungen da vida, como reconheceria a vida e voz dos discursos até então silenciados. Em suma, antropofagicamente repensamos a filosofia tradicional. A ideia aqui é partir da tradição e da realidade brasileira para pensar uma outra filosofia. Uma forma de tradução da tradição. De modo a dar alguma voz e sentido a anseios que permeiam a sociedade brasileira. Somente combatendo a colonialidade do pensamento será possível dirigir-se a um processo democrático e plural de desenvolvimento cultural 2. 1 2 Campos, 1989, p. 64. Quijano, 2005, p. 135. 44 Filosofia com Poesia O cerne da questão: suas cercanias Ultimamente temos visto nos meios de comunicação um ataque constante à educação e, especificamente, à filosofia. Ele advém dos mais diversos setores da sociedade e exemplos não faltam. Alguns têm roupagem mais elegante e sutil, não sem certa “ambiguidade perniciosa”, como a mudança na Base Nacional Comum Curricular (2018), diluindo a especificidade do ensino da matéria filosófica ao longo dos três anos do Ensino Médio e insinuando “que o trabalho de reflexão sobre a própria reflexão pode ser feito por todas as unidades curriculares” 3; outros, mais grosseiros, dando a entender que o termo “filosofia no agreste” 4 devesse ser creditado pejorativamente à alguma filosofia feita cá, como se nós não fôssemos dignos, como se devêssemos dar mais valor ao pão do que o que procede da boca do sagrado... não, não devemos poetizar nem filosofar, roguemos pelo prático, pelo agora, pelo imediato imediatismo. Ambas as atitudes são exemplos de como o ensino e seus profissionais em geral estão numa situação de fragilidade perante a população e até a si mesmos. Nesse sentido, uma já necessária postura tem se tornado mais premente, a de colocar ao público leigo que a atitude filosófica no país tem uma contribuição ímpar para a crítica social, econômica e cultural e, aos profissionais envolvidos direta e 3 Savian Filho, Carvalho & Figueiredo, 2018. Referência à fala do então Ministro da Educação, Abraham Weintraub. Publicado em: 8 set. 2018. Disponível em: youtube.com/watch?v=b2OSlPiY7yc#t=1h23m30s. Acesso em: 14 abr. 2022. 4 45 Filosofia com Poesia indiretamente no ensino, que seu ofício deve ser reconhecido pela importância e dedicação. É senso comum que o estudo filosófico não se componha de promessas fáceis. Todavia, o legado de conhecimento por ela gerado atravessou os séculos e os mares, chegando em terras tupiniquins e tendo que lidar com outras modalidades de saberes. Atualmente há sérias dúvidas no meio acadêmico sobre o que de fato estamos fazendo — é comentário de uma matriz filosófica, tem algo de próprio ou é só reprodução? A questão se reduz a algo simples: não existe uma ‘problemática’ brasileira à nossa espera. Urge ser inventada. Inventada e posta em questão — este, o esforço da Filosofia, desde sempre. Cabe perguntar se entre-nós encontramos sinais de tal esforço. Em resumo e didaticamente: há uma Filosofia brasileira? 5 Talvez mais do que nunca, a filosofia feita aqui precise reconhecer seu caráter agreste sem preconceitos, ao invés de rogar para si uma filosofia oficial, séria e correta: “Mas como poderiam fazer diferente, se hoje um bom pesquisador é aquele que se ocupa principalmente de coisas sérias, profundas, conceituais e ocultas, mas somente as tradicionais?” 6. Fazer filosofia tradicionalmente é fazer filosofia europeia, aos moldes europeus, o que condiz com nossa histórica colonização. Há de se começar por algum lugar: 5 6 Gomes, 1994, p. 25. Burnett Junior, 2018. 46 Filosofia com Poesia Não se trata mais de demonizar essa condição colonial, mas sim de pensar a condição brasileira para além da tradição europeia, o que demanda uma reflexão sobre as limitações ou até sobre o sentido unidimensional da filosofia ocidental, que é em primeiro lugar europeia e norte-americana 7. A história tradicional não convidou o agreste, como também a senzala ficou de fora, o gineceu se manteve à parte e a aldeia nem foi visitada. Em busca de uma voz no cenário filosófico, alguns autores têm optado pela ressignificação do termo filosofia, rompendo com “a fé universalista, que leva a recusar o reconhecimento dos efeitos particulares” 8 para se trabalhar com filosofia africana, com filosofia feita por mulheres e indígenas, por exemplo. Todas essas atitudes colocam em xeque a compreensão mais usual de filosofia, trazendo novas referências e novos atores à cena. Entretanto, para responder pela filosofia brasileira, não basta apontar e dizer: isto que aqui se faz é filosofia brasileira. Naturalmente que isso não desmerece o que se tem produzido, inclusive há quem critique essa postura reflexiva como se a mesma fosse um subterfúgio de nossa própria indigência: “A discussão sobre filosofia brasileira é o que de mais confortável pode fazer um filósofo brasileiro, justamente porque isso o mantém distante do Brasil” 9. Um posicionamento compreensível; urgimos por criação. Agora, a sociedade, de modo geral, 7 Danner & Cei, 2017. Bourdieu, 1989, p. 127. 9 Silveira, 2017. 8 47 Filosofia com Poesia demarca bem a distinção entre teoria e prática. Precisamos, mais uma vez, perpetuar tal cisão? Falar sobre criação não é um trabalho tão separado assim de criar. Um não acontece sem o outro, haja vista que o autor é um crítico de si. Esse diálogo corrobora a compreensão da obra, permitindo que a mesma possa aflorar em significados, quando não em respostas às demandas públicas. Certa ocasião, Guimarães Rosa 10 disse — em entrevista a Günter Lorenz — que, embora a tarefa crítica difira da do autor, ambas se imiscuem no ato de escrever. Em seguida, compara-as à navegação de uma nau, em que o escritor se comportaria como um descobridor, a desbravar mundos, enquanto ao crítico caberia o timão. Há de ter algo de desbravo, do contrário, “um crítico que não tem o desejo nem a capacidade de completar junto com o autor um determinado livro, que não quer ser intérprete ou intermediário, que não pode ser, porque lhe faltam condições, deveria se abster da crítica” 11 No tocante à filosofia, grande parte do que se produz são comentários e críticas de autores, majoritariamente europeus. Inclusive, de acordo com o professor Julio Cabrera 12, “o Brasil já atingiu um excelente nível acadêmico no que se refere à exegese, comentário e interpretação do acervo filosófico europeu, [...] tanto no que se refere à organização quanto à quantidade de trabalhos de alta qualidade desse tipo”. De modo que, mais do que fugir ao comentário para se pensar a 10 1994, p. 40. Rosa, 1994, p. 40. 12 2014, p. 25. 11 48 Filosofia com Poesia filosofia feita no Brasil, deveríamos incentivá-lo por ser um ponto forte nosso e por incrementar a fortuna crítica sobre o tema, ainda dominada pela tradição europeia. Não se trata de ser nacionalista, mas de “uma circunstância existencial-histórica” 13, de transformar em questão nosso fazer mais habitual, cotidiano e próximo, isto é, “se nossa ágora não é o lar da nossa discussão, é porque também ela não é o objeto de nosso debate” 14. Tornar nossa a discussão, apropriar-nos de nós mesmos, a fim de nos pormos diante das opiniões mais mesquinhas, mas também das dúvidas cuidadosas com a propriedade de quem se dedicou sobre isso, isto é, sobre si. Este é um compromisso legítimo tanto da criação, quanto dos comentários, críticas, interpretações e traduções. Convém salientar que a história da filosofia europeia demonstra que, se não fossem os comentadores e os copistas, não teríamos conhecimento de boa parte do pensamento da antiguidade grecoromana 15. Ainda assim, ratifiquemos a pergunta: mas o que estamos fazendo em matéria de filosofia aqui não é só comentário? Comentário com criação não é também filosofia? Em seu livro sobre o conceito de crítica no romantismo alemão, Walter Benjamin 16 faz uso de uma noção em relação à arte, mas que pode nos ajudar a compreender os questionamentos anteriores. Diz ele: “Na medida em que a crítica é conhecimento da obra de arte, ela é o autoconhecimento desta”. Ou 13 Cabrera, 2014, p. 28. Ribeiro, 2017. 15 Marcondes, 2010. 16 1993, p. 74. 14 49 Filosofia com Poesia seja, trazendo para nossa discussão, o comentário pode até ser sobre filosofia, externo e analista, mas ele também pode ser filosófico. Em outras palavras, pode-se fazer filosofia ao comentar a filosofia, na medida que comentamos algo e simultaneamente nos comentamos, a saber, nos deixamos ser perpassados pelo comentado no comentário e nós fazemos reflexão à medida que comentamos algo. Nesse viés, o comentário ganha ares de poético e a filosofia parece mais um conjunto bem-estruturado de palavras do que fruto de um sistema racional. O comentário perderia sua principal função, fazer o objeto comentado aparecer. Ora, é preciso se perguntar antes e fundamentalmente como queremos que apareça o que se comenta. É pela descrição? Isso terá um fim. É pela narração? É pela crítica? O comentário pode ser tudo isso e mais e, ainda assim, fará a obra aparecer. Talvez sejam nossos fantasmas coloniais, em prol de um rigor que nem a tradição europeia possui (haja vista a poeticidade de um Platão, de um Kierkegaard, de um Nietzsche), que preferem repudiar um modo de aparecimento em detrimento de outro. Entretanto, uma vez que o conhecimento seja um autoconhecimento e, por conseguinte, que o comentário seja um autocomentário, em que medida não há da parte de todos nós certo preconceito com o agreste filosófico? Qualquer que seja a resposta, ela só é possível se considerarmos em alguma instância nosso entendimento sobre o que seja comentário e suas variáveis. Esse meio do caminho que revela a tradição naquilo que ela traz do passado e no que ela trai dele: 50 Filosofia com Poesia Mas sobretudo temos de levar em conta que o conteúdo da tradição, ainda que supondo-se assegurada sua credibilidade subjetiva, deve ser ainda interpretado, isto é, o texto se entende como um documento cujo sentido real tem de ser elucidado mais além de seu sentido literal, por exemplo, comparando-o com outros dados que permitam avaliar o valor histórico de uma tradição 17. Essa interpretação que comenta enquanto cria comporta-se como uma tradução da tradição. Sermos comentadores não me parece um problema se, ao comentarmos, traduzirmos não só palavras, mas nossa realidade à problemática filosófica. Problemas não nos faltam, nem teoria, então do que carece nosso pensamento? E, na suposição de não faltar nada, sabemos que não falta nada? Por esse motivo, acredito fortemente na importância de se perguntar pela filosofia feita cá, [...] pois toda tradução já é em si uma interpretação. Traz tacitamente consigo todos os pressupostos, todas as perspectivas e horizontes de que surge. A interpretação, por outro lado, é somente a realização do que silencia na palavra realizada pela tradução. Em seus núcleos essenciais, interpretação e tradução são o mesmo. As palavras e escritos da própria língua materna necessitam de interpretação, e é por isso que, com frequência e necessariamente, é preciso traduzir a própria língua. Todo dizer, discurso e reposta são tradução 18. A mesma tradição que ridiculariza a filosofia feita no agreste nordestino e finge não ver nossa história também se debruça cegamente sobre a Europa — como se de lá fosse a origem do conhecimento filosófico. É, pois, compreensível que séculos de metafísica tenham 17 18 Gadamer, 1999, p. 498. Heidegger, 1998, p. 78. 51 Filosofia com Poesia tratado origem como algo a ser buscado, a essência, o fundamento, alcançado por alguns iniciados ou eleitos, portanto, distante exatamente da fala cotidiana, das periferias, das cercanias. Nesse sentido, temos a compreensão linear de origem. Atributo do passado. Já nós, no presente, estaríamos incumbidos de, para se construir um futuro, retornar ao fundamento. Isto se choca com uma compreensão, digamos, constelar, parafraseando Haroldo de Campos 19, isto é, uma origem não como ponto de partida para a construção, mas como constante desconstrução, transformação. Pensar o que compreendemos por origem é importante para repensar nossa relação com a tradição e vice e versa. Melhor dizendo, atualmente vigora uma concepção de tradição que não permaneceu a mesma no tempo, o que significa que o modo como o homem foi apreendido pela história mudou. Bem como origem: “Origem” não designa o processo de devir de algo que nasceu, mas antes aquilo que emerge do processo de devir e desaparecer. A origem insere-se no fluxo do devir como um redemoinho que arrasta no seu movimento o material produzido no processo de gênese. O que é próprio da origem nunca se dá a ver no plano do factual, cru e manifesto. O seu ritmo só se revela a um ponto de vista duplo, que o reconhece, por um lado como restauração e reconstituição, e por outro como algo de incompleto e inacabado [...]. A origem, portanto, não se destaca dos dados factuais, mas tem a ver com a sua pré e pós-história 20. 19 20 1989. Benjamin, 2013, pp. 431-2. 52 Filosofia com Poesia A origem vai se originando e antes o que era tradicional, agora é antiquado. O que é hoje tradição já foi traditio. Se os dicionários correntes compreendem “ação de dar; entrega; transmissão, tradição, ensino” 21 como uma transmissão retilínea de uma origem conceitual e abstrata até o presente para o futuro, ao procurar um dicionário de latim, lembramos que (e talvez origem não seja nada além disso, uma lembrança) a tradição é composta de tra-dição, sua etimologia constelar. Todo esse translado não é à toa, uma vez que a palavra traditio já remete a isso em sua formação por meio do prefixo trans- com o verbo do 22, em que trans- nos diz de “1. Do outro lado ou por cima, através, para o outro lado de [...]. Formas: frequentemente tra- antes de consoantes surdas” 23. Isto significa que não é nenhum espanto ter, ainda que vagamente, a noção de passagem, passar além de, ao pensar, ao pronunciar a palavra tradição: tra-dição. A outra parte dessa última composição é do, o verbo dar em latim. Este é um verbo complexo. Seu radical curto revela uma multiplicidade dos mais variados sentidos. O primeiro deles que aparece no latim é “1. Conferir gratuitamente, dar posse de, fazer uma doação de, dar. b. dar, oferecer (aos deuses, os mortos, etc.). c. conceder (a posse legal, a utilização, etc.)” 24. De fato, na entrega algo é dado, algo é oferecido, garante-se que por um deslocamento algo atravessa até outra circunstância. Em todo 21 Houaiss, 2009. Glare, 1968, p. 1956. 23 Idem, p. 1961 — tradução minha. 24 Idem, 1968, p. 566 — tradução minha. 22 53 Filosofia com Poesia trado há um do, toda entrega dá. Um dar que reforça a travessia do dado no seu prefixo. Entregar como o que “transdá”, resguardando a importância que a passagem tem para a entrega. Levando isso em conta, o modo verbal que foca seu aspecto no movimento é o gerúndio. Temse, pois, entregar, trado, enquanto um dar oferecendo. Um dar que é dando. E, assim, é feita a entrega, a tradição, como o ato que dá e permanece neste movimento de doação. Quem oferece introduz uma oferta. Uma dádiva que não se materializa simplesmente no seu destino, como se seu objetivo fosse somente a finalidade, mas que faz uma trajetória da entrega ao recebimento. E quanto à sua origem, quanto à sua meta? Entrega enquanto tradição atravessa e, por isso, é atravessada. Isto é, tradição é um atravessamento da entrega, sempre se originando: “Tudo o que acontece é sempre um começo” 25. A partir do momento em que se chega ao alvo, cessa a entrega, para a tradição. Por isso que tradição, enquanto tra-dição, precisa estar em constante recebimento e oferta. Precisa passar adiante e, desta forma, estar em insistente diálogo com a história e sua dinâmica. A mera reprodução da tradição, em outras palavras, a tradição da reprodução, não reverbera na tensão do ontem, do hoje e do sempre. É dar sem a travessia, sem os percalços do caminho. Entre o que permanece no fluxo das mudanças há uma tradição, entre o que muda na constância há uma tradição, e assim sua obra continua a fazer 25 Rilke, 1976, p. 52. 54 Filosofia com Poesia sentido, por mais diversas que sejam as épocas, as pessoas, as circunstâncias. Num paralelo com a obra de arte, a tradição exerce sua dinâmica de maravilhamento e repulsa, concessão do trânsito das experiências de mundo: A unicidade da obra de arte é idêntica à sua inserção no contexto da tradição. Sem dúvida, essa tradição é algo de vivo, de extraordinariamente variável. Uma antiga estátua de Vênus, por exemplo, estava inscrita numa certa tradição entre os gregos, que faziam dela um objeto de culto, e em outra tradição na Idade Média, quando os doutores da Igreja viam nela um ídolo malfazejo. O que era comum as duas tradições, contudo, era a unicidade da obra [...] 26. E ora, convenhamos, quantos ruídos existem entre o que se diz e o que se quer dizer? Quem há de mostrar que o que pode ser aprendido se sujeita ao que deve ser aprendido? Que a tradição é tão tradicional assim e que a origem é de fato fundamento?! Imersa em narrativa, tanto origem quanto tradição assumem o rosto das variadas interpretações, são interpretações do real enquanto palavra, obra, gesto, e não o real em absoluto: É conhecida a fórmula de Hegel: ‘Tanto pior para os fatos’. No fundo, o que ele quer dizer é: cabe ao filósofo estabelecer as conexões entre as essências, e estas permanecem inalteradas, ainda que no mundo dos fatos elas não se manifestem na sua forma pura. O preço que esta atitude genuinamente idealista paga pela sua segurança é o do abandono do cerne da ideia de origem [...] 27. 26 27 Benjamin, 1987, p. 171. Benjamin, 2013, p. 432. 55 Filosofia com Poesia A unicidade da obra a que Benjamin se referia é o que permite uma entrega, a cada vez autêntica, de respostas, sem esgotar a questão. Nessa dimensão, todo tradutor é, em certa medida, traidor, ainda sem o querer, pois necessariamente ele falhará em entregar a mensagem na íntegra (bem como o crítico, o comentador, o filósofo etc.); concomitantemente, o tradutor é um “traditor”, alguém que porta uma tradição na interpretação e a passa adiante em sua possibilidade de autenticidade. Até aqui viemos com uma tradição, daqui podemos sair com ela e dela: o caminho não faz escolhas, o caminhar sim. Quando Spivak 28 pergunta: “no outro lado da divisão internacional do trabalho do capital socializado, dentro e fora do circuito da violência epistêmica da lei e da educação imperialistas […], pode o subalterno falar?”, ela já traz a afirmativa na própria pergunta, feita do lugar de fala de mulher e de indiana, ou seja, não tradicional no Ocidente. A pergunta do subalterno se traduz pelo seu não lugar, pelo seu lugar retirado. Paradoxalmente, não há como estar sem lugar. Fala-se, mesmo que os endereços tenham se perdido e as identidade não sejam mais estanques: “Eu não tenho senão uma língua, e ela não é minha” 29. De modo semelhante, a tradução tira da língua da tradição sua habitação habitual. A vontade de uma tradição de se manter é compreensível, mas não essencial. O que não quer dizer também que nada se mantém ou que nossa mera resposta afirmativa transformaria 28 29 2010, p. 54. Derrida, 2001, p. 13. 56 Filosofia com Poesia milênios de subalternidade silenciada. Algo sempre se ganha e se perde. A tradição subentende a traição e a tradução é este jogo: “Nada é intraduzível num sentido, mas num outro sentido tudo é intraduzível, a tradução é outro nome do impossível” 30. Mesmo que no texto Spivak responda negativamente e a tradição em foco tenha sido em parte execrável, somos frutos dela. Perceber isso permite que possamos trabalhar com o que a tradição nos relegou. Não se trata nem de aceitá-la, nem de descartá-la. É no limite que nos encontramos. Por mais que seja problemático e, por vezes, preconceituoso, nele subjaz boa parte do aparato conceitual que nos ajudou e ajuda a compreender a realidade: “o desaparecimento de [certos] preconceitos significa simplesmente que perdemos as respostas em que nos apoiávamos de ordinário sem querer perceber que originariamente elas constituíam respostas a questões” 31. Por outro lado, outra parte da conceituação estará na criação de conceitos, conforme estima Deleuze como sendo o papel da filosofia. E, ao criar, devemos sim nos perguntar quais respostas ainda nos cabem e quais não seriam mais plausíveis. Que encaminhamentos, que questões nosso tempo nos coloca e que, na mesma medida, colocamos a ele? 30 31 Idem, p. 88 — grifos no original. Arendt, 1972, p. 223. 57 Filosofia com Poesia Por uma filosofia do agreste: a tradução da tradição Por fim, o papel da interpretação e da tradução seria congregar a tradição, esse lugar conhecido, ao estranhamento que hoje nos acomete. Nesse diálogo tradicional e não tradicional, crítica e criação se imiscuem a ponto de encontrarmos, por exemplo na realidade brasileira, a filosofia fora da Filosofia: na música, na literatura, na cultura popular etc. Uma imagem que remete àquela dos cumes que “Perto vivem, esmorecendo nas / Mais separadas montanhas” 32, utilizada tanto por Nietzsche quanto por Heidegger para acercar a arte da filosofia, aproximação muito abordada e a abordar na cultura brasileira. Se nosso aparato crítico é rico, se nossos comentadores são de qualidade elevada, conforme foi exposto pelo professor Cabrera, e se isso é um ponto forte da filosofia feita aqui no Brasil, também é um ponto fortíssimo nossa riqueza e qualidade cultural no que se refere à arte, que, especificamente no tocante à literatura, possui nomes com denso material filosófico que poderiam acrescentar em muito à discussão da filosofia em moldes agrestes: [...] mesmo com a independência e a manifestação de filosofias mais estruturadas como a de Gonçalves de Magalhães, ainda persiste entre nós essa tendência de expressar nossas intuições metafísicas pelo viés literário. Diversos autores expressam isso muito bem, como Machado de Assis, Augusto dos Anjos, Clarice Lispector, Guimarães Rosa. Não 32 Hölderlin, 1954, p. 173 — tradução minha. 58 Filosofia com Poesia quer dizer que só façamos filosofia desse jeito, mas uma característica importante do nosso pensamento é essa 33. Em suma, pomo-nos perante o espelho e vemos e não vemos nossos pais. Mas, como filhos que somos, tanto a casa tornamos como maldizemos a casa. Nesse retorno eterno, que numa perspectiva circular também é uma partida eterna, estamos constantemente em débito e em crédito com a tradição. Se já, de fato, alcançamos um patamar crítico e metodológico satisfatório, cabe agora refazer o mesmo à nossa maneira, a saber, fazer filosofia do agreste, um caminho próprio que pode percorrer tanto fontes tradicionais quanto não tradicionais, sem se diminuir no caminhar: Você é o herdeiro. Filhos são os herdeiros, pois pais morrem. Filhos ficam e floram. Você é o herdeiro 34. Graças à vida que me deu tanto Deu-me o riso e deu-me o pranto Assim, distingo alegria de quebranto Os dois materiais de meu canto E seu canto que é meu mesmo canto E o canto de todos que é meu próprio canto Graças à vida que me deu tanto 35. 33 Margutti, 2011. Rilke, 2012, p. 66 — tradução minha. 35 Parra, 1966 — tradução minha. 34 59 Filosofia com Poesia Referências Arendt, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972. Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987. Benjamin, Walter. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. São Paulo: Iluminuras, 1993. Benjamin, Walter A origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. Burnett Junior, Henry Martin. 10 (Anti-) Teses sobre a filosofia brasileira. Publicado em: 5 abr. 2018. Anpof. Disponível em: anpof.org/portal/index.php/en/comunidade/coluna-anpof/1565-10-anti-tesessobre-a-filosofia-brasileira. Acesso em: 14 abr. 2022. Cabrera, Julio. Europeu não significa universal. Brasileiro não significa nacional. Nabuco — Revista Brasileira de Humanidades, n. 2, nov. 2014/jan./fev. 2015. 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Belo Horizonte: UFMG, 2010. 62 Vivência, experiência e narrativa a partir da filosofia de Walter Benjamin Cleiton Luiz Kerber Introdução Nas obras de Walter Benjamin encontramos, por diversas vezes, textos que dialogam de forma direta com a literatura, bem como com demais produções artísticos/culturais. Na busca de compreender como o processo de narrativa, entendida como uma forma de narrar a vivência carregada de sentido, elevada pelo filósofo à categoria de experiência e, sendo uma experiência, vê-se relacionada com a literatura. Dessa forma, Benjamin busca analisar e comparar a obra de Nikolai Leskov, e nela descobre, por meio dos escritos literários do escritor russo, um certo distanciamento nosso e da nossa sociedade de um autêntico narrador. Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo distante, e que se distancia ainda mais. Descrever um Leskov como narrador não Filosofia com Poesia significa trazê-lo mais perto de nós, e sim, pelo contrário, aumentar a distância que nos separa dele. Vistos de uma certa distância, os traços grandes e simples que caracterizam o narrador se destacam nele. [...] Uma experiência quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e desse ângulo de observação. É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos provados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências 1. Benjamin recorre a Leskov por entendê-lo como um legítimo narrador. Nele são identificados os interesses pelos camponeses e uma forte orientação religiosa, o que favorece uma aproximação com o campo do trabalho manual e com a capacidade de reflexão e meditação sobre a vida. São essas características que o Filósofo de Frankfurt identificará em um narrador. Próximo ao fim da primeira grande guerra mundial, ocorre uma forte tendência de difusão do estilo literário da narrativa nos países de língua alemã, o que não ocorreu com o estilo do romance. Nikolai Leskov possui em seus primeiros escritos o estilo do romance. Neles, Benjamin identificará como sendo um modelo doutrinário e dogmático, e que não tiveram grande aceitação. Isso ocorre, pois o romance é considerado um escrito totalmente vinculado ao livro, desprovido de relação com o mundo exterior. Sua origem encontra-se no indivíduo isolado, “que não pode falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos 1 Benjamin, 1994b, p. 197. 64 Filosofia com Poesia nem sabe dá-los” 2. Ou seja, é um estilo literário que possui uma insuficiência em relação à vida cotidiana. Para chegar ao estilo da narrativa, ocorre um processo de vinculação à vida humana. Sem experiência, para Benjamin, não existe narrativa. Porém, a experiência é algo que vem a cabo quando se tem a capacidade de dar sentido àquilo que vivemos. Dessa forma, passamos a observar cada conceito e como eles ajudam na construção do estilo literário da narrativa. Vivência Comecemos por entender o que é a vivência: consideremos tudo o que vivemos, aquilo que chega por primeiro a nossa existência. É aquilo que vemos, ouvimos, degustamos, pensamos, compreendemos, rezamos, contemplamos, admiramos..., porém, não as elevamos a uma análise mais profunda. É uma experiência degradada, a qual os indivíduos acabam por vivenciá-las e não as elevam ao nível da reflexão devido à imposição de diversos estereótipos sociais (modelos de comportamento): a) modelo de profissão; b) modelo social — familiar; c) ídolos midiáticos; d) modismos. A própria sociedade moderna, em sua estrutura, apresenta necessidades ao sujeito de enfrentar uma multiplicidade e uma intensidade de estímulos exteriores que o impedem de refletir, e consequentemente, desse apropriar deles na forma de conhecimento, como ocorre na experiência. 2 Idem, p. 201. 65 Filosofia com Poesia O habitante da sociedade moderna, o homem da multidão, é obrigado a enfrentar uma monstruosa saturação de estímulos exteriores enquanto caminha pelas ruas repletas de transeuntes e de veículos, sendo obrigado a agir por reflexos em função da intensidade e da velocidade dos estímulos provenientes do tráfego, da aglomeração, do movimento de massa, de forma a configurar ao olhar enorme importância social. O mesmo ocorre quando somos bombardeados pelas notícias, informações, propagandas e outros tantos informativos. Essas atividades, porém, não permitem a formação de um conhecimento específico, não implicam qualquer tipo de memorização. Semelhante ação ocorre quando as multidões se dirigem a espaços que propiciam o lazer e a diversão. A intensidade de efeitos que esses locais produzem, também não contribui para um processo de abstração, compreensão e memorização do que neles se vive. Nesse sentido, Benjamin no alerta em seu texto O narrador: O saber, que vinha de longe — do longe espacial das terras estranhas, ou longe temporal contido na tradição –, dispunha de uma autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela experiência. Mas a informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada, ela precisa ser compreensível ‘em si e para si’. [...] Se a arte de narrar é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio 3. Ao analisar esse processo das vivências, Walter Benjamin irá demonstrar que o homem perdeu a capacidade de agir a não ser de 3 Idem, p 203. 66 Filosofia com Poesia modo reflexo e automatizado, e totalmente desprovido da capacidade de análise do que chega a ele. O termo alemão utilizado por Benjamin para designar o sentido de vivência é Erlebnis. Seu significado etimológico refere-se à vivência na sua forma mais individual e solitária possível, que perpassa pelo indivíduo, caracterizando-o como um ser privado e isolado 4. Percebe-se em Benjamin que a vivência é algo próprio do existir humano. Porém, há algo que nos faz ultrapassá-la, não a deixando ficar somente nesse nível, que será denominado pelo filosofo alemão como experiência, como veremos na continuação. Porém, nos é alertado pelo autor que o andar histórico da sociedade está forjando uma humanidade que não consegue ou não lhe é dado a motivação de produzir o sentido e realizar a narração do que lhe é vivido. Walter Benjamin identifica, no ensaio “Experiência e pobreza”, como o fator histórico da primeira grande guerra mundial gerou uma morte da experiência e da sua capacidade de narrar, devido às dores causadas pelo que nela se vivenciou: Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. Talvez isso não seja tão estranho como parece. Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiência comunicável, e não mais ricos. [...] Não, o fenômeno não é estranho. Porque nunca houve experiência mais radical desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência 4 Rebuá, 2019, p. 69. 67 Filosofia com Poesia econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes 5. Benjamin, nesse relato sobre a segunda Guerra Mundial, deixa claro como a vivência não passa ao nível da experiência, pois os efeitos da geração que a vivenciou, em todas as suas facetas de barbárie, gerou uma mudez daqueles que a estavam fazendo acontecer, ou seja, os soldados no front de guerra. Estes tornaram-se mais pobres de experiência a que pudessem compartilhar. A grande questão destacada por Benjamin, que no seu ensaio O narrador alerta para a degradação daquilo que poderia se tornar uma experiência. Aquilo que se vivenciou durante o conflito, tornou-se qualquer coisa, menos uma experiência que poderia ser contada e ouvida. Nesse sentido, são diversos os pontos que Benjamin aponta como degradação da experiência ou como uma vivência que não é elevada ao nível da experiência, como “a experiência da tragédia pela guerra de trincheiras, as experiências econômicas pela inflação, as experiências do corpo pela fome, as experiências morais pelos donos do poder” 6. O que realmente é identificado nesse esboço é uma trágica ferida em uma geração que há pouco tempo tinha como grande característica a capacidade de empregar sentido ao vivido, ou seja, a competência de partilhar a experiência. Essa morte da capacidade de dar sentido deve-se ao fato, segundo Benjamin, da destruição de tudo 5 6 Benjamin, 1994a, p. 115. Rebuá, 2019, p. 69. 68 Filosofia com Poesia o que antes lhes era caro e importante, pois como afirma novamente num trecho de Experiência e Pobreza, [...] uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente de tudo, exceto das nuvens, e em cujo o centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano 7. Na falta de referências que o autor encontra e identifica uma das causas da degradação da narrativa. Isso ocorre, pelo fato de não haver algo fixo em que as pessoas no pós-primeira guerra possam afirmar que caracteriza a experiência, pois o contexto em que ocorre a vivência da guerra realiza um câmbio muito forte, que não lhes serve como ponto de alusão. E como aponta Benjamin, a única coisa que não mudou completamente foram as nuvens do céu, mas elas se modificam constantemente, dessa forma, não servem como boa referência por possuírem essa característica. Podemos concluir que as vivências, mantidas neste nível, segundo Walter Benjamin, impedem o ser humano de refletir, organizar, dar e encontrar sentido a sua existência no tempo. Nessa dinâmica psicossocial, para o sujeito não há a criação de narrativas de sua vida, seu passado é pobre de experiências significativas, pois não encontram referências que garantam o significado do que foi vivido. O tempo é o aqui e o agora, não há reflexão sobre o que já foi vivido, não se constrói 7 Benjamin, 1994a, p. 115. 69 Filosofia com Poesia um conhecimento do que passou, somente se valoriza o conteúdo do momento ou lhe falta narrativa para descrevê-los. Experiência Passemos agora a entender melhor sobre o conceito de experiência, tendo como foco aquela originária de nossas vivências e que é transformada em memória voluntária por meio da nossa vontade. A experiência nada mais é do que a vivência que passou por um processo de compreensão, interpretação e sentido. Podemos comparar a experiência à prática artesanal, manual e não mecânica. Ela está relacionada às atividades humanas, desprovidas de estímulos exteriores, como já citado, e um período de tempo adequado ao ritmo natural, biológico do humano. A experiência não é marcada pelo tempo contado, mas pelo tempo necessário, lento e prolongado. Outra característica que encontramos para definir experiência em Walter Benjamin é a capacidade de funcionamento da experiência ligada ao passado. A partir dele, o passado, ocorre uma delineação do que podemos definir como possibilidades do tempo atual. A relação da experiência com o que já foi vivido, mas não ressignificado, abre espaço para a possibilidade da experiência. Novamente nos ensaios O narrador e Experiência e pobreza, mesmo que o conceito de experiência perpasse toda a obra do autor, encontramos um olhar mais atento para como 70 Filosofia com Poesia essa experiência está ligada à tradição e a partilha, por meio da narrativa, com outras pessoas, comunidades ou geração 8. A palavra em alemão utilizada por Benjamin para designar experiência é Erfahrung, e caracteriza-a como sendo a capacidade de a pessoa adquirir conhecimento através da experiência acumulada, vivida prolongadamente, tendo o sentido da partilha como uma de suas referências. Diferente de quando abordamos o sentido da vivência, Erlebnis em alemão, na qual o indivíduo encontra-se na sua individualidade. A Erlebnis em relação a Erfahrung não é excluída, mas ocorre um processo que a pressupõe e ultrapassa, gerando assim uma experiência não momentânea e instantânea, mas de experiência com significado e sentido, que dá à pessoa a capacidade de a narrar 9. Analisando esses conceitos, Benjamin irá identificar a perda ou o declínio da experiência (Verfall der Erfahrung), aquilo que chama de sentido forte do que é vivido, e que não se estagna somente na vivência, mas a sobressalta. É dela que se gera aquilo que chamamos de tradição, que compartilhamos entre nossa comunidade humana. Essa tradição é construída da forma mais familiar possível, entendendo-a no sentido mais literal da palavra, ou seja, é a aquilo que perpassa de uma geração a outra. Para explicar essa importância, Benjamin retoma uma fábula de Esopo: Em nossos livros de leitura havia a parábola de um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro 8 9 Hartmann, 2015, p. 15. Rebuá, 2019, p. 69. 71 Filosofia com Poesia enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreendem que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho10. Compreende-se com essas palavras de Benjamin, retiradas da literatura grega antiga, que a compreensão da felicidade está no trabalho e no esforço. E esse ensinamento foi transmitido de uma geração a outra, porém não por meio de palavras, ou de forma moralizante, mas pela oportunidade de realizar a experiência. O grande conteúdo da fábula não está no tesouro a ser encontrado, tanto que ele não se faz presente, mas sim o conteúdo da mensagem que o pai transmite a seus filhos. A fala do pai dada a seus filhos vem do leito de morte, isso mostra que a experiência não é algo vivido unicamente por um indivíduo, mas é transmitida, compartilhada e vivida de uma geração à outra, ou seja, ela é tradição. Ultrapassa a mera existência individual, não se prende à vida e à morte particular, mas tem a força de manterse existente. A grande insistência que Benjamin irá fazer é mostrar que está ocorrendo uma perda dessa experiência, e isso desencadeia o desaparecimento de algo que gera e transmite essa experiência, a narrativa. Sua fonte são as comunidades que realizam a transmissão desses elementos. 10 Benjamin, 1994a, p. 115. 72 Filosofia com Poesia O que Benjamin identifica como o provedor desse desaparecimento, ou como o pontapé inicial dele, é o progresso de uma sociedade tecnicista, que culminou com as atrocidades da Primeira Guerra Mundial, como já apresentado na perspectiva da incapacidade de transformar a vivência em experiência. É nessa perspectiva que Benjamin perceber que o enfraquecimento da experiência, e consequentemente da narrativa, ocorre devido ao desenvolvimento das forças produtivas e da técnica, ou seja, da aceleração da forma de vida capitalista da sociedade, bem como de uma forma traumática de uma experiência de choque, que impossibilita que a linguagem cotidiana formule suas narrativas 11. Essa observação que Walter Benjamin faz sobre a narrativa destaca-se nos dois textos que nos propomos apresentar neste trabalho. Em ambos o autor ressalta que a sociedade capitalista moderna, através de sua técnica, apresenta as direções para a pobreza de experiência. Essa pobreza é claramente marcada pela falta de transmissão da experiência, que com ela gera a falta da narrativa. A falta de narrativa ocorre também a falta da partilha e troca de experiência, ou seja, ocorre menos Erfahrung. E nessa perspectiva que Benjamin nos alerta: Aqui se revela, com toda clareza, que nossa pobreza de experiência ou apenas uma parte da grande pobreza que recebeu novamente um rosto, nítido e preciso como o do mendigo medieval. [...] A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita o 11 Gagnebin, 2006, p. 51. 73 Filosofia com Poesia sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie 12. O grande alerta presente neste trecho de Experiência e pobreza é a direção que está nos guiando a sociedade burguesa. Para Benjamin, mesmo que a fala sobre a cultura seja um ponto forte das discussões contemporâneas, não adianta nada se não conseguirmos relacionar essas questões em nossas vidas. Dessa forma, não há como viver essa fala, pois quando modernamente falamos de cultura, não conseguimos ligá-la a nossa vida. No ensaio de Experiência e pobreza, mesmo que também trate dessas questões em O narrador, é que Walter Benjamin irá elaborar a ideia de experiência. Com as análises do velho no seu leito de morte, retirada da fábula de Esopo, e a pobreza de narrativa oriunda da experiência da primeira guerra mundial, que será lançada a ideia da construção de uma geração marcada pela decadência da experiência. Porém, nosso filósofo identifica um terceiro eixo ligado a essas questões. O que ele denominou de nova barbárie, como elencamos na citação acima apresentada, é o que ele nos coloca como possibilidade de começar tudo de novo, ou seja construirmos as coisas desde o início. Com esses três eixos temos uma sequência que podemos denominar de transmissão, dissolução e recomeço. São três momentos dialéticos da experiência em sua presença na temporalidade histórica, 12 Benjamin, 1994a, p. 115. 74 Filosofia com Poesia ou seja, Benjamin está trabalhando com o que passou, o agora e o que há de vir. Nessa construção, se vê a possibilidade de um recomeço, quase que como um elogio por parte do escritor do ensaio, onde essa pobreza “impele a partir para frente, a começar de novo, a contentarse com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda” 13. A partir desse ponto é identificado a possibilidade de iniciarmos uma nova partilha da experiência. Benjamin buscará trazer para a cena da discussão os grandes criadores que abandonaram as narrativas de seu tempo, ou deixaram-nas de lado, e passaram a narrar a partir de si mesmos. Refere-se primeiramente a Descartes, que com seu cógito ergo sum, abandona as filosofias de seu tempo, e reformula a sua teoria. Em segundo lugar, retoma Einstein do qual apresenta a distanciamento da Newton e suas equações para poder, então, vislumbrar novas possibilidades no campo da física. Como terceiro nome, Benjamin recorrerá a Klee, artista que filósofo já fez referência na tese IX do ensaio Sobre o conceito de história, que assim como os artistas cubistas utilizou-se da matemática e dos estudos de engenharia para criar as suas obras estereométricas. Com isso, Benjamin demonstra que é possível criarmos novas experiência e, consequentemente novas narrativas, para não nos perdermos e deixar que esse declínio seja total 14. 13 14 Idem, p. 116. Rebuá, 2019, p. 72. 75 Filosofia com Poesia Para Benjamin, é na experiência que retiramos o conteúdo da narrativa: “O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes” 15. Porém, o ato de narrar encontra-se, assim como o processo de realizar novas experiências, em declínio. Isso se ocorre, como já vimos, a partir da primeira guerra mundial, pois segundo nosso filósofo, os “combatentes voltaram mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável” 16. No plano econômico também encontraremos fortes influências para a diminuição das experiências, pois com o fim da atividade artesanal e sua substituição pela forma de trabalho mecânico, através das linhas de montagem das indústrias, a ação se tornou automatizada, o que não garante uma forma de reflexão, aprendizagem ou elaboração de uma técnica manual do que se está fazendo. Dessa forma, o trabalho não garante um processo e experiência ao trabalhador. Dentro do plano cultural, com o desaparecimento da narrativa, que é uma forma artesanal de comunicação, o que ganha espaço é o romance e a notícia informativa, produzida pelos meios de comunicação da modernidade, que também não vem dar espaço para um tipo próprio de experiência, ou seja, a narrativa. Já no plano social, as próprias formas de organização das cidades não propiciam a experiência, pois o homem moderno não é o sujeito que vive as experiências pessoais, mas, sim, o 15 16 Benjamin, 1994b, p. 201. Idem, p.198. 76 Filosofia com Poesia homem da multidão, que se guia pelo cotidiano das grandes metrópoles 17. Narrativa No processo das experiências surge a capacidade de comunicação das mesmas. Dessa forma, chegamos ao conceito de narrativa. Para narrar uma experiência, é preciso manter certa distância do fato acontecido. No mundo marcado pelo excesso de informação, afirma Benjamin, temos perdido, em parte, a capacidade de narrar as experiências. Uma das possíveis causas desse fenômeno é a troca da narrativa, pela informação. Cambiamos o conhecimento do nosso povo, da nossa história, da nossa vida, pelas informações que os jornais e informativos nos trazem. Esse empobrecimento da narrativa é reconhecido não somente por Benjamin. O próprio Adorno, ao comentar os ensaios de Benjamin, em especial o “Experiência e pobreza”, afirma que: “Ante todo, expresar mi más pleno asentimiento a la intención histórico-filosófica: que el narrar ya no es posible. [...] ésta es para mí una idea familiar, que me resultaba evidente desde años antes de que pudiera expresarlo teóricamente” 18. Esse reconhecimento do empobrecimento da experiência, que gera uma pobreza da narrativa, mostra, por meio dos escritos de 17 18 Franco, 2015, p. 71. Adorno, 1995, p. 147. 77 Filosofia com Poesia Benjamin, que a sociedade burguesa criou um modelo no qual o indivíduo busca, por meio da arquitetura, em especial, um lugar de refúgio, ou seja, na sua habitação. No mesmo sentido em que Adorno aponta que não é possível mais a narrativa, Benjamin reforça essa ideia apontando que não é mais possível deixar a sua marca, seu registro. Para isso, a sociedade burguesa nos dá um modelo arquitetônico onde as casas, recheadas de tons pasteis, nos dão a sensação de segurança, e, dessa forma, a oportunidade de deixar a nossa marca sobre o veludo, a marca de seus dedos, quando caminha livremente por aquilo que lhe pertence. Essa privacidade, segundo Benjamin, garante um refúgio do homem burguês da sociedade capitalista, que segundo a sua regra de ferro, não lhe oferece nada mais que um anonimato cruel dentro de uma grande cidade ou dentro de um modelo da grande indústria 19. É sobre essa reflexão que Benjamin utiliza um trecho do poema de Bertold Brecht, afirmando que “o que está em jogo: ‘Apaguem os rastros’” 20. Nessa perspectiva, tanto Brecht, como Benjamin, buscam mostrar que a prática da sociedade burguesa não leva em consideração a ruptura que há entre a arte e a experiência, isso devido a duas questões presentes: a) a primeira, devido à falta da experiência representada na arte; e b) a experiência que não comunica mais nada por meio da tradição, impossibilitando, assim, uma comunicação entre artista e aquele que observa a arte. Dessa forma, o que ocorre é uma 19 20 Gagnebin, 2006, p. 51. Benjamin, 1994a, p. 116. 78 Filosofia com Poesia dificuldade objetiva sobre o estabelecimento, ou reestabelecimento, da tradição e da narrativa 21. Mesmo que seja no ensaio de “Experiência e pobreza” que Benjamin elenca com maior ênfase a pobreza de experiência de seu tempo, é em “O narrador”, que ele realmente aponta o declínio da aurora da arte narrativa tradicional, ou seja, da nossa incapacidade de contar nossas experiências. Essa questão da narração é a grande preocupação que o nosso filósofo possui sobre o período da modernidade e da contemporaneidade. Para ele a narrativa, oriunda da experiência, nos dá uma continuidade e temporalidade própria das sociedades artesanais, opondo-se, assim, ao tempo deslocado e organizado pelo mundo do trabalho capitalista moderno. Se o capitalismo nos dá uma vivência carregada de informações, obrigações e reproduções, a experiência artesanal nos dá uma prática comum em que conhecemos, nos sentimos parte e criamos a nossa narrativa. As histórias que vêm das experiências e contadas pelo narrador não são simplesmente lidas ou ouvidas, mas escutadas e seguidas, gerando, assim, uma verdadeira formação para os indivíduos de uma sociedade 22. É nessa perspectiva, que Benjamin 23, na obra O narrador afirma que: [...] a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas 21 Gagnebin, 2006, p. 52. Gagnebin, 1999, p. 57. 23 1994b, p.199. 22 79 Filosofia com Poesia pelos inúmeros narradores anônimos. [...] A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos. “Quem viaja tem muito que contar”, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário, e outro pelo marinheiro comerciante. É essa experiência transmitida que é a fonte à qual recorrem todos os narradores, para conhecer as narrativas anteriores, entender as suas experiências e elaborar a sua narrativa. Para isso, recorremos a duas figuras simbólicas que Walter Benjamin nos apresentou: o camponês sedentário e o marinheiro comerciante. A figura do narrador é melhor compreendida quando temos presente essas duas figuras. A figura do narrador pode ser comparada com alguém que possui experiências que vêm de longe, que viu algo distante dele e ouviu a narrativa de outras pessoas. A figura do camponês sedentário, que nunca saiu de sua pátria, também nos é significativa, pois ele ganha sua vida honestamente, conhece os fatos que viveu e suas tradições, gastou tempo pensando em suas experiências, nos eventos de sua vida, os compreendeu e, por esse motivo, possui autoridade de narrar a sua história. Esses arquétipos de narradores (modelos) podem ser denominados também como o mestre sedentário e o aprendiz migrante. Ambos, trabalham juntos na mesma oficina. Dessa forma, há uma junção dos saberes das terras distantes, trazidos para casa pelos 80 Filosofia com Poesia migrantes, com o saber passado, recolhido pelo trabalhador sedentário, como também nos apontou Benjamin em O narrador. O narrador retira da experiência o que ele conta: a sua própria ou a experiência relatada pelos outros. O narrador é o homem a quem a ele próprio transmite o seu saber. Para isso, precisará da sua alma, do seu olho e da sua mão, pois ambos estão no mesmo campo. Interagindo, eles definem uma prática, a da narrativa. Ela não é um produto automatizado, ou produzido em grande escala, mas algo oriundo do meio artesanal. Walter Benjamin aponta que ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como se fosse um relatório ou uma informação descritiva. Ela terá primeiramente relação com a vida do narrador, para em seguida tornar-se narrativa, mantendo assim a marca do indivíduo particular, da pessoa, assim como o oleiro deixa sua marca no vaso de barro 24. Nesse contexto, Benjamin nos mostra que a narrativa possui grande diferença literária de outras formas de literatura, principalmente do romance e das notícias informativas. O filósofo alemão demonstranos que a narrativa procede da oralidade, enquanto o romance nem sequer a alimenta, mas coloca o indivíduo num contexto isolado e não lhe transmite nenhum ensinamento, como os contos, as lendas, as sagas, as fábulas e as novelas 25. Por esse motivo, a narrativa é entendida, por Benjamin, como um processo também educativo, uma vez que ela é um 24 25 Idem, p. 205. Idem, p. 201. 