A fotografia na obra
de Mendes Correia (1888-1960):
Modos de representar, diferenciar
e classificar da “antropologia colonial” 1
PATRÍCIA FERRAZ DE MATOS
Introdução: To see is to know
Agradeço o apoio da Fundação para
a Ciência e a Tecnologia (SFRH/BPD
91349/2012), as informações dadas por
Norberto Santos Júnior e o material
disponibilizado pelo Centro de Memória
em Torre de Moncorvo.
2
Johann Caspar Lavater, Physiognomische
Fragmente, 4 vols. (Leipzig e Winterthur:
s.n., 1775-78).
3
Christopher Pinney, “The Parallel
Histories of Anthropology and
Photography” in Elizabeth Edwards, org.,
Anthropology & Photography, 1860-1920,
(Londres, Royal Anthropological Institute,
1992), pp. 74-95.
4
O tema da antropologia física e da
antropometria no caso português é tratado
em Nuno Luís Madureira, “A estatística do
corpo: antropologia física e antropometria
na alvorada do século XX”, Etnográfica,
vol. 7, n.º 2 (2003), pp. 283-303.
1
A fotograia é um meio de registo. Em geral, os registos são feitos por iniciativa individual ou solicitados – por alguém com propósitos e objectivos próprios – e posteriormente podem ser seleccionados, organizados e arquivados.
O contexto do registo começa com a expectativa individual da sua criação, ou
com a solicitação de determinados elementos e com o processo de captação da
própria imagem, que inclui a utilização de materiais especíicos sob condições,
por vezes, especiais. O público-alvo do registo pode ser escolhido e a forma
como é apresentado pode inluenciar a percepção de quem o observa.
A prática de utilizar imagens de humanos para estabelecer comparações, de
forma mais sistematizada, e inicialmente sob a forma de desenhos, remonta aos
estudos isionómicos e à obra de Johann Caspar Lavater (1741-1801), que procurou estabelecer relações entre a aparência externa e a constituição interna 2.
Com Lavater, a isiognomonia, que tomava em conta a classe social e a “raça”
tornou-se comum. O método consistia em medir partes do corpo, representar essas medidas graicamente e estabelecer comparações; o seu objectivo era
procurar “tipos” físicos distintos ou inventariar tipos físicos raciais, regionais
ou nacionais. Com a descoberta da fotograia, a técnica de observação passou
a ser aplicada ao registo que ela permitia, sendo possível desenvolver, a partir
deste, estudos de isiognomonia comparativa.
A fotograia permitiu dar continuidade a uma tradição de estudos no
âmbito da medicina e da antropologia física, que utilizava os desenhos, assim
como os elementos antropométricos, facilmente observáveis e mensuráveis, e
um conjunto de instrumentos, que procuravam obter dados “objectivos” facilitadores do desenvolvimento do método comparativo. As práticas antropométricas do século XIX serviram também para transformar o vivo no quieto, o
sujeito no objecto, e nesta transmutação residiu a deinição de ciência e objectividade 3. Tais práticas foram paralelas a outras análises que incidiam em
medições e/ou quantiicações como, por exemplo, estatísticas do corpo, pulsações por minuto, respiração abdominal, temperatura corporal e peso 4. Nascida
com o positivismo, a fotograia tornou-se uma execução material do pressu45
1. Classificação / Missão
posto de objectividade preconizado por essa corrente. Enquanto instrumento
positivista e revelador do real e da natureza, a fotograia, segundo a máxima
“ver é conhecer” (to see is to know), materializava a realidade e constituía uma
parte do todo 5. A noção segundo a qual ver é conhecer está associada a outra
– a de que o conhecimento pode ser visualmente representado e facilmente
transportável para audiências distintas, ou é passível de ser impresso em vários
formatos. O alargamento dessa prática fez com que ela se generalizasse pelos
inais do século XIX e inícios do século XX.
Os indivíduos que foram analisados puderam desse modo deslocar-se do
terreno para o laboratório. Um dos manuais mais antigos e conhecidos para
a recolha de dados é o impulsionado por Edward Burnett Tylor (1832-1917),
intitulado Notes and Queries on Anthropology (1874) 6. O seu objectivo era
orientar os viajantes, e alguns habitantes de locais considerados ainda não civilizados, para coligir dados etnográicos, incluindo fotograias. Tais recolhas
seriam posteriormente a base para a teorização antropológica no Reino Unido.
Por outro lado, a utilização da fotograia nos trabalhos antropológicos foi inicialmente proposta pelo cirurgião e antropólogo Paul Broca (1824-1880), fundador da Escola de Antropologia de Paris, segundo o qual o busto devia ser
fotografado com a cara de frente e de peril e com os braços estendidos. Nesta
modalidade, adoptada entre outros pelos antropólogos físicos portugueses, é
evidente a rigidez da postura e a falta de expressividade dos rostos. Denota-se
ainda a diferença de poder instituída entre o observado e o observador.
Através da câmara fotográica e, ao contrário do trabalho desenvolvido
pelos investigadores, susceptível de ser contaminado pela subjectividade, a
fotograia permitiria, no entender dos seus praticantes, não exagerar ou distorcer a realidade 7. Assim, ao ser dos poucos que permitiam ixar e guardar
realidades que estavam a ser adulteradas, ou condenadas a desaparecer, era um
objecto privilegiado. Considerava-se ainda que esse fenómeno existia tanto nas
metrópoles ocidentais como nas sociedades coloniais. A partir de meados do
século XIX a imagem fotográica foi divulgando também o contexto colonial,
dando conta de actos oiciais, ilustrando aspectos técnicos ou documentando,
do ponto de vista etnográico, trabalhos cientíicos. Podiam ser impressas em
livros, jornais, postais para um público alargado (não necessariamente especializado), ou divulgadas em ilmes documentais.
Como facilmente se pode veriicar, tanto a antropologia como a fotograia tiveram histórias paralelas. Uma das primeiras referências à utilidade do
processo fotográico para a antropologia encontra-se no manual produzido
pela Ethnological Society of London (criada em 1843), intitulado A Manual of
Ethnological Inquiry, para ser distribuído por missionários, militares, cientistas e viajantes 8. O seu carácter confuso, uma vez que contemplava o levantamento de aspectos especíicos, mas complexos, tanto do ponto de vista físico
como sociocultural, foi o suiciente para convencer a British Association for
the Advancement of Science, patrocinadora do projecto, a cancelar o mesmo.
Mas não sem antes James Cowles Prichard (1786-1848) o ter revisto como
uma contribuição para o Manual of Scientiic Inquiry (1849), isto é, um livro
46
Expressão associada também a uma
ideia que se fez passar durante as grandes
exposições, do século XIX e inícios do
século XX, nas quais eram exibidos aos
países do Atlântico Norte indivíduos
provenientes de países de outras latitudes,
considerados exóticos e amiúde sob a
jurisdição de uma administração colonial.
Sobre a exposição de seres humanos nas
grandes exposições organizadas pelos
portugueses, vide Patrícia Ferraz de Matos,
“Power and Identity: The Exhibition of
Human Beings in the Portuguese Great
Exhibitions”, Identities. Global Studies in
Culture and Power, vol. 21, n.º 2 (2013b),
pp. 202-218.
6
Anónimo, Notes and Queries on
Anthropology, for the Use of Travelers and
Residents in Uncivilized Lands (Londres:
Edward Stanford, 1874). Publicado através
de várias edições entre 1874 e 1951.
7
Nuno Porto, Modos de Objectificação da
Dominação Colonial: O Caso do Museu do
Dundo, 1940-1970 (Tese de doutoramento,
Coimbra, FCTUC, 2002), p. 151.
8
Anónimo, “A Manual of Ethnological
Inquiry”, Journal of the Ethnological Society
of London (1848-1856), pp. 190-208. Nele,
o estudo da variabilidade humana incluía
aspectos físicos e socioculturais.
5
A fotografia na obra de Mendes Correia (1888-1960)
Michael T. Bravo, “Ethnological
encounters”, in N. Jardine, J. A. Secord e
E. C. Spary, Cultures of Natural History,
(Cambridge, Cambridge University Press,
1996), p. 344.
10
No método sugerido por Huxley não
são dadas instruções fotográficas mais
detalhadas acerca da focagem ou da
iluminação, ao contrário do que aconteceu
posteriormente com o sistema de Bertillon
para a antropometria criminal, que
procurou elevar o trabalho fotográfico a
uma ciência exacta e sistemática (Elizabeth
Edwards, “Professor Huxley’s ‘Wellconsidered Plan’” in Elizabeth Edwards,
Raw histories: photographs, anthropology and
museums, (Oxford, Berg, 2001), p. 138.
11
Edwards, “Professor Huxley’s
‘Well-considered Plan’”, p. 133.
9
de bolso que cobria todas as áreas cientíicas, incluindo instruções ilológicas. Estas últimas tinham como objectivo ajudar os viajantes a apurar as suas
competências auditivas, já que para construir listas de vocabulário e registar
elementos fonéticos de outras línguas (ao contrário de outras áreas, como a
observação visual ou a botânica), eram importantes as capacidades de ouvir,
recordar, reproduzir e articular sons estrangeiros e novas palavras 9.
Uma das práticas dominantes desta altura foi o mapeamento de características raciais. Em 1869, e enquanto presidente da Ethnological Society of London, o biólogo darwiniano homas Henry Huxley (1825-1895), iniciou um
projecto com vista a produzir um registo fotográico das “raças do império britânico”, sendo tal facilitado pelo Colonial Oice em Londres. De acordo com
Huxley, grande parte das fotograias antropológicas tinham pouco valor porque não eram tiradas num bom plano. Com vista a produzir um documento
fotográico que permitisse dados comparáveis, Huxley sugeriu que os indivíduos fossem fotografados nus, com poses estabelecidas, de frente e de peril, que cada pose fosse acompanhada por uma escala de medida colocada no
mesmo plano do indivíduo e que a câmara estivesse a uma distância ixa relativamente ao fotografado. Contudo, este método veio a revelar várias diiculdades técnicas, nomeadamente na determinação da estatura 10. Este mapeamento
somático permitia a sistematização dos dados e a sua utilização no método
comparativo, que tinha como objectivo, a partir da inventariação de elementos biológicos, a diferenciação e a determinação das supostas “raças” humanas.
