Filosofia com Poesia
Filosofia com Poesia
Amanda C. Schallenberger Schaurich
Júlio da Silveira Moreira
Junior Cunha
Organizadores
Primeira Edição E-book
TOLEDO–PR
2022
© 2022 Instituto Quero Saber
Gerente Editorial Junior Cunha
Editora Adjunta
Daniela Valentine
Conselho Editorial Ana Karine Braggio
Carlos Renato Moiteiro
Eliana Nogueira Brito Saturnino
José Francisco de Assis Dias
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens
Produção Editorial Amanda C. Schallenberger Schaurich
Mônica Chiodi
Instituto Quero Saber
www.institutoquerosaber.org
editora@institutoquerosaber.org
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
F488
Filosofia com poesia. / organizadores, Amanda
C. Schallenberger Schaurich, Júlio da
Silveira Moreira, Junior Cunha. 1. ed. e-book
- Toledo, Pr.: Instituto Quero Saber,
2022.
244 p.: il; color.
Modo de Acesso: World Wide Web:
<https://www.institutoquerosaber.org/editora>
ISBN: 978-65-87843-44-5
1.
Filosofia.
CDD 22. ed. 193
Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi – Bibliotecária CRB/9-1610
O teor da publicação é de responsabilidade exclusiva de seus respectivos autores.
Ao manter a separação entre ciência e
poesia, nossa cultura é tola, porque se
torna míope para a complexidade e a
beleza do mundo, reveladas por ambas.
Carlo Rovelli
Sumário
Prefácio
Por uma analítica ontológica: filosofia e poesia, unidas na pergunta
pelo Ser.......................................................................................................................... 11
Amanda C. Schallenberger Schaurich, Júlio da Silveira Moreira
& Junior Cunha
Ensaios filosóficos
“O mundo poderia ser tão belo!” Frankl e Van Gogh em face do
sublime ........................................................................................................................ 27
Júlio da Silveira Moreira
A questão filosófica brasileira — uma obra de arte ..................................43
André Luís Borges de Oliveira
Vivência, experiência e narrativa a partir da filosofia de Walter
Benjamin .................................................................................................................... 63
Cleiton Luiz Kerber
“Mas para nós, a existência ainda é encantada”: sobre a existência, em
Rilke e Heidegger .................................................................................................... 89
Daniel Rodrigues Ramos
Filosofia com Poesia
Prosas poéticas
A dívida infinita da mulher artista.................................................................. 147
Talita Moreau
Devaneios crônico-filosóficos ..............................................................................151
Arthur Alves Almeida Soares de Melo
• A limpeza da casa em dois pra lá, dois pra cá ............................................ 151
• As goiabas do quintal da vizinha..................................................................... 154
• O que diria Espinosa sobre as Fake News.................................................... 156
O saber da vida se diz por meio de vibrações cósmicas ........................ 159
Jorge Luiz Domiciano
Poesias
Quatro poemas sobre poesia............................................................................. 165
Matheus Silveira de Souza
Cosmopolitismo kantiano ................................................................................... 169
Carolina Moreira Paulsen............................................................................................. 169
Versos à contra-história da Filosofia — homenagem a Michel
Onfray .......................................................................................................................... 171
André Pereira da Silva
Essa tal filosofia ...................................................................................................... 173
Edy Braun
Sobre os autores ................................................................................................... 237
Prefácio
Por uma analítica ontológica: filosofia e poesia, unidas na
pergunta pelo Ser
Amanda C. Schallenberger Schaurich, Júlio da Silveira Moreira
& Junior Cunha
Filosofia e poesia possuem uma forte relação de proximidade. A
pergunta pelo Ser as une há muitos séculos. Os primeiros poetas do
mundo helênico, os chamados aedos, cantavam, sob a inspiração das
musas, versos que ecoavam o cerne do pensamento filosófico. Hesíodo,
em sua Teogonia, escreve que “bem primeiro nasceu Caos” 1. Mais do
que um deus grego, a palavra kháos, em seu sentido originário, significa
“abertura”, “espaço vazio”, “abismo”. Mas se kháos é o primeiro a nascer,
a partir de onde ou no que se dá a “abertura”? O “vazio” se entenderia
pelo “espaço” ainda inexistente? O quão profundo seria esse “abismo”?
Tales de Mileto, Parmênides, Heráclito, Anaximandro e
incontáveis outros filósofos pré-socráticos se dedicaram ao “problema
da physis”, a pergunta pela arché (origem) de tudo o que existe. E não
1
Hesíodo, 2007, p. 109 (v. 116)
Filosofia com Poesia
podemos nos esquecer do célebre aforisma de Heráclito: “se ouvirem,
não a mim, mas ao logos, provarão ser sábios se admitirem que tudo é
um” 2 — que evoca outra questão primordial do pensamento filosófico:
a querela da unidade versus multiplicidade.
Mas a pergunta pelo Ser não é exclusividade dos gregos antigos.
Mudam-se as maneiras de formular a questão ou as tentativas de
respondê-la, é verdade, mas o anseio em tentar desvelar o mistério que
encobre as origens de tudo, talvez seja um dado próprio e intrínseco
do ser humano. Já na era cristã, por exemplo, o Apóstolo João escreveu
que “no princípio era o verbo” 3. Aqui, “verbo” se aproxima do sentido
originário da palavra grega logos: “palavra”, “discurso”, “razão”. Assim,
as palavras de João ecoam os primeiros versículos de Gênesis, nos quais
a “palavra” de Deus é a expressão de seu poder criador — como se vê
no v. 3: “Disse Deus: Haja luz; e houve luz” 4.
Mais à frente, a pergunta pelo Ser, e os modos de respondê-la,
ganha um novo contorno. O ser humano passa a colocar o foco da
questão sobre a sua própria existência. “Ser ou não ser, essa é que é a
questão” 5, diz o nobre e melancólico Príncipe da Dinamarca. “Penso,
logo existo” 6, responde Descartes. Já na contemporaneidade, fazendo
eco às canções dos aedos, Camus publica o seu Mito de Sísifo, mais
uma vez, reformulando a questão: “só existe um problema filosófico
2
Berge, 1969, p. 259.
João, 1:1.
4
Gênesis, 1:3.
5
Hm. 3.1.58.
6
Descartes, 1996, p. 38.
3
12
Filosofia com Poesia
realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida
é responder à pergunta fundamental da filosofia” 7. E Sartre também faz
sua tentativa de respondê-la, a “existência precede a essência” 8, escreve
o filósofo em o Existencialismo é um Humanismo.
Heidegger,
um
dos
mais
importantes
filósofos
da
contemporaneidade, em sua obra Ser e Tempo, também reformula e
tenta responder à pergunta pelo Ser. Sob a influência de Husserl e com
base na fenomenologia, Heidegger propõe a analítica existencial, ou
ontologia fundamental, como um novo meio de investigar o Ser.
Buscando ir além da metodologia investigativa das ciências
naturais, que se volta para os entes e elege objetos para suas análises
— uma perspectiva ôntica, portanto —, Heidegger pergunta pela
essência do Ser de forma ontológica:
A analítica tem a tarefa de mostrar o todo de uma unidade de
condições ontológicas. A analítica como analítica ontológica não é um
decompor em elementos, mas a articulação da unidade de uma
estrutura. Este é o fator essencial no meu conceito “analítica do
Dasein”9.
Uma vez que sabemos que, em Ser e tempo, Heidegger
reformula a pergunta pelo Ser e que ela é feita de forma ontológica:
quem profere e a quem é dirigida a questão? Ora, quando colocamos
em foco a totalidade dos entes, um se destaca. Aquele que não podemos,
a rigor, definir como os outros entes: o ser humano.
7
Camus, 2014, p. 17.
Sartre, 1978, p. 5.
9
Heidegger, 2001, p. 142.
8
13
Filosofia com Poesia
Não há ente que se compare ao ser humano, seu modo de
existência o distingue das demais coisas existentes, de modo que nem
mesmo podemos coisificá-lo, fazer dele um mero objeto. O ser humano
é, em si mesmo, existência enquanto tal. O próprio Ser, ou, na
linguagem heideggeriana, o Dasein,
[...] o existir humano em seu fundamento essencial nunca é apenas
um objeto simplesmente presente num lugar qualquer, e certamente
não é um objeto encerrado em si. Ao contrário, este existir consiste
de “meras” possibilidades de apreensão que apontam ao que lhe fala
e o encontra e não podem ser apreendidas pela visão ou pelo tato
[...]. O que o existir como Da-sein significa é um manter aberto de
um âmbito de poder-apreender as significações daquilo que aparece
e que se lhe fala a partir de sua clareira. O Da-sein humano como
âmbito de poder-apreender nunca é um objeto simplesmente
presente. Ao contrário, ele não é de forma alguma e, em nenhuma
circunstância, algo passível de objetivação 10.
Um dos traços característicos fundamentais (ou um existencial)
que diferencia o Dasein dos demais entes é sua abertura para o mundo.
Diferente dos demais entes, o Dasein é sempre lançado no mundo, de
modo que é um ser-no-mundo e, inevitavelmente, não se encerra em si
mesmo, não se limita a si próprio. Mas, assim como modifica o mundo
ao agir, igualmente, está sujeito a modificações ao agir no mundo.
Trata-se de um ser aberto.
O Dasein é lançado ao mundo como nada. Possui suas
características fundamentais (ou seus existenciais), mas carece de uma
10
Heidegger, 2001, p. 33.
14
Filosofia com Poesia
definição ou um fim específico — como se dá com outros entes, que
são delimitados conforme sua natureza, no caso de seres vivos; ou
conforme suas utilidades, no caso de objetos, por exemplo. Em razão
disso, o Dasein é sempre um projeto.
Dada a ausência de uma definição ou de algo que o defina, o
Dasein está lançado no mundo como um projeto, possui uma
quantidade inumerável de possibilidades diante dele. Desse modo, está
constantemente colocado diante de escolhas que o obriga a projetar sua
existência, que não se efetiva no pormenor de seu ser, isto porque o
Dasein é, também, sempre um ser-para-o-outro.
O Dasein é lançado ao mundo e está aberto a ele e aos outros
seres humanos. Desse modo, a relação do Dasein com o mundo e com
os outros seres humanos é distinta da relação dos entes com o mundo
e com os outros entes. Há uma relação de afetividade do Dasein com o
espaço onde ele está inserido e com os demais seres humanos. A ligação
afetiva e a sua característica de projetar-se, de estar aberto a
possibilidades, complementa mais um de seus existenciais: preocuparse e cuidar do espaço onde está inserido e dos demais seres humanos.
E, assim como é aberto ao espaço, o Dasein é também aberto
ao tempo, o qual “se mostra como a chave para o sentido de ser” 11. O
passado, o presente e o futuro lhe afetam e exercem influência em seu
projetar-se. O ser-no-mundo nunca é estático, estagnado, objetificado,
11
Gorner, 2017, p. 25.
15
Filosofia com Poesia
mas ser em projeto, em processo. Ele vem a si, é e está por vir —
formando uma temporalidade.
O Dasein está voltado para futuro, mas, simultaneamente, está
ligado ao seu passado e preso ao seu presente. De modo que todos os
seus projetos estão sempre ligados ao passado, ao presente e ao futuro.
Este último revela ao Dasein mais um de seus existenciais: ser-paramorte. Quando o Dasein se volta para o futuro, percebe que a única
possibilidade inexorável é que sua existência possui um inevitável fim.
O fim inevitável, no entanto, não é um convite à resignação. O
Dasein é um Ser para morte, o que significa, também, estar aberto para
a vida. Estar aberto para contemplar “o ocaso incandescente e
tenebroso, com todo o horizonte tomado de nuvens multiformes e em
constante transfiguração, de fantásticos perfis e cores sobrenaturais”,
mas, também, “os desolados barracos cinzentos do campo de
concentração e a lamacenta área onde é feita a chamada dos
prisioneiros” 12.
Júlio da Silveira Moreira, no primeiro texto da coletânea, mostranos que “mesmo nas situações mais difíceis, como estar dentro de um
trem, sendo transportado de um campo de extermínio a outro, onde
possivelmente será levado diretamente às câmaras de gás”, ou “nos
momentos de maior criação, em que se parece que alguém tecla os
dedos do escritor; que alguém fala pela boca do orador; que ‘os quadros
12
Frankl, 2020, p. 58.
16
Filosofia com Poesia
pintam a si mesmos’; que os instrumentos musicais choram, roncam,
gritam”, o Ser se desvela na inconstância multiforme do real.
Não podemos esquecer que a pergunta pelo Ser está contida no
fazer poético, no fazer filosófico, na afirmação poético-filosófica “O
mundo poderia ser tão belo!”, pois está aí o paradoxo: o “poder ser”
integra a existência, juntamente com o “ser” e o “dever ser”’. Ser para
a morte, estar aberto para a vida, é também estar em face do sublime,
assim, como estiveram Frankl, Van Gogh, outros tantos antes deles e
muitos outros depois.
Machado de Assis, Augusto dos Anjos, Clarice Lispector,
Guimarães Rosa, por exemplo, são autores que expressaram intuições
metafísicas pelo viés literário 13. Ah, então quer dizer que os brasileiros
também se laçam no fazer poético-filosófico? Ora, basta ler O Alienista
de Machado, a Antologia Poética de Augusto, o Um sopro de vida de
Clarice, a Terceira Margem do Rio de Guimarães para ver que sim. Um
absoluto e enfático sim!
Há, ainda, Farias Brito, Lima Barreto, Djamilla Ribeiro e outros
tantos brasileiros que também se colocam às voltas da pergunta pelo
Ser. No segundo texto da coletânea, André Luís Borges de Oliveira
coloca em voga a questão filosófica brasileira — uma verdadeira obra
de arte.
É mais do que certo, portanto, que o Brasil é “gigante pela
própria natureza” e “em teu seio” ostenta narradores de vivências e
13
Margutti, 2011.
17
Filosofia com Poesia
experiências mil, como Graciliano Ramos, Lygia Fagundes ou Milton
Hatoum. Mas, infelizmente, “são cada vez mais raras as pessoas que
sabem narrar devidamente”, escreve o filósofo Walter Benjamin 14.
No terceiro texto da coletânea, Cleiton Luiz Kerber traz a lume
“o processo de narrativa, entendido como uma forma de narrar a
vivência carregada de sentido, elevado por Walter Benjamin à categoria
de experiência e, sendo uma experiência, relacionando-se com a
literatura”.
São nossas vivências e experiências, narradas ou não, que em
grande parte dão sentido à nossa existência, ao nosso ser. Nos tornando
próximos daquilo que nos é mais íntimo. Mas somente aqueles que
travam uma luta de vida e morte em busca do sentido do existir, podem
dizer algo de essencial a respeito da existência: os que se lançam no
fazer poético-filosófico.
Daniel Rodrigues Ramos, no quarto texto da coletânea, destaca
que como “tudo que é essencial ao homem, a poesia (res)guarda, sob a
aparência de inutilidade, ineficácia e inocência, algo decisivo e
perigoso 15: um espaço essencial de manifestação de sua existência e,
assim, de decisão sobre seu destino histórico”. O fazer poético-filosófico
desvela o encanto da existência, Rilke e Heidegger que o digam!
Nas últimas décadas, a pergunta pelo Ser foi reformulada
novamente. O Ser-mulher também passou a ocupar o foco da questão.
Não que, antes, as mulheres não se colocassem às voltas com a questão
14
15
1994, p. 197.
Heidegger, 1997, p. 128-133.
18
Filosofia com Poesia
do Ser, mas nem sempre a questão do Ser comtemplou o feminino,
perguntou pelo Ser-mulher ou questionou o sentido do existir-mulher
— lembrando, por exemplo, de Simone Weil e Edith Stein.
E há distinção entre o Ser-homem e o Ser-mulher? A resposta
é um infeliz e sonoro sim, pois toda mulher nasce “herdeira de uma
dívida, uma dívida infinita, passada de geração em geração, sempre
atualizada, recalculada para o seu tempo social e histórico”, escreve
Talita Moreau, em seu instigante texto que abre a seção de prosas
poéticas.
De prosa em prosa, passamos aos devaneios crônico-filosóficos
de Arthur Alves Almeida Soares de Melo, que na relativamente simples
tarefa da limpeza da casa em dois pra lá, dois pra cá, se dá conta que
“o que é complexo pode ser reduzido a partes simples e claras e assim
inteligíveis”. Sem dúvida, o mesmo vale para as goiabas do quintal da
vizinha.
No campo da imaginação, entre um café e outro, Espinosa não
hesitaria em exclamar que as goiabas do quintal da vizinha também são
modos da mesma substância e que as Fake News não passam de
“informações do campo do ‘ouvi dizer’”.
De todos os modos, “há coisas na vida que não podem ser
explicadas” — ou como diria Hamlet: “Há mais coisas, Horácio, em céus
e terras / Do que sonhou nossa filosofia” 16. Aliás, “se olhamos com
atenção, veremos que quase nada na vida é completamente explicável”.
16
Hm. 1.1.172-173.
19
Filosofia com Poesia
Para Jorge Luiz Domiciano, no texto que encerra a seção de prosas
poéticas, o saber da vida se diz por meio de vibrações cósmicas. Mas
talvez seja “só mais um desvario” (ou não).
A terceira seção da coletânea é formada por quatro poesias. Na
primeira delas, Matheus Silveira de Souza mostra que a poesia “carrega
tamanha potência de significação da existência que é capaz de criar
mundos externos e internos pela linguagem. Sublimar as inevitáveis
dores presentes na vida. Diluir e tornar mais leves as angústias que
presenciamos”.
Carolina Moreira Paulsen, na segunda poesia, faz um apelo ao
cosmopolitismo kantiano como “o plano da Providência. Destino do
gênero humano, que após tantas guerras, calamidades e atrocidades,
encontraria no cosmopolitismo a constituição perfeita, a paz, a mútua
beneficência”.
Na terceira poesia, André Pereira da Silva faz uma homenagem
a Michel Onfray compondo versos à contra-história da Filosofia.
Bradando por “uma Filosofia feita por seres livres, libertinos e
libertários. Uma filosofia que dance alegre e que em sua companhia
possamos seguir livres da retórica apodrecida, dos que aprenderam a
servir”.
E Essa tal filosofia, de Edy Braun, conclui a coletânea, mas não
lhe dá fim, pois para o “Ser poder Ser, para o vir acontecer, o vir a Ser
deve ser um eterno retorno”. Fazendo eco a Teogonia de Hesíodo, a
coletânea Filosofia com Poesia é um kháos. Uma abertura a reflexões,
percepções e afetos. Assim, se Spinoza estiver correto em sua afirmação
20
Filosofia com Poesia
de que “tudo o que é precioso é tão difícil como raro” 17, nossos sentidos
devem estar sempre aguçados para apreendermos a beleza de Ser.
“Apreensão pelos sentidos” ou “percepção” é o sentido originário
da palavra Estética, que provém do grego aisthesis 18. A palavra Estética
foi primeiro utilizada por Alexander Baumgarten em 1750, a partir da
expressão épistemé aisthetikê. Desde a formulação do termo, essa
disciplina filosófica se voltava para o conhecimento sensorial: “as
representações obtidas através da parte inferior da faculdade cognitiva
são sensitivas” 19. Essas representações se dão no sujeito como sensações,
e geram afetos. É poético provocar afetos, e é sumamente poético
provocar afetos muito intensos. Assim,
O discurso sensível perfeito é o POEMA;
O conjunto das regras às quais o poema deve se submeter é a POÉTICA;
A ciência da poética é a POÉTICA FILOSÓFICA;
A aptidão para elaborar um poema é a arte da POESIA;
Aquele que possui esta aptidão é um POETA 20.
A poética filosófica, através da abordagem do sentir, estimula
reflexões sobre a vida, a morte, a beleza e a própria existência. Nessa
direção, reunindo ensaios filosóficos, prosas poéticas e poesias de
diversos autores, a coletânea Filosofia com Poesia instiga a leitora e o
leitor a questionar, refletir e, até mesmo, “filosofar” sobre essas
temáticas, e a dizerem a si mesmos, como disse Brás Cubas pela pena
17
Spinoza, 2019, p. 238.
Almeida, 2012, p. 385.
19
Baumgarten, 1993, p. 12.
20
Idem, p. 13.
18
21
Filosofia com Poesia
de Machado de Assis 21: “eu deixo-me estar entre o poeta e o sábio”. De
forma distinta e sublime, a obra Filosofia com Poesia entrelaça esses
dois mundos.
Boa leitura!
Agosto de 2022
Referências
Almeida, Aires. Estética e Filosofia da Arte. Galvão, Pedro. et. al. Filosofia:
uma introdução por disciplinas. Lisboa: Edições 70, 2012.
Assis, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 23. ed. Rio de
Janeiro: Ediouro, 1998.
Baumgarten, Alexander Gottlieb. Estética: a lógica da arte e do poema. Rio
de Janeiro: Vozes, 1993.
Berge, Damião. O Logos Heraclitiano: introdução ao estudo dos fragmentos.
Rio de Janeiro: INL – Instituto Nacional do Livro, 1969.
Benjamin, Walter. O narrador. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994b.
Bíblia. Versão Almeida. São Paulo: Mundo Cristão, 1994.
Camus, Albert. O Mito de Sísifo. 11. ed. Rio de Janeiro: Record, 2014.
Descartes, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
21
1998, p. 19.
22
Filosofia com Poesia
Frankl, Viktor Emil. Em busca de sentido. Um psicólogo no campo de
concentração. 51. ed. Petrópolis: Vozes, 2020.
Gorner, Paul. Ser e Tempo: uma chave de leitura. Petrópolis: Vozes, 2017.
Heidegger, Martin. Hölderlin y la esencia de la poesia. Arte e Poesia. México:
Fundo de Cultura Econômica, 1997.
Heidegger, Martin. Ser e Tempo. 10. ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Bragança
Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2015.
Hesíodo. Teogonia: a origem dos deuses. 7. ed. São Paulo: Iluminuras, 2007.
Margutti, Paulo. A religiosidade mística em Wittgenstein. IHU On-Line, nº
362, 23 mai. 2011. Disponível em: www.ihuonline.unisinos.br/artigo/3879paulo-margutti-2. Acesso em: 14 abr. 2022.
Sartre, Jean-Paul. Existencialismo é um Humanismo. São Paulo: Abril
Cultura, 1978.
Shakespeare, William. Tragédias e comédias sombrias. São Paulo: Nova
Aguilar, 2016.
Spinoza, Benedictus de. Ética. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
23
Ensaios filosóficos
“O mundo poderia ser tão belo!” Frankl e Van Gogh em
face do sublime
Júlio da Silveira Moreira
Agora eu entendo
O que você tentou me dizer
E como você sofreu por sua sanidade
E como você tentou libertá-los
Eles não te ouviam, não sabiam como
Talvez agora eles te ouçam
Don McLean
A história dos campos de extermínio nazistas durante a Segunda
Guerra Mundial é amplamente conhecida. Que chocantes são as
imagens de homens e mulheres raquíticos e amontoados em beliches,
entre 4 e 5 em cada cama, onde só se podem ver suas cabeças e seus
pratos servindo de travesseiro. Seus corpos repousavam nesses
barracões depois de longas jornadas de trabalhos forçados, cavando
túneis, construindo estradas e removendo blocos de gelo. Onde, a cada
novo dia, ser eleitos para os trabalhos forçados representava a salvação
Filosofia com Poesia
de suas vidas, e permitir-se adoecer representava o risco de ser
escolhido para a aniquilação.
Imagem 1 — Auschwitz-Birkenau, por Frederick Wallace: “As it looked on the
60th anniversary of liberation on January 28th, 2005”.
Fonte: unsplash.com/photos/nzy7affZEEw.
Em um cenário assim, Viktor Frankl 1 narra essa passagem:
Outra vez, à noitinha, estávamos estendidos no chão de terra do
barracão, mortos de cansaço, o prato de sopa na mão, quando entrou
um companheiro correndo e mandou-nos depressa para a área de
chamada da turma, apesar de toda a nossa fadiga e do frio lá fora, só
para não perdermos uma visão magnífica do pôr do sol. Vimos, então,
o ocaso incandescente e tenebroso, com todo o horizonte tomado de
1
2020a, p. 58.
28
Filosofia com Poesia
nuvens multiformes e em constante transfiguração, de fantásticos
perfis e cores sobrenaturais, desde o azul cobalto até o escarlate
sangue, contrastando pouco mais abaixo com os desolados barracos
cinzentos do campo de concentração e a lamacenta área onde é feita
a chamada dos prisioneiros, em cujas poças ainda se refletia o céu
incandescente. E alguém exclamou após alguns minutos de silêncio
arrebatado: “O mundo poderia ser tão belo!”.
As palavras acima bem poderiam representar uma pintura. E
são de fato uma peça literária de enorme valor, considerando o contexto
em que essa cena foi vivida pelo narrador. Qualquer tentativa de
reproduzir ou explicar esse “quadro” terminaria por diminuir o
conteúdo que ele já possui, pois, como diz Goethe 2, “a arte é uma
mediadora do indizível”. Tentar extrair uma “ideia” do belo é tão fugaz
como tentar explicar o sublime; buscar um “entendimento” é como
querer mediar “o que há de mais nobre com o que há de mais
ordinário”. Rudolf Otto 3 confirma essa dimensão indizível do
sublime/excelso (das Erhabene):
Essa harmonia de contrastes no teor e na qualidade do mistério que
tentamos e não conseguimos descrever pode ser vagamente insinuada
por uma correspondência oriunda não da religião, mas da estética,
embora seja apenas pálido reflexo do nosso objeto e em si mesmo
seja mal definível: o excelso [das Erhabene].
Esse sublime pode ser sentido na definição de mysterium
tremendum et fascinans, um evento fora do domínio do sujeito, terrível
e fascinante ao mesmo tempo.
2
3
2005, p. 257.
2007.
29
Filosofia com Poesia
O narrador da cena inicial constrói a imagem pelo próprio
testemunho — na qualidade de quem estava presente na experiência.
Essa passagem é parte de um relato autobiográfico (que o autor, na
qualidade de cientista da medicina, chama de um estudo psicológico —
sobre si mesmo). Nesse capítulo, relata várias situações em que o belo
arrebatou o olhar dos prisioneiros mesmo nas situações mais difíceis,
como estar dentro de um trem que os transportava de um campo de
extermínio a outro, onde possivelmente seriam levados diretamente às
câmaras de gás...
Certa vez, no transporte de prisioneiros de Auschwitz para o campo
de concentração na Baviera, estávamos de novo olhando por entre as
grades da abertura de um vagão. Quem tivesse visto nossos
semblantes arrebatados, a contemplar as montanhas de Salzburgo,
cujos picos resplandeciam as cores rubras do sol poente, jamais
acreditaria tratar-se de rostos de pessoas que nada mais esperavam
da vida 4.
4
Frankl, 2020a, p. 57.
30
Filosofia com Poesia
Imagem 2 — Paisagem de Salzburgo, por Kateryna, publicada em 2020.
Fonte: unsplash.com/photos/86CYiW-WP1g.
Analisando os estados psíquicos no aprisionamento, o autor
mostra um processo de interiorização, um voltar-se para si mesmo,
recordando-se de coisas corriqueiras do seu passado, como “recurso
para escapar do vazio, da desolação e da pobreza espiritual de sua
existência atual” 5. Esse processo pode resultar na “mais viva percepção
da arte ou da natureza” 6.
Como é possível que o voltar-se para o interior permita uma
percepção mais sensível do mundo “exterior” (a arte e a natureza)? De
5
6
Idem, p. 57.
Idem, p. 57.
31
Filosofia com Poesia
acordo com a fenomenologia de Husserl, embora a qualidade do belo
seja inerente à coisa, a sua percepção é um ato do indivíduo, como “ser
aberto ao mundo” na expressão de Scheler, ou como explica Ales Bello 7:
“todos têm e operam com a percepção, a recordação, a imaginação, a
fantasia e a capacidade de refletir… Nem todos ativam esses atos em
um dado momento, porém, potencialmente, todos eles estão em cada
um dos seres humanos”. Também Harada 8 nos ajuda a responder:
A reflexão é um voltar-me sobre mim mesmo, não para julgar e
moralizar meus pensamentos, atos ou sentimentos, mas sim para
aprender a ver a realidade na sua riqueza e complexidade. É portanto
um exercício de intuição, isto é, um exercício para adquirir um olhar
mais profundo da realidade em mim.
Em Psicoterapia, Arte e Religião 9, Frankl relata o caso de uma
paciente em busca de sentido em sua vida pessoal e profissional,
estancada em crises e vazio existencial, que vai, ao longo da terapia,
liberando sua criatividade artística na pintura e seu reencontro com o
sagrado. Nesse processo, através de exercícios sistemáticos de
relaxamento (uma técnica elaborada pelo psiquiatra alemão J. H.
Schultz, chamada de treinamento autógeno), a paciente trazia sua
consciência para si, deixando fluir sua intuição nas pinturas. Em
momentos de crise, insistia por trazer à tela as imagens que lhe
ocupavam os sonhos: “Por que não posso fazê-lo? Provavelmente,
7
2006, p. 50.
2021, s/p.
9
2020b.
8
32
Filosofia com Poesia
porque quero fazê-lo” 10. Em outro momento relatado, estava ocupada
em afazeres pessoais (receber convidados e atender o telefone), e
aproveitava para pintar nos intervalos – quando se encontrou em sua
plena ação criativa: “a uma louca velocidade, ‘os quadros pintaram a si
mesmos’. Entusiasticamente feliz. Logo que fecho os olhos, uma imagem
vem atrás da outra; memórias e novas pinturas de coisas vistas há
pouco” 11. O fenômeno percebido pela artista é semelhante às atividades
artísticas e criativas que surgem por inspiração. Nos momentos de
maior criação, parece que alguém tecla os dedos do escritor; alguém
fala pela boca do orador; “os quadros pintam a si mesmos”; os
instrumentos musicais choram, roncam, gritam. Na doutrina cristã, é a
clara evidência do Espírito Santo. Na Logoterapia, é a libertação da
dimensão noética do humano, a manifestação do inconsciente espiritual:
“a antecipação espiritual ocorre num ato de ‘visão’. Assim, pois, a
consciência se revela como função essencialmente intuitiva” 12.
As cenas que arrebatavam o olhar dos prisioneiros tiveram esse
significado porque remetiam a algo que já estava dentro deles. Aquelas
visões comunicavam com algo em um nível profundo de sua
consciência. Pois “a alma se alegra e se reconhece em algo que lhe é
congênito, ou seja, que tem a mesma gênese sua, como princípio; pois
ela mesma é da natureza divina das coisas que sempre são” 13.