81 Filosofia com Poesia estilo literário construído de forma coletiva em que a história vem acompanhada de um narrador. O romance é avesso à sabedoria e corresponde aos anseios e expressões artísticas da ascendente burguesia europeia, sendo até hoje hegemônica como expressão estética da narrativa escrita. Ela é repleta de conotações psicologizantes, do escritor e do leitor, enquanto a narrativa é simples e direta. Tem como preocupação principal a busca do sentido (da vida, da morte, da história), separando o sentido e a vida, o essencial e o temporal, enquanto a narrativa tem como núcleo central a moral da história. Norteando pela tensão (a necessidade de devorar a substância lida), o romance tem um final (materializado no “The End”) característico dos finais de livros e/ou filmes, enquanto na narrativa o desfecho não se encerra num final imediato 26. Nessa mesma linha, temos a notícia informativa que realiza uma explicação dos fatos rotineiramente. Seus assuntos são desconexos e descontextualizados da nossa vida. Não há um processo de interpretação, mas uma auto explicação dos fatos, não exigindo do leitor uma forte atenção ou uma verificação no momento da leitura. Assim, Walter Benjamin 27 observa que [...] cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicação. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. 26 27 Rebuá, 2019, p. 76. 1994b, p.203. 82 Filosofia com Poesia Assim sendo, o que chega a nós cotidianamente são informações pré-julgadas e que nos dão a impossibilidade de uma análise mais profunda, extinguindo, assim, a necessidade da arte narrativa. A sociedade capitalista contemporânea não dá importância maior a uma história que possui um ensinamento geracional do que a uma notícia baseadas em fatos corriqueiros que chegam a nós cotidianamente. As manchetes dos informativos, as grandes questões colocadas pela mídia, tornaram-se mais importantes ao pequeno burguês que os fatos históricos e acontecimentos geracionais. Assim sendo, temos contemporaneamente, segundo Benjamin, uma hegemonia do romance e da notícia informativa sob a construção narrativa oriunda da experiência. Recorrendo a Nikolai Leskov, autor e escritor russo que viveu no século XIX, Benjamin novamente aponta a forma artesanal deste modelo de comunicação, a narrativa, como sendo algo manual e totalmente distante do modelo técnico industrial. Existe uma aproximação do sujeito, uma experiência vivida que fundamenta a narrativa. Por esse motivo, a narração não será considerada pelo filósofo como algo exclusivo da voz, mas há a interação da mão, que através dos gestos aprendidos na experiência do trabalho, fundamentam o que é narrado, por esse motivo afirma que: “A alma, o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo. Interagindo, eles definem uma prática. Essa prática deixou de nos ser familiar. O papel da mão no 83 Filosofia com Poesia trabalho produtivo tornou-se mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narração está vazia” 28. Esse processo de produção artesanal, onde nossos sentidos são colocados a realizar algo, a viver uma experiência são, para Benjamin, os grandes produtores da nossa memória, pois aquilo que vivemos e experienciamos, conseguimos compreender e dar sentido. Desse modo, criamos memórias desses fatos. Com o processo de intercâmbio dessas experiências, gera-se uma supressão da memória, tanto individual como coletiva, e, assim, uma perda de sentido do que vivemos 29. Como apontou Benjamin na citação acima, o trabalho produtivo é um dos grandes culpados pela falta da memória e do sentido daquilo que fazemos cotidianamente. Sendo esse o fator principal, e os grandes males que ele causa, a narrativa deixa de possuir o que lhe serve de base para a sua existência, ou seja, a experiência e a memória. Na primeira lhe é privado o direito de acontecer pelo modelo de produção e vida capitalista, na segunda, pelo fato da ausência de experiência e da forma de literatura que não garante um perpassar de ensinamentos, como ocorre no romance e na notícia informativa. Percebe-se que Benjamin não distância a narrativa da experiência, sendo ela a mais artesanal e simples possível. Assim sendo, a arte de narrar e a vida do povo não possuem uma distinção e nem se quer uma distância. Quando é apresentado no ensaio O narrador a figura de Nikolai Leskov está sendo trazido à tona a presença de um 28 29 Idem, p. 220. Meinerz, 2008, p. 42. 84 Filosofia com Poesia escritor que não fazia distinção entre a narrativa e a experiência, ou entre a arte de narrar e a vida do povo. O próprio Benjamin aponta que “segundo Gorki, ‘Leskov é o escritor... mais profundamente enraizado no povo, e o mais inteiramente livre de influências estrangeiras’. O grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais” 30. Estar enraizado no povo é encontrar nele a fonte da experiência, vivida, compartilhada e transmitida a outras gerações. É nesse quesito que Benjamin percebe que o artesanal, evidenciado em Leskov, encontra na narrativa a sua dimensão de sabedoria transmitida. Porém, a narrativa necessita do artesanal, ou seja, da experiência, para encontrar a sua autenticidade, pois é nela que encontra o seu significado, pois a ela lhe oferece o sentido que por si própria não possui. Nos escritos de Leskov, Benjamin encontra a base para formular e apresentar o sentido da narrativa. Nesse processo manual, nessa arte, é que se evidencia realmente a experiência, e Leskov se vê atraído por essas questões para produzir seus escritos narrativos. É sobre esse prisma que Benjamin consegue identificar no trabalho manual, em que a mão encontra a matéria prima, a base da experiência e, consequentemente, a fonte da arte narrativa. Porém, Benjamin consegue dar um passo maior que o próprio Leskov, identificando na própria vida humana um processo de construção artesanal, e, a partir desse processo, encontra a base para a narrativa. Por esse motivo, coloca entre 30 Benjamin, 1994b, p. 214. 85 Filosofia com Poesia as últimas linhas do ensaio O narrador as seguintes afirmações e questionamentos: a relação entre o narrador e sua matéria — a vida humana — não seria ela própria uma relação artesanal? Não seria sua tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência — a sua e a dos outros — transformando-a num produto sólido, útil e único? 31 Conclusão Enfim, evidencia-se que o narrador, na filosofia de Benjamin, retira da experiência o que ele conta: a sua própria ou a experiência relatada pelos outros. Disso decorre o convite a dar significado à nossa vida, crescendo na habilidade de narrar a nossa história. O narrador é o homem a quem a ele próprio transmite o seu saber. Para isso, precisará da sua alma, do seu olho e da sua mão, pois ambos estão no mesmo campo. Interagindo, eles definem uma prática, a da narrativa, pois, a narração não é de modo algum o produto exclusivo da voz. A coordenação da alma, do olhar e da mão é típico do artesão. A narrativa é uma forma artesanal de comunicação em que o narrador busca a coerência com a verdade da sua existência. Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Assim, imprime-se na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso, demonstrando que a matéria prima desse artesão é a vida humana. 31 Idem, p. 221. 86 Filosofia com Poesia Referências Benjamin, Walter. Experiência e pobreza. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994a. Benjamin, Walter. O narrador. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994b. Franco, Renato. 10 lições sobre Walter Benjamin. Petrópolis: Vozes, 2015. Gagnebin, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1999. Gagnebin, Jeanne Marie. Lembrar Escrever Esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006. Hartmann, Sara. Walter Benjamin e Paul Ricoeur: narração e experiência por vir. Cadernos Benjaminianos, v. 9, n. 1, 2015. Disponível em: periodicos.letras.ufmg.br/index.php/Cadernos benjaminianos/article/view/8598. Acesso em: 04 abr. 2022. Meinerz, Andreia. Concepção de experiência em Walter Benjamin. Dissertação de Mestrado. Rio Grande do Sul: Programa de Pós-Graduação em Filosofia–UFRGS, 2008. Rebuá, Eduardo. Insólito Benjamin. Rio de Janeiro: NAU editora, 2019. 87 “Mas para nós, a existência ainda é encantada”: sobre a existência, em Rilke e Heidegger Daniel Rodrigues Ramos Meditar (besinnen) é pôr a reflexão a caminho, perseguindo o sentido de seu tema. O pensamento medita ao se colocar, na acolhida, junto à doação do sentido daquilo que se busca compreender, o que por si mesmo já se pôs como tema. Assim, meditando ao modo fenomenológico, o pensamento não determina itinerários prévios e nem inventa paisagens. Antes, entrega-se ao trabalho de perscrutar os caminhos que o tema mesmo lhe oferece. Desse modo, sonda os acenos das paisagens da ambiência em que o tema se assenta. Como caminhante que trilha caminhos, veredas, deixando-se ser conduzido pelo ambiente ou pelas paisagens do campo, assim é o pensamento ao meditar fenomenologicamente. Pensar ao modo de uma meditação (Besinnung) fenomenológica 1 é possível, portanto, somente a quem se Aqui se utiliza a palavra meditação (Besinnung) para descrever o modo de pensar, o qual, ao ser provocado e tomado por sua questão, o pensado deixa aquilo que nela é pensado determinar a si por mesmo, também o que dele deve ser dito e como deve ser 1 Filosofia com Poesia apropria e se preserva na pobre disposição de acolher do caminhar a direção necessária. No fim de longo percurso, no entanto, poderá darse conta de que não está tão longe do ponto de partida. Pois muito caminhamos, perseguimos temas não para nos distanciarmos, mas para voltarmos à origem, onde desde sempre estávamos e ainda estamos. Em todo caso, para que meditemos ao modo fenomenológico é preciso que o campo mesmo nos en-caminhe por suas veredas, nos colocando face a face com aquilo que constitui o nosso tema. Por onde iniciar, portanto? O tema dessa meditação é a existência humana. Sabemos de nós mesmos como existentes e esse saber seria um bom ponto de partida. Contudo, tal saber não significa que a existência para nós se tornou uma questão. Somente assim se configura à medida que permitimos que a existência nos doe o sentido de nosso ser, isto é, que nos tornemos próximos daquilo que nos é o mais íntimo. Mas, na maioria das vezes, somos distantes do que nos é tão próximo; embora estejamos totalmente imersos na existência, dito. Por isso, esse pensamento não é um mero dizer sobre, mesmo que logicamente correto, mas uma disposição, como acena os étimos alemães besinnen e Besinnung, de manter-se na proximidade (indicado pelo prefixo be-) do pensado no puro recolhimento de seu sentido (Sinn, veja o radical -sinn). Meditação ou o pensamento do sentido é, portanto, o pensar que se en-caminha na direção que o pensado toma por si mesmo, por isso, “entregar-se ao sentido é a essência do pensamento que pensa o sentido (Besinnung)” (Heidegger, 2002f, p. 58). A palavra meditação, por fim, não possui qualquer sentido místico-religioso, mas nomeia o pensar que toma o método fenomenológico como orientação, de modo que meditar não é outra coisa que ver e tentar compreender o sentido do ser daquilo que se vê a partir de como se mostra e tal como se mostra. Para melhor compreensão do método fenomenológico, cf. o § 7 de Ser e Tempo, de Martin Heidegger (2000, p. 56-70). Embora tomando os acenos da poesia de Rilke, essa meditação assumirá a fenomenologia heideggeriana e seu modo de proceder no exercício de pensar a existência humana. 90 Filosofia com Poesia comportamo-nos como se fôssemos a ela alheios, fazendo das coisas e dos fatos que nos rodeiam o nosso primordial interesse. Absolutizamoos como “temas” quase únicos. O nosso próprio modo de ser não nos reivindica e, assim, não se torna para nós uma questão digna de ser pensada 2. E, portanto, parece-nos que o saber cotidiano pelo qual sabemos de nós mesmos como existentes não poderá nos guiar nessa nossa meditação. Por outro lado, não podemos descartá-lo, senão descartaríamos a nossa concreção, a facticidade de nosso existir individual ou histórico. É com ele, portanto, que deveremos travar uma luta para empreender nosso caminhar meditativo. É lutando com nós mesmos que poderemos entrar na esfera da existência. Então, pode nos dizer algo de essencial a respeito da existência, a partir dela mesma, só quem travou uma luta de vida e morte em busca do sentido do existir. Entre eles estão os poetas. Um deles, Rainer Maria Rilke 3, nos diz: Cantar é existir. Para um deus, muito fácil. Mas para nós, quando é que existimos?” 4. 2 Heidegger, 2002a, p. 120. Escritor austríaco e um dos mais importantes poetas de língua alemã. Nasceu em Praga em 1875, na época, pertencente ao império austro-húngaro. Estudou nas universidades de Praga, Munique e Berlin. Entre suas obras mais importantes, em versos, estão O livro das Imagens (Das Buch der Bilder, 1902), O livro das horas (Das Studen-Buch, 1905), Novos Poemas (Neue Gedichte, 1907-8), Sonetos a Orfeu (Die Sonette an Orpheus, 1923) e Elegias de Duíno (Duineser Elegien, 1923). Essas duas últimas são escritas durante um período em que viveu retirado no Castelo de Duíno (Itália) e Sierre (Suíça), nos períodos, respectivamente, de 1910-12 e 1919-1923. Em prosa, destaca-se A canção de amor e morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke (Die Weise von Liebe und Tod des Cornets Christoph Rilke, 1906) e Os cadernos de Malte Laurids Brigge (Die Aufzeichnungen des Malte Laurids Brigge, 1919). Nos últimos anos de sua vida viveu retirado no castelo de Muzot, Suíça. Faleceu em 29 de dezembro de 1926, em Valmont, Suíça. 4 Rilke, 2005, p. 25. Estes versos pertencem ao terceiro poema, primeira parte, da obra Sonetos a Orfeu. A obra se divide em duas partes e os sonetos são não intitulados, 3 91 Filosofia com Poesia Cantar é o modo de dizer dos poetas 5. Ademais, do cantar deles depende a realização do seu existir, determinando o sentido dessa realização. Rilke diz, sucintamente, cantar é existir. Então, cantar é questão de vida e morte 6. Para um deus, muito fácil! Para um mortal, porém, uma tarefa arriscada, pois não deve ser escolha subjetiva, entre outras, da mera ocupação de cantar, mas sua decisão mais pessoal a respeito do porquê estar e como estar sobre a terra. Mas a poesia, como crê a compreensão vulgar e cotidiana, não seria um mero jogo da apenas enumerados. Indicaremos a parte a que pertence cada soneto, seguida do numeral que ele recebe. Utilizaremos a tradução brasileira de Emmanuel Carneiro Leão, publicada pela Editora Vozes. 5 Heidegger, 2003b, p. 141-147. 6 Para Rilke, assim como em todos os grandes poetas, ser poeta é uma necessidade existencial e, portanto, dizer que seu canto é uma questão de vida e morte não é simplesmente eloquência retórica que lança mão de um ornamento linguístico. É o que é possível entrever, por exemplo, na carta enviada ao jovem poeta Franz Xaver Kappus, em 1929, depois de haver recebido uma missiva, na qual Kappus pedia conselhos sobre sua carreira e apreciação de seus poemas. Nessa carta, Rilke (2004, p. 26) responde ao seu correspondente: “Pois bem — usando da licença que meu deu de aconselhá-lo -, peço-lhe que deixe de tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer nesse momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que lhe manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto, acima de tudo, pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: ‘Sou mesmo forçado a escrever?’ Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar aquela pergunta severa por um forte e simples ‘sou’, então construa a sua vida de acordo com essa necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão”. Porque a poesia consome toda a vida do poeta como uma necessidade, ser poeta, pois, não é uma mera ocupação, na qual o homem se entrega ao jogo da fantasia, ao reino do imaginário. Nesse sentido, a poesia seria tão somente uma ação, um fazer arbitrário do homem, ademais, inócua. Pelo contrário, a poesia é o acolher, na liberdade, de uma possibilidade do existir, experimentada como uma indigência, isto é, como um “aperto” existencial, uma constrição de não poder existir a não ser no e por meio do poetar. Carece-se de poetar para ser si mesmo, construir a própria identidade. Como tal possibilidade obrigante, a poesia sempre compromete a inteira existência do homem de um modo sério e decisivo, isto é, como se disse acima, uma necessidade que consome toda uma vida. 92 Filosofia com Poesia linguagem, uma brincadeira com imagens que o poeta expressa os seus sentimentos? Portanto, não seria algo inofensivo e sem qualquer eficácia e utilidade para o mundo das ações e decisões humanas? Nesse sentido, a poesia residiria no reino das coisas não essenciais para a existência humana. Como poderia, então, comprometer todo o existir do poeta? Entretanto, precisamente por ser um jogo da linguagem, nela se põe em risco o ser do homem em sua propriedade. Mas por quê? Ora, a linguagem não é apenas um instrumento de comunicação e de inserção do homem no mundo da ação e gerenciamento dos entes. Ao contrário, ela é o espaço essencial de manifestação de sua existência e, assim, de decisão sobre seu destino histórico. Desse modo, como em tudo que é essencial ao homem, a poesia (res)guarda, sob a aparência de inutilidade, ineficácia e inocência, algo decisivo e perigoso 7. Mas justamente por essa razão, o poeta canta, celebrando a existência, e “mesmo diante da poeira, a voz nunca lhe falta” 8: Mas para nós, a existência ainda é encantada, ainda é Origem, em muitas estâncias. Um jogo de forças Puras, que ninguém toca, senão de joelhos e com admiração 9. Esses versos também pertencem ao poema de Rilke, do qual se extraem os versos que dão título à presente meditação. Mais 7 Heidegger, 1997, p. 128-133. Refere-se a dois versos dos fragmentos de Hölderlin que Heidegger (idem, p. 126-48), na discussão sobre a essência da poesia, toma como palavras-guias, a saber: “Poetizar: a mais inocente de todas as ocupações” (III, 377) e “E é dado ao homem o mais perigoso dos bens, a linguagem... para que se mostre o que é...” (IV, 246). (apud idem, p. 126). 8 Rilke, 2005, p. 33, parte I, 7. 9 Idem, p. 91, parte II, 10. 93 Filosofia com Poesia especificamente, pertencem ao décimo soneto da segunda parte da obra Sonetos a Orfeu. Nesses sonetos é possível entrever que a poesia desse poeta é uma privilegiada realização da existência 10, é um dizer em que o poeta se inclui totalmente no que se diz, porque toda sua vida pertence a esse dizer, está tomada por ele. O incluir-se do poeta no seu próprio dizer revela sua decisão de deixar que o dizer mesmo o busque, envolva-o, para que venha ser um dito que se diz a partir daquilo que o alcança na sua existência. O dizer dos poetas de grande porte, como Rilke, não é obra de seus méritos, mas da poesia, de tal modo que o poeta é em si mesmo “pura recepção” e seu cantar nada pede ou inventa, mas se subtrai a toda tentativa de impor-se deliberadamente ao tema de seu canto ou poesia 11. Por essa razão, a palavra desse poeta será nossa palavra-guia ao longo desse texto, o qual pretende ir avante no ritmo de uma meditação. Seguindo a fala do poema, nos encaminharemos por uma vereda que, esperamos nós, nos faça aperceber com clareza o sentido de nosso existir. Por isso, de antemão, nada melhor que ouvir o poeta e, perscrutando o sentido de seus versos, deixar a sua poesia, de imediato, nos lançar no caminhar desse caminho. Assim dita poeticamente Rilke 12: A máquina ameaça tudo que se conquistou, Ao pretender estar no espírito e não na obediência. Para que a hesitação magnífica da mão já não resplandeça mais bela, Talha a pedra com maior dureza para uma construção mais ousada. 10 Leão, 2000, p. 48-49. Heidegger, 1960b, p. 260-261. 12 2005, p. 91, parte II, 10. 11 94 Filosofia com Poesia Em lugar nenhum fica para trás, assim nunca lhe escapamos E, lubrificada na fábrica silenciosa, ela se pertence a si mesma. É a vida, — ela pretende o maior poder, Com igual decisão ordena, cria e destrói. Mas para nós, a existência ainda é encantada, ainda é Origem, em muitas estâncias. Um jogo de forças Puras, que ninguém toca, senão de joelhos e com admiração. Palavras ainda passam rentes ao indizível... E a música, sempre nova, nascida de pedras vibrantes, Constrói, no espaço inútil, sua morada de deusa. Como se vê, o verso acentuado e destacado como título do texto pertence à terceira estrofe. Nela se canta a existência humana com as imagens do jogo e da força que parecem estar, em virtude do “mas” que inicia a terceira estrofe, numa oposição irreconciliável com as imagens da máquina e da fábrica, presentes nas estrofes anteriores. Além do mais, a existência humana é colocada dentro de uma ambiência poética marcada com gestos de reverência e atitudes apropriadas a quem está diante de uma realidade mais divina que humana. Tudo isso nos parece, de início, demasiadamente ingênuo e fantasioso. E nos parece assim justamente porque é poética, uma vez que para nós, segundo o senso comum, a poesia é apenas uma forma literária em que seu autor abusa de figuras imaginárias e fantasias para expressar sua experiência com o concreto. Poderia, então, o poeta, no seu jogo de delírio e ilusões, dizer algo a nós que queremos meditar sobre o tema que toca a essência de nós mesmos: a existência? 95 Filosofia com Poesia Dissemos anteriormente: o texto que aqui inicia propõe ser uma meditação fenomenológica em torno da existência humana. Quer ser uma experiência do pensamento e, como nos ensina a tradição filosófica, somente poderá ser admitida como uma experiência pensante se for apta para dizer de forma clara, lógica, rigorosa, na forma de conceito, não deixando nada sob véus da obscuridade. Não obstante, parece-nos o poeta fantasioso e delirante. Seu dizer, portanto, em nada poderá nos auxiliar a dizer filosoficamente algo sobre a existência. No entanto, como se indicará mais à frente, em toda grandeza de uma poesia ressoa uma experiência pensante, do mesmo modo que o pensamento só se atém ao que verdadeiramente deve ser pensado se for uma experiência poética. Pensamento e poesia, cada qual a seu modo, se instauram no mesmo campo. Trilham caminhos diferentes, mas por se encontrarem no mesmo âmbito, necessitam-se mutuamente 13. Mas apenas saberemos isso depois de nos medirmos com a poesia, se estivermos dispostos a um caminho que nos faça perceber que a poesia não é uma expressão das mundividências, vivências psíquico-sentimentais ou, ainda, experiências delirantes do poeta por meio de imagens. Antes, ela é um acontecimento revelador do ser. Na correspondência a esse acontecimento, enquanto uma obra da estrutura fundamental da existência humana, a linguagem, ela é também uma instauração da essência originária do homem. Sucintamente, poesia é a instauração da essência do homem no seu corresponder ao originário acontecimento 13 Heidegger, 2003b, p. 133. 