Todavia, e apesar de podermos insinuar que a fotograia é uma metáfora da
verdade objectiva – uma noção a que aludiu Elizabeth Edwards 11 –, o caso do
trabalho de Huxley veio a revelar falhas que não permitiram a aceitação total
da evidência fotográica para a antropologia então emergente: por um lado, as
tensões existentes no contexto colonial impediam uma caracterização homogeneizada; por outro, a fotograia não podia ser aceite, de forma ingénua, como
sendo realista. Por seu turno, em meados dos anos 70 do século XIX, Francis
Galton (1822-1911) desenvolveu um método fotográico composto no sentido
de delinear o “tipo” humano e isolar as suas características, o que constituiu
uma trajectória na antropologia física e, mais tarde, na eugenia. Esta ideia de
tipo está associada à de indivíduo privado de agência.
Num texto sobre a utilização da fotograia no Museu do Dundo em Angola
durante o período colonial, Nuno Porto distingue “tipo” e “retrato”. Segundo
o autor, os retratos de nativos foram criados como objectos de conhecimento
e, posteriormente, tornaram-se itens de troca cerimonial. Nesse contexto,
foram tiradas fotograias a chefes nativos, que eram os representantes das suas
“raças”, mas também os mediadores entre a administração colonial e a população local. Nos retratos, a estética formal do “tipo”, com o fundo neutro, e as
vistas de frente e de peril, foi substituída por uma fotograia mais informal
produzida num espaço que, ainda assim, está inserido no contexto colonial.
Sobressaem, contudo, dois registos: o do nativo “tribal” e o do nativo “assimilado”. Além disso, enquanto o “tipo” era restrito aos serviços da Diamang,
aos interesses de trabalho, aos serviços de saúde ou à antropologia física, já o
47
1. Classificação / Missão
retrato implicava a sua circulação pública 12. Apesar de muitos dos chefes nativos incluídos nos retratos serem reconhecidos em apenas alguns campos restritos, e de as suas fotograias não signiicarem nada, paradoxalmente, e como
que para compensar essa falta, segundo Nuno Porto, elas funcionam muito
bem, embora não da mesma forma para todas as pessoas, já que estamos a falar
de uma “cultura colonial” 13 – essencialmente incerta, circunstancial e experimental 14.
De facto, a partir dos inais do século XIX, a fotograia passou a fazer parte
dos estudos antropológicos de forma mais sistematizada, tornando-se um
modo de representação visual privilegiado 15. Numa disciplina caracterizada
por Margaret Mead como uma disciplina de palavras 16, a imagem, e a fotograia em especial, foi e continua a ser uma fonte primordial para a antropologia.
Desde então a fotograia passou a ser utilizada como: uma técnica no trabalho de campo; um instrumento analítico no laboratório; um meio de registar
aspectos etnográicos e de, eventualmente, os divulgar em trabalhos, no sentido de os ilustrar visualmente. No presente capítulo irei explorar o papel que
a fotograia teve enquanto elemento de documentação de trabalhos de teor
antropológico e, por vezes, como instrumento auxiliar de algumas práticas
antropológicas da primeira metade do século XX. A partir da obra de Mendes
Correia, antropólogo e arqueólogo, formado em medicina pela Escola Médico-Cirúrgica do Porto e mentor da Escola de Antropologia do Porto, analisarei
o modo como a fotograia foi utilizada em artigos cientíicos que se debruçavam sobre o império e como foram retratados alguns indivíduos que se encontravam sob a administração colonial portuguesa. Mostrarei como a fotograia
foi sempre solicitada no âmbito das suas pesquisas e esteve presente nos vários
contextos de trabalho em que se envolveu: nas sessões da SPAE; nas aulas práticas da cadeira de Antropologia da FCUP; no âmbito dos estudos de antropologia criminal; no CEEP; nas missões antropológicas e em duas das suas
obras principais – Timor Português (1944a) e Raças de Império (1943). No caso
deste segundo livro analisarei a obra, em geral, e as fotograias que dele fazem
parte, sobretudo as que se referem ao âmbito colonial, em particular. Como
veremos no inal, as fotograias relacionadas com a obra de Mendes Correia
eram tomadas à partida como relevantes, uma vez que ilustrariam o “real”,
tomado amiúde como estando a desaparecer. As fotograias captariam o “real”
e registá-lo-iam para conhecimento futuro. Tal procedimento, baseado no já
referido princípio de que “to see is to know”, virá contudo a denunciar as limitações de algumas práticas antropológicas e, por outro lado, a expor as indeterminações e as diiculdades suscitadas no contexto do colonialismo português.
A fotografia na obra de Mendes Correia
Mendes Correia valorizou a utilização da fotograia. Quando apresentava
propostas de pesquisa, contemplava sempre a solicitação de inanciamento
para aquisição de máquinas fotográicas e ilmes de revelação. Porém, muitas
48
Nuno Porto, “‘Under the gaze of the
ancestors’: Photographs and performance
in colonial Angola” in Elizabeth Edwards
e Janice Hart, org., Photographs, Objects,
Histories, (Londres e Nova Iorque,
Routledge, 2004), p. 121.
13
O autor recorre à expressão de Nicholas
Thomas para quem as culturas coloniais
foram caracterizadas mais por uma
grande indeterminação e experimentação
social do que pela sua agenda prescrita.
Nicholas Thomas, Colonialism’s Culture:
Anthropology, Travel and Government
(Cambridge: Polity Press, 1994).
14
Porto, “‘Under the gaze of the
ancestors’…”, pp. 128-129.
15
Elizabeth Edwards, por exemplo,
examina o papel da fotografia no método
antropológico nos finais do século XIX
em dois projectos desta altura, um em
Inglaterra e outro na Alemanha. Elizabeth
Edwards, “Photographic ‘types’: The pursuit
of method”, Visual Anthropology, n.º 3
(1990), pp. 235-258.
16
Margaret Mead, “Visual Anthropology
in a Discipline of Words” in Paul Hockings,
org., Principles of Visual Anthropology (The
Hague, Mouton, 1975), pp. 3-10.
12
A fotografia na obra de Mendes Correia (1888-1960)
No caso de várias escavações
arqueológicas em que Mendes Correia
participa é o seu irmão (Humberto Mendes
Correia), engenheiro de formação e
profissão, quem realiza as fotografias. Parte
desse espólio está no Museu de História
Natural da UP.
18
Modalidade na qual as imagens eram
projectadas e ampliadas numa parede,
ou outra superfície, e que antecedeu a
projecção cinematográfica.
19
Patrícia Ferraz de Matos, Mendes
Correia e a Escola de Antropologia do Porto:
contribuição para o estudo das relações entre
antropologia, nacionalismo e colonialismo em
Portugal, (Tese de Doutoramento, Lisboa,
ICS, 2012).
20
Mendes Correia, Antropologia: Resumo
das lições feitas pelo Assistente, servindo
de Professor da Cadeira (Porto: Imprensa
Portuguesa, 1915).
21
Mendes Correia, Os Criminosos
Portugueses: Estudos de Antropologia
Criminal (Porto: Imprensa Portuguesa,
1.ª ed., 1913; Coimbra: F. França Amado,
2.ª ed, 1914).
22
http://digitarq.cpf.dgarq.gov.pt/
details?id=39150, acedido em 6.12.2011.
23
http://www.redeconhecimentojustica.
mj.pt/Category.aspx?id=78, acedido em
6.12.2011.
24
http://digitarq.cpf.dgarq.gov.pt/
details?id=39150), acedido em 6.12.2011.
17
vezes não existe nas propostas um fotógrafo oicial contratado, ou seja, quem
estava encarregue das restantes recolhas deveria também tratar das fotograias, mediante directrizes que lhe eram transmitidas 17. As fotograias, e também as “projecções luminosas” 18, eram utilizadas com alguma frequência nas
conferências proferidas na SPAE (sociedade da qual foi fundador em 1918 e
presidente a partir de 1929) pelos seus sócios 19. Por outro lado, a utilização de
fotograias de frente e de peril fazia parte das componentes “observação antropológica no vivo” e “estudo de um crânio”, a par de elementos como “caracteres descritivos” e “antropometria”, incluídos nos assuntos leccionados nos
“Trabalhos práticos de Antropologia”, previstos para o ano lectivo de 1915-1916 da cadeira de Antropologia, ministrada por Mendes Correia na
FCUP 20. O programa da componente prática da cadeira permite-nos concluir
que a presença dos elementos mensuráveis, assim como dos meios para os
alcançar, têm um carácter predominante e um estatuto preferencial. Tal escolha encontra-se também em trabalhos de autores seus contemporâneos, que
vêem esses elementos como promissores de análises mais objectivas e conclusões mais correctas. As observações podiam ser efectuadas no corpo vivo
ou no esqueleto; as no vivo permitiam a descrição de caracteres, a medição
de partes do corpo, a realização de fotograias de frente e de peril, o preenchimento de ichas (antropométrica e dactiloscópica), assim como a determinação dos coeicientes de robustez física e o estudo da cor dos olhos e dos
cabelos. Já as observações do esqueleto eram dirigidas sobretudo para o crânio
e incluíam a sua descrição, medição e fotograia.
