UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
“Levam má bô”:
(homo)sexualidades entre os sampadjudus da Ilha de São Vicente de Cabo Verde.
Francisco Paolo Vieira Miguel
Brasília, 28 abril de 2014.
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
“Levam má bô”:
(homo)sexualidades entre os sampadjudus da Ilha de São Vicente de Cabo Verde.
Francisco Paolo Vieira Miguel
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Departamento de Antropologia da Universidade de
Brasília, como requisito à obtenção do título de
Mestre em Antropologia.
Orientadora: Andréa de Souza Lobo
Brasília, 28 abril de 2014.
“Levam má bô”:
(homo)sexualidades entre os sampadjudus da Ilha de São Vicente de Cabo Verde.
Francisco Paolo Vieira Miguel
fpvmiguel@gmail.com
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Departamento de Antropologia da Universidade de
Brasília, como requisito à obtenção do título de
Mestre em Antropologia.
Orientadora: Andréa de Souza Lobo
Banca examinadora:
Drª Andréa de Souza Lobo (Presidente)
Drª Juliana Braz Dias (Examinadora Interna)
Drº Peter Henry Fry (Examinador Externo)
Brasília, 28 de Abril de 2014
Ao menino Alex, de oitos anos, brutalmente
assassinado no Rio de Janeiro pelo próprio pai
porque não era o “homem” que este desejava que
ele fosse.
Agradecimentos
A minha família, que quase sempre me ofereceu o apoio material e emocional de
que precisei em minha trajetória acadêmica: à minha mãe e ao meu pai, por terem
apoiado minhas escolhas profissionais e terem fornecido as garantias financeiras
necessárias não só para meus estudos em outra cidade, como para a minha viagem de
campo; aos meus irmãos que, nas vezes em que conversamos sobre meus interesses
acadêmicos, estiveram sempre dispostos a ouvir e a refletir comigo; à minha avó
Leônia, que sempre me deu apoio financeiro e emocional e foi uma ótima parceira para
conversas e viagens; aos meus tios Ricardo e Rogério, que tornaram minha estadia e
meus deslocamentos na capital federal mais facilitados, assim como ao tio Cesar e à tia
Renata, por quem sempre fui acolhido como um filho em seu lar;
À professora Andréa de Souza Lobo, minha orientadora, pelos cursos que
ministrou com uma dedicação exemplar; por ter aceitado embarcar comigo neste
empreendimento; por ter me ensinado com muita tranquilidade, qualidade e seriedade
como produzir uma monografia; por ter me aberto as portas do mundo africano e pela
dedicação e atenção pessoal que dispensou a mim;
Ao CNPq e ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade de Brasília, por terem me concedido uma bolsa de estudos; e aos seus
professores, que contribuíram para a minha formação como antropólogo, principalmente
aos professores Wilson Trajano Filho, Stephen Grant Baines, Carla Costa Teixeira,
Guilherme José da Silva e Sá, Marcela Stockler Coelho de Souza, Carlos Emanuel
Sautchuk, Daniel Schroeter Simião e Juliana Braz Dias, pelas disciplinas que
ministraram e/ou pelas leituras dos meus trabalhos; ao secretários Rosa, Jorge, Branca,
Idamar e Cris, por terem tornado a burocracia acadêmica algo menos complicado;
Aos professores Rodrigo de Moraes Rosa, por ter me apresentado ainda no
ensino médio o instigante mundo das ciências sociais. E ao professor José Reginaldo
dos Santos Gonçalves, pelas sólidas bases da minha formação antropológica e por ter
me ensinado os primeiros e fundamentais passos da pesquisa acadêmica;
Aos colegas da Katacumba, como um todo, por compartilharem de perto as
delícias e as dores da pós-graduação na diáspora: em especial, à Raysa, por ter sido uma
grande companheira de ideias, conversas e bagunças e ao Alexandre, pelas suas revisões
sempre críticas dos meus textos e por ter sido um grande companheiro intelectual e de
festas; à Graci, à Julia Sakamoto e ao Bruner, pelas horas divertidas e de trabalho
divididas nas salas esfumaçadas da Katacumba;
Ao Wester, com quem dividi não só um lar por quase dois anos, mas todas as
alegrias e os dilemas da juventude, e com quem aprendi muito; À Andrea e ao Marcos
pelos ombros, ensinamentos e a possibilidade do convívio alegre e engrandecedor;
Aos meus queridos amigos do Rio, que mantiveram nossa amizade inabalável
apesar da distância: Ao Raphael, amigo de década; à Rebecca, a amiga mais sensível; ao
Hugo, a quem devo muito do que sou e com quem para sempre quero estar; à Camila,
minha cara metade fêmea; ao Robson, amigo de algumas horas difíceis e outras nem
tanto; à Gabriela, por quem nutro muitíssimo carinho; à Ana, amiga que é a arquiteta
que eu já quis ser; à Amanda, a etnóloga mais querida da minha vida; ao Everton, por
todas as conversas em que aprendi muito sobre antropologia e sobre identidade; ao
Lucas, que me ajudou enormemente em meu empreendimento no campo de gênero; e à
Carol, amiga de longa data e de trocas musicais;
Ao Igor, que chegou quase no fim da trajetória, mas que virou minha vida de
cabeça para baixo;
E a todas as pessoas em Cabo Verde que dividiram comigo suas vidas, suas
experiências, suas anedotas, suas comidas, seus tetos, seus dilemas, suas dores, suas
esperanças e seus desejos: Rosita, Elvis, Kiki, Victor, Paulo, Lucy, Edimar, Zé Rui,
Lilica, Janete, Rui, Hernanes, Elton, João, Anita, Patrick, Elvio, Edinha, Amarys, Deri,
Belíssima, Walter, Steph, Golite, Tita, Luisa, Carlos, Maritzia, Talina e Claudia, meu
muito obrigado!
O Eu é o conteúdo da relação e a
relação mesma; defronta um Outro
e ao mesmo tempo o ultrapassa; e
este Outro, para ele, é apenas ele
próprio.
(Fenomenologia do Espírito, Hegel)
Resumo
Esta dissertação tem como objetivo principal contribuir nos esforços de construção de
uma Antropologia da (Homo)sexualidade em Cabo Verde, África. Tendo como foco
central a homossociabilidade, o movimento gay e as experiências homoeróticas dos
homens na cidade do Mindelo, esta pesquisa etnográfica junto aos crioulos procura
problematizar não somente a vida (homo)sexual dos mesmos e suas repercussões, mas
atentar também para o emergente movimento LGBT local. As perspectivas e as práticas
dos homens crioulos, gays e não-gays, contribuem para compreender não somente os
pontos de vista nativos, como para compreender mais uma experiência de elaboração
cultural de um fenômeno universal como o homoerotismo. Busco defender que se o
homoerotismo e o movimento LGBT possuem seus dilemas globais, eles esbarram na
semântica específica deste arquipélago atlântico, produzindo o que chamei de um
―Sistema Hipocrisia‖, permeado por silenciamentos e contradições.
Palavras-chave: Cabo Verde; Mindelo; Homossexualidade; Movimento LGBT
Abstract
This thesis aims to contribute in efforts to build an Anthropology of (Homo)sexuality in
Cabo Verde, Africa. Focusing the (homo)socialiability, the gay movement and
homoerotic experiences of men in the city of Mindelo, this ethnographic research in
conjunction with the Creoles aims to question not only the homosexual life of the
Creoles and its repercussions, but also pay attention to the emerging local LGBT
movement. The perspectives and practices of the Creole men, gay and non-gay,
contribute not only to understand their points of view, as to understand another cultural
experience of drafting a universal phenomenon as homoeroticism. I argue that if the
homoeroticism and the LGBT movement have their global dilemmas, they bump the
specific semantics of this Atlantic archipelago, producing what I have called a
"Hypocrisy System", permeated by silences and contradictions.
Key-words: Cape Verde; Mindelo; Homosexuality; LGBT movement
Sumário
Introdução ....................................................................................................................... 1
Percurso etnográfico ..................................................................................................... 1
―Homossexualidade‖ em África ................................................................................... 9
Uma sociedade crioula ............................................................................................... 15
Análise sistêmica ........................................................................................................ 21
Perfomatividade queer ................................................................................................ 25
Capítulo I – História e mito do cosmopolitismo ........................................................ 32
A Santa Inquisição, a lei e o silêncio arquipelágico ................................................... 34
Colonização da Ilha de São Vicente e a gênese dos sampadjudus ............................. 39
Uma africanidade rejeitada desde o século XX... ....................................................... 57
Até hoje ....................................................................................................................... 62
Breve cartografia do Mindelo ..................................................................................... 72
―Águas Quentes‖ da Laginha e a história recente da velha guarda gay...................... 75
Capítulo II – A crítica à “hipocrisia”.......................................................................... 82
―Sistema Hipocrisia‖ ................................................................................................... 83
Do pa dodu .............................................................................................................. 86
―Contradição‖ .......................................................................................................... 95
A Revolta das Tchindas e o (re)surgimento do ―homossexual‖ ............................... 101
Anacronia do movimento LGBT em Cabo Verde e posturas queer ......................... 107
Direitos LGBT: um discurso que não pega .............................................................. 113
―Homofobia‖, ―preconceito‖ e ―violência‖ no Mindelo ........................................... 124
O ritual de mandar bocas .......................................................................................... 132
Capítulo III – “Levam má bô” ................................................................................... 141
A cantada de galo ...................................................................................................... 142
A abordagem dos rapazes ......................................................................................... 153
Badiu (John) e Joaquim, os rapazes não-gays .......................................................... 164
Estratégias gays e sexo no Mindelo .......................................................................... 170
Angústia .................................................................................................................... 176
Considerações Finais .................................................................................................. 184
Das hipóteses condensadas ....................................................................................... 184
Do caminho a seguir ................................................................................................. 189
Do corpo-pesquisador gay ........................................................................................ 191
Bibliografia .................................................................................................................. 195
Introdução
Percurso etnográfico
Convido o leitor a percorrer os caminhos intelectuais e físicos que me
conduziriam ao campo. Considero como marco inicial desta etnografia o junho de 2013,
quando tive meu primeiro contato, através da internet, com aqueles que viriam a ser
mais tarde meus principais interlocutores em campo. No contexto de meu curso de
mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de
Brasília, após algumas tentativas de retomar meus estudos da graduação sobre cultura
material e de tentar ingressar na etnologia ameríndia, eu acabei optando por um desejo
antigo, mas ainda vivo, de produzir uma monografia sobre gênero e sexualidade.
Conciliei tal disposição com o convite irrecusável de minha orientadora a adentrar o –
para mim ainda não muito conhecido – mundo africano.
Tendo em vista sua longa experiência pessoal e profissional em Cabo Verde e os
meus interesses temáticos, parecia-nos muito conveniente como caso etnográfico a
descoberta da recente emergência de uma associação civil LGBT naquele país.
Principalmente tendo em vista os debates contemporâneos sobre o recrudescimento das
leis contra as populações homossexuais naquele continente. Tratava-se, contudo, não só
de um caso interessante pelo seu caráter de certa exceção dentro de um cenário
panafricano, mas a própria emergência da referida associação, supomos, seria um marco
relevante na história daquele país, já descrito por muitos especialistas como tipicamente
―patriarcal‖ e ―machista‖. Além disso, e por último, não tínhamos notícias até então de
qualquer trabalho acadêmico sobre ―homossexualidade‖ em Cabo Verde1.
Neste sentido, busquei cada vez mais interar-me através de algumas poucas
notícias vinculadas na internet sobre a emergência da então chamada ―Associação Gay
Cabo-verdiana contra a Discriminação‖ (ou simplesmente ―AGC‖), fundada em 2010
no Mindelo. Sites de buscas, de compartilhamento de vídeos, portais de notícias e redes
sociais, ainda que fornecessem informações escassas, foram fundamentais para o
1
Já em campo, descobri o trabalho da socióloga cabo-verdiana Claudia Rodrigues sobre os
―homoafectivos‖ na Praia (RODRIGUES C. , 2010) e da estudante de mestrado em ciências sociais da
Uni-CV, Lurena Silva, que começava a realizar uma pesquisa de campo sobre o mesmo tema no Mindelo.
1
primeiro tatear não só sobre este tema no arquipélago, como para conhecer alguns dos
importantes atores nativos e que mais tarde, já em campo, me inseririam em uma rede
mais ampla de amizades. Paralelamente, conversei com colegas e professores2 e fiz
algumas leituras sobre história, gênero, parentesco e masculinidade em Cabo Verde, no
intuito não somente formativo, mas de estimular a produção de questões prévias para
um projeto de pesquisa3.
Acreditando no trabalho de campo in loco como sendo fundamental ao fazer
antropológico e tendo optado por ele como principal meio de produção de dados para
esta dissertação, vislumbrávamos à época que o caminho mais adequado a seguir seria
então o de etnografar este movimento social, através de uma discussão teórica de fundo
acerca da masculinidade crioula cabo-verdiana. Contudo, ao longo da pesquisa précampo, fora se tornando mais ou menos clara a insipidez deste movimento social que,
apesar de já completos três anos, ainda não possuía uma sede e tampouco um acúmulo
satisfatório de experiência política e de atividades. Uma perspectiva de fora, e
certamente arriscada, mas que se tornaria ainda mais evidente no decorrer do trabalho
de campo.
Se o movimento LGBT em Cabo Verde, nas condições em que se encontrava, já
nos indicava por si só não ser um objeto suficiente para uma boa dissertação de
mestrado, ele acabaria por ser a minha principal porta de entrada não só para conhecer
os militantes gays nativos, mas para uma rede mais ampla de interlocutores. Para os
líderes do emergente movimento era estratégico meu interesse por sua atividade
2
Neste sentido, foram importantes a professora Juliana Braz Dias e Andréa de Souza Lobo da
Universidade de Brasília, o professor João Vasconcelos da Universidade de Lisboa, assim como os
colegas Amanda Migliora e Everton Rangel do Museu Nacional e Raysa Martins e Alexandre Fernandes
da Universidade de Brasília.
3
Aproveito para justificar brevemente minha decisão em tratar apenas da homossexualidade masculina.
Desde o Brasil, o pouco material que chegava sobre Cabo Verde tornava a homossexualidade masculina
muito mais visível que a feminina. Ao chegar eu mesmo a Cabo Verde, meus interlocutores mais
próximos são todos homens. Neste grupo de amigos havia apenas uma moça que se identificava como
―30% homossexual‖ e que ―ficava‖ com outra amiga do grupo. Assim, raramente a (homo)sexualidade
feminina será tratada neste trabalho, pois, além de ser socialmente mais invisibilizada, minha própria
condição de pesquisador ―homem‖ me conduziria à homossociabilidade masculina. Extraio um caso
exemplar dessa invisibilização agenciada pelas próprias mulheres lésbicas, quando convidadas a
participar do primeiro programa de TV em Cabo Verde, que discutiu ―homossexualidade‖ e no qual
participei na condição de convidado na sala de transmissão: ―Elzo constatou, rindo, que o programa de
hoje foi só sobre homossexualidade masculina, e contou que o Odair, o apresentador do programa
―Sociedade Aberta‖ da TCV procurara lésbicas para darem declarações, mas que elas recusaram todos os
convites. Elzo concluiu algo que sempre defendeu: de que as lésbicas aqui não se misturam aos gays e
elas mesmo se invisilibizam. Que esse era mais um exemplo dessa auto-invisibilização.‖ (―O programa de
TV‖ 23/10/2013. Diário de campo, p.246)
2
militante, haja vista que a ―visibilidade‖ é um dos carros-chefe de suas bandeiras
políticas e, como pesquisador estrangeiro4, eu poderia colaborar na produção desta
visibilidade5. Para alguns desses sujeitos, eu poderia vir a ser, além de tudo, um
eventual parceiro afetivo/sexual. Por todas essas razões, não foi difícil obter suas
confianças e suas disposições em me receber em sua cidade e comigo colaborar. Bastou
que eu conseguisse me comunicar com eles.
A internet seria, sem dúvida, o lugar privilegiado para essa comunicação e esses
primeiros passos no campo. Mas não fora fácil desde o início. Não encontrando meios
mais diretos, como os endereços de e-mail dos cabo-verdianos que apareciam nas
entrevistas e nos jornais, eu busquei contatar do Brasil algumas instituições nativas,
como o Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Gênero (ICIEG) e a
própria AGC. Contudo, nunca obtinha respostas. Enquanto isso, minha orientadora
acionava suas redes acadêmicas e pessoais na cidade da Praia, que acabariam por me
dar importante suporte em minha chegada ao país6. Já sabendo que a AGC tinha seus
principais membros na cidade do Mindelo e tendo em vista meus compromissos
temporais com a universidade, decidimos por minha ida em Setembro daquele ano e
pela minha permanência de dois meses naquele país.
Mas foi um pouco antes, no final de Junho de 2013, quando ainda cursava as
disciplinas do mestrado e, ao mesmo tempo, investia na literatura diversa acerca do
arquipélago, é que descubro, como um oásis no sahel, uma página do facebook
bombardeada de informações a respeito da primeira ―Semana pela Igualdade no
Mindelo‖. Tratava-se de um evento de uma semana de duração, organizado pela AGC
em parceria com a Fundação Triângulo das Canárias. A Semana contava com uma serie
de atividades, tais como exibições de filmes com temática LGBT, exposição de fotos e,
no último dia, aconteceria a primeira parada do orgulho gay de Cabo Verde, o Mindelo
Principalmente se tratando de um estrangeiro de origem brasileira, um país dito por eles ―grande‖,
―rico‖ e ―irmão‖. Certamente minha nacionalidade fora um diacrítico importante na minha boa absorção
pelos nativos.
5
Além disso, eu fui lido como uma fonte estrangeira de recursos não só financeiros e materiais, mas
também como capital humano qualificado para algumas de suas atividades internas. Nesse sentido,
cheguei a ser convidado a ministrar algumas oficinas sobre os temas da homossexualidade e movimento
LGBT.
6
Agradeço primeiramente à minha orientadora Andréa de Souza Lobo e particularmente à Clementina
Furtado, coordenadora do Centro de Investigação e Formação em Género e Família (CIGEF); à Maritza
Rosabal, professora e pesquisadora cubana erradicada em Cabo Verde; à Talina Pereira, presidente do
Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Gênero (ICIEG) e Sofia Figueiredo, amiga
particular de minha orientadora.
4
3
Pride. Na página do facebook, havia diversos textos, fotos e vídeos de divulgação, todos
recém-produzidos.
Afastado por um oceano desse evento e impossibilitado de viajar imediatamente
para acompanhá-lo etnograficamente, restou-me consumir todas as informações que eles
dispunham ao público na internet. Falando em crioulo, português, inglês e em italiano,
no intuito de divulgar o evento ao maior público possível, pude conhecer virtualmente
algumas daquelas figuras que estariam no meu dia-a-dia alguns meses depois7. Mas
ansioso pelo contato, decidi procurar Suzete8, que de acordo com as notícias que
chegavam, era a presidente da Associação Gay Cabo-verdiana e Elzo, o vice-presidente
da mesma. Eram eles, os que mais concediam entrevistas, os mais visíveis naquele
palco ainda tão distante para mim. Decidi então buscá-los no facebook, para tentar um
canal mais direto e encontrei a página pessoal de apenas um deles, Elzo, com quem
tratei logo de estabelecer um contato.
Em seguida, eu receberia uma resposta um tanto fria, mas que em poucas
conversas se tornaria calorosa. Através do facebook, conversamos sobre o papa, sobre
meu visto, sobre meus planos de pesquisa, sobre burocracias, sobre a AGC, até que eu
ofereci ajuda, no sentido de levar algo material que fosse de interesse deles. Elzo então
solicitara um computador portátil, supostamente para uso da Associação, haja vista que
eles não possuíam um. Morando na chamada ―quadra da informática‖, em Brasília, fui
atrás de um notebook usado, que estivesse em boas condições e que eu pudesse arcar
com o custo. Além do computador, pediu-me filmes com temáticas LGBT – que
segundo me informara eram raros por lá – para que pudessem formar uma coleção
disponível a exibições públicas. Um pouco antes de viajar para Cabo Verde, eu
conseguira o computador e, nele, mais de cem filmes com as temáticas desejadas.
Dias depois, já no mês de Julho, eu entraria em contato, também através do
facebook, com outra figura de destaque no Mindelo: Didi. Novamente me apresentei e
7
Assisti não somente os vídeos de divulgação do evento, mas também algumas reportagens da emissora
local. O língua crioula cabo-verdiana falada nestes vídeos me impuseram quase sempre algum medo
diante da possibilidade de não conseguir me comunicar com aquelas pessoas, assim que eu chegasse ao
país. Mas no Mindelo, meus interlocutores na maior parte do tempo falavam comigo em português e
mesmo quando conversavam entre si em crioulo, em seguida traduziam, generosamente, para mim.
Mesmo aquelas pessoas com menor escolaridade eram capazes de se comunicar em português, haja vista
que naquele país, esta é a língua oficial, usada portanto nos meios de comunicação e no governo. No
entanto, não nego que desconhecer a língua corrente nativa é um limitante significativo nesta pesquisa.
8
Exceto no caso de Tchinda, por razões que explicarei em momento oportuno, todos os nomes foram
modificados e remodificados nesta dissertação, com o intuito de não expor meus interlocutores.
4
conversamos algumas vezes sobre minha pesquisa, sobre meios de transportes interinsulares, passagens aéreas, sobre visto, o papa, movimento LGBT, racionalismo
cristão, hospedagem e sobre relacionamentos.
Mas o mais importante das conversas com Didi certamente foi descobrir nelas
que, por lá, os ―gays não se relacionam com gays‖, uma equação-chave, como veremos,
para o universo homoerótico do Mindelo, e de Cabo Verde. Ofereci-me também para
levar a ele uma ―encomenda‖. E ao invés de livros de cinema antigo, como me pedira
antes, Didi escolhera agora filmes clássicos, em formato de DVD. O único deles que
achei, em uma livraria do Rio de Janeiro, seria Mata Hari, com Greta Garbo, atriz na
qual ele era fã. O mercado fono e cinematográfico no Mindelo é bastante precário, a
cidade possui pouquíssimas lojas de CDs e não conta atualmente com nenhuma sala de
cinema disponível9.
Os presentes entraram em minhas contas como despesas do campo. Eu já
conhecia através das etnografias a importância das ―encomendas‖ em Cabo Verde,
produtos que tanto entram quanto saem do país, num fluxo de constante
(re)estabelecimento de relações sociais (LOBO A. d., 2012). Se o computador, ainda
que em ótimo estado, nunca fora usado em toda minha estadia por lá, o DVD de Greta
Garbo arrancou um sorriso gratificante do presenteado, que daí em diante tornou-se um
importante interlocutor. Eu também ganhara presentes, para além de suas companhias,
amizades e histórias. Ganhei uma versão de Chiquinho, obra clássica da literatura caboverdiana, além de um corte de cabelo, um mapa da cidade e um pacote de preservativos
promocionais que sobrara do Mindelo Pride10.
Mas eu não havia conseguido hospedagem no Mindelo ainda. Para isso tive o
auxílio de Elzo que, antes mesmo de minha chegada, conseguiu um ótimo apartamento
no Alto Miramar, região nobre, adjacente à morada – o centro da cidade do Mindelo.
Sem me dar quaisquer informações sobre o imóvel, apenas informou-me o preço e eu o
transferi via Western Union, prática de remessa internacional de dinheiro mais do que
comum em Cabo Verde, país que tem mais população na diáspora do que no território
nacional.
9
À exceção do Centro Cultural do Mindelo, um teatro que se faz de cinema por vezes para exibições
públicas da sétima arte.
10
Por esses presentes em específico, agradeço a Didi e ao Cesar.
5
Com recursos próprios e da universidade, comprei as passagens aéreas. O voo da
companhia portuguesa partiria de Brasília em direção a Lisboa, para somente no dia
seguinte seguir para Praia. Eu ainda teria que embarcar em outro voo para o Mindelo. O
trajeto marítimo colonial Brasil-Cabo Verde-Portugal parecia ter sido reatualizado pelas
novas conjunturas do século XXI11. Optei pela companhia portuguesa, porém,
principalmente pelo preço menor, mas também pela oportunidade de uma breve passada
em Lisboa, cidade que eu não conhecia e que seria fundamental para compreender um
pouco mais da história do arquipélago africano.
Chego à cidade da Praia no dia 22 de Setembro de 2013, mas três dias depois,
após fazer alguns contatos, estou desembarcando em um avião ATR, da companhia
local, na cidade do Mindelo, na Ilha de São Vicente, que fica no conjunto de ilhas ao
norte, chamado de Barlavento. Era quase meia-noite, eu aguardava no moderno saguão
do aeroporto Cesária Évora. Elzo e Didi me buscaram de carro junto com um casal de
amigos no aeroporto e me conduziram até o apartamento de uma italiana radicada no
Mindelo, o mesmo que haviam negociado para mim.
Daí em diante, eu viveria exatos 43 dias entre os gays de Cabo Verde. Como a
maioria deles não tinha emprego (ou porque eram ―artistas‖ e, portanto, viviam de
trabalhos esporádicos, ou porque eram estudantes universitários), foi possível conviver
com eles durante muitíssimas horas dos dias e das noites. Saímos, íamos ao
supermercado, conversávamos em minha casa, visitávamos interlocutores, fazíamos
entrevistas gravadas, tirávamos fotos, ficávamos na rua, almoçávamos juntos, íamos a
festas e eventos, fumávamos o tempo todo e eles iam pouco a pouco me apresentando as
pessoas, as situações, os lugares e os dilemas que viviam.
Mas havia uma rotina mais ou menos regular: saímos praticamente todas as
noites em que eu estive no Mindelo. Ou eles passavam em minha casa para me buscar a
pé, por volta das dezenove horas, ou eu mesmo ia aos seus encontros em algum lugar da
cidade. Íamos a bairros como Chã de Alecrim, Fonte Filipe, Monte Sossego e Laginha.
Mas passamos mesmo muitas e longas noites na Praça Dr Regala, na morada, próximo
da região conhecida como Lombo. Ficávamos mais ou menos até uma hora da manhã,
quando não adentrávamos a madrugada, bebendo grogue e ponche, fumando cigarro e
11
Entre essas novas conjunturas, uma companhia aérea estatal cabo-verdiana, com vôos regulares de
Fortaleza, no Brasil, para Praia, sem escalas.
6
gamja (maconha), ouvindo música, flertando e conversando. Por vezes discordávamos,
discutíamos e até brigávamos também, sem grandes traumas.
Fig. 1 – Ao centro, a Praça Dr. Regala, nome dado em homenagem ao famoso médico Francisco Regala e
na qual passávamos muitas madrugadas. FONTE: Airbnb.com
Na Praça do Dr. Regala, médico famoso que é testemunha morta de quase tudo
que narro aqui, nós falávamos de todos os assuntos que jovens amigos costumam
conversar, como música, política, economia, sociedade, drogas, bebidas, história,
entretenimento e, como não poderia deixar de ser em um grupo gay, de sexo e de
homens. Assim, não passei pelo mesmo problema que Evans-Pritchard, sobre uma falta
de convergência entre os interesses acadêmicos do pesquisador e o que interessava, de
fato, aos seus interlocutores (EVANS-PRITCHARD E. E., 2005, pp. 244-5). Meus
interlocutores falavam e adoravam falar de sexo. Assim, se no início da pesquisa, a
intenção era tratar mais propriamente de questões de gênero e masculinidades, o campo
acabou me conduzindo para tratar propriamente da sexualidade masculina local.
Mas sexo não era o único assunto de nossa pauta e, sem moralismo, acho uma
questão de honestidade etnográfica insistir nisso para não transformá-los nesta
dissertação em bestas sexuais, quando no fundo, meus interlocutores, em sua grande
maioria, eram pessoas que perpassavam com desenvoltura vários campos de
conhecimento e dialogavam sobre absolutamente tudo. Como disse, entre meus
principais interlocutores havia artistas, que trabalhavam como atores, carnavalescos e
costureiros. Havia também estudantes das universidades locais em cursos de jornalismo,
7
direito, turismo e ciências sociais, havia produtores de eventos, um professor de
educação física, outro de inglês, um cabeleireiro e maquiador e um escriturário em uma
companhia marítima. Entre as travestes, há quem tivesse seu pequeno comércio, outras
se prostituíam e algumas delas ainda estudavam.
Enfim, pessoas das classes médias e baixas, moradores tanto da morada, região
central e nobre da cidade, quanto das zonas periféricas como Fonte Ignês. Alguns deles
já haviam visitado ou morado na Europa. Outros conheciam o Brasil e países da África
continental. Alguns falavam outras línguas como inglês e francês, além do crioulo e do
português. Vivia-se um espírito inegável de cosmopolitismo nas ruas do Mindelo,
principalmente quando os mais velhos contavam suas histórias de emigração ou quando
velhos conhecidos trocavam palavras estrangeiras de acordo com suas vivências na
diáspora. Eram pessoas que se consideravam, em grande medida, amigos uns dos
outros, mas que como é natural a qualquer grupo, tinham suas desavenças internas.
Esses rapazes eram ambiguamente próximos e distantes de mim. Ao mesmo
tempo em que falavam vez por outra o crioulo entre eles, o que me revelava
drasticamente que não eram meus compatriotas, traziam nos seus corpos e em seus
gostos grandes similaridades comigo. Ao mesmo tempo em que viviam algumas
experiências sexuais e afetivas distintas, compartilhavam comigo desejos, perspectivas e
dilemas típicos de nossas gerações e lugares desviantes no mundo. Eram crioulos
urbanos, cosmopolitas insulares. Aqui, já sentado em meu escritório escrevendo este
texto, como ainda lá, sentia e ainda os sinto tão longe, tão perto (LOBO A. d., 2012).
Assim, é com essas pessoas e suas particularidades e subjetividades, que eu
aprenderia no dia-a-dia, entre outras mil coisas, como é ser gay e traveste no Mindelo e
em Cabo Verde. Com elas também, aprendi quais são as dores e as delícias de viver em
um pequeno arquipélago atlântico de recursos escassos. Pessoas estas que me
auxiliaram generosamente quando passei o momento mais crítico em campo ao sofrer
um cassibodi (assalto), com direito a, literalmente, uma faca em meu pescoço.
No final, eu ainda passaria uma semana na cidade da Praia, capital do país, onde
fiz novos contatos e produzi mais dados12. Antes de voltar ao Brasil, passei uma semana
12
Gostaria de agradecer particularmente aos estudantes Luisa e Carlos, que me receberam de maneira tão
generosa, oferecendo não somente suas histórias, comidas e lares, como me proporcionando encontros
fundamentais com alguns dos sujeitos gays de Praia.