96 Filosofia com Poesia do ser. Onde há poesia, o homem cumpre sua missão de tornar-se, pela linguagem, testemunha do mistério do ser por meio de sua existência histórica 14. Mas, por ora, deixemos essa afirmação ressoar com toda a sua força e estranheza que ela gera em nós. Nossa compressão dela é ainda muito provisório. Mas essa disposição nos prepara para experienciá-la de modo pensante. Quiçá, assim, depois de meditarmos a palavra do poeta, ser-nos-á possível apreender sua ressonância em nós com maior precisão, isto é, responder ao que ela nos solicita e convoca com uma transformação de nossa existência. Técnica, a existência sob risco A máquina e a essência historial da técnica O canto que celebra a existência, num tom festivo, introduz-se de um modo que, à primeira impressão, parece-nos catastrófica. Nesse sentido, o canto festivo da celebração afirma-se como uma denúncia do poder da máquina: A máquina ameaça tudo que se conquistou, Ao pretender estar no espírito e não na obediência. A máquina, esse artifício fabricado para facilitar a vida cotidiana e tornar mais leve o peso do trabalho humano em busca da subsistência, é cantada como a causa que põe em risco todo ganho conseguido pelos homens à custa de muito suor. Desde a Revolução Industrial, porém, a 14 Heidegger, 2004, p. 64-65, 69-70. 97 Filosofia com Poesia máquina faz parte do agir humano, na exploração da terra e transformação dos recursos naturais em vista da produção de artefatos em larga escala. Entretanto, hoje, a máquina exerce seu domínio para além dos processos de produção industrial e se interpõe em todas as atividades e espaços de convivência humana. As máquinas nos rodeiam por toda parte como meios para diversos fins, mediando nossa relação com todo ente: o computador, o telefone celular, a televisão, tão próximos de nós, mas também o mais avançado avião a jato destinado para a guerra, os geradores e as turbinas das usinas de força assim como o mais especializado instrumento de pesquisa científica, sem o qual a ciência não conseguiria manter vivas suas metas em direção ao progresso do conhecimento científico. Por isso, nosso modo de relacionar com o real já é radicalmente diverso dos antigos modos de produção artesanal. Por exemplo, o lavrar a terra do camponês de outrora já não é o mesmo da moderna agricultura, que é orientado, do início ao fim, pelas metas do agronegócio e da indústria alimentícias com os meios técnicos e tecnológicos empregados por esses setores. E essa mudança ocorre justamente porque a máquina pertence ao universo da técnica moderna que transformou radicalmente nosso estar-no-mundo junto às coisas e, atualmente, alcançou um domínio planetário. Da técnica moderna, a máquina não é senão sua face mais visível, o signo de seu estágio mais avançado 15. 15 Heidegger, 1960a, p. 68. 98 Filosofia com Poesia Celebrada com muito ardor é a técnica nos nossos dias por muitos. Porém, outros não deixam de perceber os perigos que o domínio planetário da técnica instaura. Ao contrário do esperado, ameaça justamente a existência humana sobre a terra. No entanto, é quase de comum acordo interpretar essa ameaça dentro dos horizontes da concepção instrumental e antropológica da técnica, ou seja, como um conjunto de meios para alcançar uma atividade, mas cujo estabelecimento dos meios é, em última instância, uma atividade humana 16. Sob o poder do homem, estaria a técnica. Em última instância, dependeria do arbítrio humano em pô-la a serviço de causas nobres ou utilizá-la para a destruição planetária. No final, essa compreensão reafirma a técnica como uma criação do homem e também o paradigma metafísico do ser humano como sujeito e esse, historicamente, apresenta-se na figura do senhor de todas as coisas. Nesse modo de pensar, todo esforço, portanto, para garantir o justo relacionamento com a técnica, consiste em colocá-la sob o domínio do homem 17. Se o controle da técnica escapa ao homem, nessa direção, a questão se reduz ao como reconduzi-la ao seu domínio, restaurando o seu poder. A técnica, enquanto criação do homem, deve obedecer aos 16 A determinação da essência da técnica a partir da compreensão instrumental provém do estágio último da história da metafísica, em que ocorre um progressivo abandono do ser como tal a favor de uma antropomorficação do fundamento de todo o real, consolidando o paradigma metafísico da subjetividade, característica da época moderna. Desde essa época, o homem moderno se reconhece “como senhor de todas as coisas” (Heidegger, 1995, p. 641-646; 1960a, p. 82-83). 17 Heidegger, 2002e, p. 11-12. 99 Filosofia com Poesia seus ditames. E parece ser a essa ideia que o poeta nos remete, quando diz: A máquina ameaça tudo que se conquistou, Ao pretender estar no espírito e não na obediência. Lendo desse modo a palavra do poeta, apressadamente concluímos que a técnica arrisca nossa existência porque não está sob nosso comando, isto é, na obediência. Transformando o dito poético num dito filosófico, assim, poderíamos dizer: a máquina, a essência da técnica, ameaça tudo que se conquistou, ao pretender estar no espírito e não sob o controle do homem. Mas não dissemos nós, ao reafirmar a compreensão instrumental e antropológica da técnica, que a questão central não seria administrar a técnica com “novo espírito”? Não é quase unânime que isso impedira um senhorio dela sobre nós, garantindo com eficácia que sejamos nós os justos senhores da técnica, uma vez que é um instrumento gerado por nós? O poeta, porém, diz que é justamente quando a máquina está no espírito que é fonte de ameaças. O que quer dizer o poeta ao enunciar a palavra espírito? Será que bem ouvimos o dito poético, quando assim o interpretamos? Certamente não. E não apenas porque caímos nós mesmos numa contradição lógica ao interpretar mal o dito poético, mas principalmente porque não somos capazes de pensar, por vias de categorias antropológicas e do caráter instrumental da técnica, a própria essência 18 da técnica. E, enquanto 18 Essência não é pensada metafisicamente, ou seja, como generalidade abstrata de várias espécies em concreto. Mas sim como aquilo que faz o fenômeno da técnica moderna 100 Filosofia com Poesia não for determinada a essência da técnica, não passa de um clichê atribuir à técnica o perigo de uma dominação planetária ou um poder demoníaco. O caminho que tomamos nos obriga, então, a perguntar: qual a essência da técnica? Supondo, portanto, que a técnica não seja apenas um conjunto instrumental, o inofensivo meio para diversas atividades humanas, a essência da técnica, certamente, não possui nada de técnico 19. Como indica a etimologia, a técnica moderna possui suas raízes no antigo saber artesanal dos gregos, a τέχνη Com essa palavra, os gregos designavam todo processo artesanal de produção das coisas; no seu vasto campo semântico, incluíam as belas-artes. Τέχνη pode também ser traduzida por arte, como quando séculos atrás o termo fora vertido para vernáculo latino (ars, artis), mas com o cuidado de não reduzir essa compreensão ao setor da cultura e da estética, tal como se percebe a situação da arte hoje. Arte, para os gregos, era todo fazer humano que conduzia o ente à luz no modo artesanal, mas era sobretudo um modo de conhecimento. Ela é o saber de um perito experimentado no produzir artesanal, na arte de fazer surgir os entes que não podem vir à tona por eles mesmos. Desse modo, é uma das disposições criadoras da existência humana, pelas quais os homens deixam surgir o seu perdurar, isto é, como ela se mostra e permanece como doação de sua determinação ou proveniência originária (Heidegger, 2002e, p. 32-34). 19 Heidegger, 2002e, p. 11. 101 Filosofia com Poesia mundo histórico mediante a produção das coisas a ele pertinentes. Definindo o âmbito epistemológico da τέχνη, Aristóteles 20 esclarece: Como não há nenhuma perícia (τέχνη) que não seja também uma disposição produtora conformada por um princípio racional (µετά λόγου ἀλητοῠσ ποιητική), nem há sequer nenhuma disposição desse gênero que não seja ela própria uma perícia, segue-se que a perícia é o mesmo que uma disposição produtora segundo um princípio verdadeiro. Por outro lado, toda a perícia tem em vista trazer algo à existência. Produzir com perícia significa ver como se pode produzir alguma das coisas que podem ser ou não ser. O seu princípio originador radica no elemento produtor (ἡ ἀρχὴ ἐν τῷ ποιοῡντι) e não na coisa que é produzida. Pois, na verdade, não há nenhuma perícia que se aplique aos entes que são ou vêm a ser por uma necessidade intrínseca, nem aos entes que existem por natureza (κατὰ φύσιν). Segundo essa antiga compreensão, como testemunha Aristóteles, a arte é então o “processo” pro-dutor (dito em grego, a poíesis, ποίησις, que tem sua origem (ἀρχὴ no homem, precisamente, na disposição criadora de sua existência. Graças a essa disposição, ele é capaz de trazer o ente à vigência (αληθευειν). Assim fazendo, o homem produz, “faz poesia”, justamente por meio da técnica, se lêssemos o termo τέχνη literalmente. Para evitar o risco desviante dessa leitura ou tradução literal, é preciso lembrar que o significado da τέχνη não reside em processos técnico-operacionais, mas sim se encontra no plano de realização de tudo que é, portanto, ontológico. 20 2009, p. 132, 1140a 9-16. 102 Filosofia com Poesia Desse modo, τέχνη nomeia a capacidade humana de conduzir o ente à sua verdade (αλήθεια); é um modo de desvelá-lo (ἀληνθεύειν) no seu ser e, nisso, de dizer a sua verdade por meio de um “saber-fazer”. Porém, isso se faz mediante algo que é tipicamente humano, isto é, em virtude da propriedade que, para os gregos e a tradição ocidental, caracteriza o homem na sua essência, o λόγος. Por lógos, não se entende aqui simplesmente uma habilidade lógica, a capacidade de induzir e deduzir conclusões corretas, mas sim um poder discursar o mundo, deixar emergi-lo por meio de um auscultar e recolher o sentido daquilo que surge por si mesmo (κατὰ φύσιν) ou daquilo que só vem a ser por meio da colaboração humana, conduzindo à realização das possibilidades daquilo que não se desvela por necessidade intrínseca. Assim, a arte é um modo de discursar o mundo, colaborando com o desvelamento dos entes que nele podem se apresentar com a ajuda da mão humana, precisamente, do pro-duzir (ποιέω) em sua amplíssima envergadura. Tal produzir discursivo do mundo abrange, por exemplo, o fazer, o fabricar coisas de uso, utensílios, instrumentos, o cultivar, o construir, o promover o bem-estar da saúde, mas também criar obras de arte. É toda forma de gerar ou de dar origem que tem no humano o seu princípio. A arte enquanto τέχνη, então, é só um dos modos que a existência humana dispõe para construir o mundo, distinta das demais por ser essencialmente referida àquilo que é deveniente, aos entes que podem ser ou que guardam em si determinada latência de nele se 103 Filosofia com Poesia (a)presentarem na sua verdade, mas não a manifestam nem a consumam por si mesmos. Para colaborar com esse (a)presentar-se do ente que está a caminho do seu ser, de revelação de sua verdade, a arte deve ser também caracterizada como conhecimento, melhor, como modalidade de saber, próprio do “fazer” ou do “poematizar”, isto é, de todas aquelas atividades que trazem à luz o real. A τέχνη é uma forma epistémica do lógos desencobrir o ente na sua verdade 21. Por isso, a técnica grega se dá µετά λόγου ἀλητοῠσ ποιητική 22. Ressaltamos a expressão µετά λόγου. E ela diz: em conformidade com o lógos, segundo um princípio “racional” de um saber específico da ποίησις e relativo às coisas que estão em transformação. Por conseguinte, por meio de uma ἐπιστήµη, “ciência”. Mas que tipo de episteme? Trata-se daquela perícia que sabe desvelar o real que não pode vir à luz por si mesmo, conduzindo-o a vigência a partir daquilo que propõe em si mesmo, isto é, do saber ciente não só de seu inerente potencial de realização, mas também de como trazê-lo à luz de modo que a sua realização seja consonante à força e às tendências pertencentes à sua potência de vir a ser. A arte não forja, sua ciência é desencobrir. Simplesmente, ela deixa ser, porque só realiza certas possibilidades de ser, determinadas potencialidades de realizações que já pertencem ao produzível, antes mesmo do toque da mão humana — o que pressupõe um saber muito 21 22 Heidegger, 2002e, p. 17. Aristóteles, 1962, 1140a 20-21, p. 117. 104 Filosofia com Poesia peculiar de vê-las, prevê-las e encaminhá-las à consumação que não coaduna com o inventar por meio do idealizar, planejar, controlar processos, fazer surgir enquanto fabricação, enfim, numa só palavra, maquinar. O saber da τέχνη, portanto, é um (fazer) ver capaz de descobrir sentidos de ser, seja enquanto algo latente ou certa possibilidade que pulsa por vir à luz, como aparência plenamente manifesta na obra acabada, mas que só se tornou patente por graça da mão ou fazer humano. Por isso, a técnica grega ou arte pertence ao reino da criação, da ποίησις, que sem dúvidas é um modo de produzir, mas não no sentido do fabricar moderno, mas naquele em que o artista ou artesão produz na medida em que se põe a favor (pro-) daquilo que é conduzido à aparência 23. Em base da concepção acima acenada, é-nos dado dizer que a técnica grega é essencialmente poética (ποιητική, jamais maquinal. Portanto, a arte é o saber pelo qual o homem responde pelo e ao real de modo poético. E aqui já podemos acenar que, originariamente, a relação do homem com o ente na sua totalidade é poesia (Dichtung), no sentido que, existindo, o homem co-responde ao ente na sua totalidade, fazendo nascer o mundo, gerando o real em mil possibilidades a partir do que o ente doa de si mesmo. Sua relação originária com o ente é poética, portanto, quando não domina o ente com uma medida previamente determinada, mas nele acolhe com Note que, na raiz das palavras produção e produzir, há o verbo latino ductere que é justamente o ato de conduzir, guiar, levar. 23 105 Filosofia com Poesia benevolência os apelos do ser 24. Diante desse ganho provisório, perguntemos se a técnica moderna ainda é um modo poético de habitar o todo, responder pelo real. Será que o seu modo maquinal de produzir guarda algo de poético? Com isso, abriremos um caminho para interpretar o dito poético, que nos diz que máquina ameaça justamente quando pretende estar no espírito. Haveria ainda poesia na técnica moderna? Técnica domo desvelamento exploratório Segundo a conceção grega, a origem, ἀρχὴ, encontra-se no elemento produtor. Disso concluímos, o homem é o princípio de tudo que vem à luz pela arte. De fato, ele e a causa eficiente de toda produção, embora não seja a única. Com isso, não estaríamos a dizer que a arte seria um instrumento a serviço do domínio do homem? Não haveria uma contradição com o anteriormente dito? Se não há, qual a diferença, então, da arte dos gregos com a moderna técnica? A resposta a essa pergunta, paradoxalmente, depende de determinar primeiramente o que elas possuem em comum, o que as mantém essencial e historicamente interligadas. Somente depois seremos capazes de determinar o que as separa, identificar com rigor o elemento que estabelece um fosso no seio da mútua pertença histórica entre τέχνη e técnica moderna. Também a técnica moderna é uma forma de descobrimento e, assim como a τέχνη, possui sua dimensão 24 Heidegger, 2002, p. 178-180. 106 Filosofia com Poesia essencial nessa capacidade humana de pôr algo em desencoberto, isto é, no âmbito da verdade 25. Desse modo, a moderna técnica é igualmente uma forma de desvelamento que desencobre possibilidades de ser, que consuma potencialidades de realizações (ἀληνθεύειν). Contudo, uma transformação decisiva acontece na técnica moderna: ela perde sua relação primitiva com a ποίησις e, assim, se configura como desencobrimento que rege um processo de exploração (Herausforderung). Tudo que entra sob o domínio do homem, por meio da técnica moderna, se torna algo a ser explorado em sua energia, a qual é destinada a ser armazenada, processada e, por fim, distribuída 26. Assim, a técnica abre o ente pela força dos métodos de exploração planejados e controlados e ex-põe todo o real como fonte de energia. Desse modo, ela não deixa o ente, à medida que o desencobrimento peculiar ao abrir explorador-expositor o atingiu, vigorar a partir de si mesmo. Nessa transformação, está em questão uma predeterminação do modo de ser do ente naquilo que é ou pode ser, no seu ser, pois ele pode comparecer no mundo senão se admitido de antemão como uma fonte de energia, exclusivamente no modo de ser e de comportar-se, previstos e planificado pelo homem, que o predispõe para os fluxos da produção técnica. O caráter maquinal da técnica moderna tem raízes ontológicas, não tão somente razões operacionais, pragmáticas. Do início ao fim, pois, o ente deve ser aquilo que o prende nesses processos 25 26 Heidegger, 2002e, p. 18. Heidegger, 2002e, p. 19. 107 Filosofia com Poesia produtivos, deve responder às metas impostas por tais fluxos. Por isso, o que está sendo passa a aparecer no mundo humano tão somente como um dispositivo, algo disponível para o uso, reuso, para ser integrado nos mecanismos de processamentos e consumo. É assim que cada dispositivo deve estar disponível numa intricada rede de processamentos, compondo um conjunto de dispositivos expostos a favor da exploração. Um rio, por exemplo, vigora como dispositivo de energia a ser explorada das forças de suas águas e, depois de processada, armazenada, deve estar à disposição de inumeráveis processos de distribuição interligados até que seja utilizada e reprocessada nas fábricas e residências. O rio não é mais ele mesmo, assim como o rio que, por exemplo, aparece na experiência cotidiana das populações ribeirinhas ou do poeta, quando canta: “O rio da minha aldeia não faz pensar em nada. Quem está ao pé dele está só ao pé dele” 27. Ao contrário, suas águas estão “pensadas” para a produção de energia e, assim, dispostas para usina; esta e seu produto, por sua vez, para a fábrica e assim por diante, estabelecendo-se uma armação 28 exploratória que inclui todos os entes na rede e tudo reúne sob o signo da 27 Pessoa, s/d, p. 31. Para indicar esse fenômeno, que Heidegger aponta como a essência da técnica, esse pensador utiliza a expressão Gestell, mostrando que ela é como uma armação originária que reúne o homem numa força que o leva “dis-por do que se des-encobre como disponibilidade” (Heidegger, 2002e, p. 23) dentro de uma con-juntura de entes (dis)postos como dis-positivos”. Por isso, Carneiro Leão traduz esse termo do vocabulário heideggeriano como com-posição. Na descrição do fenômeno, é importante notar a predominância do verbo pôr (stellen) para indicar o modo como os entes vigoram e são desencobertos na técnica moderna. Consequentemente, as palavras dispositivo e disponibilidade não devem ser pensadas na direção de uma mera instrumentalidade. 28 108 Filosofia com Poesia disponibilidade. O mundo humano é, desde o deslocamento da técnica do horizonte da ποίησις, a composição de dispositivos consumíveis. Nenhum ente escapa dessa rede exploratória e dispositiva. Também o ser humano é nela envolvido, à medida que ele historicamente afirma-se, também no seu ser, isto é, compreende o sentido do seu existir em ser o único ente que pode responder pelo real. E ele o faz, a partir da modernidade, mediante o poder explorador e forjador da técnica, então, conquanto consente ao apelo desse poder, impondo-o como o único para toda a forma de produzir. Assim, porém, também o homem é posto e disposto por esse poder, é integrado como elemento a mais nas relações da armação e obedece às convocações pelas quais a técnica se impõe em toda parte e instante, num domínio global. Nesse sentido, explorar não é apenas extrair da natureza sua força, mas o acontecimento que envolve o homem em seu ser e agir. É que, na sua essência, o explorar (herausfordern) não é uma mera atividade extrativa, mas sim a resposta do ser humano, em todas as vias de realização da sua existência, ao apelo de um pretensioso poder, a saber, aquele de pôr (stellen) por nós mesmos o real na sua realidade, abarcando-o na sua totalidade, o que exige e impõe que o real e nós mesmos vigoremos a partir da determinação ou categoria da disponibilidade (Bestand), aliás, no interior de uma rede intricada de processamento dos dispositivos (Bestellung). Enfim, com a emergência da técnica moderna, o relacionamento do homem com o ente na sua totalidade, há muito deixou de ser poético. Ele é, hoje, extremamente maquinal. Mas se esse maquinal é um modo de ser que preserva suas 109 Filosofia com Poesia raízes no desvelamento, talvez ele possa nos reconduzir à experiência poética de habitar, se o experienciarmos a partir da sua oculta origem. Mas isso é algo que não podemos avaliar aqui e, talvez, ainda não sejamos capazes no atual momento histórico de fazer tal avaliação com radical decisão. Por certo, é nisso que o poeta está a nos antecipar. Por isso, retornemos ao dito. Como se vê, a essência da técnica moderna não é nada de ingênuo ou um inofensivo utilizar dos instrumentos técnicos para a realização de atividades humanas. Também não é um conjunto de instrumentos perigosos, a ser manejado com precauções, já que, vezes ou outra, pode escapar ou drasticamente já se subtraiu ao controle humano. O perigo e aparente inocuidade da técnica é de outra ordem. É que a sua essência é capaz de pôr em jogo, de maneira decisiva, o modo do homem ser junto ao real no seu todo. Só o humano pode ser junto ao todo, tê-lo por familiar, então, habitar uns com os outros a vastidão da terra e dos céus. Por isso, a técnica não apenas põe em risco o viger das coisas, mas, sobretudo, a existência humana. Certamente, por essa razão que, cantando, nos diz o poeta: A máquina ameaça tudo que se conquistou, Ao pretender estar no espírito e não na obediência. A máquina ameaça e nós a tomamos como um aceno do universo da técnica. Por isso, a técnica ameaça quando está no espírito humano e não sob a obediência do homem. Na verdade, como acenado, se analisamos a técnica desde a nossa essência histórica e o seu papel 110 Filosofia com Poesia no destino da humanidade europeia, é o homem que está a existir obediente à técnica, na medida que ela se tornou o sentido de realização da sua existência. E isso porque, no dizer do poeta, a máquina pretende se instalar no espírito humano. Como entender essa afirmação enigmática? Certamente, ao espírito o poeta não opõe o material, caindo numa compreensão dualista de espírito. Espírito, que em alemão se diz Geist, no sentido originário, é aquilo que toma o homem, deixando-o fora de si, entusiasmado 29. É válido compreender o espírito no sentido de πνευµα, o que seria uma interpretação antropológica-cristã para espírito. No entanto, sigamos a pista dada acima acerca do espírito, que direciona para uma experiência de ser tomado por acontecimento extasiante. Geist teria seu correspondente na língua grega no termo que remete para um estar entusiasmado, com a conotação de estar arrebatado por uma inspiração ou por um furor divino — ἐνθουσιάζω. Ora, a técnica ameaça quando arrebata o homem e isso porque, em sua essência, por ser desencobrimento que explora, não se reduz ao mero feito do homem. Em última análise, não é o homem que toma a técnica em suas mãos, mas, ao manipular a técnica, já sempre respondeu ao apelo emitido pela técnica, fazendo-o recolher seu ser à disposição que tudo ex-põe ao modo de dis-positivo 30. A técnica não desafia e ex-põe somente as coisas que nos rodeiam, mas desafia também ao homem, pois é um destino preparado ao longo da história, 29 30 Heidegger, 2003a, p. 49-50. Heidegger, 2002e, p. 23. 