10
Frankl, 2020b, p. 179
Idem, p. 180.
12
Frankl apud Peter, 1999, p. 65.
11
13
Plotino, 2021, p. 109.
33
Filosofia com Poesia
Seja o pôr do sol radiante sobre os barracões cinzentos, sejam
as montanhas vermelhas vistas de dentro de um trem pavoroso, ambas
imagens são contrastantes, contraditórias, paradoxais — tal qual a vida
mesma nos campos de extermínio (ou em situações-limite). Frankl 14 ao
lembrar de outras situações, como as funções teatrais dentro dos
barracões e um companheiro que, na distribuição da sopa, subia em
um tonel e cantava música lírica, reconhece o paradoxo: a experiência
ligada de alguma forma à arte “provinha antes do tremendo contraste
entre o que era apresentado e o pano de fundo da desolada vida no
campo”.
Esses contrastes estão relacionados ao modo próprio do
desenvolvimento humano, na explicação da logoterapia. Assim define a
noodinâmica, como tensão entre um sentido a ser realizado e a pessoa
que deve realizá-lo — diferente das teorias motivacionais baseadas na
paz interior. Viver uma realidade desafiadora está no cerne da busca
por sentido, que é o motor da saúde mental. A logoterapia se baseia
numa filosofia de vida explícita e muito próxima das filosofias
existencialistas. A busca por sentido na vida define as ações humanas
mais que o princípio de prazer e a vontade de poder, e se funda no
binômio liberdade e responsabilidade. Assumir a responsabilidade
diante da vida repercute numa tensão interior que mira não no
conformismo com o presente, mas na realização daquilo que deveria
ser. “Se tomarmos o homem como ele é, nós o tornaremos pior; se
14
2020, p. 61.
34
Filosofia com Poesia
tomarmos o homem como ele deve ser, nós o ajudaremos a tornar-se
o que ele pode ser” 15. Esse sujeito com uma história em constante
desenrolar-se, aberto ao mundo, não se realiza numa qualidade de coisa,
mas sim nas suas potencialidades, é o “ser-aí”, o “Dasein”, na maneira
como Heidegger compreende o humano.
Na frase “o mundo poderia ser tão belo!” há um paradoxo, pois
os que a proferem já estão contemplando a beleza. O poder-ser belo se
referia a um anseio de que sua condição de presos no campo de
extermínio fosse outra. Apesar daquela explosão de cores que vinha do
céu, os corpos dos prisioneiros estavam condicionados ao cinza
lamacento dos barracões. O “poderia” representa o objetivo, a meta a
se alcançar fora dali, após a libertação: “aqueles que sabiam que havia
uma tarefa esperando por eles tinham as maiores chances de
sobreviver” 16. O “poder ser” integra a existência, juntamente com o “ser”
e o “dever ser”. Como um vir-a-ser, ou um ser-aí, reflete a
autotranscendência humana, que Frankl encontrou como a chave para
a sobrevivência no campo: encontrar o sentido em sua vida apoiandose no amor daqueles que o esperam do lado de fora, e relembrar os
versos de Goethe, de que o homem se define por suas potencialidades,
pelo seu vir-a-ser.
Vincent Van Gogh é conhecido mundialmente por quadros que
marcam o conceito de arte moderna, e também por sua biografia, sua
vida intensa e seus sofrimentos. As circunstâncias controvertidas de sua
15
16
Goethe, apud Frankl, 2020b, p. 32.
Frankl, 2020a, p. 129.
35
Filosofia com Poesia
morte e os dois anos que a antecederam, incluindo sua automutilação
e internações, colocam em evidência um ser humano em sofrimento
mental, lutando pela sobrevivência material e sofrendo hostilidade de
vizinhos.
Frankl alerta, em seus textos sobre arte e psiquiatria, que não
se deve relacionar a obra de um artista a seu estado mental, nem para
justificar a grandeza de uma obra numa psicose, nem para, ao contrário,
fazer diagnósticos a partir de sua obra: “assim como não se pode
atribuir à doença como tal qualquer energia criativa, não se poderia
tampouco opor a realidade de uma doença mental ao valor artístico de
uma criação” 17. Por outro lado, é possível que, em algumas situações, o
conflito com uma situação de sofrimento mental pode levar o sujeito a
realizar o máximo em energia criativa.
A leitura atenta dos escritos confidenciais de Van Gogh,
publicados em centenas de cartas enviadas a seu irmão Théo, além de
sua irmã, mãe e amigos, mostram uma pessoa estudiosa, metódica, com
formação em disciplina religiosa, dedicada ao trabalho da arte, e com
profundas reflexões sobre o sentido da vida.
Sua técnica, desenvolvida em uma curta carreira, inovou em
conceitos de cores e movimentos, e captou através do conceito de
turbulência os movimentos mais sutis da natureza.
Assim continuo sempre entre duas correntes de ideias. A primeira: as
dificuldades materiais, virar e tornar a se virar para se sustentar. A
seguir: o estudo da cor. Continuo a ter sempre a esperança de
17
Frankl, 2018, p. 158.
36
Filosofia com Poesia
encontrar aí mais alguma coisa. Exprimir o amor de dois namorados
pelo casamento de dois complementares, sua combinação e suas
oposições, as vibrações misteriosas dos tons aproximados. Exprimir o
pensamento de uma cabeça pela irradiação de um tom claro num
fundo escuro. Exprimir a esperança por alguma estrela. O ardor de
um ser pelo brilho de um pôr de sol. Certamente não se trata aqui
de ilusão realista, mas não são coisas que realmente existem? 18
Em uma carta datada de 1885, reconhece sua vulnerabilidade,
expressa sentimentos de tristeza em uma paisagem de inverno e observa
a vida dura dos camponeses. Ao mesmo tempo, relata sua profunda
relação de aprendizagem com a natureza e critica os especialistas em
arte que vivem nas grandes cidades em salões fechados e se distanciam
da natureza como fonte de inspiração. Ressalta também sua
determinação em seguir seu trabalho apesar do julgamento dos outros:
E esta é a razão pela qual digo a meu próprio respeito: se não valho
nada agora, não valerei mais no futuro, mas se eu valer alguma coisa
mais tarde, é porque também valho alguma coisa agora. Pois o trigo
é trigo, mesmo que algumas pessoas da cidade no início o tomem por
capim e vice-versa 19.
Essa aguda percepção do desenvolvimento humano, tão próxima
à visão da Logoterapia, Van Gogh 20 já expressava sete anos antes, em
uma carta de 1878, quando analisava a frase “nós somos hoje o que
éramos ontem”:
18
Van Gogh, 1997, p. 272.
Van Gogh, 1997, p. 138.
20
1997, p. 28.
19
37
Filosofia com Poesia
Aquele que vive sinceramente e encontra aflições verdadeiras e
desilusões, e que jamais se deixa abater por elas, vale mais que os que
sempre vão de vento em popa, e que conheceriam uma prosperidade
apenas relativa. […] A partir do momento em que nos esforcemos em
viver sinceramente, tudo irá bem, mesmo que tenhamos
inevitavelmente que passar por aflições sinceras e verdadeiras
desilusões; cometeremos provavelmente também pesados erros e
cumpriremos más ações, mas é verdade que é preferível ter o espírito
ardente, por mais que tenhamos que cometer mais erros, do que ser
mesquinho e demasiado prudente.
Observemos a semelhança com as palavras de Frankl 21,
demonstrando a aproximação entre ambos com uma consciência de
liberdade/responsabilidade e tensão criadora da existência humana:
A consciência de qualquer pessoa, assim como qualquer coisa
humana, está sujeita ao erro; mas isto não exime o homem de sua
obrigação de obedecer a ela - a existência envolve o risco do erro. O
ser humano deve arriscar-se a se comprometer com uma causa que
pode não ser digna de seu compromisso. Talvez meu compromisso
para com a causa da logoterapia seja equivocado. Mas eu prefiro viver
num mundo em que o homem tenha o direito de fazer escolhas,
mesmo que sejam erradas, a viver num mundo em que não haja
nenhuma escolha disponível.
Considerado o seu último trabalho e um dos mais conhecidos,
o Campo de Trigo com Corvos (1890), Van Gogh expressa
definitivamente o sublime/excelso. A paisagem que arrebata os olhos
com uma beleza e ao mesmo tempo uma dor, que muito se parece com
a recordação de Frankl do pôr do sol no campo de extermínio, com seu
21
2020b, p. 33.
38
Filosofia com Poesia
“ocaso incandescente e tenebroso”, uma pintura em movimento que se
conecta ao íntimo da existência. O ocaso da experiência de Van Gogh
no mundo, o seu fechar os olhos.
Imagem 3 — Wheatfield with Crows.
Fonte: Van Gogh Museum, Amsterdam (Vincent van Gogh Foundation).
Em uma das cartas, ao refletir sobre a morte, Van Gogh 22 invoca
sua transcendência: “os pintores [...] estando mortos e enterrados, falam
à geração seguinte ou a várias gerações seguintes por suas obras”, e
questiona se há algo mais — assim como um trem pode ser um meio
para conhecer a Terra em vida, a morte pode ser o meio para conhecer
as estrelas.
Quando ambos, Van Gogh e Frankl, expressam cenas de
profunda beleza e dor, ambos estão a refletir sobre o sentido da vida,
mais propriamente o sentido diante do sofrimento (na narrativa de
Frankl sobre os barracões de Auschwitz) e o sentido diante da morte
22
1997, p. 239.
39
Filosofia com Poesia
(na pintura e reflexão de Van Gogh). O contato com o sublime, nos
dois casos, se assemelha aos versos de Fausto 23:
O estremecimento é o melhor que há na humanidade.
Por mais que o mundo lhe dificulte o sentimento,
Arrebatado, ele sente fundo o assombroso.
Referências
Ales Bello, Angela. Introdução à fenomenologia. Bauru: Edusc, 2006.
Frankl, Viktor Emil. Em busca de sentido. Um psicólogo no campo de
concentração. 51. ed. Petrópolis: Vozes, 2020a.
Frankl, Viktor Emil. Psicoterapia e existencialismo. Textos selecionados em
logoterapia. São Paulo: É Realizações, 2020b.
Frankl, Viktor Emil. Psicoterapia para todos: uma psicoterapia coletiva para
contrapor-se à neurose coletiva. Petrópolis: Vozes, 2018.
Goethe, Johann Wolfgang von. Escritos sobre arte. São Paulo:
Humanitas/Imprensa Oficial, 2005.
Harada, Hermógenes. De como fazer a reflexão. Acervo Harada. Campo
Largo/PR: Fraternidade Franciscana São Boaventura. 2021.
Otto, Rudolf. O Sagrado: os aspectos irracionais na noção de divino e sua
relação com o racional, São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, 2007.
Peter, Ricardo. Viktor Frankl: a antropologia como terapia. São Paulo:
Paulus, 1999.
23
Goethe apud Otto, 2007, p. 81.
40
Filosofia com Poesia
Plotino. Enéadas I e II. João Pessoa: Ideia, 2021.
Van Gogh, Vincent. Cartas a Théo. Porto Alegre: L&PM, 1997.
41
A questão filosófica brasileira — uma obra de arte
André Luís Borges de Oliveira
Por que convém pensar a respeito?
Há cem anos, ocorria a Semana de 22 e os pilares do que
conhecíamos sobre arte de modo geral mudaram para sempre no Brasil.
Entretanto, no que tange aos estudos filosóficos não tradicionais,
permanecemos um tanto quanto antiquados. De algum modo, sempre
houve algo de forçadamente calado na filosofia tradicional, isto é,
hegemonicamente europeia, branca, masculina etc. Não obstante,
quando se observa como a filosofia feita cá encara uma outra
perspectiva de compreensão da realidade ou de como ela se
compreende, nota-se ainda certo desconforto. Não aquele causado pelo
espanto, propulsor do saber, mas um desconforto como o que se sente
ao se deparar, alarmado, com estranhos na vizinhança.
Isso porque a filosofia — tal como tem sido feita no Brasil —
não esteve até então voltada a origens senão anglo-, franco-, teuto-,
greco- e latinas. Busca-se por uma origem no passado de outrem, quer
Filosofia com Poesia
se chegar a algum lugar que não este em que nos encontramos,
aparentemente. Nossa filosofia já teria nascido adulta, falando o código
da época 1. Ou estaríamos nos furtando de nos pensar para pensar a
questão já pronta?
Por essa razão, convém perguntar sobre a filosofia feita no Brasil
e, principalmente, a partir do Brasil. O intuito, aqui, não é responder
se já é merecida a alcunha de brasileira à filosofia em terra mãe gentil
ou se ela ainda está restrita a apenas ser feita por brasileiros, mas em
buscar pelo potencial de pensar nossa realidade a partir de nós mesmos.
Isto significaria traduzir a realidade a termos filosóficos que nos façam
sentido? Isso não só daria realces de nascentes e riacho às clareiras, às
Lichtungen da vida, como reconheceria a vida e voz dos discursos até
então silenciados.
Em
suma,
antropofagicamente
repensamos
a
filosofia
tradicional. A ideia aqui é partir da tradição e da realidade brasileira
para pensar uma outra filosofia. Uma forma de tradução da tradição.
De modo a dar alguma voz e sentido a anseios que permeiam a
sociedade brasileira. Somente combatendo a colonialidade do
pensamento será possível dirigir-se a um processo democrático e plural
de desenvolvimento cultural 2.
1
2
Campos, 1989, p. 64.
Quijano, 2005, p. 135.
44
Filosofia com Poesia
O cerne da questão: suas cercanias
Ultimamente temos visto nos meios de comunicação um ataque
constante à educação e, especificamente, à filosofia. Ele advém dos mais
diversos setores da sociedade e exemplos não faltam. Alguns têm
roupagem mais elegante e sutil, não sem certa “ambiguidade
perniciosa”, como a mudança na Base Nacional Comum Curricular
(2018), diluindo a especificidade do ensino da matéria filosófica ao longo
dos três anos do Ensino Médio e insinuando “que o trabalho de reflexão
sobre a própria reflexão pode ser feito por todas as unidades
curriculares” 3; outros, mais grosseiros, dando a entender que o termo
“filosofia no agreste” 4 devesse ser creditado pejorativamente à alguma
filosofia feita cá, como se nós não fôssemos dignos, como se devêssemos
dar mais valor ao pão do que o que procede da boca do sagrado... não,
não devemos poetizar nem filosofar, roguemos pelo prático, pelo agora,
pelo imediato imediatismo.
Ambas as atitudes são exemplos de como o ensino e seus
profissionais em geral estão numa situação de fragilidade perante a
população e até a si mesmos. Nesse sentido, uma já necessária postura
tem se tornado mais premente, a de colocar ao público leigo que a
atitude filosófica no país tem uma contribuição ímpar para a crítica
social, econômica e cultural e, aos profissionais envolvidos direta e
3
Savian Filho, Carvalho & Figueiredo, 2018.
Referência à fala do então Ministro da Educação, Abraham Weintraub. Publicado em:
8 set. 2018. Disponível em: youtube.com/watch?v=b2OSlPiY7yc#t=1h23m30s. Acesso em:
14 abr. 2022.
4
45
Filosofia com Poesia
indiretamente no ensino, que seu ofício deve ser reconhecido pela
importância e dedicação.
É senso comum que o estudo filosófico não se componha de
promessas fáceis. Todavia, o legado de conhecimento por ela gerado
atravessou os séculos e os mares, chegando em terras tupiniquins e
tendo que lidar com outras modalidades de saberes. Atualmente há
sérias dúvidas no meio acadêmico sobre o que de fato estamos fazendo
— é comentário de uma matriz filosófica, tem algo de próprio ou é só
reprodução?
A questão se reduz a algo simples: não existe uma ‘problemática’
brasileira à nossa espera. Urge ser inventada. Inventada e posta em
questão — este, o esforço da Filosofia, desde sempre. Cabe perguntar
se entre-nós encontramos sinais de tal esforço. Em resumo e
didaticamente: há uma Filosofia brasileira? 5
Talvez mais do que nunca, a filosofia feita aqui precise
reconhecer seu caráter agreste sem preconceitos, ao invés de rogar para
si uma filosofia oficial, séria e correta: “Mas como poderiam fazer
diferente, se hoje um bom pesquisador é aquele que se ocupa
principalmente de coisas sérias, profundas, conceituais e ocultas, mas
somente as tradicionais?” 6. Fazer filosofia tradicionalmente é fazer
filosofia europeia, aos moldes europeus, o que condiz com nossa
histórica colonização. Há de se começar por algum lugar:
5
6
Gomes, 1994, p. 25.
Burnett Junior, 2018.
46
Filosofia com Poesia
Não se trata mais de demonizar essa condição colonial, mas sim de
pensar a condição brasileira para além da tradição europeia, o que
demanda uma reflexão sobre as limitações ou até sobre o sentido
unidimensional da filosofia ocidental, que é em primeiro lugar
europeia e norte-americana 7.
A história tradicional não convidou o agreste, como também a
senzala ficou de fora, o gineceu se manteve à parte e a aldeia nem foi
visitada. Em busca de uma voz no cenário filosófico, alguns autores têm
optado pela ressignificação do termo filosofia, rompendo com “a fé
universalista, que leva a recusar o reconhecimento dos efeitos
particulares” 8 para se trabalhar com filosofia africana, com filosofia feita
por mulheres e indígenas, por exemplo. Todas essas atitudes colocam
em xeque a compreensão mais usual de filosofia, trazendo novas
referências e novos atores à cena.
Entretanto, para responder pela filosofia brasileira, não basta
apontar e dizer: isto que aqui se faz é filosofia brasileira. Naturalmente
que isso não desmerece o que se tem produzido, inclusive há quem
critique essa postura reflexiva como se a mesma fosse um subterfúgio
de nossa própria indigência: “A discussão sobre filosofia brasileira é o
que de mais confortável pode fazer um filósofo brasileiro, justamente
porque isso o mantém distante do Brasil” 9. Um posicionamento
compreensível; urgimos por criação. Agora, a sociedade, de modo geral,
7
Danner & Cei, 2017.
Bourdieu, 1989, p. 127.
9
Silveira, 2017.
8
47
Filosofia com Poesia
demarca bem a distinção entre teoria e prática. Precisamos, mais uma
vez, perpetuar tal cisão?
Falar sobre criação não é um trabalho tão separado assim de
criar. Um não acontece sem o outro, haja vista que o autor é um crítico
de si. Esse diálogo corrobora a compreensão da obra, permitindo que a
mesma possa aflorar em significados, quando não em respostas às
demandas públicas. Certa ocasião, Guimarães Rosa 10 disse — em
entrevista a Günter Lorenz — que, embora a tarefa crítica difira da do
autor, ambas se imiscuem no ato de escrever. Em seguida, compara-as
à navegação de uma nau, em que o escritor se comportaria como um
descobridor, a desbravar mundos, enquanto ao crítico caberia o timão.
Há de ter algo de desbravo, do contrário, “um crítico que não tem o
desejo nem a capacidade de completar junto com o autor um
determinado livro, que não quer ser intérprete ou intermediário, que
não pode ser, porque lhe faltam condições, deveria se abster da crítica” 11
No tocante à filosofia, grande parte do que se produz são
comentários e críticas de autores, majoritariamente europeus. Inclusive,
de acordo com o professor Julio Cabrera 12, “o Brasil já atingiu um
excelente nível acadêmico no que se refere à exegese, comentário e
interpretação do acervo filosófico europeu, [...] tanto no que se refere
à organização quanto à quantidade de trabalhos de alta qualidade desse
tipo”. De modo que, mais do que fugir ao comentário para se pensar a
10
1994, p. 40.
Rosa, 1994, p. 40.
12
2014, p. 25.
11
48
Filosofia com Poesia
filosofia feita no Brasil, deveríamos incentivá-lo por ser um ponto forte
nosso e por incrementar a fortuna crítica sobre o tema, ainda dominada
pela tradição europeia.
Não se trata de ser nacionalista, mas de “uma circunstância
existencial-histórica” 13, de transformar em questão nosso fazer mais
habitual, cotidiano e próximo, isto é, “se nossa ágora não é o lar da
nossa discussão, é porque também ela não é o objeto de nosso debate” 14.
Tornar nossa a discussão, apropriar-nos de nós mesmos, a fim de nos
pormos diante das opiniões mais mesquinhas, mas também das dúvidas
cuidadosas com a propriedade de quem se dedicou sobre isso, isto é,
sobre si. Este é um compromisso legítimo tanto da criação, quanto dos
comentários, críticas, interpretações e traduções.
Convém salientar que a história da filosofia europeia demonstra
que, se não fossem os comentadores e os copistas, não teríamos
conhecimento de boa parte do pensamento da antiguidade grecoromana 15. Ainda assim, ratifiquemos a pergunta: mas o que estamos
fazendo em matéria de filosofia aqui não é só comentário? Comentário
com criação não é também filosofia? Em seu livro sobre o conceito de
crítica no romantismo alemão, Walter Benjamin 16 faz uso de uma noção
em relação à arte, mas que pode nos ajudar a compreender os
questionamentos anteriores. Diz ele: “Na medida em que a crítica é
conhecimento da obra de arte, ela é o autoconhecimento desta”. Ou
13
Cabrera, 2014, p. 28.
Ribeiro, 2017.
15
Marcondes, 2010.
16
1993, p. 74.
14
49
Filosofia com Poesia
seja, trazendo para nossa discussão, o comentário pode até ser sobre
filosofia, externo e analista, mas ele também pode ser filosófico. Em
outras palavras, pode-se fazer filosofia ao comentar a filosofia, na
medida que comentamos algo e simultaneamente nos comentamos, a
saber, nos deixamos ser perpassados pelo comentado no comentário e
nós fazemos reflexão à medida que comentamos algo.
Nesse viés, o comentário ganha ares de poético e a filosofia
parece mais um conjunto bem-estruturado de palavras do que fruto de
um sistema racional. O comentário perderia sua principal função, fazer
o objeto comentado aparecer. Ora, é preciso se perguntar antes e
fundamentalmente como queremos que apareça o que se comenta. É
pela descrição? Isso terá um fim. É pela narração? É pela crítica? O
comentário pode ser tudo isso e mais e, ainda assim, fará a obra
aparecer. Talvez sejam nossos fantasmas coloniais, em prol de um rigor
que nem a tradição europeia possui (haja vista a poeticidade de um
Platão, de um Kierkegaard, de um Nietzsche), que preferem repudiar
um modo de aparecimento em detrimento de outro.
Entretanto,
uma
vez
que
o
conhecimento
seja
um
autoconhecimento e, por conseguinte, que o comentário seja um
autocomentário, em que medida não há da parte de todos nós certo
preconceito com o agreste filosófico? Qualquer que seja a resposta, ela
só é possível se considerarmos em alguma instância nosso
entendimento sobre o que seja comentário e suas variáveis. Esse meio
do caminho que revela a tradição naquilo que ela traz do passado e no
que ela trai dele:
50
Filosofia com Poesia
Mas sobretudo temos de levar em conta que o conteúdo da tradição,
ainda que supondo-se assegurada sua credibilidade subjetiva, deve ser
ainda interpretado, isto é, o texto se entende como um documento
cujo sentido real tem de ser elucidado mais além de seu sentido literal,
por exemplo, comparando-o com outros dados que permitam avaliar
o valor histórico de uma tradição 17.
Essa interpretação que comenta enquanto cria comporta-se
como uma tradução da tradição. Sermos comentadores não me parece
um problema se, ao comentarmos, traduzirmos não só palavras, mas
nossa realidade à problemática filosófica. Problemas não nos faltam,
nem teoria, então do que carece nosso pensamento? E, na suposição de
não faltar nada, sabemos que não falta nada? Por esse motivo, acredito
fortemente na importância de se perguntar pela filosofia feita cá,
[...] pois toda tradução já é em si uma interpretação. Traz tacitamente
consigo todos os pressupostos, todas as perspectivas e horizontes de
que surge. A interpretação, por outro lado, é somente a realização do
que silencia na palavra realizada pela tradução. Em seus núcleos
essenciais, interpretação e tradução são o mesmo. As palavras e
escritos da própria língua materna necessitam de interpretação, e é
por isso que, com frequência e necessariamente, é preciso traduzir a
própria língua. Todo dizer, discurso e reposta são tradução 18.
A mesma tradição que ridiculariza a filosofia feita no agreste
nordestino e finge não ver nossa história também se debruça cegamente
sobre a Europa — como se de lá fosse a origem do conhecimento
filosófico. É, pois, compreensível que séculos de metafísica tenham
17
18
Gadamer, 1999, p. 498.
Heidegger, 1998, p. 78.
51
Filosofia com Poesia
tratado origem como algo a ser buscado, a essência, o fundamento,
alcançado por alguns iniciados ou eleitos, portanto, distante exatamente
da fala cotidiana, das periferias, das cercanias. Nesse sentido, temos a
compreensão linear de origem. Atributo do passado. Já nós, no presente,
estaríamos incumbidos de, para se construir um futuro, retornar ao
fundamento. Isto se choca com uma compreensão, digamos, constelar,
parafraseando Haroldo de Campos 19, isto é, uma origem não como
ponto de partida para a construção, mas como constante desconstrução,
transformação.
Pensar o que compreendemos por origem é importante para
repensar nossa relação com a tradição e vice e versa. Melhor dizendo,
atualmente vigora uma concepção de tradição que não permaneceu a
mesma no tempo, o que significa que o modo como o homem foi
apreendido pela história mudou. Bem como origem:
“Origem” não designa o processo de devir de algo que nasceu, mas
antes aquilo que emerge do processo de devir e desaparecer. A origem
insere-se no fluxo do devir como um redemoinho que arrasta no seu
movimento o material produzido no processo de gênese. O que é
próprio da origem nunca se dá a ver no plano do factual, cru e
manifesto. O seu ritmo só se revela a um ponto de vista duplo, que
o reconhece, por um lado como restauração e reconstituição, e por
outro como algo de incompleto e inacabado [...]. A origem, portanto,
não se destaca dos dados factuais, mas tem a ver com a sua pré e
pós-história 20.
19
20
1989.
Benjamin, 2013, pp. 431-2.
52
Filosofia com Poesia
A origem vai se originando e antes o que era tradicional, agora
é antiquado. O que é hoje tradição já foi traditio. Se os dicionários
correntes compreendem “ação de dar; entrega; transmissão, tradição,
ensino” 21 como uma transmissão retilínea de uma origem conceitual e
abstrata até o presente para o futuro, ao procurar um dicionário de
latim, lembramos que (e talvez origem não seja nada além disso, uma
lembrança) a tradição é composta de tra-dição, sua etimologia constelar.
Todo esse translado não é à toa, uma vez que a palavra traditio
já remete a isso em sua formação por meio do prefixo trans- com o
verbo do 22, em que trans- nos diz de “1. Do outro lado ou por cima,
através, para o outro lado de [...]. Formas: frequentemente tra- antes de
consoantes surdas” 23. Isto significa que não é nenhum espanto ter, ainda
que vagamente, a noção de passagem, passar além de, ao pensar, ao
pronunciar a palavra tradição: tra-dição.
A outra parte dessa última composição é do, o verbo dar em
latim. Este é um verbo complexo. Seu radical curto revela uma
multiplicidade dos mais variados sentidos. O primeiro deles que aparece
no latim é “1. Conferir gratuitamente, dar posse de, fazer uma doação
de, dar. b. dar, oferecer (aos deuses, os mortos, etc.). c. conceder (a
posse legal, a utilização, etc.)” 24.
De fato, na entrega algo é dado, algo é oferecido, garante-se que
por um deslocamento algo atravessa até outra circunstância. Em todo
21
Houaiss, 2009.
Glare, 1968, p. 1956.
23
Idem, p. 1961 — tradução minha.
24
Idem, 1968, p. 566 — tradução minha.
22
53
Filosofia com Poesia
trado há um do, toda entrega dá. Um dar que reforça a travessia do
dado no seu prefixo. Entregar como o que “transdá”, resguardando a
importância que a passagem tem para a entrega. Levando isso em conta,
o modo verbal que foca seu aspecto no movimento é o gerúndio. Temse, pois, entregar, trado, enquanto um dar oferecendo. Um dar que é
dando. E, assim, é feita a entrega, a tradição, como o ato que dá e
permanece neste movimento de doação.
Quem oferece introduz uma oferta. Uma dádiva que não se
materializa simplesmente no seu destino, como se seu objetivo fosse
somente a finalidade, mas que faz uma trajetória da entrega ao
recebimento. E quanto à sua origem, quanto à sua meta? Entrega
enquanto tradição atravessa e, por isso, é atravessada. Isto é, tradição é
um atravessamento da entrega, sempre se originando: “Tudo o que
acontece é sempre um começo” 25.
A partir do momento em que se chega ao alvo, cessa a entrega,
para a tradição. Por isso que tradição, enquanto tra-dição, precisa estar
em constante recebimento e oferta. Precisa passar adiante e, desta
forma, estar em insistente diálogo com a história e sua dinâmica. A
mera reprodução da tradição, em outras palavras, a tradição da
reprodução, não reverbera na tensão do ontem, do hoje e do sempre. É
dar sem a travessia, sem os percalços do caminho. Entre o que
permanece no fluxo das mudanças há uma tradição, entre o que muda
na constância há uma tradição, e assim sua obra continua a fazer
25
Rilke, 1976, p. 52.
54
Filosofia com Poesia
sentido, por mais diversas que sejam as épocas, as pessoas, as
circunstâncias. Num paralelo com a obra de arte, a tradição exerce sua
dinâmica de maravilhamento e repulsa, concessão do trânsito das
experiências de mundo:
A unicidade da obra de arte é idêntica à sua inserção no contexto da
tradição. Sem dúvida, essa tradição é algo de vivo, de
extraordinariamente variável. Uma antiga estátua de Vênus, por
exemplo, estava inscrita numa certa tradição entre os gregos, que
faziam dela um objeto de culto, e em outra tradição na Idade Média,
quando os doutores da Igreja viam nela um ídolo malfazejo. O que
era comum as duas tradições, contudo, era a unicidade da obra [...] 26.
E ora, convenhamos, quantos ruídos existem entre o que se diz
e o que se quer dizer? Quem há de mostrar que o que pode ser
aprendido se sujeita ao que deve ser aprendido? Que a tradição é tão
tradicional assim e que a origem é de fato fundamento?! Imersa em
narrativa, tanto origem quanto tradição assumem o rosto das variadas
interpretações, são interpretações do real enquanto palavra, obra, gesto,
e não o real em absoluto:
É conhecida a fórmula de Hegel: ‘Tanto pior para os fatos’. No fundo,
o que ele quer dizer é: cabe ao filósofo estabelecer as conexões entre
as essências, e estas permanecem inalteradas, ainda que no mundo
dos fatos elas não se manifestem na sua forma pura. O preço que
esta atitude genuinamente idealista paga pela sua segurança é o do
abandono do cerne da ideia de origem [...] 27.