8
em Lisboa. Lá, eu faria uma pesquisa arquivística na Biblioteca da Sociedade de
Geografia de Lisboa (SGL)13, onde pude coletar alguns dados coloniais de Cabo Verde,
que exponho neste trabalho. Como metodologia, fiz a chamada observação
participante14 e como material etnográfico, produzi um diário de campo de 292 páginas,
entrevistei formalmente 14 pessoas, mais tantas outras sem gravação e produzi um
pequeno acervo de fotos das pessoas e das paisagens.
Passado em revista meu percurso etnográfico, avancemos para os meus
principais pressupostos teóricos.
“Homossexualidade” em África15
Antes de mais nada, para escapar do aprisionamento epistemológico que a
categoria ―homossexual‖ engendra, alguns autores como Kirkpatrick preferem, ao tratar
amplamente da espécie humana, falar em ―homosexual behaviors”(2000, pp. 385-7).
Tal expressão incluiria uma série de práticas sexuais entre indivíduos do mesmo sexo
biológico tais como a masturbação, o sexo anal, oral etc. verificadas em diferentes
sociedades humanas, e virtualmente em todas (NEILL, 2009, p. 11). Esta perspectiva
supostamente deslocaria o conceito do eixo da identidade, muito relativo entre as
culturas humanas, para o eixo das práticas corporais empiricamente observáveis,
acreditando assim ser esse um critério objetivo que permitiria uma análise comparativa
global.
No entanto, sabemos que as práticas corporais não carregam em si mesmas seus
significados e estes podem variar culturalmente. Esta é a razão pela qual a proposta
metodológica de Kirkpatrick ainda não é suficiente para a perspectiva propriamente
antropológica, interessada fundamentalmente na visão de mundo do outro. Aqui,
13
Agradeço imensamente ao meu amigo Alexandre Fernandes, que ao ter notícia de que eu fugira de
campo, hospedara-me em seu apartamento alugado, a revelia do proprietário. E agradeço também a gentil
e prestativa bibliotecária da SGL, que me ajudara na pesquisa de alguns arquivos coloniais.
14
Impus a mim mesmo limites a esta participação, entre eles, o relacionamento sexual/afetivo com os
meus interlocutores, por ter um relacionamento fixo e considerar que um trabalho de cunho antropológico
sobre sexualidade prescinde disto (MURRAY, 1996).
15
Neste primeiro momento, seguindo a sugestão de Igor Kopytoff(1987), tomo aqui ―África‖ enquanto
unidade de análise.
9
dramatiza-se um dilema central para a proposta do método comparativo na antropologia
da homossexualidade, pois uma análise comparativa global só poderá ser bem sucedida
se levar em consideração que as percepções e os comportamentos corporais são
relativos e podem variar de sociedade para sociedade. Nesse sentido, é preciso estar
atento ao acervo etnográfico que supõe tratar do domínio da (homo)sexualidade, sem,
contudo, descartá-lo a priori.
Assim, quando pesquisamos referências da literatura acadêmica sobre ―práticas‖
ou
―comportamentos
homossexuais‖
no
continente
africano,
primeiramente
encontramos o artigo clássico do antropólogo inglês Evans-Pritchard sobre a inversão
sexual entre os Azande (EVANS-PRITCHARD E. E., 1970). Mas, se aprofundarmos a
pesquisa, descobrimos que, a princípio, haveria diversos relatos de ―práticas
homossexuais‖ vindos de todo o continente. O historiador Wayne R. Dynes compilou e
publicou uma lista de artigos e monografias sobre ―homossexualidade‖ entre os povos
africanos subsaarianos, alcançando mais de 500 citações (DYNES apud NEILL, 2009,
p.53).
James Neil (2009) nos revela uma série de exemplos registrados de supostas
práticas ―homossexuais‖ indígenas em África. A ―sodomia‖ entre homens seria, por
exemplo, muito comum entre os Bangala do Congo, que não sentiriam vergonha ao
praticá-la. A ―homossexualidade‖ também seria comum entre os homens solteiros de
Ruanda, Tutsi e Hutu, e também entre as mulheres e os homens solteiros Nkundo do
Congo. De acordo com alguns pesquisadores citados por Neil, seria comum aos homens
Hottent entrarem em pactos de assistência mútua, que frequentemente acabariam por
evoluir para relações ―sexuais‖. Em Dahomey, as ―práticas homossexuais‖ masculinas e
femininas teriam sido relatadas como frequentes e consideradas normais na
adolescência. Relações ―lésbicas‖ também seriam comuns entre os Nandi do Quênia, e
praticamente universal entre as mulheres solteiras Akan de Gana, por vezes,
continuando depois do casamento.
Ainda de acordo com Neil (2009), a ―homossexualidade‖ entre adolescentes
parece ser uma prática universal entre os povos africanos. Na Tanzânia, teria sido
relatado que os meninos da tribo Nayakyusa deixavam a casa dos pais por volta dos dez
anos e iam viver com outros rapazes em um acampamento nos arredores da vila
principal, onde teriam relações ―sexuais‖ com jovens da mesma idade até que se
10
casassem. Meninos pastores de Qemant e Amhara, na Etiópia, desenvolveriam relações
―homossexuais‖ com os outros, o que inclui o ―sexo anal‖, até o momento em que se
casam.
Além da tradição Azande, que possuiria o costume de ―práticas homossexuais‖
na formação de jovens guerreiros, Neil (2009) cita ―relacionamentos homossexuais‖
hierárquicos entre homens adultos dominantes e jovens, entre os numerosos povos
tribais. Um exemplo seria o Fang, um grande grupo tribal vivendo onde hoje se localiza
Camarões, Guiné Equatorial e Gabon. Durante os períodos em que a religião proíbe a
―relação sexual heterossexual‖, chefes Mossi, em Burkina Faso, teriam relações
―sexuais‖ com rapazes adolescentes. Ainda de acordo com Neil (2009), antropólogos
relataram que entre as tribos ubangi do Congo, os homens consideravam as mulheres
como existindo essencialmente para a procriação e os adolescentes do sexo masculino
propriamente para o prazer.
Nas populações indígenas do Zimbabwe, Marc Epprecht trata dos ngotshana,
―casamentos pederásticos‖ datados do início do século XX (EPPRECHT, 1998). Entre
tribos de língua berberes da área do Oasis Siwan no deserto da Líbia , continua Neil,
todos os homens buscam ―relações sexuais‖ com os rapazes, com os quais eles se
envolvem em ―relações sexuais anais‖. Esta atividade é tão comum que os homens que
não praticam essas relações são considerados como desviantes. Homens Siwan
emprestam seus filhos para os outros homens, e eles falam sobre seus ―casos amorosos‖
masculinos de forma tão aberta quanto eles discutem o amor das mulheres (NEILL,
2009).
Por último, Neil (2009) tratará da ―transgeneridade‖ em África. Segundo o autor,
indivíduos ―transgêneros‖ também são comuns entre os vários povos tribais africanos,
onde muitas vezes desempenham papel de xamãs ou curandeiros. Entre os Kwayama de
Angola, os homens ―transgêneros‖ serviriam como adivinhos e curandeiros, se
vestiriam de maneira feminina, fariam o trabalho das mulheres e tornar-se-iam esposas
auxiliares aos homens, que poderiam ter outras esposas do sexo feminino. O mugaw,
um poderoso líder religioso de Meru do Quênia, de acordo ainda com Neil, travestir-seia, sendo geralmente ―passivo sexual‖. Por vezes, se casaria com um homem. Por fim,
dirá que os adivinhos Zulu da África do Sul são geralmente mulheres, mas dez por
cento seriam homens travestidos e os membros de um culto de possessão espiritual entre
11
os Hausa no norte da Nigéria também se travestem e assumem o papel passivo na
relação homossexual.
No entanto, como já alertamos, apesar da variedade de supostos exemplos de
comportamentos ―homossexuais‖ em povos indígenas africanos, sabemos que tais
práticas corporais não possuem um valor simbólico em si mesmas e podem variar de
função e significação sociais. Nesse sentido, coloco em cheque até que ponto ritos de
iniciação como dos Baruya da Nova Guiné, onde os meninos e jovens, em busca da
construção de suas masculinidades, se nutrem do sêmen através do contato oral com o
pênis dos iniciadores, podem ser tidos como práticas propriamente ―homossexuais‖, tal
como defende Godelier, ainda que estes não pratiquem a sodomia (GODELIER, 1998,
pp. 53-4). Em outras palavras, é-se possível classificar tal ritual dentro do marco tão
ocidentalmente compartimentado da sexualidade? Apenas o trabalho de campo seria
capaz de responder.
Minha maneira de escapar do etnocentrismo que correlaciona um conjunto de
determinadas práticas corporais a um conceito muito comprometido com a história
ocidental (tal qual ―homossexualidade‖ ou suas correlatas) e, ao mesmo tempo, escapar
do relativismo estéril e da impossibilidade de uma análise comparativa, é tomá-la como
categoria nativa (como o é em muitos países africanos, entre eles Cabo Verde),
investigando suas significações êmicas e estabelecendo traduções possíveis. Algo que
possibilita não cometer equívoco parecido apontado por Kaoma, por exemplo, a respeito
do ruído gerado pela categoria ―família‖ que propagada pelos conservadores cristãos
norte-americanos em ―África‖, possuiria lá significação distinta, ―ubuntu” (KAOMA,
2009, p. 8).
Se, como vimos, a lista de práticas ―homossexuais‖, ―homoeróticas‖ e
―sodomíticas‖ em África parece diversa, quando buscamos a literatura urbana e
contemporânea sobre tais assuntos neste continente, encontramos uma insistente
narrativa que advoga a tese de que a ―homossexualidade‖ é uma prática exógena à
tradição africana, desconsiderando as supostas evidências do contrário (MOTT, 2005;
KAOMA, 2009). Isso vem sendo explicado, por um lado, pela recente e forte influência
que os ortodoxos cristãos norte-americanos têm exercido em África; e, por outro lado, a
ressonância desse discurso no continente se faria não por uma ―homofobia inata‖ do
africano, mas pela associação simbólica entre ―homossexualidade‖ e uma crítica latente
12
ao ocidente (KAOMA, 2009). Além dessas explicações, poderíamos sugerir a hipótese
de existir em África diversas formas de significar práticas que chamaríamos no
Ocidente de ―homossexuais‖. E, finalmente, a ―homossexualidade‖ a qual se referem os
defensores africanos da tese da exogenia poderia ser algo muito específico, que devesse
ser investigado e não tomado a priori como uma categoria universal.
Neste complexo conjunto africano, o fato é que o discurso antihomossexualidade – o que quer que esta categoria signifique – baseado na tese
exogênica, está produzindo um quadro de recrudescimento das leis antihomossexualidade16. De acordo com relatório recente da Anistia Internacional (2013),
pelo menos 38 países criminalizam a homossexualidade e 4 deles aplicam penas de
morte (Amnesty International, 2013)17.
Em resposta às recorrentes afirmações sobre a homossexualidade se configurar
como prática exógena ao continente, antropólogos, historiadores e militantes, porém,
vêm tentando demonstrar como, longe de ser uma prática estranha introduzida pelos
agentes do empreendimento colonial, as ―práticas homoeróticas‖ já se encontravam em
várias tradições culturais deste continente (MOTT, 2005; NEILL, 2009)18. Para
antropólogos como Luis Mott, que advoga pela comprovação da existência do
homoerotismo através de registros históricos, a ―homossexualidade nativa‖ africana
teria sofrido um incremento e ―diversificação/mestiçagem cultural‖ com a chegada do
europeu. Este, munido da moralidade judaico-cristã tentou impor a penalização
(frequentemente, o exílio) e o fim das práticas de travestismo e de relação sexual entre
indivíduos do mesmo sexo, através de uma série de processos jurídico-religiosos da
Santa Inquisição (MOTT, 2005). Tal fato corroboraria com a tese de Marc Epprecht de
que a ―homofobia‖ – e não a homossexualidade – seria exógena à tradição africana, uma
16
Antes de terminar a escrita desta dissertação, o presidente nigeriano Goodluck Jonathan assinara no dia
14/01/2013 uma lei que criminalizara a homossexualidade, com penas de até 14 anos de prisão para quem
viver uniões de fato com pessoas do mesmo sexo e para quem participe de organizações em defesa dos
direitos homossexuais no país (Publico.pt, 2014). No dia 24 do mês seguinte, seria a vez do presidente de
Uganda, Yoweri Museveni assinar lei que condena os homossexuais à prisão perpétua (Globo.com,
2014).
17
Ao mesmo tempo, é interessante notar certo lugar de exceção do arquipélago de Cabo Verde neste
cenário pan-africano. Não somente não há relatos de prisões ou julgamentos, como Cabo Verde destacase como o segundo país do continente a realizar uma parada do orgulho gay com a anuência das
autoridades locais.
18
Em Cabo Verde, porém, à diferença de muitos outros países africanos, não encontro na atualidade
qualquer discurso que associe negativamente e de forma direta ―homossexualidade‖ e o ―ocidente‖. Entre
outras razões possíveis para o fenômeno, o fato da sociedade crioula cabo-verdiana já ter nascido do
encontro entre europeus e africanos e não nutrir, nos dias de hoje, essa severa crítica ao ―ocidente‖, visto
que muitas vezes os cabo-verdianos se consideram dele fazendo parte.
13
vez que a partir da colonização, negar a ―homossexualidade‖ foi associado à civilização
e ao progresso (apud KAOMA, 2009, p. 14).
Pesquisando na história colonial, Mott (2005) demonstra alguns exemplos de
indivíduos da África ocidental, como o do escravo Antonio, natural do Reino do Benin,
que tinha ―preferências homoeróticas‖ e se reconhecia enquanto ―Vitória‖ já em 1556 e
o escravo quibanda Francisco Manigongo preso na Bahia por ―relações sodomíticas‖ em
1591 (MOTT, 2005, pp. 12-3). Se tais levantamentos historiográficos foram gerados por
questões como: ―Existiram sujeitos homossexuais no passado?‖, hoje as perguntas
parecem apontar para outro sentido: ―Por que nos importamos tanto se existiram gays
no passado?‖ ou ―Que tipo de relação com essas figuras, nós pretendemos cultivar?‖.
Em outras palavras, é preciso ser crítico com as demandas por uma história queer
(LOVE, 2007, p. 31).
Se devemos ser cautelosos em aceitar as teses essencialistas de que tratar-se-iam
em outros tempos e lugares de práticas propriamente ―homoeróticas‖ ou
―homossexuais‖, penso que estes vários registros históricos, aos quais poderíamos
acrescentar outros de diferentes regiões etnográficas, nos deixa igualmente alertas para
o risco da atual crítica que vincula a identidade ―homossexual‖em África como única e
exclusivamente decorrente de um processo recente de globalização das identidades
sexuais. Não quero negar a existência de recentes fluxos globais de valores e ideias,
principalmente no que diz respeito à emergência de movimentos LGBT no continente
(entre eles a Associação Gay Cabo-verdiana, como veremos adiante), mas os registros
coloniais não devem ser descartados imediatamente, pois eles podem ser um poderoso
argumento de desnaturalização de discursos que ontologizam a não-existência das
práticas sexuais entre indivíduos do mesmo sexo em áreas etnográficas como África.
Penso que uma abordagem antropológica e etnográfica não deve abandonar os
registros históricos e arqueológicos19, mas deve estar hoje absolutamente atenta para a
aplicabilidade das categorias do pesquisador como ―sexualidade‖, ―homossexualidade‖,
―homoerotismo‖ nas práticas nativas20. Afinal, certas práticas tidas por nós como
―[...]as pinturas rupestres das cavernas de San, atribuídas aos bosquímanos da África Austral, datadas
de 15 mil anos, onde são evidentes ‗egrégias práticas sexuais tais como sexo anal ou intracrural em
grupo‘‖ (MOTT, 2005, p. 12)
19
20
Murray aponta criticamente para a preocupação de vários autores construtivistas sociais que
argumentam pela contingência história da ―homossexualidade‖, mas que neste exercício acabam por
14
inscritas no domínio da sexualidade, podem ser eventualmente entendidas por outras
vias entre nossos interlocutores (HOAD, 2007; MACHARIA, 2009). Uma vez
percebendo que certas práticas se encontram de fato no campo do desejo, do prazer, da
afetividade e das relações diádicas, o empreendimento da antropologia da
(homo)sexualidade é possível e desejável.
Na Ilha de São Vicente, em Cabo Verde, após ter me certificado em pesquisa
etnográfica da possibilidade de tradução da categoria ―homossexualidade‖ e suas
correlatas, defenderei a existência de um ―Sistema Hipocrisia‖21, que se configura de
maneira a tolerar a homossexualidade, mas que pressiona por um silenciamento das
práticas propriamente (homo)sexuais22. Mostrarei ainda quais são as significações
êmicas para ―homossexual‖, a crítica dos sujeitos gays ao seu sistema de gênero e a
dificuldade dos sujeitos em conjugar os valores românticos aos seus exercícios de
(homo)sexualidade.
Uma sociedade crioula
Este trabalho tem como um dos pressupostos basilares a consideração da
sociedade cabo-verdiana como uma sociedade eminentemente crioula. Neste sentido,
tomo emprestadas as definições conceituais do antropólogo brasileiro Wilson Trajano
Filho que, ao analisar a sociedade guineense, complexificando a proposta de Ulf
Hannerz (1987), forneceu ferramentas conceituais para compreender, entre outras, a
sociedade arquipelágica de Cabo Verde23.
essencializar outras categorias como ―heterossexualidade‖, ―sexualidade‖, ―raça‖, ―classe‖ etc (Murray
apud ROSCOE, 1996, p.209).
21
Como tratarei em momento mais oportuno, o ―Sistema Hipocrisia‖ – com letras maiúsculas – é a
objetivação que fiz para estabilizar a percepção dos gays cabo-verdianos em relação ao seu próprio
sistema de gênero. Tanto as categorias ―sistema‖ quanto ―hipocrisia‖ são êmicas, mas passaram por um
processo de esvaziamento da carga moral para se tornarem uma categoria de análise objetificante e,
portanto, virtual. Os dois movimentos chaves para se compreender o Sistema Hipocrisia de Cabo Verde
são o silenciamento diante da existência da homossexualidade e a contradição entre a heteronorma e as
práticas homossexuais. No segundo capítulo, pretendo explorar o Sistema Hipocrisia a fundo.
22
Apesar de ser possível no Mindelo atual, como veremos, que os sujeitos transgridam em seus corpos as
normas de gênero hegemônicas.
23
Uma das importantes contribuições propostas por Ulf Hanners é abolir as categorias raciais e étnicas
para dar conta de novas totalidades nacionais surgidas com o colonialismo e o pós-colonialismo
(HANNERS, The World in Creolisation, 1987, p. 551). Daí a utilidade dela para a compreensão de
contextos nacionais como o cabo-verdiano.
15
Para Trajano Filho, as sociedades crioulas surgem do encontro fundador de
vertentes civilizatórias distintas. Neste caso, a sociedade europeia, representada nos
navegadores e comerciantes portugueses que aportam no arquipélago em meados do
século XV, e as sociedades tradicionais da costa da Guiné, levadas ao conjunto daquelas
ilhas atlânticas24. Contudo, do ponto de vista teórico e no intuito de refinar a categoria,
o que o autor chama de ―sociedade crioula‖ não é o produto do processo de mudança
ocorrido em África depois da implantação do regime colonial (2003, p. 2). A
crioulização também não se reduzirá, em sua perspectiva, ao surgimento de uma elite
negra que se apropriou, com o fim do regime colonial, do controle dos aparelhos de
governança. Ela seria, a priori, historicamente anterior à partilha da África pelas
potências europeias e seu surgimento revelaria uma continuidade marcante com
processos antigos de configuração das sociedades tradicionais na costa ocidental da
África. Anteriores, portanto, à própria chegada dos portugueses (2003, p. 2).
Deste modo, Trajano Filho se apropria, de maneira analógica, do termo
―crioulo‖, enquanto categoria da linguística. Esta disciplina a confeccionou para definir
o fenômeno relativo a uma nova língua estruturada, originada do pidgin. Este, por sua
vez, seria uma língua auxiliar que surge para resolver as necessidades de comunicação
em uma situação colonial em que os interlocutores têm línguas maternas muito distintas
e mutuamente inteligíveis (2003, p. 3).
A língua propriamente crioula emergiria na estabilização do pidgin, após um
processo de complexificação (o léxico é expandido e a sintaxe complexificada com o
surgimento de artigos, preposições, partículas marcadoras de tempo, aspecto e modo
verbal) e, assim, se tornaria a língua nativa de uma comunidade. A respeito do crioulo
de base portuguesa surgido na África ocidental, Trajano Filho afirma que a variante de
Cabo Verde, apesar de não mais conviver com as línguas africanas que participaram da
sua constituição, ainda hoje convive com o português em seu território (2003, p. 3).
Contudo, uma língua (e uma cultura) propriamente crioula não é só aquela
gerada da hibridização entre duas ou mais sociedades. É preciso que outras
características marquem presença na experiência histórica e sociológica deste encontro
de civilizações. Entre elas, heterogeneidade e relativa simetria de poder (TRAJANO
FILHO, 2008, p. 111). Faz-se necessário que haja alguma desigualdade econômica,
24
Eu acrescentaria ainda, no caso específico da Ilha de São Vicente de Cabo Verde, a forte influência
britânica na figura dos marinheiros e trabalhadores portuários.
16
social e política entre os povos, que, no entanto, se organizará a partir de uma
interdependência e um equilíbrio relativo de forças (2008, p. 97). Além disso, não se
tratará apenas da emergência de uma nova língua, mas de todo um sistema cultural. Diz
o autor em suas próprias palavras:
a crioulização implica invariavelmente um processo de mudança cultural resultante de um
intricado fluxo de valores, práticas, saberes, crenças e símbolos que dá luz a uma entidade
social terceira: uma unidade internamente heterogênea que emerge do compromisso social e
lingüístico alcançado pelas sociedades que participaram do encontro original (TRAJANO
FILHO, 2003, p. 3).
É pelo fator de necessária simetria que outras experiências portuguesas de
colonização, como o Brasil, não são válidas para o conceito de crioulização defendido
por Trajano Filho. De acordo com o antropólogo João Vasconcelos, para os intelectuais
cabo-verdianos da década de 1950, que adotaram o luso-tropicalismo de Gilberto
Freyre,
a experiência de miscigenação e interpenetração cultural que ocorrera no arquipélago não tinha
paralelo em nenhuma outra colônia portuguesa. Nem sequer em terras brasileiras, segundo
alguns claridosos, que chegavam a afirmar que a mestiçagem e o esbatimento do preconceito
racial haviam avançado mais nas ilhas crioulas que no Brasil (VASCONCELOS, 2012, pp. 523)
Para Gabriel Mariano, um intelectual cabo-verdiano que participou do chamado
grupo de ―claridosos‖,
a ausência de complexos ou conflitos interiores se devia ao facto de o mulato cabo-verdiano,
em vez de ter ficado entalado entre um grupo branco hegemónico e um grupo negro dominado,
ter comandado ele próprio desde muito cedo a estruturação da sociedade na colónia – papel que
no Brasil coubera ao português reinol (VASCONCELOS, 2004, p. 175).
Trajano Filho, em uma postura histórica e macro-sociológica, e fortemente
devedora da sociolinguística, se afasta da máxima de Hannerz, que dirá que as culturas
crioulas não são somente aquelas coloniais ou pós-coloniais, mas que estaríamos todos
nós sendo crioulizados25. Desta forma, o autor defende a originalidade das sociedades
crioulas:
Assim, como uma língua crioula não é uma mistura desestruturada de várias línguas, mas uma
língua natural em seu estado nascente, uma sociedade crioula não é simplesmente uma
sociedade sincrética, formada com traços, elementos e instituições oriundos de outras
sociedades. A abertura a influências externas é própria de toda sociedade humana. O que estou
a chamar de sociedade crioula é uma formação social original (como toda sociedade), diferente
das que a constituíram, mas com elas mantendo alguma forma de continuidade que precisa ser
desvelada analiticamente (TRAJANO FILHO, 2003, p. 4).
Mas reaproxima-se de Hannerz, quando lega a segundo plano as unidades de
análise étnicas, mas agora por uma perspectiva macro-sociológica pan-africana,
25
―We are all being creolised‖ (HANNERS, 1987, p. 557).
17
sugerida por Igor Kopytoff. O modelo pan-africanista de Kopytoff, é resumido por
Trajano Filho:
Segundo este modelo, as unidades políticas e sociais são constituídas no decorrer de um
processo de ocupação de fronteiras em um contexto marcado por uma baixa densidade
populacional e pela existência de reservas suficientes de terras livres para a ocupação. Este
modelo aponta ainda para a existência de uma cultura pan-africana resultante de uma ocupação
relativamente recente do território a nível continental. Este ecúmeno cultural criava verdadeiros
obstáculos estruturais que, sob variadas formas de expressão de conflitos como fissão de
grupos de parentesco, recorrentes acusações de feitiçaria e complexos conflitos sucessórios,
forneciam a motivação necessária para a produção de homens de fronteiras - grupos que
deixavam suas comunidades de origem para ocupar uma terra de ninguém. Nestes vácuos
institucionais, os homens da fronteira, desejosos de manter um modo de vida por eles
considerado culturalmente legítimo, mas por algum motivo impossível de ser concretizado em
suas comunidades de origem, criavam no novo ambiente uma ordem social que reproduzia
aquela existente em suas aldeias natais por meio do uso criativo de formas organizacionais e de
práticas culturais antigas(TRAJANO FILHO, 2003, p. 9).
E afirma que o uso deste modelo torna possível a compreensão das sociedades
tradicionais da Guiné sem lançar mão necessariamente do fator étnico (2003, p. 10).
Desta forma, Trajano Filho irá então conciliar a tese de Kopytoff acerca da expansão
populacional africana dentro do próprio continente – com especial ênfase sobre os
povos da costa da Guiné – com as ideias de Hannerz sobre sociedades crioulas nascidas
dos encontros entre culturas distintas, para provar seu argumento de que a crioulidade já
era uma característica endêmica das sociedades africanas daquela região (mas, por
derivação lógica, também do resto do continente). Pois ―o quadro encontrado pelos
portugueses no século XV não pressupõe um passado anterior estático. A dinâmica
social em África não foi trazida pelos europeus. É uma característica de todas as
sociedades humanas‖ (2003, p. 7). Após explicar os processos de expansão de várias
etnias da África ocidental, o autor conclui:
Uma das consequências deste processo de povoamento que combinava o deslocamento de
pequenas levas migratórias pacíficas com grandes movimentos de conquista foi o surgimento
de comunidades políticas que se reproduziram por meio de processos mais complexos do que a
pura imposição de estruturas de dominação e a consequente exclusão de estruturas antigas e de
todo sistema de valores e símbolos. Bem ao contrário, a construção de estruturas estatais na
região foi produto de um complexo fluxo de empréstimos e da constituição de fronteiras
permeáveis. As unidades políticas que surgiram da conquista mandinga no Kaabu e no rio
Gâmbia e dos deslocamentos de grupos beafadas, balantas, banhuns e cassangas, manjacos e
papéis para as bordas destes novos reinos resultram de intensos processos de assimilação e
incorporação, envolvendo os construtores estatais estrangeiros e as populações donas do chão.
Ora os primeiros incorporaram o universo simbólico e certos princípios organizacionais dos
derrotados donos do chão, ora implantavam junto às populações por eles conquistadas certos
elementos da bagagem cultural que traziam consigo de seus territórios de origem, como é o
caso da instituição da mansaya (realeza) entre os mandingas do Kaabu(TRAJANO FILHO,
2003, p. 13).
Nesse processo contínuo de fissão, fusão e expansão, há o alargamento das
alianças políticas (2003, p. 13), o compartilhamento de símbolos sagrados e a expansão
18
de práticas religiosas (2003, p. 14), a ramificação das relações de parentesco (2003, p.
14) e o fluxo da cultura material através do vívido comércio (2003, p. 15) tudo isso
integrava os diferentes povos da costa da Guiné, muito antes dos portugueses chegarem.
A tese do ―homem da fronteira‖ explicaria então alguns valores consolidados entre esses
povos, como a hospitalidade e certo cosmopolitismo, em escala regional, mesmo antes
da presença europeia.
Desta forma também, fica clara tanto a crítica feita ao conceito de tribo, como
arranjo social que congrega um território, uma língua e uma cultura (2003, p. 7) quanto
a escolha metodológica em abandonar os grupos étnicos como unidade de análise
privilegiada. Trajano Filho classificará o fenômeno em análise, sob esta perspectiva précolonial e focada nas dinâmicas intra-continentais, como crioulização primária (2003,
p. 10). Com a chegada dos portugueses, porém, abre-se um novo cenário, que ele
chamará de crioulização secundária (2003, p. 17). Assim, ele trata do surgimento de
uma nova sociedade nos rios da Guiné, formada pelas sociedades tradicionais da costa
africana e os tangomaos, de origem portuguesa e cabo-verdiana (2003, p. 17).
Contudo, como a presença europeia era frágil nesta região, as chamadas praças,
aglomerados populacionais que depois viriam a ser núcleos urbanos, eram chefiadas
pelas lideranças tradicionais, inclusive a elas se pagavam taxas. A sociedade crioula que
ali gestava era por demais dependente de uma presença europeia mais eloquente,
ficando sempre sob o risco de se diluir pelas sociedades autóctones que lá já existiam.
Nesse sentido, foi-se preciso buscar estratégias de reprodução da sociedade crioula:
―uniões matrimoniais exogâmicas, o recorrente recurso à adoção de crianças africanas e
assimilação de valores e práticas rituais africanos foram alguns dos principais
mecanismos usados pelos luso-africanos da Guiné‖ (2003, p. 18)
Diferente do que é possível constatar hoje em Cabo Verde, Trajano Filho assume
que ―sociedade crioula‖ não é uma categoria êmica na Guiné, tampouco um símbolo
poderoso em torno do qual as pessoas criam uma identidade social. O autor, contudo,
defende o uso do termo como
[...] uma locução objetivante, uma invenção do antropólogo, com um escopo estreito e bem
delimitado. Sendo assim, meu problema é revelar a existência de uma entidade social
identificável objetivamente, minimamente unificada e distinta de outras unidades sociais com
19
as quais se articula, embora fluida e com fronteiras móveis e porosas (TRAJANO FILHO,
2003, p. 18)26.