111 Filosofia com Poesia desde os primórdios da idade moderna 31, que interpela o homem a apenas cultivar o mundo sob o domínio da exploração, em vista de assegurar tudo com fonte de reserva. Sobretudo, ela apela o homem no seu ser, pois o convoca a assegurar-se de si mesmo, a desdobrar as consequências da decisão de pôr a si mesmo como fundamento e causa última de tudo que é. Assim, o traço fundamental do desencobrimento da técnica moderna é o controle e a segurança 32. Ao pôr em obra sua existência dentro dessa busca desenfreada de controle e autoasseguramento, o homem se entrega livremente ao poder do desencobrimento explorador, sem que o perceba. A técnica toma o homem, remete-o para “fora” de sua essência, arrebata para um existir em que se vela estar ele mesmo dis-posto ao poder do desencobrimento 31 A história do Ocidente, na fenomenologia de Heidegger, se determina a partir da história do Ser, pois cada época histórica se configura sob o fundamento que é a doação de um sentido da verdade do ser. Ao longo da tradição, a metafísica a conceituou como ἶδέα, ἐνέργεια, actualitas, subjectum, cogito, sujeito absoluto, sujeito transcendental, Vida, vontade de potência e, por fim, a técnica. Assim, a história do Ocidente se confunde com as mutações da essência da verdade que são acontecimentos epocais, ou seja, determinações do ser (Heidegger, 1995, p. 863-910). Para compreender a técnica, em seu domínio planetário, é importante ressaltar que é ela a consumação da determinação da verdade como certeza de um sujeito representador, inaugurada por Descartes no início da idade moderna. A época moderna somente é possível à medida que o homem, enquanto sujeito, assegura em si e exclusivamente a partir de si a certeza de si mesmo, do objeto representado e do ato representador, impondo-se como fundamentum inconcussum, isto é, fundamento inabalável de tudo que é (Heidegger, 1960a, p. 81-82, 93-98; 1995, 651-673). É nesse sentido do autoasseguramento prévio da verdade como certitude que a época moderna pode solicitar as ciências matemáticas e exatas da natureza. A essência das ciências modernas, demonstra Heidegger (1960a, p. 68-75), é a previsão e o estabelecimento de um campo epistêmico que enquadra e padroniza o real investigado, fixando de antemão uma explicação do que é o ser do ente. Esse acontecimento epocal que assegura a partir do sujeito representador a certeza prévia e, por isso, permite a exatidão e o controle do real, terá sua máxima expressão na técnica moderna. 32 Heidegger, 2002e, p. 20. 112 Filosofia com Poesia explorador. A técnica o entusiasma, não no sentido que lhe causa uma vivência psicológica de encanto. Mas sim, ontologicamente, na direção abre sua existência e o põe numa relação maquinal com tudo que é, incluindo a si mesmo. Ela é o que perfaz a ex-sistência do homem moderno, guia a sua abertura e manifestação da sua in-sistência na sua histórica possibilidade de existir no mundo com os outros, habitando o imensurável da terra e dos céus. Até os dias de hoje, guiando a abertura de nossa existência, desde o arrebatamento da mais íntima e própria possibilidade de sermos nós mesmos, que a máquina pretende e consegue exitosamente morar no espírito humano. É esse o perigo! Não se trata de um perigo qualquer, mas do perigo por excelência. É justamente esse acontecimento que atualmente se doa como a essência do homem moderno, cuja consumação nos destina à essência da técnica: o impor-se incondicionado do homem sobre todo o real. O homem moderno não é alguém que está simplesmente junto às coisas, mas um sujeito de querer que só quer sua vontade como fundamento de todo o real 33. Para tanto, o homem moderno, de início, toma o mundo como conjunto de objetos, diante dos quais se coloca para obrigá-los ao poder de sua vontade incondicionada, até que, por fim, tudo perde sua determinação de objeto e adquire o caráter de dispositivo — projeto em que as ciências exatas da natureza possuem um papel essencial. A técnica moderna alcançou o seu êxito não somente porque a física moderna lhe preparou o caminho, mas porque 33 Heidegger, 1960b, p. 238-239. 113 Filosofia com Poesia as ciências exatas nas suas origens com a física moderna já operavam na essência ainda incógnita e não realizada da técnica 34. Para utilizar as palavras da poesia de Rilke, o perigo consiste em retirar o homem da “vida”, “do aberto”, “da natureza”, “da relação completa”, nomes para aquilo que o pensamento chama de o ente em sua totalidade 35. O perigo, então, mostra-se plenamente quando o acontecimento do ser pelo qual decidimos nos tornar sujeito e morar junto a objetos chega ao apogeu, a saber, quando o estar-junto-às-coisas de nossa existência já se realiza senão de modo maquinal, bloqueando para nós mesmos o caminho para uma relação originária com o ente na sua totalidade. Para que a hesitação magnífica da mão já não resplandeça mais bela, Talha a pedra com maior dureza para uma construção mais ousada. Em lugar nenhum fica para trás, assim nunca lhe escapamos E, lubrificada na fábrica silenciosa, ela se pertence a si mesma. É a vida, — ela pretende o maior poder, Com igual decisão ordena, cria e destrói. A vida é, porém, mais forte que a vontade impositora do homem; sua força é o recolher-se diante de qualquer pretensão de imposição humana, protegendo-se. Ela cria, mas também, ao se ausentar, desvigora o vivente. Não fica para trás ao retirar-se, pois pertence a si mesma. Mesmo assim, recolhida no seu ausentar-se, também nos envolve, pois é desse modo que é a “vida”, o todo na unidade do ser, em si mesma é presente. Com efeito, seu mistério é que está presente no seu encobrir34 35 Heidegger, 2002e, p.25. Heidegger, 1960b, p. 248. 114 Filosofia com Poesia se. Nesse acontecimento, vigora o paradoxo, o contraste que nos provoca ao pensamento e à poesia. Igualmente paradoxal é a situação da existência humana nos tempos de domínio da técnica. Ora, existindo segundo os ditames daquela vontade, o homem acolhe um sentido que se doa no “aberto” e para sustenta-lo na sua abertura. O sentido provém do ser. Porém, o que dele recebe já não é o mais originário. Pois aquele que se impõe pelo emprego da técnica (na verdade, como empregado ou funcionário da técnica) necessariamente tem que recorrer à objetivação para construir o seu mundo. Por força dessa objetivação, o mundo se separa da “relação completa”, do todo que reúne e referencia os entes entre si na unidade do ser. Com mais rigor, o homem livremente se afasta da possibilidade da correspondência ao ente como tal, no desvelamento de sua verdade. Dessa abertura do ente no seu todo, ele se desvia, mas para se voltar contra ela. Como dito, o espírito é o lance “para fora”, pelo qual a existência se abre e eleva seu mundo. Orientado pela máquina, nomeação poética para essência da técnica, esse lance não é mais a favor da “vida” em si mesma, da “natureza”, do “aberto”, o todo de relações que envolve cada ente — numa palavra, em termos heideggerianos, a clareira do ser — mas sim uma obliteração para assentar e alargar abertura da existência na amplitude dessa clareira. A essência da técnica, então, reside no apelo de um poder pelo qual o homem se afasta e se contrapõe à origem. Não só se opõe, pois sua oposição é ao modo do sujeito moderno que se erige mediante a contraposição ao ente, à origem que nele retraída e silenciosamente vigora, para objetivá-los. Sua existência não é mais encantada, não há 115 Filosofia com Poesia mais entusiasmo e arroubo provindos da origem; já não lhe atrai a “fábrica silenciosa da vida”. E se essa retração silenciosa de uma vigência onipresente é o que ainda provoca o pensamento e a poesia, vive-se na nossa época, mesmo que abundante seja a produção filosófica e literária, de rara poesia e pensamento. Entretanto, de um modo ou de outro, o homem já está sempre jogado no jogo da “vida”. Mesmo nos afastando do “aberto”, somos por ele afetados; desviando-nos do aberto, somos por ele enviados na realização de nossa existência. Nunca lhe escapamos; no seu abrir silencioso, nos envolve, nos impele a uma abertura da existência que deixa ser os entes, mesmo no modo precário da disponibilidade. Isso quer dizer que, no aberto, o homem, a todo tempo, em qualquer época histórica, está situado; desde a técnica moderna, porém, ele impediu o caminho para uma relação genuína com o aberto em que sempre já tomou parte. Em resumo, no maior dos riscos, na plenitude da realização da essência da técnica, o homem se divorcia do “aberto” para se voltar contra o “aberto” 36. Contudo, mesmo jogado fora de sua essência, o homem a realiza de outro modo, a saber, num deslocamento que o desloca, pela imposição deliberada, do meio desocultador de qualquer ente. Totalmente deslocado, toma todo o real dentro da “lógica” da disponibilidade; no extremo do perigo, interpreta o sentido do ser do ente no horizonte do dispositivo e constrói um mundo inabitável, pois constituído por um depósito de objetos, uma armação 36 Heidegger, 1960b, p. 242. 116 Filosofia com Poesia de recursos disponíveis à exploração. Nessa realização deslocada de sua essência, a existência-no-mundo, o homem arvora-se na figura de senhor de todas as coisas 37. Ao âmbito do “aberto”, porém, pertence originariamente o homem. É ele ser-junto-às-coisas, porque de um modo ou outro o espírito (no sentido de lance “para fora”, do extasiar da existência) já correspondeu ao aberto do ser, deixando os entes se manifestarem. Também nos tempos da técnica, sua existência tomou parte na “fábrica silenciosa” da “vida”. Mas essa pertença hodiernamente se realiza ao modo (contrap)oposição impositora. De modo originário, alerta o poeta, esse pertencer só poderá quiçá consumar-se pela escuta acolhedora da novidade que ainda pode brotar das profundezas dessa situação de decadência do humano: Escutas, senhor, o novo Que treme e ressoa? Chegam arautos Que se levantam É verdade, nenhuma escuta Está a salvo numa algazarra sem fim, Todavia a máquina Exige ser agora ser louvada. Vê, a máquina: Como ela rola e se vinga, Nos desfigura e enfraquece. 37 Heidegger, 2002e, p. 29. 117 Filosofia com Poesia Mesmo retirando de nós sua força, Que ela, sem perdão, Empurre e sirva 38. A máquina destrói; desfigura e enfraquece o vigor de nossa existência. Porém, no soneto acima exige que seja louvada. Otimismo do poeta frente ao poder destruidor da essência da técnica? Em nenhum verso é afirmado que a máquina é a força salvadora de nossa condição. Ao contrário, dela se diz que sem perdão retira de nós toda a sua força; ela desfigura a nossa essência. Todavia, pergunta a cada um de nós, se escutamos a novidade que treme e ressoa diante dos nossos ouvidos. Assim, perguntando, acaba por dizer que, nos meandros da dominação absoluta da técnica, nos tempos de nossa indigência, levanta-se a possibilidade de uma verdade inaugural e inaudita, a qual só se poderá se instaurar na escuta do silêncio. Como diz no primeiro poema dos Sonetos a Orfeu, no silêncio, acontece uma escuta capaz de fazer nascer “novo princípio, gesto e transformação” 39. Certamente, por essa razão, disse-nos anteriormente que a máquina tudo destrói justamente por não estar na obediência. Nesse verso, a palavra alemã usada pelo poeta é o substantivo Gehorchen, que na sua forma verbal (gehorchen) diz obedecer a...; muito próximo ao verbo gehören, ser de..., pertencer a... Ambos os verbos se remetem ao verbo hören, escutar, e são acompanhados do prefixo ge-, que indica a força de reunião em uma unidade. Com isso se acena que a obediência é o recolhimento na 38 39 Rilke, 2005, p. 55, parte I, 18. Rilke, 2005, p. 21, parte I, 1. 118 Filosofia com Poesia pertença ao uno no vigor da escuta. E, por isso, originariamente, pôr a máquina sob nossa obediência nada tem a ver com aquele fazer obedecer que é mando de uma vontade que se impõe. O poeta não defende com otimismo que a nossa salvação do poder destruidor da técnica reside na retomada de nosso senhorio sobre ela. Mas qual seria a salvação do perigo da dominação da essência da técnica que a máquina representa? Deixemos que o poeta nos ajude a responder essa pergunta. Antes de tudo ele nos convida a escutar. Escutar o quê? O novo, o inaudito, que poderá ser germe de transformação que se doa em meio ao afã de uma algazarra. O mundo em tempos da técnica é demasiadamente ruidoso, pois tudo deve ser conseguido, fabricado por meio de agenciamentos de um espírito regido pela máquina; quando o modo realização da existência é somente maquinal, o espírito se reduz à razão que tudo agencia pelo cálculo. No jogo das maquinações, há pouca ou nenhuma capacidade de ouvir “um jogo de forças / Puras, que ninguém toca, senão de joelhos e com admiração”. Surdo para as forças inauditas da “vida” é o existir maquinal. Com toda certeza, para essa situação de extrema surdez nos impele justamente a máquina. Mas o poeta espera que ela nos empurre e nos ponha a serviço da escuta da antiga novidade das origens, que silenciosamente “treme e ressoa”. Mas como? Como podemos escutar se já perdemos os ouvidos para acontecimento tão inaugural? Por outro lado, é esse acontecimento de novo princípio que primeiramente nos deve atingir, em acenos de arautos de sua chegada, rompendo nossa surdez, para que possamos 119 Filosofia com Poesia ouvi-lo. Estamos de novo no meio de um paradoxo, na luta dos contrários inseparáveis. E paradoxos não se resolvem senão se nos jogamos para o centro de seu contraste, para sustentar o seu conflito interno. Assim, o que temos para escutar com os nossos ouvidos inábeis para ausculta dos gestos mensageiros do acontecimento de novo princípio? Só temos nossa surdez e o desencanto que dela surge. Mas esta surdez, apesar de extremamente empobrecido, é o modo pelo qual ainda escutamos. Com efeito, por meio dela escutamos os apelos da técnica, que estão silenciosos no meio de estrondosa algazarra. Então, essa indigência, o fato de não mais escutarmos, é tudo que tempos e, certamente, poderá nos ensinar a fazer de nossos ouvidos “um templo da escuta” 40. Essa pobreza é a única via de fato para recobrar a riqueza do espírito. Como nos ensina outro grande poeta: Concentra-se-nos tudo no espiritual, ficámos pobres para chegar a ser ricos 41. Pensando os nossos afastamentos, pelos quais nos contrapomos e opomos à origem, oxalá dela poderemos de novo dela nos aproximarmos. O desafio é concentrarmo-nos numa ausculta sem par nos movimentos de nosso espírito empobrecido, de nossa existência que perdeu o centro arrebatador, ao afastar-se da origem. Desse modo, escutando as profundezas da periculosa situação em que se encontra nossa existência, se for verdade o que diz o poeta, podemos outra vez 40 41 Rilke, 2005, p. 21. Hölderlin apud Heidegger, 2012, p. 227. 120 Filosofia com Poesia pensar o sentido, que se mantém velado atualmente a nós, mas que, na certa, poderá nos fazer retomar o caminho da experiência originária do existir. Escutando assim, pensaremos outro modo de desencobrir o real, apartando-nos do veto que a técnica nos impõe de não perceber outros modos de surgir e aparecer daquilo que está sendo. Mas não simplesmente isso, mas também nossa pertença essencial a todo e qualquer envio descobridor, pois, como tais, somos apropriados pelo descobrimento que desvela a verdade do real, somos tomados pela apropriação da verdade 42. Isso quer dizer que nossa existência pertence essencialmente a esse âmbito do aberto que, em si mesmo, não é nada manipulável ou planificável. Rilke o experimenta, ainda em sua linguagem metafísica, como o totalmente inobjetivado da “natureza” 43, mais propriamente, como o “centro inaudito” 44, em que todo ente se ilumina. Escutando o ainda não escutado, pensando o ainda não pensado, poderemos ir ao encontro do que ainda poderá nos salvar: existir poeticamente. Nossa situação histórica, portanto, está perante uma bifurcação, “no cruzamento de dois caminhos do coração” (Rilke, 2005, p. 25, parte I, 3); estamos em uma encruzilhada que nos urge perguntar o mais decisivo: qual o sentido de nosso existir? O sentido lhe é bifurcação. No cruzamento de dois Caminhos do coração, nenhum templo se ergue para Apolo. 42 Heidegger, 2002e, p. 34. Heidegger, 1960b, p. 240. 44 Rilke, 2005 p. 127, parte II, 28. die unerhörte Mitte. Note, outra vez, a presença do mesmo radical do verbo hören, escutar. 43 121 Filosofia com Poesia [...] Cantar é existir. Para um deus, muito fácil. Mas nós, quando é que existimos? Poesia, a linguagem da existência Dissemos que estamos diante de um caminho bifurcado. São duas as direções que poderemos tomar, dependendo daquilo que, na escuta, consentirmos: ou o impor-se ao real ou o voltar para o “aberto” em sua abertura mais ampla e primordial. Ambas as direções pertencem ao coração. Deve-se, porém, cuidar para não dar ao coração o significado de centro das vivências intrassubjetivas e particulares. De fato, essa expressão nos remete para o interior e o invisível que há no humano, mas não é uma mera oposição à visível concreção (ao modo de efetividade) dos objetos exteriores. Em sua realidade própria, o coração possui sua abertura, visibilidade e concretude. É ele a profundeza desconhecida da “consciência”, mas isso não quer dizer que seja o inconsciente. Antes, é o saber que nos faz originariamente cientes de nós mesmos como existentes e pertencentes à terra como mortais, junto às coisas. Num sentido ainda indeterminado, tomemos o coração como o interno e invisível de nossa consciência e, assim, talvez veremos, porém, que é o centro mais primordial da existência humana e anterior a qualquer consciência de algo. Ambas as direções pertencem ao coração, mas a passagem da primeira para segunda opera uma inversão no interior de nossa 122 Filosofia com Poesia consciência 45. Por quê? A primeira possibilidade — a imposição como poder que põe o real na sua realidade, o ente no seu ser — é aquela que nos põe no caminho de realização de nossa existência como vontade avassaladora. Em última instância, esse modo de existir se assenta no fundamento da consciência objetivante e planificadora de todo o real. Como tal, somente nos poderá levar, nos termos da metafísica, à esfera da razão calculadora que, em sua essência, é o autoasseguramento de um sujeito representador que, ao mesmo tempo, se assegura previamente do real como algo objetivo, antepondo-o a si 46. Dentro dessa possibilidade, o “aberto” é aquilo que se desvela como o passível de ser agarrado, manipulado, explorado. Na verdade, no horizonte dessa possibilidade, o aberto não é descoberto. Para o homem moderno, há apenas os entes como objetos, algo utilizável, desamparados por lhe faltar o aberto que lhes deixa ser, manifestarem desde e por graça totalidade que tudo reúne na unidade do ser. Essa possibilidade, portanto, é aquela que se consuma nos envios e apelos da essência da técnica moderna. Há, contudo, a segunda possibilidade, que o poeta canta e da qual ele dá testemunho no final da Nona Elegia das Elegias de Duíno — obra nascida do mesmo impulso criador dos Sonetos a Orfeu: “uma existência incomensurável desabrocha-me no coração” 47. A segunda, pois, é a possibilidade que nos encaminha para a morada imensa e não 45 Heidegger, 1960b, p. 252-253 Heidegger, 1960a, p. 93-95; 1995, p. 651-664. 47 Rilke, 2005, p. 197. 46 123 Filosofia com Poesia mensurável de nós mesmos, liberando-nos do representar calculador para aquela concreção da existência em que nos é dado com maior possibilidade pensar e acolher nossa pertença essencial ao vir da verdade de todo o real. Essa última possibilidade nos orienta, portanto, para o mais fundo e mais amplo de nosso ser, para o mais interior e o mais invisível de nossa existência, nos retirando da superfície do ordinário de nossa consciência comum 48. Tal retirar não é meramente tolhê-la, mas afundá-la para o seu fundo, aprofundá-la. É desse modo que somos jogados para o âmbito do existir humano. Trata-se de uma inversão que não é simplesmente o movimento para o “dentro” da consciência da comum, isto é, de sua imanência. Isto seria uma movimentação por demais subjetivista, que em nada supera o domínio da máquina instalada no espírito; configurar-se-ia ainda como uma volta do sujeito ensimesmado para a suas vivências particulares. Antes, a consciência, ao inverter-se para o interior de si, derrama-se e verte-se para o aberto incomensurável e não calculável da existência. Ela Heidegger, 1960b, p. 253. Heidegger, na sua conferência Wozu Dichter? (1946), proferida no vigésimo aniversário da morte de Rilke, cita um trecho de uma carta do poeta, de 11 de agosto de 1924, quando estava no seu retiro no Castelo de Muzot, ocasião em que compõe a segunda parte de seus Sonetos a Orfeu. Porque aprofunda aquilo que acima tentamos dizer, transcrevemo-la: “Por extenso que seja o ‘exterior’, ele mal suporta, com todas as distâncias, com a dimensão profunda do nosso interior, o qual nem sequer necessita da espaçosa amplidão do universo para ser, em si mesmo, quase inobservável. Quando, portanto, os mortos ou os vindouros necessitarem de uma estância, que refúgio lhes poderá ser mais agradável e mais propício do que este espaço imaginário? Tenho cada vez mais esta sensação, como se a nossa consciência usual habitasse o pico de uma pirâmide, cuja base se alarga de modo tão acentuado em nós (de certo modo, debaixo de nós), que quanto mais nos sentimos capazes de penetrar, mais universalmente parecemos envolvidos nas ocorrências independentes do tempo e do espaço, nas ocorrências da existência terrestre ou, num sentido mais lato, mundana” (Rilke apud Heidegger, 1998, p. 352). 48 124 Filosofia com Poesia transcende-se no mundo e, sobretudo, enquanto mundo — o que vem à tona, na poesia de Rilke, ora como o desabrochar da existência na abundância nascida do coração ou a dimensão profunda do interior humano, ora simplesmente como existência mundana 49. Eis a inversão que revira a consciência para o aberto que a suporta, como uma base alargada, amplíssima do mundo. Uma reviravolta para o seu fundo, portanto. É amparado pela experiência da reviravolta da consciência calculadora para o interior aberto e invisível do coração que o poeta canta: Mas para nós, a existência ainda é encantada, ainda é Origem, em muitas estâncias. Um jogo de forças Puras, que ninguém toca, senão de joelhos e com admiração. Nas origens de si mesma, a existência é encantada, nos diz o poeta. É das origens que Orfeu se levanta com seu canto (parte I, soneto 1). Para percebermos melhor que seja estar em en-cantamento, é preciso, porém, que pensemos antes e melhor o que seja origem (Ursprung). O cantar do poeta nos dá, de antemão, alguns acenos, nos dizendo que “tudo que se perfaz, retorna / Aos tempos da origem” 50, isso é, tudo aquilo que está a caminho de sua plenitude (Vollendete), para a consumação de seu fim e sentido de ser, deve constantemente retornar ao princípio de seu vir à luz. Ou melhor, só chega à plenitude se desenvolve e consuma o princípio recebido nos tempos primevos. E aí, nesse tempo do originário, apesar das transformações, permanece o 49 50 Veja a nota anterior. Rilke, 2005, p. 57, parte I, 19. 125 Filosofia com Poesia canto e a festa da terra, donde brota o canto de nossa existência. A origem é aquilo que se doa, pois, num tempo primitivo. Para os humanos, é aquilo capaz de criar a identidade de um povo e fundar seu ser-aí (Dasein) histórico, liberando-o para a sua história. Graças à origem, que brilha pela primeira vez em um tempo antigo, doando-se livre e gratuitamente, um povo adquire sua razão de ser. Por isso, esse acontecimento do tempo originário de sua identidade necessita ser recolhido, recordado pela sua transmissão nos mitos primitivos e em sua arte, incluindo aí a poesia. Por essa razão, o tempo das origens é, primordialmente, o tempo dos poetas e dos pensadores 51. São eles que, pela arte de pensar e poetar, guardam-na, isto é, recordam, mantendoa junto ao coração. Ou melhor, deixam ser tomados eles mesmos, na sua existência, cada qual no exercício de sua própria arte, pela origem como sendo uma experiência intrigante do aberto do coração. Intrigante, aqui, é o que incita a pensar poeticamente e poetar de modo pensante. Contudo, a origem, em sua temporalidade primitiva, apesar de costumeiramente tendermos a pensar noutra direção, não é um algo que fica para trás, como um passado remoto e perdido nos princípios da história. Ao contrário, a origem é aquilo que permanece e que vige como passado que nos afeta no presente, que vigora no presente como já-ter-sido. E esse ter-sido não é o que se esgotou e para o qual se virou as costas. Pois o que é a origem em sua plenitude só poderemos sabê- 51 Heidegger, 1997, p. 137-138; 2004, p. 54-57. 126 Filosofia com Poesia lo no futuro, já que também está atuante em pleno vigor no presente como o ainda-não-consumado. Essencialmente, a origem é por-vir. Desse modo, a origem não é simplesmente o começo, porque está sempre à frente. Face a ela estamos nós, pois ela nos antecipa. Desse modo, como o que nos envia e impulsiona a cada momento, no presente, por meio da unidade do já-ter-sido e do por-vir, para a plenitude da realização de nossa existência histórica, é fonte que permanece entre o passado e o futuro. Ao mesmo tempo, retrai-se em tudo que nasce, cresce e consuma em torno a nós, como também no realizar-se e consumar temporal de existência, individual e histórica. Permanecendo retraída, ela rege, ordena. Desse modo, a origem abarca a tudo e a todos, orientando o destino de que tudo que é, de quem exista. A história de um povo com o seu mundo se joga, então, em todo instante, dentro do jogo das forças puras da origem. Nesse sentido, o tempo da origem é o da historicidade fundamental do acontecer histórico de cada povo. A esse jogo pertencem os antepassados, mas também as gerações presentes e as vindouras. Remetida à permanência da origem, está cada época da história. É o que canta o poeta, em um outro poema: Nós somos instigadores! Mas os passos do tempo, Considerai insignificantes Entre o que sempre permanece. 