26
27
Benjamin, 1987, p. 171.
Benjamin, 2013, p. 432.
55
Filosofia com Poesia
A unicidade da obra a que Benjamin se referia é o que permite
uma entrega, a cada vez autêntica, de respostas, sem esgotar a questão.
Nessa dimensão, todo tradutor é, em certa medida, traidor, ainda sem
o querer, pois necessariamente ele falhará em entregar a mensagem na
íntegra (bem como o crítico, o comentador, o filósofo etc.);
concomitantemente, o tradutor é um “traditor”, alguém que porta uma
tradição na interpretação e a passa adiante em sua possibilidade de
autenticidade.
Até aqui viemos com uma tradição, daqui podemos sair com ela
e dela: o caminho não faz escolhas, o caminhar sim. Quando Spivak 28
pergunta: “no outro lado da divisão internacional do trabalho do capital
socializado, dentro e fora do circuito da violência epistêmica da lei e da
educação imperialistas […], pode o subalterno falar?”, ela já traz a
afirmativa na própria pergunta, feita do lugar de fala de mulher e de
indiana, ou seja, não tradicional no Ocidente.
A pergunta do subalterno se traduz pelo seu não lugar, pelo seu
lugar retirado. Paradoxalmente, não há como estar sem lugar. Fala-se,
mesmo que os endereços tenham se perdido e as identidade não sejam
mais estanques: “Eu não tenho senão uma língua, e ela não é minha” 29.
De modo semelhante, a tradução tira da língua da tradição sua
habitação habitual. A vontade de uma tradição de se manter é
compreensível, mas não essencial. O que não quer dizer também que
nada se mantém ou que nossa mera resposta afirmativa transformaria
28
29
2010, p. 54.
Derrida, 2001, p. 13.
56
Filosofia com Poesia
milênios de subalternidade silenciada. Algo sempre se ganha e se perde.
A tradição subentende a traição e a tradução é este jogo: “Nada é
intraduzível num sentido, mas num outro sentido tudo é intraduzível,
a tradução é outro nome do impossível” 30.
Mesmo que no texto Spivak responda negativamente e a
tradição em foco tenha sido em parte execrável, somos frutos dela.
Perceber isso permite que possamos trabalhar com o que a tradição
nos relegou. Não se trata nem de aceitá-la, nem de descartá-la. É no
limite que nos encontramos. Por mais que seja problemático e, por
vezes, preconceituoso, nele subjaz boa parte do aparato conceitual que
nos ajudou e ajuda a compreender a realidade: “o desaparecimento de
[certos] preconceitos significa simplesmente que perdemos as respostas
em que nos apoiávamos de ordinário sem querer perceber que
originariamente elas constituíam respostas a questões” 31.
Por outro lado, outra parte da conceituação estará na criação de
conceitos, conforme estima Deleuze como sendo o papel da filosofia. E,
ao criar, devemos sim nos perguntar quais respostas ainda nos cabem
e quais não seriam mais plausíveis. Que encaminhamentos, que
questões nosso tempo nos coloca e que, na mesma medida, colocamos
a ele?
30
31
Idem, p. 88 — grifos no original.
Arendt, 1972, p. 223.
57
Filosofia com Poesia
Por uma filosofia do agreste: a tradução da tradição
Por fim, o papel da interpretação e da tradução seria congregar
a tradição, esse lugar conhecido, ao estranhamento que hoje nos
acomete. Nesse diálogo tradicional e não tradicional, crítica e criação se
imiscuem a ponto de encontrarmos, por exemplo na realidade brasileira,
a filosofia fora da Filosofia: na música, na literatura, na cultura popular
etc. Uma imagem que remete àquela dos cumes que “Perto vivem,
esmorecendo nas / Mais separadas montanhas” 32, utilizada tanto por
Nietzsche quanto por Heidegger para acercar a arte da filosofia,
aproximação muito abordada e a abordar na cultura brasileira.
Se nosso aparato crítico é rico, se nossos comentadores são de
qualidade elevada, conforme foi exposto pelo professor Cabrera, e se
isso é um ponto forte da filosofia feita aqui no Brasil, também é um
ponto fortíssimo nossa riqueza e qualidade cultural no que se refere à
arte, que, especificamente no tocante à literatura, possui nomes com
denso material filosófico que poderiam acrescentar em muito à
discussão da filosofia em moldes agrestes:
[...] mesmo com a independência e a manifestação de filosofias mais
estruturadas como a de Gonçalves de Magalhães, ainda persiste entre
nós essa tendência de expressar nossas intuições metafísicas pelo viés
literário. Diversos autores expressam isso muito bem, como Machado
de Assis, Augusto dos Anjos, Clarice Lispector, Guimarães Rosa. Não
32
Hölderlin, 1954, p. 173 — tradução minha.
58
Filosofia com Poesia
quer dizer que só façamos filosofia desse jeito, mas uma característica
importante do nosso pensamento é essa 33.
Em suma, pomo-nos perante o espelho e vemos e não vemos
nossos pais. Mas, como filhos que somos, tanto a casa tornamos como
maldizemos a casa. Nesse retorno eterno, que numa perspectiva circular
também é uma partida eterna, estamos constantemente em débito e
em crédito com a tradição. Se já, de fato, alcançamos um patamar
crítico e metodológico satisfatório, cabe agora refazer o mesmo à nossa
maneira, a saber, fazer filosofia do agreste, um caminho próprio que
pode percorrer tanto fontes tradicionais quanto não tradicionais, sem
se diminuir no caminhar:
Você é o herdeiro.
Filhos são os herdeiros,
pois pais morrem.
Filhos ficam e floram.
Você é o herdeiro 34.
Graças à vida que me deu tanto
Deu-me o riso e deu-me o pranto
Assim, distingo alegria de quebranto
Os dois materiais de meu canto
E seu canto que é meu mesmo canto
E o canto de todos que é meu próprio canto
Graças à vida que me deu tanto 35.
33
Margutti, 2011.
Rilke, 2012, p. 66 — tradução minha.
35
Parra, 1966 — tradução minha.
34
59
Filosofia com Poesia
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60
Filosofia com Poesia
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61
Filosofia com Poesia
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62
Vivência, experiência e narrativa a partir da filosofia de
Walter Benjamin
Cleiton Luiz Kerber
Introdução
Nas obras de Walter Benjamin encontramos, por diversas vezes,
textos que dialogam de forma direta com a literatura, bem como com
demais produções artísticos/culturais. Na busca de compreender como
o processo de narrativa, entendida como uma forma de narrar a
vivência carregada de sentido, elevada pelo filósofo à categoria de
experiência e, sendo uma experiência, vê-se relacionada com a literatura.
Dessa forma, Benjamin busca analisar e comparar a obra de Nikolai
Leskov, e nela descobre, por meio dos escritos literários do escritor
russo, um certo distanciamento nosso e da nossa sociedade de um
autêntico narrador.
Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato
presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo distante, e que
se distancia ainda mais. Descrever um Leskov como narrador não
Filosofia com Poesia
significa trazê-lo mais perto de nós, e sim, pelo contrário, aumentar
a distância que nos separa dele. Vistos de uma certa distância, os
traços grandes e simples que caracterizam o narrador se destacam
nele. [...] Uma experiência quase cotidiana nos impõe a exigência
dessa distância e desse ângulo de observação. É a experiência de que
a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as
pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo
que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se
estivéssemos provados de uma faculdade que nos parecia segura e
inalienável: a faculdade de intercambiar experiências 1.
Benjamin recorre a Leskov por entendê-lo como um legítimo
narrador. Nele são identificados os interesses pelos camponeses e uma
forte orientação religiosa, o que favorece uma aproximação com o
campo do trabalho manual e com a capacidade de reflexão e meditação
sobre a vida. São essas características que o Filósofo de Frankfurt
identificará em um narrador. Próximo ao fim da primeira grande guerra
mundial, ocorre uma forte tendência de difusão do estilo literário da
narrativa nos países de língua alemã, o que não ocorreu com o estilo
do romance.
Nikolai Leskov possui em seus primeiros escritos o estilo do
romance. Neles, Benjamin identificará como sendo um modelo
doutrinário e dogmático, e que não tiveram grande aceitação. Isso
ocorre, pois o romance é considerado um escrito totalmente vinculado
ao livro, desprovido de relação com o mundo exterior. Sua origem
encontra-se no indivíduo isolado, “que não pode falar exemplarmente
sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos
1
Benjamin, 1994b, p. 197.
64
Filosofia com Poesia
nem sabe dá-los” 2. Ou seja, é um estilo literário que possui uma
insuficiência em relação à vida cotidiana.
Para chegar ao estilo da narrativa, ocorre um processo de
vinculação à vida humana. Sem experiência, para Benjamin, não existe
narrativa. Porém, a experiência é algo que vem a cabo quando se tem
a capacidade de dar sentido àquilo que vivemos. Dessa forma, passamos
a observar cada conceito e como eles ajudam na construção do estilo
literário da narrativa.
Vivência
Comecemos por entender o que é a vivência: consideremos tudo
o que vivemos, aquilo que chega por primeiro a nossa existência. É
aquilo que vemos, ouvimos, degustamos, pensamos, compreendemos,
rezamos, contemplamos, admiramos..., porém, não as elevamos a uma
análise mais profunda. É uma experiência degradada, a qual os
indivíduos acabam por vivenciá-las e não as elevam ao nível da reflexão
devido à imposição de diversos estereótipos sociais (modelos de
comportamento): a) modelo de profissão; b) modelo social — familiar;
c) ídolos midiáticos; d) modismos. A própria sociedade moderna, em
sua estrutura, apresenta necessidades ao sujeito de enfrentar uma
multiplicidade e uma intensidade de estímulos exteriores que o
impedem de refletir, e consequentemente, desse apropriar deles na
forma de conhecimento, como ocorre na experiência.
2
Idem, p. 201.
65
Filosofia com Poesia
O habitante da sociedade moderna, o homem da multidão, é
obrigado a enfrentar uma monstruosa saturação de estímulos exteriores
enquanto caminha pelas ruas repletas de transeuntes e de veículos,
sendo obrigado a agir por reflexos em função da intensidade e da
velocidade dos estímulos provenientes do tráfego, da aglomeração, do
movimento de massa, de forma a configurar ao olhar enorme
importância social. O mesmo ocorre quando somos bombardeados
pelas notícias, informações, propagandas e outros tantos informativos.
Essas atividades, porém, não permitem a formação de um conhecimento
específico, não implicam qualquer tipo de memorização. Semelhante
ação ocorre quando as multidões se dirigem a espaços que propiciam
o lazer e a diversão. A intensidade de efeitos que esses locais produzem,
também não contribui para um processo de abstração, compreensão e
memorização do que neles se vive. Nesse sentido, Benjamin no alerta
em seu texto O narrador:
O saber, que vinha de longe — do longe espacial das terras estranhas,
ou longe temporal contido na tradição –, dispunha de uma autoridade
que era válida mesmo que não fosse controlável pela experiência. Mas
a informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada,
ela precisa ser compreensível ‘em si e para si’. [...] Se a arte de narrar
é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por
esse declínio 3.
Ao analisar esse processo das vivências, Walter Benjamin irá
demonstrar que o homem perdeu a capacidade de agir a não ser de
3
Idem, p 203.
66
Filosofia com Poesia
modo reflexo e automatizado, e totalmente desprovido da capacidade
de análise do que chega a ele. O termo alemão utilizado por Benjamin
para designar o sentido de vivência é Erlebnis. Seu significado
etimológico refere-se à vivência na sua forma mais individual e solitária
possível, que perpassa pelo indivíduo, caracterizando-o como um ser
privado e isolado 4.
Percebe-se em Benjamin que a vivência é algo próprio do existir
humano. Porém, há algo que nos faz ultrapassá-la, não a deixando ficar
somente nesse nível, que será denominado pelo filosofo alemão como
experiência, como veremos na continuação. Porém, nos é alertado pelo
autor que o andar histórico da sociedade está forjando uma humanidade
que não consegue ou não lhe é dado a motivação de produzir o sentido
e realizar a narração do que lhe é vivido. Walter Benjamin identifica, no
ensaio “Experiência e pobreza”, como o fator histórico da primeira
grande guerra mundial gerou uma morte da experiência e da sua
capacidade de narrar, devido às dores causadas pelo que nela se
vivenciou:
Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso
numa geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis
experiências da história. Talvez isso não seja tão estranho como
parece. Na época, já se podia notar que os combatentes tinham
voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiência
comunicável, e não mais ricos. [...] Não, o fenômeno não é estranho.
Porque nunca houve experiência mais radical desmoralizadas que a
experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência
4
Rebuá, 2019, p. 69.
67
Filosofia com Poesia
econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a
experiência moral pelos governantes 5.
Benjamin, nesse relato sobre a segunda Guerra Mundial, deixa
claro como a vivência não passa ao nível da experiência, pois os efeitos
da geração que a vivenciou, em todas as suas facetas de barbárie, gerou
uma mudez daqueles que a estavam fazendo acontecer, ou seja, os
soldados no front de guerra. Estes tornaram-se mais pobres de
experiência a que pudessem compartilhar. A grande questão destacada
por Benjamin, que no seu ensaio O narrador alerta para a degradação
daquilo que poderia se tornar uma experiência. Aquilo que se vivenciou
durante o conflito, tornou-se qualquer coisa, menos uma experiência
que poderia ser contada e ouvida.
Nesse sentido, são diversos os pontos que Benjamin aponta
como degradação da experiência ou como uma vivência que não é
elevada ao nível da experiência, como “a experiência da tragédia pela
guerra de trincheiras, as experiências econômicas pela inflação, as
experiências do corpo pela fome, as experiências morais pelos donos do
poder” 6. O que realmente é identificado nesse esboço é uma trágica
ferida em uma geração que há pouco tempo tinha como grande
característica a capacidade de empregar sentido ao vivido, ou seja, a
competência de partilhar a experiência. Essa morte da capacidade de
dar sentido deve-se ao fato, segundo Benjamin, da destruição de tudo
5
6
Benjamin, 1994a, p. 115.
Rebuá, 2019, p. 69.
68
Filosofia com Poesia
o que antes lhes era caro e importante, pois como afirma novamente
num trecho de Experiência e Pobreza,
[...] uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por
cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente de
tudo, exceto das nuvens, e em cujo o centro, num campo de forças
de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo
corpo humano 7.
Na falta de referências que o autor encontra e identifica uma
das causas da degradação da narrativa. Isso ocorre, pelo fato de não
haver algo fixo em que as pessoas no pós-primeira guerra possam
afirmar que caracteriza a experiência, pois o contexto em que ocorre a
vivência da guerra realiza um câmbio muito forte, que não lhes serve
como ponto de alusão. E como aponta Benjamin, a única coisa que não
mudou completamente foram as nuvens do céu, mas elas se modificam
constantemente, dessa forma, não servem como boa referência por
possuírem essa característica.
Podemos concluir que as vivências, mantidas neste nível,
segundo Walter Benjamin, impedem o ser humano de refletir, organizar,
dar e encontrar sentido a sua existência no tempo. Nessa dinâmica
psicossocial, para o sujeito não há a criação de narrativas de sua vida,
seu passado é pobre de experiências significativas, pois não encontram
referências que garantam o significado do que foi vivido. O tempo é o
aqui e o agora, não há reflexão sobre o que já foi vivido, não se constrói
7
Benjamin, 1994a, p. 115.
69
Filosofia com Poesia
um conhecimento do que passou, somente se valoriza o conteúdo do
momento ou lhe falta narrativa para descrevê-los.
Experiência
Passemos agora a entender melhor sobre o conceito de
experiência, tendo como foco aquela originária de nossas vivências e
que é transformada em memória voluntária por meio da nossa vontade.
A experiência nada mais é do que a vivência que passou por um
processo de compreensão, interpretação e sentido. Podemos comparar
a experiência à prática artesanal, manual e não mecânica. Ela está
relacionada às atividades humanas, desprovidas de estímulos exteriores,
como já citado, e um período de tempo adequado ao ritmo natural,
biológico do humano. A experiência não é marcada pelo tempo contado,
mas pelo tempo necessário, lento e prolongado.
Outra característica que encontramos para definir experiência
em Walter Benjamin é a capacidade de funcionamento da experiência
ligada ao passado. A partir dele, o passado, ocorre uma delineação do
que podemos definir como possibilidades do tempo atual. A relação da
experiência com o que já foi vivido, mas não ressignificado, abre espaço
para a possibilidade da experiência. Novamente nos ensaios O narrador
e Experiência e pobreza, mesmo que o conceito de experiência perpasse
toda a obra do autor, encontramos um olhar mais atento para como
70
Filosofia com Poesia
essa experiência está ligada à tradição e a partilha, por meio da
narrativa, com outras pessoas, comunidades ou geração 8.
A palavra em alemão utilizada por Benjamin para designar
experiência é Erfahrung, e caracteriza-a como sendo a capacidade de a
pessoa adquirir conhecimento através da experiência acumulada, vivida
prolongadamente, tendo o sentido da partilha como uma de suas
referências. Diferente de quando abordamos o sentido da vivência,
Erlebnis em alemão, na qual o indivíduo encontra-se na sua
individualidade. A Erlebnis em relação a Erfahrung não é excluída, mas
ocorre um processo que a pressupõe e ultrapassa, gerando assim uma
experiência não momentânea e instantânea, mas de experiência com
significado e sentido, que dá à pessoa a capacidade de a narrar 9.
Analisando esses conceitos, Benjamin irá identificar a perda ou
o declínio da experiência (Verfall der Erfahrung), aquilo que chama de
sentido forte do que é vivido, e que não se estagna somente na vivência,
mas a sobressalta. É dela que se gera aquilo que chamamos de tradição,
que compartilhamos entre nossa comunidade humana. Essa tradição é
construída da forma mais familiar possível, entendendo-a no sentido
mais literal da palavra, ou seja, é a aquilo que perpassa de uma geração
a outra. Para explicar essa importância, Benjamin retoma uma fábula
de Esopo:
Em nossos livros de leitura havia a parábola de um velho que no
momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro
8
9
Hartmann, 2015, p. 15.
Rebuá, 2019, p. 69.
71
Filosofia com Poesia
enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem
qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas
produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreendem
que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade
não está no ouro, mas no trabalho10.
Compreende-se com essas palavras de Benjamin, retiradas da
literatura grega antiga, que a compreensão da felicidade está no
trabalho e no esforço. E esse ensinamento foi transmitido de uma
geração a outra, porém não por meio de palavras, ou de forma
moralizante, mas pela oportunidade de realizar a experiência. O grande
conteúdo da fábula não está no tesouro a ser encontrado, tanto que ele
não se faz presente, mas sim o conteúdo da mensagem que o pai
transmite a seus filhos.
A fala do pai dada a seus filhos vem do leito de morte, isso
mostra que a experiência não é algo vivido unicamente por um
indivíduo, mas é transmitida, compartilhada e vivida de uma geração à
outra, ou seja, ela é tradição. Ultrapassa a mera existência individual,
não se prende à vida e à morte particular, mas tem a força de manterse existente. A grande insistência que Benjamin irá fazer é mostrar que
está ocorrendo uma perda dessa experiência, e isso desencadeia o
desaparecimento de algo que gera e transmite essa experiência, a
narrativa. Sua fonte são as comunidades que realizam a transmissão
desses elementos.
10
Benjamin, 1994a, p. 115.
72
Filosofia com Poesia
O que
Benjamin
identifica
como
o
provedor
desse
desaparecimento, ou como o pontapé inicial dele, é o progresso de uma
sociedade tecnicista, que culminou com as atrocidades da Primeira
Guerra Mundial, como já apresentado na perspectiva da incapacidade
de transformar a vivência em experiência. É nessa perspectiva que
Benjamin perceber que o enfraquecimento da experiência, e
consequentemente da narrativa, ocorre devido ao desenvolvimento das
forças produtivas e da técnica, ou seja, da aceleração da forma de vida
capitalista da sociedade, bem como de uma forma traumática de uma
experiência de choque, que impossibilita que a linguagem cotidiana
formule suas narrativas 11.
Essa observação que Walter Benjamin faz sobre a narrativa
destaca-se nos dois textos que nos propomos apresentar neste trabalho.
Em ambos o autor ressalta que a sociedade capitalista moderna, através
de sua técnica, apresenta as direções para a pobreza de experiência.
Essa pobreza é claramente marcada pela falta de transmissão da
experiência, que com ela gera a falta da narrativa. A falta de narrativa
ocorre também a falta da partilha e troca de experiência, ou seja, ocorre
menos Erfahrung. E nessa perspectiva que Benjamin nos alerta:
Aqui se revela, com toda clareza, que nossa pobreza de experiência
ou apenas uma parte da grande pobreza que recebeu novamente um
rosto, nítido e preciso como o do mendigo medieval. [...] A horrível
mixórdia de estilos e concepções do mundo do século passado
mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem
nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita o
11
Gagnebin, 2006, p. 51.
73
Filosofia com Poesia
sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar
nossa pobreza. Sim, é preferível confessar que essa pobreza de
experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge
assim uma nova barbárie 12.
O grande alerta presente neste trecho de Experiência e pobreza
é a direção que está nos guiando a sociedade burguesa. Para Benjamin,
mesmo que a fala sobre a cultura seja um ponto forte das discussões
contemporâneas, não adianta nada se não conseguirmos relacionar
essas questões em nossas vidas. Dessa forma, não há como viver essa
fala, pois quando modernamente falamos de cultura, não conseguimos
ligá-la a nossa vida.
No ensaio de Experiência e pobreza, mesmo que também trate
dessas questões em O narrador, é que Walter Benjamin irá elaborar a
ideia de experiência. Com as análises do velho no seu leito de morte,
retirada da fábula de Esopo, e a pobreza de narrativa oriunda da
experiência da primeira guerra mundial, que será lançada a ideia da
construção de uma geração marcada pela decadência da experiência.
Porém, nosso filósofo identifica um terceiro eixo ligado a essas questões.
O que ele denominou de nova barbárie, como elencamos na citação
acima apresentada, é o que ele nos coloca como possibilidade de
começar tudo de novo, ou seja construirmos as coisas desde o início.
Com esses três eixos temos uma sequência que podemos
denominar de transmissão, dissolução e recomeço. São três momentos
dialéticos da experiência em sua presença na temporalidade histórica,
12
Benjamin, 1994a, p. 115.
74
Filosofia com Poesia
ou seja, Benjamin está trabalhando com o que passou, o agora e o que
há de vir. Nessa construção, se vê a possibilidade de um recomeço,
quase que como um elogio por parte do escritor do ensaio, onde essa
pobreza “impele a partir para frente, a começar de novo, a contentarse com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita
nem para a esquerda” 13.
A partir desse ponto é identificado a possibilidade de iniciarmos
uma nova partilha da experiência. Benjamin buscará trazer para a cena
da discussão os grandes criadores que abandonaram as narrativas de
seu tempo, ou deixaram-nas de lado, e passaram a narrar a partir de si
mesmos. Refere-se primeiramente a Descartes, que com seu cógito ergo
sum, abandona as filosofias de seu tempo, e reformula a sua teoria. Em
segundo lugar, retoma Einstein do qual apresenta a distanciamento da
Newton e suas equações para poder, então, vislumbrar novas
possibilidades no campo da física. Como terceiro nome, Benjamin
recorrerá a Klee, artista que filósofo já fez referência na tese IX do
ensaio Sobre o conceito de história, que assim como os artistas cubistas
utilizou-se da matemática e dos estudos de engenharia para criar as
suas obras estereométricas. Com isso, Benjamin demonstra que é
possível criarmos novas experiência e, consequentemente novas
narrativas, para não nos perdermos e deixar que esse declínio seja
total 14.
13
14
Idem, p. 116.
Rebuá, 2019, p. 72.
75
Filosofia com Poesia
Para Benjamin, é na experiência que retiramos o conteúdo da
narrativa: “O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria
experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas
à experiência dos seus ouvintes” 15. Porém, o ato de narrar encontra-se,
assim como o processo de realizar novas experiências, em declínio. Isso
se ocorre, como já vimos, a partir da primeira guerra mundial, pois
segundo nosso filósofo, os “combatentes voltaram mudos do campo de
batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência
comunicável” 16.
No plano econômico também encontraremos fortes influências
para a diminuição das experiências, pois com o fim da atividade
artesanal e sua substituição pela forma de trabalho mecânico, através
das linhas de montagem das indústrias, a ação se tornou automatizada,
o que não garante uma forma de reflexão, aprendizagem ou elaboração
de uma técnica manual do que se está fazendo. Dessa forma, o trabalho
não garante um processo e experiência ao trabalhador. Dentro do plano
cultural, com o desaparecimento da narrativa, que é uma forma
artesanal de comunicação, o que ganha espaço é o romance e a notícia
informativa, produzida pelos meios de comunicação da modernidade,
que também não vem dar espaço para um tipo próprio de experiência,
ou seja, a narrativa. Já no plano social, as próprias formas de
organização das cidades não propiciam a experiência, pois o homem
moderno não é o sujeito que vive as experiências pessoais, mas, sim, o
15
16
Benjamin, 1994b, p. 201.
Idem, p.198.
76
Filosofia com Poesia
homem da multidão, que se guia pelo cotidiano das grandes
metrópoles 17.
Narrativa
No processo das experiências surge a capacidade de
comunicação das mesmas. Dessa forma, chegamos ao conceito de
narrativa. Para narrar uma experiência, é preciso manter certa distância
do fato acontecido. No mundo marcado pelo excesso de informação,
afirma Benjamin, temos perdido, em parte, a capacidade de narrar as
experiências. Uma das possíveis causas desse fenômeno é a troca da
narrativa, pela informação. Cambiamos o conhecimento do nosso povo,
da nossa história, da nossa vida, pelas informações que os jornais e
informativos nos trazem.
Esse empobrecimento da narrativa é reconhecido não somente
por Benjamin. O próprio Adorno, ao comentar os ensaios de Benjamin,
em especial o “Experiência e pobreza”, afirma que: “Ante todo, expresar
mi más pleno asentimiento a la intención histórico-filosófica: que el
narrar ya no es posible. [...] ésta es para mí una idea familiar, que me
resultaba evidente desde años antes de que pudiera expresarlo
teóricamente” 18.
Esse reconhecimento do empobrecimento da experiência, que
gera uma pobreza da narrativa, mostra, por meio dos escritos de
17
18
Franco, 2015, p. 71.
Adorno, 1995, p. 147.
77
Filosofia com Poesia
Benjamin, que a sociedade burguesa criou um modelo no qual o
indivíduo busca, por meio da arquitetura, em especial, um lugar de
refúgio, ou seja, na sua habitação. No mesmo sentido em que Adorno
aponta que não é possível mais a narrativa, Benjamin reforça essa ideia
apontando que não é mais possível deixar a sua marca, seu registro.
Para isso, a sociedade burguesa nos dá um modelo arquitetônico onde
as casas, recheadas de tons pasteis, nos dão a sensação de segurança, e,
dessa forma, a oportunidade de deixar a nossa marca sobre o veludo, a
marca de seus dedos, quando caminha livremente por aquilo que lhe
pertence. Essa privacidade, segundo Benjamin, garante um refúgio do
homem burguês da sociedade capitalista, que segundo a sua regra de
ferro, não lhe oferece nada mais que um anonimato cruel dentro de
uma grande cidade ou dentro de um modelo da grande indústria 19.
É sobre essa reflexão que Benjamin utiliza um trecho do poema
de Bertold Brecht, afirmando que “o que está em jogo: ‘Apaguem os
rastros’” 20. Nessa perspectiva, tanto Brecht, como Benjamin, buscam
mostrar que a prática da sociedade burguesa não leva em consideração
a ruptura que há entre a arte e a experiência, isso devido a duas
questões presentes: a) a primeira, devido à falta da experiência
representada na arte; e b) a experiência que não comunica mais nada
por meio da tradição, impossibilitando, assim, uma comunicação entre
artista e aquele que observa a arte. Dessa forma, o que ocorre é uma
19
20
Gagnebin, 2006, p. 51.
Benjamin, 1994a, p. 116.
78
Filosofia com Poesia
dificuldade objetiva sobre o estabelecimento, ou reestabelecimento, da
tradição e da narrativa 21.
Mesmo que seja no ensaio de “Experiência e pobreza” que
Benjamin elenca com maior ênfase a pobreza de experiência de seu
tempo, é em “O narrador”, que ele realmente aponta o declínio da
aurora da arte narrativa tradicional, ou seja, da nossa incapacidade de
contar nossas experiências. Essa questão da narração é a grande
preocupação que o nosso filósofo possui sobre o período da
modernidade e da contemporaneidade. Para ele a narrativa, oriunda da
experiência, nos dá uma continuidade e temporalidade própria das
sociedades artesanais, opondo-se, assim, ao tempo deslocado e
organizado pelo mundo do trabalho capitalista moderno. Se o
capitalismo nos dá uma vivência carregada de informações, obrigações
e reproduções, a experiência artesanal nos dá uma prática comum em
que conhecemos, nos sentimos parte e criamos a nossa narrativa. As
histórias que vêm das experiências e contadas pelo narrador não são
simplesmente lidas ou ouvidas, mas escutadas e seguidas, gerando,
assim, uma verdadeira formação para os indivíduos de uma sociedade 22.
É nessa perspectiva, que Benjamin 23, na obra O narrador afirma
que:
[...] a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que
recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as
melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas
21
Gagnebin, 2006, p. 52.
Gagnebin, 1999, p. 57.
23
1994b, p.199.
22
79
Filosofia com Poesia
pelos inúmeros narradores anônimos. [...] A figura do narrador só se
torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos.
“Quem viaja tem muito que contar”, diz o povo, e com isso imagina
o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos
com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair
do seu país e que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos
concretizar esses dois grupos através dos seus representantes
arcaicos, podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês
sedentário, e outro pelo marinheiro comerciante.
É essa experiência transmitida que é a fonte à qual recorrem
todos os narradores, para conhecer as narrativas anteriores, entender
as suas experiências e elaborar a sua narrativa. Para isso, recorremos a
duas figuras simbólicas que Walter Benjamin nos apresentou: o
camponês sedentário e o marinheiro comerciante. A figura do narrador
é melhor compreendida quando temos presente essas duas figuras. A
figura do narrador pode ser comparada com alguém que possui
experiências que vêm de longe, que viu algo distante dele e ouviu a
narrativa de outras pessoas. A figura do camponês sedentário, que
nunca saiu de sua pátria, também nos é significativa, pois ele ganha sua
vida honestamente, conhece os fatos que viveu e suas tradições, gastou
tempo pensando em suas experiências, nos eventos de sua vida, os
compreendeu e, por esse motivo, possui autoridade de narrar a sua
história. Esses arquétipos de narradores (modelos) podem ser
denominados também como o mestre sedentário e o aprendiz migrante.