O autor assim tenta recuar sobre a abrangência do conceito que elabora, mas o
empreendimento não parece possível. O próprio conceito ―sociedade crioula‖, genérico
por natureza, pressupõe a sua expansão e aplicação em outros contextos. Além do que,
não somente este era o objetivo de sua confecção na linguística (servir de maneira geral
às línguas nascidas do pidgin), mas assim fora apropriado na própria tradição
antropológica, na incorporação pioneira de Ulf Hannerz. E por fim, ainda que dotada de
suas especificidades, é categoria êmica em regiões etnográficas distintas, como o Haiti,
no caribe ou em Cabo Verde, na macaronésia. Contudo, concordo que
no seu todo, a sociedade crioula é produto de um compromisso social e cultural entre as
vertentes sociais que a formaram. Seus membros falam o crioulo, e as práticas religiosas, o
modo de organização familiar e a estrutura de valores ali desenvolvidas também revelam o
funcionamento deste compromisso que tem uma natureza pendular, oscilando entre o mundo
europeu e africano (TRAJANO FILHO, 2003, p. 22).
No entanto, sugiro que o jogo pendular entre as tendências da sociedade crioula
ora à africanização ora à lusitanização, apontadas por Trajano Filho (2003, p. 22),
parece relativamente estabilizado no Cabo Verde contemporâneo, que fique claro, no
sentido à lusitanização. Parece-me que lá, após a falência do projeto de reafricanização
dos espíritos (VASCONCELOS, 2004) e a tomada de poder pelo Movimento Pela
Democracia (MpD), as instituições de governo, a economia, tanto os símbolos nacionais
quanto aqueles de uma modernidade global e a própria sociedade crioula do
arquipélago, como um todo, se realinharam fortemente ao ocidente do globo. Tendência
que ao meu ver sempre, de alguma forma, prevalecera na história do arquipélago e que é
hoje incontestável na Ilha de São Vicente27.
Para finalizar, Trajano Filho nos deixa ainda uma proposição instigante,
sugerindo que, por todos os motivos expostos, a sociedade crioula seja uma formação
social cuja reprodução requer permanentemente a adoção de práticas incorporadoras
A ideia de ―locução objetificante‖, como uma invenção do antropólogo para identificar objetificamente
uma entidade social, ser-me-á útil para pensar o ―Sistema Hipocrisia‖ em Cabo Verde, que tratarei ao
longo do trabalho.
27
Mesmo na cidade da Praia, há narrativas da elite sobre o processo de ―ocidentalização‖ pelo qual a
cidade-capital supostamente estaria passando, como nos descreve a socióloga Claudia Rodrigues: ―Fruto
de um crescimento económico razoável, a cidade tem sido alvo de intervenções voltadas para uma
modernização/estilização ocidentalizada do espaço e das infra-estruturas, baseadas num discurso de
transformação e modernidade: novos bairros de classe média e elites; prédios administrativos altos (para o
padrão local); asfaltagem das principais vias da cidade; universidades e escolas; bem como a proliferação
de espaços de restauração e bares, que procuram ser sofisticados e urbanos, onde surgem movimentos de
jovens da elite detentores de capital económico, intelectual, e artístico considerável‖ (RODRIGUES C. ,
2010, p. 55)
26
20
(2003, p. 18). Como veremos, essa assertiva seria bastante útil para entender algumas
aparentes disparidades. Por exemplo, práticas discursivas de um movimento LGBT
internacional tentando ser incorporadas pelos atores locais, ainda que sem muita
gramaticalidade com a cultura local.
Análise sistêmica
Este trabalho, porém, não é apenas sobre uma sociedade crioula, mas sobre
sexualidade na sociedade crioula cabo-verdiana, com foco na Ilha de São Vicente.
Portanto, pretendo conjugar no plano teórico uma análise sistêmica e outra performativa
a respeito da sexualidade crioula. Isso significa dizer que trabalharei com modelos de
gênero e sexualidade típico-ideais uma vez que eles auxiliem na estabilização e
objetificação de uma dada realidade social. Esta, contudo, não foi uma decisão a priori,
mas condicionada pela própria realidade do campo, que mostrou coexistir pelo menos
dois modelos ideais de experiência da (homo)sexualidade masculina em Cabo Verde.
Quando os modelos não derem conta de explicar as transições e os novos arranjos,
acionarei a teoria da performatividade queer. Por ora, entendamos a análise sistêmica.
Parto então para as formulações do antropólogo Peter Fry que, na década de
1970, etnografou a relação entre homossexualidade e candomblé, na periferia da cidade
de Belém, norte do Brasil (FRY, 1982a). Em Da hierarquia à igualdade: a construção
histórica da homossexualidade no Brasil, o autor pretendeu
[...] investigar a construção das categorias sociais que dizem respeito à sexualidade masculina
no Brasil, numa tentativa de desfocar a discussão da sexualidade do campo da medicina e da
psicologia para colocá-la firmemente no campo da antropologia social (FRY, 1982b, p. 87)
Se hoje a antropologia social já se constituiu como campo legítimo de
investigação científica para a sexualidade, darei ênfase aqui ao exercício empreendido
por Fry de sistematização de dois modelos ideais para tratar da sexualidade masculina
em Cabo Verde. Modelos estes que, apesar de serem construídos em outro quadro de
referência empírica, pode nos servir como modelo teórico eficaz para Cabo Verde.
Esses modelos seriam criados a partir do interesse do pesquisador não em tratar os
comportamentos sexuais em si, mas dos discursos e retóricas a respeito do sexo (FRY,
1982b, pp. 88-9).
21
Nesta dissertação, pretendo investigar não só as retóricas dos meus
interlocutores a respeito da (homo)sexualidade, mas também dar o segundo passo, ou
seja, investigar como são seus comportamentos sexuais e as sutilezas das estratégias do
dia-a-dia (FRY, 1982, p. 89). A perspectiva de análise dos discursos de Fry, além de
colaborar para entender a realidade – uma vez que os discursos sobre sexualidade
produzem a própria realidade sexual – permite criar modelos de referência para o
enquadramento de padrões aproximados do que encontro em incursões iniciais de
pesquisa em duas ilhas de Cabo Verde, Santiago e São Vicente.
A primeira constatação de Fry é que suas categorias ―homossexualidade‖ e
―homossexual‖ não eram suficientes para descrever o sistema de representações
encontrado na Belém em 1974. Aplicá-las, diz o autor, seria impor uma visão
etnocêntrica sobre seus dados (FRY, 1982, p. 88). Isso porque, na periferia desta cidade,
Fry encontra, em termos de sexualidade masculina, um sistema em que se dividem
―homens‖ e ―bichas‖. Em suas próprias palavras:
A categoria ―bicha‖ se define em relação à categoria ―homem‖ em termos de comportamento
social e sexual. Enquanto o ―homem‖ deveria se comportar de uma maneira ―masculina‖, a
―bicha‖ tende a reproduzir comportamentos geralmente associados ao papel de gênero (gender
role) feminino. No ato sexual, o ―homem‖ penetra, enquanto a ―bicha‖ é penetrada [...] o ato de
penetrar e o de ser penetrado adquirem nessa área cultural, através dos conceitos de ―atividade‖
e ―passividade‖, o sentido de dominação e submissão. Assim o ―homem‖ idealmente domina a
―bicha‖. Além disso, a relação entre ―homens‖ e ―bichas‖ é análoga à que se estabelece entre
―homens‖ e ―mulheres‖ no mesmo contexto social, onde os papeis de gênero masculino e
feminino são altamente segregados e hierarquizados (FRY, 1982, p. 90)
Este sistema, que o autor classifica como ―sistema A‖ é o mesmo modelo
hegemônico encontrado por mim em meu trabalho na cidade do Mindelo, em Cabo
Verde. Naquela cidade crioula, idealmente, os gêneros masculino e feminino são
igualmente segregados e hierarquizados. Por lá também os comportamentos sexuais dos
―homens‖ e dos ―gays‖ são, ideal e respectivamente, os de ―ativo‖ e de ―passivo‖. E por
último, em Cabo Verde, também os homens são pressupostos agirem de forma
extremamente masculina, enquanto os ―gays‖ e as ―travestes‖ articulariam muitos dos
signos femininos dispostos em sua cultura28.
28
Obviamente que há deslocamentos e recitações criativas desses signos de masculinidade/feminilidade
nos corpos dos sujeitos, assim como as performances sexuais não sempre tão cartesianas. Em outras
palavras, esse modelo nunca se realiza perfeitamente, mas opera como uma norma e é neste sentido que
tais modelos de sexualidade propostos por Fry nos servem aqui. Em relação ao enquadramento teórico
das práticas sexuais de fato, sobre as recitações criativas e os deslocamentos nos usos dos signos,
recorrerei mais tarde à teoria queer.
22
Um aspecto, porém, que parece singular do modelo hierárquico encontrado em
Cabo Verde é o ritual do mandar bocas29, que inverteria os signos pressupostos no
modelo proposto por Fry. Para tratar do ritual do mandar bocas, é útil a formulação de
Victor Turner a respeito dos ―ritos de inversão de status‖:
Os mais fortes tornam-se mais fracos; os fracos agem como se fossem fortes. A liminaridade
dos fortes socialmente não é estruturada ou é estruturada de maneira simples; a dos fracos
representa uma fantasia de superioridade estrutural (TURNER, 1974, p. 203).
De acordo com a antropóloga Maria Laura V. C. Cavalcanti, Turner trabalha a
partir da idéia de que este tipo ritual não apenas expressa, indica, revela, mas constitui e
opera uma transição entre estados. Para ele, estado é um conceito inclusivo relativo a
qualquer tipo de condição estável ou recorrente que é culturalmente reconhecida
(CAVALCANTI, 1998, p. 8). Seguindo esta lógica, ―heterossexual‖, ―homossexual‖,
―bissexual‖, ―homem‖, ―mulher‖, ―masculino‖, ―feminino‖ poderiam ser todas
categorias referentes a estados. Se a sociedade é uma estrutura de posições hierárquicas,
como acredita o autor, ou um sistema cultural do qual participam diversos estados,
então o período liminar é uma situação interestrutural, o momento em que se opera uma
transformação.
Como venho insistindo até aqui, os modelos propostos por Fry ou Turner são
bons apenas enquanto modelos e, portanto, como um quadro de referência tipológico,
eles não dão conta – mas também não excluem – os aspectos perfomativos sempre
cambiantes dos sujeitos. Assim, se uma inversão de poder dos papeis de gênero é
constatada, e o feminino emerge como detentor desse poder, isso não significa que a
inversão de poder sempre operará neste ritual desta forma, ou que este seja o único
signo de inversão. Em outras palavras, no ato sexual em si, os rapazes não-gays30
mesmo sendo ―ativos‖ sexualmente podem se feminilizar ao perfomarem a entrega das
decisões do ritual aos gays. Se tais rapazes, à revelia do pressuposto no modelo,
perfomam a passividade sexual, absorvem eles o feminino e o conferem eles mesmos
legitimidade e poder a este aspecto do feminino.
Assim, o sistema hierárquico proposto por Fry pressupõe que
29
No Capítulo II tratarei a fundo do ritual de mandar bocas. Por hora, esclareço que trata-se de um evento
em que os rapazes provocam os sujeitos gays pelas ruas da cidade.
30
Utilizo o termo ―não-gay‖ para me referir a todos os sujeitos que, apesar de habitar o universo
homoerótico, não se identificam a partir de uma categoria (homo)sexual. Em momento oportuno,
circunscreverei o que é ser ―não-gay‖ neste universo de pesquisa.
23
as relações realmente desviantes [...] são as que ocorrem entre pessoas que desempenham o
mesmo papel de gênero, isto é, entre uma ―bicha‖ e outra ou entre um ―homem‖ e outro. Essas
relações são consideradas desviantes porque quebram a regra fundamental do sistema que
exige que as relações sexuais-afetivas ―corretas‖ sejam entre diferentes papéis de gênero
ordenados hierarquicamente (FRY, 1982, p. 90).
Sabemos que os papeis de gênero na vida real não possuem a fixidês cartesiana
proposta neste modelo, mas são construções contínuas e sem fim. Por outro lado, o
modelo hierárquico proposto por Fry me auxilia a entender a maioria dos dados obtidos
no Mindelo atual, se considerarmos que a categoria ―gay‖ aqui opera como correlata à
―bicha‖. Quando a traveste mindelense Bela fala em ―Cabo Verde‖, está descrevendo
um sistema que é mais encontrado nas classes mais baixas, mas que, de fato, não deixa
de ser hegemônico no país:
Nós em Cabo Verde, nós é gay, nós é traveste, mas nunca se envolver mais gay. Nós gostar de
se envolver mais homem. Homem que não gostar de levar na bunda. Homem. Ihh... Nós gostar
de homem, não gostar próprio de gay, diferente dos estrangeiros. No estrangeiro, gay gostar de
gay. Mas nós não, nós é diferente. (Entrevista Bela. Mindelo, 09/10/2013)
Neste relato, observa-se uma correlação interessante entre as ―bichas‖ da
periferia de Belém e a maioria dos ―gays‖, ―homossexuais‖ e ―travestes‖, com quem
convivi no Mindelo, ainda que haja aparentes particularidades neste país, como o ritual
do mandar bocas. Contudo, Fry assume que o sistema encontrado na periferia de
Belém, não é o único no Brasil, assim como também não é o único encontrado por mim
em Cabo Verde. Lá como cá, há sistemas coexistindo e em competição (FRY, 1982b, p.
91). Desta forma, um segundo modelo formulado por Fry, seria o modelo simétrico dos
―entendidos‖:
Com esta maneira de perceber a sexualidade masculina, as identidades sexuais são
discriminadas não mais pelos itens 2 (papel de gênero) e 3 (comportamento sexual), uma vez
que o ―entendido‖ é definido como um personagem que tem uma certa liberdade no que diz
respeito ao seu papel de gênero e a sua ―atividade‖ ou ―passividade‖. O item que discrimina
―homens‖ e ―entendidos‖ neste sistema, é o item 4 (orientação sexual). O mundo masculino
deixa de se dividir entre homens másculos e homens efeminados como no primeiro sistema, e
se divide entre “heterossexuais” e “homossexuais”, entre “homens” e “entendidos” (FRY,
1982, pp. 93-4, grifo meu)
E o autor friza que
o ―homem‖ não é o mesmo que no sistema anterior, pois naquele, o ―homem‖ poderia
desempenhar comportamentos homossexuais se se restringisse à ―atividade‖. Neste novo
sistema, o macho que se relaciona sexualmente com outro macho, mesmo ―ativamente‖, deixa
de ser ―homem mesmo‖ e vira ―entendido‖ ou ―homossexual‖. Assim, neste novo sistema as
relações sexuais aceitáveis são diferentes do sistema ―A‖. Agora, homens só devem se
relacionar com mulheres, e “entendidos” com “entendidos” (FRY, 1982, pp. 94, grifo meu).
O trabalho da socióloga cabo-verdiana Claudia Rodrigues revela este mesmo
sistema ideal emergindo entre seus interlocutores ―homoafectivos‖ da elite da cidade de
24
Praia, na ilha cabo-verdiana de Santiago, como é possível perceber neste depoimento de
Apolo, um de seus interlocutores:
É um espanto e acaba por ser também um choque porque as pessoas não estão acostumadas a
associar dois rapazes, másculos com atitudes masculinas, a serem gays... porque sempre
associam com papéis efeminados... ou então quem come quem... isso que espanta as pessoas e
o que os confunde e que os deixa de certa forma na dúvida...(Apolo apud RODRIGUES C.,
2010, p.79)
Parece que na elite da cidade da Praia e entre alguns sujeitos do Mindelo, este
―sistema B‖, descrito por Fry começa a ter ressonância. Como desenvolverei ao longo
desta dissertação, mesmo no Mindelo, onde o ―modelo hierárquico‖ é hegemônico,
começa a haver alguma pressão de substituição pelo ―modelo simétrico‖, ainda que
quase nunca tal se realize. Isso devido a pressões do movimento LGBT internacional e
local, devido às telenovelas brasileiras expondo os valores da homoafetividade em
horário nobre, ao sucesso de publicização das teses científicas sobre sexualidade, e
devido a todo fluxo de ideias e valores do mundo ocidental moderno, no qual os gays
crioulos e, mais especificamente aqueles do Mindelo, procuram incorporar.
Por fim, Fry (1982b) faz duas ressalvas importantes que nos conduzirão à teoria
queer. Se, por motivo de sistematização e clareza, ele isolou dois modelos ideais –
sendo um hierárquico e outro igualitário – dá a entender que esses modelos não se
efetivam nunca integralmente, quando diz que é ―rara‖ a ―expressão total desses
modelos‖ (1982b, p. 105). Na realidade, o que há são estratégias dos sujeitos nos usos
desses modelos, marcadas em muitas categorias linguísticas intermediárias e ambíguas,
como ―viado‖, ―homossexual‖, ―bicha‖, ―bofe‖, ―gilete‖, ―bissexual‖ etc. O mesmo
poderia ser estendido ao caso cabo-verdiano, pois como ensina Fry, ―os princípios
básicos de um ou outro modelo podem ser invocados situacionalmente pelo mesmo ator
social‖ (1982b, p. 105). Portanto, estes modelos operam apenas enquanto ideais, e cada
ato performativo dos sujeitos desloca e reconfigura os próprios modelos.
Perfomatividade queer
Assim, se os modelos só resolvem um anseio de objetificação e estabilização de
dada realidade social, eles não dão conta do trabalho de bricolagem sem fim que é a
construção de gênero dos sujeitos. Assim, utilizarei de forma instrumental parte do
arcabouço teórico da chamada teoria queer para discutir sexualidade. Neste sentido, não
25
pretendo aqui realizar uma grande síntese ou revisão da referida teoria, mas apenas
incorporar algumas ideias propostas por essa nova ―ontologia de gênero baseado na
performatividade‖ (SALIH, 2012, p. 196), na medida em que ela me ajude a pensar o
caso cabo-verdiano.
Para dar início a esta seção, trago uma das possíveis origens etimológicas do
termo badiu, termo que designa os originários da Ilha de Santiago em Cabo Verde,
narrada por uma de minhas interlocutoras na cidade da Praia e anotada em meu diário
de campo:
Andreza, que é badia, me contou da origem etimológica do termo ―badiu‖, numa versão da
perspectiva das mulheres ―badias‖. (Me contou como se fosse historiografia, mas não posso
confirmar por hora a veracidade dos fatos). Disse-me ela que as mulheres de Ilha de Santiago,
supostamente conhecidas como mulheres mais fortes e lutadoras que as de outros lugares, em
uma das muitas crises de fome do período colonial, resolveram juntar-se para saquear os
armazéns de alimentos da costa. Os homens da Ilha, segundo Andreza, nunca ousavam fazer
isso, temendo represarias de seus senhores. As mulheres então saquearam e carregaram
alimentos morro acima, para alimentarem seus homens e seus filhos. Os colonizadores, donos
dos armazéns, então as chamaram de ―vadias‖ por isso. A partir daí, houve um processo de
apropriação e crioulização deste nome. E o nome acabou por se positivado até o ponto de se
tornar uma denominação regional de uma ilha inteira: os ―badius‖ são aqueles que nascem na
Ilha de Santiago. (―Morabeza‖. 30/10/2013 Diário de campo, p.273)
Ainda em campo, achei interessante o paralelo dessa história de re-significação
linguística com a recente história da marcha das vadias no Canadá, que a jovem
estudante Andreza disse nunca ter ouvido falar. Naquele país norte-americano, jovens
universitárias ao serem orientadas por policiais a se vestirem de forma mais adequada, a
fim de evitarem os recorrentes casos de estupro no campus, criaram um movimento
feminista intitulado Slut Walk (Marcha das Vadias). Defendiam assim que a culpa dos
estupros não estava na forma como se vestiam, mas nos homens que as violentavam. As
histórias são distintas, mas o interessante, porém, é a re-significação política de um
termo, antes pejorativo, em um termo, agora, de auto-identificação.
O mesmo aconteceu com a expressão ―queer” nos países anglófonos. ―A
expressão ‗queer‘ constitui uma apropriação radical de um termo que tinha sido usado
anteriormente para ofender e insultar, e seu radicalismo reside, pelo menos em parte, na
sua resistência à definição‖ (SALIH, 2012, p. 19). Tratava-se de uma categoria
acusatória que significava ―bicha‖, ―estranho‖, ―suspeito‖ e que a partir de uma
enunciação performativa subversiva, se transforma em uma categoria de autoafirmação,
mas sem definições fixas. ―Em outras palavras, o queer não está preocupado com a
definição, fixidez ou estabilidade, mas é transitivo, múltiplo e avesso à assimilação‖
26
(SALIH, 2012, p. 19). Voltando a Cabo Verde, é nesse sentido que alguns termos
êmicos, como veremos em detalhes mais tarde nesta dissertação, supostamente teriam
uma forte potência subversiva para o movimento LGBT do Mindelo, apesar de, na
prática, serem rechaçados pelos ativistas locais.
Mas a teoria queer é muito mais do que a proposta de uma mera re-significação
de vocativos acusatórios ou de ―recitação‖. Um de seus mais caros objetivos é a própria
desconstrução do gênero e do sexo. ―A teoria queer empreende uma investigação e uma
desconstrução dessas categorias, afirmando a indeterminação e a instabilidade de todas
as identidades sexuadas e ‗generificadas‘‖ (SALIH, 2012, p. 20). Butler e outros autores
filiados a esta ―corrente‖, defendem que tanto sexo quanto gênero são categorias
socialmente construídas em uma matriz heterossexual de poder e que não pré-existem
ao discurso (BUTLER, [1990] 1999, p. 30). Neste sentido, o próprio corpo sexuado – se
macho ou fêmea – não existe sem que a linguagem o inscreva numa semântica sexual
binária.
Para exemplificar, Butler traz o caso dos intersexo, pessoas que nascem com o
sexo indefinido e que são os médicos que definem arbitrariamente se, afinal de contas,
trata-se de meninos ou meninas. Diz a autora que este seria um exemplo claro de que
não existe um corpo sexuado dado na natureza, mas que é somente no ato de nomeação
(―é menina!‖) – e na série posterior de atos de interpelação – que alguém ―faz‖ o
gênero.
A ―metafísica da substância‖ refere-se à crença difundida de que o sexo e o corpo são entidades
materiais, ―naturais‖, autoevidentes, ao passo que,para Butler, como veremos sexo e gênero são
construções culturais ―fantasmática‖ que demarcam e definem o corpo. Butler argumenta que a
―incapacidade‖ de [pessoas intersexo como] Barbin em se conformar aos binarismos de gênero
mostra a instabilidade dessas categorias, colocando em questão a ideia do gênero como uma
substância e a viabilidade de ―homem‖ e ―mulher‖ como substantivos [...] o gênero é uma
produção ficcional [...] ―o gênero não é um substantivo, mas demonstra ser performativo‖
(SALIH, 2012, p. 72).
A máxima de Simone de Beauvoir de que ―ninguém nasce mulher, mas tornar-se
mulher‖ é a grande inspiração de Butler. Para esta autora, a identidade de gênero
pressupõe atos de interpelação, que nomeiam o sujeito e o tornam um gênero, como o
obstreta faz com o bebê. Daí em diante, em uma espécie de bricolagem contínua dos
signos de gênero dispostos em sua cultura, o sujeito butleriano se constrói
performativamente, através de atos, em uma dialética hegeliana sem telos.
27
A respeito da construção de gênero, através da performatividade estilística,
Butler dirá que
o gênero é a contínua estilização do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de um
quadro regulatório altamente rígido e que se cristaliza ao longo do tempo para produzir a
aparência de uma substância, a aparência de uma maneira natural de ser (BUTLER, [1990]
1999, p. 89).
Assim, o gênero seria para a teoria queer um processo que não tem origem nem
fim, de modo que é algo que ―fazemos‖, e não algo que ―somos‖ (SALIH, 2012, p. 67).
Em Cabo Verde, esta dimensão performativa era flagrante na construção dos corpos de
meus interlocutores ―gays‖, uma vez que eles articulavam, no dia-a-dia, roupas,
acessórios, vocativos e performances tanto tradicionalmente masculinas quanto
tradicionalmente femininas, misturando-os em criações próprias, ―recitando‖ um batom
ou uma bolsa, em seus corpos ao mesmo tempo masculinizados31. Assim, o caráter de
construção de si pressupõe intrisicamente a possibilidade de reconstrução e é neste
sentido que Butler vê a possibilidade de subversão da hegemonia heterossexual.
Mas nesta monografia etnográfica não me interessa tratar dos universais (por
isso abro mão de discutir as complexas teorias psicanalíticas e filosóficas de Butler),
mas descrever o sistema de gênero em Cabo Verde, sob a ótica dos sujeitos gays, a
partir de algumas ideias da teoria queer. Assim, a matriz heterossexual cabo-verdiana
guardaria grandes similaridades com o modelo proposto por Butler, mas possuiria
também algumas especificidades como a não-proibição, nem discursiva quanto mais
seria pela lei, esta entendida de forma genérica, das relações homossexuais. No modelo
de matriz heterossexual de Butler, o ―repúdio e a proibição requerem a
homossexualidade para se constituírem. Longe de eliminar a homossexualidade, ela é
sustentada pelas próprias estruturas que a proíbem‖ (SALIH, 2012, p. 182). Para Butler,
―A homossexualidade não é abolida mas conservada, ainda que conservada
precisamente na proibição imposta sobre a homossexualidade‖ (BUTLER, 1997, p. 142)
Apesar de, novamente, não querer entrar nas discussões psicanalíticas sobre a
―heterossexualidade melancólica‖ e não crer que se trate propriamente de uma
―proibição‖ na matriz heterossexual cabo-verdiana, é coerente o argumento de que o
sistema de matriz heterossexual necessita da ideia da homossexualidade, como
contraposto lógico. E que a homossexualidade permanecerá como oposição binária
31
Para ver mais sobre a construção dos corpos travestes em Cabo Verde, ver RODRIGUES C., 2010, pp.
63-6.
28
necessária à heterossexualidade, em alguns sistemas de matriz heterossexual. A cultura
cabo-verdiana, assim como outras, forjou esse par de oposição (homossexualidade e
heterossexualidade) e agora não é possível abdicar de um dos seus termos, sem que o
sistema não entre em colapso.
Contudo, na cidade do Mindelo, em Cabo Verde, percebi que os rapazes não se
enxergam ou querem se enxergar sempre a partir das categorias ―homossexual‖,
―bissexual‖ etc. E entre si os questionamentos são se X ou Y gostam ou não de
indivíduos do mesmo sexo. Quando conversam entre si, perguntam muito pouco se
fulano ou ciclano é ―gay‖, mas se ele ―curte‖ ou não, se ―gosta‖ ou não, se ―significa‖
ou não, se é do ―gênero‖ ou não, se é da ―paróquia‖ ou não, se é ―irmã‖ ou não. O que
se percebe no uso de algumas dessas categorias é que elas não são substantivos, mas
qualidades ou estados. A homossexualidade não é sempre substancializada neste
contexto cultural, onde inclusive os rapazes não-gays muitas vezes possuem namoradas,
filhos e famílias heteronormativas e ainda assim se relacionam com os sujeitos ―gays‖.
É por isso que defendo aqui que os sujeitos gays e travestes do Mindelo, da Ilha
de São Vicente, vêem empreendendo desde pelo menos a década de 1990 uma
performatividade que está desestabilizando, de certa forma, o tradicional sistema de
gênero cabo-verdiano.
Se a homossexualidade é um pressuposto lógico para um
sistema de matriz heterossexual como o é o sistema de gênero cabo-verdiano, a
perfomance pública trazida nos corpos dos homossexuais sampadjudus32 vêem
denunciando a falseabilidade das categorias de gênero tão naturalizadas em sua cultura,
vem denunciando a suposta ―hipocrisia‖ do seu sistema.
Em outros termos, a visibilidade e a experiência da homossexualidade, se antes
era pressuposta na lógica e tolerada na prática (desde que velada, sem estrilo33), ela
agora está evidenciando a instabilidade da própria categoria ―heterossexual‖, uma vez
que os sujeitos gays revelam que entre eles e os chamados ―heterossexuais com aspas‖,
ou seja, aqueles que apesar de não se identificarem como gays, habitam o universo do
homoerotismo, o crivo não é abissal e que, ao se desejarem mutuamente, ambos fazem
bricolagem de suas identidades sexuais, desnaturalizando-as.
32
Sampadjudus é um termo crioulo para aqueles originários da Ilha de São Vicente.
―Escândalo‖ em crioulo.
33
29
Tomo de empréstimo ainda da teoria queer, o conceito de ―performatividade
subversiva‖, para relatar um evento histórico no Mindelo, em que um grupo de travestes
saiu às ruas de drag em meados dos anos 1990. Este evento, que retomarei mais tarde
nesta dissertação, foi o responsável por uma mudança concreta no sistema de gênero
cabo-verdiano, ao (re)instaurar (novas) identidades sexuais e, assim, denunciar não só
os mecanismos de funcionamento das dinâmicas (homo)sexuais masculinas, como o
próprio construcionismo – e, portanto, não ―naturalidade‖ ou ontologia – das
identidades de gênero.
Sobre os discursos de ódio contra a homossexualidade tratadas por Butler,
aproveito algo residual de suas formulações. Trata-se da ideia basilar em sua teoria
sobre a antecedência do discurso sobre o sujeito. Não parece existir, de maneira
estruturante, um discurso de ódio anti-homossexual no Mindelo ou em Cabo Verde.
Razão pela qual, explorarei inclusive as dificuldades de tradução da categoria
―homofobia‖ no arquipélago. Desta forma, seguindo as teorias linguistas de Butler, não
me parece que o mandar bocas que, como veremos, é o ato de provocar os desviantes
sociais, entre eles os gays, possa ser algo que é exclusivamente da autoria do indivíduo
que o profere, mas faz parte de uma cadeia de signos que se realiza nos indivíduos.
Assim, para além de uma estratégia individual no ritual de cortejo homoerótico, o
mandar boca faz parte de um discurso de gênero masculinista que perpassa os caboverdianos, mas não tem como intenção somente a negação do outro.
Ao longo deste trabalho, irei ―aplicar‖ formulações da teoria queer para pensar
meus dados de campo. Por hora, basta que fique claro que incorporo como prática
teórica e metodológica: 1) a ideia da não-naturalidade dos gêneros ou dos sexos e de
suas inscrições necessárias na linguagem, apesar de suspeitar que a oposição binária
(macho/fêmea) possa ser universal, haja vista que os humanos são produtos do processo
evolutivo da divisão sexuada (HÉRITIER, 1988); 2) a ideia da construção do gênero
enquanto performatividade (que eu chamaria, em meus termos, de uma ―bricolagem
corporal contínua dos signos de gênero dispostos na cultura‖); 3) a flexibilidade das
identidades de gênero, ainda que em culturas marcadamente binárias e de matriz
heterossexual como o é a cabo-verdiana; 4) a possibilidade de subversão política
concreta através do drag; 5) a preeminência dos discursos sobre os sujeitos, que ajudará
a entender que mais do que uma agressão individual, o mandar bocas é um discurso
social e uma estratégia ritualizados.