Outra área em que a fotograia foi valorizada por Mendes Correia foi a
da antropologia criminal 21. Em Portugal a tradição de estudos neste âmbito
vem de inais do século XIX com a realização, por exemplo, da tese de doutoramento de Roberto Frias, intitulada O Crime, apontamentos para a sua sistematização (1880), quatro anos depois de ter sido publicado o inluente L’uomo
delinquente de Cesare Lombroso. Os anos 80 e 90 do século XIX assistiram
ao nascimento e consolidação de instrumentos de controlo da criminalidade,
e dos indivíduos considerados criminosos, e ao aprimorar de técnicas e instrumentos de mensuração do corpo. De acordo com a legislação que cria os
Postos Antropométricos (de 17.8.1899) seria necessário “tomar as medidas
antropométricas de todos os presos que derem entrada na Cadeia Central”
(Art. 81.º, 2.º) 22. Ainda em 1899 considera-se que os postos antropométricos
deveriam estar apetrechados com o sistema Bertillon junto das Procuradorias Régias (Decreto-lei de 16.11.1899) e em 1901 criam-se postos de recolha
de fotograias, medidas físicas e impressões digitais nas cadeias civis de Lisboa, Porto e Ponta Delgada (Decreto-lei de 21.9.1901) 23. Segundo o Art. 77.º
do decreto de 1901, as cadeias teriam um posto antropométrico destinado ao
estudo da antropologia criminal e a auxiliar “os serviços policial e dos tribunais na veriicação exacta, tanto quanto possível, da identidade dos indivíduos
que n’elas derem entrada”. A par de várias especiicidades físicas a colocar no
boletim de identiicação do preso, eram realizadas fotograias, de frente e de
peril, às quais pertencia um número de ordem 24.
49
1. Classificação / Missão
A 2 de Março de 1902 foi criado, por António Ferreira Augusto, o Posto
Antropométrico Central, junto da Cadeia Civil e do Tribunal da Relação do
Porto, sob a direcção de Luís de Freitas Viegas, professor catedrático de Anatomia na Escola Médico-Cirúrgica e fundador e primeiro presidente da SPAE.
O Posto Antropométrico viria a ser o local de arquivo de milhares de ichas
antropométricas e dactiloscópicas, assim como de fotograias de indivíduos
considerados “delinquentes” 25. As exigências relativas à captação de fotograias foram aplicadas primeiro no Posto Antropométrico da Cadeia da Relação
do Porto, num trabalho realizado por Horácio José Leitão. O fundo documental deste posto, hoje à guarda do Centro Português de Fotograia, é constituído
essencialmente por retratos de presos, mas inclui outra documentação da referida cadeia 26. Nesta análise não irei, contudo, incluir as fotograias captadas na
prisão, em hospitais, ou na Tutoria da Infância do Porto (onde Mendes Correia emitia pareceres, enquanto médico, acerca de várias crianças e jovens), em
locais que Michel Foucault designaria como espaços de vigilância, em que o
poder de resistência é negado 27. O contexto sobre o qual me irei debruçar será
o produzido numa “situação colonial”, ou seja, caracterizado pela negociação
entre vários e distintos poderes 28.
No âmbito da sua ligação ao CEEP, sediado na UP, primeiro como vogal
da direcção e depois como presidente, Mendes Correia também reservou um
lugar importante para a fotograia. Enquanto esteve ligado àquele centro procurou obter fundos para as despesas com esse material de registo. Para organizar a secção de etnograia do CEEP, convidou o antropólogo portuense Jorge
Dias (1907-1973), que a partir de 1947 começou a constituir uma equipa de
colaboradores no sentido de desenvolver uma investigação no domínio da
etnologia e da etnograia portuguesas. Esses colaboradores eram: Margot
Dias (1908-2001), Fernando Galhano (1904-1995), Ernesto Veiga de Oliveira
(1910-1990) e Benjamim Pereira. Do plano de investigação da equipa fazia
parte a elaboração de uma cartograia etnográica do país. Havia uma preocupação com a exaustividade e com a sistematização, sendo a fotograia utilizada como elemento de investigação; o mesmo ocorria com a necessidade de
desenhar os objectos, tendo tido Fernando Galhano um papel fundamental
nessa função 29.
As fotograias tiveram um papel determinante também no âmbito das missões antropológicas. Segundo as orientações de Mendes Correia, dirigidas aos
participantes da missão antropológica de Moçambique, por exemplo, entre
o material técnico deveriam estar os elementos necessários à realização dos
trabalhos de antropologia física, tais como estojos antropométricos 30, escalas
para a cor dos cabelos, olhos e pele, e material fotográico (máquinas e vários
metros de ilme), todos fornecidos pelo IAUP. Nas cartas que lhe foram dirigidas, o seu colaborador Santos Júnior, responsável pela missão antropológica de
Moçambique, faz menção ao uso de fotograias enquanto descreve a diversidade na recolha de elementos (biológicos, culturais e arqueológicos) e as condições adversas dos trópicos: “tirei muitas fotograias e iz alguns desenhos de
tatuagens, de mãos e de pés, e alguns apontamentos esboçados de peris labiais
50
Mendes Correia, A Escola Antropológica
Portuense (Lisboa: s.n., 1941), p. 14.
26
Em 1997 foi realizada uma exposição
com fotografias deste fundo (AAVV,
Murmúrios do Tempo, Porto: Centro
Português de Fotografia, 1997).
27
Michel Foucault, Vigiar e Punir:
Nascimento da prisão (Edições 70, 2014
[1987]).
28
Utilizo a expressão de Georges Balandier
para referir o contexto colonial, que
reuniu em territórios definidos indivíduos
diferentes entre si e conduziu a relações de
poder (dominação versus subordinação).
Georges Balandier, “The Colonial Situation:
a theoretical approach” in Pierre L. van
der Berghe, Org., Africa: Social Problems
of Change and Conflict, (San Francisco,
Chandler, 1951), pp. 34-61.
29
A partir de 1949 o CEEP divide-se nas
secções de: “pré-história” (dirigida por
Mendes Correia), “antropologia física” e
“biologia humana” (dirigida por Alfredo
Athayde) e “etnografia” (dirigida por Jorge
Dias). Só a 18.5.1954, com a publicação
da portaria 14.886, foi criado o CEEU, em
Lisboa, com o apoio do ISEU e da JMGIU,
que já incluía a vertente ultramarina.
30
A expressão utilizada pelo autor é
“trousses antropométricas”. Usualmente, as
“trousses anthropométriques” incluíam pinça
de medir, compasso de calibre e fita métrica,
entre outros.
25
A fotografia na obra de Mendes Correia (1888-1960)
Figura 1. Missão antropológica a
Moçambique (campanha de 1948).
Norberto (filho de Santos Júnior)
realizando as medições aos nativos na
varanda do Posto de Larde. Centro de
Memória, Torre de Moncorvo.
Carta de Santos Júnior a Mendes Correia,
9.10.1945, Museu de História Natural da
FCUP.
32
Carta de Santos Júnior a Mendes Correia,
16.10.1946, Museu de História Natural da
FCUP.
33
Ana Cristina Roque, “Missão
Antropológica de Moçambique:
Antropologia, História e Património” in
Ana Cristina Martins e Teresa Albino, org.,
Viagens e Missões Científicas nos Trópicos.
1883-2010, (Lisboa, IICT, 2010), pp. 84-89.
34
Clara Carvalho, “O olhar colonial:
antropologia e fotografia no Centro de
Estudos da Guiné Portuguesa”, in Clara
Carvalho e João de Pina-Cabral, org.,
A Persistência da História: Passado e
contemporaneidade em África, (Lisboa, ICS,
2004), p. 136.
31
e de narinas” 31. Em outra carta airma: “estudei 12 anomalias de pés tendo
tirado fotograias e feito desenhos e impressões dermo-papilares” 32.
Da missão antropológica de Moçambique, com campanhas em 1936, 1937-38, 1945, 1946, 1948 e 1955-56, resultou um número considerável de fotograias – 2733 segundo Ana Cristina Roque 33. No que respeita às imagens fotográicas, e apesar do interesse inicial nas recolhas incidir, provavelmente, mais
no âmbito da antropologia física e dos estudos antropométricos (figura 1), elas
permitem perceber que existem outras preocupações e se procura dar conta
de outros elementos – matérias (roupas, adereços), contextos (locais, festividades, sepulturas), quotidiano (actividades económicas, embarcações, identiicação de plantas), património cultural (utilização de tecidos, máscaras,
pinturas faciais) e património ediicado (igrejas, pontes). Tal como acontece
em algumas fotograias publicadas no Boletim Cultural da Guiné e analisadas
por Clara Carvalho, várias vezes “os sujeitos retratados não são nomeados” e “a
sua identiicação vai assentar nas tipologias étnicas e nas categorias de género
(‘mulher felupe’ ou ‘homem balanta’, por exemplo)” 34. Estas fotograias da missão antropológica a Moçambique não foram publicadas, nem mesmo na altura
da missão. Por outro lado, ainda que com uma intenção etnográica, algumas
imagens foram captadas por funcionários da administração colonial, ou pelos
seus colaboradores, e com a anuência de autoridades locais, como os régulos,
denunciando assim as estruturas do poder colonial, mas também o facto de
que as missões antropológicas não poderiam ter sido realizadas sem a colaboração da contraparte local (figura 2).
No âmbito do que entendia ser uma antropologia colonial, Mendes Correia publicou, entre vários trabalhos, as obras Timor Português, Contribuições para o seu estudo antropológico (1944a), sobre um dos locais do chamado
império colonial português, e Raças do Império (1943) sobre todos os locais
51
1. Classificação / Missão
Figura 2. Missão antropológica a
Moçambique (campanha de 1948).
Da esquerda para a direita: Norberto
Santos Júnior (filho de Santos Júnior),
Administrador Farinhote, Régulo
Maculá, Dr. António Augusto e Chefe
de Polícia Santos*. Centro de Memória,
Torre de Moncorvo.
Segundo as informações cedidas por
Norberto Santos Júnior em Agosto de 2010
em Moncorvo.
*
desse império, incluindo a metrópole e os seus territórios insulares (Açores e
Madeira), que tratarei nos pontos seguintes 35.