127 Filosofia com Poesia Toda a pressa já terá passado. Pois só o que perdura Nos incita. [...] Tudo repousa: Escuridão e claridade Flor e livro 52. O destino de nossa existência, portanto, está intimamente ligado pelo modo com que cuidamos das origens. Cuidamos quando pensamos, porque pensar não é calcular ou, como comumente se compreende, ato de deduzir conclusões a partir de operações lógicas. Pensar, na sua determinação essencial, é cuidar. Mas do que se cuida? Daquilo a partir do qual o nosso ser tende no realizar da historicidade de nossa existência. E tendemos porque, na verdade, um sentido ou possibilidade do existir previamente nos afeiçoou e, pelo pensamento, velamos dessa afeição 53. O pensamento vela pela origem, é afeição que se deixa afetar pelo originário. Portanto, não pode ser restringido ao calcular, o traço insigne da subjetividade do homem moderno. A esfera da subjetividade somente encerra objetos passíveis de cálculo. Nela, o mundo não pode residir na sua propriedade, em si mesmo, mas tão somente no caráter de objetividade daquilo que é posto de antemão. A permanência que ainda vigora no reino da subjetividade é apenas a continuidade dos objetos de uso, mantida à custa de uma constante substituição daquilo 52 53 Rilke, 2005, p. 63, parte I, 22. Heidegger, 2002a, p. 111. 128 Filosofia com Poesia que se desgastou, perdeu-se, corrompeu-se pelo uso. O mundo dos objetos é o reino da posição e da constante reposição. Por isso, a técnica só pode erigir um mundo, no qual não há espaço para a verdadeira permanência; os objetos se gastam com facilidade e rapidez, devendo, portanto, ser constantemente substituídos 54. Sendo essencialmente carente da verdadeira permanência, aquela que se retrai, é um mundo no qual a existência não pode se assentar, repousar. Não encontra nele a sua estância. Portanto, nesse mundo exclusivamente de objetos, homem não pode morar, pois habitar pressupõe uma demora no permanente que somente a origem pode verdadeiramente garantir. Assim, o pensamento que poderá salvar os homens e as coisas da dominação da objetividade, precisará vigorar consoante a sua essência: cuidado que, afeiçoado pelo que permanece no retraimento, vela pelas forças da origem. Dito de outro modo, deverá brotar das profundezas do coração. Pois ele é re-cordação, é memória, porque nasce da intimidade mais íntima do homem enquanto reminiscência do permanente. Recordar, porém, não é conservar saudosamente o passado em lembranças ou imagens. É, antes de tudo, uma concentração no que é digno de ser pensado (e poetado), a origem em sua permanência que sempre se retrai e se esconde em seu repouso. É reviravolta para o centro mais íntimo e a vida abundante, oculta da consciência, desconhecida por essa última. Assim, o pensamento, ao seu modo, deverá ser poesia, perfazer a mesma experiência do poeta. Pensar 54 Heidegger, 1960b, p. 254. 129 Filosofia com Poesia poeticamente é deixar ver, é demonstrar a revelação do que, ao desocultar-se, também se resguarda no mistério. Mas a recordação é também fonte da poesia e, consequentemente, essa é um modo peculiar de pensamento concentrado no que se doa numa retração 55. Assim, como dito, a poesia perfaz a mesma experiência do pensamento. Perfazer o mesmo, porém, não é fazer igual. O poeta pensa cantando; seu pensar não deixa surgir o que se mostra pelo (fazer) ver que concebe e, portanto, não o faz para guardar a revelação do retraimento no conceito. Tal tarefa pertence ao pensador. Por meio do seu canto, o poeta instaura com a palavra a essência das coisas, aquilo que permanece. Cantar é o seu modo de dizer e proclamar o inaudível, o inefável, instaurando-o, isto é, não deixando que o retrair da origem se converta na ausência daquilo que para sempre se esvaiu; não se torne totalmente esquecida pelos humanos, sobretudo, na época da hegemonia do cálculo. Mas permaneça como mistério. Ambos, o poeta e o pensador, cada qual no domínio da linguagem ao qual pertencem, instauram, deixam surgir, a origem como o mais imperioso e permanente dos retraimentos. Mas como instaurar o permanente? Pode algo que permanece ser instaurado? Essa expressão paradoxal apenas quer dizer: deixar repousar em sua proveniência retraída. Então, esse modo originário de instaurar significa: deixar o instaurado surgir e perdurar no seu mistério e a partir do seu mistério. Esse é o modo mais pleno de dizer, do mostrar, que o pensar e o poetar 55 Heidegger, 2002a, p. 118; 2003b, p. 125. 130 Filosofia com Poesia comungam. Ora, tal dizer não aplaina, nada explica nem resolve nenhum problema, mas tão somente torna mais denso (dicht), recolhe o que se clareia na oculta e escura densidade de sua proveniência. Por isso, poetar (dichten) é um modo de recolher aquilo que doa a nós como razão de ser de nós mesmos e de nosso mundo, deixando nossa própria existência se recolher à origem 56. Vigendo a partir da origem, nossa existência é poesia (Dichtung), porque repousa no permanente. Para Rilke 57, “apenas o canto da terra / Salva e festeja”. Somente um canto nascido das profundezas da terra sana a existência do homem, celebra-a como encantada. Na noite da cegueira para o invisível, da surdez para o inaudível da época da técnica, o poeta ainda nos convoca com o seu canto telúrico a uma celebração no seio da longa noite: Que afinal alguém, um vidente, compreenda e celebre, Na admiração, a sua longa permanência. Dizível apenas por que canta. Audível apenas por uma escuta divina 58. A noite tomou a terra com demorada escuridão, é longa como um inverno que persiste e destrói. Tudo vigora sem fonte, sem permanência; está dominado pela inconstância do que é útil, substituível. Só há uma permanência, a dos infindáveis reprocessamentos. Necessário, pois, que alguns de nós sejamos ainda capazes de escutar o que se retira e instaurá-lo, para adensar essa 56 Heidegger, 1997, p. 138. 2005, p. 57, parte I. 59. 58 Rilke, 2005, p. 109, parte II, 19. 57 131 Filosofia com Poesia escuridão e celebrar a existência fundada no jogo das forças puras da origem. Essa é a tarefa dos mortais, porém, precisamente dos poucos que sabem o sentido da dor, da ausência, da escuridão. Seria, então, essa a tarefa de alguns privilegiados? Ou seria comum a todos nós, já que pertencente à nossa essência? Com certeza, não é privilégio algum, mas a determinação da qual ninguém escapa, sobretudo, em tempos que profunda e avassaladora destruição se instalou sobre a terra. Mas sendo tarefa comum, esse caráter não impede que esteja sendo realizada por poucos, como os poetas. É incumbência assumida pelos raros que perfazem a própria existência numa “escuta divina”, aos poucos que existem como aqueles que ainda podem ver na escuridão. Que seja uma incumbência dada a todos nós e, ao mesmo tempo, que acomete apenas alguns, isto é somente uma aparente contradição, que logo se dissipa ao meditarmos sobre a essência da técnica e ao recordamos que na hegemonia do cálculo, como sentido a guiar a realização do existir, estamos perdidos de nossa própria essência. O fato é que poucos pressentem essa condição e a sofrem decididamente. E se aquela escuta e vidência cunham a nossa essência, trata-se muito antes de nossa identidade enquanto mortais e, no elemento da mortalidade, de nossa comum-pertinência à origem. Ora, os mortais pertencem à terra, assim como aos céus, os deuses. Como mortais, existimos sobre a terra, somos os passageiros que vivem debaixo dos céus. Poesia é o canto que brota da terra, de um essencial enraizamento nela — o qual não se confunde com o arraigamento nacionalista, territorial, não equivale a qualquer forma de 132 Filosofia com Poesia fechamento nos confins de certa cultura e cosmovisão. Enraizamento essencial é aquela penetração e firmeza no único permanente que permite à existência humana se abrir à vastidão da terra e dos céus. Só um canto que nasce das profundezas da terra, então, será capaz de curá-la cura da destruição e desencanto promovidos pela noite de um tempo no qual vigora como permanente somente aquilo que é de contínua reposição. Esse canto salva ao reconduzir tudo que é passageiro, inclusive a existência que é canto, para a permanência da origem. Poeticamente, então, o único modo em que nos é dado existir de modo humano, como mortais, sobre a terra. Enquanto houver poesia, haverá o existir sobre a terra que seja propriamente humano, porque nesse modo de dizer a longa permanência da origem é instaurada. Pela poesia, vivemos sobre a terra, mas de modo originário. Se a poesia é canto e se é poeticamente que propriamente existimos, então, já não podemos mais nos espantar ao ouvir o poeta dizer que “cantar é existir” (soneto 3, parte 1). Na verdade, essa é uma afirmação demasiadamente apressada. Pois é agora que, de fato, surge a pergunta com toda sua violenta força: “Mas nós, quando é que existimos?”. Para os deuses, uma fácil pergunta. No auge da noite sobre a terra, talvez, ainda não estamos prontos para fazer essa pergunta. Como mortais, só temos um vestígio: quando existimos poeticamente. Apenas uma certeza nos resta: existiremos poeticamente não porque se promoverá um cultivo da cultura literária e da produção poética. Isso não basta para vivermos de modo originariamente humano. Muita expressão cultural em forma de poesia pode não ser mais que a necessidade de usar a linguagem, de 133 Filosofia com Poesia interpretá-la simplesmente como mecanismo de comunicação humana, deixando o homem cair na decadência do falar vazio e formal. Não é porque há rimas, estrofes, métrica que haja necessariamente poesia. Talvez seja aí, em virtude de um excessivo formalismo literário, onde a poesia esteja mais ausente. Por outro lado, ela esteve presente quando a cultura literária era inexistente. Mesmo assim, em tempos primitivos, os grandes poetas forjaram a índole e o destino de povos. Mas quando é que existimos poeticamente? Encaminhando nossa meditação para uma conclusão, discutamos brevemente alguns indícios do que seja existir como mortais sobre a terra e, como tais, poeticamente. Há poesia quando apenas nossa existência se funda na benevolência de um dom 59. Existir poeticamente, portanto, é deixar nosso existir se perfazer no acolhimento de uma doação que nos presenteia. E isso quer dizer que, definitivamente, nosso existir não se funda em nosso mérito 60. Plena de 59 Heidegger, 1997, p. 139; 2002d, p. 180. A expressão habitar poeticamente, da qual fazemos também a variante existir poeticamente, não pertence ao vocabulário da poesia de Rilke. Heidegger a toma da poesia de Hölderlin, quando interpreta um de seus versos — “Cheio de méritos, mas poeticamente o homem habita esta terra” — para discutir a essência do habitar humano desde a abertura incomensurável da existência. Utilizamo-la nesse texto, mesmo sendo guiada pela palavra de Rilke e não de Hölderlin, porque, como atesta Heidegger, a poesia de Rilke se encontra no caminho aberto pela poesia de Hölderlin, de forma que no primeiro se decide o que se anunciou no segundo (Heidegger, 1960b, p. 264). Hölderlin, porém, na história do ser (não cronologicamente, portanto), é o precussor que não poderá ser ultrapassado no pensar poético da indigência do tempo presente. Para Heidegger, ele chega de forma mais pura ao porvir da história do ser, muito antes de seus predecessores. A poesia de Hölderlin em que se encontra o referido verso pode ser encontrada na íntegra ao final da edição brasileira da obra de Heidegger, Vorträge und Aufsätze, traduzido com o título de Escritos e Conferências pela editora Vozes. No 60 134 Filosofia com Poesia méritos é a existência humana: inventa máquinas, atenua o sofrer e a dor do existir, cria meios que otimizam as ações humanas, conquista o espaço sideral; recria a vida, interferindo no desenvolvimento de seres humanos, plantas e animais. Em tudo isso, o homem pretende não ser mais mortal, esforça-se com os meios científico-tecnológicos para superar a morte e potenciar toda forma de vida sobre a terra. Ao mesmo tempo, assenhora-se dos céus, conquista-os. Desse modo, não deixa que os deuses sejam presenças inesperadas, acontecimentos repentinos, dádivas advindas dos céus como um raio aterrador. Todas as dádivas que rebentam na terra e que dos céus caem são submetidas aos planos da produção controlada, da otimização dos processos e produtos. Calcula-se o que céus e terra devem oferecer; assegura-se pretensiosamente, pelo poder antecipador da razão, como devem aparecer os deuses na sua divindade, e como as coisas devem comparecer sobre a terra. Tudo se explica, matematiza-se. Esquece-se, portanto, que, no princípio de tudo, está o nascer e o renascer de todas as coisas, em si mesmas e a partir de si mesmas. Esquece-se, inclusive, desse esquecimento. No entanto, provindo do mistério, todo ente se doa ao presentificar-se como isto ou como aquilo e, sobretudo, como um quem. Apesar daquela pretensão de uma mortalidade imortal, senhora de si e de todas as coisas, em tudo vigora o mistério, a presença de uma ausência. Em cada coisa sopra um nada e, nesse, vibram os rastros do mesmo volume, está incluso o escrito de Heidegger cujo título são os versos e ao longo do qual se realiza a interpretação. 135 Filosofia com Poesia divino. Para o poeta, é no reencontro dos caminhos para esse mistério que nosso cantar, sinônimo de nossa existência, “não é cobiça nem conquista por algo que por fim se alcança” 61. Onde e quando nos fazemos pobres de nossos méritos, há espaço para a reverência e a admiração ante a surpresa do dom de todas as coisas, dos que conosco coexistem, bem como dos deuses que raramente nos atingem como sua revelação inesperada. Enfim, no desvelar de tudo, de qualquer ente por si mesmo, cada um deles se torna presente para nós. No transbordar de nosso coração, isto é, no abrir de nossa existência mundana, apenas oferecemos o medium para essa revelação. Com esse medium damos a medida, que nada é em termos de ente, para revelação de qualquer presença brotada da ausência, que é um nada originário e não só uma falta de entes. Cantar, então, não é um sopro que temos o mérito de inventar, mas sim “um sopro pelo nada. Um vibrar em deus. Um vento” 62. É o mistério que canta pela boca, a abertura de nossa existência, à medida que nela deixamos tudo ser a partir e como uma doação. Enfim, se é questão de merecimento das forças empregadas, é a nossa existência, é o nosso cantar que é mérito da origem. Se assim for, talvez possamos então dizer juntamente com o poeta, apesar de toda força destruidora do existir humano fundado na subjetividade: Mas para nós, a existência ainda é encantada, ainda é Origem, em muitas estâncias. Um jogo de forças Puras, que ninguém toca, senão de joelhos e com admiração. 61 Rilke, 2005, p. 25, parte I, 3. 62 Idem, p. 25, parte I, 3. 136 Filosofia com Poesia Mas o que nos presenteia na doação de cada ente? Aquilo que, há muito tempo, nos primórdios da história do Ocidente, o pensamento chamou de ser porque o experimentou como origem. Ao viger na sua misteriosa verdade, o ser se dá em todas as coisas. Mas, ao mesmo tempo, se recolhe no silêncio e na escuridão. Dando a si mesmo em cada coisa, o ser se recusa. Na doação da presença de cada ente, somos presenteados com a ausência ou retirada do ser no seu mistério. Nessa recusa dá ao homem a dádiva que é a de todas as dádivas para a realização da essência humana: a linguagem. Na linguagem, o ser se dá, fala de si mesmo, no silêncio do retraimento. O homem é falante, um ente discursivo. Mas isso depende que sua palavra seja cuidadosa, nasça desse silêncio e resguarda a linguagem do dar-se do ser. Precisamos falar desde a linguagem silenciosa da origem, se não quisermos ser tagarelas indigentes da palavra essencial. Essa é, então, a condição sem a qual o homem não pode ser autenticamente um falante 63, isto é, capaz em seu ser de uma palavra originária. Poucos de nós, porém, cuidamos dessa dádiva. Nossa fala cotidiana há muito não mais enuncia e traduz a palavra doadora que evoca esse misterioso “se” do dá-se do ser. Nossa fala reduz-se, com frequência, ao vazio falatório. A experiência poética, porém, é tentativa de guardar a palavra obscura e doadora do ser, de evocá-la, de trazê-la para junto de nós. A poesia, muitas vezes nos diz Rilke, é a saga de cantar a quietude do silêncio, a escuridão cheia de claridade, que presenteia a essência de todas as coisas e de nós mesmos. 63 Heidegger, 2003b, p. 150-151. 137 Filosofia com Poesia Eis a origem da festa e da celebração de sua poesia, do seu canto a Orfeu: Palavras ainda passam rentes ao indizível... E a música, sempre nova, nascida de pedras vibrantes, Constrói, no espaço inútil, sua morada de deusa. Por essa razão, onde e quando todas as coisas são tocadas e acolhidas com a benevolência da linguagem autenticamente humana e, assim, puderem repousar em si mesmas, livres de toda nossa imposição, a poesia se instaura em nosso existir. A poesia é, então, a estrutura fundamental de nosso habitar sobre a terra 64; o dizer silencioso e benevolente da abertura da existência humana. Silenciosamente, a benevolência é sumamente ativa em deixar ser cada ente desde a origem. Com essa estrutura, então, criamos um mundo incomensurável que, sob a medida da benevolência, a gratidão que deixa ser, concedemos aos céus, à terra, à existência finita dos homens e à divindade dos deuses serem o que em verdade são. Ora, como dito, é como mortais que habitamos sobre a terra. Sobre a terra indica debaixo dos céus e, portanto, sob a graça e a fúria dos deuses. Habitamos poeticamente, então, quando a nossa existência se deixa pertencer à totalidade do aberto, à unidade primordial do jogo de espelho dos diferentes: mortais e deuses, terras e céus. Habitamos poeticamente, portanto, quando homens permitem a si mesmos serem mortais e quando acolhem a morte como morte, sendo capazes de sua finitude e, 64 Heidegger, 2002d, p. 179. 138 Filosofia com Poesia sem negá-la, nela realizam sua transcendência... Igualmente, quando deixamos os céus vigerem como céus que, com a trajetória de seus astros e o ritmo das estações, trazem, no tempo oportuno, dádivas aos homens e anunciam a chegada e o retrair dos deuses... se permitimos os deuses se resguardem na estranheza e retraimento, cujos acenos os homens guardam e aguardam... Por sua vez, também se deixarmos a terra ser somente terra, espaço do enraizar humano e não fonte de energia, salvando-a de nosso desejo de domínio avassalador. Habitamos o mundo poeticamente, portanto, na simplicidade do mundo se fazer mundo em sua inteira vastidão, sem a exclusão de qualquer um dos opostos em espelho, sem o aniquilamento ou abrandamento do jogo das forças conflitantes entre terras e céus, mortais e deuses 65. Nesse jogo, não nos é permitido subordinar nada, mas apenas tocar com reverência e admiração tudo que nos vêm ao encontro, fazendo de seu ser um presente, inclusive o nosso existir. E, assim, tudo se encaminha para recolher na unidade do ser, a misteriosa proveniência. Se o existir é entoado por esse mistério, somos remetidos para o mais dentro de nós mesmos e, assim, para além de nós, o que definitivamente não somos. Envolta pelo mistério do que nós não somos, porém, nossa existência é poesia, enviada ao canto, é en-canto. A poesia é a reconciliação com o (não-)ser, do qual, nos últimos séculos, nossa existência se desenraizou. No entanto, a esse solo do mistério do ser, desde sempre, pertencemos. 65 Heidegger, 2002b, p. 130; 2002c, p. 156-158. 139 Filosofia com Poesia E será certamente por essa razão que, no tempo da desolação e do desen-canto planetário do mundo da técnica, da escura noite, poderá ainda a nossa existência fluir como canto e festa. Contudo, existir desse modo não é um passageiro e intermitente deslumbramento, nem mesmo exaltada celebração do que nos seria apta a dar-nos algum breve prazer e consolo em tempos de penúria, recobrar-nos otimismo. Isso é ainda jazer na superfície do coração. É ainda nos retermos nos horizontes da consciência voluntariosa e desejosa só de si mesma, sem descer ao mistério de nossa existência, ao pro-fundo de nós mesmo, que nos leva a um nada ou a fundo sem fundo. Aí, porém, flui e superflui o fluxo de nossa origem, tudo é dom do ser. Tudo é jogo das forças puras e conflitantes da origem! Por isso, celebrar só pode quem abandonou a si mesmo, despedindo-se de toda e qualquer pretensão de ser exclusivamente a partir de si mesmo e de fazer que tudo surja em conformidade com essa pretensão. Como diz o poeta no terceiro soneto da primeira parte, disso só é capaz quem experimentou um novo vibrar ou um novo sopro de vida 66. Nossa existência é encantada, pois, quando canta, na dor da separação, em meio da saudade de nossa unidade primordial, aquela pertença que nos reconcilia com todas as coisas, sem que isso signifique resignação ou desesperado asseguramento do sentido do existir humano frente ao perigo sempre maior de perdê-la definitivamente. Pelo contrário, é encantada justamente porque ainda é capaz de cantar mesmo em face do risco de nossa época, na qual nossa 66 Rilke, 2005, p. 25. 140 Filosofia com Poesia destinação historial está indelevelmente marcada pela escuridão e desolação do inverno. E esse canto, parafraseando Rilke 67, não é mentiroso, apesar de toda decadência e degeneração da existência humana. Pois é a celebração do coração que se sabe “lagar passageiro / De um “vinho inesgotável para os homens” 68. Dito de outro modo, porque ressoa a partir da existência que não se sustenta em si, porém, não se agarra em algo fora de si; está, antes, suspensa no nada. Isso, porém, só quer dizer: perfaz-se a partir da origem, a fonte inesgotável do ser que não se cansa de se retrair. Tudo, porém, que tentamos aqui dizer, durante todo tempo, já havia dito o poeta de forma sucinta e, sobretudo, densa: Antecede toda despedida, como se estivesse Atrás de ti, à semelhança do inverno que agora passa. Pois entre os invernos há um tão sem fim Que, tendo ultrapassado, teu coração sobrevive a tudo. Morre sempre em Eurídice -, sobe cantando ainda mais E desce louvando ainda mais na pura relação. Aqui, entre passageiros, no reino do declínio, Sê um vidro ressoante que já se quebrou no som. Sê — e sabe, ao mesmo tempo, a condição do não-ser, Fundamento infinito de tua vibração interior, A fim de que, nessa única vez, a realizes por completo. 67 68 2005, p. 33, parte I, 7. Rilke, 2005, p. 33, parte I, 7. 141 Filosofia com Poesia Com júbilo, enumera-te entre as reservas de toda a natureza, Tanto as utilizadas como as mudas e abafadas, Somas indizíveis, e anula o número 69. Os poetas que nos ensinam a habitar poeticamente são, então, aqueles que celebram o inverno rude em noites escuras. Eles sabem que no seio invisível da terra maltratada pelo extremado inverno da história ocidental ainda vigora um “tão sem fim”, o desconhecido e esquecido fundamento infinito da ainda possível vibração interior. Por isso, o canto deles antecede a despedida do ser, de cujo acontecimento poucos de nós chegou ao pressentimento. Convocam-nos a saber e sofrer a condição do não-ser, a conceder que ela ressoe em nós. Desses poetas, mais que nunca, somos necessariamente carentes para pensar o sentido de nossa humana existência. Referências Aristóteles. Ethica nicomachea. London: Oxonii, 1962. Aristóteles. Ética a Nicômaco. São Paulo: Atlas, 2009. Heidegger, Martin. La época de la imagen del mundo. Sendas Perdidas. Buenos Aires: Losada, 1960a. Heidegger, Martin. Para qué ser poeta?. Sendas Perdidas. Buenos Aires: Losada, 1960b. Heidegger, Martin. Nietzsche. Milano: Adelphi Edizioni: 1995. 69 Rilke, 2005, p. 97, parte II, 13. 142 Filosofia com Poesia Heidegger, Martin. Hölderlin y la esencia de la poesia. Arte e Poesia. México: Fundo de Cultura Econômica, 1997. Heidegger, Martin. Para quê poetas? Caminhos de floresta. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1998. Heidegger, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2000. Heidegger, Martin. O quer dizer o pensar? Ensaios e conferências. São Paulo: Universitária; Petrópolis: Vozes, 2002a. Heidegger, Martin. Construir, habitar, pensar. Ensaios e conferências. São Paulo: Universitária; Petrópolis: Vozes, 2002b. Heidegger, Martin. A coisa. Ensaios e conferências. São Paulo: Universitária; Petrópolis: Vozes, 2002c. Heidegger, Martin. “...Poeticamente o homem habita...”. Ensaios e conferências. São Paulo: Universitária; Petrópolis: Vozes, 2002d. Heidegger, Martin. A questão da técnica. Ensaios e conferências. São Paulo: Universitária; Petrópolis: Vozes, 2002e. Heidegger, Martin. Ciência e pensamento de sentido. Ensaios e conferências. São Paulo: Universitária; Petrópolis: Vozes, 2002f. Heidegger, Martin. A linguagem na poesia: uma colocação a partir da poesia de Georg Trakl. A caminho da linguagem. São Paulo: Universitária; Petrópolis: Vozes, 2003a. Heidegger, Martin. A essência da linguagem. A caminho da linguagem. São Paulo: Universitária; Petrópolis: Vozes, 2003b. Heidegger, Martin. Hinos de Hölderlin. Lisboa: Instituto Piaget, 2004. 143 Filosofia com Poesia Heidegger, Martin. A pobreza. Phainomenon, n. 24, 2012. Disponível em: phainomenon-journal.pt/index.php/phainomenon/article/view/320. Acesso em: 21 jul. 2022. Leão, Emmanuel Carneiro. Existência e poesia. Aprendendo a pensar. Petrópolis: Vozes, 2000. Pessoa, Fernando. Poemas escolhidos. São Paulo: Click /o Globo, S/D. RILKE, Rainer Maria. Sonetos a Orfeu. Elegias de Duíno. Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2005. RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. São Paulo: Globo, 2003. 144 Prosas poéticas A dívida infinita da mulher artista 1 Talita Moreau Estou endividada, nasci endividada. Desde o útero de minha mãe sentia suas aspirações: “Quero parir um menino!”. Talvez soubesse que nossa vida seria mais fácil se sua criança não carregasse a marca do feminino. Talvez sem nem ter total consciência da vontade que sentia, só almejava o fim de uma dívida que já foi de minha avó. Eu nasci herdeira de uma dívida, uma dívida infinita, passada de geração em geração, sempre atualizada, recalculada para o seu tempo social e histórico. Só sei que vim ao mundo desejando apenas ser amada incondicionalmente, nada mais. Já fora do útero comecei minhas lições. Em casa aprendi que o poder sufoca o amor, mamãe vivia subjugada a meu pai, o homem que levava o dinheiro e tomava todas as decisões. Ele nunca foi agressivo, era brincalhão, gentil até… Mas cada um deveria cumprir o seu papel, mamãe cuidava de nós e papai detinha o poder de definir como tudo 1 O conceito de dívida infinita é elaborado pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari. Filosofia com Poesia seria, graças ao seu diploma de nível superior e sua renda. Papai marcou o destino da mamãe mesmo depois do divórcio, ela não entendeu bem a solidão que sentia, ele só enxergou o que era conveniente enxergar. Mamãe ficou ainda mais sozinha, a mulher culpada de tudo que carregue o fardo, que tenha a reputação e o corpo marcado. Na escola aprendi lições sobre a aparência que eu deveria ter. Mulheres feias e não femininas são deixadas de lado e mulheres inteligentes demais são chatas. A televisão, os outdoors e as revistas foram excelentes fontes de pesquisa, conheci todos os padrões que eu deveria seguir e não segui. Naquela altura achei que era punk, que fugia de todos os estereótipos femininos impostos pelas mídias, pela escola, pela minha família. Eu ainda não sabia que eu era endividada, quando um homem certa vez veio me cobrar, ofereceu-me gentilmente da sua bebida e só acordei depois dele pegar o que ele achava que era dele de direito, eu estava em uma cama de hospital e até hoje não sei o que sobrou de saldo devedor. No trabalho aprendi que o sorriso e o silêncio vestem-me melhor. Não preciso dar muitas opiniões, devo escutar sorridente e nunca me constranger com as piadas e assédios dos meus colegas, não preciso levar tudo tão a sério, uma mulher bonita e inteligente na medida deve saber disso. Isso é ser madura! Com os namorados além de reforçar todas as outras lições de repressão-recalcamento, aprendi um leque imenso de coisas novas, em especial que o lar deveria ser o meu lugar. Meu corpo compunha melhor a cama e a cozinha, outros ambientes não me caiam bem, muito menos 148 Filosofia com Poesia estar próxima de outras pessoas. Comecei a conhecer as minhas heranças, dentre elas a solidão, a ansiedade, a depressão… Por fim, estava interiorizada e espiritualizada em mim todas as operações formais de uma sociedade masculinizada, uma mulher crescida. Tendo a auto estima mutilada, não sirvo, não encaixo… Feia demais para lucrar com a aparência, bonita demais para ser respeitada. Burra demais para opinar e ser ouvida, inteligente demais para ser amada. Louca demais para entender os fatos, séria demais para entender que foi só uma brincadeira. Dramática demais quando exponho meus sentimentos, fria demais por não ceder a tudo. Boa de cama o bastante para namorar, mas vadia demais para ter uma aliança no dedo. Sempre flexibilizando, aceitando, engolindo, anulando-me… Anulando-me? Acho que nem sei mais o que quero. Quando busco em mim algo puro e na privacidade do meu interior encontro apenas a extrema miséria dos meus desejos, volto-me contra mim mesma, sintome culpada e começo a duvidar do meu discernimento. A armadilha do desejo, ô planta venenosa. Percebo que por mais que eu lute, por mais que eu me desconstrua, por mais que eu entenda o modus operandi do patriarcado, há algo em mim que está solidificado e que me faz perguntar a mim todos os dias: O que faço de errado para não merecer ser amada? Percebo tudo, e no alto da minha sensibilidade e desespero entreguei-me a arte, como a única coisa que restava-me, como a única fuga, como o único corte de fluxo possível. E no caminho da não figuração poética pictórica encontrei meios de expressar alguma coisa 149 Filosofia com Poesia feliz que está escondida no fundo da minha psique, algo que eu ganhei antes de saber que estava endividada, pois endividada eu sempre fui, desde o útero de minha mãe, talvez antes mesmo de eu ser matéria, quando eu era só uma vontade de meus pais. Mas hoje, estou estéril, não sinto desejo de criar, nem um filho, nem uma pintura. Trabalho e estudo demais para ter tempo de criar algo decente. E nas horas vagas faço barganhas para receber um pouco de afeto, momentaneamente isso me satisfaz, mas há dias que sou consumida pela realidade dos fatos. E é fato que está tatuado em mim o desejo de ter um homem que queira se casar comigo, que me proteja e me exiba orgulhosamente como um prêmio. É difícil admitir isso, especialmente na bolha que vivo, onde o empoderamento feminino é proclamado e tomado como discurso até pelo próprio capitalismo. Adoro as camisetas femininas vendidas em grandes lojas de departamento, We can do it (isso foi irônico). Bem… A perversidade encontra-se no fato de que eu dou tudo o que tenho, aceito o papel de objeto e não recebo a minha esperada recompensa. Mas eu permaneço no jogo. Como sair do jogo? Como quitar minha dívida? 150 Devaneios crônico-filosóficos Arthur Alves Almeida Soares de Melo A limpeza da casa em dois pra lá, dois pra cá Acordei com uma música do Chico Buarque na cabeça. Se você me perguntasse qual, eu diria: não sei. Mas como todo bom sábado, era dia de limpar a casa. Sísifo que o diria... A trilha sonora só poderia ser das canções desse gênio. A arrumação da casa, inicialmente, parece uma situação complexa. Tirar poeira, varrer, limpar os cômodos, o banheiro, a varanda. Voltar as coisas para os seus lugares e aí vai. Mas, como diria Espinosa, o que é complexo pode ser reduzido a partes simples e claras e assim inteligíveis — ou fazíveis!? Como advogado, já percebi isso também: quando penso no processo do início ao remate, parece ser algo quase sem fim. Mas se vou realizando as etapas, uma a uma, com atenção e responsabilidade, enxergando beleza na aplicação da técnica, a coisa flui e, pari passu, chego ao final. Filosofia com Poesia Quem sabe essa não seria a receita da vida e a casa e os processos, assim como as leituras do mestrado não fossem fragmentos desse todo ainda maior? Penso que é provável. Aliás, não seria por falta de boa companhia que a manhã de sábado não seria agradável. Capitu, a gata, insistia em exercitar sua habilidade de caçadora obstando a vassoura de pelo, enquanto eu varria o chão. Charlotte, a shih tzu que quer ser gata, sempre a me olhar com cara de alegre. Nas passadas do rodo, uma dancinha, para lá e para cá, como dizia o bom bolero. Ouvindo as músicas com um fone que isola os estímulos externos, pude prestar atenção nos instrumentos, trabalhando em conjunto e autonomamente. Fazia como recomendou o mestre Diego Sobral: ao ouvir uma música, repare nos sons de cada instrumento, um a um, o momento em que são tocados e a forma e sinta como o todo da música se constitui. É, aliás, o exercício que costumo fazer quando quero aprender uma canção. Só que, nesse caso, ouço à exaustão e, sempre que repito a “ouvida”, me recordo de São Tomás, sim, o de Aquino, que dizia que a perfeição do conhecimento pela alma se dava com a repetição, com a atualização das espécies. Espero não ter entendido errado... Mas, se tiver, não me corrija, amigo filósofo — deixe prevalecer a licença poética desse pequeno digiscrito. Foi assim que eu percebi, durante minha singela dança, que Hume tinha razão. O princípio da cópia está presente em quase tudo 152 Filosofia com Poesia ou, como disse o Professor Alexandre Guimarães, aprendemos por mimese ou imitação do que percebemos. Digo isso porque notei que uma das músicas do Buarque tinha a introdução muito parecida com a da Chiquinha Gonzaga, “Gaúcho”. Será dessa canção que o poeta, talvez inconscientemente, encontrara inspiração? Talvez. Chico e Chica são naturalmente talentosos em produzir o alimento da alma. Uma última fala. Toda vez que ouço a música Geni lembro de uma apresentação assistida com minha esposa Diélen no Comufu em 2019. Como foi linda... Assim, quase que despercebidamente, a manhã de sábado “voou”. Que sorte a minha. *** 153 Filosofia com Poesia As goiabas do quintal da vizinha No quintal ao lado, goiabas! Uma a uma, olham para mim dizendo: “vem me panhar!”. O problema é que a escalada é habilidade só dos felinos da casa. Eu, enquanto “estrangeiro”, não conheço a vizinha e meu carisma limitado me impede de pedi-las. Felizes das maritacas, verdinhas — que inveja delas! Chegam de cima — ou por cima? O fato é que a natureza lhes conferiu um superpoder: chegar sem pedir licença, sem perguntar “posso?”. Queria ter esse superpoder pra muitas coisas... Já pensou? Uma pulguinha, porém, me escapa detrás da orelha. E, antes, diz em pulguês: “uai, cê tem poder, poder de humano!”. A provocação da amiga me inquieta e penso que realmente: “com um vergalhão, de ponta retorcida, poderia “subtrair umas goiabinhas...”, ou, então, me valer da urbanidade e, motivado pelo desejo de comer as verdinhas — eu me refiro às goiabas! — forçar o carisma e ir mesmo pedir as “excedentes”, que cairiam maduras no chão, para além das bicadas das verdinhas voantes e do apetite dos proprietários do quintal. Um argumento, o último — eu juro! (E, se falacioso/retórico, não, não vou dizer!) Juridicamente falando, as goiabinhas que ultrapassam a fronteira dos quintais são do confrontante, minha sogra, a senhora Valda! 154 Filosofia com Poesia Mas, de repente, me pego tomado por um cheiro muito agradável, de galinha caipira, cozidinha, quase pronta pra comer! E mais! Criada livremente nos campos da Água Emendada! Ela pôde comer, ciscar bastante, comer insetos, bater as asas correndo em alta velocidade, como se quisesse voar — ainda que não conseguisse, que criou seus pintinhos numa choquidão danada, brava com qualquer animal que viesse a chegar perto e que bebeu água corrente. Fico com pena dela? Espinosa diria: “caro Arthur, vocês são modos da mesma substância. Além do mais, ela foi feliz, e hoje te serve de alimento...”. De fato!, eu responderia ao mestre e, me dando por convencido, acataria essa “noção comum” sobre o estado da penosa. Mas e as verdinhas, vocês, queridos leitor e leitora, devem estar se perguntando (ou ninguém está perguntando?). Essas deixarei para as verdinhas de alma sensitiva, como diria Aristóteles, e agora, como diria Platão — sim, aquele que falou de Sócrates — desejo o que me falta neste momento, um bom pedaço de galinha no meu prato! As verdinhas goiabinhas, o desejo por comê-las, transformei neste texto. Abraços aos leitores corajosos que animaram chegar ao fim desta leitura! *** 155 Filosofia com Poesia O que diria Espinosa sobre as Fake News No campo da minha imaginação viajei para a Voorberg, de 1669. Fui tomar café com Baruch de Espinosa. Dedicado ao polimento de lentes para assegurar o sustento e à escrita de sua filosofia, em certas circunstâncias de afastamento social, e não de isolamento, ele me recebeu e conversamos um pouco. Com seu tom de otimismo pela humanidade, Espinosa falava de suas constatações filosóficas, de Deus ou a Natureza, dos atributos, dos modos, dos afetos. Interessado pela explicação do filósofo, convidei-o a se reportar para as questões de 2021 e, depois de lhe contar um pouco das tecnologias da contemporaneidade, especialmente a internet, falei do problema das fake news e pedi que opinasse. Erguendo devagar a xícara em que tomava seu café, Espinosa falou. — Essas fake news são ideias inadequadas. — Inadequadas? — perguntei. — Sim, inadequadas. Pedi que explicasse. — Não são constatações originadas do próprio espírito; são informações exteriores, que vêm de fora e que afetam quem as recebe. — São espécies de paixões. — Conhece a raiz dessa palavra? — Não — respondi. 156 Filosofia com Poesia — Passio, do Latim, que significa algo que nos afeta. — Interessante seria se as pessoas obtivessem opiniões derivadas da razão, do próprio pensamento delas, através de evidências reais, sem apelo emocional, inclusive. Então, resolvi perguntar novamente a Espinosa, como quem espera uma segunda explicação, o que são as fake news, pois, devido ao adiantado da hora, precisava voltar para o meu tempo, cozinhar arroz e fazer salada para complementar o almoço que tinha preparado, em parte, um dia antes. Ele respondeu em poucas palavras. — São informações do campo do “ouvi dizer”. Fazem parte do primeiro grau de conhecimento, segundo escrevi na obra “Tratado da Emenda do Intelecto”, que estou desenvolvendo. São inadequadas porque não decorrem da razão, nem do que chamo de noções comuns. São falas ou afirmações aleatórias que, não necessariamente, condizem com a verdade, mas que modificam a opinião de quem as recebe. — Nossa... — respondi agradecido. Dito isso, precisei me despedir e voltar para 2021. Espinosa se levantou, acomodou o casaco no corpo e se despediu. 157 O saber da vida se diz por meio de vibrações cósmicas Jorge Luiz Domiciano Há coisas na vida que não podem ser explicadas. Na verdade, se a gente reparasse com mais calma, perceberia que quase nada na vida é completamente explicável — no sentido de finalizar algo em uma unidade de sentido. O mais misterioso de tudo é que a gente mesmo não se entente, não se compreende. Parece que somos refratários a nós mesmos. É assim que eu penso quando olho para mim, para o que vivi e para o que sou. Afinal, o quanto disso tudo está presente em minhas mãos, para que possa encerrar em meu punho como verdades sólidas e acabadas? Talvez fosse preciso mudar o arranjo segundo o qual eu compreendesse a mim e a tudo mais. Não encerrar, não capturar, não cristalizar, mas vivenciar... e no ato mesmo de vivenciar, velejar com as forças que me animam. O que eu sinto é como água, represada, transbordante, mas raramente vazante. Somente por alguns poros fisiológicos do gesto, do Filosofia com Poesia olhar e do sexo é que ela se esvai, às vezes — junto de um bom bocado de desrazão. É normal que os sonhos me proporcionem vazão também. Os sonhos e tudo aquilo que não é comandado por minha ordem e que é quase tudo de que sou constituído: os afetos do mundo. Há certas afecções que são como perfurações, há outras que são como esmagamento, carícias, arranhões, e há também aquelas que são como vibrações musicais. Certamente senti e sinto todas, umas mais, outras menos. Mas dessas, a que mais bonita me parece ser é a da vibração. Na verdade, não é bem certo dizer vibração. É isso, mas é mais, é sincronia. É um soar junto, é um imergir em uma atmosfera sonora; uma sonosfera comum. É participar de um mesmo ser — ser que se diz como frequência mística... O amor me parece bem uma questão de sincronia mística. Como se houvesse uma frequência cósmica que tocasse os corpos, fazendo com que soassem em harmonia: como um acorde, ou mesmo uma melodia. As ligações que se fazem por meio dessas sincronias, não podem ser simplesmente reproduzidas de modo artificial e completamente intencional. É preciso que haja uma força prévia no mundo que nos dê as cartas ou melhor, as notas, para que elas venham a ser. É preciso haver um encontro que não se encaminhe em ruído, nem em qualquer forma genérica de ressonância. É preciso que desse encontro surja uma linda melodia. A mais bela melodia. 160 Filosofia com Poesia Pois quando essa ressonância devém melodia, um agenciamento cósmico faz dar vazão a forças, energias, libidos e (res)sentimentos acumulados, gerando fluxos vitais de criação. Tal é a natureza mística do amor. O que é que somos, afinal, senão produtos dessas vibrações melódicas que se corporificam no plano bruto da matéria? E o que será o motivo que anima a vida senão um vibrar contínuo que lança e recebe sinais no mundo, ecoando, reverberando, destoando ou compondo em sincronia, e quando não encontra retorno, enfraquece lentamente ou de súbito, até parar de soar, até parar de bater? — pensemos no próprio coração... O que vem a ser minha existência na ressonância musical do cosmos, senão melodia: única, indecifrável, inapreensível por completo por meio de meu intelecto; mas tão somente vivenciada, executada e concluída! ... Creio que nosso erro, de incompreensão de nós mesmos, não seja falta de raciocínio, mas de sensibilidade. Por meio do raciocínio construímos modelos abstratos que fixam sentidos e encerram fluxos; por meio da sensibilidade, ao contrário, os sentidos fazem ressoam notas cósmicas, dão vasão a forças que nos atravessam e nos propiciam a criação harmônica com o mundo. ... Ou vai ver que tudo que acabo de dizer é só mais um desvario meu. 161 Poesias Quatro poemas sobre poesia Matheus Silveira de Souza Cada palavra cravada no papel Me relembra o por que de estar aqui Mais do que meditação, é a poesia A melhor forma de mergulhar em si *** Quando a vida já parece não bastar O poema sempre cria um outro olhar E quando o verso vira porta de saída Tenho a impressão de que a poesia que criou a vida *** Filosofia com Poesia Preocupado com coisas importantes Fui absorvido pelo dia a dia E por pouco quase me esqueço Como é bela e desimportante a poesia *** A música que toca o peito e afina o ouvido É como a janela aberta no início do dia Uns acham que é deus, ou energia Eu continuo achando que é só poesia *** Na obra O mal estar na civilização, Freud aborda, ainda nas primeiras páginas, o papel da religião na vida dos seres humanos. Nessa discussão, ele lança mão de uma poesia de Goethe: “Quem tem ciência e arte, Tem também religião; Quem essas duas não tem, Esse tenha religião” Pois bem. Os versos de Goethe e a reflexão de Freud sintetizam o tema que atravessa os quatro poemas escritos acima. A arte e a ciência carregam uma tamanha potência de significação da existência que são 166 Filosofia com Poesia comparadas com o poder da religião na produção de sentido para a vida dos indivíduos. A poesia, como uma das possibilidades de arte, é capaz de criar mundos externos e internos pela linguagem. Ela é capaz de sublimar as inevitáveis dores presentes na vida, de diluir e tornar mais leves as angústias que presenciamos. Mas a poesia não é apenas um remédio contra o eventual mal estar que esbarramos na esquina da vida. O poema é capaz de criar um outro olhar sobre o dia a dia, de revelar a grandeza das coisas aparentemente insignificantes e de mostrar a insignificância dos tapetes vermelhos, dos jantares de gala, das regras de etiqueta e das convenções sociais. A poesia é como um passe de mágica, que revela a beleza de uma cena tão insignificante como uma folha de árvore caindo em um tanque cheio d’água. A poesia é, em resumo, a capacidade de criarmos uma outra forma de enxergar o mundo e, além disso, a habilidade de criarmos outros mundos. 167 Cosmopolitismo kantiano Carolina Moreira Paulsen Cosmopolitismo, Magnífico ideal da humanidade Desvendado pela pena de Kant Com magnanimidade Desde os gregos Com Zenão Todo ser humano É nosso concidadão! Cosmopolitismo: nobre ideal da razão Que descreve o cidadão — Aquele que carrega no coração A lei moral — e a cumpre com devoção! Filosofia com Poesia Hospitalidade, Humanidade, Civilidade, Medidas de progresso da sociedade Cosmopolitismo: o plano da Providência Destino do gênero humano Após tantas guerras, calamidades e atrocidades A constituição perfeita, a paz, a mútua beneficência O direito da humanidade À liberdade Também diz: todo ser humano, concidadão da Terra Merece ser acolhido quando foge da guerra O direito kantiano De todo ser humano À universal hospitalidade Um dia Em todos os códigos de todas as nações E em todos os corações Há de tornar-se realidade. 170 Versos à contra-história da Filosofia — homenagem a Michel Onfray André Pereira da Silva Vamos reconstruir a Filosofia!, Cauterizar as chagas horrendas Causadas pelas línguas ávidas Dos apóstolos e suas lendas. Vamos reconstruir a Filosofia! Arrancá-la da história do ressentimento, Libertar seu corpo vivo e coruscante Que não suporta ser sonolento. Vamos reconstruir a Filosofia E recordá-la de sua voz audaz! Contra as correntes da cultura Dos homens “sãos e racionais”. Filosofia com Poesia Vamos construir uma Filosofia Rica de olhos, corpos e seres, Uma filosofia que será afirmação Da potência e dos prazeres. Vamos construir uma Filosofia Feita por seres livres, libertinos e libertários, Uma filosofia que valsará alegre Sobre a sepultura dos reacionários. Após reconstruída a Filosofia Em sua companhia vamos seguir Livres da retórica apodrecida, Dos que aprenderam a servir. 172 Essa tal filosofia * Edy Braun Instalou-se, donde veio essa tal Filosofia, de que mundo dum jardim dum seio? De resposta nem sussurro nem um pio nada, nada veio. De que cerne de que rota de que anseio essa tal Filosofia donde veio? Essa que a tudo se aplica sem melindre, sem rubrica. Filosofia com Poesia Senhora de que reino de que sina? Vendia, usurpada, foi menina? Nasceu grande ao que parece; sem amarras sem enlaces até sem preces. Diz-se, disse: fez-se fesse: essa tal filosofia onde a vida fez esquina; disse filo, fez sofia!!! 174 Filosofia com Poesia Não, decerto no deserto fez-se mina, vertendo solidão e frio fesse fio. Quem diria quem queria essa tal filosofia? Nela o escuro se fez dia, da tristeza nem sempre o acaso alegria. Sobretudo, todavia abriu a barriga do mundo nela descobriu as tripa, da costela ordenada cada ripa; traçou gêneros, tempos longos, espaços curtos, efêmeros… 175 Filosofia com Poesia Daí, medindo foice tudo o curvo a-retado fez-se plano. Quanto engano foi marcando essa tal filosofia… De prima disse lenda, útil como pedra de moenda; miúda, moída, essa tal filosofia se fez prenda!! 176 Filosofia com Poesia Moeda de troca num escambo ignorado, essa mesma filosofia troca boi por papel timbrado. Então; nem sei porque tudo pode ser trocado, tronco caído vira ponte cada acerto se quer sequer errado! 177 Filosofia com Poesia Essa tal filosofia sopra juízo num pré-moldado ajeitando cuidadosa o humano inacabado. Num grito aclamado alerta o silenciado; entre o ente e o SER há muita trava e mau olhado. 178 Filosofia com Poesia E de teoria em teoria suspende o mito essa tal filosofia, sem contudo abandonar alegoria. No afã do universo todo ordenar essa tal filosofia principia: tudo que se afirma se pode também negar!!! 