30
Sem mais, passemos aos capítulos.
31
Capítulo I – História e mito do cosmopolitismo
Neste capítulo, pretendo reunir dados historiográficos da cidade do Mindelo aos
meus dados etnográficos, com o intuito de criar um quadro semântico, no qual será
possível contextualizar muitas das questões postas nesta dissertação. Creio ser
fundamental conhecer o processo histórico de formação social e cultural da cidade do
Mindelo, para compreender não somente o porquê da possibilidade de emergência de
um movimento gay nesta cidade, mas todo o universo de linguagens e práticas dos
homossexuais sampadjudus34.
O capítulo se inicia com uma investigação acerca do sistema penal colonial e
pós-colonial de Cabo Verde no que tange ao ―homoerotismo‖35. Para tanto, analiso
alguns dados sobre a Santa Inquisição em Cabo Verde, assim como as legislações
penais dos séculos XIX, XX e XXI que tratam da ―sodomia‖, ―dos vícios contra a
natureza‖, da ―homossexualidade‖ e de expressões ou termos correlatos. Argumento que
os dados historiográficos indicam que há, na história da crioulização de Cabo Verde, no
período pós-inquisitório, o surgimento de uma espécie de tolerância muda em relação à
homossexualidade, que levará não à condenação ou proibição de suas práticas em si,
mas a um consentimento silenciado, que fará parte do que chamarei no segundo capítulo
de um ―Sistema Hipocrisia‖.
“Sampadjudus” é uma palavra de origem crioula que designa contemporaneamente aqueles naturais da
Ilha de São Vicente ou, mais especificamente, da cidade do Mindelo, a depender do contexto. De acordo
com uma interlocutora de Praia, uma suposta origem etimológica advém da expressão portuguesa: ―são
palhudos‖, ou seja, ―só falam, não agem‖. Já no Mindelo, a explicação de sampadjudu, por outro lado,
seria ―faz tudo‖. Em meu trabalho de campo esta era uma categoria acionada sempre em oposição à
badiu, termo que nomeia aqueles nascidos na Ilha de Santiago. As rivalidades simbólicas e políticas entre
as ilhas são expressas em parte nestes termos, que a depender do interlocutor pode ganhar tons pejorativos
ou de orgulho. Pretendo explorar melhor esta rivalidade ao longo deste trabalho.
35
A escolha dos termos ―homossexual‖ ou ―homoerótico‖ é permeada por discussões teóricas e políticas.
De acordo com alguns autores, como o psicanalista Jurandir Freire Costa, o primeiro termo seria herança
de outro mais antigo, o ―homossexualismo‖, fruto do discurso medicalizante e estigmatizador dos fins do
século XIX. Como a função da linguagem não é apenas comunicar, mas criar subjetividades, o segundo
termo seria mais adequado politicamente, segundo o autor, porque não está filiado ao projeto burguês,
que dividiu o mundo entre uma sexualidade normal - a heterossexualidade – e a anti-norma – a
homossexualidade (COSTA, 1992). Contudo, como um trabalho de cunho antropológico, este não deve
desprezar as categorias nativas, por uma visão de que tais categorias seriam fruto do equívoco linguístico
ou político, mas devem ser compreendidas em sua totalidade. É nesse sentido, que não posso abandonar
nesta dissertação o termo ―homossexual‖, haja vista que, ainda que opere precariamente, ele é um signo
poderoso no universo simbólico do Mindelo, tanto para nomear sujeitos como práticas. Ao mesmo tempo,
referir-me-ei por vezes a ―homoerotismo‖, enquanto categoria de análise, sempre que quiser mencionar
um conjunto de práticas eróticas e sexuais entre duas pessoas do mesmo sexo.
34
32
Em seguida, sigo o conselho da antropóloga brasileira Juliana Braz Dias, sobre a
importância do passado nas situações atuais da população sanvicentina:
Apesar do término desse ciclo de prosperidade do Porto Grande, a Cidade do Mindelo ainda hoje
tem suas referências no contexto portuário. O passado ligado à navegação internacional marcou
o início do povoamento de São Vicente e todo o processo de desenvolvimento. Portanto, não há
como pensar sobre a atual realidade sanvicentina sem traçar as coordenadas desse passado e
considerar sua importância, mesmo que simbólica, nas situações vivenciadas hoje por essa
população (DIAS, 2004, p. 110).
Assim, tento recapitular a história da cidade, porém, a partir de duas importantes
categorias da auto-imagem dos sampadjudus: o ―cosmopolitismo‖ e a ―liberalidade‖.
Para tanto, não pretendo realizar uma historiografia profunda. Limito-me a fontes
terciárias, conquanto meu intuito é o de fornecer excertos da pesquisa histórica realizada
por outros pesquisadores, apenas na medida em que tais dados e análises me auxiliem a
compreender a formação social e cultural desta ilha. Darei especial atenção à formação
do mito de origem do espírito cosmopolita e liberal do sampadjudu.
Busco ainda evidenciar as novidades trazidas pelos séculos XX e XXI ao
arquipélago, como a sua independência política e a instauração da democracia. Como
plano de fundo dessa história, narrarei a falência relativa do projeto de reafricanização
dos espíritos (VASCONCELOS, 2004, 2007). Assunto especialmente caro ao Mindelo
que parece ter optado, desde muito tempo, por se manter simbolicamente afastado dos
signos africanos, algo ainda hoje relevante. Compreender as dinâmicas de tal
afastamento permitirá não somente conhecer melhor o sujeito gay36 do Mindelo, mas a
inserção do próprio movimento LGBT local dentro do contexto africano mais amplo.
Simultaneamente
buscarei,
sempre
que
for
possível,
articular
dados
historiográficos aos temas que mais interessam a esta dissertação. Neste sentido,
acrescento meus próprios dados etnográficos, em uma espécie de memória oral, para
relatar a vida dos homossexuais do Mindelo desde, pelo menos, a década de 1970.
Apresento assim um dos célebres locais rememorados pelos sujeitos gays mais antigos
da cidade, as ―Águas Quentes‖ da Laginha.
Assim como ―homossexual‖, ―gay‖ é uma categoria êmica, que apesar de ser rechaçada em algumas
oportunidades, costuma operar localmente – ainda que de forma precária – para identificar pessoas e
grupos de pessoas. Usá-la-ei aqui como um sinônimo para ―homossexual‖ e em contraposição aos ―nãogays‖, sujeitos que não se identificam a partir de uma identidade (homo)sexual, mas que, no entanto, se
relacionam sexualmente com sujeitos do mesmo sexo.
36
33
A Santa Inquisição, a lei e o silêncio arquipelágico
Como pontapé inicial deste capítulo, proponho analisar registros históricos
acerca do homoerotismo no arquipélago de Cabo Verde. Interessantes e detalhados
relatos datados do século XVII sobre ―sodomia‖37 são fornecidos pelos registros do
Tribunal da Santa Inquisição de Lisboa, localizado na Torre do Tombo38. O primeiro
investigador a se dedicar ao tema a partir destes arquivos foi o antropólogo brasileiro
Luiz Mott, que justifica:
Nenhuma instituição na história da humanidade produziu tantos documentos sobre a
homossexualidade quanto a Inquisição. Embora a sodomia fosse apenas um dos ―crimes‖
perseguidos pelo Santo Ofício, o volume documental e a riqueza dessas fontes só tem
equiparação ao que se produziu contemporaneamente nos institutos de sexologia (MOTT,
1989, p. 478)
Para além das críticas relevantes ao etnocentrismo e à anacronia, tratados na
Introdução, considero a documentação encontrada na Torre do Tombo um importante
acervo histórico para a compreensão do homoerotismo de outrora. Neste sentido, acerca
especificamente de Cabo Verde, seleciono dois dos casos apresentados pelo autor.
Deixo-o, ele mesmo, narrar esses interessantes processos inquisitórios:
Em 1633, o bispo de Cabo Verde envia representação ao Santo Oficio de Lisboa denunciando
torpíssimos atos sodomíticos praticados pelo governador de Cabo Verde, Dom Cristóvão
Cabral, 33 anos, cavaleiro da Ordem de São João da Malta. Seu rol de luxúrias incluía muita
cópula anal, manustrupação (masturbação recíproca, referida pela Teologia Moral
genericamente como ―molice‖), além da raríssima anilíngua. Alguns destes abomináveis atos
lúbricos foram praticados pelo governador mediante violência física, não só com homens, mas
também com mulheres públicas. Um dos inquisidores, Dom Diogo Osório de Castro, em seu
parecer, sugeria ―que se buscasse algum remédio [...] pela presunção que pode haver, dele, com
seus maus costumes, infeccionar a gente daquela terra‖. De fato, o mau pecado se alastrou
célere na pequenina Ilha do Cabo Verde, tanto que, duas décadas depois, em 1654, é preso o
padre Gabriel Dias Ferreira, 28 anos, cônego da Sé da Ribeira Grande, acusado de ter mantido
diferentes modalidades de atos homoeróticos com 82 cúmplices, em sua maioria rapazes
negros de 10 a 20 anos, muitos deles escravos. Tal fato comprova que, mesmo em áreas com
diversa cultura sexual, como certamente devia ser Cabo Verde no século XVII, havia espaço
para práticas sodomíticas à moda ―grega‖, isto é, cópula anal de adulto com adolescentes. Em
sua sentença, Dom Pedro de Castilho, inquisidor-geral e vice-rei dos Reinos de Portugal, assim
avaliou a péssima influência deste clérigo na novel colônia: ―o dito devasso é prejudicial pelo
cometer o crime de sodomia com muitos rapazes negros e boçais e ser dos primeiros
denunciados daquela parte donde parece não havia notícia do dito crime antes dele‖. Entre os
seus jovens prosélitos, constavam Antônio e Vicente, ambos da Guiné, os escravos João,
Martinho, Domingos, Silvestre, Bento de 14 anos, Adão de 20 anos, Chichi escravo cacheu;
―com todos costumava familiarizar-se pegando-se muito no membro viril [...] e sempre lhes
―Sodomia‖ era, no período inquisitório, o termo jurídico usado para a cópula anal seja hétero ou
homossexual. O antropólogo Luiz Mott nos explica que tal termo desmembrava-se em ―sodomia
foeminarium‖ para as relações lésbicas, ―sodomia imperfeita‖ para a penetração anal heterossexual e,
simplesmente ―sodomia‖ para as relações homoeróticas, abrangendo as várias práticas sexuais entre
homens (MOTT, 1989).
38
Os registros são disponibilizados gratuitamente na internet, através do site: http://antt.dglab.gov.pt/
37
34
dava alguma cousa, inda que de pouca consideração, alguns vinténs, papel e ataca‖. Com
Garcia, 13 anos, ―assentado em uma área, se deitou ele confitente no regaço do menino para
catar [piolho] e ali lhe meteu a mão na braguilha e lhe pegou no membro viril e o mesmo fez o
dito menino‖. Certa vez, ―passando pela sua porta um negro de 16 anos, que não conhecia, e
por lhe parecer bem, o chamou e persuadiu que cometessem o pecado de sodomia e penetroulhe o vaso traseiro, dando-lhe dois vinténs‖. Com Duarte, escravo de seu pai, praticou por um
ano muitas sodomias... Lembrou-se de 82 cúmplices, predominando negros e mulatos, forros e
escravos, muitos cantores e músicos da Sé de Cabo Verde (MOTT, 2005, pp. 21-2).
Para além destes dois casos, Mott contabiliza a existência, ―entre 1547 e 1739,
de 72 sodomitas notórios degredados para diferentes terras africanas — Angola,
Príncipe, São Tomé, Cabo Verde e Guiné‖ (2005, p. 20)39. Portanto, além dos sodomitas
―da terra‖, digamos assim, chegaram outros degredados a Cabo Verde, seja da
metrópole seja de outras colônias do império português. Baseado neste e em outros
dados fornecidos pelo autor, aproveito para concordar com sua tese sobre a existência
de lampejos de uma identidade ―homossexual‖ não só muito antes da medicalização da
homossexualidade no século XIX como também fora do mundo europeu:
Embora a Inquisição ameaçasse os sodomitas sentenciados com duras penas no caso de
reincidência no que se cognominava de ―mau pecado‖, há notícia de muitos amantes do mesmo
sexo que não abandonaram a prática do homoerotismo. A estes os inquisidores chamavam de
―incorrigíveis‖ — avaliação que descarta a infundada hipótese de Michel Foucault de que os
sodomitas, antes da medicalização da homossexualidade no século XIX, eram tão somente
praticantes ocasionais da cópula anal: a documentação inquisitorial comprova cabalmente,
quando menos a partir do século XVI, também em Portugal e suas colônias, e não apenas na
Inglaterra, França, Espanha e Holanda, a existência de uma estruturada subcultura sodomítica,
inclusive com lampejos de afirmação identitária por parte dos sodomitas mais incorrigíveis
(2005, p. 20)
Se for correta a crítica da hipótese repressiva, tal como formulada por Foucault,
que refuta o pressuposto generalizado de que a sexualidade no século XIX era algo
apenas do campo da repressão pela lei, a sua datação parece incorreta. Foucault
argumenta que a sexualidade, em vez de reprimida pela lei, era por ela produzida e que,
longe de um silêncio em torno do sexo, o que havia no século XIX, era a ―multiplicação
dos discursos sobre o sexo no próprio campo do exercício de poder: incitação
institucional a falar de sexo e a falar cada vez mais‖ (FOUCAULT, 1988, p. 22). Sem
discordar da crítica à hipótese repressiva, ainda que as funções de repressão e produção
não sejam autoexcludentes (BUTLER, [1990] 1999), o que autores como Mott e
Dabhoiwala vêm mostrando é que a origem da sexualidade moderna antecede – e muito
– o século XIX.
39
Parece, contudo, que Angola era, por excelência, o destino de degredo de sodomitas (MARCOCCI &
PAIVA, 2013, p. 224)
35
Assim, ao mostrar em outro artigo a vida de ―fanchonos‖ e ―sodomitas‖ na
Portugal dos quinhentos e seiscentos, Mott prova a existência de ―uma estruturada
subcultura sodomítica‖, não só no nível lexical:
Como já dissemos, termo mais corrente para designar os homossexuais de antanho era
―sodomita‖, popularmente conhecido como ―somítico‖. Como apenas a cópula anal constituía
crime de sodomia, distinguia-se o ―sodomita‖ do ―fanchono‖, reservando-se o segundo termo
para os praticantes de molices, isto é, todos os demais atos homoeróticos com exclusão da
―penetratio cum effunsionis in vaso prepostero‖. ―Fanchocine‖ é usado também, a partir do
século XVI, com sinônimo de efeminação, chamando-se de maricas, mulherengo ou mulherigo
ao homem pouco viril, suspeito de ser fanchão. [...] Apesar da legislação punir fanchonice com
o degredo e a sodomia com a fogueira, encontramos nos documentos inquisitoriais dezenas de
portugueses que eram publicamente infamados de serem fanchonos ou somíticos (MOTT,
1989, p. 488).
Como também nas práticas, observa-se que por volta de 1620, ―Lisboa abrigou
seu primeiro espaço de diversão notoriamente gay: a ―Dança dos Fanchonos‖ (MOTT,
1989, p. 496)40. O historiador inglês Faramerz Dabhoiwala, em seu recente trabalho
sobre a história da primeira revolução sexual ocorrida na Inglaterra a partir do fim do
século XVII parece concordar com a tese de Mott acerca da antecedência do marco de
origem das nossas modernas concepções de sexualidade e identidade sexual
(DABHOIWALA, 2013, p. 17).
Mas pulemos para alguns séculos depois e chegamos em Portugal dos anos de
1960, em pleno período de repressão do Estado Novo, quando Júlio Fogaça, à época
dirigente do Partido Comunista Português, é sentenciado por se relacionar
amorosamente com outro homem. Quem remonta essa história é o ativista português
Sérgio Vitorino, em artigo independente:
Tendo sido ―classificado de ―pederasta passivo e habitual‖ na prática de vícios contra a
natureza‖, Fogaça é sujeito a um período de detenção seguido de uma ―liberdade vigiada‖ por
cinco anos, sob obrigação de fixar residência em Lisboa, dando conhecimento da morada à
Polícia Judiciária, mas não podendo ausentar-se sem prévia autorização do Tribunal. É-lhe
ainda imposto ―dedicar-se ao trabalho honesto com permanência, mas não à prática de
quaisquer vícios contra a natureza‖, bem como ―não acompanhar cadastrados, antigos
companheiros de prisão, pederastas ou quaisquer pessoas de conduta duvidosa (...)‖
(VITORINO, 2007)
Não seria a primeira prisão de Fogaça, que já teria sido deportado duas vezes
para o arquipélago de Cabo Verde em décadas anteriores, revivendo práticas punitivas
reminiscentes de outros séculos:
40
Curiosamente, o depoente Rafael Fanchono, preso pela Santa Inquisição de Lisboa, no século XVI,
revela algo sobre os fanchonos, que séculos depois seria revivido, como veremos, pelos sujeitos gays
sampadjudus: ―Os famchonos são os pacientes e nunqua famchono com famchono pecão neste peccado‖
(Lisboa, A.N.T.T., Inquisição de Lisboa, Processo n.º 1982, Rafael fanchono (António da Costa) fols, s/nº
[32 w 33]
36
Não se trata da primeira prisão desde dirigente do PCP. Em 1935 foi preso e deportado para a
prisão do Tarrafal (Cabo Verde). Amnistiado, regressa a Portugal em 1940 e participa na
reorganização do PCP. É de novo detido em 1942, sendo de novo amnistiado em 45, após nova
passagem pelo Tarrafal (VITORINO, 2007).
Apesar de não constar referências diretas à homossexualidade, o Código Penal
do Estado Novo português costumava enquadrá-la como crime:
No artigo 71º do Código Penal do Estado Novo, os indivíduos que se entregassem
―habitualmente à prática de vícios contra a natureza‖ são equiparados a tipos sociais como os
"vadios", os "mendigos", os "rufiões que vivam a expensas de mulheres prostituídas", bem
como às "prostitutas que sejam causa de escândalo público‖, sendo-lhes atribuídas no artigo
anterior as mesmas penalizações. Entre estas, encontramos ―medidas de segurança‖ como o
―internamento em manicómio criminal‖, ―o internamento em casa de trabalho ou colónia
agrícola‖, a ―liberdade vigiada‖; a ―caução de boa conduta‖ ou a ―interdição do exercício de
profissão‖ (VITORINO, 2007).
Mas por que a história de Fogaça e a repressão à homossexualidade em Portugal
no século XX interessa a Cabo Verde? Pois, colônia de Portugal até 1975, Cabo Verde
mantém aplicando o Código Penal da metrópole, de 1886, até depois de sua
independência. É somente em 2004 que um novo código penal soberano é sancionado
no arquipélago. O código penal do Estado Novo em Portugal tem como fonte o mesmo
código aplicado nas colônias africanas:
Assim, o Código Penal (CP) do Estado Novo baseia-se no de 1886 (por sua vez, resultante da
revisão do primeiro CP, de 1855), e nenhuma das reformas a que o submete - 1954, 1972, 1975
e 1977 – altera o princípio de criminalização da homossexualidade, que em Portugal só seria
abolido com a revisão de 1982 (VITORINO, 2007).
Razão pela qual, tanto em Portugal como nas colônias africanas, os ―vícios
contra a natureza‖, constantes no artigo 71º, permanecem criminalizados. Sem nunca
parecer ter sido usado para levar qualquer pessoa a julgamento por tal crime, o Código
Penal Cabo-verdiano de 2004, contudo, retira o artigo com a seguinte justificativa:
Foram eliminados tipos penais onde não existe bem jurídico merecedor de tutela penal ou,
existindo bem jurídico se não mostre necessária a intervenção do direito penal. Deste ponto de
vista, tipos como o duelo, greve lock-out, adultério, homossexualidade, vadiagem,
mendicidade, e os que consubstancia meros crimes contra a religião, ou os bons costumes não
surgiram naturalmente no Código Penal, e, pelas mesas ordens de razoes, foi
significativamente reduzido o número de crimes contra o Estado[...](2004, p. 31, grifo meu).
O Código Pena afasta-se, assim, do preceituado no artigo 71.º do Código anterior, o qual previa
a aplicação de medidas de segurança pré-delituais nomeadamente a vadios,rufiões, prostitutas,
―os que se entregam habitualmente à prática de vícios contra a natureza‖ etc (2004, pp. 27-8)
Reforço que, mesmo antes da descriminalização, não encontrei em meu trabalho
de campo nenhum processo criminal relativo à ―sodomia‖ ou qualquer outra referência
correlata no Arquivo Histórico Nacional de Cabo Verde, tampouco meus interlocutores
37
souberam relatar qualquer caso de processo, condenação ou prisão por tal crime nas
últimas décadas.
Como vimos, mesmo no período pré-independência de Cabo Verde, em plena
ditadura salazarista, conhecida pela perseguição contra homossexuais em Portugal, não
há registros da mesma perseguição na colônia africana. Se na letra fria da lei, a
criminalização da ―sodomia‖ perdura até 2004 em Cabo Verde, como aliás em diversas
ex-colônias africanas têm perdurado41, esta parece não ter sido de interesse penal pelo
sistema judiciário em Cabo Verde desde, pelo menos, o fim da Santa Inquisição.
É verdade também que desde o século XVI é sabido haver uma maior
liberalidade dos costumes nas colônias do que no reino, como nos mostra Paulo
Drummond Braga, em seu estudo sobre a criminalidade feminina no arquipélago dos
seiscentos:
Se a maior parte dos crimes se parecem muito com os de outros espaços geográficos, quiçá
mesmo com os do próprio reino de Portugal, o mesmo não se pode dizer do caso particular da
mancebia. As 12 cartas perdoando tal delito mostram o arquipélago de Cabo Verde e a ilha de
São Tomé como sociedades de costumes mais permissivos do que no Reino (BRAGA, 2006, p.
102).
Mas hoje, em se tratando do continente africano, onde, de acordo com relatório
recente da Anistia Internacional (2013), pelo menos 38 países criminalizam a
homossexualidade e 4 deles aplicam penas de morte (Amnesty International, 2013), é
interessante notar a manutenção desse lugar de certa exceção de Cabo Verde neste
cenário panafricano. Não somente não há relatos de prisões ou julgamentos, como Cabo
Verde destaca-se como o segundo país do continente a realizar uma Parada do Orgulho
Gay, com a anuência das autoridades locais42.
Ao conversar com Claudia Rodrigues, ex-deputada e socióloga cabo-verdiana
que pesquisou em sua dissertação de mestrado as relações homoafetivas na cidade da
Praia, descobri que ela, em sua pesquisa, também não encontrou nenhum caso
registrado de enquadramento por esse crime na história do país. Garantiu-me que nem
mesmo seu pai, juiz local, soube informar que algum cidadão cabo-verdiano já tivesse
sido enquadrado por esse crime em território nacional.
41
A homossexualidade permanece ilegal em alguns países da África Lusófona como Angola e GuinéBissau, enquanto que São Tomé e Príncipe a descriminalizou em 2011. Moçambique sancionou lei que
considera ilegal a discriminação por orientação sexual em 2007. Um ano depois, Cabo Verde sancionou
lei parecida (Amnesty International, 2013)
42
O primeiro teria sido a África do Sul.
38
Quando questionei à funcionária do Arquivo Histórico Nacional em Praia sobre
a inexistência de registros de processos criminais sobre o tema, ela respondeu-me,
curiosamente, que a homossexualidade era ―muito recente em Cabo Verde‖, tendo
aparecido, segundo ela, ―apenas de uns anos para cá‖. Se os dados levantados pelo
antropólogo Luiz Mott nos mostram que o homoerotismo é tema público muito mais
antigo em Cabo Verde do que supõe a simpática funcionária, esta me forneceu
instigantes hipóteses com sua resposta. Entre estas hipóteses, a do silenciamento crioulo
diante da evidência da homossexualidade, que explorarei adequadamente nos capítulos
seguintes desta dissertação. Por ora é interessante informar que o marco da gênese
apontado pela funcionária do Arquivo para o recente conhecimento público do tema da
homossexualidade no arquipélago coincide com o evento que denomino ―Revolta das
Tchindas‖, quando, em meados da década de 1990, um grupo de travestes resolveu sair
vestido de drag queen nas ruas do Mindelo e, dizem, levaram até pedradas por isso.
Colonização da Ilha de São Vicente e a gênese dos sampadjudus
―Uma espécie de Sodoma e Gomorra, quem chegava cá não conseguia mais escapar...‖
(ALMEIDA G. , 1997, p. 99).
É dessa forma que a ilha de São Vicente é retratada pelo romancista Germano
Almeida em uma de suas obras. Mas por que São Vicente ganha esta alcunha? Por que
justo a ilha de São Vicente que,―numa síntese grosseira [...] quase se resume à urbe do
Mindelo‖ (NASCIMENTO, 2008, p. 27), seria palco de uma manifestação pioneira das
travestes? Que circunstâncias permitiram que na cidade do Mindelo as identidades gays
e travestes, tais como são hoje, se desenvolvessem na vanguarda do país? Que
circunstâncias culturais e políticas fizeram com que fosse da ordem do pensável um ato
de revolta pública de travestes nesta cidade na década de 1990? Por que Mindelo é
ainda hoje um lugar onde as travestes e os gays andam nas ruas sem os riscos de
violência física comuns noutras cidades do arquipélago?43
43
A socióloga Claudia Rodrigues narra um caso de agressão de travestes sampadjudas na cidade da Praia:
―Pela primeira vez, há cinco anos, veio à Praia um grupo de travestis da cidade do Mindelo que
organizaram um concurso Miss Gay. A população compareceu em peso e participou no show como se de
uma peça de teatro cômico se tratasse, mas a situação mais crítica ocorreu quando as travestis resolveram
passear nas ruas da cidade e foram agredidas por pessoas, não só verbalmente como, também,
fisicamente‖ (RODRIGUES C. , 2010, p. 52) Outro exemplo notável desta diferença entre Praia e
39
É no sentido de tentar dar subsídios às respostas a essas perguntas, que buscarei
aqui traçar historicamente a formação da sociedade mindelense. Neste exercício, as
categorias ―cosmopolitismo‖ e ―liberalismo‖ parecem ser cruciais.
A Ilha de São Vicente fora uma das últimas ilhas habitadas do arquipélago de
Cabo Verde. O antropólogo cabo-verdiano Moacyr Rodrigues nos conta que
A ilha de S. Vicente, de 227 km², foi descoberta por Diogo Afonso, escudeiro do Infante D.
Fernando de Portugal, no ano de 1462, no dia 22 de Janeiro, dia de S. Vicente, orago da ilha.
Esteve durante quase quatro séculos desabitada, visitada apenas por navios piratas que
freqüentavam as suas praias à procura da carne das muitas cabras e tartarugas que havia na
ilha, constituindo com a de Sta Luzia as desertas do Arquipélago. (RODRIGUES M. , 2011, p.
17)44
―Deserta e marginal‖ é como o historiador cabo-verdiano Correia e Silva (2000,
p. 21) qualificará a Ilha até o advindo de seu porto transatlântico. Acompanharei aqui
sua obra Nos Tempos do Porto Grande do Mindelo à medida que ela me ajude a
entender a formação social e cultural do povo de São Vicente. Paralelamente, trarei
outros pesquisadores que se dedicaram, mesmo que parcialmente, à historiografia de
São Vicente e de sua cidade mais importante.
Dirá Correia e Silva que junto à Santa Luzia, ―essas duas ilhas desempenharam o
subalterno papel de espaços de reserva dos habitantes de S. Nicolau e Sto. Antão.‖ E
confirma o quadro de abandono apontado por Rodrigues: ―Durante três longas centúrias
não foram mais do que campos de pastagem, numa pecuária extensiva e que a presença
humana se reduz ao mínimo‖ (2000, p. 23). Consta dessa presença aventurosos
pescadores em busca do ―famoso peixe das Desertas‖ (2000, p. 24). ―Soncente‖, como é
chamada no crioulo do Mindelo, hospedava um pequeno porto, onde tais pescadores se
abrigavam no percurso de suas pescarias inter-insulares. Derivaria disso a explicação
para o nascente liberalismo mindelense: ―um espaço propício para abrigar actividades
ilícitas. Deserta, a ilha conferia ao seu visitante ocasional uma liberdade quase total‖
(2000, p. 24).
Mindelo poder-se-ia ser encontrado no relato do antropólogo cabo-verdiano José Manuel Veiga Miranda,
que pesquisou em sua dissertação de mestrado a masculinidade em uma vila de pescadores localizada na
costa oeste da Ilha de Santiago. O autor menciona que por lá apenas o fato de um homem colocar a mão
nas nádegas de outro homem já seria motivo de morte (MIRANDA, 2013, p. 34).
44
A inabitabilidade do arquipélago no período da pré-colonização portuguesa não é uma tese
historiográfica unânime, mas concordam com ela (CORREIA E SILVA, 2000; VASCONCELOS, 2007;
RODRIGUES C., 2010; RODRIGUES M., 2011).
40
Contudo, ainda que classificada como ―marginal‖ e ―deserta‖, Correia e Silva
nos revela que a ilha já era frequentada no século XVIII por estrangeiros: ―baleeiros
americanos, comerciantes de urzelas ingleses, piratas de diversas proveniências‖ (2000,
p. 24). O autor chega a chamar a ilha de ―uma espécie de ‗no man‘s land‘‖, escala de
contrabandistas, de piratas e de frotas régias de diferentes coroas (2000, p. 31). Dados
levantados pelo autor mostram que desde os setecentos há denúncias de piratas baleeiros
de diversas nacionalidades em sua costa (2000, pp. 26-7)45.