As fotografias do livro Timor Português (Correia, 1944a)
Timor Português é a primeira grande monograia que se realiza em Portugal
sobre esse território. Trata-se de um texto longo (235 páginas), que vem a ser
pioneiro dos trabalhos de António de Almeida e de Ruy Cinatti 36. Para Mendes
Correia, uma das características de Timor é não só a diversidade em termos de
grupos humanos (onde podemos distinguir os que têm “traços” malaios, traços melanésios ou papua, e ainda os que não são facilmente identiicáveis), mas
também a variedade linguística. As 50 fotograias de Timor Português apresentam-se a preto e branco e estão colocadas para além do texto, em páginas próprias e impressas em papel especial (figura 3). Possuem, na maioria das vezes,
uma legenda e uma pequena descrição, podendo indicar, embora raramente,
a informação de quem as cedeu, como é o caso de Abel Tavares (duas fotograias) e do capitão Correia de Campos (duas fotograias). No que concerne à
sua descrição, o autor utiliza amiúde a expressão “talvez” quando indica elementos, ou classiicações, do âmbito da antropologia física 37. No entanto, e em
comparação com o livro Raças do Império (1943), é notório que assume uma
maior predisposição para incluir classiicações físicas e, dada a inexistência de
certezas a esse nível, daí advém, provavelmente, a utilização dessa expressão.
Por vezes, é indicada a existência de uma doença ou essa possibilidade, o que
denuncia o seu interesse e os conhecimentos relativamente à área médica 38.
Há ainda várias fotograias que não se referem especiicamente a indivíduos e
suas características físicas, mas a práticas culturais, construções, habitações,
52
Sobre os trabalhos produzidos por
Mendes Correia, vide Matos, Mendes Correia
e a Escola de Antropologia do Porto.
36
António de Almeida, “Da onomásticatabu no Timor Português – antropónimos
e zoónimos”, In Memoriam, III (1974),
pp. 9-26; Ruy Cinatti, “Alguns aspectos de
mudança social no Timor Português”, In
Memoriam, vol. 3 (1974), pp. 95-105.
37
Nas legendas das fotografias surgem
expressões como: “proto-malaio”,
“europóide”, “melanesóide”, “dêuteramalaia”, “vedóide”, “vedo-australóide” e
“caucasóide”.
38
Tal acontece nas estampas XIII e
XXXVII, onde nos informa da existência de
“mongolóidismo”.
35
A fotografia na obra de Mendes Correia (1888-1960)
Figura 3. “Mulheres de Loré (Lautém),
descansando e peneirando arroz”.
Estampa XLIV do livro Timor Português,
Mendes Correia, 1944a. Fotografia
cedida por Abel Tavares.
Estas fotografias – cerca de 549 – foram
inicialmente organizadas num álbum,
conhecido por “Álbum Fontoura”, do qual
existirão três exemplares: Álvaro Fontoura,
Colónia Portuguesa de Timor, (S.l.: s.n.,
1936-1940 [?]). Vide http://www.ics.ul.pt/
ahsocial/fontoura/apresentacao/Default.
htm, acedido em 20.5.2014.
40
Essa viagem foi descrita posteriormente
em Mendes Correia, Um Mês em Timor.
Palestras na Emissora Nacional, na Série
“A Ciência ao Serviço da Humanidade”
(Lisboa: s.n., 1955).
39
actividades quotidianas ou indumentária. Além das fotograias, o livro contém
três desenhos a cores.
Da obra Timor Português faz parte a descrição e a medição dos timorenses que participaram na Exposição Colonial do Porto (1934) e na Exposição
do Mundo Português (Lisboa, 1940) e centenas de fotograias de timorenses de
várias regiões, encomendadas pelo tenente-coronel Álvaro Fontoura, governador de Timor entre 1937 e 1940 39. Mendes Correia só viria a visitar o território em 1953, durante um mês 40. Contudo, e apesar do carácter de trabalho de
laboratório que Timor Português revela, o livro foi recebido a nível nacional e
53
1. Classificação / Missão
internacional. Arthur Keith, por exemplo, felicitou o autor pela obra através
de uma carta, enviada a 6.2.1945, onde enaltece a utilização das fotograias da
colecção de Fontoura; segundo o próprio, “if you cannot diagnose a man’s race
from his photograph, you will never succeed by calipers or mathematics” 41.
Este trabalho despertou, no entanto, o seu interesse para alguns aspectos
que pôde apreciar melhor aquando da sua visita ao território em 1953. Nessa
ocasião averiguou as condições para a instalação de um “Centro de Estudos
local e promover trabalhos convenientes” 42. O centro de investigação seria
criado ainda nesse ano e reuniria a antropologia física, a pré-história, e a recolha de elementos variados – número de ilhos, mutilações étnicas, línguas,
alimentação e outras práticas culturais. A partir de 1953-54 uma equipa de
antropólogos, coordenada por António de Almeida, desenvolveu no local um
novo estudo, tendo trabalhado com Mendes Correia, Ruy Cinatti, entre outros.
Todavia, no que respeita às pesquisas feitas sobre Timor (as de Mendes Correia
e as de António de Almeida, principalmente) faltou, segundo Maria Johanna
Schouten, “uma valorização das culturas tradicionais”; além disso, a actuação
da administração colonial portuguesa caracterizou-se “pela indiferença, por
campanhas militares sangrentas e pela exploração económica” 43.
As fotografias do livro Raças do Império (1943)
O livro Raças do Império foi divulgado pela Editora Portucalense em fascículos coleccionáveis, num total de 625 páginas, entre 1943 e 1945. Destinado a
um público geral e não especializado, seria no entanto, segundo o autor, de
grande utilidade para “colonialistas, administradores, missionários, educadores, etc.” 44. É constituído por oito capítulos e resulta de um esforço de inventariação e descrição dos diversos habitantes dos territórios então administrados
por Portugal, incluindo a metrópole e as ilhas adjacentes, que perfaziam “vinte
milhões de portugueses”. Trata-se de uma obra extensa, com vários pormenores, desenhos e fotograias. Algumas descrições prendem-se com elementos de
geograia, climatologia, arqueologia e pré-história. Partindo da pré-história do
país, no sentido de conhecer as origens dos portugueses, o autor faz a história da sua expansão por outros territórios. Para cada um deles, elabora a descrição dos primórdios e analisa os grupos que os constituem. Estes incluíam a
“população metropolitana” nas suas variedades (de Miranda ou do Ribatejo) e
as “gentes” com que os portugueses estiveram em contacto ao longo da história
e que, para o autor, estavam em “estados muito diversos de civilização”, tinham
“atitudes psicológicas variadíssimas” e constituíam uma “heterogeneidade de
tipos, de idiomas, de tendências” 45.
No estudo da diversidade humana Mendes Correia mostra apreço pelas
tarefas que permitem uma melhor sistematização. Assim, tal como tinha abordado na cadeira de Antropologia da FCUP, salienta a importância dos caracteres raciais – descritivos e métricos 46. Refere que os utilizados no estudo e
classiicação das “raças” humanas são: a) os da morfologia externa 47; b) os
54
“Se não pode diagnosticar a raça de um
homem a partir da sua fotografia, nunca
poderá ser bem-sucedido com as pinças de
medir ou a matemática”. Processo n.º 306 de
António Augusto Esteves Mendes Correia,
1.º volume, IICT. Doc. n.º 99.
42
Carta de Mendes Correia (presidente
da JMGIU), de 16.7.1953, dirigida ao
presidente da comissão executiva da JMGIU.
Processo n.º 306 de António Augusto Esteves
Mendes Correia, 2.º volume, IICT. Doc. 225.
43
Maria Johanna Schouten, “Antropologia
e colonialismo em Timor português”,
Lusotopie, vol. 8, n.ºs 1-2 (2001), p. 167.
44
Mendes Correia, Raças do Império (Porto:
Portucalense Editora, 1943), p. 6.
45
Correia, Raças do Império, p. 603.
46
Correia, Antropologia: Resumo das lições
feitas pelo Assistente.
47
1. Cor da pele; 2. cor dos olhos e
dos cabelos; 3. forma do olho;
4. desenvolvimento do sistema piloso;
5. amplitude e inclinação da fronte; 6. forma
e proeminência das arcadas supraciliares;
7. proeminência das maçãs do rosto;
8. forma do nariz; 9. espessura e
reviramento maior ou menor dos lábios;
10. proeminência do mento (queixo);
11. forma dos seios na mulher;
12. linhas palmares e impressões digitais; 13.
esteatopigia (saliência das nádegas
[vide figura 4 deste capítulo]);
14. conformação dos órgãos genitais
externos; 15. afastamento maior ou menor
do dedo grande do pé, etc. (Correia, Raças
do Império, pp. 18-24).
41
A fotografia na obra de Mendes Correia (1888-1960)
Pressão arterial, metabolismo basal,
agudeza visual, composição química do
sangue e cheiro do corpo.
49
Funcionamento do sistema nervoso e
actividades psicológicas (força muscular,
agudeza de sentidos [visão, paladar], escalas
métricas de inteligência).
50
Correia, Raças do Império, pp. 18-45.
51
Correia, Raças do Império, pp. 25, 38.
52
Durante este período foram criadas
estruturas como a JMGIC (1936), o SPN
(1933-1944), a MCCA (1937), o SNI
(1944-1974), os cruzeiros às colónias,
as Semanas das Colónias na SGL, e
vários periódicos que se encarregaram
de divulgar os conhecimentos sobre o
império colonial português (Patrícia
Ferraz de Matos, The Colours of the Empire.
Racialized Representations during Portuguese
Colonialism [Oxford e Nova Iorque:
Berghahn Books, 2013a]).