Ambos, trabalham juntos na mesma oficina. Dessa forma, há uma
junção dos saberes das terras distantes, trazidos para casa pelos
80
Filosofia com Poesia
migrantes, com o saber passado, recolhido pelo trabalhador sedentário,
como também nos apontou Benjamin em O narrador.
O narrador retira da experiência o que ele conta: a sua própria
ou a experiência relatada pelos outros. O narrador é o homem a quem
a ele próprio transmite o seu saber. Para isso, precisará da sua alma,
do seu olho e da sua mão, pois ambos estão no mesmo campo.
Interagindo, eles definem uma prática, a da narrativa. Ela não é um
produto automatizado, ou produzido em grande escala, mas algo
oriundo do meio artesanal. Walter Benjamin aponta que ela não está
interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como se fosse
um relatório ou uma informação descritiva. Ela terá primeiramente
relação com a vida do narrador, para em seguida tornar-se narrativa,
mantendo assim a marca do indivíduo particular, da pessoa, assim como
o oleiro deixa sua marca no vaso de barro 24.
Nesse contexto, Benjamin nos mostra que a narrativa possui
grande diferença literária de outras formas de literatura, principalmente
do romance e das notícias informativas. O filósofo alemão demonstranos que a narrativa procede da oralidade, enquanto o romance nem
sequer a alimenta, mas coloca o indivíduo num contexto isolado e não
lhe transmite nenhum ensinamento, como os contos, as lendas, as sagas,
as fábulas e as novelas 25. Por esse motivo, a narrativa é entendida, por
Benjamin, como um processo também educativo, uma vez que ela é um
24
25
Idem, p. 205.
Idem, p. 201.
81
Filosofia com Poesia
estilo literário construído de forma coletiva em que a história vem
acompanhada de um narrador.
O romance é avesso à sabedoria e corresponde aos anseios e
expressões artísticas da ascendente burguesia europeia, sendo até
hoje hegemônica como expressão estética da narrativa escrita. Ela é
repleta de conotações psicologizantes, do escritor e do leitor,
enquanto a narrativa é simples e direta. Tem como preocupação
principal a busca do sentido (da vida, da morte, da história),
separando o sentido e a vida, o essencial e o temporal, enquanto a
narrativa tem como núcleo central a moral da história. Norteando
pela tensão (a necessidade de devorar a substância lida), o romance
tem um final (materializado no “The End”) característico dos finais
de livros e/ou filmes, enquanto na narrativa o desfecho não se encerra
num final imediato 26.
Nessa mesma linha, temos a notícia informativa que realiza uma
explicação dos fatos rotineiramente. Seus assuntos são desconexos e
descontextualizados da nossa vida. Não há um processo de
interpretação, mas uma auto explicação dos fatos, não exigindo do leitor
uma forte atenção ou uma verificação no momento da leitura. Assim,
Walter Benjamin 27 observa que
[...] cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto,
somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já
nos chegam acompanhados de explicação. Em outras palavras: quase
nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está
a serviço da informação.
26
27
Rebuá, 2019, p. 76.
1994b, p.203.
82
Filosofia com Poesia
Assim sendo, o que chega a nós cotidianamente são informações
pré-julgadas e que nos dão a impossibilidade de uma análise mais
profunda, extinguindo, assim, a necessidade da arte narrativa. A
sociedade capitalista contemporânea não dá importância maior a uma
história que possui um ensinamento geracional do que a uma notícia
baseadas em fatos corriqueiros que chegam a nós cotidianamente. As
manchetes dos informativos, as grandes questões colocadas pela mídia,
tornaram-se mais importantes ao pequeno burguês que os fatos
históricos e acontecimentos geracionais. Assim sendo, temos
contemporaneamente, segundo Benjamin, uma hegemonia do romance
e da notícia informativa sob a construção narrativa oriunda da
experiência.
Recorrendo a Nikolai Leskov, autor e escritor russo que viveu
no século XIX, Benjamin novamente aponta a forma artesanal deste
modelo de comunicação, a narrativa, como sendo algo manual e
totalmente distante do modelo técnico industrial. Existe uma
aproximação do sujeito, uma experiência vivida que fundamenta a
narrativa. Por esse motivo, a narração não será considerada pelo filósofo
como algo exclusivo da voz, mas há a interação da mão, que através
dos gestos aprendidos na experiência do trabalho, fundamentam o que
é narrado, por esse motivo afirma que: “A alma, o olho e a mão estão
assim inscritos no mesmo campo. Interagindo, eles definem uma
prática. Essa prática deixou de nos ser familiar. O papel da mão no
83
Filosofia com Poesia
trabalho produtivo tornou-se mais modesto, e o lugar que ela ocupava
durante a narração está vazia” 28.
Esse processo de produção artesanal, onde nossos sentidos são
colocados a realizar algo, a viver uma experiência são, para Benjamin,
os grandes produtores da nossa memória, pois aquilo que vivemos e
experienciamos, conseguimos compreender e dar sentido. Desse modo,
criamos memórias desses fatos. Com o processo de intercâmbio dessas
experiências, gera-se uma supressão da memória, tanto individual como
coletiva, e, assim, uma perda de sentido do que vivemos 29. Como
apontou Benjamin na citação acima, o trabalho produtivo é um dos
grandes culpados pela falta da memória e do sentido daquilo que
fazemos cotidianamente. Sendo esse o fator principal, e os grandes
males que ele causa, a narrativa deixa de possuir o que lhe serve de
base para a sua existência, ou seja, a experiência e a memória. Na
primeira lhe é privado o direito de acontecer pelo modelo de produção
e vida capitalista, na segunda, pelo fato da ausência de experiência e da
forma de literatura que não garante um perpassar de ensinamentos,
como ocorre no romance e na notícia informativa.
Percebe-se que Benjamin não distância a narrativa da
experiência, sendo ela a mais artesanal e simples possível. Assim sendo,
a arte de narrar e a vida do povo não possuem uma distinção e nem se
quer uma distância. Quando é apresentado no ensaio O narrador a
figura de Nikolai Leskov está sendo trazido à tona a presença de um
28
29
Idem, p. 220.
Meinerz, 2008, p. 42.
84
Filosofia com Poesia
escritor que não fazia distinção entre a narrativa e a experiência, ou
entre a arte de narrar e a vida do povo. O próprio Benjamin aponta
que “segundo Gorki, ‘Leskov é o escritor... mais profundamente
enraizado no povo, e o mais inteiramente livre de influências
estrangeiras’. O grande narrador tem sempre suas raízes no povo,
principalmente nas camadas artesanais” 30.
Estar enraizado no povo é encontrar nele a fonte da experiência,
vivida, compartilhada e transmitida a outras gerações. É nesse quesito
que Benjamin percebe que o artesanal, evidenciado em Leskov, encontra
na narrativa a sua dimensão de sabedoria transmitida. Porém, a
narrativa necessita do artesanal, ou seja, da experiência, para encontrar
a sua autenticidade, pois é nela que encontra o seu significado, pois a
ela lhe oferece o sentido que por si própria não possui.
Nos escritos de Leskov, Benjamin encontra a base para formular
e apresentar o sentido da narrativa. Nesse processo manual, nessa arte,
é que se evidencia realmente a experiência, e Leskov se vê atraído por
essas questões para produzir seus escritos narrativos. É sobre esse
prisma que Benjamin consegue identificar no trabalho manual, em que
a mão encontra a matéria prima, a base da experiência e,
consequentemente, a fonte da arte narrativa. Porém, Benjamin consegue
dar um passo maior que o próprio Leskov, identificando na própria vida
humana um processo de construção artesanal, e, a partir desse
processo, encontra a base para a narrativa. Por esse motivo, coloca entre
30
Benjamin, 1994b, p. 214.
85
Filosofia com Poesia
as últimas linhas do ensaio O narrador as seguintes afirmações e
questionamentos: a relação entre o narrador e sua matéria — a vida
humana — não seria ela própria uma relação artesanal? Não seria sua
tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência — a sua e a dos outros
— transformando-a num produto sólido, útil e único? 31
Conclusão
Enfim, evidencia-se que o narrador, na filosofia de Benjamin,
retira da experiência o que ele conta: a sua própria ou a experiência
relatada pelos outros. Disso decorre o convite a dar significado à nossa
vida, crescendo na habilidade de narrar a nossa história. O narrador é
o homem a quem a ele próprio transmite o seu saber. Para isso,
precisará da sua alma, do seu olho e da sua mão, pois ambos estão no
mesmo campo. Interagindo, eles definem uma prática, a da narrativa,
pois, a narração não é de modo algum o produto exclusivo da voz. A
coordenação da alma, do olhar e da mão é típico do artesão. A narrativa
é uma forma artesanal de comunicação em que o narrador busca a
coerência com a verdade da sua existência. Ela não está interessada em
transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou
um relatório. Assim, imprime-se na narrativa a marca do narrador,
como a mão do oleiro na argila do vaso, demonstrando que a matéria
prima desse artesão é a vida humana.
31
Idem, p. 221.
86
Filosofia com Poesia
Referências
Benjamin, Walter. Experiência e pobreza. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994a.
Benjamin, Walter. O narrador. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994b.
Franco, Renato. 10 lições sobre Walter Benjamin. Petrópolis: Vozes, 2015.
Gagnebin, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São
Paulo: Perspectiva, 1999.
Gagnebin, Jeanne Marie. Lembrar Escrever Esquecer. São Paulo: Editora 34,
2006.
Hartmann, Sara. Walter Benjamin e Paul Ricoeur: narração e experiência
por vir. Cadernos Benjaminianos, v. 9, n. 1, 2015. Disponível em:
periodicos.letras.ufmg.br/index.php/Cadernos
benjaminianos/article/view/8598. Acesso em: 04 abr. 2022.
Meinerz, Andreia. Concepção de experiência em Walter Benjamin.
Dissertação de Mestrado. Rio Grande do Sul: Programa de Pós-Graduação
em Filosofia–UFRGS, 2008.
Rebuá, Eduardo. Insólito Benjamin. Rio de Janeiro: NAU editora, 2019.
87
“Mas para nós, a existência ainda é encantada”: sobre a
existência, em Rilke e Heidegger
Daniel Rodrigues Ramos
Meditar (besinnen) é pôr a reflexão a caminho, perseguindo o
sentido de seu tema. O pensamento medita ao se colocar, na acolhida,
junto à doação do sentido daquilo que se busca compreender, o que
por si mesmo já se pôs como tema. Assim, meditando ao modo
fenomenológico, o pensamento não determina itinerários prévios e nem
inventa paisagens. Antes, entrega-se ao trabalho de perscrutar os
caminhos que o tema mesmo lhe oferece. Desse modo, sonda os acenos
das paisagens da ambiência em que o tema se assenta. Como
caminhante que trilha caminhos, veredas, deixando-se ser conduzido
pelo ambiente ou pelas paisagens do campo, assim é o pensamento ao
meditar fenomenologicamente. Pensar ao modo de uma meditação
(Besinnung) fenomenológica 1 é possível, portanto, somente a quem se
Aqui se utiliza a palavra meditação (Besinnung) para descrever o modo de pensar, o
qual, ao ser provocado e tomado por sua questão, o pensado deixa aquilo que nela é
pensado determinar a si por mesmo, também o que dele deve ser dito e como deve ser
1
Filosofia com Poesia
apropria e se preserva na pobre disposição de acolher do caminhar a
direção necessária. No fim de longo percurso, no entanto, poderá darse conta de que não está tão longe do ponto de partida. Pois muito
caminhamos, perseguimos temas não para nos distanciarmos, mas para
voltarmos à origem, onde desde sempre estávamos e ainda estamos. Em
todo caso, para que meditemos ao modo fenomenológico é preciso que
o campo mesmo nos en-caminhe por suas veredas, nos colocando face
a face com aquilo que constitui o nosso tema.
Por onde iniciar, portanto? O tema dessa meditação é a
existência humana. Sabemos de nós mesmos como existentes e esse
saber seria um bom ponto de partida. Contudo, tal saber não significa
que a existência para nós se tornou uma questão. Somente assim se
configura à medida que permitimos que a existência nos doe o sentido
de nosso ser, isto é, que nos tornemos próximos daquilo que nos é o
mais íntimo. Mas, na maioria das vezes, somos distantes do que nos é
tão próximo; embora estejamos totalmente imersos na existência,
dito. Por isso, esse pensamento não é um mero dizer sobre, mesmo que logicamente
correto, mas uma disposição, como acena os étimos alemães besinnen e Besinnung, de
manter-se na proximidade (indicado pelo prefixo be-) do pensado no puro recolhimento
de seu sentido (Sinn, veja o radical -sinn). Meditação ou o pensamento do sentido é,
portanto, o pensar que se en-caminha na direção que o pensado toma por si mesmo,
por isso, “entregar-se ao sentido é a essência do pensamento que pensa o sentido
(Besinnung)” (Heidegger, 2002f, p. 58). A palavra meditação, por fim, não possui
qualquer sentido místico-religioso, mas nomeia o pensar que toma o método
fenomenológico como orientação, de modo que meditar não é outra coisa que ver e
tentar compreender o sentido do ser daquilo que se vê a partir de como se mostra e tal
como se mostra. Para melhor compreensão do método fenomenológico, cf. o § 7 de Ser
e Tempo, de Martin Heidegger (2000, p. 56-70). Embora tomando os acenos da poesia
de Rilke, essa meditação assumirá a fenomenologia heideggeriana e seu modo de
proceder no exercício de pensar a existência humana.
90
Filosofia com Poesia
comportamo-nos como se fôssemos a ela alheios, fazendo das coisas e
dos fatos que nos rodeiam o nosso primordial interesse. Absolutizamoos como “temas” quase únicos. O nosso próprio modo de ser não nos
reivindica e, assim, não se torna para nós uma questão digna de ser
pensada 2. E, portanto, parece-nos que o saber cotidiano pelo qual
sabemos de nós mesmos como existentes não poderá nos guiar nessa
nossa meditação. Por outro lado, não podemos descartá-lo, senão
descartaríamos a nossa concreção, a facticidade de nosso existir
individual ou histórico. É com ele, portanto, que deveremos travar uma
luta para empreender nosso caminhar meditativo. É lutando com nós
mesmos que poderemos entrar na esfera da existência. Então, pode nos
dizer algo de essencial a respeito da existência, a partir dela mesma, só
quem travou uma luta de vida e morte em busca do sentido do existir.
Entre eles estão os poetas. Um deles, Rainer Maria Rilke 3, nos diz:
Cantar é existir. Para um deus, muito fácil.
Mas para nós, quando é que existimos?” 4.
2
Heidegger, 2002a, p. 120.
Escritor austríaco e um dos mais importantes poetas de língua alemã. Nasceu em Praga
em 1875, na época, pertencente ao império austro-húngaro. Estudou nas universidades
de Praga, Munique e Berlin. Entre suas obras mais importantes, em versos, estão O livro
das Imagens (Das Buch der Bilder, 1902), O livro das horas (Das Studen-Buch, 1905),
Novos Poemas (Neue Gedichte, 1907-8), Sonetos a Orfeu (Die Sonette an Orpheus, 1923)
e Elegias de Duíno (Duineser Elegien, 1923). Essas duas últimas são escritas durante um
período em que viveu retirado no Castelo de Duíno (Itália) e Sierre (Suíça), nos períodos,
respectivamente, de 1910-12 e 1919-1923. Em prosa, destaca-se A canção de amor e morte
do porta-estandarte Cristóvão Rilke (Die Weise von Liebe und Tod des Cornets
Christoph Rilke, 1906) e Os cadernos de Malte Laurids Brigge (Die Aufzeichnungen des
Malte Laurids Brigge, 1919). Nos últimos anos de sua vida viveu retirado no castelo de
Muzot, Suíça. Faleceu em 29 de dezembro de 1926, em Valmont, Suíça.
4
Rilke, 2005, p. 25. Estes versos pertencem ao terceiro poema, primeira parte, da obra
Sonetos a Orfeu. A obra se divide em duas partes e os sonetos são não intitulados,
3
91
Filosofia com Poesia
Cantar é o modo de dizer dos poetas 5. Ademais, do cantar deles
depende a realização do seu existir, determinando o sentido dessa
realização. Rilke diz, sucintamente, cantar é existir. Então, cantar é
questão de vida e morte 6. Para um deus, muito fácil! Para um mortal,
porém, uma tarefa arriscada, pois não deve ser escolha subjetiva, entre
outras, da mera ocupação de cantar, mas sua decisão mais pessoal a
respeito do porquê estar e como estar sobre a terra. Mas a poesia, como
crê a compreensão vulgar e cotidiana, não seria um mero jogo da
apenas enumerados. Indicaremos a parte a que pertence cada soneto, seguida do numeral
que ele recebe. Utilizaremos a tradução brasileira de Emmanuel Carneiro Leão, publicada
pela Editora Vozes.
5
Heidegger, 2003b, p. 141-147.
6
Para Rilke, assim como em todos os grandes poetas, ser poeta é uma necessidade
existencial e, portanto, dizer que seu canto é uma questão de vida e morte não é
simplesmente eloquência retórica que lança mão de um ornamento linguístico. É o que
é possível entrever, por exemplo, na carta enviada ao jovem poeta Franz Xaver Kappus,
em 1929, depois de haver recebido uma missiva, na qual Kappus pedia conselhos sobre
sua carreira e apreciação de seus poemas. Nessa carta, Rilke (2004, p. 26) responde ao
seu correspondente: “Pois bem — usando da licença que meu deu de aconselhá-lo -,
peço-lhe que deixe de tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que
menos deveria fazer nesse momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar — ninguém.
Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que lhe
manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua
alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto, acima de tudo,
pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: ‘Sou mesmo forçado a
escrever?’ Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder
contestar aquela pergunta severa por um forte e simples ‘sou’, então construa a sua vida
de acordo com essa necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina,
deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão”. Porque a poesia consome toda
a vida do poeta como uma necessidade, ser poeta, pois, não é uma mera ocupação, na
qual o homem se entrega ao jogo da fantasia, ao reino do imaginário. Nesse sentido, a
poesia seria tão somente uma ação, um fazer arbitrário do homem, ademais, inócua. Pelo
contrário, a poesia é o acolher, na liberdade, de uma possibilidade do existir,
experimentada como uma indigência, isto é, como um “aperto” existencial, uma
constrição de não poder existir a não ser no e por meio do poetar. Carece-se de poetar
para ser si mesmo, construir a própria identidade. Como tal possibilidade obrigante, a
poesia sempre compromete a inteira existência do homem de um modo sério e decisivo,
isto é, como se disse acima, uma necessidade que consome toda uma vida.
92
Filosofia com Poesia
linguagem, uma brincadeira com imagens que o poeta expressa os seus
sentimentos? Portanto, não seria algo inofensivo e sem qualquer eficácia
e utilidade para o mundo das ações e decisões humanas? Nesse sentido,
a poesia residiria no reino das coisas não essenciais para a existência
humana. Como poderia, então, comprometer todo o existir do poeta?
Entretanto, precisamente por ser um jogo da linguagem, nela se põe
em risco o ser do homem em sua propriedade. Mas por quê? Ora, a
linguagem não é apenas um instrumento de comunicação e de inserção
do homem no mundo da ação e gerenciamento dos entes. Ao contrário,
ela é o espaço essencial de manifestação de sua existência e, assim, de
decisão sobre seu destino histórico. Desse modo, como em tudo que é
essencial ao homem, a poesia (res)guarda, sob a aparência de
inutilidade, ineficácia e inocência, algo decisivo e perigoso 7. Mas
justamente por essa razão, o poeta canta, celebrando a existência, e
“mesmo diante da poeira, a voz nunca lhe falta” 8:
Mas para nós, a existência ainda é encantada, ainda é
Origem, em muitas estâncias. Um jogo de forças
Puras, que ninguém toca, senão de joelhos e com admiração 9.
Esses versos também pertencem ao poema de Rilke, do qual se
extraem os versos que dão título à presente meditação. Mais
7
Heidegger, 1997, p. 128-133. Refere-se a dois versos dos fragmentos de Hölderlin que
Heidegger (idem, p. 126-48), na discussão sobre a essência da poesia, toma como
palavras-guias, a saber: “Poetizar: a mais inocente de todas as ocupações” (III, 377) e “E
é dado ao homem o mais perigoso dos bens, a linguagem... para que se mostre o que
é...” (IV, 246). (apud idem, p. 126).
8
Rilke, 2005, p. 33, parte I, 7.
9
Idem, p. 91, parte II, 10.
93
Filosofia com Poesia
especificamente, pertencem ao décimo soneto da segunda parte da obra
Sonetos a Orfeu. Nesses sonetos é possível entrever que a poesia desse
poeta é uma privilegiada realização da existência 10, é um dizer em que
o poeta se inclui totalmente no que se diz, porque toda sua vida
pertence a esse dizer, está tomada por ele. O incluir-se do poeta no seu
próprio dizer revela sua decisão de deixar que o dizer mesmo o busque,
envolva-o, para que venha ser um dito que se diz a partir daquilo que
o alcança na sua existência. O dizer dos poetas de grande porte, como
Rilke, não é obra de seus méritos, mas da poesia, de tal modo que o
poeta é em si mesmo “pura recepção” e seu cantar nada pede ou
inventa, mas se subtrai a toda tentativa de impor-se deliberadamente
ao tema de seu canto ou poesia 11. Por essa razão, a palavra desse poeta
será nossa palavra-guia ao longo desse texto, o qual pretende ir avante
no ritmo de uma meditação. Seguindo a fala do poema, nos encaminharemos por uma vereda que, esperamos nós, nos faça aperceber
com clareza o sentido de nosso existir. Por isso, de antemão, nada
melhor que ouvir o poeta e, perscrutando o sentido de seus versos,
deixar a sua poesia, de imediato, nos lançar no caminhar desse caminho.
Assim dita poeticamente Rilke 12:
A máquina ameaça tudo que se conquistou,
Ao pretender estar no espírito e não na obediência.
Para que a hesitação magnífica da mão já não resplandeça mais bela,
Talha a pedra com maior dureza para uma construção mais ousada.
10
Leão, 2000, p. 48-49.
Heidegger, 1960b, p. 260-261.
12
2005, p. 91, parte II, 10.
11
94
Filosofia com Poesia
Em lugar nenhum fica para trás, assim nunca lhe escapamos
E, lubrificada na fábrica silenciosa, ela se pertence a si mesma.
É a vida, — ela pretende o maior poder,
Com igual decisão ordena, cria e destrói.
Mas para nós, a existência ainda é encantada, ainda é
Origem, em muitas estâncias. Um jogo de forças
Puras, que ninguém toca, senão de joelhos e com admiração.
Palavras ainda passam rentes ao indizível...
E a música, sempre nova, nascida de pedras vibrantes,
Constrói, no espaço inútil, sua morada de deusa.
Como se vê, o verso acentuado e destacado como título do texto
pertence à terceira estrofe. Nela se canta a existência humana com as
imagens do jogo e da força que parecem estar, em virtude do “mas”
que inicia a terceira estrofe, numa oposição irreconciliável com as
imagens da máquina e da fábrica, presentes nas estrofes anteriores.
Além do mais, a existência humana é colocada dentro de uma ambiência
poética marcada com gestos de reverência e atitudes apropriadas a
quem está diante de uma realidade mais divina que humana. Tudo isso
nos parece, de início, demasiadamente ingênuo e fantasioso. E nos
parece assim justamente porque é poética, uma vez que para nós,
segundo o senso comum, a poesia é apenas uma forma literária em que
seu autor abusa de figuras imaginárias e fantasias para expressar sua
experiência com o concreto. Poderia, então, o poeta, no seu jogo de
delírio e ilusões, dizer algo a nós que queremos meditar sobre o tema
que toca a essência de nós mesmos: a existência?
95
Filosofia com Poesia
Dissemos anteriormente: o texto que aqui inicia propõe ser uma
meditação fenomenológica em torno da existência humana. Quer ser
uma experiência do pensamento e, como nos ensina a tradição filosófica,
somente poderá ser admitida como uma experiência pensante se for
apta para dizer de forma clara, lógica, rigorosa, na forma de conceito,
não deixando nada sob véus da obscuridade. Não obstante, parece-nos
o poeta fantasioso e delirante. Seu dizer, portanto, em nada poderá nos
auxiliar a dizer filosoficamente algo sobre a existência. No entanto,
como se indicará mais à frente, em toda grandeza de uma poesia ressoa
uma experiência pensante, do mesmo modo que o pensamento só se
atém ao que verdadeiramente deve ser pensado se for uma experiência
poética. Pensamento e poesia, cada qual a seu modo, se instauram no
mesmo campo. Trilham caminhos diferentes, mas por se encontrarem
no mesmo âmbito, necessitam-se mutuamente 13. Mas apenas saberemos
isso depois de nos medirmos com a poesia, se estivermos dispostos a
um caminho que nos faça perceber que a poesia não é uma expressão
das mundividências, vivências psíquico-sentimentais ou, ainda,
experiências delirantes do poeta por meio de imagens. Antes, ela é um
acontecimento revelador do ser. Na correspondência a esse
acontecimento, enquanto uma obra da estrutura fundamental da
existência humana, a linguagem, ela é também uma instauração da
essência originária do homem. Sucintamente, poesia é a instauração da
essência do homem no seu corresponder ao originário acontecimento
13
Heidegger, 2003b, p. 133.
96
Filosofia com Poesia
do ser. Onde há poesia, o homem cumpre sua missão de tornar-se, pela
linguagem, testemunha do mistério do ser por meio de sua existência
histórica 14. Mas, por ora, deixemos essa afirmação ressoar com toda a
sua força e estranheza que ela gera em nós. Nossa compressão dela é
ainda muito provisório. Mas essa disposição nos prepara para
experienciá-la de modo pensante. Quiçá, assim, depois de meditarmos
a palavra do poeta, ser-nos-á possível apreender sua ressonância em
nós com maior precisão, isto é, responder ao que ela nos solicita e
convoca com uma transformação de nossa existência.
Técnica, a existência sob risco
A máquina e a essência historial da técnica
O canto que celebra a existência, num tom festivo, introduz-se
de um modo que, à primeira impressão, parece-nos catastrófica. Nesse
sentido, o canto festivo da celebração afirma-se como uma denúncia do
poder da máquina:
A máquina ameaça tudo que se conquistou,
Ao pretender estar no espírito e não na obediência.
A máquina, esse artifício fabricado para facilitar a vida cotidiana
e tornar mais leve o peso do trabalho humano em busca da subsistência,
é cantada como a causa que põe em risco todo ganho conseguido pelos
homens à custa de muito suor. Desde a Revolução Industrial, porém, a
14
Heidegger, 2004, p. 64-65, 69-70.
97
Filosofia com Poesia
máquina faz parte do agir humano, na exploração da terra e
transformação dos recursos naturais em vista da produção de artefatos
em larga escala. Entretanto, hoje, a máquina exerce seu domínio para
além dos processos de produção industrial e se interpõe em todas as
atividades e espaços de convivência humana. As máquinas nos rodeiam
por toda parte como meios para diversos fins, mediando nossa relação
com todo ente: o computador, o telefone celular, a televisão, tão
próximos de nós, mas também o mais avançado avião a jato destinado
para a guerra, os geradores e as turbinas das usinas de força assim
como o mais especializado instrumento de pesquisa científica, sem o
qual a ciência não conseguiria manter vivas suas metas em direção ao
progresso do conhecimento científico. Por isso, nosso modo de
relacionar com o real já é radicalmente diverso dos antigos modos de
produção artesanal. Por exemplo, o lavrar a terra do camponês de
outrora já não é o mesmo da moderna agricultura, que é orientado, do
início ao fim, pelas metas do agronegócio e da indústria alimentícias
com os meios técnicos e tecnológicos empregados por esses setores. E
essa mudança ocorre justamente porque a máquina pertence ao
universo da técnica moderna que transformou radicalmente nosso
estar-no-mundo junto às coisas e, atualmente, alcançou um domínio
planetário. Da técnica moderna, a máquina não é senão sua face mais
visível, o signo de seu estágio mais avançado 15.
15
Heidegger, 1960a, p. 68.
98
Filosofia com Poesia
Celebrada com muito ardor é a técnica nos nossos dias por
muitos. Porém, outros não deixam de perceber os perigos que o
domínio planetário da técnica instaura. Ao contrário do esperado,
ameaça justamente a existência humana sobre a terra. No entanto, é
quase de comum acordo interpretar essa ameaça dentro dos horizontes
da concepção instrumental e antropológica da técnica, ou seja, como
um conjunto de meios para alcançar uma atividade, mas cujo
estabelecimento dos meios é, em última instância, uma atividade
humana 16. Sob o poder do homem, estaria a técnica. Em última
instância, dependeria do arbítrio humano em pô-la a serviço de causas
nobres ou utilizá-la para a destruição planetária. No final, essa
compreensão reafirma a técnica como uma criação do homem e
também o paradigma metafísico do ser humano como sujeito e esse,
historicamente, apresenta-se na figura do senhor de todas as coisas.
Nesse modo de pensar, todo esforço, portanto, para garantir o justo
relacionamento com a técnica, consiste em colocá-la sob o domínio do
homem 17. Se o controle da técnica escapa ao homem, nessa direção, a
questão se reduz ao como reconduzi-la ao seu domínio, restaurando o
seu poder. A técnica, enquanto criação do homem, deve obedecer aos
16
A determinação da essência da técnica a partir da compreensão instrumental provém
do estágio último da história da metafísica, em que ocorre um progressivo abandono do
ser como tal a favor de uma antropomorficação do fundamento de todo o real,
consolidando o paradigma metafísico da subjetividade, característica da época moderna.
Desde essa época, o homem moderno se reconhece “como senhor de todas as coisas”
(Heidegger, 1995, p. 641-646; 1960a, p. 82-83).
17
Heidegger, 2002e, p. 11-12.
99
Filosofia com Poesia
seus ditames. E parece ser a essa ideia que o poeta nos remete, quando
diz:
A máquina ameaça tudo que se conquistou,
Ao pretender estar no espírito e não na obediência.