Correia e Silva repete esclarece que ―até os finais do século XVIII ela não é
apenas um campo de cabras, uma mera ilha-montado‖(2000, p. 31). Mas que a ilha
seria, segundo o autor, ―objecto de disputa, de autênticos jogos de gato e rato entre as
diferentes coroas‖ (2000, p. 31). A razão dessa disputa é que a ilha é geo-estratégica
para as navegações da época, não só porque consiste quase em um ponto médio entre a
América, a Europa e a África, propício, portanto, à paragem e reabastecimento dos
navios de insumos, mas também por coincidir com as possibilidades tecnológicas
marítimas da época:
A razão primordial, permitam-nos falar assim, consiste no facto de a náutica veleira, reinante
até as primeiras décadas do século XIX, depender do regime de ventos e das correntes
marítimas nas viagens de longo curso. Devido a estes factores, a entrada no Atlântico austral,
vindo da Europa, fazia-se preferencialmente pela passagem por um canal, margeado pela costa
senegalesa e as ilhas de Cabo Verde. Assim sendo, o estreito de Cabo Verde ganha, a partir dos
finais do século XVI, uma importância estratégica vital para o controle do acesso ao Atlântico
Sul e suas vias de passagem para os oceanos Índico (cabo da Boa Esperança) e Pacífico
(estreito de Magalhães). (2000, p. 32)
Se dermos atenção à historiografia da ilha, no intuito de podermos desvendar
melhor as origens da formação cultural do Mindelo, descobrimos que é apenas em 1781
que, por decreto assinado por D. Maria I, determina-se oficialmente que ―se povoasse a
ilha de S. Vicente e outras desertas de Cabo Verde‖. (2000, p. 37). Se o primeiro
objetivo era atrair açoarianos para a colonização de São Vicente, este não se efetivou,
devido aos parcos recursos que a terra oferecia. Coube então aos homens forros de
45
Há aqui resquícios, sem dúvida, de um hábito historiográfico marxista de culpabilizar o estrangeiro pela
exploração e mazelas locais. Hábito este que acaba se refletindo nas concepções dos habitantes da cidade.
Contemporaneamente, em meu trabalho de campo, apareceu uma reclamação de meus interlocutores
sobre o ―caso dos japoneses‖, que supostamente estariam pescando ilegalmente na costa de Cabo Verde.
Os ―chineses‖, por outro lado, estariam entulhando a ilha de ―produtos de plástico‖. E a última acusação
em moda no Mindelo contra o capital estrangeiro é dirigida aos ―alemães‖, aparentemente proprietários
da marina da cidade. Segundo meus interlocutores, o empreendimento não gera receitas à cidade, pois a
concessão do espaço teria sido feita de forma fraudulenta pela câmara municipal. Enquanto escrevo esta
dissertação, surge a notícia de que entidades desconhecidas do governo cabo-verdiano estariam
prospectando petróleo nas águas territoriais do arquipélago. O governo, contudo, negou:
http://www.abola.pt/mundos/ver.aspx?id=457485
41
Santiago e Fogo, a tarefa (2000, p. 37). Trata-se de mais uma especificidade
considerável para São Vicente: ter sido uma colonização já do fim do século XVIII que
contou com um contingente populacional de crioulos de outras ilhas de Cabo Verde, já
distantes culturalmente, portanto, de suas origens guineenses:
Os escravos vindos para o Mindelo eram na sua já quase totalidade, crioulos ladinos, que
começavam então a distanciar-se, em muito, da cultura afra trazida pelos seus avós da costa,
exibindo uma cultura mestiça. Assim, a maior parte das festas recebidas de Santiago eram de
matriz caboverdiana, embora fossem ainda mais visíveis, na sua formação, formas sincréticas,
devido a esse contacto cultural entre religiões (RODRIGUES M. , 2011, p. 36)46
Não bastasse o já alto grau de aculturação desses escravos da terra, ―persiste nos
meios da corte a preocupação quanto à composição da nova colónia, isto é, que ela não
seja, como o resto do arquipélago, uma sociedade maioritariamente de negros‖
(CORREIA E SILVA, 2000, p. 38). A historiografia nos revela ainda que ―a rainha
‗expreçamente prohibe que das outras Ilhas se possa transportar maior número de cazães
destes Reynos e das Ilhas dos Açores...‘‖(2000, p. 38).
Segundo Correia e Silva, a razão à época era expurgar o elemento negróide,
considerado pouco laborioso e assim culpado pelo atraso cultural da colônia (2000, pp.
38-9). Pensava-se que se ―Santiago [era] já irremediavelmente negro, as ilhas a norte
poderiam ainda não o vir a ser‖ (2000, p. 39). Se por um lado, a população negra acabou
por triunfar na ilha, ainda hoje São Vicente é herdeira dessa rejeição pelos signos de
africanidade, em uma relação de oposição direta à capital Praia. Uma espécie de ―ideia
de superioridade face aos badius, presumidamente menos europeus ou, caso se queira,
menos ocidentais‖ (NASCIMENTO, 2008, pp. 29-30)
Mas a história não para por aí. Depois de uma grande estiagem nos anos de 1805
a 1807, o projeto de colonização de São Vicente fora por água abaixo. Os colonos
famintos retornaram às ilhas de origem em busca de melhores chances. Anos mais tarde,
porém, uma segunda tentativa é levada a cabo.
Agora aceitam-se mesmo que a contra-gosto camponeses sem terra, degradados insulares,
marginais, etc. Na realidade são estes que se mostram disponíveis, até porque, mal integrados
nas suas ilhas de origem, não têm nada a perder com a mudança. (CORREIA E SILVA, 2000,
p. 50)
46
O antropólogo português Augusto Nascimento, a respeito da introdução da especificidade do
povoamento como mais um elemento do mito de origem dos mindelenses, diz que: ―Afirma-se uma dada
originalidade, a da ocupação tardia, subliminarmente referida como uma vantagem, porquanto a ilha já
teria sido povoada por cabo-verdianos que se organizaram à luz de outros paradigmas, que não o da
sujeição das modalidades de exploração da terra empreendida nas outras ilhas‖ (NASCIMENTO, 2008, p.
28).
42
Correia e Silva nos conta que o contingente populacional nessa nova tentativa de
colonização era de 56 famílias originárias de Santo Antão e que coube aos ―notáveis‖
dessa ilha e ao comandante de São Vicente a transferência dessas pessoas (2000, p. 50).
Mas não seria ainda dessa vez que o processo deslancharia ascendentemente. ―A fome
regressa às ilhas do Norte entre 1823 e 1826 e não poupa a frágil colónia da ilha do
Porto Grande‖(2000, p. 52). São Vicente é uma ilha pouco dada às chuvas (ALMEIDA
G. , 2004, p. 39). Pois ―como o resto arquipélago, S. Vicente vive sob a sentença do
ciclo das chuvas e das secas; mas com um agravante, a de ser mais pobre que do que
qualquer uma de suas irmãs‖ (CORREIA E SILVA, 2000, p. 52). Pelo menos seria até
então.
Com o regresso dos liberais ao poder em 1834, argumentará Correia e Silva,
procura-se reordenar o arquipélago em benefício da região norte, de ocupação mais
recente, o Barlavento. É nesse sentido, que o Marquês de Sá da Bandeira, secretário de
estado do ultramar e seu colaborador Joaquim Pereira Marinho irão tentar posicionar
São Vicente no centro da vida comercial de Cabo Verde, antes disputado pelas ilhas do
Sotavento, sendo Santiago, a principal (2000, p. 59). O objetivo concreto era tornar o
Porto Grande em um entreposto de mercadorias africanas, mais notadamente aquelas
dos rios da Guiné, para onde convergiriam os mercadores internacionais (2000, p. 60).
Surge, não pela primeira vez, a ideia de transferir a capital do arquipélago da
ilha de Santiago para a de São Vicente. Desta vez, porque o agente colonial Pereira
Marinho, segundo Correia e Silva, achará que ―a localização da sede administrativa
nessa vila [Ribeira Grande, vila na ilha de Santiago que precedeu a cidade da Praia]
coloca o poder político sob permanente ameaça‖, uma vez que a ilha encontrava-se em
clima político tenso de contestações sociais.
Tentativas históricas de mudança da capital e os reflexos dessa disputa
permanecem até hoje no imaginário popular das duas ilhas e alimenta a rivalidade entre
sampadjudus e badius nas questões da política e da economia nacional. ―Ainda hoje, em
S. Vicente, os ‗homens bons‘ e outros de origem social mais popular manifestam a sua
distância relativamente aos da Praia, imputando-lhes o menosprezo de São Vicente‖
43
(NASCIMENTO, 2008, p. 29)47. Contudo, é somente em Junho de 1838 que ―a Coroa
aprova um decreto[...] determinando a transferência das principais autoridades do
Governo Geral de Cabo Verde para a Ilha de S. Vicente‖ (2000, p. 68). Justifica-se a
medida pela insalubridade de Santiago, pelo suposto melhor clima da nova capital e por
esta possuir um dos mais espaçosos e seguros portos da monarquia.
Sobre a toponímia Correia e Silva esclarece: ―A escolha do nome [Mindello] é
do próprio Visconde de Sá da Bandeira. Homenageia-se assim o desembarque das
tropas liberais, ocorrido anos antes, nas praias da vila homónima do norte de Portugal‖
(2000, p. 68). O batismo sob os auspícios dos liberais portugueses de alguma maneira se
inscreveria no DNA cultural da cidade.
De par com o cosmopolitismo, é invocado o liberalismo – lembrado pelo nome da cidade –,
alegadamente comprovado pela circunstância da terra ter acolhido deserdados e gentes sem
espaço noutras ilhas, isto é, pessoas a quem faltavam oportunidades econômicas e sociais, ou,
tão só, meios de sobreviver. Quase desde o início a cidade albergou comportamentos marginais
próprios das urbes marcadas pela elevada circulação de pessoas. Neste caso, o liberalismo (a
liberdade ou a tolerância) será menos um sistema político do que o modo de estar resultante da
ausência ou da fragilidade de peias numa ilha, deserta durante séculos por falta de recurso,
depois, amadurecia na pluralidade de modos de vida (NASCIMENTO, 2008, pp. 31-2)
Ao nos contar do início do processo de concessões de terrenos e urbanização da
cidade do Mindelo, Correia e Silva defende a ideia de que Mindelo foi criada sob um
paradigma liberal inédito no arquipélago, rompendo com o modelo colonial agrário
anterior. Portanto, se antes o objetivo era a fixação dos camponeses à terra, agora a
colonização é pensada como um empreendimento eminentemente comercial e industrial
(CORREIA E SILVA, 2000, p. 70).
Mas segundo o historiador, o projeto só teria sido posto em prática duas décadas
depois e a transferência da capital sofreria enorme resistência da elite da Praia,
interessada na manutenção do status quo (2000, pp. 71-2). Uma das resistências
desvendadas pelo autor é que, além do forte interesse em manter a ilha como um grande
pasto para os proprietários de gados existentes, ―uma das motivações das elites das ilhas
47
Um exemplo de um grande problema na atualidade para os mindelenses (e para os insulares de outras
ilhas do arquipélago à exceção de Santiago) é justamente a recente reconcentração burocrática do Estado
cabo-verdiano na cidade da Praia, sua capital. Meus interlocutores reclamaram diversas vezes da
dificuldade ―hoje em dia‖ de se emitir um ―B.I.‖, um simples bilhete de identidade, pois que os ―papéis‖ –
como eles costumam falar de quaisquer documentos ou formulários – devem ser enviados à Praia, que só
envia suas solicitações prontas duas semanas após.Quando outro interlocutor meu no Mindelo resolveu
legalizar uma nova ONG LGBT, teve de fazer o mesmo procedimento: enviar por correio a solicitação,
assim como os documentos e o formulário à Praia e, de lá, receberia semanas depois o registro da
associação, validada pelas autoridades competentes do poder central.
44
para manter precária a ocupação de S. Vicente é o facto de esta ilha servir de um
precioso e seguro espaço de contrabando‖ (2000, p. 73).
São Vicente viveu seu apogeu no século XIX e deve isso, em grande medida, ao
seu porto. Correia e Silva defende que a emergência do Porto Grande, no Mindelo, foi
uma reconfiguração da geopolítica Atlântica e enumera as razões históricas: a
transformação do mapa político, a alteração da natureza dos fluxos comerciais atlânticos
e a mudança de paradigma na tecnologia dos transportes marítimos (2000, p. 88).
Para o autor, o novo cenário atlântico é o de novos estados americanos
independentes do monopólio mercantil das metrópoles coloniais. Com isso, além de
outros atores, uma das potências que surgem neste novo mercado marítimo atlântico é a
Inglaterra, que passa a comercializar não só com os novos estados independentes
sulamericanos, antes colônias espânicas, mas também com as colônias de Portugal,
assim que a corte de Lisboa, ao fugir das invasões napoleônicas e refugiar-se no Brasil,
assina acordo de abertura dos portos (2000, pp. 88-9).
Mais tarde, como veremos, a Inglaterra iria imprimir suas marcas não só na
arquitetura do Mindelo, como na sua cultura mais ampla. Isso porque
havia alguma ansiedade das elites crioulas em orientar privilegiadamente as suas relações
externas para os países mais avançados económica e culturalmente da comunidade
internacional. Assim sendo, o estabelecimento de relações privilegiadas com a Grã-Bretanha é
quase um imperativo de viabilização das novas independências (2000, p. 91).
Percebe-se nos discursos dos sampadjudus que a ―alusão aos ingleses remete
para um suposto patamar civilizacional mais adiantado do que o que teriam alcançado
se confinados ao contacto com o colonizador português‖ (NASCIMENTO, 2008, p. 31).
Um discurso evolucionista muito gramatical em Cabo Verde até o início do século XX
(VASCONCELOS, 2007, p. 172), mas que ainda hoje parece ter ressonância.
Nesse sentido, de acordo com Correia e Silva (2000), a Grã-Bretanha foi um ator
primordial na reestruturação dos fluxos atlânticos. Pressionando para o fim do tráfico
negreiro África-América, surge um novo fluxo de emigração dos camponeses europeus
para as terras sulamericanas, com a crise agrícola europeia. Camponeses esses que,
emigrados, demandam produtos industriais de origem inglesa. Além desse mercado, a
Inglaterra precisa abastecer suas colônias africanas e aquelas localizadas no oceano
Índico, tornando o Atlântico rota ainda mais importante para este país. E Cabo Verde
estava estrategicamente posicionado nesta rota.
45
Estrategicamente porque o império global inglês necessita e coincide com uma
revolução tecnológica, que substitui os navios veleiros por navios movidos a vapor. O
combustível que moverá esses robustos meios de transporte será o carvão, que precisará
de estoques regulares para reabastecimento dos navios ao longo da rota oceânica. Posto
que as ―máquinas a vapor, excessivamente consumidora de carvão, um combustível
pesado, recorde-se, punha sempre o problema do transporte a bordo de grandes
quantidades de combustível‖(2000, p. 98).
Assim,
o navio a vapor terá baixa autonomia de viagem. Por isso ele será profundamente tributário das
escalas de reabastecimento de combustível. Caso contrário, ter-se-ia que transportar a bordo
enormes stocks de carvão, sacrificando assim o espaço destinado à carga comercial (2000, p.
99)
As escalas eram, portanto, imprescindíveis. Cabo Verde, por sua localização e
segurança, será um dos mais importantes pontos de reabastecimento de carvão (2000, p.
101). Mas por que o Porto Grande em São Vicente e não os demais portos já existentes
no arquipélago?
O próprio autor explica: ―Com o carvão, a tonelagem dos navios aumenta,
fazendo a navegação de longo curso preferir portos de águas mais profundas e
fundeadouros seguros‖ (2000, p. 102). Assim, ao inverso dos outros portos de Cabo
Verde, como Sal-Rei na ilha de Boa Vista ou o porto inglês da ilha de Maio, já melhor
instalados, Porto Grande é escolhido ―pela sua vastidão e abrigo, pelas águas profundas
e ausência de baixios, atende, mais que nenhum outro, às novas exigências náuticas
trazidas pelo carvão‖ (2000, pp. 102-3).
E assim, em 1842, sela-se o Tratado de Commercio e Navegação entre Portugal
e Inglaterra para a instalação das estações carvoeiras (Correia e Silva, 2000:103). Com
este acordo é ―que os britânicos começam a construir sem grande alarde as primeiras
infra-estruturas portuárias-carvoeiras no Porto Grande do Mindelo‖ (2000, p. 104).
Daí em diante, o Porto Grande torna-se o porto mais avançado da Macaronésia,
região geográfica que engloba um conjunto de ilhas do atlântico norte, próximas à
Europa e a costa africana. Entre os avanços, a primeira estação telegráfica por cabo
submarino do arquipélago e crescente movimentação de navios a vapor (2000, p.110).
Suponho que deste choque entre a marginalidade enquanto ilha dentro do arquipélago
para a ponta do que havia de mais moderno nele, pelo menos em termos de tecnologia
46
náutica, tenha feito São Vicente começar a experimentar também culturalmente o
sentimento de vanguarda. Se não inédito, um sentimento pelo menos mais agudo em
relação às demais ilhas. Pois não se trata somente da moderna infra-estrutura que surge
diante dos olhos, como ―armazéns de combustíveis, planos inclinados, cais de
embarque, lanchões e baldes de ferro‖(2000, p. 111), mas um ethos proletário, moderno
e liberal do insurgente e ―imenso proletariado, sem paralelo na história das ilhas‖ (2000,
p. 111).
Para Dias (2004) foi neste novo meio proletário, que outro importante símbolo
de São Vicente, e, por consequência, de Cabo Verde, a morna, projetar-se-ia (DIAS,
2004, p. 101). Além disso ―o porto carvoeiro, mais ainda que o veleiro, contém uma
grande virtualidade urbana.‖ Ou seja, ―ele alberga em si forças econômicas e sociais que
se espacializam de forma vincadamente urbana‖ (CORREIA E SILVA, 2000, p. 112). A
emergência do Porto Grande, por sua vocação internacional e no estágio tecnológico no
qual ele surge, traz ao Mindelo a possibilidade de emergência instantânea da urbis, pela
cadeia de produção e serviços que este tipo de empreendimento aciona (2000, p. 113).
É desta demanda por serviços que, entre outras coisas, Mindelo se torna uma
cidade ―boêmia‖, como nos relata Dias a partir de alguns dados quantitativos
interessantes:
A atmosfera portuária também fez do Mindelo uma cidade boêmia, onde proliferaram os bares,
tascas, prostíbulos, bilhares, etc. A Rua Santo António, uma das quatro primeiras ruas
construídas no Mindelo, bem próxima ao porto, era tão repleta de estabelecimentos dessa
natureza que ficou conhecida como ―Rua das Canecadinhas‖ e ―Rua de Pasá Sabe‖, isto é, rua
da diversão. Joaquim Vieira Botelho da Costa, que em 1882 apresentou à Sociedade de
Geografia de Lisboa um relatório sobre a Ilha de São Vicente, enumerou todos os
estabelecimentos comerciais do Mindelo ao final do ano de 1879. Entre armazéns, lojas de
fazendas, mercearias, padarias, açougues, restaurantes, hotéis e bilhares, foram registradas 108
tabernas. O número é impressionante, especialmente tendo-se em conta que a população do
Mindelo nesse mesmo ano chegava apenas a 3.717 habitantes. As tabernas correspondiam a
68% do total de estabelecimentos comerciais da cidade (Costa, 1882 apud Dias, 2004). E elas
ditavam o clima da ilha, por onde passava diariamente grande quantidade de homens do mar à
procura de descanso e diversão (DIAS, 2004, p. 105).
E completa que para além de ser o ambiente onde a morna prosperou,
[...] as tabernas eram também o lugar da marginalidade, onde se encontravam todos aqueles
que eram excluídos do sistema legal de abastecimento dos navios e que procuravam no
caminho da ilegalidade a sua sobrevivência. As prostitutas, em particular, eram parte
fundamental desse ambiente boêmio, marginal e masculinizado (DIAS, 2004, p. 106).
Se uma cidade não prescinde de vida boêmia, os negócios mercantis precisavam
urgentemente de segurança. Nesse sentido, o Porto também demandará uma proteção
militar. Assim, será construído o Fortim d‘El-Rei e um quartel será instalado, com
47
capacidade para 50 praças (CORREIA E SILVA, 2000, p. 116). Além da proteção
militar, a cidade precisa de uma infra-estrutura urbana mínima (CORREIA E SILVA,
2000, p. 117).
A população do Mindelo cresce exponencialmente. Dados levantados por
Correia e Silva mostram que ―o crescimento da população aqui não é apenas superior ao
resto do arquipélago como ainda é à custa deste que ele se faz‖ (2000, p. 118). O autor
pinta o Mindelo como um ―Eldorado‖ para os camponeses das outras ilhas de Cabo
Verde, que se dirigiram em busca de uma vida melhor. Contudo, destaco da análise
demográfica de Correia e Silva os dados relativos às taxas de masculinidade da
chamada ―cidade-porto‖ do Mindelo em sua ―sócio-génese‖ (2000, p. 119). Diz ele que
―a imigração, começando por privilegiar os homens em relação às mulheres, tende a
tornar o Mindelo, das primeiras décadas, o espaço mais ‗masculinizado‘ do arquipélago.
De início o porto é universo eminentemente masculino‖ (2000, p. 119).
E prossegue: ―Por isso, em nenhum outro concelho de Cabo Verde, as relações
de masculinidade, isto é, a proporção de homens relativamente às mulheres, apresentam
tão favoráveis àqueles‖(2000, p. 119). A razão seria em 1864 de 1,12 homens por 1
mulher (2000, p. 121). Cinco anos depois, a razão cai para 0,99 homens para 1 mulher,
enquanto para ficarmos em apenas dois outros exemplos, em Santo Antão seria de 0,47
e Maio, 0,92. Correia e Silva explica esse alta taxa de homens por mulheres pelo tipo de
trabalho pesado demandado na cidade-porto: estivadores, catraeiros, mergulhadores,
contrabandistas etc. Mas faz uma ressalva em relação à existência da prostituição, como
um trabalho tipicamente feminino, reconhecido e regulado pelas autoridades (2000, p.
119).
A respeito disso, duas observações. A primeira se refere ao sugestivo cenário em
que Mindelo surge nesta descrição: uma cidade de trabalhadores homens. Se os dados
de Correia e Silva sugerem implicitamente a prostituição como um meio de sanar as
demandas dos homens no mercado sexual, não parece exagero especular que tais
demandas podem ter sido sanadas também através de relações homossexuais entre
homens, de prostituição ou não. Não seria, pois, a primeira ou única sociedade em que a
homossexualidade seria justificada pelo argumento da escassez de mulheres (LÉVISTRAUSS, 2009 , p. 296), inclusive em África (EVANS-PRITCHARD E. E., 1970).
Mas Correia e Silva parece incorrer aqui no equívoco de uma historiografia colonial48
patriarcalista, que dá ênfase apenas ao encontro sexual entre o homem europeu e a
mulher africana (RODRIGUES I. P., 2003, p. 102).
E um segundo e breve comentário diz respeito à prostituição feminina no
Mindelo, de forma mais específica. Correia e Silva tratará mais a frente alguns dos ônus
que o Porto trará à cidade, entre eles as doenças venéreas como a sífilis (2000, p. 137).
Como forma de tentar atenuar a propagação da doença, em 1884 o delegado de saúde
António da Costa Lereno propõe o arrolamento e matrícula das meretrizes, instituição
da fiscalização sanitária e a construção de uma enfermaria para as sifilíticas (2000, p.
137)48. Apesar de nunca ter visto as tais ―putas do Lombo‖, elas torna-se-iam figuras
importantes do imaginário mindelense. O romancista Germano Almeida cria uma cena
de um dos seus personagens entre elas, já no século XXI:
Em toda a sua vida uma única vez Oceano tinha ido às putas do Lombo. Todos os seus colegas
falavam dessa misteriosa experiência iniciadora e ele era obrigado a calar-se porque nada sabia
desses segredos. Assim, certa detardinha, depois de grandes rodeios pela zona onde
normalmente via as prostitutas no engate, tinha acabado por entrar no bar de nha Apolónia,
sendo logo cercado por meia dúzia de mulheres, umas já gastas e envelhecidas, outras mais
novas, todas de feições inchadas e viciosas e todas unânimes em afirmar que estava na cara que
era a primeira vez que ele se aventurava por aquelas bandas, todas portanto a quererem ficar
com a glória de lhe terem tirado os três (ALMEIDA G. , O Mar da Laginha, 2004, p. 143).
Busquei evidenciar o escasso material sobre sexualidade na historiografia de São
Vicente, mas assunto caro nos relatos à ―sócio-gênese‖ do Mindelo é a participação
estrangeira em sua formação, o que viria a produzir o cosmopolitismo sampadjudu. E a
ela, eu retorno. Correia e Silva nos conta que já em 1837, o tenente da marinha inglesa e
funcionário da Companhia das Índias, John Lewis visita a ilha numa viagem de
sondagem exploratória. ―O objectivo é o de avaliar as condições do Porto Grande em vir
a servir de escala aos navios da Companhia‖ (CORREIA E SILVA, 2000, p. 65). À
época, a Coroa acaba por rejeitar a proposta inglesa, ―no sentido da companhia vir a
financiar grande parte dos investimentos necessários à construção da cidade do Porto
Grande‖ (2000, p. 66). Mesmo que o acordo não tenha se concretizado à época, ―o
48
A prática da fiscalização sanitária e médica dessas profissionais do sexo perdurou até recentemente, de
acordo com meus próprios interlocutores: ―Era tarde da noite de um dia qualquer, estávamos meus
interlocutores e eu indo a uma região conhecida como Lombo, nos limites da chamada ―morada‖, o
núcleo central e original do Mindelo. Nesse lugar, próximo ao hospital, contaram-me, trabalhavam as
―putas do lombo‖, mulheres que se prostituíam no período colonial, mas tinham carteira assinada e
recebiam visitas regulares de médico. Elas atendiam principalmente os homens do Porto, segundo me
contou Didi. De acordo com ele, hoje elas são distintas senhoras da sociedade mindelense (―O sexo de
Didi e Elzo‖. Diário de Campo, p.170). Lembro-me que foi nesta conversa em que me dei conta de que
quase sempre que meus interlocutores se referiam ao ―período colonial‖, isso quereria dizer as décadas
anteriores à de 1970. Em meu registro mental brasileiro, acostumado a associar ―colonialismo‖ ao século
XIX e aos precedentes, perdia no dia-a-dia até então a dimensão de como era historicamente recente a
independência de Cabo Verde.
49
certo, no entanto, é que a partir daquele ano, os ingleses criam no mar depósitos
carvoeiros para o reabastecimento dos seus navios que escalam S. Vicente‖ (2000, p.
66). E completa: ―Um prenúncio tímido do que viria a acontecer‖ (2000, p. 66). A
colonização de São Vicente pelo emergente capitalismo inglês de fato ocorreu.
―No início dos anos 60 do século passado a Mac Lead and Martin constrói o
chamado ‗quarteirão inglês‘, contendo mais de 50 casas de habitação social‖. Outro
exemplo é o da Millers & Cory que também constrói um conjunto habitacional para os
seus trabalhadores (2000, p. 122). ―Wilson, Sons & Cº‖ e outras fazem o mesmo.
Enfim, as companhias inglesas se multiplicam pelo Mindelo, imprimindo algo de sua
cultura. O mesmo afirma o antropólogo português João Vasconcelos ao se referir a
importação do ―costumes ingleses‖, como o vestuário típico, aos anglicismos no léxico
os esportes como football, tennis e criquet, adotados na ilha (VASCONCELOS, 2007,
p. 77).
De acordo com Correia e Silva, ―o poder que as empresas inglesas detém no
Mindelo é enorme, quanto mais não seja porque constam das suas listas de empregados
cerca de 50% dos trabalhadores de toda a ilha‖ (CORREIA E SILVA, 2000, p. 123).
Percebe-se na análise de Correia e Silva uma grande penetração das companhias
inglesas na vida não só econômica, mas também cultural dos insulares de São Vicente.
Ainda que cauteloso em relação à distância entre os valores e ideias trazidos pela
presença inglesa e as práticas reais dos trabalhadores, baseadas em valores camponeses
enraizados, Correia e Silva é ainda mais direto sobre a transformação dos emigrantes de
São Vicente, a partir da ―imitação‖ dos ingleses (2000, p. 124).O romancista Germano
Almeida nos fornece em sua obra de ficção uma boa imagem do processo civilizador
que os sanvicentinos pensam ainda empreender para com os migrantes recém-chegados
das outras ilhas, como nessa conversa entre seus personagens Luizão e Miguilim:
Tu um pé-rapado que veio de São Nicolau ainda a andar torto por estar cheio de pulguinha até
aos sovacos, e é graças a nós de São Vicente que conheceste sabonete desinfectante e hoje em
dia andas calçado e até aprendeste a comer com faca e garfo! (ALMEIDA G. , 2004, p. 49)49
Já o antropólogo Moacyr Rodrigues argumenta por essa transformação, porém,
não a partir das culturas nacionais, mas pela via do choque cultural entre os hábitos
49
Vi cena muito parecida entre dois desconhecidos na Pracinha da Igreja, no Mindelo. O sanvicentino
acusava jocosamente um recém-chegado do interior de andar a passos lentos, como seria típico do
ambiente rural. A brincadeira acabou com um deles falando algo pejorativo da mulher do outro.
50
propriamente rurais e urbanos (RODRIGUES M. , 2011, p. 47)50. Todavia, Rodrigues
não deixa de ser taxativo quanto à influência inglesa no Mindelo: ―Não se pode referir a
história urbana e de desenvolvimento da cidade do Mindelo sem destacar a actividade
comercial inglesa‖ (2011, p. 45).
O antropólogo português João Vasconcelos é quem, nos seus estudos sobre o
surgimento do racionalismo cristão em São Vicente, nos fornece dados historiográficos
mais precisos dessa ocupação inglesa que ocorria paralelamente:
No começo do século XX moravam em São Vicente cerca de duzentos cidadãos britânicos, que
formavam a colónia estrangeira mais numerosa em Cabo Verde, na verdade a única
merecedora desse nome. Era aos ingleses que se devia o povoamento consistente de São
Vicente. [...] Em 1911, de acordo com as estatísticas demográficas, publicadas no apenso n.º do
Boletim Oficial de 1912, residiam em São Vicente 212 indivíduos estrangeiros, dos quais 172
possuíam nacionalidade britânica. Para se ter ideia da importância deste número, registe-se que
no mesmo ano viviam na ilha 127 portugueses (metropolitanos, açorianos e madeirenses) e no
conjunto do arquipélago viviam ao todo 293 estrangeiros recenseados (VASCONCELOS,
2007, p. 75).
Ainda que convivendo em grande medida com os valores ingleses, ―sobrevivem
no comportamento dos operários fidelidades tipicamente rurais em oposição flagrante à
ética laboral industrial. A primeira geração de operários permanece tributárias das suas
origens geográficas‖ (CORREIA E SILVA, 2000, p. 124). O que Correia e Silva nos
explica é que esses trabalhadores enxergam o emprego no Porto e na economia
subsidiária deste como uma forma de angariar poupança para o regresso à vida no
campo. Na situação de optar pelo emprego ou pela terra, essa primeira geração optaria
pela terra. ―Perante o apelo do campo, estes recém-operários, ainda camponeses nos
valores profundos, deixam as carvoeiras a ver navios‖ (2000, p. 124).