53
Por exemplo: Egon Freiherr von Eickstedt
(antropólogo físico alemão); Josep Maria
Batista i Roca (historiador e etnólogo
catalão); Felix von Luschan (médico,
antropólogo e arqueólogo austríaco,
fundador de uma escala cromática utilizada
para classificar a cor da pele); Renato
Biasutti (antropólogo físico italiano); Ernst
Manker (antropólogo sueco, especialista
nos Lapões); Arthur Keith (anatomista
e antropólogo escocês); L. Cipriani
(antropólogo físico italiano e um dos 42
signatários do documento “Manifesto da
Raça” produzido no contexto do fascismo
italiano); George Montandon (médico e
antropólogo físico francês); H. Lundborg
(antropólogo físico sueco); Edwin
Meyer Loeb (antropólogo sociocultural
americano); Johannes Pieter Kleiweg de
Zwaan (antropólogo físico holandês);
Martin Gusinde (padre e etnólogo alemão,
especialista nos índios da Terra do Fogo);
Erwin Baur (geneticista e botânico), Eugen
Fischer (médico e antropólogo físico) e Fritz
Lenz (geneticista) – todos eles alemães e
autores de um livro sobre hereditariedade e
higiene racial; Samuel Schwarz (engenheiro
de minas e historiador polaco, de religião
judaica).
54
A estes indivíduos é associado, por vezes,
um “tipo”, baseado nas características
fenotípicas, na zona onde vivem, ou
na profissão que exercem. Embora essa
classificação possa ser inspirada em outros
autores, como Fonseca Cardoso, alguns
exemplos são: “tipo médio de pescadora
poveira” (Correia, Raças do Império,
p. 192); “pescador poveiro de tipo semítico-fenício” (idem, p. 192); “minhoto do tipo
nórdico” (idem, p. 195); “beirão do distrito
de Viseu (tipo ibero-insular, baixa estatura,
dolicocéfalo, moreno)” (idem, p. 204);
“habitante de Alenquer, tipo mediterrâneo
48
antropométricos (estatura, índice cefálico e índice nasal); c) elementos internos (dimensões de vísceras, diferenciação de músculos e grupos de músculos,
dimensões e morfologia do cérebro); d) elementos de isiologia 48 e de “psicologia racial” 49; e) caracteres culturais: vida material, vida psíquica e outros
elementos 50. O professor reconhece que as inluências do meio (alimentação,
saúde, condição social) podiam inluenciar a estatura, por exemplo, mas esta
continuava a ser um carácter distintivo de “raças”. Por outro lado, regista que,
ao nível da isiologia e da “psicologia racial”, “a superioridade dos brancos em
conjunto aparece nítida na maior parte dos estudos levados aefeito” 51. Em termos teóricos, refere-se às orientações predominantes no estudo das manifestações culturais, como a escola evolucionista e a escola histórico-cultural
(tendo como representantes Frobenius, Ankermann, Grabner, Schmidt, entre
outros).
O investimento que a obra revela está ligado ao contexto em que foi produzida, no qual a divulgação do império foi uma das grandes apostas do Estado
Novo 52. É nesse sentido que deve ser entendida a quantidade e a diversidade
de imagens que o livro inclui, em fotograia e desenho, a preto e branco e a
cores. Grande parte das ilustrações são da autoria de José Luiz. As fotograias
são a preto e branco e colocadas no texto ou em páginas ao lado do mesmo.
Possuem uma legenda e uma pequena descrição, podendo incluir a indicação de quem as cedeu, ou a quem pertencem, quem as captou ou os autores
das obras de onde foram retiradas. Mendes Correia recorre a publicações de
outros autores (estrangeiros na sua maioria), procurando assim dar conta da
diversidade humana a nível mundial. Apoia-se em alguns deles para estabelecer uma inventariação da humanidade e procura avançar para uma classiicação das “raças” que habitavam o planeta e, especiicamente, das que estavam
sob a alçada da administração colonial portuguesa. Apesar da obra incluir
desenhos e outras imagens, como reproduções fotográicas de pinturas, nesta
análise considerei apenas as fotograias.
Quanto ao conteúdo, as fotograias podem ser divididas de acordo com
os temas que evidenciam. Por um lado, as características físicas de elementos humanos provenientes de todo o mundo, baseando-se sobretudo no trabalho de autores estrangeiros 53, incluindo-se aqui os habitantes de várias regiões
de Portugal 54 e indivíduos que viviam sob a administração colonial – de Portugal ou de outros países. Por outro lado, as manifestações sociais e culturais, incluindo a cultura material proveniente de escavações e a representação
de iguras nacionais em monumentos, em pintura ou escultura. Outros temas
presentes eram: primatologia; paleontologia e arqueologia 55; cientistas portu-
de alta estatura, pele morena, olhos verdes,
cabelos castanhos-claros” (idem,
p. 222).
55
Neste âmbito inclui imagens dos
trabalhos de: Émile Cartailhac; Henri Breuil;
Hugo Obermaier; Marcellin Boule; Arthur
Woodward; e Hans Weinert. Cita também
autores portugueses que vão demonstrando
o progresso desses estudos no país: Paula e
Oliveira; Barros e Cunha; Santos Júnior; e
elementos do grupo da Portugália (como
Fonseca Cardoso, Ricardo Severo e Rocha
Peixoto), utilizando fotografias da colecção
da Portugália.
55
1. Classificação / Missão
gueses; retratos de iguras nacionais; tentativa de articulação entre características físicas e socioculturais; e iguras do “império”, colonizadoras ou autóctones.
As divisões por mim sugeridas devem ser compreendidas tendo em conta
também o modo como o autor distingue natureza e cultura (que deine como
sendo o que o ser humano adiciona à primeira). Entre as manifestações culturais inclui vários aspectos da vida humana: 1. aspectos da vida material
(alimentação, habitação, vestuário, enfeites, higiene, indústria, transporte,
agricultura, caça, pesca, domesticação e criação de animais, fabrico de cerâmica, cestaria, armadilhas de caça ou de pesca, uso de excitantes e narcóticos,
geofagia, canibalismo e antropofagia); 2. aspectos da vida social (cerimónias
e ritos de puberdade, circuncisão, estudo das línguas e dos sinais) 56; 3. aspectos de organização social (relação entre géneros 57 e entre familiares, educação
das crianças, cerimónias relativas ao nascimento, casamento e morte, regime
de propriedade, organização política, noções de direito e justiça, sociedades
secretas, fórmulas de polidez, atitude para com estrangeiros, guerra, moeda
e comércio); 4. e aspectos da vida psíquica (religião, superstições, luta contra espíritos ou contra doenças, hierarquia social, dança, música, poesia, artes
plásticas, moral, mitos, ciência popular) 58. O livro acaba, contudo, por não
ter espaço para analisar individualmente cada um desses aspectos, mas tão-somente dar alguns exemplos dispersos e não sistematizados.
A obra possui centenas de fotograias, cujo conteúdo remete para temas
muito distintos. Contudo, o objectivo deste texto é tratar o contexto colonial
e, especiicamente, o império colonial português. Assim, analisei apenas as
fotograias que foram obtidas nos espaços de além-mar administrados pelos
portugueses, ou que captaram habitantes desses espaços na então metrópole,
por exemplo, aquando das grandes exposições que foram realizadas no país,
ou que de outra forma possam estar relacionadas com esse contexto. Por essa
razão, foram excluídas, por exemplo, as fotograias respeitantes ao Brasil que,
não obstante, são interessantes, pois procuram destacar a inclusão de elementos considerados “civilizados” (roupa e alguns adereços), como acontece na
fotograia de um grupo de bororos, especiicamente vestidos para a ocasião
fotográica, e na de um “índio civilizado do Brasil”, segundo a legenda, que
enverga uma farda militar 59.
As fotografias do império colonial português
em Raças do Império (1943)
As fotograias que respeitam ao contexto colonial foram por mim divididas entre os seguintes temas: características físicas (dados no vivo); manifestações sociais e culturais (inclui aqui as manifestações artísticas); articulação
entre características físicas e socioculturais, ou ambas 60; paisagens; paleontologia (inclui a arqueologia); e iguras do “império”. Considero que o tema-conjunto “características físicas/características socioculturais” se justiica
quando não há uma prevalência de uma delas a destacar: ou porque a foto56
Correia, Raças do Império, pp. 43-44.
Mendes Correia utiliza a expressão
“sexos”.
58
Correia, Raças do Império, pp. 44-45.
59
Correia, Raças do Império, pp. 256-257.
60
A separação entre umas (físicas) e outras
(socioculturais) não é, contudo, simples;
algumas vezes a determinação para a
escolha de uma delas esteve relacionada
com a forma como foi captada a fotografia,
tentando indagar qual terá sido o aspecto
a destacar por parte do fotógrafo, ou de
quem solicitou o trabalho. Nesse sentido,
considerei que quando é dado destaque
ao rosto, ou realizado um grande plano
do mesmo, evidenciando alguns traços,
o propósito terá sido o de dar relevo
às características físicas do indivíduo,
isolando-o de todas as características
socioculturais que a imagem pudesse
suscitar.
56
57
A fotografia na obra de Mendes Correia (1888-1960)
Para além de advogado em Lisboa
durante os anos 30 do século XX, foi
fotógrafo de várias zonas de África.
61
graia pode sugerir uma articulação implícita entre ambas, quando se destaca
a adopção de indumentária mais ocidental por parte dos mestiços, mais evidente no caso das mulheres, por exemplo; ou porque, ainda que de uma forma
subentendida, se associam determinadas práticas, ou comportamentos, a grupos humanos especíicos com características físicas supostamente identiicáveis; ou ainda porque, apesar do corpo estar fotografado, na maioria das vezes,
da cintura para cima, não são apenas os traços físicos que se tornam evidentes (como acontece no caso de fotograias feitas com indivíduos nus, ou vestidos, no laboratório, cuja intenção é destacar os traços visíveis de frente e de
peril, como aconselhavam as práticas antropométricas e de antropologia criminal), mas também determinados adereços, penteados ou indumentária, que
podem ser associados a um determinado grupo ou prática cultural. No caso
das mulheres mestiças de Cabo Verde, ou de São Tomé e Príncipe, a sua indumentária inclui sempre blusas ou vestidos, colares, ios, chapéus ou lenços na
cabeça, o que é, de facto, contrastante com as mulheres guineenses, angolanas ou moçambicanas, cuja indumentária não inclui, na maioria das vezes,
esses adereços considerados “ocidentais” ou potencialmente denunciadores de
alguma aculturação.