Lendo desse modo a palavra do poeta, apressadamente
concluímos que a técnica arrisca nossa existência porque não está sob
nosso comando, isto é, na obediência. Transformando o dito poético
num dito filosófico, assim, poderíamos dizer: a máquina, a essência da
técnica, ameaça tudo que se conquistou, ao pretender estar no espírito
e não sob o controle do homem. Mas não dissemos nós, ao reafirmar a
compreensão instrumental e antropológica da técnica, que a questão
central não seria administrar a técnica com “novo espírito”? Não é quase
unânime que isso impedira um senhorio dela sobre nós, garantindo com
eficácia que sejamos nós os justos senhores da técnica, uma vez que é
um instrumento gerado por nós? O poeta, porém, diz que é justamente
quando a máquina está no espírito que é fonte de ameaças. O que quer
dizer o poeta ao enunciar a palavra espírito? Será que bem ouvimos o
dito poético, quando assim o interpretamos? Certamente não. E não
apenas porque caímos nós mesmos numa contradição lógica ao
interpretar mal o dito poético, mas principalmente porque não somos
capazes de pensar, por vias de categorias antropológicas e do caráter
instrumental da técnica, a própria essência 18 da técnica. E, enquanto
18
Essência não é pensada metafisicamente, ou seja, como generalidade abstrata de várias
espécies em concreto. Mas sim como aquilo que faz o fenômeno da técnica moderna
100
Filosofia com Poesia
não for determinada a essência da técnica, não passa de um clichê
atribuir à técnica o perigo de uma dominação planetária ou um poder
demoníaco. O caminho que tomamos nos obriga, então, a perguntar:
qual a essência da técnica?
Supondo, portanto, que a técnica não seja apenas um conjunto
instrumental, o inofensivo meio para diversas atividades humanas, a
essência da técnica, certamente, não possui nada de técnico 19. Como
indica a etimologia, a técnica moderna possui suas raízes no antigo
saber artesanal dos gregos, a τέχνη Com essa palavra, os gregos
designavam todo processo artesanal de produção das coisas; no seu
vasto campo semântico, incluíam as belas-artes. Τέχνη pode também
ser traduzida por arte, como quando séculos atrás o termo fora vertido
para vernáculo latino (ars, artis), mas com o cuidado de não reduzir
essa compreensão ao setor da cultura e da estética, tal como se percebe
a situação da arte hoje. Arte, para os gregos, era todo fazer humano
que conduzia o ente à luz no modo artesanal, mas era sobretudo um
modo de conhecimento. Ela é o saber de um perito experimentado no
produzir artesanal, na arte de fazer surgir os entes que não podem vir
à tona por eles mesmos. Desse modo, é uma das disposições criadoras
da existência humana, pelas quais os homens deixam surgir o seu
perdurar, isto é, como ela se mostra e permanece como doação de sua determinação ou
proveniência originária (Heidegger, 2002e, p. 32-34).
19
Heidegger, 2002e, p. 11.
101
Filosofia com Poesia
mundo histórico mediante a produção das coisas a ele pertinentes.
Definindo o âmbito epistemológico da τέχνη, Aristóteles 20 esclarece:
Como não há nenhuma perícia (τέχνη) que não seja também uma
disposição produtora conformada por um princípio racional
(µετά λόγου ἀλητοῠσ ποιητική), nem há sequer nenhuma disposição
desse gênero que não seja ela própria uma perícia, segue-se que a
perícia é o mesmo que uma disposição produtora segundo um
princípio verdadeiro. Por outro lado, toda a perícia tem em vista
trazer algo à existência. Produzir com perícia significa ver como se
pode produzir alguma das coisas que podem ser ou não ser. O seu
princípio originador radica no elemento produtor (ἡ ἀρχὴ
ἐν τῷ ποιοῡντι) e não na coisa que é produzida. Pois, na verdade, não
há nenhuma perícia que se aplique aos entes que são ou vêm a ser
por uma necessidade intrínseca, nem aos entes que existem por
natureza (κατὰ φύσιν).
Segundo
essa
antiga
compreensão,
como
testemunha
Aristóteles, a arte é então o “processo” pro-dutor (dito em grego, a
poíesis, ποίησις, que tem sua origem (ἀρχὴ no homem, precisamente,
na disposição criadora de sua existência. Graças a essa disposição, ele é
capaz de trazer o ente à vigência (αληθευειν). Assim fazendo, o
homem produz, “faz poesia”, justamente por meio da técnica, se
lêssemos o termo τέχνη literalmente. Para evitar o risco desviante
dessa leitura ou tradução literal, é preciso lembrar que o significado da
τέχνη não reside em processos técnico-operacionais, mas sim se
encontra no plano de realização de tudo que é, portanto, ontológico.
20
2009, p. 132, 1140a 9-16.
102
Filosofia com Poesia
Desse modo, τέχνη nomeia a capacidade humana de conduzir o ente
à sua verdade (αλήθεια); é um modo de desvelá-lo (ἀληνθεύειν) no
seu ser e, nisso, de dizer a sua verdade por meio de um “saber-fazer”.
Porém, isso se faz mediante algo que é tipicamente humano, isto é, em
virtude da propriedade que, para os gregos e a tradição ocidental,
caracteriza o homem na sua essência, o λόγος. Por lógos, não se
entende aqui simplesmente uma habilidade lógica, a capacidade de
induzir e deduzir conclusões corretas, mas sim um poder discursar o
mundo, deixar emergi-lo por meio de um auscultar e recolher o sentido
daquilo que surge por si mesmo (κατὰ φύσιν) ou daquilo que só vem
a ser por meio da colaboração humana, conduzindo à realização das
possibilidades daquilo que não se desvela por necessidade intrínseca.
Assim, a arte é um modo de discursar o mundo, colaborando com o
desvelamento dos entes que nele podem se apresentar com a ajuda da
mão humana, precisamente, do pro-duzir (ποιέω) em sua amplíssima
envergadura. Tal produzir discursivo do mundo abrange, por exemplo,
o fazer, o fabricar coisas de uso, utensílios, instrumentos, o cultivar, o
construir, o promover o bem-estar da saúde, mas também criar obras
de arte. É toda forma de gerar ou de dar origem que tem no humano
o seu princípio. A arte enquanto τέχνη, então, é só um dos modos que
a existência humana dispõe para construir o mundo, distinta das demais
por ser essencialmente referida àquilo que é deveniente, aos entes que
podem ser ou que guardam em si determinada latência de nele se
103
Filosofia com Poesia
(a)presentarem na sua verdade, mas não a manifestam nem a
consumam por si mesmos.
Para colaborar com esse (a)presentar-se do ente que está a
caminho do seu ser, de revelação de sua verdade, a arte deve ser
também caracterizada como conhecimento, melhor, como modalidade
de saber, próprio do “fazer” ou do “poematizar”, isto é, de todas aquelas
atividades que trazem à luz o real. A τέχνη é uma forma epistémica
do lógos desencobrir o ente na sua verdade 21. Por isso, a técnica grega
se dá µετά λόγου ἀλητοῠσ ποιητική 22. Ressaltamos a expressão
µετά λόγου. E ela diz: em conformidade com o lógos, segundo um
princípio “racional” de um saber específico da ποίησις e relativo às
coisas que estão em transformação. Por conseguinte, por meio de uma
ἐπιστήµη, “ciência”. Mas que tipo de episteme? Trata-se daquela
perícia que sabe desvelar o real que não pode vir à luz por si mesmo,
conduzindo-o a vigência a partir daquilo que propõe em si mesmo, isto
é, do saber ciente não só de seu inerente potencial de realização, mas
também de como trazê-lo à luz de modo que a sua realização seja
consonante à força e às tendências pertencentes à sua potência de vir
a ser. A arte não forja, sua ciência é desencobrir. Simplesmente, ela
deixa ser, porque só realiza certas possibilidades de ser, determinadas
potencialidades de realizações que já pertencem ao produzível, antes
mesmo do toque da mão humana — o que pressupõe um saber muito
21
22
Heidegger, 2002e, p. 17.
Aristóteles, 1962, 1140a 20-21, p. 117.
104
Filosofia com Poesia
peculiar de vê-las, prevê-las e encaminhá-las à consumação que não
coaduna com o inventar por meio do idealizar, planejar, controlar
processos, fazer surgir enquanto fabricação, enfim, numa só palavra,
maquinar. O saber da τέχνη, portanto, é um (fazer) ver capaz de
descobrir sentidos de ser, seja enquanto algo latente ou certa
possibilidade que pulsa por vir à luz, como aparência plenamente
manifesta na obra acabada, mas que só se tornou patente por graça da
mão ou fazer humano. Por isso, a técnica grega ou arte pertence ao
reino da criação, da ποίησις, que sem dúvidas é um modo de produzir, mas não no sentido do fabricar moderno, mas naquele em que o
artista ou artesão produz na medida em que se põe a favor (pro-)
daquilo que é conduzido à aparência 23.
Em base da concepção acima acenada, é-nos dado dizer que a
técnica grega é essencialmente poética (ποιητική, jamais maquinal.
Portanto, a arte é o saber pelo qual o homem responde pelo e ao real
de modo poético. E aqui já podemos acenar que, originariamente, a
relação do homem com o ente na sua totalidade é poesia (Dichtung),
no sentido que, existindo, o homem co-responde ao ente na sua
totalidade, fazendo nascer o mundo, gerando o real em mil
possibilidades a partir do que o ente doa de si mesmo. Sua relação
originária com o ente é poética, portanto, quando não domina o ente
com uma medida previamente determinada, mas nele acolhe com
Note que, na raiz das palavras produção e produzir, há o verbo latino ductere que é
justamente o ato de conduzir, guiar, levar.
23
105
Filosofia com Poesia
benevolência os apelos do ser 24. Diante desse ganho provisório,
perguntemos se a técnica moderna ainda é um modo poético de habitar
o todo, responder pelo real. Será que o seu modo maquinal de produzir
guarda algo de poético? Com isso, abriremos um caminho para
interpretar o dito poético, que nos diz que máquina ameaça justamente
quando pretende estar no espírito.
Haveria ainda poesia na técnica moderna? Técnica domo desvelamento
exploratório
Segundo a conceção grega, a origem, ἀρχὴ, encontra-se no
elemento produtor. Disso concluímos, o homem é o princípio de tudo
que vem à luz pela arte. De fato, ele e a causa eficiente de toda
produção, embora não seja a única. Com isso, não estaríamos a dizer
que a arte seria um instrumento a serviço do domínio do homem? Não
haveria uma contradição com o anteriormente dito? Se não há, qual a
diferença, então, da arte dos gregos com a moderna técnica? A resposta
a
essa
pergunta,
paradoxalmente,
depende
de
determinar
primeiramente o que elas possuem em comum, o que as mantém
essencial e historicamente interligadas. Somente depois seremos
capazes de determinar o que as separa, identificar com rigor o elemento
que estabelece um fosso no seio da mútua pertença histórica entre
τέχνη e técnica moderna. Também a técnica moderna é uma forma
de descobrimento e, assim como a τέχνη, possui sua dimensão
24
Heidegger, 2002, p. 178-180.
106
Filosofia com Poesia
essencial nessa capacidade humana de pôr algo em desencoberto, isto
é, no âmbito da verdade 25. Desse modo, a moderna técnica é igualmente
uma forma de desvelamento que desencobre possibilidades de ser, que
consuma potencialidades de realizações (ἀληνθεύειν). Contudo, uma
transformação decisiva acontece na técnica moderna: ela perde sua
relação primitiva com a ποίησις e, assim, se configura como
desencobrimento
que
rege
um
processo
de
exploração
(Herausforderung). Tudo que entra sob o domínio do homem, por meio
da técnica moderna, se torna algo a ser explorado em sua energia, a
qual é destinada a ser armazenada, processada e, por fim, distribuída 26.
Assim, a técnica abre o ente pela força dos métodos de exploração
planejados e controlados e ex-põe todo o real como fonte de energia.
Desse modo, ela não deixa o ente, à medida que o desencobrimento
peculiar ao abrir explorador-expositor o atingiu, vigorar a partir de si
mesmo.
Nessa transformação, está em questão uma predeterminação do
modo de ser do ente naquilo que é ou pode ser, no seu ser, pois ele
pode comparecer no mundo senão se admitido de antemão como uma
fonte de energia, exclusivamente no modo de ser e de comportar-se,
previstos e planificado pelo homem, que o predispõe para os fluxos da
produção técnica. O caráter maquinal da técnica moderna tem raízes
ontológicas, não tão somente razões operacionais, pragmáticas. Do
início ao fim, pois, o ente deve ser aquilo que o prende nesses processos
25
26
Heidegger, 2002e, p. 18.
Heidegger, 2002e, p. 19.
107
Filosofia com Poesia
produtivos, deve responder às metas impostas por tais fluxos. Por isso,
o que está sendo passa a aparecer no mundo humano tão somente
como um dispositivo, algo disponível para o uso, reuso, para ser
integrado nos mecanismos de processamentos e consumo. É assim que
cada dispositivo deve estar disponível numa intricada rede de
processamentos, compondo um conjunto de dispositivos expostos a
favor da exploração. Um rio, por exemplo, vigora como dispositivo de
energia a ser explorada das forças de suas águas e, depois de processada,
armazenada, deve estar à disposição de inumeráveis processos de
distribuição interligados até que seja utilizada e reprocessada nas
fábricas e residências. O rio não é mais ele mesmo, assim como o rio
que, por exemplo, aparece na experiência cotidiana das populações
ribeirinhas ou do poeta, quando canta: “O rio da minha aldeia não faz
pensar em nada. Quem está ao pé dele está só ao pé dele” 27. Ao
contrário, suas águas estão “pensadas” para a produção de energia e,
assim, dispostas para usina; esta e seu produto, por sua vez, para a
fábrica e assim por diante, estabelecendo-se uma armação 28 exploratória
que inclui todos os entes na rede e tudo reúne sob o signo da
27
Pessoa, s/d, p. 31.
Para indicar esse fenômeno, que Heidegger aponta como a essência da técnica, esse
pensador utiliza a expressão Gestell, mostrando que ela é como uma armação originária
que reúne o homem numa força que o leva “dis-por do que se des-encobre como disponibilidade” (Heidegger, 2002e, p. 23) dentro de uma con-juntura de entes (dis)postos
como dis-positivos”. Por isso, Carneiro Leão traduz esse termo do vocabulário
heideggeriano como com-posição. Na descrição do fenômeno, é importante notar a
predominância do verbo pôr (stellen) para indicar o modo como os entes vigoram e são
desencobertos na técnica moderna. Consequentemente, as palavras dispositivo e
disponibilidade não devem ser pensadas na direção de uma mera instrumentalidade.
28
108
Filosofia com Poesia
disponibilidade. O mundo humano é, desde o deslocamento da técnica
do horizonte da ποίησις, a composição de dispositivos consumíveis.
Nenhum ente escapa dessa rede exploratória e dispositiva.
Também o ser humano é nela envolvido, à medida que ele
historicamente afirma-se, também no seu ser, isto é, compreende o
sentido do seu existir em ser o único ente que pode responder pelo
real. E ele o faz, a partir da modernidade, mediante o poder explorador
e forjador da técnica, então, conquanto consente ao apelo desse poder,
impondo-o como o único para toda a forma de produzir. Assim, porém,
também o homem é posto e disposto por esse poder, é integrado como
elemento a mais nas relações da armação e obedece às convocações
pelas quais a técnica se impõe em toda parte e instante, num domínio
global. Nesse sentido, explorar não é apenas extrair da natureza sua
força, mas o acontecimento que envolve o homem em seu ser e agir. É
que, na sua essência, o explorar (herausfordern) não é uma mera
atividade extrativa, mas sim a resposta do ser humano, em todas as vias
de realização da sua existência, ao apelo de um pretensioso poder, a
saber, aquele de pôr (stellen) por nós mesmos o real na sua realidade,
abarcando-o na sua totalidade, o que exige e impõe que o real e nós
mesmos vigoremos a partir da determinação ou categoria da
disponibilidade (Bestand), aliás, no interior de uma rede intricada de
processamento dos dispositivos (Bestellung). Enfim, com a emergência
da técnica moderna, o relacionamento do homem com o ente na sua
totalidade, há muito deixou de ser poético. Ele é, hoje, extremamente
maquinal. Mas se esse maquinal é um modo de ser que preserva suas
109
Filosofia com Poesia
raízes no desvelamento, talvez ele possa nos reconduzir à experiência
poética de habitar, se o experienciarmos a partir da sua oculta origem.
Mas isso é algo que não podemos avaliar aqui e, talvez, ainda não
sejamos capazes no atual momento histórico de fazer tal avaliação com
radical decisão. Por certo, é nisso que o poeta está a nos antecipar. Por
isso, retornemos ao dito.
Como se vê, a essência da técnica moderna não é nada de
ingênuo ou um inofensivo utilizar dos instrumentos técnicos para a
realização de atividades humanas. Também não é um conjunto de
instrumentos perigosos, a ser manejado com precauções, já que, vezes
ou outra, pode escapar ou drasticamente já se subtraiu ao controle
humano. O perigo e aparente inocuidade da técnica é de outra ordem.
É que a sua essência é capaz de pôr em jogo, de maneira decisiva, o
modo do homem ser junto ao real no seu todo. Só o humano pode ser
junto ao todo, tê-lo por familiar, então, habitar uns com os outros a
vastidão da terra e dos céus. Por isso, a técnica não apenas põe em risco
o viger das coisas, mas, sobretudo, a existência humana. Certamente,
por essa razão que, cantando, nos diz o poeta:
A máquina ameaça tudo que se conquistou,
Ao pretender estar no espírito e não na obediência.
A máquina ameaça e nós a tomamos como um aceno do
universo da técnica. Por isso, a técnica ameaça quando está no espírito
humano e não sob a obediência do homem. Na verdade, como acenado,
se analisamos a técnica desde a nossa essência histórica e o seu papel
110
Filosofia com Poesia
no destino da humanidade europeia, é o homem que está a existir
obediente à técnica, na medida que ela se tornou o sentido de realização
da sua existência. E isso porque, no dizer do poeta, a máquina pretende
se instalar no espírito humano. Como entender essa afirmação
enigmática? Certamente, ao espírito o poeta não opõe o material, caindo
numa compreensão dualista de espírito. Espírito, que em alemão se diz
Geist, no sentido originário, é aquilo que toma o homem, deixando-o
fora de si, entusiasmado 29. É válido compreender o espírito no sentido
de πνευµα, o que seria uma interpretação antropológica-cristã para
espírito. No entanto, sigamos a pista dada acima acerca do espírito, que
direciona para uma experiência de ser tomado por acontecimento
extasiante. Geist teria seu correspondente na língua grega no termo que
remete para um estar entusiasmado, com a conotação de estar
arrebatado por uma inspiração ou por um furor divino —
ἐνθουσιάζω. Ora, a técnica ameaça quando arrebata o homem e isso
porque, em sua essência, por ser desencobrimento que explora, não se
reduz ao mero feito do homem. Em última análise, não é o homem que
toma a técnica em suas mãos, mas, ao manipular a técnica, já sempre
respondeu ao apelo emitido pela técnica, fazendo-o recolher seu ser à
disposição que tudo ex-põe ao modo de dis-positivo 30. A técnica não
desafia e ex-põe somente as coisas que nos rodeiam, mas desafia
também ao homem, pois é um destino preparado ao longo da história,
29
30
Heidegger, 2003a, p. 49-50.
Heidegger, 2002e, p. 23.
111
Filosofia com Poesia
desde os primórdios da idade moderna 31, que interpela o homem a
apenas cultivar o mundo sob o domínio da exploração, em vista de
assegurar tudo com fonte de reserva. Sobretudo, ela apela o homem no
seu ser, pois o convoca a assegurar-se de si mesmo, a desdobrar as
consequências da decisão de pôr a si mesmo como fundamento e causa
última de tudo que é. Assim, o traço fundamental do desencobrimento
da técnica moderna é o controle e a segurança 32. Ao pôr em obra sua
existência
dentro
dessa
busca
desenfreada
de
controle
e
autoasseguramento, o homem se entrega livremente ao poder do
desencobrimento explorador, sem que o perceba. A técnica toma o
homem, remete-o para “fora” de sua essência, arrebata para um existir
em que se vela estar ele mesmo dis-posto ao poder do desencobrimento
31
A história do Ocidente, na fenomenologia de Heidegger, se determina a partir da
história do Ser, pois cada época histórica se configura sob o fundamento que é a doação
de um sentido da verdade do ser. Ao longo da tradição, a metafísica a conceituou como
ἶδέα, ἐνέργεια, actualitas, subjectum, cogito, sujeito absoluto, sujeito transcendental,
Vida, vontade de potência e, por fim, a técnica. Assim, a história do Ocidente se confunde
com as mutações da essência da verdade que são acontecimentos epocais, ou seja,
determinações do ser (Heidegger, 1995, p. 863-910). Para compreender a técnica, em
seu domínio planetário, é importante ressaltar que é ela a consumação da determinação
da verdade como certeza de um sujeito representador, inaugurada por Descartes no
início da idade moderna. A época moderna somente é possível à medida que o homem,
enquanto sujeito, assegura em si e exclusivamente a partir de si a certeza de si mesmo,
do objeto representado e do ato representador, impondo-se como fundamentum
inconcussum, isto é, fundamento inabalável de tudo que é (Heidegger, 1960a, p. 81-82,
93-98; 1995, 651-673). É nesse sentido do autoasseguramento prévio da verdade como
certitude que a época moderna pode solicitar as ciências matemáticas e exatas da
natureza. A essência das ciências modernas, demonstra Heidegger (1960a, p. 68-75), é a
previsão e o estabelecimento de um campo epistêmico que enquadra e padroniza o real
investigado, fixando de antemão uma explicação do que é o ser do ente. Esse
acontecimento epocal que assegura a partir do sujeito representador a certeza prévia e,
por isso, permite a exatidão e o controle do real, terá sua máxima expressão na técnica
moderna.
32
Heidegger, 2002e, p. 20.
112
Filosofia com Poesia
explorador. A técnica o entusiasma, não no sentido que lhe causa uma
vivência psicológica de encanto. Mas sim, ontologicamente, na direção
abre sua existência e o põe numa relação maquinal com tudo que é,
incluindo a si mesmo. Ela é o que perfaz a ex-sistência do homem
moderno, guia a sua abertura e manifestação da sua in-sistência na sua
histórica possibilidade de existir no mundo com os outros, habitando o
imensurável da terra e dos céus. Até os dias de hoje, guiando a abertura
de nossa existência, desde o arrebatamento da mais íntima e própria
possibilidade de sermos nós mesmos, que a máquina pretende e
consegue exitosamente morar no espírito humano. É esse o perigo!
Não se trata de um perigo qualquer, mas do perigo por
excelência. É justamente esse acontecimento que atualmente se doa
como a essência do homem moderno, cuja consumação nos destina à
essência da técnica: o impor-se incondicionado do homem sobre todo
o real. O homem moderno não é alguém que está simplesmente junto
às coisas, mas um sujeito de querer que só quer sua vontade como
fundamento de todo o real 33. Para tanto, o homem moderno, de início,
toma o mundo como conjunto de objetos, diante dos quais se coloca
para obrigá-los ao poder de sua vontade incondicionada, até que, por
fim, tudo perde sua determinação de objeto e adquire o caráter de
dispositivo — projeto em que as ciências exatas da natureza possuem
um papel essencial. A técnica moderna alcançou o seu êxito não
somente porque a física moderna lhe preparou o caminho, mas porque
33
Heidegger, 1960b, p. 238-239.
113
Filosofia com Poesia
as ciências exatas nas suas origens com a física moderna já operavam
na essência ainda incógnita e não realizada da técnica 34. Para utilizar as
palavras da poesia de Rilke, o perigo consiste em retirar o homem da
“vida”, “do aberto”, “da natureza”, “da relação completa”, nomes para
aquilo que o pensamento chama de o ente em sua totalidade 35. O
perigo, então, mostra-se plenamente quando o acontecimento do ser
pelo qual decidimos nos tornar sujeito e morar junto a objetos chega
ao apogeu, a saber, quando o estar-junto-às-coisas de nossa existência
já se realiza senão de modo maquinal, bloqueando para nós mesmos o
caminho para uma relação originária com o ente na sua totalidade.
Para que a hesitação magnífica da mão já não resplandeça mais bela,
Talha a pedra com maior dureza para uma construção mais ousada.
Em lugar nenhum fica para trás, assim nunca lhe escapamos
E, lubrificada na fábrica silenciosa, ela se pertence a si mesma.
É a vida, — ela pretende o maior poder,
Com igual decisão ordena, cria e destrói.
A vida é, porém, mais forte que a vontade impositora do homem;
sua força é o recolher-se diante de qualquer pretensão de imposição
humana, protegendo-se. Ela cria, mas também, ao se ausentar, desvigora
o vivente. Não fica para trás ao retirar-se, pois pertence a si mesma.
Mesmo assim, recolhida no seu ausentar-se, também nos envolve, pois
é desse modo que é a “vida”, o todo na unidade do ser, em si mesma é
presente. Com efeito, seu mistério é que está presente no seu encobrir34
35
Heidegger, 2002e, p.25.
Heidegger, 1960b, p. 248.
114
Filosofia com Poesia
se. Nesse acontecimento, vigora o paradoxo, o contraste que nos
provoca ao pensamento e à poesia. Igualmente paradoxal é a situação
da existência humana nos tempos de domínio da técnica. Ora, existindo
segundo os ditames daquela vontade, o homem acolhe um sentido que
se doa no “aberto” e para sustenta-lo na sua abertura. O sentido provém
do ser. Porém, o que dele recebe já não é o mais originário. Pois aquele
que se impõe pelo emprego da técnica (na verdade, como empregado
ou funcionário da técnica) necessariamente tem que recorrer à
objetivação para construir o seu mundo. Por força dessa objetivação, o
mundo se separa da “relação completa”, do todo que reúne e referencia
os entes entre si na unidade do ser. Com mais rigor, o homem
livremente se afasta da possibilidade da correspondência ao ente como
tal, no desvelamento de sua verdade. Dessa abertura do ente no seu
todo, ele se desvia, mas para se voltar contra ela. Como dito, o espírito
é o lance “para fora”, pelo qual a existência se abre e eleva seu mundo.
Orientado pela máquina, nomeação poética para essência da técnica,
esse lance não é mais a favor da “vida” em si mesma, da “natureza”, do
“aberto”, o todo de relações que envolve cada ente — numa palavra,
em termos heideggerianos, a clareira do ser — mas sim uma obliteração
para assentar e alargar abertura da existência na amplitude dessa
clareira. A essência da técnica, então, reside no apelo de um poder pelo
qual o homem se afasta e se contrapõe à origem. Não só se opõe, pois
sua oposição é ao modo do sujeito moderno que se erige mediante a
contraposição ao ente, à origem que nele retraída e silenciosamente
vigora, para objetivá-los. Sua existência não é mais encantada, não há
115
Filosofia com Poesia
mais entusiasmo e arroubo provindos da origem; já não lhe atrai a
“fábrica silenciosa da vida”. E se essa retração silenciosa de uma vigência
onipresente é o que ainda provoca o pensamento e a poesia, vive-se na
nossa época, mesmo que abundante seja a produção filosófica e literária,
de rara poesia e pensamento.
Entretanto, de um modo ou de outro, o homem já está sempre
jogado no jogo da “vida”. Mesmo nos afastando do “aberto”, somos por
ele afetados; desviando-nos do aberto, somos por ele enviados na
realização de nossa existência. Nunca lhe escapamos; no seu abrir
silencioso, nos envolve, nos impele a uma abertura da existência que
deixa ser os entes, mesmo no modo precário da disponibilidade. Isso
quer dizer que, no aberto, o homem, a todo tempo, em qualquer época
histórica, está situado; desde a técnica moderna, porém, ele impediu o
caminho para uma relação genuína com o aberto em que sempre já
tomou parte. Em resumo, no maior dos riscos, na plenitude da
realização da essência da técnica, o homem se divorcia do “aberto” para
se voltar contra o “aberto” 36. Contudo, mesmo jogado fora de sua
essência, o homem a realiza de outro modo, a saber, num deslocamento
que o desloca, pela imposição deliberada, do meio desocultador de
qualquer ente. Totalmente deslocado, toma todo o real dentro da
“lógica” da disponibilidade; no extremo do perigo, interpreta o sentido
do ser do ente no horizonte do dispositivo e constrói um mundo
inabitável, pois constituído por um depósito de objetos, uma armação
36
Heidegger, 1960b, p. 242.
116
Filosofia com Poesia
de recursos disponíveis à exploração. Nessa realização deslocada de sua
essência, a existência-no-mundo, o homem arvora-se na figura de
senhor de todas as coisas 37.
Ao âmbito do “aberto”, porém, pertence originariamente o
homem. É ele ser-junto-às-coisas, porque de um modo ou outro o
espírito (no sentido de lance “para fora”, do extasiar da existência) já
correspondeu ao aberto do ser, deixando os entes se manifestarem.
Também nos tempos da técnica, sua existência tomou parte na “fábrica
silenciosa” da “vida”. Mas essa pertença hodiernamente se realiza ao
modo (contrap)oposição impositora. De modo originário, alerta o poeta,
esse pertencer só poderá quiçá consumar-se pela escuta acolhedora da
novidade que ainda pode brotar das profundezas dessa situação de
decadência do humano:
Escutas, senhor, o novo
Que treme e ressoa?
Chegam arautos
Que se levantam
É verdade, nenhuma escuta
Está a salvo numa algazarra sem fim,
Todavia a máquina
Exige ser agora ser louvada.
Vê, a máquina:
Como ela rola e se vinga,
Nos desfigura e enfraquece.
37
Heidegger, 2002e, p. 29.
117
Filosofia com Poesia
Mesmo retirando de nós sua força,
Que ela, sem perdão,
Empurre e sirva 38.
A máquina destrói; desfigura e enfraquece o vigor de nossa
existência. Porém, no soneto acima exige que seja louvada. Otimismo
do poeta frente ao poder destruidor da essência da técnica? Em nenhum
verso é afirmado que a máquina é a força salvadora de nossa condição.
Ao contrário, dela se diz que sem perdão retira de nós toda a sua força;
ela desfigura a nossa essência. Todavia, pergunta a cada um de nós, se
escutamos a novidade que treme e ressoa diante dos nossos ouvidos.
Assim, perguntando, acaba por dizer que, nos meandros da dominação
absoluta da técnica, nos tempos de nossa indigência, levanta-se a
possibilidade de uma verdade inaugural e inaudita, a qual só se poderá
se instaurar na escuta do silêncio. Como diz no primeiro poema dos
Sonetos a Orfeu, no silêncio, acontece uma escuta capaz de fazer nascer
“novo princípio, gesto e transformação” 39. Certamente, por essa razão,
disse-nos anteriormente que a máquina tudo destrói justamente por
não estar na obediência. Nesse verso, a palavra alemã usada pelo poeta
é o substantivo Gehorchen, que na sua forma verbal (gehorchen) diz
obedecer a...; muito próximo ao verbo gehören, ser de..., pertencer a...