Essas ―resistências sociais e culturais‖ (2000, p. 125) de uma moralidade
tipicamente rural explicariam, em parte, o porquê de São Vicente ainda compartilhar de
alguns dos valores conservadores da sociedade cabo-verdiana mais ampla. Assim como
nos possibilitaria entender o porquê de ainda hoje encontramos tais valores no trato, por
exemplo, das sexualidades não-heteronormativas51 em São Vicente. Definitivamente,
por mais liberal que Mindelo pareça aos olhos cabo-verdianos e por mais ―inglês‖ que
De acordo com Rodrigues, Mindelo teve, ao longo de sua história, ―constantes fluxos migratórios de
zonas rurais para as zonas suburbanas‖ (RODRIGUES M., 2011, p. 11).
51
Por ―heteronormativo‖ nomeio um amplo conjunto de normas com signos mais ou menos instáveis,
referentes às práticas sexuais e performances corporais, que se conformam para atender um sistema de
gênero binário, onde existem apenas dois sexos/gêneros: o feminino e o masculino. Em seu significado,
está pressuposto o ―heterossexismo‖, que ―pode ser definido como um princípio de visão e divisão do
mundo social, que articula a promoção exclusiva da heterossexualidade excluindo a homossexualidade‖
(TIN, 2003), formando uma nova composição binária.
50
51
ele tenha se constituído, está longe de ser um paraíso incontestável da liberalidade dos
costumes52. A estrutura da moralidade conservadora crioula e o sistema de gênero
binário permanecem ali, transformados e atenuados de alguma forma, mas atuam com
eficácia relativa na normatização e padronização dos corpos e dos desejos, como
veremos ao longo desta dissertação.
Todavia, não serão somente os trabalhadores portuários que chegarão ao
Mindelo e serão responsáveis pela manutenção de um status quo da moralidade rural
crioula. Importantes e ricas famílias também migrarão para São Vicente, advindas do
Barlavento, buscando oportunidades de multiplicar seus negócios (2000, p. 127).
Sobrenomes como ―Évora‖, ―Martins‖ e ―Leite‖ aportam no Mindelo e ainda hoje são
ilustres na cidade, indicando as origens, inclusive, de alguns de meus interlocutores.
Mas não só de cabo-verdianos e ingleses povoou-se a Ilha de São Vicente.
Correia e Silva nos conta em relação ao contingente populacional diverso em São
Vicente já no fim do século XIX, que contribuiria para a formação do mito do
cosmopolitismo da ilha:
Nos anos 80 a cidade é uma autêntica babel caboverdiana. Ela tem dentro o arquipélago todo. É
o que nos diz, com expressividade, o administrador do concelho Joaquim Botelho da Costa:
‗Na ilha de S. Vicente não há linguagem, ou, como se diz, crioulo próprio de todas as ilhas‘. É
o cosmopolitismo à escala arquipelágica. (2000, p. 128)
Importante notar agora que a suposta ―liberdade‖ e o alegado ―cosmopolitismo‖
do Mindelo, características importantes na auto-imagem atual dos sampadjudus,
estavam começando a ser histórica e simbolicamente forjadas no vértice que a ilha
formava nesta ampla rede atlântica. Seja porque de fato essa presença estrangeira é
histórica e ainda hoje culturalmente relevante, seja pela opção contemporânea dos
historiadores de enfatizar esse dado na construção da historiografia de São Vicente e
assim dar ressonância a um mito de origem.
Compreendo mito de origem, enquanto uma narrativa que necessita de
ressonância social, que tem uma lógica interna e que conta uma história da origem de
uma população, aproximando-se ou afastando-se da historiografia e por vezes dela
52
Aliás, a Inglaterra estava longe de ser um paradigma de liberalidade no que diz respeito aos costumes,
haja vista que este país, por exemplo, só viria a descriminalizar a homossexualidade na segunda metade
do século XX, mais precisamente em 1967. Agradeço a esta observação feita pelo professor Peter Fry na
banca.
52
prescindindo. Nesse sentido, trata-se de um mito de origem encontrado desde as obras
clássicas da literatura cabo-verdiana, como o é ―Chiquinho‖, de Baltasar Lopes:
Em todo o caso, ele já passara a água mansa do Tarrafal, já tinha conhecido outro mundo, que
fica além da ponta da Vermelharia. S. Vicente principalmente. A civilização que lá passava em
desfile, a bordo dos vapores de escala, enchia a alma de todos. Gente branca. Morenos e loiros.
Soldados e marinheiros em vapores de guerra, apitos trágicos de rebocadores, teatro, cinema,
tudo fazia parada em S.Vicente. Mindelo era a estação necessária para o conhecimento mais
directo do mundo. Tói Mulato contava o que havia na cidade, os edifícios bonitos, os
divertimentos, os jogos de foot-ball e de cricket, as mulatas provocantes que faziam do amor
brinquedo ao alcance de toda a gente. (LOPES, 1997, p. 176)
O que importa é atestar que tanto o ―cosmopolitismo‖ quanto o ―liberalismo‖
são algo ainda hoje presente não só no discurso dos mindelenses, como na sua postura
política e cotidiana. O mesmo justifica o antropólogo português Augusto Nascimento
acerca de Soncente53: ―Do cosmopolitismo de outrora permanecem certas instituições e
práticas e, por exemplo, a versatilidade lingüística‖, como as dos meninos do Porto
Grande (NASCIMENTO, 2008, p. 35).
Como já foi dito nestas páginas, o ―cosmopolitismo‖ é um dado não somente da
realidade populacional relativamente diversa na qual a ilha de São Vicente se
desenvolveu historicamente, como faz parte da construção historiográfica e mitológica
dos sampadjudus. O cosmopolitismo é até hoje reafirmado como elemento diacrítico em
relação às outras ilhas do arquipélago. Chega-se ao exagero regionalista de se dizer que
em São Vicente, cria-se ―uma sociedade que é a mais solidária, comercial e
culturalmente desenvolvida de Cabo Verde, no passado‖ (RODRIGUES M. , 2011, p.
46).
O mesmo autor afirma que ―com a independência, ela torna-se ainda a mais
democrática de todas, porque sempre foi a mais tolerante e de todas a de mais brandos
costumes‖ (2011, p. 46). Augusto Nascimento chega a tratar rapidamente das diversas
supostas justificações para isso: a colonização tardia que de certa forma impediu que
São Vicente vivesse plenamente um sistema de servidão (NASCIMENTO, 2008, p. 28);
o espírito reivindicativo de seus colonizadores de Santo Antão (2008, p. 30); a forte
presença de ingleses e judeus na formação da cidade(2008, pp. 30-1), entre outras.
―Soncente‖ é o termo crioulo equivalente à ―São Vicente‖. Almeida, a revelia do resto do título de sua
obra em língua portuguesa, usa este termo crioulo para se referir à ilha.
53
53
Completando o quadro de evidências empíricas do cosmopolitismo de Soncente,
observemos o que nos diz Correia e Silva a respeito dos estrangeiros no Mindelo
colonial:
Várias firmas inglesas, alemãs e portuguesas abrem representações na cidade, trazendo a ela
seus agentes comerciais, administradores, engenheiros navais, operários especializados, etc. O
peso desta comunidade é tal que se justifica a existência de uma igreja anglicana e um
cemitério inglês. Os ingleses constituem a presença estrangeira dominante. Dominante mas não
única. Numerosos comerciantes judeus, provenientes de Norte de África, munidos de
passaporte inglês e francês, desembarcam no Porto Grande, atraídos pelas oportunidades de
realização de lucros comerciais (CORREIA E SILVA, 2000, p. 128).
À chamada ―babel caboverdiana‖ (2000, p. 129), reúnem-se portugueses,
ingleses e italianos. Estes últimos também com algum peso, instalam-se no Mindelo
principalmente no setor de serviços, criando bazares, lojas de souvenires e restaurantes.
―Em 1879 o Mindelo alberga nos seus limites a maior comunidade de estrangeiros
existente no arquipélago‖ (2000, p. 129). Uma heterogeneidade que, de acordo com
Correia e Silva, ilustra-se também nas representações consulares existentes na ilha de
então: Alemanha, Bélgica, Brasil, Dinamarca, Estados Unidos, Inglaterra, Itália, Países
Baixos, República do Uruguay Oriental, Rússia, Suécia, Noruega e Turquia54.
Assim como hoje, no passado colonial oitocentista também havia os fluxos de
viajantes que passavam por Mindelo. Naquela época, porém, eram marinheiros das
companhias de comércio ou eram pessoas que estavam em busca de emigrar para os
mais diversos locais promissores, desde o Rio de La Plata, passando por Cape Town, até
mesmo indo para a Austrália. Assim, a cidade e seus bares enchiam-se dessas centenas
de milhares de pessoas que passavam a cada ano (2000, p. 130)55. Desta forma, é na
cultura e no lazer, que ainda hoje é possível perceber a forte influência estrangeira no
Mindelo.
54
Devido ao fim do apogeu do Porto Grande e desde a crise econômica em que Cabo Verde se encontra há
pelo menos uma década, a grande maioria desses consulados ou vice-consulados se encontram hoje
fechados. Muitos das casas que os abrigavam estão em ruínas, como o consulado da Holanda, na zona do
Alto Miramar. E a presença estrangeira se é percebida ainda hoje, é muito mais representada pelos turistas
em férias que desembarcam dos transatlânticos e passeiam pela cidade do que funcionários lotados em
repartições.
55
Hoje o fluxo pendular de pessoas que partem e chegam ao Mindelo é menos intenso e diversificado,
mas mais regular. Contaram-me que os períodos de férias escolares de verão, por volta do mês de Agosto,
assim como as festas de fim de ano e o carnaval, costumam atrair muitos emigrados de volta ao Mindelo.
As percepções quanto a esse enchimento da cidade nestes períodos são diversas entre meus interlocutores,
mas no geral, tem-se como prazerosos períodos, haja vista que aumentam os números de festas e de
possíveis parceiros sexuais, além de outras subjetividades relacionadas.
54
Nesse sentido, ao nos apresentar a gênese da formação diversa dessa sociedade,
Correia e Silva nos reconta mais uma vez o mito de seu cosmopolitismo, desta vez, a
partir das influências não só inglesa, mas também brasileira:
Situada numa rede interativa de ligações, a ilha de S. Vicente absorve, como ―omnívoro
cultural‖, tudo quanto por ela passa. Toma-se nela, como em Liverpool, Londres ou Cape
Town, o ―Five-o-clock tea‖ e pratica-se o golf, football e o tênis. A própria arquitetura do
Mindelo apresenta peças de estilo vincadamente british. [...] O seu carnaval abrasileira-se por
influência dos marinheiros cariocas que o enriquecem com marchinhas, chorinhos e sambaenredos (2000, p. 133)
Essa aproximação com o Brasil56 nos é lembrada também por Moacyr Rodrigues
no samba ―Café Atlântico‖, cantado por Cesária Évora. Na música, a metáfora ainda
hoje atual do Mindelo como um ―Brasilzinho‖:
J‘am conchia São Vicente/ na sê ligria na sê sabura/ ma‘m ca fazê um ideia/ S. Vicente é um
brasilin/ chei de ligria/ chei de cor/ ness três dia di locura (RODRIGUES M. , 2011, p. 9)57
Retomando a história para concluí-la, o cenário de prosperidade mudaria
significativamente na última década do século XIX. O Porto Grande e toda a cidade do
Mindelo enfrentariam uma crise devido ao decréscimo de demandas portuárias, gerando
um desemprego maciço. ―A crise portuária que se verifica a partir de 1889 faz exacerbar
conjunturalmente o sentimento anti-britânico no Mindelo‖(CORREIA E SILVA, 2000,
p. 148). Isso porque as carvoarias inglesas começam a ser acusadas pela população de
provocar intencionalmente a crise. A resposta do império britânico é apoiar suas
companhias fixadas na ilha, pois ―interessa à Royal Navy que o Porto Grande esteja sob
o ‗domínio‘ de empresas suas compatriotas, para, em caso do conflito, poder contar com
o apoio logístico das mesmas‖.
56
Em meu trabalho de campo, pude observar a enorme influência das telenovelas brasileiras, exibidas
mais de uma vez por dia na televisão local e febre das famílias, como no Brasil. Além disso, não só a
Rede Globo, mas também a brasileira Rede Record ganha terreno em Cabo Verde, em parte por sua
programação televisa atrativa, principalmente pelos programas de auditório e pelos programas de
violência urbana – todos com conteúdo exclusivo para o público brasileiro, todavia consumidos em Cabo
Verde – parte, por sua inserção no mercado religioso local com a Igreja Universal do Reino de Deus. No
futebol, parece que há maior interesse pelos times e campeonatos portugueses, apesar de conhecerem
times e jogadores brasileiros. Fato relacionado aos tempos em que Cabo Verde ainda era colônia de
Portugal, como disse-me certa vez Didi. O crioulo do Mindelo é também o mais próximo aos falantes do
português brasileiro. Além disso, os sampadjudus absorvem de bom grado muitas das expressões e o
―sotaque brasileiro‖. Empolgavam-se bastante toda vez que descobriam minha nacionalidade. (Para
discussões tanto sobre a inserção da Igreja Universal do Reino de Deus quanto para o lusofonia na ilha,
ver VASCONCELOS, 2004. Para a influência das telenovelas brasileiras nos países africanos, ver
MENDES, 2012.
57
Tradução fornecida pelo autor: Já conhecia S. Vicente/ na sua alegria e na sua entrega ao prazer/ mas
não fazia ideia/ S. Vicente é um brasilzinho/ cheio de alegria/ cheio de cor/ nesses três dias de loucura.
55
Crises no mercado portuário-carvoeiro vêm e se vão na história do Mindelo. Até
que em 1890, o nível de importação do carvão pelo Porto Grande cai drasticamente e,
como uma bola de neve, atinge todos os setores da economia da cidade (2000, p. 161).
―Na óptica dos mindelenses e dos altos funcionários da administração provincial são,
com efeito, os interesses mesquinhos e egoístas das carvoeiras os fatores responsáveis
pela fuga da navegação do Porto Grande‖ (2000, p. 163).
A verdade, segundo Correia e Silva, é que pela posição geográfica privilegiada
de Cabo Verde na rota Europa-América do Sul, supostamente eterna e livre da
concorrência por ser vantagem imutável, os portugueses ergueram no Mindelo uma
―economia passiva‖, que ―consiste na prática em pouco mais do que tributar e taxar o
tráfego, que, por razões tecno-logísticas, está condenado a transitar pelo Porto Grande‖
(2000, p. 164). E afirma que ―no transcurso dos 40 anos que vão de 1850 a 1891, o
Estado não cria nem incentiva a criação duma única companhia carvoeira de bandeira
portuguesa‖(2000, p. 164).
As crises iam e voltavam a depender da concorrência das carvoarias inglesas e
do conjuntura do mercado internacional. Mas a chamada ―Companhia Nacional‖, uma
companhia portuguesa originalmente pensada para acabar com o oligopólio inglês e
fazer baixar o preço do carvão no Porto Grande, insere uma crise ao ser comprada pelos
ingleses. Isso gera uma frustração muito grande no Mindelo e uma crise de dimensões
nacionalistas. No limite, São Vicente ganhará uma forte consciência localista.
Importante, penso, para sua auto-imagem diacrítica. Isso porque
O porto carvoeiro despoletara um vigoroso processo de diferenciação de S. Vicente do resto do
espaço cabo-verdiano. O Mindelo apresenta-se, com efeito, uma configuração espacial,
estrutura econômica, relações sociais e um campo político originais à escala do arquipélago. A
navegação a vapor intervém em Cabo Verde com uma precisão quase cirúrgica. Cria S. Vicente
e acabou-se. Do outro lado do canal, em Santo Antão, tudo é diferente. Este facto possibilitou
em S. Vicente a emergência de uma forte consciência de identidade local. A crise mais não faz
do que agravá-la. Aliás, estes dois fenómenos, a crise política e a consciência localista,
alimentam-se mutuamente. (CORREIA E SILVA, 2000, p. 192)58
Novas soluções para a dominação inglesa não vingam e segundo Correia e Silva,
―os novos tempos não serão mais os tempos do Porto Grande do Mindelo de Cabo
Nascimento analisa este que seria um dos ―traços‖ do sentimento de especificidade dos mindelenses:
Um traço dessa especificidade poderá ser a própria ênfase na sua distinção por comparação com a normal
ou expectável diferença de ilha para ilha e, consequentemente, dos vários ilhéus entre si [...] Os
sanvicentinos teriam, então, uma ideia de serem diferentes – e mais inteligentes ou, se quisermos, mais
mundanos – do que os naturais de outras ilhas. Para eles, a prova dessa decantada especidificidade é
estabelecida pelas opiniões de terceiros, citadas até por pessoas de extracção social mais popular‖
(NASCIMENTO, 2008, p. 27)
58
56
Verde‖ (2000, p. 196). Rodrigues, por outro lado, é mais otimista e conta que anos mais
tarde, em 1917, instala-se um Liceu no Mindelo, que vai alargar sua população, atraindo
gente de todas as ilhas e de todas as camadas sociais. Rodrigues considera a cidade da
primeira metade do século XX como a ―Meca da cultura caboverdiana‖(RODRIGUES
M. , 2011, p. 39).
De qualquer forma, o ―cosmopolitismo‖ encerraria o século XIX já sedimentado
no espírito sampadjudu. Em artigo sobre cultura global, Ulf Hanners empreende um
enquadramento da categoria ―cosmopolita‖ que nos ajuda a pensar o caso do Mindelo.
Apesar de uma perspectiva individualista e típica-ideal, o autor compreende o
cosmopolitismo como um ―estado mental‖ e uma ―forma de administrar significados‖
(HANNERS, 1999, p. 252):
A perspectiva do cosmopolita precisa envolver relacionamentos com uma pluralidade de
culturas consideradas entidades distintas [...] Porém, além disso, o cosmopolitismo, num
sentido mais estrito inclui uma posição em relação à própria diversidade, em relação à
coexistência de culturas na experiência individual. O cosmopolitismo mais autêntico é, acima
de tudo, uma orientação, uma vontade de se envolver com o Outro [...] Entretanto, a vontade de
se envolver com o Outro, e a preocupação de alcançar uma destreza nas culturas que a
princípio são estranhas, relacionam-se ao mesmo tempo com as considerações do próprio eu. O
cosmopolitismo a maioria das vezes possui um filão narcisista; o eu é arquitetado no espaço
onde as culturas se refletem entre si. (1999, pp. 253-4)
Se transportamos suas considerações individuais-metodológicas a respeito da
coexistência de culturas, da vontade de se envolver com o Outro e o aspecto narcisista
que o estado mental do cosmopolitismo carrega consigo para uma perspectiva de uma
cultura cosmopolita, como o é ou se diz existir no Mindelo, temos as chaves para
entender as questões postas no início desta seção.
Uma africanidade rejeitada desde o século XX...
Após ter compreendido os caminhos históricos desde o descobrimento da Ilha de
São Vicente até o fim do século XIX, e com isso perceber a construção do mito de
origem do Mindelo como uma cidade cosmopolita e liberal, pretendo nesta seção me
concentrar na discussão sobre o século XX e a africanidade em Cabo Verde, para
mostrar que este cosmopolitismo pode ser restritivo, ou seja, nem sempre ele inclui a
incorporação dos signos de africanidade no espírito sampadjudu.
57
Adianto que entrarei brevemente aqui nas rivalidades históricas e políticas sobre
a constituição da identidade nacional de Cabo Verde, para em seguida, trazer meus
próprios dados etnográficos que revelam na atualidade uma tendência mindelense clara:
uma rejeição difusa pelos signos de africanidade. Isso porque, a inclinação ao oeste do
globo, além de uma característica histórica do povo mindelense, é uma estratégia de
criação de um diacrítico fundamental para os gays sampadjudus na atualidade, haja
vista a intensificação da perseguição aos homossexuais nos diversos países africanos do
continente.
Para passar brevemente pela história do século XX em Cabo Verde, aciono os
escritos dos antropólogos João Vasconcelos e Juliana Braz Dias.
Vasconcelos afirma que ―é em finais do século XIX que encontramos indícios
seguros da circulação da ideia de que existe uma individualidade cabo-verdiana‖
(VASCONCELOS, 2004, p. 170). Segundo o autor, isto ocorreria por três agendas
políticas concomitantes na colônia portuguesa: o debate sobre a definição do estatuto
administrativo de Cabo Verde (se província ultramarina ou arquipélago adjacente); a
exigência de um reforço do investimento do Estado na instrução pública; e a defesa de
uma política migratória civilizadora, que substituiria as migrações para as roças no
continente em benefício das emigrações para a América do Norte (2004, pp. 170-1).
No plano econômico, Mindelo começa a apresentar um processo irreversível de
decadência, devido a vários fatores, como o crescente aumento do valor do carvão; a
concorrência com os portos de Dacar e das Canárias; a Primeira Guerra Mundial,
culminando na Grande Depressão de 1929 (DIAS, 2004, pp. 108-9). Mas é na primeira
metade do século XX também, mais precisamente em 1917, que como adiantamos, o
seminário-liceu de São Nicolau é substituído pelo liceu de São Vicente. Concordando
com Rodrigues (2011), para Dias,
o investimento no domínio do ensino trouxe dinâmica à cidade. Diversas famílias em todo o
arquipélago mandavam os seus filhos para estudar em São Vicente – sempre que as condições
financeiras permitissem. Era o motivo de um novo fluxo migratório para a ilha, agora atingindo
outras camadas da sociedade cabo-verdiana. Mais tarde, esse vínculo construído entre São
Vicente e a educação formal seria também responsável por fortalecer a imagem da ilha como
capital cultural de Cabo Verde (DIAS, 2004, p. 108).
De acordo com João Nobre de Oliveira, sublinhado por Vasconcelos, foi em São
Vicente que se formou a ―inteligentzia‖ que vai permitir a ―cabo-verdianização‖ do
funcionalismo público em Cabo Verde, levando a uma emancipação administrativa da
58
colônia a nível pessoal, pois que a nível institucional nunca o arquipélago teve qualquer
autonomia da metrópole (2004, p. 171)59. Mas tal funcionalismo contribuiria para que
todos cabo-verdianos, à diferença de todas outras colônias africanas, gozassem do status
de serem cidadãos portugueses de jure do fim do século XIX até 1961 (2004, pp. 1701).
No início do século XX é possível observar a emergência de um sentimento panafricanista em Cabo Verde, mas que se mostraria muito diferente daquele dos
intelectuais negros norte-americanos, como qualifica Vasconcelos:
Mas o pan-africanismo digerido pelos intelectuais cabo-verdianos do começo do século XX era
substancialmente diferente do africanismo da negritude que viria apaixonar alguns intelectuais
dos anos 50 em diante. Ao contrário deste último, celebrava a hegemonia civilizacional
europeia, não vislumbrava o que fosse o relativismo cultural e era resolutamente anti-racista.
(2004, pp. 172-3).
Tratava-se então de uma retórica a favor de implementação efetiva da cidadania
portuguesa nas colônias africanas. Era como um pedido da colônia à metrópole para
civilizar a própria colônia, promovendo o progresso econômico e a assimilação cultural,
com fins de diminuir cada vez mais a disparidade de condições entre o centro e a
periferia (2004, p. 173).
Contudo, a partir dos anos de 1930 é que a especificidade cabo-verdiana ganhará
novos contornos, principalmente entre os intelectuais de uma importante publicação
local chamada Claridade. A revista, que terá enorme impacto na cultura e na política do
país, publicará nove números de 1936 até 1966 e neles constarão os escritos de
intelectuais mindelenses como Baltasar Lopes, Jorge Barbosa e Manuel Lopes (2004, p.
173). Inspirados por autores brasileiros como Gilberto Freyre e Artur Ramos, os
claridosos consideravam seu país como um caso de ―regionalismo português‖. Assim,
como já adiantamos na Introdução, para os intelectuais dessa geração, a singularidade
de Cabo Verde residia no fato de o arquipélago ter passado por uma experiência de
miscigenação e interpenetração cultural sem paralelo em nenhuma outra colônia
portuguesa (2004, p. 174)60.
59
Tal afirmação deve ser relativizada. Como vimos no caso da aplicação do Código Penal, as colônias
chegaram a ter alguma autonomia, pelo menos, na administração da justiça.
60
Segundo eles, nem mesmo o Brasil teria vivido essa formação: ―O argumento central do seu ensaio [de
Gabriel Mariano, sobrinho de Baltasar Lopes] é que essa ausência de complexos ou conflitos interiores se
devia ao facto de o mulato cabo-verdiano, em vez de ter ficado entalado entre um grupo branco
hegemónico e um grupo negro dominado, ter comandado ele próprio desde muito cedo a estruturação da
sociedade da colónia – papel que no Brasil coubera ao português reinol‖ (2004, p. 175).
59
Mas, mais do que a miscigenação e a interpenetração cultural em si, a representação dominante
da cabo-verdianidade tendia a exaltar a contribuição cultural ou espiritual de Portugal na
formação da sociedade mestiça do arquipélago. A mestiçagem, vista como um dos elementos
fundamentais as sociedade cabo-verdiana, era entendida não apenas como um processo
histórico de miscigenação ou mistura racial, mas também como um processo de civilização e
de desafricanização cultural, impondo-se como sinal diacrítico de Cabo Verde no contexto das
colónias de Portugal na África (2004, p. 174, grifos do autor).
Não perdendo de vista que esses intelectuais advinham da ilha de São Vicente,
reduto da intelectualidade do país, eles nacionalizaram, até metade do século XX, o
mito de origem de uma especificidade cabo-verdiana que de certa maneira não se filia
aos signos africanos ou não os tem como principal acervo simbólico. Mas estas
representações nacionais seriam contestadas a partir dos anos 1950. A crítica
basicamente apontava para uma absorção pelos claridosos de uma ideologia colonialista
que apregoava a inferioridade cultural dos africanos e a superioridade cultural dos
europeus (2004, pp. 175-6).
Percebe-se que não foram somente os claridosos que vinham produzindo e
reproduzindo o mito. Uma série de autores ao longo de toda história de Cabo Verde
apontavam uma espécie de síntese cabo-verdiana na máxima ―muitíssimo influente e
disseminada‖ (2004, p. 177): ―corpo africano, espírito europeu‖. Desde o padre António
Vieira, em 165261, até autores da primeira metade do século XX, como o antropólogo
físico António de Almeida:
Os seis caboverdeanos adultos do sexo masculino que acabam de ser estudados
antropològicamente são originários das ilhas de S. Vicente, Santo Antão e Boa Vista,
empregados na marinha mercante (dois serviram na nossa marinha de Guerra, como
vaidosamente afirmam); mostram-se instruídos e inteiramente assimilados aos nossos usos e
costumes (ALMEIDA A. d., 1938, grifo meu).
A crítica a essa perspectiva eurocentrista viria então com os jovens caboverdianos nos anos 1950, filhos da conjuntura internacional do pós-guerra. ―[...] esta
geração encetou luta aberta contra o colonialismo europeu, sob as bandeiras da
independência nacional, da unidade africana e do socialismo‖ (VASCONCELOS, 2004,
p. 177). Na intensificação da crítica cultural e literária, em 1963, observa Vasconcelos,
―foi a vez de Onésimo Silveira publicar um ensaio bem mais veemente contra o
lusitanismo e os barlaventarismo dos escritos da Claridade‖ (2004, p. 178).
Mas da perspectiva política, as ideologias panafricanistas se tornam mais
complexas no cenário cabo-verdiano. É que se por um lado a elevação simbólica dos
Diz ele em trecho de carta mencionada por Vasconcelos: ―São todos pretos, mas somente neste acidente
se distinguem dos europeus‖ (2004, p. 176).
61
60
signos da africanidade é gramatical neste novo contexto histórico, por outro, líderes do
PAIGC – o partido que nasce para lutar pela independência de Cabo Verde e da Guiné –
como Amílcar Cabral, precisavam encontrar um equilíbrio entre um sentimento, muito
arraigado no povo cabo-verdiano, de uma superioridade diante das outras colônias do
continente e uma identidade entre esses dois povos. Além disso, permanecia na
memória coletiva dos guineenses, que foram os cabo-verdianos, durante séculos, os
responsáveis pela dominação colonial portuguesa na Guiné (RODRIGUES I. P., 2003,
p. 97; VASCONCELOS, 2004, p. 179).
Não entrarei nas dinâmicas do partido único em conformar as perspectivas caboverdiana e guieneense nessa luta pela independência. Importa notar, porém, que a
tentativa de ―reafricanização‖ não vinga de forma absoluta em Cabo Verde. O
africanismo de Cabral ao mesmo tempo que apela a um ―arquétipo irracionalista da
África‖, romanticamente citando as crenças, a religiosidade, a feitiçaria, desqualifica
todas essas representações na formação de um novo estado moderno (2004, pp. 180-1).
Em suma, a africanidade à la negritude tinha de ser lembrada aos cabo-verdianos e aos
guineenses para que eles se descobrissem irmãos uns dos outros: era um instrumento de
fraternidade. Mas também deveria ser transcendida por ambos para que juntos pudesse edificar
uma sociedade nova, justa e progressista (2004, p. 181).
Assim como o projeto da unidade política entre Guiné e Cabo Verde não vingou,
com o golpe no primeiro país, a reafricanização também não, mesmo após esforço
contínuo em valorizar os símbolos africanos, como a língua crioula, a tabanca, o
batuque, funaná, etc (2004, p. 182). A ruína do projeto político do PAIGC, agora
PAICV em Cabo Verde, fez pelo menos reconciliar a elite política com a elite
intelectual dos claridosos, que não acreditava na africanização tampouco na unidade
com a Guiné. A partir daí, Cabo Verde iria se alinhando cada vez mais com a Europa e
menos com a África, seja pela política multilateral seja pela composição da elite do
partido (2004, p. 183).
Nos anos 1990, sobe ao poder o MpD – Movimento pela Democracia – e lá fica
por toda a década, promovendo uma política neoliberal, de privatização das empresas
públicas e captação de investimentos estrangeiros. ―Atestam-no, por exemplo, a
adopção de um novo hino nacional e de uma bandeira que rompe com o verde-amareloe-vermelho da paleta cromática do pan-africanismo‖. Assim como se faz ―a reposição
de vários topônimos cabo-verdianos e portugueses que haviam sido substituídos por
nomes de libertadores africanos‖ (2004, p. 184). Parece o fim desta tentativa de
61
reafricanização em Cabo Verde. Mas se Trajano Filho, como vimos na Introdução,
aponta para a dimensão cíclica das tendências crioulas cabo-verdianas ora à
africanização ora à lusitanização, como estaria esta questão hoje? E no Mindelo?