179 Filosofia com Poesia E a cria dessa tal filosofia se descobre “cogito ergo sum” 1 e se recobre: ‘‘só sei que nada sei,’’² nesse fluxo o senso dá noção da paixão percebida e aí, da potência ao ato ‘‘virtus est in medio’’, que ironia pressa tal filosofia, liberdade e bem o mesmo ethos não tem... será? ou não convém??! Meditação da Filosofia Primeira, 1647, Descartes. ² Apologia de Sócrates; O Primeiro Discurso; Platão. 1 180 Filosofia com Poesia Nos conflitos da ilusão essa tal filosofia, acordar o logos e a realidade, presa a ferros; pari o método que afoga o rigor e sem dúvida transcende agonia, fazendo da crítica uma pedagogia e dum idiotés apto pruma cidadania. 181 Filosofia com Poesia O vir a ser não é um eterno retorno mas, deveria… pro ser poder SER pro vir acontecer… Mama Mia! à que confusão nos remete essa tal filosofia!! Se num continum nada cabe de parado, como pode essa tal filosofia, fundar o presente do passado ou o passado do presente, s num qualquer plano for traçado?? 182 Filosofia com Poesia Propondo um pensar com autonomia, se exercita essa tal filosofia por demais em analogia. Depois de ter quase tudo explicado da physis a psiquê, diz convicto o geômetra, no mundo nada parece o que é e por certeza se toma, mais fenômeno que fé. 183 Filosofia com Poesia Essa tal filosofia Medindo submeteu o mistério, forjando a cada passo pro sentir e o pensar um diverso critério. Posta tal distinção; do verbo o silogismo fez mapa, tirando dele a intenção, reduziu o discurso numa simplória capa. 184 Filosofia com Poesia Magistral posição assumida por dedução filosófica; perguntando, a gente se entendo, descobre o que tem pela frente. Há gente que dessa maneira aprende, até existe quem se emende e ainda há quem se rende a essa prática ancestral. Mas, guarde bem a lição; respondendo, a gente se vende!!! A afirmação tem + lados do que a pergunta previa, e o seu trecho é + curto do que o conhecimento podia, a comparação se completa na mesma filosofia. Uma ideia defendida pode sempre ser contestada, revela do sujeito a intenção e a direção planejada. Se boa deve calar o espírito do inventor e por si mesma falar, quando aplicada for.. 185 Filosofia com Poesia Por ora; a cópia abunda e o texto perde valor, quem cria fica logrado e o malandro ganhador. O novo compartilhado de todo modo é testado neste estreito corredor 186 Filosofia com Poesia Sabendo e tendo ciência, rompe veloz as barreiras pondo à juízo e à força práticas da tradição costumeiras. Essa tal filosofia na busca por coerência, supera o senso comum, num projeto pretenso, se apegando a prudência, que para o comum dos mortais é o conhecido bom senso. 187 Filosofia com Poesia Essa tal filosofia pondo o conhecimento em questão, repõe a pergunta constante; se Deus e a natureza não dão resolução? Razão e ciência, ao que parece também não… Acredite ou ignores, a história tem mostrado; não se acomoda a escores nem se resume a refrão. 188 Filosofia com Poesia Essa tal filosofia tombando um teo sem mesuras, requer pra si o poder afunda criador e criatura. Elege um ântropos, medida de todas as coisa, que se arvora; a dar sentido ao alvorecer e aurora, ao tudo e ao nada desde antes e depois de agora. 189 Filosofia com Poesia A ironia moderna tão diversa da primeira descobre o duplo sentido; o encoberto, o fingido, revelando que o pensar alienado cria o trabalhador oprimido nunca um bandido. 190 Filosofia com Poesia Nem cético em sábio, ouso afirmar; que posso conhecer o universo ao qual pertenço, seja do espirito ou ao natural, por contato, por apreço. Quanto ao que intuo por qualquer juízo que seja, juro que não substituto… prefiro essa realidade benfazeja, que a emoção contenda; seja ela ilusória ou da ficção, atenta… Penso que a vida por si só seja o que movimenta; curta, fugas e não raro, tão violenta!!! Ela nos pega a sós e na integridade rompida; pura maldade a morte sabida. 191 Filosofia com Poesia Não importa o tamanho da Fé, o plano da obra, altura do posto; o tombo é certo. Pois; o preço é outro, vem sem lastro, vem sem rastro, as xxx não vem sem rosto. 192 Filosofia com Poesia O tamanho do poder tampouco nasce da força do querer; raramente sanidade, limiar sutil entre loucura e bondade. Nasce noutras xxx do estremecer, que por convicção não pode ser liberdade!!! E mesmo no politicamente correto, se vende beleza, se entrega a vaidade… 193 Filosofia com Poesia O que faz de melhor essa tal filosofia, senão se perguntar o quê como e porque cada coisa é? Se é por si ou por nós… Daí por dedução, caio na zona do espanto; se a coisa é o que é, não é o que penso… se é o que penso, não é… E no ritmo da descoberta me encanto!!! 194 Filosofia com Poesia À que experiência incrível nos conduz essa tal filosofia; dois jeitos de perceber a verdade num instante se cruzam, dois ângulos do mesmo mundo se revelam; o de fora da razão ou dá razão pra fora, e agora? O objetivo visível e o subjetivo crível nesse vai e vem… não é o que sei + o que conserva, o porém... 195 Filosofia com Poesia Resta pressa tal filosofia uma atitude na busca; pelo que é, pelo que pode ser… Aparecem então os tais princípios, que permitem dar fé a razão, razão pra fé. Ainda assim não sabemos, se sabemos o que é. Na crença de que ainda possa ser verdade, se torna possível a verdade que sabemos… 196 Filosofia com Poesia As comportas desse mundo se rompem; um objetivo mundo subjetivo se mostra, mesmo que duvidemos dum subjetivo mundo objetivo! E com a imaginação à solta o fenômeno não se mostra de forma pronta, nem o saber é brinquedo de mula tonta. 197 Filosofia com Poesia Bailamos ao sabor e ao ritmo das fontes, deslizamos ao frescor das substâncias e das gelatinas ou na aspereza das nervuras nos arranhamos. O que sei por juízo ou por legítima esperteza; nenhuma é sempre líquida ou límpida… o que refresca também dói, o que rasga desperta o gosto!!! 198 Filosofia com Poesia Na interação me dou conta com ou sem filosofia, há algo posto antes de muito, que existe o deposto durante e depois de quase tudo. A pergunta não se cala mas fico mudo… 199 Filosofia com Poesia Essa tal filosofia Investindo na procura por alguma certeza, encontra na técnica resposta imediata. Reduz o erro humano produzindo a eficiência mas, nesse mecânico processo alijou o presente e ao futuro deu acesso. Ganhamos objetividade perdendo contudo a excelência. 200 Filosofia com Poesia E a pergunta já não é porque o mundo se move, sim; até quando vai valer esse olé!!! Se há um destino previsto, se posso crer nas ideias que invisto ou se permito que as culpas se voltem pro Cristo. 201 Filosofia com Poesia O amanhã é um tempo que não existe; na linguagem maestria. Esse conceito é uma falácia que a retórica idolatria. Ela em si não tem fiança, função só tem mesmo na ordem da cronologia. Porque o por vir só se garante na criação da esperança, que pro concreto da vida, é termo, molde que se cria, ainda gramática vazia. 202 Filosofia com Poesia Pressa tal filosofia, tudo se move nós passamos como carros na paisagem, ela fica nós marcamos as etapas da viagem. Transeuntes, somos todos nesta breve travessia… Há nela os que sucumbem por negar-se alegria, há nelas os que criticam no trabalho a mais valia; nos dois modelos ocorre a perda de simpatia. Sempre que uma virtude é negada ou alguma informação é postada a ação não se esvazia. Mas, ela pode ser julgada como atitude vadia. 203 Filosofia com Poesia Ousada essa tal filosofia interrogando sobre a natureza tendo apenas o juízo como critério, diz do mundo e das coisas o que lhe parece e bem + o que confirma a experiência, mesmo sabendo de antemão que esta como aquela de algum modo também é aparência. Ousa e vai a fundo, pontuando aqui e acolá saberes, que se sabe de ver ou de ouvir falar, nada descarta no percurso toma como linha condutora cada rasto, cada marca, intuição, imagem ou discurso. Nada, nada escapa do exercício filosófico seja micro, seja mega essa tal filosofia de algum modo, pega!! 204 Filosofia com Poesia Há quem diga da inutilidade dessa tal filosofia, por certo um mercador nela não investiria. Um impasse nos negócios resolve a rebeldia; como atribuir valor pro que não é mercadoria? Esse CARA, mesmo sem querer transita nos andares dalguma economia, que é a lógica usada no cotidiano de qualquer filosofia. 205 Filosofia com Poesia Do indivíduo prum sujeito são milênios, mil defeitos… intelecto + vontade, põe de repente, João ninguém = homem perfeito! e apanhando totalidades dum jeito correto, a mesma filosofia traveste o estranho o desconhecido em objeto. O exterior entronizado converte o ignorante no alfabetizado. E afirma convincente de que; é possível conhecer pelo aprendizado. Pois, Pois conceito, diz presumindo; são retenções do ocorrido, memórias com significado. 206 Filosofia com Poesia Os déspotas regurgitam o absoluto colocando à sombra, a surda e cega luta antiga de fala mansa, nova eloquência revestida de mantas pra cobrir o frio do inverno. O povo aquecido por um instante breve participa das tramas do inferno. 207 Filosofia com Poesia Acostados não reconhecem o sinais que a benevolência ocasional serve e a máxima ideológica se atreve: mantendo o status de rei disfarça os NÓS da lei, encobre os donos reais do espaço interno. E há quem chame essa linha tênua de ESTADO moderno registro da história oficial em quase nada ingênua!!! 208 Filosofia com Poesia Essa tal filosofia crente numa razão que se auto redima põe nas luzes esperança fraterna faz trilha… da ilustração faz terra. Supõe + nem de longe deseja que esta mesma estrela possa tão de perto, súbito propor um sofisticado ardil de guerra, que por campo de batalha estendo o medo fazendo na verdade; distância silêncio segredo. Luta de força bruta que verte horror + não sangra por muito que assombra, que assusta, encurta é certo o pano da manga colocando homens de terno em calças curtas. 209 Filosofia com Poesia Indivisa a servidão que nesses moldes se trama. O grito da liberdade do ilustrado clama, pros cidadãos recém convertido, só chama, pros doutrora mestres de ofício boia fria e drama!! Pruns, direito reservado, privilégio herdado proutros bolsão de miséria, marcos da periferia. 210 Filosofia com Poesia O auge do progresso oh! doce filosofia, não traz pra gente comum melhores e bons dias. Nas fábricas triplas jornada, na vida necessidades, nas praças sonhos de liberdade. Pra cada dia trabalho, suor ++ nada! N’alma anseio pão ázimo de sustei-o pruma agridoce salada!!! 211 Filosofia com Poesia Pros modernos, tudo se torna objeto de conhecimento. São as operações mentais que personalizam o evento, criando na interação instituições de toda ordem e pra cada qual seu argumento; que aparecem no contraditório, no áspero, no risco, no oratório. Cultivam a lágrima só por encantamento. 212 Filosofia com Poesia E a modernidade se eterniza como bom momento; nela rompe-se quase demais, o muito escasso duma moral de puro atrevimento, aplicada ao desembaraço e ao consentimento. 213 Filosofia com Poesia E a natureza galileica, escrita no livro do mundo, precisa dum leitor de cálculo. Ela se ajeita entre as coisas, de causa e efeito; seu equilíbrio, puro movimento. Só na régua dela se faz leitura perfeita!!! 214 Filosofia com Poesia Todavia, entre as coisas e fatos praquela filosofia; a contingência exige relações necessárias, aqui como lá, a mecânica agência, produz, conserva e destrói… Pedra de toque da clássica ciência. 215 Filosofia com Poesia Porém, a realidade nessa forma inteira, não cabe. Prela, essa condução não serve!!! Ela acontece; se fraqueja a tensão, emudece, desaparece… Bem + pulsão tem a vontade, cuja razão a cria, nela intervém se altera… 216 Filosofia com Poesia Mesmo movimento resultado diverso, no verso; o clássico científico não pode ser estornado eo tecnológico se revela no experimento. O invento aperfeiçoado recria o inventor e o inventado. 217 Filosofia com Poesia O humano passo a passo desapercebido passa, de condicionador a condicionado, de controlador a controlado. Invertem-se os papéis. A série determina o granulado o seriado e, em série o perfil é programado, o pensador já é pensado… Desencantado o passado, o futuro se apresenta e o presente ignorado. 218 Filosofia com Poesia O real buscado a priori aprisionado não se enquadra todo as regras, tão simplesmente. Ao se lhe dar contornos fluem suas vertentes. E o apanhado nesse design por demais é breve e rijo pra que a realidade contente. 219 Filosofia com Poesia O princípio serve à princípio a si mesmo, que se exercita na lógica da ferramenta. É afirmação, estratégia segura em tempos de grande tormenta! 220 Filosofia com Poesia A consciência que a razão comporta abre pro real muitas janelas, ainda que fechando portas. Contudo e é pena, pra cada uma delas põe ferrolhos, conduzindo a luz pras lentes do olho… daí a moral que devia ser livre, tem limites!!! 221 Filosofia com Poesia E o logos que essa razão assenta se põe dissonante de outras atitudes e o oposto, disposto entre o que se sabe e o que é de fato ou de gosto, aparenta onde; a ilusão opina, a paixão enverga, a revelação, luz fátua, o êxtase, transporte sem mediação… cada qual emoção sentida sequer pensada. 222 Filosofia com Poesia A diferença radical entre intelecto e o coração; o 2º puro gozo o 1º só expressão ainda que o homem seja o mesmo e outra não seja a mão. 223 Filosofia com Poesia Eu aqui nesse extenso, que não têm diâmetro. Nesse tempo, que não tem hora perplexa; reconheço a conservação como necessidade pra saber de mim e dos outros senão; não posso afirmar nem sim, nem não. 224 Filosofia com Poesia Reconheço a contradição e a polaridade do meu universo que nasce da palavra e da ação. Reconheço o dilema; a verdade não pode estar em 2 lugares. 225 Filosofia com Poesia Reconheço que tudo o que existe, CAUSA porisso tem um intento. Me recuso ao acaso como origem, entretanto aceito pra início de conversa o acidente!!! 226 Filosofia com Poesia Desde que me conheço por gente aceito; o universal o horizontal... percebo nesse alinhado o particular o transversal transitando no contingente, nele a necessidade é adstringente. 227 Filosofia com Poesia Nessa filosofia mesma, o assombro o deslumbre e a aventura se amoitam por demasia no convergente! E gente só se pode ser aquém ou além do indiferente!!! 228 Filosofia com Poesia Sobretudo essa tal filosofia, presenteia aos cegos e aos surdos/mudos um treino de labor virginal, aonde o divergente o diferente retrata. E o marginal sem cobertura se apresenta, se representa flexiona refrata performance autoral de pura nata!!! 229 Filosofia com Poesia Será que essa tal filosofia quer chegar a algum lugar? Já sabemos que andarilha perguntando sobre quase tudo mesmo de si começa a duvidar. E SERÁ?? que da caverna, tirou o chimpanzé nomeou-o classifica homem e colocado em pé, de recurso já não serve pra dizer quê cada coisa é?? 230 Filosofia com Poesia Crédula, da razão mundana disse do amálgama original, fundante… que não se deixa notar pelo passante. Reclassificou o humano como anjo caído que ao céu pode alcançar Se e Se do lobisomem perder o pelo e e em lua cheia dedicar-se ao desvelo de si derredor e derredor de si e + bem + colocar o instinto marinar num molho de vinho tinto… 231 Filosofia com Poesia Um semideus talvez, na verossemelhança ou por que não escultura formada nas areias de monção que ainda que bem deseje nasce ali e ali mesmo o vento por suave que seja o decompõe depõe repõe despeje... Permanecendo algo desse movimento inalterável apesar de tanta viração. 232 Filosofia com Poesia De repente essa tal filosofia se descobre metafísica na contramão. Mas, afastando a cortina tão belamente tecida em tratados e manuscritos pela eficiência duma análise criteriosa, de bom juízo, retoma o trecho andado iluminado o revirado o FIM previsto e denunciado num segmento é colocado, acaba o começado!!! 233 Filosofia com Poesia A dúvida de novo em estado de inércia, paira até que uma outra história desminta aquela que cegamente é repetida ou uma ciência qualquer defina; que aquilo que acaba nem sempre termina, raramente pode ser negada como a fonte das águas de mina. 234 Filosofia com Poesia Srªs e Sr.s; apertem os cintos, tapem os ouvidos, levantamos voo ruma ao conquistado. Olhem ao redor que maravilha, tudo foi acordado!!! Já não há fronteiras; o poli, o pluri, o multi, os trans, Estão catalogados!! Cada barreira, cada obstáculo, progressivamente foi rompido, derrubada… ATENÇÃO, ATENÇÃO!! Antes de aterrizar, acesse o banco de dados. Esqueça as placas os outdoors os LINKS estão atualizados *até 2hrs Demorou-se? 235 Filosofia com Poesia Não entendeu os sinais CARA, que pena... Veja o conta direito da tela; aqui nesse ALOCADO Por tempo indeterminado Nesta lógica muitos dos saberes tem andado… Cientistas, especialistas, projetistas, recriam e o porvir e o por vir, nem se mostra e já vem embrulhando, já tem endereço, garantia de mercado. * Uma primeira versão desta poesia encontra-se publicada na coletânea Textos para ensinar e aprender essa tal de filosofia, organizada por Ester Maria Dreher Heuser e Wilson Antonio Frezzati Jr.; publicada pela EDUNIOESTE, em 2016. A presente versão é revisada e ampliada. 236 Sobre os autores André Luís Borges de Oliveira Doutorando em Filosofia. Mestre em Filosofia e Ensino e bacharel e licenciado em Letras. Pesquisa a relação da cultura brasileira com suas raízes coloniais a partir da Literatura e da Filosofia. Já trabalhou com: Poética, cinema, filosofia com crianças. Atualmente, é professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. André Pereira da Silva É graduando em Filosofia na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Tem desenvolvido pesquisa no campo da Ética e da Política sob a perspectiva hedonista e ateia assumida por filósofos marginalizados pela historiografia clássica, como Epicuro, Barão d’ Holbach e Jean-Marie Guyau. Filosofia com Poesia Arthur Alves Almeida Soares de Melo Quando criança, gostava de brincar com as palavras, variando a entonação. Um dia, chegou com uma redação que tinha escrito sobre as aventuras do Super-homem e foi bastante elogiado. Formou-se advogado e aprendeu a bitolar palavras. Do uso, desuso, reuso, recuperou o gosto pela palavra, palavra-brinquedo, palavra-salvação. Escreve como quem caminha sem rumo, reparando na paisagem. Mas, quando re-para, vê sentido, vê beleza. Isso satisfaz. Carolina Moreira Paulsen É mestranda em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas, com bolsa da Capes. Possui especialização em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra e atuou como consultora de organismos internacionais e advogada. Cleiton Luiz Kerber Possui bacharelado em Teologia pela Universidade La Salle, Bacharelado em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Formação Pedagógica em Filosofia pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER). É professor de Ensino Religioso e Filosofia, e trabalha na formação de Jovens Lideranças que atuam em Comunidades Educativas e como Voluntários em realidades de vulnerabilidade social. Possui artigos e capítulos de livros publicados na área da filosofia política e da educação, de teologia e de literatura em suas diversas expressões culturais, sociais e teóricas. 238 Filosofia com Poesia Daniel Rodrigues Ramos Nome dado para um menino que veio à existência no interior do Brasil central, no Goiás de Catalão. Tinha ele a tarefa da sua identidade, ser-quem; nada modificado doutros nascidos de qualquer parte, até de igual no nome. Diferença — só para ele, o tal nome de cunho diz o mesmo que: 1. Filho do Cerrado. Fechado, denso, portanto. Nomeia quem é torto e rude, feito aos arbustos e arvoredos dessa paisagem. De abertura espessa e existência apertada. Resistente à aridez, porque contorcido de tanta sequidão. Quem possui a rudeza típica desses campos: rebenta em flor e vida na estação das secas. 2. Vocacionado para a filosofia. Aprendiz do pensar. Da arte de contorcer-se na solidão. 3. Um tal doutor em Filosofia, feito nos estrangeiros. Que ensina na Universidade Federal do Tocantins e, ora pois, morador de certa cidade levantada do chão do Cerrado de norte bandas: Palmas. Paradeiro daquele quem — é ele? que sou eu — à procura de uma paragem. 4. Quem pesquisa Fenomenologia e, certa feita, publicou O Ereignis em Heidegger. Está a publicar migalhas de pensamento 239 Filosofia com Poesia fenomenológico, ditas artigos. Talvez, ensaios; escritos pedregosos de muito desajeito no entretecer do pensamento. 5. Quem é nas cercanias do saber de como é possível estar em casa em toda parte, mas sem ter chão e quinhão em lugar nenhum. Perdeu os fios de sangue que prendem à terra natal e busca encontrar abrigo nesse desamparo. Ou a caminho das veredas; como quem espera arraigar-se em raízes profundas no semisseco, à beira-riacho. Desavença de existência com tino e destino, de nome a experiência do pensamento ou a poesia do cerrado. O mesmo é plurívoco. Portanto, diz quem é tudo isso, a cada vez ou ao mesmo tempo. Mas também diz, nisso tudo, nada. São só alcunhas. Mas dizer o nada: o enigma dos nomes, o mistério da identidade. Fonte: Dicionário de singularidades, de um observador duplicado do cerrado. 240 Filosofia com Poesia Edy Braun Bio-grafia Nascida na cabeceira do Rio embalada pelo sussurro das águas mansas que se avolumam e assombram na queda Aprendi com os patos a conter o ritmo das correntes e por x x x deixei-me levar no prazer das nadaduras O céu refletido n’água dos remansos tirou meu espiríto do chão que alçando voo se fez pato nem cordão em fileiras no espaço não todo tempo nem o tempo todo 241 Filosofia com Poesia Muitas x x x mergulhei no céu que o rio me mostrava bom também contudo porém, preferi minhas asas em exercício de subida fiz das asas patos e não raro das velas asas tudo voado assim, tomando d’água do céu e metendo-me nos céus dessas águas que a vida oferece e a gente aprende e se diverte ou padece... E nessa onda pinto e a natureza – tece 242 Filosofia com Poesia Jorge Luiz Domiciano É mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) e possui graduação em História pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Seus tópicos de estudo são: História e Cinema; História da Tecnologia; Filosofia da Tecnologia e Filosofia da Informação. Júlio da Silveira Moreira Nasceu em 1983 na cidade de Goiânia. Iniciou em Goiás seus estudos e trabalhos na advocacia, na docência e no ativismo. Formouse em Direito e atuou na Associação Internacional dos Advogados do Povo. É professor universitário desde 2009 e atualmente está lotado na Universidade Federal da Integração Latino-Americana, onde é docente no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos LatinoAmericanos. No mestrado, apresentou uma proposta de ensino e prática do Direito Internacional com base no marxismo. No doutorado em Sociologia, pesquisou a travessia de migrantes pelo México, e acabou de concluir o pós-doutorado em Filosofia, pesquisando a obra do psiquiatra austríaco Viktor Frankl. É autor dos livros Direito Internacional: para uma crítica marxista e Violência contra Migrantes no México e o livro de poesias Na Beira do Rio, bem como algumas dezenas de capítulos de livros e artigos. É membro e entusiasta do Instituto Quero Saber. 243 Filosofia com Poesia Matheus Silveira de Souza No início da adolescência, pegou alguns livros de poesia na biblioteca da sua cidade natal e entre eles havia uma antologia de Fernando Pessoa. Pela pouca idade que tinha, não entendeu muito bem o que lia, mas sentiu que suas alegrias e angústias estavam descritas no papel por alguém que havia partido há muito tempo. Desde então, lê poesia e escreve versos. Talita Moreau Nascida em São Paulo (1988), filha de migrantes nordestinos, passando a maior parte da infância em Manaus, a vida adulta foi dividida entre Uberlândia e Belo Horizonte. Houve também uma temporada em Portugal nas cidades de Évora e Lisboa estudando Práticas Artísticas em Artes Visuais. Hoje a moradia é em Uberlândia. Formada tecnóloga em Produção Audiovisual, licenciada em Artes Plásticas e mestranda em Filosofia, tendo como subtema da pesquisa: Arte e Estética. Professora de Artes na rede pública, com experiência profissional que passa por áreas técnicas ligadas a televisão e teatro, educação formal e informal em Artes Visuais, e produção de conteúdo na área de Artes Visuais, com ênfase em Pintura e Audiovisual, tendo participado de exposições e projetos nacionais e internacionais. Criar com as palavras ou com cores, formas, linhas e texturas é uma tentativa de cortar os fluxos e respirar instantes de liberdade, de compartilhar esses respiros, na esperança de criar conexões com o outro. 244