Ambos os verbos se remetem ao verbo hören, escutar, e são
acompanhados do prefixo ge-, que indica a força de reunião em uma
unidade. Com isso se acena que a obediência é o recolhimento na
38
39
Rilke, 2005, p. 55, parte I, 18.
Rilke, 2005, p. 21, parte I, 1.
118
Filosofia com Poesia
pertença ao uno no vigor da escuta. E, por isso, originariamente, pôr a
máquina sob nossa obediência nada tem a ver com aquele fazer
obedecer que é mando de uma vontade que se impõe. O poeta não
defende com otimismo que a nossa salvação do poder destruidor da
técnica reside na retomada de nosso senhorio sobre ela. Mas qual seria
a salvação do perigo da dominação da essência da técnica que a
máquina representa?
Deixemos que o poeta nos ajude a responder essa pergunta.
Antes de tudo ele nos convida a escutar. Escutar o quê? O novo, o
inaudito, que poderá ser germe de transformação que se doa em meio
ao afã de uma algazarra. O mundo em tempos da técnica é
demasiadamente ruidoso, pois tudo deve ser conseguido, fabricado por
meio de agenciamentos de um espírito regido pela máquina; quando o
modo realização da existência é somente maquinal, o espírito se reduz
à razão que tudo agencia pelo cálculo. No jogo das maquinações, há
pouca ou nenhuma capacidade de ouvir “um jogo de forças / Puras, que
ninguém toca, senão de joelhos e com admiração”. Surdo para as forças
inauditas da “vida” é o existir maquinal. Com toda certeza, para essa
situação de extrema surdez nos impele justamente a máquina. Mas o
poeta espera que ela nos empurre e nos ponha a serviço da escuta da
antiga novidade das origens, que silenciosamente “treme e ressoa”. Mas
como? Como podemos escutar se já perdemos os ouvidos para
acontecimento tão inaugural? Por outro lado, é esse acontecimento de
novo princípio que primeiramente nos deve atingir, em acenos de
arautos de sua chegada, rompendo nossa surdez, para que possamos
119
Filosofia com Poesia
ouvi-lo. Estamos de novo no meio de um paradoxo, na luta dos
contrários inseparáveis. E paradoxos não se resolvem senão se nos
jogamos para o centro de seu contraste, para sustentar o seu conflito
interno. Assim, o que temos para escutar com os nossos ouvidos inábeis
para ausculta dos gestos mensageiros do acontecimento de novo
princípio? Só temos nossa surdez e o desencanto que dela surge. Mas
esta surdez, apesar de extremamente empobrecido, é o modo pelo qual
ainda escutamos. Com efeito, por meio dela escutamos os apelos da
técnica, que estão silenciosos no meio de estrondosa algazarra. Então,
essa indigência, o fato de não mais escutarmos, é tudo que tempos e,
certamente, poderá nos ensinar a fazer de nossos ouvidos “um templo
da escuta” 40. Essa pobreza é a única via de fato para recobrar a riqueza
do espírito. Como nos ensina outro grande poeta:
Concentra-se-nos tudo no espiritual, ficámos pobres para chegar a
ser ricos 41.
Pensando os nossos afastamentos, pelos quais nos contrapomos
e opomos à origem, oxalá dela poderemos de novo dela nos
aproximarmos. O desafio é concentrarmo-nos numa ausculta sem par
nos movimentos de nosso espírito empobrecido, de nossa existência que
perdeu o centro arrebatador, ao afastar-se da origem. Desse modo,
escutando as profundezas da periculosa situação em que se encontra
nossa existência, se for verdade o que diz o poeta, podemos outra vez
40
41
Rilke, 2005, p. 21.
Hölderlin apud Heidegger, 2012, p. 227.
120
Filosofia com Poesia
pensar o sentido, que se mantém velado atualmente a nós, mas que, na
certa, poderá nos fazer retomar o caminho da experiência originária do
existir. Escutando assim, pensaremos outro modo de desencobrir o real,
apartando-nos do veto que a técnica nos impõe de não perceber outros
modos de surgir e aparecer daquilo que está sendo. Mas não
simplesmente isso, mas também nossa pertença essencial a todo e
qualquer envio descobridor, pois, como tais, somos apropriados pelo
descobrimento que desvela a verdade do real, somos tomados pela
apropriação da verdade 42. Isso quer dizer que nossa existência pertence
essencialmente a esse âmbito do aberto que, em si mesmo, não é nada
manipulável ou planificável. Rilke o experimenta, ainda em sua
linguagem metafísica, como o totalmente inobjetivado da “natureza” 43,
mais propriamente, como o “centro inaudito” 44, em que todo ente se
ilumina. Escutando o ainda não escutado, pensando o ainda não
pensado, poderemos ir ao encontro do que ainda poderá nos salvar:
existir poeticamente. Nossa situação histórica, portanto, está perante
uma bifurcação, “no cruzamento de dois caminhos do coração” (Rilke,
2005, p. 25, parte I, 3); estamos em uma encruzilhada que nos urge
perguntar o mais decisivo: qual o sentido de nosso existir?
O sentido lhe é bifurcação. No cruzamento de dois
Caminhos do coração, nenhum templo se ergue para Apolo.
42
Heidegger, 2002e, p. 34.
Heidegger, 1960b, p. 240.
44
Rilke, 2005 p. 127, parte II, 28. die unerhörte Mitte. Note, outra vez, a presença do
mesmo radical do verbo hören, escutar.
43
121
Filosofia com Poesia
[...]
Cantar é existir. Para um deus, muito fácil.
Mas nós, quando é que existimos?
Poesia, a linguagem da existência
Dissemos que estamos diante de um caminho bifurcado. São
duas as direções que poderemos tomar, dependendo daquilo que, na
escuta, consentirmos: ou o impor-se ao real ou o voltar para o “aberto”
em sua abertura mais ampla e primordial. Ambas as direções pertencem
ao coração. Deve-se, porém, cuidar para não dar ao coração o
significado de centro das vivências intrassubjetivas e particulares. De
fato, essa expressão nos remete para o interior e o invisível que há no
humano, mas não é uma mera oposição à visível concreção (ao modo
de efetividade) dos objetos exteriores. Em sua realidade própria, o
coração possui sua abertura, visibilidade e concretude. É ele a
profundeza desconhecida da “consciência”, mas isso não quer dizer que
seja o inconsciente. Antes, é o saber que nos faz originariamente cientes
de nós mesmos como existentes e pertencentes à terra como mortais,
junto às coisas. Num sentido ainda indeterminado, tomemos o coração
como o interno e invisível de nossa consciência e, assim, talvez veremos,
porém, que é o centro mais primordial da existência humana e anterior
a qualquer consciência de algo.
Ambas as direções pertencem ao coração, mas a passagem da
primeira para segunda opera uma inversão no interior de nossa
122
Filosofia com Poesia
consciência 45. Por quê? A primeira possibilidade — a imposição como
poder que põe o real na sua realidade, o ente no seu ser — é aquela
que nos põe no caminho de realização de nossa existência como vontade
avassaladora. Em última instância, esse modo de existir se assenta no
fundamento da consciência objetivante e planificadora de todo o real.
Como tal, somente nos poderá levar, nos termos da metafísica, à esfera
da razão calculadora que, em sua essência, é o autoasseguramento de
um sujeito representador que, ao mesmo tempo, se assegura
previamente do real como algo objetivo, antepondo-o a si 46. Dentro
dessa possibilidade, o “aberto” é aquilo que se desvela como o passível
de ser agarrado, manipulado, explorado. Na verdade, no horizonte dessa
possibilidade, o aberto não é descoberto. Para o homem moderno, há
apenas os entes como objetos, algo utilizável, desamparados por lhe
faltar o aberto que lhes deixa ser, manifestarem desde e por graça
totalidade que tudo reúne na unidade do ser. Essa possibilidade,
portanto, é aquela que se consuma nos envios e apelos da essência da
técnica moderna.
Há, contudo, a segunda possibilidade, que o poeta canta e da
qual ele dá testemunho no final da Nona Elegia das Elegias de Duíno
— obra nascida do mesmo impulso criador dos Sonetos a Orfeu: “uma
existência incomensurável desabrocha-me no coração” 47. A segunda,
pois, é a possibilidade que nos encaminha para a morada imensa e não
45
Heidegger, 1960b, p. 252-253
Heidegger, 1960a, p. 93-95; 1995, p. 651-664.
47
Rilke, 2005, p. 197.
46
123
Filosofia com Poesia
mensurável de nós mesmos, liberando-nos do representar calculador
para aquela concreção da existência em que nos é dado com maior
possibilidade pensar e acolher nossa pertença essencial ao vir da
verdade de todo o real. Essa última possibilidade nos orienta, portanto,
para o mais fundo e mais amplo de nosso ser, para o mais interior e o
mais invisível de nossa existência, nos retirando da superfície do
ordinário de nossa consciência comum 48. Tal retirar não é meramente
tolhê-la, mas afundá-la para o seu fundo, aprofundá-la. É desse modo
que somos jogados para o âmbito do existir humano. Trata-se de uma
inversão que não é simplesmente o movimento para o “dentro” da
consciência da comum, isto é, de sua imanência. Isto seria uma
movimentação por demais subjetivista, que em nada supera o domínio
da máquina instalada no espírito; configurar-se-ia ainda como uma volta
do sujeito ensimesmado para a suas vivências particulares. Antes, a
consciência, ao inverter-se para o interior de si, derrama-se e verte-se
para o aberto incomensurável e não calculável da existência. Ela
Heidegger, 1960b, p. 253. Heidegger, na sua conferência Wozu Dichter? (1946),
proferida no vigésimo aniversário da morte de Rilke, cita um trecho de uma carta do
poeta, de 11 de agosto de 1924, quando estava no seu retiro no Castelo de Muzot, ocasião
em que compõe a segunda parte de seus Sonetos a Orfeu. Porque aprofunda aquilo que
acima tentamos dizer, transcrevemo-la: “Por extenso que seja o ‘exterior’, ele mal suporta,
com todas as distâncias, com a dimensão profunda do nosso interior, o qual nem sequer
necessita da espaçosa amplidão do universo para ser, em si mesmo, quase inobservável.
Quando, portanto, os mortos ou os vindouros necessitarem de uma estância, que refúgio
lhes poderá ser mais agradável e mais propício do que este espaço imaginário? Tenho
cada vez mais esta sensação, como se a nossa consciência usual habitasse o pico de uma
pirâmide, cuja base se alarga de modo tão acentuado em nós (de certo modo, debaixo
de nós), que quanto mais nos sentimos capazes de penetrar, mais universalmente
parecemos envolvidos nas ocorrências independentes do tempo e do espaço, nas
ocorrências da existência terrestre ou, num sentido mais lato, mundana” (Rilke apud
Heidegger, 1998, p. 352).
48
124
Filosofia com Poesia
transcende-se no mundo e, sobretudo, enquanto mundo — o que vem
à tona, na poesia de Rilke, ora como o desabrochar da existência na
abundância nascida do coração ou a dimensão profunda do interior
humano, ora simplesmente como existência mundana 49. Eis a inversão
que revira a consciência para o aberto que a suporta, como uma base
alargada, amplíssima do mundo. Uma reviravolta para o seu fundo,
portanto. É amparado pela experiência da reviravolta da consciência
calculadora para o interior aberto e invisível do coração que o poeta
canta:
Mas para nós, a existência ainda é encantada, ainda é
Origem, em muitas estâncias. Um jogo de forças
Puras, que ninguém toca, senão de joelhos e com admiração.
Nas origens de si mesma, a existência é encantada, nos diz o
poeta. É das origens que Orfeu se levanta com seu canto (parte I, soneto
1). Para percebermos melhor que seja estar em en-cantamento, é
preciso, porém, que pensemos antes e melhor o que seja origem
(Ursprung). O cantar do poeta nos dá, de antemão, alguns acenos, nos
dizendo que “tudo que se perfaz, retorna / Aos tempos da origem” 50,
isso é, tudo aquilo que está a caminho de sua plenitude (Vollendete),
para a consumação de seu fim e sentido de ser, deve constantemente
retornar ao princípio de seu vir à luz. Ou melhor, só chega à plenitude
se desenvolve e consuma o princípio recebido nos tempos primevos. E
aí, nesse tempo do originário, apesar das transformações, permanece o
49
50
Veja a nota anterior.
Rilke, 2005, p. 57, parte I, 19.
125
Filosofia com Poesia
canto e a festa da terra, donde brota o canto de nossa existência. A
origem é aquilo que se doa, pois, num tempo primitivo. Para os
humanos, é aquilo capaz de criar a identidade de um povo e fundar seu
ser-aí (Dasein) histórico, liberando-o para a sua história. Graças à
origem, que brilha pela primeira vez em um tempo antigo, doando-se
livre e gratuitamente, um povo adquire sua razão de ser. Por isso, esse
acontecimento do tempo originário de sua identidade necessita ser
recolhido, recordado pela sua transmissão nos mitos primitivos e em
sua arte, incluindo aí a poesia. Por essa razão, o tempo das origens é,
primordialmente, o tempo dos poetas e dos pensadores 51. São eles que,
pela arte de pensar e poetar, guardam-na, isto é, recordam, mantendoa junto ao coração. Ou melhor, deixam ser tomados eles mesmos, na
sua existência, cada qual no exercício de sua própria arte, pela origem
como sendo uma experiência intrigante do aberto do coração.
Intrigante, aqui, é o que incita a pensar poeticamente e poetar de modo
pensante.
Contudo, a origem, em sua temporalidade primitiva, apesar de
costumeiramente tendermos a pensar noutra direção, não é um algo
que fica para trás, como um passado remoto e perdido nos princípios
da história. Ao contrário, a origem é aquilo que permanece e que vige
como passado que nos afeta no presente, que vigora no presente como
já-ter-sido. E esse ter-sido não é o que se esgotou e para o qual se virou
as costas. Pois o que é a origem em sua plenitude só poderemos sabê-
51
Heidegger, 1997, p. 137-138; 2004, p. 54-57.
126
Filosofia com Poesia
lo no futuro, já que também está atuante em pleno vigor no presente
como o ainda-não-consumado. Essencialmente, a origem é por-vir.
Desse modo, a origem não é simplesmente o começo, porque está
sempre à frente. Face a ela estamos nós, pois ela nos antecipa. Desse
modo, como o que nos envia e impulsiona a cada momento, no
presente, por meio da unidade do já-ter-sido e do por-vir, para a
plenitude da realização de nossa existência histórica, é fonte que
permanece entre o passado e o futuro. Ao mesmo tempo, retrai-se em
tudo que nasce, cresce e consuma em torno a nós, como também no
realizar-se e consumar temporal de existência, individual e histórica.
Permanecendo retraída, ela rege, ordena. Desse modo, a origem abarca
a tudo e a todos, orientando o destino de que tudo que é, de quem
exista. A história de um povo com o seu mundo se joga, então, em todo
instante, dentro do jogo das forças puras da origem. Nesse sentido, o
tempo da origem é o da historicidade fundamental do acontecer
histórico de cada povo. A esse jogo pertencem os antepassados, mas
também as gerações presentes e as vindouras. Remetida à permanência
da origem, está cada época da história. É o que canta o poeta, em um
outro poema:
Nós somos instigadores!
Mas os passos do tempo,
Considerai insignificantes
Entre o que sempre permanece.
127
Filosofia com Poesia
Toda a pressa
já terá passado.
Pois só o que perdura
Nos incita.
[...]
Tudo repousa:
Escuridão e claridade
Flor e livro 52.
O destino de nossa existência, portanto, está intimamente ligado
pelo modo com que cuidamos das origens. Cuidamos quando pensamos,
porque pensar não é calcular ou, como comumente se compreende, ato
de deduzir conclusões a partir de operações lógicas. Pensar, na sua
determinação essencial, é cuidar. Mas do que se cuida? Daquilo a partir
do qual o nosso ser tende no realizar da historicidade de nossa
existência. E tendemos porque, na verdade, um sentido ou possibilidade
do existir previamente nos afeiçoou e, pelo pensamento, velamos dessa
afeição 53. O pensamento vela pela origem, é afeição que se deixa afetar
pelo originário. Portanto, não pode ser restringido ao calcular, o traço
insigne da subjetividade do homem moderno. A esfera da subjetividade
somente encerra objetos passíveis de cálculo. Nela, o mundo não pode
residir na sua propriedade, em si mesmo, mas tão somente no caráter
de objetividade daquilo que é posto de antemão. A permanência que
ainda vigora no reino da subjetividade é apenas a continuidade dos
objetos de uso, mantida à custa de uma constante substituição daquilo
52
53
Rilke, 2005, p. 63, parte I, 22.
Heidegger, 2002a, p. 111.
128
Filosofia com Poesia
que se desgastou, perdeu-se, corrompeu-se pelo uso. O mundo dos
objetos é o reino da posição e da constante reposição. Por isso, a técnica
só pode erigir um mundo, no qual não há espaço para a verdadeira
permanência; os objetos se gastam com facilidade e rapidez, devendo,
portanto, ser constantemente substituídos 54. Sendo essencialmente
carente da verdadeira permanência, aquela que se retrai, é um mundo
no qual a existência não pode se assentar, repousar. Não encontra nele
a sua estância. Portanto, nesse mundo exclusivamente de objetos,
homem não pode morar, pois habitar pressupõe uma demora no
permanente que somente a origem pode verdadeiramente garantir.
Assim, o pensamento que poderá salvar os homens e as coisas
da dominação da objetividade, precisará vigorar consoante a sua
essência: cuidado que, afeiçoado pelo que permanece no retraimento,
vela pelas forças da origem. Dito de outro modo, deverá brotar das
profundezas do coração. Pois ele é re-cordação, é memória, porque
nasce da intimidade mais íntima do homem enquanto reminiscência do
permanente. Recordar, porém, não é conservar saudosamente o passado
em lembranças ou imagens. É, antes de tudo, uma concentração no que
é digno de ser pensado (e poetado), a origem em sua permanência que
sempre se retrai e se esconde em seu repouso. É reviravolta para o
centro mais íntimo e a vida abundante, oculta da consciência,
desconhecida por essa última. Assim, o pensamento, ao seu modo,
deverá ser poesia, perfazer a mesma experiência do poeta. Pensar
54
Heidegger, 1960b, p. 254.
129
Filosofia com Poesia
poeticamente é deixar ver, é demonstrar a revelação do que, ao
desocultar-se, também se resguarda no mistério. Mas a recordação é
também fonte da poesia e, consequentemente, essa é um modo peculiar
de pensamento concentrado no que se doa numa retração 55. Assim,
como dito, a poesia perfaz a mesma experiência do pensamento.
Perfazer o mesmo, porém, não é fazer igual. O poeta pensa cantando;
seu pensar não deixa surgir o que se mostra pelo (fazer) ver que
concebe e, portanto, não o faz para guardar a revelação do retraimento
no conceito. Tal tarefa pertence ao pensador. Por meio do seu canto, o
poeta instaura com a palavra a essência das coisas, aquilo que
permanece. Cantar é o seu modo de dizer e proclamar o inaudível, o
inefável, instaurando-o, isto é, não deixando que o retrair da origem se
converta na ausência daquilo que para sempre se esvaiu; não se torne
totalmente esquecida pelos humanos, sobretudo, na época da
hegemonia do cálculo. Mas permaneça como mistério.
Ambos, o poeta e o pensador, cada qual no domínio da
linguagem ao qual pertencem, instauram, deixam surgir, a origem como
o mais imperioso e permanente dos retraimentos. Mas como instaurar
o permanente? Pode algo que permanece ser instaurado? Essa expressão
paradoxal apenas quer dizer: deixar repousar em sua proveniência
retraída. Então, esse modo originário de instaurar significa: deixar o
instaurado surgir e perdurar no seu mistério e a partir do seu mistério.
Esse é o modo mais pleno de dizer, do mostrar, que o pensar e o poetar
55
Heidegger, 2002a, p. 118; 2003b, p. 125.
130
Filosofia com Poesia
comungam. Ora, tal dizer não aplaina, nada explica nem resolve
nenhum problema, mas tão somente torna mais denso (dicht), recolhe
o que se clareia na oculta e escura densidade de sua proveniência. Por
isso, poetar (dichten) é um modo de recolher aquilo que doa a nós
como razão de ser de nós mesmos e de nosso mundo, deixando nossa
própria existência se recolher à origem 56.
Vigendo a partir da origem, nossa existência é poesia
(Dichtung), porque repousa no permanente. Para Rilke 57, “apenas o
canto da terra / Salva e festeja”. Somente um canto nascido das
profundezas da terra sana a existência do homem, celebra-a como
encantada. Na noite da cegueira para o invisível, da surdez para o
inaudível da época da técnica, o poeta ainda nos convoca com o seu
canto telúrico a uma celebração no seio da longa noite:
Que afinal alguém, um vidente, compreenda e celebre,
Na admiração, a sua longa permanência. Dizível apenas por que canta.
Audível apenas por uma escuta divina 58.
A noite tomou a terra com demorada escuridão, é longa como
um inverno que persiste e destrói. Tudo vigora sem fonte, sem
permanência; está dominado pela inconstância do que é útil,
substituível.
Só
há
uma
permanência,
a
dos
infindáveis
reprocessamentos. Necessário, pois, que alguns de nós sejamos ainda
capazes de escutar o que se retira e instaurá-lo, para adensar essa
56
Heidegger, 1997, p. 138.
2005, p. 57, parte I. 59.
58
Rilke, 2005, p. 109, parte II, 19.
57
131
Filosofia com Poesia
escuridão e celebrar a existência fundada no jogo das forças puras da
origem. Essa é a tarefa dos mortais, porém, precisamente dos poucos
que sabem o sentido da dor, da ausência, da escuridão. Seria, então,
essa a tarefa de alguns privilegiados? Ou seria comum a todos nós, já
que pertencente à nossa essência? Com certeza, não é privilégio algum,
mas a determinação da qual ninguém escapa, sobretudo, em tempos
que profunda e avassaladora destruição se instalou sobre a terra. Mas
sendo tarefa comum, esse caráter não impede que esteja sendo realizada
por poucos, como os poetas. É incumbência assumida pelos raros que
perfazem a própria existência numa “escuta divina”, aos poucos que
existem como aqueles que ainda podem ver na escuridão. Que seja uma
incumbência dada a todos nós e, ao mesmo tempo, que acomete apenas
alguns, isto é somente uma aparente contradição, que logo se dissipa
ao meditarmos sobre a essência da técnica e ao recordamos que na
hegemonia do cálculo, como sentido a guiar a realização do existir,
estamos perdidos de nossa própria essência. O fato é que poucos
pressentem essa condição e a sofrem decididamente. E se aquela escuta
e vidência cunham a nossa essência, trata-se muito antes de nossa
identidade enquanto mortais e, no elemento da mortalidade, de nossa
comum-pertinência à origem.
Ora, os mortais pertencem à terra, assim como aos céus, os
deuses. Como mortais, existimos sobre a terra, somos os passageiros
que vivem debaixo dos céus. Poesia é o canto que brota da terra, de um
essencial enraizamento nela — o qual não se confunde com o
arraigamento nacionalista, territorial, não equivale a qualquer forma de
132
Filosofia com Poesia
fechamento nos confins de certa cultura e cosmovisão. Enraizamento
essencial é aquela penetração e firmeza no único permanente que
permite à existência humana se abrir à vastidão da terra e dos céus. Só
um canto que nasce das profundezas da terra, então, será capaz de
curá-la cura da destruição e desencanto promovidos pela noite de um
tempo no qual vigora como permanente somente aquilo que é de
contínua reposição. Esse canto salva ao reconduzir tudo que é
passageiro, inclusive a existência que é canto, para a permanência da
origem. Poeticamente, então, o único modo em que nos é dado existir
de modo humano, como mortais, sobre a terra. Enquanto houver poesia,
haverá o existir sobre a terra que seja propriamente humano, porque
nesse modo de dizer a longa permanência da origem é instaurada. Pela
poesia, vivemos sobre a terra, mas de modo originário. Se a poesia é
canto e se é poeticamente que propriamente existimos, então, já não
podemos mais nos espantar ao ouvir o poeta dizer que “cantar é existir”
(soneto 3, parte 1). Na verdade, essa é uma afirmação demasiadamente
apressada. Pois é agora que, de fato, surge a pergunta com toda sua
violenta força: “Mas nós, quando é que existimos?”. Para os deuses, uma
fácil pergunta. No auge da noite sobre a terra, talvez, ainda não estamos
prontos para fazer essa pergunta. Como mortais, só temos um vestígio:
quando existimos poeticamente. Apenas uma certeza nos resta:
existiremos poeticamente não porque se promoverá um cultivo da
cultura literária e da produção poética. Isso não basta para vivermos de
modo originariamente humano. Muita expressão cultural em forma de
poesia pode não ser mais que a necessidade de usar a linguagem, de
133
Filosofia com Poesia
interpretá-la simplesmente como mecanismo de comunicação humana,
deixando o homem cair na decadência do falar vazio e formal. Não é
porque há rimas, estrofes, métrica que haja necessariamente poesia.
Talvez seja aí, em virtude de um excessivo formalismo literário, onde a
poesia esteja mais ausente. Por outro lado, ela esteve presente quando
a cultura literária era inexistente. Mesmo assim, em tempos primitivos,
os grandes poetas forjaram a índole e o destino de povos.
Mas quando é que existimos poeticamente?
Encaminhando
nossa
meditação
para
uma
conclusão,
discutamos brevemente alguns indícios do que seja existir como mortais
sobre a terra e, como tais, poeticamente. Há poesia quando apenas
nossa existência se funda na benevolência de um dom 59. Existir
poeticamente, portanto, é deixar nosso existir se perfazer no
acolhimento de uma doação que nos presenteia. E isso quer dizer que,
definitivamente, nosso existir não se funda em nosso mérito 60. Plena de
59
Heidegger, 1997, p. 139; 2002d, p. 180.
A expressão habitar poeticamente, da qual fazemos também a variante existir
poeticamente, não pertence ao vocabulário da poesia de Rilke. Heidegger a toma da
poesia de Hölderlin, quando interpreta um de seus versos — “Cheio de méritos, mas
poeticamente o homem habita esta terra” — para discutir a essência do habitar humano
desde a abertura incomensurável da existência. Utilizamo-la nesse texto, mesmo sendo
guiada pela palavra de Rilke e não de Hölderlin, porque, como atesta Heidegger, a poesia
de Rilke se encontra no caminho aberto pela poesia de Hölderlin, de forma que no
primeiro se decide o que se anunciou no segundo (Heidegger, 1960b, p. 264). Hölderlin,
porém, na história do ser (não cronologicamente, portanto), é o precussor que não
poderá ser ultrapassado no pensar poético da indigência do tempo presente. Para
Heidegger, ele chega de forma mais pura ao porvir da história do ser, muito antes de
seus predecessores. A poesia de Hölderlin em que se encontra o referido verso pode ser
encontrada na íntegra ao final da edição brasileira da obra de Heidegger, Vorträge und
Aufsätze, traduzido com o título de Escritos e Conferências pela editora Vozes. No
60
134
Filosofia com Poesia
méritos é a existência humana: inventa máquinas, atenua o sofrer e a
dor do existir, cria meios que otimizam as ações humanas, conquista o
espaço sideral; recria a vida, interferindo no desenvolvimento de seres
humanos, plantas e animais. Em tudo isso, o homem pretende não ser
mais mortal, esforça-se com os meios científico-tecnológicos para
superar a morte e potenciar toda forma de vida sobre a terra. Ao
mesmo tempo, assenhora-se dos céus, conquista-os. Desse modo, não
deixa que os deuses sejam presenças inesperadas, acontecimentos
repentinos, dádivas advindas dos céus como um raio aterrador. Todas
as dádivas que rebentam na terra e que dos céus caem são submetidas
aos planos da produção controlada, da otimização dos processos e
produtos. Calcula-se o que céus e terra devem oferecer; assegura-se
pretensiosamente, pelo poder antecipador da razão, como devem
aparecer os deuses na sua divindade, e como as coisas devem
comparecer sobre a terra. Tudo se explica, matematiza-se. Esquece-se,
portanto, que, no princípio de tudo, está o nascer e o renascer de todas
as coisas, em si mesmas e a partir de si mesmas. Esquece-se, inclusive,
desse esquecimento. No entanto, provindo do mistério, todo ente se doa
ao presentificar-se como isto ou como aquilo e, sobretudo, como um
quem.
Apesar daquela pretensão de uma mortalidade imortal, senhora
de si e de todas as coisas, em tudo vigora o mistério, a presença de uma
ausência. Em cada coisa sopra um nada e, nesse, vibram os rastros do
mesmo volume, está incluso o escrito de Heidegger cujo título são os versos e ao longo
do qual se realiza a interpretação.
135
Filosofia com Poesia
divino. Para o poeta, é no reencontro dos caminhos para esse mistério
que nosso cantar, sinônimo de nossa existência, “não é cobiça nem
conquista por algo que por fim se alcança” 61. Onde e quando nos
fazemos pobres de nossos méritos, há espaço para a reverência e a
admiração ante a surpresa do dom de todas as coisas, dos que conosco
coexistem, bem como dos deuses que raramente nos atingem como sua
revelação inesperada. Enfim, no desvelar de tudo, de qualquer ente por
si mesmo, cada um deles se torna presente para nós. No transbordar
de nosso coração, isto é, no abrir de nossa existência mundana, apenas
oferecemos o medium para essa revelação. Com esse medium damos a
medida, que nada é em termos de ente, para revelação de qualquer
presença brotada da ausência, que é um nada originário e não só uma
falta de entes. Cantar, então, não é um sopro que temos o mérito de
inventar, mas sim “um sopro pelo nada. Um vibrar em deus. Um
vento” 62. É o mistério que canta pela boca, a abertura de nossa
existência, à medida que nela deixamos tudo ser a partir e como uma
doação. Enfim, se é questão de merecimento das forças empregadas, é
a nossa existência, é o nosso cantar que é mérito da origem. Se assim
for, talvez possamos então dizer juntamente com o poeta, apesar de
toda força destruidora do existir humano fundado na subjetividade:
Mas para nós, a existência ainda é encantada, ainda é
Origem, em muitas estâncias. Um jogo de forças
Puras, que ninguém toca, senão de joelhos e com admiração.
61
Rilke, 2005, p. 25, parte I, 3.
62
Idem, p. 25, parte I, 3.