Até hoje
Chego a Cabo Verde no ano da graça de 2013. Assim, gostaria de começar meu
relato com uma conversa que tive com o ―Francês‖, como era chamado, um professor
universitário franco-malês gay, que conheci no Mindelo, três ou quatro dias depois de
minha chegada à cidade. Fixado em Paris, ele estava na ilha para ―relaxar‖, apesar de
seus problemas de convivência no Mindelo – além dos seus próprios – não lhe
permitissem cumprir seu objetivo muito bem. Interessante, porém, foi uma conversa que
tivemos numa pizzaria, em frente à marina, numa ocasião descontraída com o grupo de
amigos gays, que eu estava aos poucos conhecendo e me enturmando. Sendo ele um
scholar parisience de origem africana, interessei-me por questionar sobre suas opiniões
acerca do continente. Segue o registro em meu diário:
Questionei-o se ele concordava com a ideia de um panafricanismo à lá Igor Kopytoff, ele não o
conhecia, mas o expliquei as principais ideias: como algumas características que seriam muito
caras à África, como o desapego à materialidade do território e a importância dada aos sistemas
de linhagem. A princípio ele defendeu que a África era muito diversa internamente e não
concordou com a ideia de uma unidade africana, comparando Mali e o Congo. Mas insisti
dizendo que eu estava me referindo mais à África subsaariana e comparei essas questões do
pertencimento à terra e à família em África e na América indígena (que são bem diferentes).
Daí ele pareceu ceder. Ele ficou algum tempo me contando como essa questão das gerações era
importante localmente, em Mali e em outros lugares do continente, porque o parentesco definia
os pertencimentos mais importantes na comunidade. Eu completei que às vezes era uma
questão também de poder e ele disse que em Mali era também, mas não era tanto isso. Porque
haveria uma harmonia nas sete etnias de lá na distribuição do poder. Mas como para ele era um
saco essa obsessão pelas gerações, toda a vez que ia a Mali. Porque uma mulher lhe cobrava
para contar a sua genealogia, daí ele tinha que ficar dando dinheiro a cada nova geração que ela
lhe contava. E concordamos sobre a loucura de se lembrar às vezes mais de 10 gerações de
ancestrais, até chegar no ancestral mítico. No que ele completou e eu concordei de que nem
sempre os ancestrais narrados foram ―reais‖. (―Sucesso‖. 26/09/2013. Diário de campo, p.51)
Se a clássica etnologia africana carrega consigo os vícios de seu tempo: a relação
promíscua com o colonialismo, a carga de exotismo no interesse pelos indígenas do
continente e a escolha por temas clássicos como o parentesco, ela também foi
fundamental na constituição da ciência antropológica. Contudo, observei que se os
mundos etnográficos de Evans-Prittchard, Radcliffe-Brown e Meyer Fortes, para citar
alguns dos mais importantes africanistas da tradição antropológica, me instigavam
62
grandes questões teóricas, quase nada contribuíam à análise de meus dados
propriamente etnográficos do Mindelo, no século XXI. A África em que cheguei era
definitivamente distinta da que encontrei nos livros, ao ponto de me questionar se lá
realmente era ―África‖, principalmente se tratando do Mindelo62.
Mais surpreendente foi perceber que os mindelenses – urbanos desde a gênese –
eles próprios costumam, com alguma tensão, rejeitar a identidade africana. Se a
historiografia já mostrou o quanto São Vicente se forma social e culturalmente menos
ligada ao continente africano e mais conectada às dinâmicas atlânticas, à Europa e ao
Brasil, pretendo aqui mostrar alguns exemplos sobre como hoje é perceptível o
afastamento simbólico do continente por parte de alguns sampadjudus, ainda que
permeado por tensões. Esse afastamento será especialmente estratégico quando
acionado pelos militantes gays do Mindelo, que diferenciarão sua experiência social
daquela que seria marcada pela ―violência‖ no ―continente [africano]‖.
Para ilustrar esse hábito de negação da africanidade, ainda que tensa, retiro um
relato de meu diário de campo:
Nessa tarde, meu assunto com o Elzo foi sobre africanidade. Ao ser perguntado se eles se
sentiam ocidentais, ele disse que eles se sentem ocidentais, principalmente aqui em São
Vicente, frisou. Usou como exemplo a música que se ouve aqui, que tem como referências o
rap/hip hop norte americano, o zouk caribenho e a música brasileira. (Só não notou – aliás nem
eu – que as três referências tem fortes raízes na cultura africana, apesar de produzidas em
outros lugares). (―O assalto‖. 5/10/2013. Diário de Campo, p.123)
Outra evidência desse afastamento é que muitos cabo-verdianos tem uma relação
muito mais próxima com a Europa do que com o continente africano, pois o continente
europeu é relativamente perto em vários sentidos: tem mais conexões aéreas pela
TACV63 e outras companhias; participa de uma série de acordos de cooperação; e é
historicamente destino de muitos emigrados. Percebi que meus interlocutores do
62
Uma situação que achei hilária durante a estadia em Cabo Verde foi um comentário de uma funcionária
cabo-verdiana de uma companhia aérea portuguesa, no aeroporto da Praia. Comentei, no sentido de
―puxar assunto‖, que nunca tinha visto a máquina de cartões que ela usava para me vender a passagem
aérea de volta para Lisboa. Tratava-se de uma antiga seladora manual, em que o cartão com os escritos
em alto relevo servia apenas de ―carimbo‖ para o recibo. Não havia um leitor digital, com tela de LCD,
conectado à internet, em que eu digitasse uma senha e ela autorizasse a compra, como é de costume
atualmente. Ao meu comentário, ela respondeu aos risos: ―Isso é África!‖. Fora um comentário jocoso
que apelava para uma suposta não-modernidade africana. Jocoso, porque ao mesmo tempo em que ela
―selava‖ o meu cartão, ela comprava a passagem em seu computador, pelo sistema da companhia na
internet, evidenciando um cenário contemporâneo muito mais complexo do que uma suposta ―nãomodernidade‖ em África. Contudo, é interessante notar que eu só escutaria ―Isso é África!‖ na Praia.
63
TACV é a companhia aérea estatal de Cabo Verde, que possui atualmente voos regulares para quatro
destinos europeus (Amsterdão, Lisboa, Paris e Bergamo, na Itália). Além destes, possui voos para
Fortaleza, no Brasil, Boston, nos EUA (onde há a maior população cabo-verdiana fora do país) e,
finalmente, Dakar, único destino no continente africano.
63
Mindelo que já viajaram ou emigraram costumam ter como destino privilegiado
Portugal (Lunga, Didi, Cesar), França (Cesar, Mônica) e Brasil (Sofia, Didi, Cesar)64.
A xenofobia do sampadjudus mostrou-se algumas vezes também: Elzo, um de
meus interlocutores e vice-presidente da Associação Gay Cabo-verdiana, já me disse
que eles têm muitos problemas com os ―mandjacos‖, palavra que apesar de
originalmente nomear uma das etnias da Costa da Guiné, designa genericamente, em
Cabo Verde, os ―africanos‖ ou ―continentais‖. Em alguns contextos o sentimento de
rejeição se explica devido à confissão religiosa desses mandjacos – muitos são
mulçumanos (o que na época, pelo contexto da conversa, inferi que ele estava se
referindo a não-aceitação da homossexualidade pelos professantes desta religião, o que
dificultaria a convivência). Mas já ouvi Elzo falar mal dos ―continentais‖ em outras
circunstâncias e usando esta mesma categoria depreciativa.
Neste mesmo espírito, o escritor sanvicentino Germano Almeida fornece uma
imagem bem depreciativa dos mandjacos em seu recente romance O Mar da Laginha
(2004):
Isso, conforme o Eugénio explica à Matilde, por culpa dos mandjacos que vivem nas barracas
que espalharam por aqueles lados e mantêm aqui o ancestral hábito de cagar onde lhe dá na
real veneta, tendo acabada por transformar toda aquela zona numa imensa retrete a céu aberto
(ALMEIDA G. , O Mar da Laginha, 2004, p. 91).
Nunca vi tal cena no Mindelo e tampouco conheço essa suposta ancestralidade,
mas é possível ver os tais mandjacos ou ―continentais‖ pela cidade, vendendo óculos,
celulares e chinelos. Quem me disse que eles eram ―continentais‖ foi o professor de
inglês Lunga, que igualmente os acusava de contrabandeadores. Germano Almeida
ilustra mais uma vez a xenofobia mindelense: os ―policiais diziam que Mindelo não é
África, não se podia ter vendas de rua em balaios na cabeça das mulheres como nas
terras da negragem‖ (ALMEIDA G. , 2004, p. 43). Notei também que os mandjacos têm
a cor da pele bem mais preta do que a média dos crioulos, principalmente os de São
Vicente. Além disso, falam outras línguas que não é nem o crioulo nem o português, só
nunca soube precisar quais eram, porque não as conhecia.
64
Por acaso, Didi e Sofia foram recentemente a Angola, pois estavam em turnê com sua peça de teatro
por lá, mas visitar ou morar no continente não parece como um desejo de nenhum dos meus
interlocutores. A não ser, como sempre comentava Lunga, por uma boa oportunidade de emprego, como a
de controlador de vôo, em que supostamente ―se ganha 10 mil dólares, além de casa e carro à disposição
em Luanda‖. Na verdade, existe uma percepção entre muitos dos meus interlocutores em relação a
bonança recente em Angola.
64
Intrigado pela questão da africanidade e de sua rejeição em São Vicente,
principalmente, porque ela parecer uma exceção à morabeza, ou ao cosmopolitismo
sampadjudu, voltei-me, em campo, para as lojas de artesanato para turista, os ―gift
shop‖. Existem pelo menos quatro grandes na moradae todas elas apelam bastante para
a simbologia africana. Elzo me disse que todas ―são lojas dos continentais‖, que toda
essa arte é importada, porque os cabo-verdianos não produzem essas coisas
localmente65.
No Mindelo – diferente da Praia – não é muito comum ver feirantes mulheres
com os típicos balaios na cabeça, ou andando com o pano di terra, amarrado na cintura.
Elzo me disse que são mais as mulheres da Praia que usam isso. Mesmo no Mindelo,
dissera-me, muitas dessas mulheres são badias de origem. Se eram de fato ou não, não
pude constatar, mas certamente o meu interlocutor estava querendo demarcar um
elemento diacrítico e este era claramente relacionado à ―africanidade‖.
Grande parte dos mindelenses que eu conheci tendia a ter como referência mais
forte os signos do ocidente do globo, do que da África continental. Uma situação
exemplar disso foi quando, ainda lá, postei em minha página do facebook uma foto do
multicolorido mercado de Praia, um antigo pelourinho, com mulheres negras ao chão,
baldes de peixes frescos e frutas nas barracas. Elzo, com uma ironia crítica, disse que
não gostou daquela foto, pois o que eu supostamente queria com aquela foto era dizer
aos meus que eu estava em ―África‖ (!).
65
Algo que já sabia desde o Brasil, através de conversas particulares com a minha orientadora, que narrou
um fluxo grande de ―continentais‖ para o comércio de arte africana nos resorts da Ilha de Boa Vista. Se
bem que, em Praia, visitei uma galeria de arte no Platô com peças feitas por artistas locais. Inclusive
algumas estatuetas de palha de milho são de um senhor chamado Hipólito que lá estava.
65
Fig. 2 – Mercado da cidade de Praia, localizado no Platô e sobre o qual eu me refiro anteriormente.
FONTE: Acervo do autor.
Por outro lado, ele ficou bem satisfeito quando eu bati, a seu pedido, uma
fotografia do mercado municipal do Mindelo e postei também em minha página do
facebook.
Fig. 3 – Parte interna do Mercado Municipal do Mindelo, localizado na morada. FONTE: Acervo do autor.
66
Trata-se de um mercado mais, digamos, ―disciplinado ocidentalmente‖ (lá
somente é permitido vender verduras e legumes, ou seja, sem peixes atraindo moscas e
exalando odores mais fortes; os espaços e estruturas de cada feirante são divididos mais
cartesianamente e o espaço como um todo é mais amplo e arejado, como apregoa a
bacteriologia de Pasteur, dentro de uma bonita construção colonial, que suspeito ser
inglesa.
Elzo ficou duplamente satisfeito, primeiro, por eu reequilibrar a representação de
Praia, antes metonímia única do país, acrescentando outra representação, desta vez do
(seu querido) Mindelo; em segundo lugar, ele estava satisfeito pela desconstrução
realizada em minha rede social da ideia de Cabo Verde ser um país ―africano‖, que a
segunda foto relativizaria ao público que a visse.
Mais uma vez, Elzo ficou bem satisfeito quando postei outra foto, apenas da
arquitetura do Mindelo, com construções também coloniais. Disse que essas, sim,
seriam ―bonitinhas‖. Enfim, existe um rechaço dos ―continentais‖ e de uma africanidade
muitas vezes associadas à capital Praia e, consequentemente, uma aproximação
identitária com o mundo ocidental. Em uma segunda conversa sobre o tema da
africanidade, desta vez com mais pessoas do grupo de amigos, extraio o seguinte:
Nessa rivalidade, existe um certo preconceito com os badius, que seriam mais ―africanos‖,
mais próximos culturalmente dos ―continentais‖. Didi deu exemplo da música de Santiago, que
teria ritmos mais africanos. Perguntei-lhes se eles se consideravam ocidentais. Lunga disse que
nunca tinha pensando nisso, Cesar não respondeu nada, mas Didi disse que ele se considerava
ocidental sim. (Assim como eu Elzo já tinha me dito a respeito dos São Vicentinos de maneira
geral). (―A abordagem dos rapazes‖. 11/10/2013. Diário de Campo, p.165)
Disse-lhes que eu achava importante abordar esse assunto, porque o senso
comum em geral tende a falar como que opondo Cabo Verde ao Ocidente, quando
muitas vezes a impressão que se tem nos discursos nativos é que a ―ocidentalidade‖ do
Mindelo é hoje uma disputa muito mais pelo grau do fenômeno do que pela simples
negação ou afirmação dele. O fato de Lunga, que é professor de inglês e já emigrado
para Lisboa, nunca ter pensado sobre isso é prova de que ser ocidental, ou melhor, a sua
inclusão no mundo a leste e a norte do Atlântico, já é naturalizada para eles66. Embora,
66
Mesmo na cidade da Praia é possível captar um discurso que naturaliza a condição de Cabo Verde
como país ―ocidental‖. Se em certo momento da dissertação da socióloga Claudia Rodrigues, fica
subentendido que ela toma Cabo Verde como uma ―sociedade ocidental e moderna‖, ao tratar da
permanência do ―patriarcado‖ (RODRIGUES C. , 2010, p. 30), em outra fica absolutamente clara a
inclusão de Cabo Verde no escopo da ocidentalidade (RODRIGUES C. , 2010, p. 110). Aliás, deixo claro
ao leitor que faço uso do termo ―ocidental‖ mais em uma perspectiva geográfica de fluxos culturais.
67
de uma perspectiva analítica, o conceito de ―hibridismo‖ já venha apontando para a
dificuldade de tratar países como Cabo Verde em termos de diferença do ―ocidente‖:
Da perspectiva das análises dos discursos coloniais, o hibridismo é um espaço cultural
ambíguo, uma alternativa "meio-termo" para os conceitos de homogeneidade cultural. Tem
sido visto como um desafio para as histórias imperiais, as ênfases na classificação dos outros
em termos de diferença e divergência do "ocidente", o que é, implícita ou explicitamente,
tomada como parâmetro universal de comparação (RODRIGUES I. P., 2003, tradução minha).
Um exemplo de maior materialidade que encontrei sobre a diferenciação dos
mindelenses em relação aos africanos era o letreiro de um dos ―gift shops‖ do Mindelo,
na Rua Patrice Lumumba. Lia-se no alto, acima da porta: ―Souvenirs Arte Africana.
Comercializamos arte africana e também confecções cabo-verdianas‖. Linguisticamente
o aditivo ―e‖, intensificado pela palavra ―também‖, significa uma distinção entre as duas
categorias: ―arte africana‖ e ―confecções cabo-verdianas‖. Do contrário, a primeira
englobaria a segunda e o aditivo ―e‖, assim como toda a segunda frase, não faria mais
sentido. Ou seja, confecções cabo-verdianas e arte africana são coisas distintas entre si,
assim como o cabo-verdiano, ou talvez o mindelense, e o africano também o sejam.
Ao entrar em outro gift shop, desta vez na Rua de Lisboa, tive outro momento
interessante de reflexão acerca do tema. Reproduzo do meu diário:
Passei nas 4 lojas de ―gift shop‖ para ver souvenires. Eu queria comprar um imã de Mindelo e
coisinhas pequenas para dar para aos mais próximos. Mas o curioso é observar que nessas lojas
de artesanato – muito turísticas – predominam as peças do continente: máscaras, estátuas,
cestaria, peças de barro etc. Na última loja que eu entrei, que ficava na Rua de Lisboa
(atualmente chamada de Rua dos Libertadores de África), eu perguntei para a senhora que
atendia se tinha algo de confecção cabo-verdiana. Ela deu um suspiro como quem se
decepcionou com a pergunta. Sua loja não tinha quase nada de confecção cabo-verdiana e ela
me mostrava os poucos quadrinhos e coisinhas de barro, como cinzeiros, onde se lia ―Cabo
Verde‖. Eu agradeci e saí. Realmente predomina o artesanato trazido do continente. Em Cabo
Verde, pelo o que me falaram no Brasil e eu percebo aqui, não tem essa cultura de esculpir em
madeira máscaras e outros objetos, muito característico do continente. Existe um artista na
Praia, que já mencionei aqui, que fabrica umas estatuetas muito bonitas, feitas de palhas,
folhas, madeira e ferro e que eu pretendo levar uma, mas nada mais. [...] Existem uns
chaveiros, uns imãs de geladeira, mas tudo muito precário – do ponto de vista estético, de
acabamento e de material – produzido localmente. (Bem, uma vez Lunga falou de alguém aqui
que ficou rico importando madeira do continente. Porque realmente o extrativismo em Cabo
Verde é precário). Quando saí dessa última loja fiquei pensando sobre como os turistas devem
chegar aqui, em ―África‖, e querer comprar essas coisas, uma vez que não sei se passam por
outras cidades do continente. (―Remarcação da passagem para Praia, planos e preocupações‖.
28/10/21013. Diário de Campo, p.261-2)
Certa vez na Laginha, contando sobre a minha pesquisa para uma jovem
mindelense, que havia vivido quase a vida toda em Lisboa, vivi um momento de tensão,
quando mencionei sobre possíveis ―aspectos tipicamente africanos‖ para falar de Cabo
Verde. Reproduzo, aproximadamente, a conversa com a jovem Aline:
68
Mas foi quando falei de alguns aspectos típicos de uma sexualidade africana, é que ela se
enfureceu. Ela disse, de uma forma muito exagerada e ríspida, que eu jamais podia falar em
nada tipicamente africano em Cabo Verde. Eu disse ainda rindo que isso era o que pessoal de
São Vicente achava. Porque em Praia, argumentei, as pessoas resgatavam muitos símbolos
africanos, na música, na forma de se vestir etc. Ela negou veementemente. Pareceu-lhe uma
ofensa falar que Cabo Verde tinha aspectos africanos quando ela achava Cabo Verde, na
verdade, muito heterogêneo, apesar de ser um país pequeno. ―Mais heterogêneo que Portugal‖,
me garantiu. (―O sexo de Didi e Elzo‖. 12/10/2013. Diário de Campo, p.174)
A negação dos signos de africanidade pelos mindelenses, por vezes, se mescla
perfeitamente à rivalidade histórica que nutrem pelos badius. Isso porque os badius são
considerados – e certamente se consideram com menos ressalvas – mais ―africanos‖.
Contudo, ―africano‖, para além de outras proximidades semânticas, é entendido pelos
sampadjudus pejorativamente como mais ―tradicionais‖, mais ―rurais‖, mais
―atrasados‖, mais ―brutos‖, desde a forma como comem:
Didi contou um episódio, aqui em São Vicente, que uns ―badius‖ convidaram ele e uns amigos
para comerem. Os homens vieram do futebol, tiraram as chuteiras e ficaram sentados no chão
com os pés suados quase tocando as tigelas. E conversavam em volta da tigela com a comida
que comeriam em seguida. Didi disse ter se recusado a comer por causa da sujeira dos pés,
próximos ao recipiente com a comida, e com os ―perdigotos‖ que saiam das bocas e caia dentro
do recipiente, devido a conversa em volta do mesmo. Segundo Didi, os rapazes, ofendidos,
depois mandaram não mais chamá-lo. Didi disse, cheio de dedos, que não é preconceito, mas
que realmente não foi criado para comer daquele jeito. (―A abordagem dos rapazes‖.
11/10/2013. Diário de Campo, p.165)
até a forma como ―fodem‖:
Didi disse brincando que se eu fosse com aquele ―badiu‖, eu nunca mais ia querer sair de Cabo
Verde. Cesar, por outro lado, disse que não gosta dos ―badius‖, apesar de ter conhecido uns
lindos, mas porque os homens de Santiago ―fodem que nem máquina‖ e ele não gosta. (―A
abordagem dos rapazes‖. 11/10/2013. Diário de Campo, p.167)
Na boate Caravela, epicentro da vida noturna da cidade, porém, o ritmo é quase
sempre ―africano‖. Parece-me que os sampadjudus incorporam estrategicamente alguns
signos africanos, entre eles, a música. Apesar de Cabo Verde ser do ponto de vista
musical muito rico, o consumo de música estrangeira é alto. Nas boates e nos
―telemóveis‖67 dos jovens há muitos hits cabo-verdianos, mas também do continente,
principalmente músicas de Angola. Além, é claro, dos ritmos globais, principalmente
norte-americanos.
Contudo, mesmo que haja esse consumo da música, creio que seja por uma
ligação cultural forte com Angola – país africano que parece ser o que mais exporta para
Cabo Verde seus produtos culturais. Pois o que me diziam nas festas é que muito dos
rapazes que dançam tipicamente como os continentais ou são badius ou não são de
67
―Telemóveis‖ são o mesmo que ―celulares‖ tanto em Cabo Verde quanto em Portugal.
69
Cabo Verde. E mesmo nestas situações há uma crítica depreciativa dos sampadjudus
sobre este comportamento. Em uma de minhas idas à Caravela, registro:
As músicas eram quase todas músicas africanas, com percursão e batidas eletrônicas. Alguns
rapazes dançavam no centro da boate com aqueles trejeitos de como dançariam os continentais,
especialmente os angolanos, segundo Elzo me disse. De acordo com Didi, ―dançam igual uns
gorilas‖. É algo meio parecido mesmo, curvados com o tórax para o chão, as pernas
flexionando, para cima e para baixo, abrindo-se e fechando-se, com um centro de gravidade
muito próximo ao chão. As danças eram bem diversas, mas atendiam aos meus estereótipos de
como ―os africanos‖ dançam. (―A abordagem dos rapazes‖. 11/10/2013. Diário de Campo,
p.167-8)
Aliás, aproveito para mencionar que nesta mesma boate, acontece um concurso
chamado ―Nego Gato‖, em que rapazes são selecionados para participar de um concurso
de beleza.
Fig. 4 – Cartaz de divulgação de uma das fases do evento Nego Gato, fixado na Rua da Unidade Africana.
FONTE: Acervo do autor.
Basicamente monta-se dentro da casa noturna uma passarela no nível do chão,
em que passam os rapazes, um de cada vez, exibindo seus atributos, com ajuda da
narração de um apresentador. Assim, no meio da festa, a música para e o concurso
começa. É um frenesi geral, tanto dos outros rapazes que lá estão, quanto das moças. Vi
ocorrer duas ou três etapas do tal concurso. Fez-se notório que um dos trajes que os
rapazes desfilaram em uma das apresentações que assisti era o de ―indígena africano‖:
de tanga, adereços rústicos e pinturas tribais no rosto e no corpo.
70
Isso para dizer que uma segunda exceção encontrada entre meus interlocutores
gays – também não sem críticas entre eles – é a de positivar a categoria ―africano‖,
quando esta se encontra no mesmo campo semântico que ―homens‖, ―sexo‖,
―virilidade‖. Assim, era comum meus interlocutores classificarem os badius como
―cavalos‖, ―máquinas‖, ―brutos‖68. Às vezes era em tom de crítica, reclamando da falta
de afetividade destes, mas em momentos mais descontraídos, esses adjetivos enalteciam
a virilidade do homem ―cabo-verdiano‖ e ―africano‖, ora estas como metonímias uma
da outra, ora como sinônimos. Flagrei algumas vezes meus interlocutores expressarem
seus desejos sexuais reais por aqueles corpos ―mandjacos‖, ―pretos‖, ―negões‖.
Por último, uma terceira exceção que observei foi muito pontual e relacionava-se
a uma estratégia política do movimento LGBT do Mindelo. Um de seus líderes
argumentava que uma das intenções da sua ONG era fazer do Mindelo, cidade – no
discurso agora – ―africana‖ e conhecida por suas qualidades liberal e cosmopolita, uma
―plataforma‖ segura para as discussões sobre homossexualidade em África. Mindelo
seria, em sua utopia, o lugar para receber militantes de todo o continente. Tratava-se de
uma estratégia política querer transformar Mindelo no centro do movimento LGBT
panafricano, para promover o próprio Mindelo e ele. Mas este mesmo líder demonstrava
uma ―pena‖ demasiada pedante em relação à situação dos outros países do continente,
inclusive tratando-os como ―coitados‖. Algo nada solidário ou simétrico, o que acabava
por revelar a ideologia de superioridade ocidental clara e inequívoca deste líder
mindelense – e, por extensão, no povo mindelense de uma forma geral.
Um dos raros momentos em que percebi algo perto de um sentimento que eu
chamaria imprecisamente de uma ―solidariedade panafricana‖ ou no mínimo, do
compartilhamento de um passado colonial comum, foi dentro do carro de alguns dos
amigos que foram me buscar no aeroporto, assim que pisei no Mindelo pela primeira
vez. Reproduzo o acontecimento do diário:
No rádio do carro, tocava uma música angolana que falava da Bahia e de Gilberto Gil. Didi
achou que era brasileira, mas a moça o corrigiu, informando que era angolana. Em seguida
dizia algo como ―seja bem vindo à Luanda‖ e a moça comentou que era curioso a música dizer
isso e nós estarmos entrando no Mindelo. Eu comentei que a música ainda falava da Bahia e
completei com um ―é a globalização!‖. No que ela respondeu abruptamente: ―é o tráfico de
escravos!‖. Teoricamente, ―globalização‖ e ―tráfico de escravos‖ podem coincidir ou não, a
depender da linha teórica historiográfica que você adote. Contudo, quando eu disse
―globalização‖, estava em mente um processo mais recente, do avanço das tecnologias de
transporte e comunicação que permitiam esse cosmopolitismo. Eu quis dizer que estávamos
68
Para a construção da virilidade nos meninos badius, ver MIRANDA, 2013.
71
todos conectados pelos signos positivos da modernidade. Ela, no entanto, enfatizou o passado
comum e os signos históricos negativos que nos conectava. Obviamente, nenhum de nós dois
estava errado, era uma questão de ênfase e política. Mas isso não gerou nenhum embaraço, ela
não foi rude nem nada. Foi apenas um comentário. (Eu pelo menos senti assim). (―Chegando
no Mindelo e tudo parece perfeito‖. Diário de Campo, p.31)
Esforcei-me para mostrar situações que presumo provarem meu argumento de
uma rejeição relativa da identidade africana pelos mindelenses (ou um cosmopolitismo
restritivo), porque isso é fundamental para entender algumas questões que dizem
respeito à homossexualidade, à sociabilidade gay e ao movimento LGBT na cidade do
Mindelo.
Breve cartografia do Mindelo
Saindo por hora das representações sociais dos sampadjudus, voltemos à urbis
do Mindelo. Em termos de organização espacial do Mindelo, é Moacyr Rodrigues quem
nos brinda com um quadro mais detalhado. Em sua obra sobre o carnaval do Mindelo,
Rodrigues enfatiza o aspecto das diferenças de classe e a segregação espacial gerada
nesta cidade portuária.
No centro da cidade, morada, moram os homens do saber, os comerciantes, os homens da
média que empregam grande parte da mão-de-obra, quer aos balcões, no serviço do porto e
como domésticas. Mais tarde os ingleses instalam-se na orla, constroem os seus depósitos de
carvão, as suas moradias, as empresas, clubes com bibliotecas e os trabalhadores
caboverdianos das casas inglesas ocupam os morros sobranceiros à cidade, onde os ingleses
lhes erguem as suas residências, nesses bairros limítrofes, pagando caro por elas.
(RODRIGUES M., 2011, p.40, grifo do autor).
E continua mais adiante apostando na discutível tese da divisão binária da
cidade:
É uma sociedade dividida em dois polos, no princípio: um, os da morada na Rua de Lisboa, nas
ruas e largos adjacentes, pracinha da Igreja, a Rua da Luz, Rua de João Machado e alguns nas
travessas e ruas transversais, constituídos por comerciantes e mercadores, e os trabalhadores e
empregados comerciais vivem na periferia da cidade; e pelos outros, os filhos do Porto Grande,
os cicerones, caguetes, estivadores catraeiros, mergulhadores e passadores de contrabandos ao
lado dos negociantes de bordo, que vivem no subúrbio. (2011, p.43, grifo do autor)
Não obstante simplificar a complexidade da cidade a uma divisão binária, pouco
reveladora dos espaços de transição e das hierarquias espaciais múltiplas do Mindelo,
Rodrigues, de maneira explícita, valora cada um desses polos, ao tratar das ocupações e
da vida diária neles. Contudo, é interessante observar as imagens construídas pelo autor,
como um nativo, acerca desses espaços:
72
A concluir: a morada, o mundo do controle, é o espaço natural da delinquência, em
contrapartida, o bairro é o espaço da mulher na lide doméstica, cuidando e procurando educar
os filhos nos afazeres da casa enquanto o homem frequenta o botequim ou a lojinha da esquina
à noite quando regressa do trabalho, joga ourí ou bisca nos fins-de-semana; é o lugar onde
dormem os que trabalham na cidade e paradoxalmente o refúgio dos delinqüentes que vivem e
militam na cidade; roubam na cidade e escondem-se no bairro, onde eles nunca fazem nada de
mal, são conhecidos e controlados. A cidade é o lugar de indiferença em relação ao bairro, da
massificação, da polícia e dos golpes, enquanto este é o lugar da humanização, da boa
vizinhança, o espaço do conhecimento e da amizade, onde o outro desaparece par dar lugar ao
ermon (irmão) (RODRIGUES M., 2011, pp. 47-8, grifos do autor).