De acordo com os critérios apresentados, a análise incidiu sobre um total de
239 fotograias divididas da seguinte forma: características físicas (33); manifestações sociais e culturais (130); características físicas/socioculturais (65); paisagens (2); paleontologia (8); iguras do “império” (1). Estes números revelam-nos
o seguinte: mesmo que as fotograias que incidem sobre as características físicas (33) sejam somadas às que considerei como incluindo características físicas e socioculturais (65), o seu total (98) não excede o número de fotograias
que destacam manifestações sociais e culturais (130); tal pode surpreender
o leitor se à partida estiver à espera de encontrar mais fotograias que evidenciem as características físicas, ou os dados privilegiados pela antropologia
física naquela altura. De facto, ainda que as manifestações sociais e culturais
possam estar, algumas vezes, ligadas ao desejo de mostrar um certo exotismo
dos grupos humanos sob a administração colonial, prevalecem nesta obra as
fotograias que a elas se referem. Porém, a componente da antropologia física
está bem presente. Uma dessas evidências é o surgimento de 12 fotograias
tiradas de peril (entre as 33 que se debruçam sobre as características físicas),
de acordo com as normas dessa altura.
Alguns livros de onde foram retiradas fotograias, relativas aos espaços do
império colonial português, são da autoria do antropólogo e fotógrafo austríaco Hugo Adolf Bernatzik (1897-1953) e do fotógrafo irlandês Alfred Martin
Duggan-Cronin (1874-1954), cujo trabalho se desenvolveu essencialmente na
África do Sul. Ainda quanto à autoria das fotograias, existem entre o grupo
seleccionado trabalhos de: Elmano da Cunha e Costa, que é o fotógrafo mais
presente, com 77 fotograias 61; tenente-coronel Luís António de Carvalho Viegas, governador da Guiné de 1933 a 1941 (19 fot.); Ezequiel de Campos, engenheiro de obras públicas em São Tomé e Príncipe (quatro fot.); e colaboradores
de Mendes Correia no IAUP, como Santos Júnior, chefe de várias campanhas
57
1. Classificação / Missão
da missão antropológica a Moçambique (12 fot.), e Leopoldina Paulo, assistente de Mendes Correia na cadeira de Antropologia na FCUP e primeira
mulher doutorada pela UP (duas fot.). Por último, e embora em minoria, algumas não têm a indicação de quem as captou ou de que arquivo, ou colecção,
fazem parte.
Um aspecto que ressalta à vista é o facto de as fotograias não terem a elas
associadas uma data ou um período de contextualização. Desse modo, acabam por icar como que ixas num tempo, ou são assim tornadas intemporais.
O pouco que delas podemos concluir é que terão sido captadas algures no
período colonial situado entre os inais do século XIX e o início dos anos 40
do século seguinte, até 1943, altura em que a obra foi publicada. Como aponta
Elizabeth Edwards, por vezes a fotograia tornou-se uma metáfora de poder,
ao ter a capacidade para apropriar e descontextualizar o tempo, o espaço e
aqueles que nelas iguram 62. Por outro lado, a diversidade dos temas presentes nas fotograias ilustra os múltiplos interesses de Mendes Correia no âmbito
da antropologia, uma ciência que, segundo a sua visão, incluía vários ramos e
especialidades 63.
No que respeita às colecções a que pertencem, as fotograias que incluem
essa informação estão assim distribuídas: AGC (96), IAUP (21), JMGIC (8),
SGL (5) e MAUP (1). Tal disposição ilustra as principais instituições que estavam a apoiar o desenvolvimento de estudos sobre as colónias e que existiam
sobretudo na então metrópole, não só nas universidades (neste caso na UP,
com o IAUP e o MAUP), mas também em locais que lhe eram independentes
e existiam há vários anos, como a SGL (desde 1875), a AGC (desde 1924) e a
JMGIC (desde 1936). Algumas das fotograias identiicadas como pertencendo
ao IAUP foram captadas por colaboradores de Mendes Correia, aquando da
vinda de indivíduos para participarem na Exposição Colonial do Porto realizada em 1934. Ali, pela primeira vez para alguns, houve a possibilidade de
realizar observações no vivo. Tal evento foi paralelo ao I Congresso Nacional de Antropologia Colonial, realizado entre 22 e 26 de Setembro de 1934,
por iniciativa e com a organização da SPAE e o apoio da direcção da referida
exposição realizada entre 15 de Junho e 30 de Setembro desse ano. Essa ocasião constituiu uma forma de trazer o campo ao laboratório e Mendes Correia e os seus colaboradores não quiseram perder essa oportunidade. Foi assim
possível “estudar exaustivamente mais de 300 indígenas” pelos investigadores
que trabalhavam nos Institutos de Antropologia da FCUP e de Anatomia da
FMUP 64. Realizaram-se várias “observações antropológicas”, que consistiram
na análise de “caracteres descritivos, caracteres antropométricos, grupos sanguíneos, metabolismo basal, alguns caracteres isiológicos e psicológicos” 65.
Por vezes, são estabelecidas relações entre estes caracteres 66. Contudo, além da
predominância dos estudos de antropologia física, veriica-se que esses indivíduos foram tomados como representativos dos elementos do grupo de onde
vinham e a partir daí foram feitas generalizações relativamente a grupos maiores. A inventariação da suposta diversidade biológica em “tipos” tinha também
como objectivo averiguar as capacidades físicas, mentais e psicológicas que
58
Elizabeth Edwards, “Introduction” in
Elizabeth Edwards, org., Anthropology &
Photography, 1860-1920, (Londres, Royal
Anthropological Institute, 1992), p. 7.
63
Matos, Mendes Correia e a Escola de
Antropologia do Porto.
64
AAVV, Trabalhos do I Congresso Nacional
de Antropologia Colonial, Vol. I (Porto:
Edições da I Exposição Colonial Portuguesa,
1934), pp. 28-29; Anónimo, “Homenagem
ao Prof. Dr. Mendes Corrêa”, Extracto de
Trabalhos de Antropologia e Etnologia,
vol. 13, n.os 1-2 (1951), p. 6.
65
Mendes Correia, O Instituto de
Antropologia da Universidade do Porto e
a investigação científica colonial (Porto:
Imprensa Portuguesa, 1934), p. 15.
66
A relação entre corpos e comportamento
foi tratada em George W. Jr. Stocking,
org., Bones, Bodies, Behaviour. Essays on
Biological Anthropology (HOA, vol. 5)
(Londres: University of Wisconsin Press,
1988). As tentativas de correlacionar
caracteres morfológicos com parâmetros
comportamentais, nomeadamente na
tradição norte-americana e francesa durante
o século XIX, foram analisadas em: George
W. Jr. Stocking, Race, culture and evolution.
Essays in the history of anthropology
(Chicago: University of Chicago Press,
1968); Nancy Leys Stepan, The Idea of
Race in Science: Great Britain 1800-1960
(Londres: MacMillan Press, 1982); e
Stephen Jay Gould, A Falsa Medida do
Homem (Vila Nova de Famalicão: Círculo
de Leitores, 2004 [1981]).
62
A fotografia na obra de Mendes Correia (1888-1960)
Figura 4. “Mulher boximane de
Angola (Mucancala) com um filho:
esteatopigia”. Raças do Império,
Mendes Correia, 1943: 27. Colecção do
IAUP.
eram consideradas estar-lhes associadas. Conhecendo melhor essas capacidades podiam controlar-se melhor os indivíduos que estavam sob a administração colonial e destinar-lhes o trabalho, ou as tarefas, mais adequados.
Como acréscimo, existe um lado teratológico na fotograia, ou seja, ela
pode contribuir para ixar, analisar e difundir o conhecimento acerca de algumas doenças, malformações congénitas e situações físicas consideradas aberrantes. Tais aspectos não eram, contudo, explorados apenas nas colónias, mas
neste caso procurava-se estudar também a forma como determinadas doenças
ou malformações podiam evoluir especiicamente naquele contexto. Assim,
em algumas fotograias é indicado o nome de uma malformação especíica,
como acontece na figura 4, o que demonstra a propensão e o interesse de Mendes Correia para a área médica. Há ainda a destacar o facto de a mulher ter
59
1. Classificação / Missão
sido fotografada de peril e de o seu ilho ter sido colocado de costas e apoiado
num instrumento de medição.
Além do protagonismo dado aos caracteres físicos (como a forma do cabelo
ou a espessura dos lábios), alguns são associados ao que o autor entende por
caracteres físicos inferiores, o que acontece, por exemplo, na legenda referente
ao africano que surge na página 22 e pode resultar numa ideia que estimula
o preconceito alargado relativamente aos africanos 67. Este aspecto relaciona-se com a forma como o autor via a questão racial. No livro o termo raça surge
como elemento diferenciador e de classiicação, mas acaba por ser também de
hierarquização e de discriminação, já que, embora raras vezes de forma explícita, como acontece na referida legenda da página 22, alguns indivíduos são
considerados possuidores de caracteres físicos inferiores. O autor reconhece a
ideia de raça como associada à heterogeneidade, estando esta ligada a “diferenças de costumes, de organizações sociais, de tendências psicológicas” e não apenas a aspectos biológicos, embora estes venham a ser bastante utilizados para
formalizar e apoiar as suas classiicações. De um modo geral, os vários grupos humanos do “império” são assim divididos e classiicados: a) continente
e ilhas (“milhões de leucodermes, em que predominam elementos mediterrânicos”); b) colónias (“negros sudanenses, bantos angolenses e moçambicanos,
restos de populações pré-bantos e boximanes-hotentotes, mouros e indianos
de várias estirpes raciais, chinas, indonésios, inluências vedo-australóides e
melanésio-papuas, […] mestiços”) 68. A utilização de caracteres descritivos e
métricos para o estudo racial não lhe permite, contudo, tirar conclusões precisas. Tal diiculdade poderia estar relacionada com factores como a migração,
por vários motivos, ou a miscigenação.