136
Filosofia com Poesia
Mas o que nos presenteia na doação de cada ente? Aquilo que,
há muito tempo, nos primórdios da história do Ocidente, o pensamento
chamou de ser porque o experimentou como origem. Ao viger na sua
misteriosa verdade, o ser se dá em todas as coisas. Mas, ao mesmo
tempo, se recolhe no silêncio e na escuridão. Dando a si mesmo em
cada coisa, o ser se recusa. Na doação da presença de cada ente, somos
presenteados com a ausência ou retirada do ser no seu mistério. Nessa
recusa dá ao homem a dádiva que é a de todas as dádivas para a
realização da essência humana: a linguagem. Na linguagem, o ser se dá,
fala de si mesmo, no silêncio do retraimento. O homem é falante, um
ente discursivo. Mas isso depende que sua palavra seja cuidadosa, nasça
desse silêncio e resguarda a linguagem do dar-se do ser. Precisamos
falar desde a linguagem silenciosa da origem, se não quisermos ser
tagarelas indigentes da palavra essencial. Essa é, então, a condição sem
a qual o homem não pode ser autenticamente um falante 63, isto é, capaz
em seu ser de uma palavra originária. Poucos de nós, porém, cuidamos
dessa dádiva. Nossa fala cotidiana há muito não mais enuncia e traduz
a palavra doadora que evoca esse misterioso “se” do dá-se do ser. Nossa
fala reduz-se, com frequência, ao vazio falatório. A experiência poética,
porém, é tentativa de guardar a palavra obscura e doadora do ser, de
evocá-la, de trazê-la para junto de nós. A poesia, muitas vezes nos diz
Rilke, é a saga de cantar a quietude do silêncio, a escuridão cheia de
claridade, que presenteia a essência de todas as coisas e de nós mesmos.
63
Heidegger, 2003b, p. 150-151.
137
Filosofia com Poesia
Eis a origem da festa e da celebração de sua poesia, do seu canto a
Orfeu:
Palavras ainda passam rentes ao indizível...
E a música, sempre nova, nascida de pedras vibrantes,
Constrói, no espaço inútil, sua morada de deusa.
Por essa razão, onde e quando todas as coisas são tocadas e
acolhidas com a benevolência da linguagem autenticamente humana e,
assim, puderem repousar em si mesmas, livres de toda nossa imposição,
a poesia se instaura em nosso existir. A poesia é, então, a estrutura
fundamental de nosso habitar sobre a terra 64; o dizer silencioso e
benevolente da abertura da existência humana. Silenciosamente, a
benevolência é sumamente ativa em deixar ser cada ente desde a
origem. Com essa estrutura, então, criamos um mundo incomensurável
que, sob a medida da benevolência, a gratidão que deixa ser,
concedemos aos céus, à terra, à existência finita dos homens e à
divindade dos deuses serem o que em verdade são. Ora, como dito, é
como mortais que habitamos sobre a terra. Sobre a terra indica debaixo
dos céus e, portanto, sob a graça e a fúria dos deuses. Habitamos
poeticamente, então, quando a nossa existência se deixa pertencer à
totalidade do aberto, à unidade primordial do jogo de espelho dos
diferentes: mortais e deuses, terras e céus. Habitamos poeticamente,
portanto, quando homens permitem a si mesmos serem mortais e
quando acolhem a morte como morte, sendo capazes de sua finitude e,
64
Heidegger, 2002d, p. 179.
138
Filosofia com Poesia
sem negá-la, nela realizam sua transcendência... Igualmente, quando
deixamos os céus vigerem como céus que, com a trajetória de seus
astros e o ritmo das estações, trazem, no tempo oportuno, dádivas aos
homens e anunciam a chegada e o retrair dos deuses... se permitimos
os deuses se resguardem na estranheza e retraimento, cujos acenos os
homens guardam e aguardam... Por sua vez, também se deixarmos a
terra ser somente terra, espaço do enraizar humano e não fonte de
energia, salvando-a de nosso desejo de domínio avassalador. Habitamos
o mundo poeticamente, portanto, na simplicidade do mundo se fazer
mundo em sua inteira vastidão, sem a exclusão de qualquer um dos
opostos em espelho, sem o aniquilamento ou abrandamento do jogo
das forças conflitantes entre terras e céus, mortais e deuses 65.
Nesse jogo, não nos é permitido subordinar nada, mas apenas
tocar com reverência e admiração tudo que nos vêm ao encontro,
fazendo de seu ser um presente, inclusive o nosso existir. E, assim, tudo
se encaminha para recolher na unidade do ser, a misteriosa
proveniência. Se o existir é entoado por esse mistério, somos remetidos
para o mais dentro de nós mesmos e, assim, para além de nós, o que
definitivamente não somos. Envolta pelo mistério do que nós não
somos, porém, nossa existência é poesia, enviada ao canto, é en-canto.
A poesia é a reconciliação com o (não-)ser, do qual, nos últimos séculos,
nossa existência se desenraizou. No entanto, a esse solo do mistério do
ser, desde sempre, pertencemos.
65
Heidegger, 2002b, p. 130; 2002c, p. 156-158.
139
Filosofia com Poesia
E será certamente por essa razão que, no tempo da desolação e
do desen-canto planetário do mundo da técnica, da escura noite, poderá
ainda a nossa existência fluir como canto e festa. Contudo, existir desse
modo não é um passageiro e intermitente deslumbramento, nem
mesmo exaltada celebração do que nos seria apta a dar-nos algum breve
prazer e consolo em tempos de penúria, recobrar-nos otimismo. Isso é
ainda jazer na superfície do coração. É ainda nos retermos nos
horizontes da consciência voluntariosa e desejosa só de si mesma, sem
descer ao mistério de nossa existência, ao pro-fundo de nós mesmo,
que nos leva a um nada ou a fundo sem fundo. Aí, porém, flui e
superflui o fluxo de nossa origem, tudo é dom do ser. Tudo é jogo das
forças puras e conflitantes da origem! Por isso, celebrar só pode quem
abandonou a si mesmo, despedindo-se de toda e qualquer pretensão de
ser exclusivamente a partir de si mesmo e de fazer que tudo surja em
conformidade com essa pretensão. Como diz o poeta no terceiro soneto
da primeira parte, disso só é capaz quem experimentou um novo vibrar
ou um novo sopro de vida 66. Nossa existência é encantada, pois, quando
canta, na dor da separação, em meio da saudade de nossa unidade
primordial, aquela pertença que nos reconcilia com todas as coisas, sem
que isso signifique resignação ou desesperado asseguramento do
sentido do existir humano frente ao perigo sempre maior de perdê-la
definitivamente. Pelo contrário, é encantada justamente porque ainda é
capaz de cantar mesmo em face do risco de nossa época, na qual nossa
66
Rilke, 2005, p. 25.
140
Filosofia com Poesia
destinação historial está indelevelmente marcada pela escuridão e
desolação do inverno. E esse canto, parafraseando Rilke 67, não é
mentiroso, apesar de toda decadência e degeneração da existência
humana. Pois é a celebração do coração que se sabe “lagar passageiro /
De um “vinho inesgotável para os homens” 68. Dito de outro modo,
porque ressoa a partir da existência que não se sustenta em si, porém,
não se agarra em algo fora de si; está, antes, suspensa no nada. Isso,
porém, só quer dizer: perfaz-se a partir da origem, a fonte inesgotável
do ser que não se cansa de se retrair.
Tudo, porém, que tentamos aqui dizer, durante todo tempo, já
havia dito o poeta de forma sucinta e, sobretudo, densa:
Antecede toda despedida, como se estivesse
Atrás de ti, à semelhança do inverno que agora passa.
Pois entre os invernos há um tão sem fim
Que, tendo ultrapassado, teu coração sobrevive a tudo.
Morre sempre em Eurídice -, sobe cantando ainda mais
E desce louvando ainda mais na pura relação.
Aqui, entre passageiros, no reino do declínio,
Sê um vidro ressoante que já se quebrou no som.
Sê — e sabe, ao mesmo tempo, a condição do não-ser,
Fundamento infinito de tua vibração interior,
A fim de que, nessa única vez, a realizes por completo.
67
68
2005, p. 33, parte I, 7.
Rilke, 2005, p. 33, parte I, 7.
141
Filosofia com Poesia
Com júbilo, enumera-te entre as reservas de toda a natureza,
Tanto as utilizadas como as mudas e abafadas,
Somas indizíveis, e anula o número 69.
Os poetas que nos ensinam a habitar poeticamente são, então,
aqueles que celebram o inverno rude em noites escuras. Eles sabem que
no seio invisível da terra maltratada pelo extremado inverno da história
ocidental ainda vigora um “tão sem fim”, o desconhecido e esquecido
fundamento infinito da ainda possível vibração interior. Por isso, o
canto deles antecede a despedida do ser, de cujo acontecimento poucos
de nós chegou ao pressentimento. Convocam-nos a saber e sofrer a
condição do não-ser, a conceder que ela ressoe em nós. Desses poetas,
mais que nunca, somos necessariamente carentes para pensar o sentido
de nossa humana existência.
Referências
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Losada, 1960b.
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69
Rilke, 2005, p. 97, parte II, 13.
142
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Petrópolis: Vozes, 2002c.
Heidegger, Martin. “...Poeticamente o homem habita...”. Ensaios e
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143
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Leão, Emmanuel Carneiro. Existência e poesia. Aprendendo a pensar.
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Pessoa, Fernando. Poemas escolhidos. São Paulo: Click /o Globo, S/D.
RILKE, Rainer Maria. Sonetos a Orfeu. Elegias de Duíno. Bragança Paulista:
Universitária São Francisco, 2005.
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. São Paulo: Globo, 2003.
144
Prosas poéticas
A dívida infinita da mulher artista 1
Talita Moreau
Estou endividada, nasci endividada. Desde o útero de minha mãe
sentia suas aspirações: “Quero parir um menino!”. Talvez soubesse que
nossa vida seria mais fácil se sua criança não carregasse a marca do
feminino. Talvez sem nem ter total consciência da vontade que sentia,
só almejava o fim de uma dívida que já foi de minha avó. Eu nasci
herdeira de uma dívida, uma dívida infinita, passada de geração em
geração, sempre atualizada, recalculada para o seu tempo social e
histórico. Só sei que vim ao mundo desejando apenas ser amada
incondicionalmente, nada mais.
Já fora do útero comecei minhas lições. Em casa aprendi que o
poder sufoca o amor, mamãe vivia subjugada a meu pai, o homem que
levava o dinheiro e tomava todas as decisões. Ele nunca foi agressivo,
era brincalhão, gentil até… Mas cada um deveria cumprir o seu papel,
mamãe cuidava de nós e papai detinha o poder de definir como tudo
1
O conceito de dívida infinita é elaborado pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari.
Filosofia com Poesia
seria, graças ao seu diploma de nível superior e sua renda. Papai marcou
o destino da mamãe mesmo depois do divórcio, ela não entendeu bem
a solidão que sentia, ele só enxergou o que era conveniente enxergar.
Mamãe ficou ainda mais sozinha, a mulher culpada de tudo que
carregue o fardo, que tenha a reputação e o corpo marcado.
Na escola aprendi lições sobre a aparência que eu deveria ter.
Mulheres feias e não femininas são deixadas de lado e mulheres
inteligentes demais são chatas. A televisão, os outdoors e as revistas
foram excelentes fontes de pesquisa, conheci todos os padrões que eu
deveria seguir e não segui. Naquela altura achei que era punk, que fugia
de todos os estereótipos femininos impostos pelas mídias, pela escola,
pela minha família. Eu ainda não sabia que eu era endividada, quando
um homem certa vez veio me cobrar, ofereceu-me gentilmente da sua
bebida e só acordei depois dele pegar o que ele achava que era dele de
direito, eu estava em uma cama de hospital e até hoje não sei o que
sobrou de saldo devedor.
No trabalho aprendi que o sorriso e o silêncio vestem-me
melhor. Não preciso dar muitas opiniões, devo escutar sorridente e
nunca me constranger com as piadas e assédios dos meus colegas, não
preciso levar tudo tão a sério, uma mulher bonita e inteligente na
medida deve saber disso. Isso é ser madura!
Com os namorados além de reforçar todas as outras lições de
repressão-recalcamento, aprendi um leque imenso de coisas novas, em
especial que o lar deveria ser o meu lugar. Meu corpo compunha melhor
a cama e a cozinha, outros ambientes não me caiam bem, muito menos
148
Filosofia com Poesia
estar próxima de outras pessoas. Comecei a conhecer as minhas
heranças, dentre elas a solidão, a ansiedade, a depressão… Por fim,
estava interiorizada e espiritualizada em mim todas as operações
formais de uma sociedade masculinizada, uma mulher crescida.
Tendo a auto estima mutilada, não sirvo, não encaixo… Feia
demais para lucrar com a aparência, bonita demais para ser respeitada.
Burra demais para opinar e ser ouvida, inteligente demais para ser
amada. Louca demais para entender os fatos, séria demais para entender
que foi só uma brincadeira. Dramática demais quando exponho meus
sentimentos, fria demais por não ceder a tudo. Boa de cama o bastante
para namorar, mas vadia demais para ter uma aliança no dedo.
Sempre flexibilizando, aceitando, engolindo, anulando-me…
Anulando-me? Acho que nem sei mais o que quero. Quando busco em
mim algo puro e na privacidade do meu interior encontro apenas a
extrema miséria dos meus desejos, volto-me contra mim mesma, sintome culpada e começo a duvidar do meu discernimento. A armadilha do
desejo, ô planta venenosa. Percebo que por mais que eu lute, por mais
que eu me desconstrua, por mais que eu entenda o modus operandi do
patriarcado, há algo em mim que está solidificado e que me faz
perguntar a mim todos os dias: O que faço de errado para não merecer
ser amada?
Percebo tudo, e no alto da minha sensibilidade e desespero
entreguei-me a arte, como a única coisa que restava-me, como a única
fuga, como o único corte de fluxo possível. E no caminho da não
figuração poética pictórica encontrei meios de expressar alguma coisa
149
Filosofia com Poesia
feliz que está escondida no fundo da minha psique, algo que eu ganhei
antes de saber que estava endividada, pois endividada eu sempre fui,
desde o útero de minha mãe, talvez antes mesmo de eu ser matéria,
quando eu era só uma vontade de meus pais.
Mas hoje, estou estéril, não sinto desejo de criar, nem um filho,
nem uma pintura. Trabalho e estudo demais para ter tempo de criar
algo decente. E nas horas vagas faço barganhas para receber um pouco
de afeto, momentaneamente isso me satisfaz, mas há dias que sou
consumida pela realidade dos fatos. E é fato que está tatuado em mim
o desejo de ter um homem que queira se casar comigo, que me proteja
e me exiba orgulhosamente como um prêmio. É difícil admitir isso,
especialmente na bolha que vivo, onde o empoderamento feminino é
proclamado e tomado como discurso até pelo próprio capitalismo.
Adoro as camisetas femininas vendidas em grandes lojas de
departamento, We can do it (isso foi irônico). Bem… A perversidade
encontra-se no fato de que eu dou tudo o que tenho, aceito o papel de
objeto e não recebo a minha esperada recompensa. Mas eu permaneço
no jogo. Como sair do jogo? Como quitar minha dívida?
150
Devaneios crônico-filosóficos
Arthur Alves Almeida Soares de Melo
A limpeza da casa em dois pra lá, dois pra cá
Acordei com uma música do Chico Buarque na cabeça. Se você
me perguntasse qual, eu diria: não sei.
Mas como todo bom sábado, era dia de limpar a casa. Sísifo que
o diria... A trilha sonora só poderia ser das canções desse gênio.
A arrumação da casa, inicialmente, parece uma situação
complexa. Tirar poeira, varrer, limpar os cômodos, o banheiro, a
varanda. Voltar as coisas para os seus lugares e aí vai.
Mas, como diria Espinosa, o que é complexo pode ser reduzido
a partes simples e claras e assim inteligíveis — ou fazíveis!?
Como advogado, já percebi isso também: quando penso no
processo do início ao remate, parece ser algo quase sem fim. Mas se
vou realizando as etapas, uma a uma, com atenção e responsabilidade,
enxergando beleza na aplicação da técnica, a coisa flui e, pari passu,
chego ao final.
Filosofia com Poesia
Quem sabe essa não seria a receita da vida e a casa e os
processos, assim como as leituras do mestrado não fossem fragmentos
desse todo ainda maior? Penso que é provável.
Aliás, não seria por falta de boa companhia que a manhã de
sábado não seria agradável. Capitu, a gata, insistia em exercitar sua
habilidade de caçadora obstando a vassoura de pelo, enquanto eu varria
o chão. Charlotte, a shih tzu que quer ser gata, sempre a me olhar com
cara de alegre.
Nas passadas do rodo, uma dancinha, para lá e para cá, como
dizia o bom bolero.
Ouvindo as músicas com um fone que isola os estímulos
externos, pude prestar atenção nos instrumentos, trabalhando em
conjunto e autonomamente. Fazia como recomendou o mestre Diego
Sobral: ao ouvir uma música, repare nos sons de cada instrumento, um
a um, o momento em que são tocados e a forma e sinta como o todo
da música se constitui. É, aliás, o exercício que costumo fazer quando
quero aprender uma canção. Só que, nesse caso, ouço à exaustão e,
sempre que repito a “ouvida”, me recordo de São Tomás, sim, o de
Aquino, que dizia que a perfeição do conhecimento pela alma se dava
com a repetição, com a atualização das espécies. Espero não ter
entendido errado... Mas, se tiver, não me corrija, amigo filósofo — deixe
prevalecer a licença poética desse pequeno digiscrito.
Foi assim que eu percebi, durante minha singela dança, que
Hume tinha razão. O princípio da cópia está presente em quase tudo
152
Filosofia com Poesia
ou, como disse o Professor Alexandre Guimarães, aprendemos por
mimese ou imitação do que percebemos.
Digo isso porque notei que uma das músicas do Buarque tinha
a introdução muito parecida com a da Chiquinha Gonzaga, “Gaúcho”.
Será dessa canção que o poeta, talvez inconscientemente, encontrara
inspiração? Talvez. Chico e Chica são naturalmente talentosos em
produzir o alimento da alma.
Uma última fala. Toda vez que ouço a música Geni lembro de
uma apresentação assistida com minha esposa Diélen no Comufu em
2019. Como foi linda...
Assim, quase que despercebidamente, a manhã de sábado
“voou”. Que sorte a minha.
***
153
Filosofia com Poesia
As goiabas do quintal da vizinha
No quintal ao lado, goiabas! Uma a uma, olham para mim
dizendo: “vem me panhar!”.
O problema é que a escalada é habilidade só dos felinos da casa.
Eu, enquanto “estrangeiro”, não conheço a vizinha e meu
carisma limitado me impede de pedi-las.
Felizes das maritacas, verdinhas — que inveja delas! Chegam de
cima — ou por cima?
O fato é que a natureza lhes conferiu um superpoder: chegar
sem pedir licença, sem perguntar “posso?”.
Queria ter esse superpoder pra muitas coisas... Já pensou? Uma
pulguinha, porém, me escapa detrás da orelha. E, antes, diz em pulguês:
“uai, cê tem poder, poder de humano!”.
A provocação da amiga me inquieta e penso que realmente:
“com um vergalhão, de ponta retorcida, poderia “subtrair umas
goiabinhas...”, ou, então, me valer da urbanidade e, motivado pelo desejo
de comer as verdinhas — eu me refiro às goiabas! — forçar o carisma
e ir mesmo pedir as “excedentes”, que cairiam maduras no chão, para
além das bicadas das verdinhas voantes e do apetite dos proprietários
do quintal.
Um argumento, o último — eu juro! (E, se falacioso/retórico,
não, não vou dizer!) Juridicamente falando, as goiabinhas que
ultrapassam a fronteira dos quintais são do confrontante, minha sogra,
a senhora Valda!
154
Filosofia com Poesia
Mas, de repente, me pego tomado por um cheiro muito
agradável, de galinha caipira, cozidinha, quase pronta pra comer! E
mais! Criada livremente nos campos da Água Emendada! Ela pôde
comer, ciscar bastante, comer insetos, bater as asas correndo em alta
velocidade, como se quisesse voar — ainda que não conseguisse, que
criou seus pintinhos numa choquidão danada, brava com qualquer
animal que viesse a chegar perto e que bebeu água corrente.
Fico com pena dela? Espinosa diria: “caro Arthur, vocês são
modos da mesma substância. Além do mais, ela foi feliz, e hoje te serve
de alimento...”. De fato!, eu responderia ao mestre e, me dando por
convencido, acataria essa “noção comum” sobre o estado da penosa.
Mas e as verdinhas, vocês, queridos leitor e leitora, devem estar
se perguntando (ou ninguém está perguntando?). Essas deixarei para
as verdinhas de alma sensitiva, como diria Aristóteles, e agora, como
diria Platão — sim, aquele que falou de Sócrates — desejo o que me
falta neste momento, um bom pedaço de galinha no meu prato! As
verdinhas goiabinhas, o desejo por comê-las, transformei neste texto.
Abraços aos leitores corajosos que animaram chegar ao fim
desta leitura!
***
155
Filosofia com Poesia
O que diria Espinosa sobre as Fake News
No campo da minha imaginação viajei para a Voorberg, de 1669.
Fui tomar café com Baruch de Espinosa. Dedicado ao polimento
de lentes para assegurar o sustento e à escrita de sua filosofia, em certas
circunstâncias de afastamento social, e não de isolamento, ele me
recebeu e conversamos um pouco.
Com seu tom de otimismo pela humanidade, Espinosa falava de
suas constatações filosóficas, de Deus ou a Natureza, dos atributos, dos
modos, dos afetos.
Interessado pela explicação do filósofo, convidei-o a se reportar
para as questões de 2021 e, depois de lhe contar um pouco das
tecnologias da contemporaneidade, especialmente a internet, falei do
problema das fake news e pedi que opinasse.
Erguendo devagar a xícara em que tomava seu café, Espinosa
falou.
— Essas fake news são ideias inadequadas.
— Inadequadas? — perguntei.
— Sim, inadequadas.
Pedi que explicasse.
— Não são constatações originadas do próprio espírito; são
informações exteriores, que vêm de fora e que afetam quem as recebe.
— São espécies de paixões.
— Conhece a raiz dessa palavra?
— Não — respondi.
156
Filosofia com Poesia
— Passio, do Latim, que significa algo que nos afeta.
— Interessante seria se as pessoas obtivessem opiniões
derivadas da razão, do próprio pensamento delas, através de evidências
reais, sem apelo emocional, inclusive.
Então, resolvi perguntar novamente a Espinosa, como quem
espera uma segunda explicação, o que são as fake news, pois, devido ao
adiantado da hora, precisava voltar para o meu tempo, cozinhar arroz
e fazer salada para complementar o almoço que tinha preparado, em
parte, um dia antes.
Ele respondeu em poucas palavras.
— São informações do campo do “ouvi dizer”. Fazem parte do
primeiro grau de conhecimento, segundo escrevi na obra “Tratado da
Emenda do Intelecto”, que estou desenvolvendo. São inadequadas
porque não decorrem da razão, nem do que chamo de noções comuns.
São falas ou afirmações aleatórias que, não necessariamente, condizem
com a verdade, mas que modificam a opinião de quem as recebe.
— Nossa... — respondi agradecido.
Dito isso, precisei me despedir e voltar para 2021.
Espinosa se levantou, acomodou o casaco no corpo e se
despediu.
157
O saber da vida se diz por meio de vibrações cósmicas
Jorge Luiz Domiciano
Há coisas na vida que não podem ser explicadas.
Na verdade, se a gente reparasse com mais calma, perceberia
que quase nada na vida é completamente explicável — no sentido de
finalizar algo em uma unidade de sentido.
O mais misterioso de tudo é que a gente mesmo não se entente,
não se compreende. Parece que somos refratários a nós mesmos. É
assim que eu penso quando olho para mim, para o que vivi e para o
que sou. Afinal, o quanto disso tudo está presente em minhas mãos,
para que possa encerrar em meu punho como verdades sólidas e
acabadas?
Talvez fosse preciso mudar o arranjo segundo o qual eu
compreendesse a mim e a tudo mais. Não encerrar, não capturar, não
cristalizar, mas vivenciar... e no ato mesmo de vivenciar, velejar com as
forças que me animam.
O que eu sinto é como água, represada, transbordante, mas
raramente vazante. Somente por alguns poros fisiológicos do gesto, do
Filosofia com Poesia
olhar e do sexo é que ela se esvai, às vezes — junto de um bom bocado
de desrazão.
É normal que os sonhos me proporcionem vazão também. Os
sonhos e tudo aquilo que não é comandado por minha ordem e que é
quase tudo de que sou constituído: os afetos do mundo.
Há certas afecções que são como perfurações, há outras que são
como esmagamento, carícias, arranhões, e há também aquelas que são
como vibrações musicais. Certamente senti e sinto todas, umas mais,
outras menos. Mas dessas, a que mais bonita me parece ser é a da
vibração. Na verdade, não é bem certo dizer vibração. É isso, mas é
mais, é sincronia. É um soar junto, é um imergir em uma atmosfera
sonora; uma sonosfera comum. É participar de um mesmo ser — ser
que se diz como frequência mística...
O amor me parece bem uma questão de sincronia mística. Como
se houvesse uma frequência cósmica que tocasse os corpos, fazendo
com que soassem em harmonia: como um acorde, ou mesmo uma
melodia.
As ligações que se fazem por meio dessas sincronias, não podem
ser simplesmente reproduzidas de modo artificial e completamente
intencional. É preciso que haja uma força prévia no mundo que nos dê
as cartas ou melhor, as notas, para que elas venham a ser. É preciso
haver um encontro que não se encaminhe em ruído, nem em qualquer
forma genérica de ressonância. É preciso que desse encontro surja uma
linda melodia. A mais bela melodia.
160
Filosofia com Poesia
Pois quando essa ressonância devém melodia, um agenciamento
cósmico faz dar vazão a forças, energias, libidos e (res)sentimentos
acumulados, gerando fluxos vitais de criação. Tal é a natureza mística
do amor.
O que é que somos, afinal, senão produtos dessas vibrações
melódicas que se corporificam no plano bruto da matéria? E o que será
o motivo que anima a vida senão um vibrar contínuo que lança e recebe
sinais no mundo, ecoando, reverberando, destoando ou compondo em
sincronia, e quando não encontra retorno, enfraquece lentamente ou de
súbito, até parar de soar, até parar de bater? — pensemos no próprio
coração...
O que vem a ser minha existência na ressonância musical do
cosmos, senão melodia: única, indecifrável, inapreensível por completo
por meio de meu intelecto; mas tão somente vivenciada, executada e
concluída!
...
Creio que nosso erro, de incompreensão de nós mesmos, não
seja falta de raciocínio, mas de sensibilidade. Por meio do raciocínio
construímos modelos abstratos que fixam sentidos e encerram fluxos;
por meio da sensibilidade, ao contrário, os sentidos fazem ressoam
notas cósmicas, dão vasão a forças que nos atravessam e nos propiciam
a criação harmônica com o mundo.
... Ou vai ver que tudo que acabo de dizer é só mais um desvario
meu.
161
Poesias
Quatro poemas sobre poesia
Matheus Silveira de Souza
Cada palavra cravada no papel
Me relembra o por que de estar aqui
Mais do que meditação, é a poesia
A melhor forma de mergulhar em si
***
Quando a vida já parece não bastar
O poema sempre cria um outro olhar
E quando o verso vira porta de saída
Tenho a impressão de que a poesia que criou a vida
***
Filosofia com Poesia
Preocupado com coisas importantes
Fui absorvido pelo dia a dia
E por pouco quase me esqueço
Como é bela e desimportante a poesia
***
A música que toca o peito e afina o ouvido
É como a janela aberta no início do dia
Uns acham que é deus, ou energia
Eu continuo achando que é só poesia
***
Na obra O mal estar na civilização, Freud aborda, ainda nas
primeiras páginas, o papel da religião na vida dos seres humanos. Nessa
discussão, ele lança mão de uma poesia de Goethe:
“Quem tem ciência e arte,
Tem também religião;
Quem essas duas não tem,
Esse tenha religião”
Pois bem. Os versos de Goethe e a reflexão de Freud sintetizam
o tema que atravessa os quatro poemas escritos acima. A arte e a ciência
carregam uma tamanha potência de significação da existência que são
166
Filosofia com Poesia
comparadas com o poder da religião na produção de sentido para a
vida dos indivíduos.
A poesia, como uma das possibilidades de arte, é capaz de criar
mundos externos e internos pela linguagem. Ela é capaz de sublimar as
inevitáveis dores presentes na vida, de diluir e tornar mais leves as
angústias que presenciamos.
Mas a poesia não é apenas um remédio contra o eventual mal
estar que esbarramos na esquina da vida. O poema é capaz de criar um
outro olhar sobre o dia a dia, de revelar a grandeza das coisas
aparentemente insignificantes e de mostrar a insignificância dos tapetes
vermelhos, dos jantares de gala, das regras de etiqueta e das convenções
sociais. A poesia é como um passe de mágica, que revela a beleza de
uma cena tão insignificante como uma folha de árvore caindo em um
tanque cheio d’água. A poesia é, em resumo, a capacidade de criarmos
uma outra forma de enxergar o mundo e, além disso, a habilidade de
criarmos outros mundos.
167
Cosmopolitismo kantiano
Carolina Moreira Paulsen
Cosmopolitismo,
Magnífico ideal da humanidade
Desvendado pela pena de Kant
Com magnanimidade
Desde os gregos
Com Zenão
Todo ser humano
É nosso concidadão!
Cosmopolitismo: nobre ideal da razão
Que descreve o cidadão —
Aquele que carrega no coração
A lei moral — e a cumpre com devoção!
Filosofia com Poesia
Hospitalidade,
Humanidade,
Civilidade,
Medidas de progresso da sociedade
Cosmopolitismo: o plano da Providência
Destino do gênero humano
Após tantas guerras, calamidades e atrocidades
A constituição perfeita, a paz, a mútua beneficência
O direito da humanidade
À liberdade
Também diz: todo ser humano, concidadão da Terra
Merece ser acolhido quando foge da guerra
O direito kantiano
De todo ser humano
À universal hospitalidade
Um dia
Em todos os códigos de todas as nações
E em todos os corações
Há de tornar-se realidade.
170
Versos à contra-história da Filosofia — homenagem a
Michel Onfray
André Pereira da Silva
Vamos reconstruir a Filosofia!,
Cauterizar as chagas horrendas
Causadas pelas línguas ávidas
Dos apóstolos e suas lendas.
Vamos reconstruir a Filosofia!