Quanto à política de população no império, directamente ligada com a
mestiçagem, refere que apesar de ela se veriicar, de facto, em Cabo Verde, por
exemplo, tal não se deverá generalizar por todo o “império”, para que se evite a
diluição das particularidades do povo português. Ainda assim, considera que,
em “regiões onde a mulher branca esteja ausente”, o mestiçamento é “inevitável
e fatal” e reconhece a existência de mestiços ilustres 69. Contudo, desaconselha
“o mestiçamento como regra” em todo o império. Estas ideias eram paralelas
às promovidas pela política do Estado Novo através da propaganda que estimulava a população da metrópole a partir para o império, sobretudo para as
colónias de assentamento, como Angola e Moçambique 70. Tal política esteve
ligada aos debates coetâneos acerca da adaptação aos trópicos por parte dos
europeus, sobretudo em países que ainda administravam, ou tinham administrado colónias 71. Nesse sentido, também este livro encontra espaço para a
fotograia de um “casal de velhos colonos de Angola” com “58 anos de África”
que, apesar das diiculdades de adaptação existentes entre alguma “população branca”, acabaram por revelar-se um exemplo de “viabilidade biológica da
colonização branca” 72.
Da análise das fotograias deste livro constata-se que nem sempre o texto
se refere à imagem que está a ilustrar uma determinada página. As imagens
reforçam o exotismo, exempliicam uma situação especíica e servem para
60
“Negro Chicunda, ‘Alfanête’, de
Moçambique: arcadas supraciliares salientes,
fronte fugidia e outros caracteres inferiores”
(Correia, Raças do Império, p. 22).
68
Correia, Raças do Império, pp. 5, 604.
69
Correia, Raças do Império, p. 620.
70
Sobre o processo de povoamento de
Angola e Moçambique com naturais da
metrópole, vide Cláudia Castelo, Passagens
para África: O Povoamento de Angola e
Moçambique com Naturais da Metrópole
(1920-1974) (Porto: Afrontamento, 2007).
71
Sobre os debates acerca da adaptação e
degeneração dos portugueses nos trópicos,
vide Cristiana Bastos, “Migrants, Settlers
and Colonists: The Biopolitics of Displaced
Bodies”, International Migration, vol. 46,
n.º 5 (2008), pp. 27-54.
72
Correia, Raças do Império, pp. 481-482.
67
A fotografia na obra de Mendes Correia (1888-1960)
Considera que os resultados de Franz
Boas devem ser submetidos a reservas,
já que, apesar de reconhecer que certas
influências do meio podem modificar
os índices cefálicos individuais (doenças
do crescimento, anomalias, condições
obstétricas), os casos exemplificados pelo
autor americano são excepcionais, não
conseguem provocar mudanças de forma
tão rápida e não alteram, sensivelmente,
os resultados estatísticos. Mendes Correia,
Raízes de Portugal. Portugal “Ex-Nihilo”!...
Terra e Independência. A raça (Lisboa:
Edição da Revista “Ocidente”, 1944b
[1938]), pp. 91-92.
73
idealizar de onde podem ter surgido as inluências biológicas, ou culturais,
de um determinado indivíduo ou grupo. Algumas delas aparecem desprovidas de qualquer contextualização ou análise; por outro lado, podem pretender ilustrar o vigor físico de alguns indivíduos ou uma ideia cuja origem pode
estar no passado, ou justiicar a presença dessa ideia no presente. Em alguns
casos, as imagens podem ser tomadas como cientíicas, porque são, embora
aparentemente, objectivas. Porém, estes exemplos acabam por apelar à interpretação subjectiva do leitor, suscitando nele a possibilidade de visualização
de um indivíduo cujo peril era considerado mais ou menos robusto, mais ou
menos frágil, esperto, preguiçoso, moralmente repreensível e por aí adiante.
Assim, algumas fotograias podem ser consideradas mais insidiosas que objectivas. Embora se procure fazer um mapeamento físico e cultural de populações
distintas, as representações conduzem-nos para evocações de singularidade e
estranheza, o que provavelmente não é alheio ao facto de elas terem como im
o consumo geral e a divulgação popular.
As fotograias foram seleccionadas, criteriosamente, no sentido de ilustrarem o que se pretendia demonstrar: por um lado, a diversidade existente no
império colonial português – vista como uma riqueza – e, por outro, o que
determinadas especiicidades poderiam implicar. Essa apresentação sugere
que a visualização de um indivíduo permitiria a idealização dos restantes indivíduos do seu grupo. Tal remete para ideia de tipiicação, segundo a qual cada
indivíduo é ilustrativo do “tipo” que representa. Esta tinha um carácter prático
e útil na sistematização – com a inventariação dos “tipos” era mais fácil colocá-los numa grelha classiicatória e organizá-los hierarquicamente, mediante as
suas características. Assim, a inclusão das fotograias dos indivíduos representados (da metrópole e do ultramar) levou, de certa forma, à sua “invenção”
e à produção de preconceitos relativamente a um determinado grupo. Contudo, apesar de tentar ser objectivo no que respeita aos caracteres raciais, o
autor parece não ter conseguido encontrar critérios suicientemente válidos
para serem aplicados universalmente a qualquer um dos grupos. Além disso,
ao proceder a uma ordenação, acabou por hierarquizá-los, discriminando uns
em detrimento de outros. Todavia, apesar da diversidade entre leucodermes,
negros, mouros, indianos, indonésios, entre outros, regista-se o propósito de
a esta variedade se associar uma certa unidade e solidariedade, decorrente de
um contexto no qual se procurou airmar a soberania portuguesa em vários
territórios.
De um modo geral, o livro denota um certo anacronismo relativamente
às correntes teóricas que já circulavam na antropologia social britânica e na
antropologia cultural norte-americana, bem como em outros países. Ao contrário de Franz Boas, por exemplo, o professor da FCUP não encontrou um
equilíbrio entre os estudos de âmbito físico e os estudos de âmbito cultural,
acabando a ideia de raça por ter uma presença fundamental e constante na sua
obra 73. Tal poderá estar relacionado com as convicções do autor, mas também
com o facto de que um trabalho como este poderia ter um papel importante
no âmbito do investimento e política de administração colonial. Como acrés61
1. Classificação / Missão
cimo, observa-se uma vontade de vincular aspectos biológicos e hereditários
de cada grupo humano a comportamentos psicossociais.
Mais tarde, quando visita a Guiné entre 1945 e 1946, para preparar a missão antropológica dirigida a esse território, Mendes Correia criticou a ideia
de raça e defendeu que esta devia ser banida, pelo menos no que ao contexto
guineense dizia respeito, já que era muito difícil estabelecer diferenças signiicativas 74. Porém, em Raças do Império, de 1943, sugere que existem grupos mais desenvolvidos do que outros, introduzindo julgamentos, valores, que
podiam ser interpretados em termos evolucionistas e considerados cientíicos
pela maioria da população não especializada, para quem o livro era direccionado. Não obstante os aspectos referidos, as fotograias revelam o interesse que
existia em conhecer as populações sob a administração colonial e dar conta
não só dos seus aspectos físicos, mas também socioculturais.
Discussão e Conclusão: To see is (not) to know
A partir do material analisado podemos concluir que, no que se refere ao
contexto colonial e, especiicamente, à obra de Mendes Correia sobre esse
contexto, nem sempre ver é conhecer. Para tal existem vários motivos – relacionados com as próprias fotograias, mas também com o contexto no qual
foram produzidas: cientíico e colonial.
Numa primeira fase, a antropologia procurou utilizar a fotograia de uma
forma cientíica. Foi encarada como um elemento auxiliar da antropologia e
nalguns casos constituiu, ela própria, um meio de investigação antropológica.
Os trabalhos antropométricos, por exemplo, estiveram relacionados com os
retratos de “tipos”. E mesmo que não se tratassem de retratos antropométricos,
a sua intenção procurava denunciar aspectos considerados pertinentes para o
domínio da antropologia física, que buscava nos caracteres físicos ixos os elementos para a categorização e análise antropológica. A fotograia permitiria
assim alcançar dados supostamente mais objectivos, o que facilitou a organização e a catalogação sistemática.
No entanto, embora de uso comum, a câmara fotográica veio a revelar
limitações no que ao estudo racial e antropométrico disse respeito. O que a
antropologia física procurou fazer através dos elementos matemáticos, ou
mensuráveis, e da antropometria, assim como da fotograia, não foi tanto a
captação do real, mas, na maioria das vezes, a criação desse real. A fotograia
foi não apenas um modo de captar o Outro, mas também de o inventar. Por
estas razões, o valor da fotograia nesta fase, enquanto documento, foi construído socialmente, uma vez que a imagem não foi tomada como uma representação, mas como a própria realidade. Como referiu Joanna Scherer para o
caso da fotograia integrada na prática antropológica, aquela não constituiu
uma réplica da realidade, mas uma representação, o que exige a sua análise crítica e um cuidado acrescido na sua interpretação. Nem a fotograia como artefacto, nem a interpretação do observador acerca do sujeito da fotograia, nem
62
Tal formulação não será também alheia
ao contexto do período pós-Segunda
Guerra Mundial, durante o qual começou a
tornar-se problemática a utilização do
critério “raça” como diferenciador das
populações humanas. Mendes Correia,
Uma jornada científica na Guiné Portuguesa
(Lisboa: AGC, 1947), p. 127.
74
A fotografia na obra de Mendes Correia (1888-1960)
Joanna C. Scherer, “The Photographic
Document: Photograph as Primary Data
in Anthropological Enquiry” in Elizabeth
Edwards, org., Anthropology & Photography,
1860-1920, (Londres, Royal Anthropological
Institute, 1992), p. 32.
76
Joan M. Schwartz, “We make our tools
and our tools make us: lessons from
photographs for the practice, politics and
poetics of Diplomatics”, Archivaria, Otava,
n.º 40 (1995), p. 51.
75
um entendimento da intenção da fotograia podem dar um signiicado global
às imagens 75. Segundo esta autora, é apenas olhando para as três partes do processo, idealmente em referência a grupos de imagens relacionadas, que podemos extrair das fotograias um signiicado sociocultural relevante.
Por outro lado, o carácter documental da imagem pode ter um duplo sentido. Ao diferenciar imagem de conteúdo, Joan M. Schwartz, por exemplo,
distingue o valor informativo, ligado ao conteúdo da imagem, e o valor comprovativo, ligado ao contexto de criação e utilização 76. No caso das fotograias
analisadas, o contexto de produção pode fornecer-nos elementos mais densos do que os perceptíveis apenas a partir do conteúdo que as imagens pretendem transmitir – os elementos alegadamente necessários para a realização
de um trabalho antropológico nas colónias, ou no laboratório da metrópole,
e que eram previamente pensados e seleccionados. Assim, para alcançarmos
algum conhecimento a partir das fotograias, é importante tomar em conta
todos os indivíduos envolvidos no processo de produção das fotograias: 1. os
que incentivaram a sua realização (professores e académicos, como é caso de
Mendes Correia); 2. os que as inanciaram (governo, instituições estatais e privadas, políticos locais); 3. os que as captaram; 4. aqueles para os quais foram
dirigidas; 5. os que nelas foram incluídos e representados.
Nas fotograias analisadas, o contexto da sua produção, os seus objectivos
e a sua audiência podem ser ainda mais importantes do que o nome do fotógrafo ou o autor das fotograias. É importante ter particularmente em conta as
perspectivas académicas, as ideologias e as agendas próprias dos indivíduos
responsáveis pelas fotograias e dos que as custearam. Deste modo, a fotograia colonial poderá ser uma fonte útil, não tanto para analisar os fotografados, mas sobretudo para analisar os que fotografaram ou os que promoveram
a sua realização. Nesse sentido, as fotograias incluídas nos trabalhos de Mendes Correia devem ser entendidas à luz do empreendimento especíico que
foi o império colonial português, com características e vicissitudes próprias.
Grande parte das fotograias que circularam nesse período procuraram enfatizar o carácter “primitivo” ou “não civilizado” dos indivíduos nelas representados, evidenciando a necessidade da obra de “civilização” trazida pela
colonização. Embora este aspecto não seja exclusivo da obra do professor da
FCUP, ou da obra de alguns académicos portugueses, acaba por veriicar-se
uma certa coerência entre as fotograias captadas, a ideologia política subjacente à propaganda colonial e a intenção dos fotógrafos ou de quem solicitava
as fotograias.
Como vimos, ao longo do seu período de actuação, Mendes Correia valorizou a utilização da fotograia. Tal aconteceu nas conferências realizadas na
SPAE, nos trabalhos produzidos no âmbito da antropologia criminal, na acção
que teve no CEEP, no contexto das missões antropológicas e nos seus trabalhos sobre antropologia colonial. A utilização que deu à fotograia foi, contudo,
várias vezes inspirada nas sugestões de vários autores estrangeiros que valorizavam sobretudo a análise dos caracteres físicos dos indivíduos. De um modo
geral, os seus trabalhos mais extensos são ricamente ilustrados, mas nem sem63
1. Classificação / Missão
pre as fotograias estão directamente relacionadas com o texto. É muitas vezes
este que sugere o signiicado das fotograias, ou que as coloca num determinado contexto que não seria perceptível apenas pela própria imagem. A fotograia colonial foi usada também como prova da existência de indivíduos que
viviam sob a alçada da administração portuguesa. A sua captação através da
objectiva fotográica foi, amiúde, uma forma de ilustrar o poder que sobre
eles tinham os administradores e os colonos em geral. Tal poder permitia que
os nativos pudessem ser fotografados sem que tal prática fosse, em nenhum
momento, questionada (figura 5).
O olhar vazio e distante dos fotografados denuncia, amiúde, a sua aceitação
passiva da captação das imagens. Os indivíduos que nelas surgem parecem, na
sua maioria, representativos de seres pertencentes a sociedades pré-coloniais,
isto é, que não foram sujeitos a processos de aculturação ou ocidentalização.
Além disso, os seus nomes não costumam ser revelados, mas somente o género
(homem ou mulher), o grupo a que pertencem e, em alguns casos, a sua actividade ou posição social. As fotograias, muitas vezes, não denunciam também
qualquer interacção entre o fotógrafo e o fotografado. É através dessa circunstância dada pelo texto que alguns “tipos” humanos passam a ser constituídos ou diferenciados como tal, podendo representar um grupo de indivíduos.
64
Figura 5. Missão antropológica a
Moçambique (campanha de 1948).
Norberto (filho de Santos Júnior) em
Namapa com um grupo de nativos
moçambicanos. Centro de Memória,
Torre de Moncorvo.
A fotografia na obra de Mendes Correia (1888-1960)
Edwards, “Photographic ‘types’…”.
Gould, A Falsa Medida do Homem.
79
Edwards, “Introduction” in Edwards,
org., Anthropology & Photography, p. 6.
80
Matos, The Colours of the Empire.
77
78
As expressões “tipo indígena” ou “nativo típico” são disso exemplo. Porém, a
fotograia dos chamados tipos humanos estabeleceu, como referiu Elizabeth
Edwards, a criação desses mesmos tipos 77.
Na obra de Mendes Correia, e na de outros seus contemporâneos, as fotograias foram captadas nos espaços de além-mar e levadas para serem analisadas na metrópole; outras foram captadas na própria metrópole com indivíduos
que aí estiveram por ocasião das grandes exposições de 1934 e 1940. Nesse
contexto as ideias raciais acabaram por ser centrais, fazendo parte do discurso cientíico da antropologia e contribuindo para a justiicação da dominação colonial. Tais ideias foram inluenciadas pelo evolucionismo e pela
crença na existência de uma relação entre o lado “natural” do ser humano e o
seu lado cultural, moral e intelectual, defendendo a existência da determinação biológica da cultura. As “raças” não europeias foram consideradas como
representantes da “infância da humanidade” – uma fase pela qual os europeus consideravam já ter passado 78. Assim, apesar da sua natureza ecléctica, a
antropologia de Mendes Correia, e de alguns dos seus pares, dentro e fora de
Portugal, acabou por adoptar metodologias das ciências biológicas que, como
lembrou E. Edwards, colocavam a sua ênfase na observação, registo e classiicação, e cuja sustentação residia numa grelha que supostamente permitiria o
conhecimento positivo, cientíico e empírico 79.
O contacto directo de Mendes Correia com os indivíduos que vieram para
a exposição de 1934, a sua viagem à Guiné entre 1945 e 1946, e a sua deslocação a Timor em 1953, entre outros parcos exemplos, constituíram excepções. A obra de Mendes Correia foi realizada sobretudo no seu gabinete da UP
e, na impossibilidade de contactar directamente com os indivíduos sobre os
quais escrevia, as fotograias acabaram por representar uma tentativa de preencher essa lacuna – elas procuraram tornar visível algumas formulações que
terá apenas imaginado, ou com as quais entrou em contacto através das obras
de outros autores. De facto, a fotograia pode construir uma memória, já que
a partir da sua visualização são evocadas lembranças de determinados contextos. Por outro lado, pode estimular a memória. Tal aconteceu, por exemplo,
quando entrevistei (em 2002 e 2003) alguns ex-colonos e visitantes das referidas exposições de 1934 e 1940 e utilizei, precisamente, fotograias no sentido
de despertar lembranças 80.
O modo de captação do real através do registo fotográico, fundamentado
no princípio “to see is to know”, acabou por revelar o muito que ainda se desconhecia do “império”, as tensões sociais existentes, o modo como as diferenças foram discriminadas e a maneira como se procedeu ao estabelecimento
de hierarquias culturais (amiúde baseadas em aspectos físicos e/ou comportamentais). A fotograia serviu, diversas vezes, para essencializar o Outro colonial e para, através da sua postura, cor da pele, adereços, objectos de cultura
material, práticas religiosas ou sociais, como a monogamia ou a poligamia,
evidenciar capacidades físicas e/ou intelectuais e diferenças comportamentais.
Algumas dessas diferenças podiam notabilizar-se, inclusivamente, no processo
de manipular a revelação inal. No entanto, e apesar de devermos ter presente
65
1. Classificação / Missão
que “to see is (not) to know”, ou seja, que nem sempre ver é conhecer, será certamente possível encontrar outras histórias que não aquelas a que acedi a partir
das fotograias que analisei. Nesse sentido, tais fotograias podem sugerir-nos
novas perspectivas de análise, não só relativas ao período colonial português,
mas à antropologia produzida em Portugal na primeira metade do século XX.
Ter em conta todos os factores apresentados será pertinente, uma vez que
actualmente as fotograias produzidas no contexto colonial continuam a circular – em publicações, colecções particulares ou arquivos públicos.
Siglas
AGC:
CEEP:
CEEU:
FCUP:
IAUP:
ISEU:
JMGIC:
JMGIU:
MAUP:
MCCA:
MEP:
SGL:
SPAE:
SPN:
SNI:
UC:
UP:
66
Agência Geral das Colónias
Centro de Estudos de Etnologia Peninsular
Centro de Estudos de Etnologia do Ultramar
Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
Instituto de Antropologia da Universidade do Porto
Instituto Superior de Estudos Ultramarinos
Junta das Missões Geográicas e de Investigações Coloniais
Junta das Missões Geográicas e de Investigações do Ultramar
Museu Antropológico da Universidade do Porto
Missão Cinegráica às Colónias de África
Museu Etnológico Português Leite de Vasconcelos
Sociedade de Geograia de Lisboa
Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia
Secretariado de Propaganda Nacional
Serviço Nacional de Informação
Universidade de Coimbra
Universidade do Porto