Arrancá-la da história do ressentimento,
Libertar seu corpo vivo e coruscante
Que não suporta ser sonolento.
Vamos reconstruir a Filosofia
E recordá-la de sua voz audaz!
Contra as correntes da cultura
Dos homens “sãos e racionais”.
Filosofia com Poesia
Vamos construir uma Filosofia
Rica de olhos, corpos e seres,
Uma filosofia que será afirmação
Da potência e dos prazeres.
Vamos construir uma Filosofia
Feita por seres livres, libertinos e libertários,
Uma filosofia que valsará alegre
Sobre a sepultura dos reacionários.
Após reconstruída a Filosofia
Em sua companhia vamos seguir
Livres da retórica apodrecida,
Dos que aprenderam a servir.
172
Essa tal filosofia *
Edy Braun
Instalou-se,
donde veio
essa tal Filosofia,
de que mundo
dum jardim
dum seio?
De resposta
nem sussurro
nem um pio
nada, nada veio.
De que cerne
de que rota
de que anseio
essa tal Filosofia
donde veio?
Essa que a tudo
se aplica
sem melindre,
sem rubrica.
Filosofia com Poesia
Senhora de que reino
de que sina?
Vendia, usurpada,
foi menina?
Nasceu grande
ao que parece;
sem amarras
sem enlaces
até
sem preces.
Diz-se, disse:
fez-se fesse:
essa tal filosofia
onde a vida
fez esquina;
disse filo,
fez sofia!!!
174
Filosofia com Poesia
Não, decerto
no deserto fez-se mina,
vertendo solidão
e frio
fesse fio.
Quem diria
quem queria
essa tal filosofia?
Nela o escuro
se fez dia,
da tristeza
nem sempre
o acaso
alegria.
Sobretudo, todavia
abriu a barriga
do mundo
nela descobriu
as tripa,
da costela ordenada
cada ripa;
traçou gêneros,
tempos longos,
espaços curtos,
efêmeros…
175
Filosofia com Poesia
Daí, medindo
foice tudo
o curvo a-retado
fez-se plano.
Quanto engano
foi marcando
essa tal filosofia…
De prima
disse lenda,
útil como
pedra de moenda;
miúda, moída,
essa tal filosofia
se fez prenda!!
176
Filosofia com Poesia
Moeda de troca
num escambo
ignorado,
essa mesma filosofia
troca boi
por papel timbrado.
Então;
nem sei porque
tudo pode
ser trocado,
tronco caído
vira ponte
cada acerto
se quer
sequer errado!
177
Filosofia com Poesia
Essa tal filosofia
sopra juízo
num pré-moldado
ajeitando cuidadosa
o humano inacabado.
Num grito aclamado
alerta o silenciado;
entre o ente e o SER
há muita trava
e mau olhado.
178
Filosofia com Poesia
E de teoria em teoria
suspende o mito
essa tal filosofia,
sem contudo
abandonar alegoria.
No afã
do universo todo
ordenar
essa tal filosofia
principia:
tudo que se afirma
se pode também
negar!!!
179
Filosofia com Poesia
E a cria
dessa tal filosofia
se descobre
“cogito ergo sum” 1
e
se recobre:
‘‘só sei que nada sei,’’²
nesse fluxo
o senso dá noção
da paixão percebida
e aí,
da potência ao ato
‘‘virtus est in medio’’,
que ironia
pressa tal filosofia,
liberdade e bem
o mesmo ethos
não tem...
será?
ou
não convém??!
Meditação da Filosofia Primeira, 1647, Descartes.
² Apologia de Sócrates; O Primeiro Discurso; Platão.
1
180
Filosofia com Poesia
Nos
conflitos da ilusão
essa tal filosofia,
acordar o logos
e a realidade,
presa a ferros;
pari o método
que afoga o rigor
e sem dúvida
transcende agonia,
fazendo da crítica
uma pedagogia
e dum idiotés
apto pruma cidadania.
181
Filosofia com Poesia
O vir a ser
não é um
eterno retorno
mas, deveria…
pro ser poder SER
pro
vir acontecer…
Mama Mia!
à que confusão
nos remete
essa tal filosofia!!
Se num continum
nada cabe de parado,
como pode
essa tal filosofia,
fundar
o presente do passado
ou
o passado do presente,
s num qualquer
plano for traçado??
182
Filosofia com Poesia
Propondo um pensar
com autonomia,
se exercita
essa tal filosofia
por demais
em analogia.
Depois de ter
quase tudo explicado
da physis a psiquê,
diz convicto o geômetra,
no mundo
nada parece o que é
e
por certeza se toma,
mais fenômeno que fé.
183
Filosofia com Poesia
Essa tal filosofia
Medindo submeteu
o mistério,
forjando a cada passo
pro sentir e o pensar
um diverso critério.
Posta tal distinção;
do verbo o silogismo
fez mapa,
tirando dele a intenção,
reduziu o discurso
numa simplória capa.
184
Filosofia com Poesia
Magistral
posição assumida por dedução filosófica;
perguntando,
a gente se entendo,
descobre
o que tem pela frente.
Há gente
que dessa maneira aprende,
até existe
quem se emende
e
ainda há
quem se rende
a essa prática ancestral.
Mas, guarde bem a lição;
respondendo,
a gente se vende!!!
A afirmação
tem + lados
do que a pergunta previa,
e o seu trecho é + curto
do que o conhecimento podia,
a comparação se completa
na mesma filosofia.
Uma ideia defendida
pode sempre ser contestada,
revela do sujeito a intenção
e a direção planejada.
Se boa deve calar
o espírito do inventor
e
por si mesma falar,
quando aplicada for..
185
Filosofia com Poesia
Por ora;
a cópia abunda
e o texto perde valor,
quem cria fica logrado
e o malandro ganhador.
O novo compartilhado
de todo modo é testado
neste estreito corredor
186
Filosofia com Poesia
Sabendo e tendo ciência,
rompe veloz as barreiras
pondo à juízo e à força
práticas da tradição costumeiras.
Essa tal filosofia
na busca por coerência,
supera o senso comum,
num projeto pretenso,
se apegando a prudência,
que para o comum dos mortais
é o conhecido bom senso.
187
Filosofia com Poesia
Essa tal filosofia
pondo o conhecimento
em questão,
repõe a pergunta constante;
se Deus e a natureza
não dão resolução?
Razão e ciência,
ao que parece
também não…
Acredite ou ignores,
a história tem mostrado;
não se acomoda a escores
nem se resume a refrão.
188
Filosofia com Poesia
Essa tal filosofia
tombando um teo
sem mesuras,
requer pra si o poder
afunda criador e criatura.
Elege um ântropos,
medida de todas as coisa,
que se arvora;
a dar sentido
ao alvorecer e aurora,
ao tudo e ao nada
desde antes e depois de agora.
189
Filosofia com Poesia
A ironia moderna
tão diversa da primeira
descobre o duplo sentido;
o encoberto, o fingido,
revelando que o pensar alienado
cria o trabalhador oprimido
nunca um bandido.
190
Filosofia com Poesia
Nem cético em sábio,
ouso afirmar;
que posso conhecer
o universo ao qual pertenço,
seja do espirito ou ao natural,
por contato, por apreço.
Quanto ao que intuo
por qualquer juízo que seja,
juro que não substituto…
prefiro essa realidade benfazeja,
que a emoção contenda;
seja ela ilusória
ou da ficção, atenta…
Penso que a vida por si só
seja o que movimenta;
curta, fugas
e não raro, tão violenta!!!
Ela nos pega a sós
e na integridade rompida;
pura maldade
a morte sabida.
191
Filosofia com Poesia
Não importa
o tamanho da Fé,
o plano da obra,
altura do posto;
o tombo é certo.
Pois;
o preço é outro,
vem sem lastro,
vem sem rastro,
as xxx não vem
sem rosto.
192
Filosofia com Poesia
O tamanho do poder
tampouco
nasce da força
do querer;
raramente sanidade,
limiar sutil
entre loucura e bondade.
Nasce noutras xxx
do estremecer,
que por convicção
não pode ser liberdade!!!
E mesmo no politicamente correto,
se vende beleza,
se entrega a vaidade…
193
Filosofia com Poesia
O que faz de melhor
essa tal filosofia,
senão se perguntar
o quê
como
e
porque
cada coisa é?
Se é por si
ou por nós…
Daí por dedução,
caio na zona
do espanto;
se a coisa é o que é,
não é o que penso…
se é o que penso,
não é…
E no ritmo da descoberta
me encanto!!!
194
Filosofia com Poesia
À que experiência incrível
nos conduz
essa tal filosofia;
dois jeitos de perceber
a verdade
num instante se cruzam,
dois ângulos
do mesmo mundo
se revelam;
o de fora da razão
ou
dá razão pra fora,
e agora?
O objetivo visível
e o subjetivo crível
nesse vai e vem…
não é o que sei
+ o que conserva,
o porém...
195
Filosofia com Poesia
Resta pressa tal filosofia
uma atitude
na busca; pelo que é,
pelo que pode ser…
Aparecem então
os tais princípios,
que permitem
dar fé a razão,
razão pra fé.
Ainda assim não sabemos,
se sabemos o que é.
Na crença de que
ainda possa ser verdade,
se torna possível
a verdade que sabemos…
196
Filosofia com Poesia
As comportas desse mundo
se rompem;
um objetivo mundo subjetivo
se mostra,
mesmo que duvidemos
dum subjetivo mundo objetivo!
E com
a imaginação
à solta
o fenômeno não se mostra
de forma pronta,
nem o saber
é brinquedo de mula tonta.
197
Filosofia com Poesia
Bailamos ao sabor
e ao ritmo das fontes,
deslizamos ao frescor
das substâncias
e das gelatinas
ou na aspereza das nervuras
nos arranhamos.
O que sei por juízo
ou por legítima esperteza;
nenhuma
é sempre líquida ou límpida…
o que refresca
também dói,
o que rasga
desperta o gosto!!!
198
Filosofia com Poesia
Na interação
me dou conta
com ou sem filosofia,
há algo posto
antes de muito,
que existe o deposto
durante e depois de
quase tudo.
A pergunta não se cala
mas fico mudo…
199
Filosofia com Poesia
Essa tal filosofia
Investindo na procura
por alguma certeza,
encontra na técnica
resposta imediata.
Reduz o erro humano
produzindo a eficiência
mas, nesse mecânico processo
alijou o presente
e ao futuro deu acesso.
Ganhamos objetividade
perdendo contudo a excelência.
200
Filosofia com Poesia
E a pergunta já não é
porque o mundo se move,
sim; até quando
vai valer esse olé!!!
Se há um destino previsto,
se posso crer
nas ideias que invisto
ou se permito
que as culpas
se voltem pro Cristo.
201
Filosofia com Poesia
O amanhã é um tempo
que não existe;
na linguagem maestria.
Esse conceito é uma falácia
que a retórica idolatria.
Ela em si não tem fiança,
função só tem mesmo
na ordem da cronologia.
Porque o por vir
só se garante
na criação da esperança,
que pro concreto da vida,
é termo, molde que se cria,
ainda gramática vazia.
202
Filosofia com Poesia
Pressa tal filosofia,
tudo se move
nós passamos
como carros na paisagem,
ela fica
nós marcamos
as etapas da viagem.
Transeuntes, somos todos
nesta breve travessia…
Há nela os que sucumbem
por negar-se alegria,
há nelas os que criticam
no trabalho a mais valia;
nos dois modelos ocorre
a perda de simpatia.
Sempre que uma virtude
é negada
ou alguma informação
é postada
a ação não se esvazia.
Mas, ela pode ser julgada
como atitude vadia.
203
Filosofia com Poesia
Ousada
essa tal filosofia
interrogando sobre a natureza
tendo apenas o juízo
como critério,
diz do mundo e das coisas
o que lhe parece e bem +
o que confirma a experiência,
mesmo sabendo de antemão
que esta como aquela
de algum modo
também é aparência.
Ousa e vai a fundo,
pontuando aqui e acolá
saberes, que se sabe
de ver ou de ouvir falar,
nada descarta no percurso
toma como linha condutora
cada rasto, cada marca,
intuição,
imagem ou discurso.
Nada, nada
escapa
do exercício filosófico
seja micro, seja mega
essa tal filosofia
de algum modo, pega!!
204
Filosofia com Poesia
Há quem diga
da inutilidade
dessa tal filosofia,
por certo
um mercador
nela não investiria.
Um impasse nos negócios
resolve a rebeldia;
como atribuir valor
pro que não é mercadoria?
Esse CARA,
mesmo sem querer
transita nos andares
dalguma economia,
que é a lógica usada
no cotidiano de qualquer filosofia.
205
Filosofia com Poesia
Do indivíduo prum sujeito
são milênios, mil defeitos…
intelecto + vontade,
põe de repente,
João ninguém = homem perfeito!
e
apanhando totalidades
dum jeito correto,
a mesma filosofia
traveste o estranho
o desconhecido
em objeto.
O exterior entronizado
converte o ignorante
no alfabetizado.
E afirma convincente
de que; é possível
conhecer pelo aprendizado.
Pois, Pois conceito,
diz presumindo;
são retenções do ocorrido,
memórias com significado.
206
Filosofia com Poesia
Os déspotas
regurgitam o absoluto
colocando à sombra,
a surda e cega
luta antiga
de fala mansa, nova eloquência
revestida
de mantas
pra cobrir o frio
do inverno.
O povo aquecido
por um instante breve
participa das tramas
do inferno.
207
Filosofia com Poesia
Acostados não reconhecem o sinais
que a benevolência
ocasional serve
e a máxima ideológica
se atreve:
mantendo
o status de rei
disfarça
os NÓS da lei,
encobre
os donos reais
do espaço interno.
E há
quem chame
essa linha tênua
de ESTADO moderno
registro da história oficial
em quase nada ingênua!!!
208
Filosofia com Poesia
Essa tal filosofia
crente numa razão
que se auto redima
põe nas luzes
esperança fraterna
faz trilha…
da ilustração
faz terra.
Supõe
+ nem de longe
deseja
que esta mesma estrela
possa
tão de perto, súbito
propor
um sofisticado
ardil de guerra,
que por campo
de batalha
estendo o medo
fazendo na verdade;
distância
silêncio
segredo.
Luta de força bruta
que verte horror
+ não sangra
por muito que assombra,
que assusta,
encurta é certo
o pano da manga
colocando
homens de terno
em calças curtas.
209
Filosofia com Poesia
Indivisa a servidão
que nesses moldes
se trama.
O grito da liberdade
do ilustrado clama,
pros cidadãos
recém convertido,
só chama,
pros doutrora
mestres de ofício
boia fria e drama!!
Pruns, direito reservado,
privilégio herdado
proutros bolsão de miséria,
marcos da periferia.
210
Filosofia com Poesia
O auge do progresso
oh! doce filosofia,
não traz
pra gente comum
melhores e bons dias.
Nas fábricas triplas jornada,
na vida necessidades,
nas praças sonhos
de liberdade.
Pra cada dia
trabalho, suor ++ nada!
N’alma anseio
pão ázimo
de sustei-o
pruma agridoce salada!!!
211
Filosofia com Poesia
Pros modernos,
tudo se torna
objeto de conhecimento.
São as operações mentais
que personalizam o evento,
criando na interação
instituições de toda ordem
e pra cada qual
seu argumento;
que aparecem no contraditório,
no áspero,
no risco,
no oratório.
Cultivam a lágrima só por encantamento.
212
Filosofia com Poesia
E a modernidade se eterniza
como bom momento;
nela rompe-se
quase demais,
o muito escasso
duma moral
de puro atrevimento,
aplicada ao desembaraço
e ao consentimento.
213
Filosofia com Poesia
E a natureza galileica,
escrita no livro do mundo,
precisa dum leitor de cálculo.
Ela se ajeita
entre as coisas,
de causa e efeito;
seu equilíbrio, puro movimento.
Só na régua
dela se faz leitura perfeita!!!
214
Filosofia com Poesia
Todavia, entre as coisas e fatos
praquela filosofia;
a contingência
exige
relações necessárias,
aqui como lá,
a mecânica agência,
produz,
conserva
e
destrói…
Pedra de toque
da clássica ciência.
215
Filosofia com Poesia
Porém, a realidade
nessa forma
inteira, não cabe.
Prela, essa condução
não serve!!!
Ela acontece;
se fraqueja a tensão,
emudece,
desaparece…
Bem + pulsão
tem a vontade,
cuja razão
a cria,
nela intervém
se altera…
216
Filosofia com Poesia
Mesmo movimento
resultado diverso,
no verso;
o clássico científico
não pode ser estornado
eo
tecnológico se revela
no experimento.
O invento aperfeiçoado
recria
o inventor e o inventado.
217
Filosofia com Poesia
O humano passo a passo
desapercebido passa,
de condicionador a condicionado,
de controlador a controlado.
Invertem-se os papéis.
A série determina
o granulado
o seriado
e,
em série
o perfil é programado,
o pensador já é pensado…
Desencantado o passado,
o futuro se apresenta
e o presente ignorado.
218
Filosofia com Poesia
O real buscado
a priori aprisionado
não se enquadra
todo as regras,
tão simplesmente.
Ao se lhe dar
contornos
fluem suas vertentes.
E o apanhado
nesse design
por demais
é breve e rijo
pra que a realidade
contente.
219
Filosofia com Poesia
O princípio
serve à princípio
a si mesmo,
que se exercita
na lógica
da ferramenta.
É afirmação,
estratégia segura
em tempos
de grande tormenta!
220
Filosofia com Poesia
A consciência
que a razão comporta
abre pro real
muitas janelas,
ainda que fechando portas.
Contudo
e é pena,
pra cada uma delas
põe ferrolhos,
conduzindo a luz
pras lentes do olho…
daí a moral
que devia ser livre,
tem limites!!!
221
Filosofia com Poesia
E o logos
que essa razão assenta
se põe dissonante
de outras atitudes
e o oposto, disposto
entre o que se sabe
e o que é de fato
ou de gosto,
aparenta
onde; a ilusão opina,
a paixão enverga,
a revelação, luz fátua,
o êxtase, transporte
sem mediação…
cada qual
emoção sentida
sequer pensada.
222
Filosofia com Poesia
A diferença radical
entre
intelecto e o coração;
o 2º puro gozo
o 1º só expressão
ainda que o homem
seja o mesmo
e outra
não seja a mão.
223
Filosofia com Poesia
Eu aqui
nesse extenso,
que não têm diâmetro.
Nesse tempo,
que não tem hora
perplexa;
reconheço a conservação
como necessidade
pra saber de mim
e dos outros
senão;
não posso afirmar
nem sim, nem não.
224
Filosofia com Poesia
Reconheço a contradição
e a polaridade
do meu universo
que nasce da palavra e da ação.
Reconheço o dilema;
a verdade não pode estar
em 2 lugares.
225
Filosofia com Poesia
Reconheço que tudo
o que existe, CAUSA
porisso tem um intento.
Me recuso
ao acaso como origem,
entretanto aceito
pra início de conversa
o acidente!!!
226
Filosofia com Poesia
Desde que
me conheço por gente
aceito; o universal
o horizontal...
percebo nesse alinhado
o particular
o transversal
transitando
no contingente,
nele
a necessidade
é adstringente.
227
Filosofia com Poesia
Nessa filosofia mesma,
o assombro
o deslumbre
e a aventura
se amoitam
por demasia
no convergente!
E gente
só se pode ser
aquém ou além
do indiferente!!!
228
Filosofia com Poesia
Sobretudo
essa tal filosofia,
presenteia
aos cegos
e aos surdos/mudos
um treino
de labor virginal,
aonde o divergente
o diferente retrata.
E o marginal
sem cobertura
se apresenta,
se representa
flexiona
refrata
performance autoral
de pura nata!!!
229
Filosofia com Poesia
Será que essa tal filosofia
quer chegar a algum lugar?
Já sabemos
que andarilha
perguntando
sobre quase tudo
mesmo de si
começa a duvidar.
E SERÁ??
que da caverna,
tirou o chimpanzé
nomeou-o
classifica homem
e colocado em pé,
de recurso
já não serve
pra dizer quê
cada coisa é??
230
Filosofia com Poesia
Crédula,
da razão mundana
disse do amálgama
original, fundante…
que não se deixa
notar pelo passante.
Reclassificou o humano
como anjo caído
que ao céu
pode alcançar
Se e Se
do lobisomem
perder o pelo
e
e em lua cheia
dedicar-se ao desvelo
de si
derredor
e
derredor de si
e
+ bem +
colocar o instinto
marinar
num molho
de vinho tinto…
231
Filosofia com Poesia
Um semideus
talvez,
na verossemelhança
ou
por que não
escultura formada
nas areias de monção
que
ainda que bem deseje
nasce ali
e ali mesmo
o vento
por suave que seja
o decompõe
depõe
repõe
despeje...
Permanecendo
algo desse movimento
inalterável
apesar de tanta viração.
232
Filosofia com Poesia
De repente
essa tal filosofia
se descobre
metafísica na contramão.
Mas,
afastando a cortina
tão belamente tecida
em tratados e manuscritos
pela eficiência
duma análise criteriosa,
de bom juízo,
retoma o trecho andado
iluminado o revirado
o FIM
previsto e denunciado
num segmento
é colocado,
acaba o começado!!!
233
Filosofia com Poesia
A dúvida de novo
em estado de inércia,
paira
até que uma outra história
desminta aquela
que cegamente é repetida
ou uma ciência qualquer
defina;
que aquilo que acaba
nem sempre termina,
raramente pode ser negada
como a fonte das águas de mina.
234
Filosofia com Poesia
Srªs e Sr.s;
apertem os cintos, tapem os ouvidos,
levantamos voo
ruma ao conquistado.
Olhem ao redor
que maravilha,
tudo foi acordado!!!
Já não há fronteiras;
o poli,
o pluri,
o multi,
os trans,
Estão catalogados!!
Cada barreira,
cada obstáculo,
progressivamente
foi
rompido,
derrubada…
ATENÇÃO, ATENÇÃO!!
Antes de aterrizar,
acesse
o banco de dados.
Esqueça as placas
os outdoors
os LINKS
estão atualizados
*até 2hrs
Demorou-se?
235
Filosofia com Poesia
Não entendeu os sinais
CARA, que pena...
Veja o conta direito
da tela;
aqui nesse
ALOCADO
Por tempo indeterminado
Nesta lógica
muitos dos saberes
tem andado…
Cientistas,
especialistas,
projetistas,
recriam e o porvir
e o por vir,
nem se mostra
e
já vem embrulhando,
já tem endereço, garantia de mercado.
*
Uma primeira versão desta poesia encontra-se publicada na coletânea Textos para
ensinar e aprender essa tal de filosofia, organizada por Ester Maria Dreher Heuser e
Wilson Antonio Frezzati Jr.; publicada pela EDUNIOESTE, em 2016. A presente versão é
revisada e ampliada.
236
Sobre os autores
André Luís Borges de Oliveira
Doutorando em Filosofia. Mestre em Filosofia e Ensino e
bacharel e licenciado em Letras. Pesquisa a relação da cultura brasileira
com suas raízes coloniais a partir da Literatura e da Filosofia. Já
trabalhou com: Poética, cinema, filosofia com crianças. Atualmente, é
professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
André Pereira da Silva
É graduando em Filosofia na Universidade Estadual do Sudoeste
da Bahia (UESB). Tem desenvolvido pesquisa no campo da Ética e da
Política sob a perspectiva hedonista e ateia assumida por filósofos
marginalizados pela historiografia clássica, como Epicuro, Barão d’
Holbach e Jean-Marie Guyau.
Filosofia com Poesia
Arthur Alves Almeida Soares de Melo
Quando criança, gostava de brincar com as palavras, variando a
entonação. Um dia, chegou com uma redação que tinha escrito sobre
as aventuras do Super-homem e foi bastante elogiado. Formou-se
advogado e aprendeu a bitolar palavras. Do uso, desuso, reuso,
recuperou o gosto pela palavra, palavra-brinquedo, palavra-salvação.
Escreve como quem caminha sem rumo, reparando na paisagem. Mas,
quando re-para, vê sentido, vê beleza. Isso satisfaz.
Carolina Moreira Paulsen
É mestranda em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas,
com bolsa da Capes. Possui especialização em Direitos Humanos pela
Universidade de Coimbra e atuou como consultora de organismos
internacionais e advogada.
Cleiton Luiz Kerber
Possui bacharelado em Teologia pela Universidade La Salle,
Bacharelado em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS) e Formação Pedagógica em Filosofia pelo Centro
Universitário Internacional (UNINTER). É professor de Ensino Religioso
e Filosofia, e trabalha na formação de Jovens Lideranças que atuam em
Comunidades Educativas e como Voluntários em realidades de
vulnerabilidade social. Possui artigos e capítulos de livros publicados na
área da filosofia política e da educação, de teologia e de literatura em
suas diversas expressões culturais, sociais e teóricas.
238
Filosofia com Poesia
Daniel Rodrigues Ramos
Nome dado para um menino que veio à existência no interior
do Brasil central, no Goiás de Catalão. Tinha ele a tarefa da sua
identidade, ser-quem; nada modificado doutros nascidos de qualquer
parte, até de igual no nome. Diferença — só para ele, o tal nome de
cunho diz o mesmo que:
1. Filho do Cerrado. Fechado, denso, portanto. Nomeia quem é
torto e rude, feito aos arbustos e arvoredos dessa paisagem. De
abertura espessa e existência apertada. Resistente à aridez,
porque contorcido de tanta sequidão. Quem possui a rudeza
típica desses campos: rebenta em flor e vida na estação das
secas.
2. Vocacionado para a filosofia. Aprendiz do pensar. Da arte de
contorcer-se na solidão.
3. Um tal doutor em Filosofia, feito nos estrangeiros. Que ensina
na Universidade Federal do Tocantins e, ora pois, morador de
certa cidade levantada do chão do Cerrado de norte bandas:
Palmas. Paradeiro daquele quem — é ele? que sou eu — à
procura de uma paragem.
4. Quem pesquisa Fenomenologia e, certa feita, publicou O
Ereignis em Heidegger. Está a publicar migalhas de pensamento
239
Filosofia com Poesia
fenomenológico,
ditas
artigos.
Talvez,
ensaios;
escritos
pedregosos de muito desajeito no entretecer do pensamento.
5. Quem é nas cercanias do saber de como é possível estar em
casa em toda parte, mas sem ter chão e quinhão em lugar
nenhum. Perdeu os fios de sangue que prendem à terra natal e
busca encontrar abrigo nesse desamparo. Ou a caminho das
veredas; como quem espera arraigar-se em raízes profundas no
semisseco, à beira-riacho. Desavença de existência com tino e
destino, de nome a experiência do pensamento ou a poesia do
cerrado.
O mesmo é plurívoco. Portanto, diz quem é tudo isso, a cada
vez ou ao mesmo tempo. Mas também diz, nisso tudo, nada. São só
alcunhas. Mas dizer o nada: o enigma dos nomes, o mistério da
identidade.
Fonte: Dicionário de singularidades, de um observador duplicado do cerrado.
240
Filosofia com Poesia
Edy Braun
Bio-grafia
Nascida
na cabeceira do Rio
embalada
pelo sussurro
das águas
mansas
que se avolumam
e assombram
na queda
Aprendi com os patos
a conter o ritmo
das correntes
e por x x x
deixei-me
levar
no prazer das
nadaduras
O céu refletido n’água
dos remansos
tirou meu espiríto
do chão
que alçando voo
se fez pato
nem cordão
em fileiras no espaço
não todo tempo
nem o tempo
todo
241
Filosofia com Poesia
Muitas x x x mergulhei
no céu que o rio
me mostrava
bom também
contudo
porém,
preferi minhas asas
em exercício
de subida
fiz das asas patos
e não raro
das velas
asas
tudo voado
assim,
tomando d’água
do céu
e metendo-me
nos céus
dessas águas
que a vida
oferece
e a gente
aprende
e se diverte
ou
padece...
E nessa onda
pinto
e a natureza – tece
242
Filosofia com Poesia
Jorge Luiz Domiciano
É mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) e possui graduação em História pela
Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Seus tópicos de
estudo são: História e Cinema; História da Tecnologia; Filosofia da
Tecnologia e Filosofia da Informação.
Júlio da Silveira Moreira
Nasceu em 1983 na cidade de Goiânia. Iniciou em Goiás seus
estudos e trabalhos na advocacia, na docência e no ativismo. Formouse em Direito e atuou na Associação Internacional dos Advogados do
Povo. É professor universitário desde 2009 e atualmente está lotado na
Universidade Federal da Integração Latino-Americana, onde é docente
no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos LatinoAmericanos. No mestrado, apresentou uma proposta de ensino e prática
do Direito Internacional com base no marxismo. No doutorado em
Sociologia, pesquisou a travessia de migrantes pelo México, e acabou
de concluir o pós-doutorado em Filosofia, pesquisando a obra do
psiquiatra austríaco Viktor Frankl. É autor dos livros Direito
Internacional: para uma crítica marxista e Violência contra Migrantes
no México e o livro de poesias Na Beira do Rio, bem como algumas
dezenas de capítulos de livros e artigos. É membro e entusiasta do
Instituto Quero Saber.
243
Filosofia com Poesia
Matheus Silveira de Souza
No início da adolescência, pegou alguns livros de poesia na
biblioteca da sua cidade natal e entre eles havia uma antologia de
Fernando Pessoa. Pela pouca idade que tinha, não entendeu muito bem
o que lia, mas sentiu que suas alegrias e angústias estavam descritas no
papel por alguém que havia partido há muito tempo. Desde então, lê
poesia e escreve versos.
Talita Moreau
Nascida em São Paulo (1988), filha de migrantes nordestinos,
passando a maior parte da infância em Manaus, a vida adulta foi
dividida entre Uberlândia e Belo Horizonte. Houve também uma
temporada em Portugal nas cidades de Évora e Lisboa estudando
Práticas Artísticas em Artes Visuais. Hoje a moradia é em Uberlândia.
Formada tecnóloga em Produção Audiovisual, licenciada em
Artes Plásticas e mestranda em Filosofia, tendo como subtema da
pesquisa: Arte e Estética. Professora de Artes na rede pública, com
experiência profissional que passa por áreas técnicas ligadas a televisão
e teatro, educação formal e informal em Artes Visuais, e produção de
conteúdo na área de Artes Visuais, com ênfase em Pintura e
Audiovisual, tendo participado de exposições e projetos nacionais e
internacionais.
Criar com as palavras ou com cores, formas, linhas e texturas é
uma tentativa de cortar os fluxos e respirar instantes de liberdade, de
compartilhar esses respiros, na esperança de criar conexões com o
outro.
244