Em relação à morada, centro e núcleo original da cidade e portanto local
importante para a vida do Mindelo, Rodrigues esmiúça as características de formação e
ocupação histórica de sua principal rua, a Rua de Lisboa:
A Rua de Lisboa era o lugar onde moravam os grandes comerciantes, como ainda hoje sucede.
Hoje modificou-se um pouco, é o lugar onde o funcionário se desloca para prestar serviço na
função pública e nas casas comerciais e empresas. Na morada, encontram-se ainda hoje as
casas das famílias mais antigas. As grandes mansões foram vendidas aos bancos e outras estão
cedidas ao comércio, farmácias, lojas de fazendas, minimercados, restaurantes e cafés. (2011,
pp. 43-4).
Hoje em dia, porém, se o estilo das fachadas dos edifícios continua denunciando
a presença inglesa, ainda que apenas arquitetonicamente, e se ainda alguns insistem em
chamá-la de ―Rua de Lisboa‖, a rua, oficialmente, chama-se agora ―Rua dos
Libertadores de África‖. Nome dado em homenagem àqueles que lutaram pelas
independências dos países africanos, entre eles, os cidadãos de Cabo Verde. Mudar o
nome de uma rua dominada historicamente pela burguesia inglesa e nomeada em
homenagem à metrópole colonizadora é uma revanche simbólica oficial do pósindependência, que não necessariamente possui, como parece, ressonância entre o povo
mindelense. Pelo contrário, a independência é frequentemente lida pelos sampadjudus
como um turning point de declínio para a cidade: ―É verdade que São Vicente está na
agonia, desde a altura da independência que está assim sem rumo...‖ (ALMEIDA G. ,
2004, p. 248)69.
Se Mindelo inicia-se a partir de seu porto, mais tarde ―o perímetro da cidade
alarga-se para além da Praça Nova‖ (2011, p. 44). E continuará se expandindo nas
décadas subsequentes. Rodrigues explica o nome da praça em nota:
Chama-se assim por ter substituído a antiga praça, de D. Luiz, sobranceira ao mar, que imitava
a do Terreiro do Paço, e destruída pelos ingleses que precisavam desse espaço da orla marítima
Como diz o próprio romancista: ―nenhuma ficção poderá alguma vez ser tão elaborada como a nossa
saborosa realidade‖ (2004, p. 161). Assim, os dados observados por vários estudiosos, como Nascimento,
é que de fato ―depois da independência favorável à cidade da Praia, [...] o sentimento de perda é inegável‖
(NASCIMENTO, 2008, p. 29).
69
73
para construir quintais de carvão das suas empresas. Foi-lhe posto o nome de Serpa Pinto, e
hoje chama-se Praça Amílcar Cabral (2011, p. 44).
A Rua de Lisboa assim como as suas adjacentes eram de passagem quase
obrigatória nos meus percursos sozinhos pelo Mindelo, assim como nas saídas diárias e
noturnas, acompanhado pelos meus interlocutores. Hospedei-me no Alto Miramar,
região nobre da cidade, limítrofe da morada. Certa vez, cruzamos neste bairro com a
comitiva do Presidente da República de Cabo Verde, que em passagem pelo Mindelo,
aproveitou para visitar seus parentes algumas ruas abaixo. No geral, faz-se de tudo pela
morada, compras, lazer, trabalho e serviços. A maioria dos serviços está concentrada
naquela região, sejam eles públicos ou privados.
Mas o local sagrado de nossa reunião não era a agitada Praça Nova, local em que
se reuniam às centenas nos fins-de-semana, os jovens do Mindelo, e por onde
passávamos ou ficávamos esporadicamente. Nosso ponto de encontro ―oficial‖ era um
banco específico, um dos quatro da Praça Dr. Regala. A praça localizava-se ainda na
morada, mas um pouco mais afastada do burburinho da orla e, portanto, mais discreta.
Era lá que nos reunimos quase todas as noites para conversar, beber e observar os
rapazes que passavam, principalmente aqueles vindos de seus cursos noturnos no liceu,
que ficava a algumas quadras depois.
Contudo, um dos lugares mais importantes do imaginário do Mindelo ainda não
foi citado. Trata-se da Laginha, região da orla, onde se encontra a praia mais popular da
cidade. Da morada, passa-se pelo Porto Grande até chegar, em um percurso facilmente
vencido a pé. Ou, então, caminha-se por dentro da cidade e desce-se na Avenida Dr.
Alberto Leite até chegar à praia. É no calçadão da Laginha que reside a boate Caravela,
talvez a mais popular casa noturna da cidade. Mesmo os que não a adentram nos finsde-semana, circulam a sua volta, fazendo do espaço lá fora um importantíssimo local de
sociabilidade e paquera.
Na orla ainda existem outros bares, que estão quase sempre cheios de gente. No
outono de 2013, quando estive por aquelas areias, acompanhei uma obra histórica de
alargamento do Porto Grande. A Praia da Laginha que, por ser contigua ao Porto,
perderia parte da faixa de areia, foi compensada com uma obra pública de alargamento
da faixa de areia em direção ao mar, já que o comprimento de sua orla seria diminuído
pela expansão do Porto. Dizia-se por lá que a Laginha estava se assemelhando à Praia
74
de Copacabana, nome inclusive de um moderno prédio residencial local, construído
recentemente em sua orla.
Fig. 5 – Mapa da cidade do Mindelo, com destaque para a região da Laginha, ao norte; o Porto Grande e a oeste; e a
Praça Dr. Regala ao centro. FONTE: Google Maps
Os lugares desta pequena cidade de 70 mil habitantes serão revelados aos poucos
neste trabalho à medida que a etnografia avançar e com ela o meu desbravamento do
Mindelo. Para fechar este capítulo, gostaria de trazer alguns dados recentes sobre a vida
dos gays do Mindelo nas últimas três ou quatro décadas. Para tal, faço conhecer-lhes as
―Águas Quentes‖, na Laginha.
“Águas Quentes” da Laginha e a história recente da velha guarda gay70
Um problema desde sempre em São Vicente e em diversas outras ilhas de Cabo
Verde foi e ainda é o abastecimento de água potável (Agência de Notícias de Portugal,
2013). Por se tratar de ilhas vulcânicas, portanto com poucos ou nenhum rio ou lençol
freático, e de clima árido, típico do sahel africano, a oferta natural de água potável é
escassa. Desde o início da colonização do Mindelo,
[...] uma das principais dificuldades sentidas era a falta de água; ―os homens começaram a abrir
poços (fontes, na linguagem da terra) os quais garantiam-lhes água para a sua alimentação, para
as suas hortas e para as suas cabras e burros. À volta desses poços nasceram casebres que
proliferaram dentro de pouco tempo... A toponímia dos bairros de S. Vicente tem na sua
componente fonte‖ (RODRIGUES M., 2011, p.38, grifo do autor).
Utilizo de forma lúdica o termo ―velha guarda‖, extraído do carnaval brasileiro que é reapropriado pelo
carnaval mindelense, para tratar dos homossexuais veteranos do Mindelo. Sobre o carnaval mindelense,
ver RODRIGUES M., 2011.
70
75
É por isso que é comum a existência de ―zonas‖ ou ―bairros‖ na periferia da
cidade, chamados hoje de Fonte Filipe (pronuncia-se no crioulo de Mindelo,
―fondfilipe‖), Fonte Francês (―fondfrancês‖) etc. Curiosamente, Fonte Filipe, que é uma
zona pobre e de índice mais acentuado de violência urbana, apesar de estar situada ao
lado da área nobre da morada, na parte mais montanhosa da cidade, tem se destacado
nos círculos gays jovens do Mindelo como o local onde se percebe atualmente um
crescimento extraordinário do número de ―gays‖.
Principalmente de ―novos gays‖, ou seja, crianças e adolescentes que desde cedo
e cada vez mais cedo despontam como tais nas concepções nativas. Basicamente,
atribui-se aos meninos tais alcunhas por performarem feminilidades cada vez mais cedo.
A anedota contada pelos homossexuais moradores e não-moradores da zona é que ―lá é
um lugar onde bate um vento que faz nascer gays‖. Um vento específico, talvez, porque
Mindelo é, no geral, uma cidade onde há muito vento e este é bem forte durante todo o
dia. Outra versão da piada é de que lá existiria uma pedra quente onde os meninos, ao
sentarem, virariam gays. Ambas as explicações são dadas às gargalhadas.
Mas contada as anedotas que circula entre os gays do Mindelo, importa que uma
moderna solução para o abastecimento de água na cidade iria se tornar um ―paraíso‖
para os gays a partir da década de 1970. Trata-se das ―Águas Quentes‖ da Laginha.
Acionarei aqui trechos de meu diário de campo em que registrei narrativas de memória
oral a respeito deste lugar, além de uma entrevista com um famoso gay do Mindelo,
antigo frequentador do local.
O primeiro a me apresentar às Águas Quentes foi Nonô, um senhor com seus 63
anos de idade, negro, careca, extremamente engraçado e simpático. Anoto o seguinte
sobre ele:
A forma como ele falava e contava suas histórias tinha uma leveza, uma dignidade que me
arrepiaram. Ele contava sobre os rapazes, sobre suas transas de uma maneira tão digna, tão
saudável, tão saudosa, tão lúdica, tão vovô, que eu fiquei encantado com aquele senhor. Ele se
diz homossexual e é um dos mais velhos homossexuais cabo-verdianos que tenho notícias até
agora. (―Conhecendo a velha guarda‖ 02/10/2013. Diário de campo, p.105)
Nunca tinha visto Nonô antes, mas naquela noite, ele juntou-se a nós na praça
Dr. Regala e resolveu dividir generosamente seu divertido passado conosco:
Nonô também contou de sua época na Laginha, que trabalhava na companhia elétrica, onde
havia um túnel por onde passava uma água quente, que não entendi bem o porquê. (Didi
prometeu me levar lá um dia). Nesse túnel escuro e livre, agora fechado, como me contaram,
muitos gays se reuniam nas décadas de 80 e 90 para ter relações. Nonô conta com uma saudade
76
imensa dessa época, uma época ―boa‖, ―maravilhosa‖, ―sem maldade‖ [...] Nonô tem
muitíssimas história sobre como nessa época, pré-epidemia de HIV, a vida era boa para ele.
(―Conhecendo a velha guarda‖ 02/10/2013. Diário de campo, p.106)
Meu registro ainda era incerto, eu não havia entendido plenamente do que se
tratava a estrutura na qual aquele senhor contava ter ocorrido verdadeiras orgias nas
décadas anteriores. Tampouco precisei bem o tempo em que transcorreram as aventuras.
Contudo, ao longo do trabalho de campo e das conversas com Nonô, Carlos e outros
interlocutores mais velhos, que classifiquei como a ―velha guarda‖ dos gays do
Mindelo, fui entendendo aos poucos do que se tratava.
Basicamente, trata-se de uma estação de energia e de dessalinização da água do
mar para abastecimento da cidade, operada atualmente pela ELECTRA71. A estação
existe ainda hoje, mas possuía, à época, em sua estrutura física, uma tubulação aberta de
diâmetro razoável, que cortava as ruas do bairro da Laginha, chegando ao mar. Essa
tubulação servia para devolver ao mar, parte da água usada no processo de
dessalinização. Esse processo consiste em nada mais do que o aquecimento da água para
sua evaporação, com o intuito de separá-la do sal.
Eliminada, parte de uma água quente, portanto, saía dos aquecedores da usina e
corria em direção de volta ao mar. Era nessa tubulação que principalmente os gays, mas
também casais heterossexuais, adentravam nas noites secretas do Mindelo, através de
um buraco, para a realização de diversos encontros sexuais. Um segundo relato extraído
na Praia com uma famosa traveste de São Vicente nos ajuda a compreender melhor:
Perguntei sobre as ―águas quentes‖ da Laginha. E ela repetiu umas 2 ou 3 vezes que ―aquele
lugar tem muita história‖. Sua descrição bate com todas as outras que eu ouvi sobre este lugar.
Sendo ela uma das pioneiras em abrir sua homossexualidade em Cabo Verde, ela pegou a fase
das ―águas quentes‖ em São Vicente. Contava à Graça e a mim, que era um buraco escuro e
que quanto mais se ia em direção à usina de dessalinização, mas quente e abafado ficava.
Segundo ela, muita gente desmaiava lá, por falta de ar. Mas ela contava que era uma loucura.
Era escuro e as pessoas iam passando e pegando, tocando e, às vezes, consumavam o ato,
penetrando. Disse-me ainda que muita gente que nem se imaginava foi ―descoberta‖ lá por
elas. Disse-me que agora está fechado, mas que parece que havia ainda um buraco pequeno.
Disse-me também, que não ousou mais entrar, pois o buraco que deixaram era muito estreito.
(―Conhecendo os gays de Santiago‖. 31/10/2013. Diário de campo, p.277)
71
A ELECTRA, Empresa Pública de Electricidade e Água, foi criada a 17 de Abril de 1982 [...]. Foram
três os organismos que estiveram na origem e integraram a ELECTRA E.P., na altura da sua fundação: a
Electricidade e Água do Mindelo (EAM), que por sua vez havia sido constituída pela fusão da Junta
Autónoma das Instalações de Dessalinização de Água (JAIDA) com a Central Eléctrica do Mindelo
(CEM). Esta fusão teve lugar em Agosto de 1978, juntando os organismos que na ilha de S. Vicente eram
responsáveis pela produção e distribuição de água dessalinizada e de energia eléctrica
(http://www.electra.cv/index.php/Breve-Historial.html)
77
Por último, para um melhor entendimento das dinâmicas deste local, reproduzo
parte da entrevista com um dos mais famosos gays/travestes72 do Mindelo, que também
frequentou, na altura, as ―Águas Quentes‖:
Mas já me contaram que desde a década de 70, existia um lugar na Laginha que eram as
águas quentes...
Justo. As águas quentes!
Você pode me falar um pouco desse lugar?
Ah, sim. Eu vou te contar: As águas quentes era como a segunda mãe dos gays. Era... Sabe?
Não tendo dinheiro pra pagar sauna, não tendo dinheiro para hidromassagem, tens uma água...
Como pode se dizer? Uma dádiva da vida [...] muito grossa e bem quente. Então tinha esse
buraco negro. Com fios também, tinha eletricidade, aí era muito perigoso. Até numa parte
fizeram bem a tapar aquele lugar, porque... Pois às vezes tinha óleo [...] Que tinham muita
gente, muito fulgor, homem, mulher... Chegava um casal, homem e mulher, passaram no meio
de toda gente. Zum, zum. Depois um bocadinho... Sentia a mulher: ―Ahn, ahn, ahn‖. Depois o
homem : ―hã, hã, hã‖. Às vezes, os homens gays gostam, nós ficávamos até altas horas, com os
bofes aí. [...] Ta aí, no meio da água quentinha, com a onda, com as ondas, que quebravam
dentro da água também, perto da porta. Porque era água quente [...] Então as ondas, pã... O
homem acariciando, daí todo relaxado.
E muitos gays iam nesse lugar pra...
Ah, sim, muitos gays iam porque já sabiam. Não só gays [mas também] não-gays. Gays e os
próprios homens... Humm... Os homens... Os próprios outros gays não-assumidos iam pra fazer
a sua orgia, porque era uma orgia. Porque já aconteceu com seis, sete, aí gays. E os homens lá
no meio, tocar a tocar. Uma pega-pega. Isso aí era um bem.
Era bom...?
Hã?
Era sab?
Era SAB, era um bom, era bom. E saía altas hora da madrugada. Saía 3, 4 horas da madrugada.
Escondido tudo. [...] Quente, com frio da madrugada. Bruu. Muitos, muitos pegaram
pneumonia naquele lugar porque saí daí, com água do mar bem frio [...] e ficava atééé tarde.
Dormia às vezes num... na cochinha, deitada com homem. [...] ―É de manhã... O que eu faço?
Minha mãe... Ó Deus!‖ Ficava até... Mas era bom viver.
Isso era quando? Você ia assim quando? Quando é que as pessoas começaram a ir pra lá?
Você lembra?
Lá, da... Tempo da minha mãe, tempo dos antepassados. Porque aquele é de ex Matiota.
Aquele lugar... Aquele lugar tem história! Eu posso contar a minha parte. Mas aí os gays que
vieram primeiro nós. Primeiro do que eu, primeiro que a Lady. Os que não assumiram, lá
estavam, com os homens às escondidas.
Isso era um cano que fazia a dessalinização da água, né? Que vinha da...
Justo. Da jarda lá pro mar.
Entendi.
Então, sabe? Não é... Já imagina a cena. (risos) Gay aqui, gay aqui...
[...]
Não era meio escuro, perigoso...?
72
Como veremos com mais detalhes nos próximos capítulos, a auto-identificação desta figura e de outras
como ―gay‖ ou ―traveste‖ é cambiante e depende sempre do contexto em que a identidade precisa ser
acionada. Razão pela qual não me sinto a vontade de designar aqui uma identidade única para descrevêla.
78
Na noite, fazia escuro. Então na noite era, era, era... perigoso. Lógico não vai estar lá sozinho.
Então era sempre um grupinho: três, quatro gay e tal. Cinco gay. Sozinho? Hum... Lá vou eu
ficar sozinho... Pode entrar dois, três homens querendo te hum, hum... [...] Era sempre melhor
evitar, né? Mas nunca...
Entendi.
Nunca foi tarde pra pegar dois homens. Ou três. (Entrevista Suzete, Mindelo, 29/10/2013)
Nunca tendo existido mercado voltado direta ou exclusivamente para o lazer e
entretenimento do público gay no Mindelo, as ―Águas Quentes‖, como diz Suzete,
parecia uma boa alternativa às saunas, que nem sequer existiam, no sentido de
possibilitar encontros sexuais com algum grau de anonimato e rapidez. Se por um lado
não havia muita segurança, por outro, configurava-se como uma alternativa sem custos.
A não existência ainda da epidemia de HIV/Sida no mundo das décadas de 1970
e início da década de 1980, tornava estes tipos de práticas sexuais menos temerárias.
Uma das razões pelas quais, inclusive, Carlos lamenta, como vimos, o fim desse
passado ―sem maldades‖. Mas este passado também incluía suas histórias de noites
amorosas com colegas soldados nos quartéis. Disse-nos Carlos que somente ele, em sua
tropa, ―fazia aquilo‖, ou seja, se predispunha a ser passivo no ato sexual, a ser penetrado
e isso o fazia atrativo para os colegas de farda. O saudosismo e a dignidade com que
este senhor conta essas histórias são realmente incríveis e chamaram-me muito a
atenção. Voltarei aos seus depoimentos no terceiro capítulo, pois este já está se
encerrando.
Assim, conversei com alguns gays mais velhos do Mindelo. A maioria deles
havia morado muito tempo fora do país, mas contavam experiências homoeróticas de
sua juventude em terras crioulas. O que me deu uma impressão geral de que a
homossexualidade, tanto no sentido de identidade, quanto no sentido de prática sexual,
no Mindelo existe há pelo menos quatro décadas na ilha, sem graves pertubações
institucionais ou opressões que paralisassem a vida (homo)sexual desses sujeitos.
***
Neste capítulo mais histórico, pretendi demonstrar que o homoerotismo em Cabo
Verde parece existir há muito mais tempo do que dizem muitas das atuais vozes do país.
Neste sentido, busquei não somente dados historiográficos que demonstrassem que no
período da Santa Inquisição registraram-se alguns relatos de experiências homoeróticas
no arquipélago, mas também busquei construir uma memória oral dos meus
interlocutores gays a respeito de suas sexualidades nas últimas quatro décadas. Tais
79
dados corroborariam com a tese de que a homossexualidade não é nem nova nem
exógena ao continente africano. Além disso, busquei demonstrar que apesar da
perseguição nos séculos XVI/XVII aos sujeitos homossexuais no império português,
desde então não parece mais haver registros da manutenção dessa perseguição jurídica
em Cabo Verde. Assim, sugeri que após a Santa Inquisição, há uma atitude histórica de
desprezo do sistema penal de Cabo Verde em relação às práticas (homo)sexuais. Atitude
estatal esta que como veremos no próximo capítulo está estreitamente relacionada à
atitude mais ampla e típica dos crioulos em se silenciar quanto à evidência empírica da
(homo)sexualidade.
Para dar conta especificamente do Mindelo, tentei recapitular a história
particular da colonização da Ilha de São Vicente – na qual esta cidade se insere – para
mostrar certas especificidades desta experiência de crioulização. Entre elas, a
colonização tardia em relação às demais ilhas; o contingente populacional formado por
crioulos cabo-verdianos e, portanto, culturalmente menos ligados aos ―continentais‖; a
variedade de estrangeiros que habitaram ou passaram pelo Mindelo, sendo
especialmente importante a figura dos ingleses; a urbanidade atrelada a um moderno
porto internacional; a ligação desta cidade com as dinâmicas atlânticas, ―ocidentais‖ por
excelência; e a especialização de uma vida boemia e intelectual, que pensaria
posteriormente o país. Neste sentido, o mais importante foi perceber a construção
histórica, historiográfica e mítica do ―cosmopolitismo‖ e ―liberalidade‖ dos
sampadjudus. Essas características, fortemente incorporadas na auto-imagem dos
mindelenses, tornam mais plausível, nesta e não em outras ilhas de Cabo Verde, a
possibilidade de insurreição das travestes, no evento que denominei ―Revolta das
Tchindas‖, assim como o movimento LGBT que daí derivou.
Demonstrando o processo de tentativa de reafricanização dos espíritos, levado a
Cabo no século XX, assim como as atuais narrativas de meus interlocutores e a cultura
material do Mindelo, principalmente expressa nas artes, busquei argumentar que, ainda
que os sampadjudus se pensem cosmopolitas, este cosmopolitismo encontra alguns
limites para a incorporação do outro. Um desses limites diz respeito a uma difusa, mas
igualmente tensa, rejeição dos signos de africanidade em São Vicente, esta ora ligados
aos mandjacos, ora aos badius. Da mesma forma, a ―liberalidade‖ da cidade do Mindelo
encontra barreiras, como a manutenção de uma moralidade tradicional que pressiona
para o silenciamento da (homo)sexualidade como possibilidades sexual, identitária e
80
afetiva. Assim, mesmo que a perseguição estatal não pareça há muito tempo se efetivar
e que tenha existido uma vida sexual ativa dos homossexuais no Mindelo desde pelo
menos a década de 1970, estas experiências sempre tiveram de ser escondidas, como
nas tubulações das usinas de dessalinização, saudosamente chamadas de as ―Águas
Quentes‖ da Laginha.
Entendida muitas das premissas históricas e culturais, não só de Cabo Verde,
mas especificamente do Mindelo, é possível agora avançarmos por outras questões desta
etnografia.
81
Capítulo II – A crítica à “hipocrisia”
Neste capítulo, pretendo construir um quadro das noções de gênero e identidade
sexual em Cabo Verde, suas estabilidades e tensões, a partir da perspectiva privilegiada
dos sujeitos homossexuais daquele país. Assim sendo, não me deterei extensivamente
nos discursos acadêmicos sobre as relações de gênero mais amplas, suas classificações
etc., conquanto meu objetivo principal neste trabalho será o de apreender a percepção
particular dos sujeitos homossexuais e travestes do arquipélago. A forma como eles
percebem o sistema de gênero no qual estão inseridos nos encaminhará para
compreender as bases semânticas nas quais eles mesmos articulam suas identidades e
agências no mundo.
Nesse sentido, a categoria êmica ―hipocrisia‖ apareceu recorrentemente nos
discursos dos sujeitos homossexuais pesquisados. Esta categoria de acusação parece
denunciar ao mesmo tempo um silenciamento e uma contradição entre moralidades e
práticas operantes em Cabo Verde nos assuntos sobre a homossexualidade. Ao analisar
sua própria sociedade, diversos interlocutores gays apontaram-na como ―hipócrita‖,
dirigindo extensivamente o mesmo termo a alguns dos indivíduos que dela façam parte.
Meu argumento é que mais do que uma simples crítica moral dos sujeitos homossexuais
aos seus compatriotas e a sua sociedade em geral, a categoria pode nomear uma
perspectiva do sistema de gênero cabo-verdiano de relativa estabilidade, que chamarei
de ―Sistema Hipocrisia‖.
Dando prosseguimento ao capítulo, relato um episódio na cidade do Mindelo,
que chamo de a ―Revolta das Tchindas‖, para compreender o surgimento ou
ressurgimento das modernas concepções de identidade sexual em Cabo Verde. Contudo,
argumentarei que se por um lado algumas categorias identitárias conseguiram ganhar
operacionalidade na gramática sexual dos cabo-verdianos, elas hoje encontram sérias
resistências entre meus interlocutores sampadjudus, que possuem uma postura que se
aproxima muito da chamada performativade queer (BUTLER, [1990] 1999). Nesse
sentido, a fluidez das categorias de identidade sexual como ―homossexual‖,
―heterossexual‖, ―bissexual‖, ―gay‖ etc parecem não mais corresponder às expectativas
identitárias dos sujeitos pesquisados, o que levaria, entre outras consequências, a uma
falência relativa do movimento LGBT local.
82
Em seguida, analiso as categorias ―homofobia‖, ―preconceito‖, ―discriminação‖
e ―violência‖ para compreender quais são seus significados êmicos, partindo do
pressuposto de que elas não encontram necessária correspondência aos significados
existentes em minha própria cultura. Ao fazê-lo, percebo que há uma vívida divergência
entre meus interlocutores sampadjudus acerca da possibilidade de aplicação de tais
categorias no contexto cabo-verdiano e, mais problematicamente, no contexto da ilha de
São Vicente. A diversidade de opiniões revela um quadro em que a ―violência‖, ainda
que exista, não é automaticamente assim percebida em diversas práticas que um olhar
etnocêntrico poderia classificar apressadamente como ―violência simbólica‖.
Para chegar a tais hipóteses, analiso um ritual homoerótico vivido nas ruas dos
Mindelo, que demonstra que a boca mandada, que nada mais é do que dirigir uma série
de vocativos, termos e expressões pejorativas a uma pessoa ou a um grupo, poder-se-ia
ser outra coisa que não apenas um irrefletido ódio dirigido aos homossexuais, ou
―homofobia‖ tal qual nós a concebemos. Percebo que o ato de mandar bocas pode não
ser sempre um ato ―homofóbico‖, tal como se convencionou classificar em outras
paragens, mas uma fase de conquista em um ritual homoerótico, permeado por signos
de masculinidade, virilidade e heteronormatividade.
“Sistema Hipocrisia”
Do ponto de vista dos homossexuais cabo-verdianos, ―hipocrisia‖ é a categoria
moral que descreve (e acusa) dois aspectos distintos, mas interconectados, do sistema de
gênero em Cabo Verde. Assim, o termo serve tanto para acusar o típico silenciamento
da sociedade crioula em relação ao dado empírico da (homo)sexualidade73, quanto para
denunciar a suposta contradição entre os valores heteronormativos dessa sociedade e as
práticas (homo)sexuais que nela convivem. Antes de tratar da ―hipocrisia‖, contudo, é
preciso passar brevemente em vista pelo sistema de gênero em Cabo Verde.
As etnografias sobre o sistema de gênero cabo-verdiano nos oferecem um
quadro que opera estruturalmente de forma binária e sexista (RODRIGUES C. , 2010, p.
Sempre que me referir à ―(homo)sexualidade‖, estarei com isso querendo me referir tanto à sexualidade
mais ampla dos cabo-verdianos, quanto às práticas sexuais entre indivíduos do mesmo sexo, que estão
englobadas nesta sexualidade crioula.
73
83
105), enquadrando ao máximo dentro dele os diversos exercícios de sexualidade que
fogem ao conjunto de práticas e identidades consideradas ―heterossexuais‖. Vários
autores têm apontado uma tendência ―patriarcal‖ como característica importante da
sociedade cabo-verdiana (LOBO, A. d., 2012, p. 67; RODRIGUES C., 2010, p.105;
MIRANDA, 2013, p. 66), ainda que outros o tomem para empreender sua
desconstrução teórica e prática, a partir da exposição do papel de destaque das mulheres
(RODRIGUES I. P., 2007). A ―dominação masculina‖ aparece para alguns autores
(RODRIGUES C. , 2010, p. 105), enquanto outros têm tratado da reprodução de uma
―masculinidade hegemônica‖ que é incorporada inclusive pelas mulheres caboverdianas (MASSART, 2005).
Tendo em vista o ―patriarcado‖ como suposto sistema de organização social em
Cabo Verde, nele encontram-se referências sobre uma predisposição êmica que
naturaliza a poligamia masculina (RODRIGUES I. P., 2007, p. 141; VASCONCELOS,
2012, p.60; MASSART, 2005; MIRANDA, 2013, p.17), uma divisão do trabalho com
ênfase no gênero (LOBO A. d., 2007, p. 71; MASSART, 2005), em que se destaca a
distância relativa dos homens do universo doméstico (LOBO A. d., 2012, pp. 67-8,75;
RODRIGUES I. P., 2007, pp. 140-1; MASSART, 2005), e uma masculinidade
heterocentrada (RODRIGUES C. , 2010, p. 105), que se define pela hétero e hiper
sexualidade (RODRIGUES I. P., 2007, pp. 139-141).
Deste conjunto de informações, as quais eu não tenho pretensão de discutir
profundamente, pois fugiria do escopo deste trabalho, é importante destacar pelo menos
duas: 1) que as relações de gênero em Cabo Verde tendem a ser assimétricas e a
dominação masculina neste país é um dado que tem sido apontado tanto pelas ciências
sociais nativas quanto estrangeiras; 2) na cultura crioula a masculinidade é construída
numa relação de distância com o ambiente doméstico e com a conjugalidade (tal qual
nós a concebemos). Como veremos, as relações entre indivíduos do mesmo sexo no
arquipélago reproduziriam e atualizariam essas assimetrias e essa dissociação ora
mencionados.
Ainda que em dúvida quanto a sua universalidade, tomo o pressuposto da teoria
queer de que para a existência de um sistema de matriz heterossexual, a
―homossexualidade‖ é o contraposto lógico necessário. Neste sentido, é de se esperar
que à ―homossexualidade‖ tenha se conferido algum lugar dentro do sistema de gênero
84
cabo-verdiano. Este lugar, porém, pode variar nas ditas ―sociedades patriarcais‖ e
certamente em Cabo Verde, a ―homossexualidade‖ não é assimilada culturalmente da
mesma forma que em outras sociedades deste mesmo tipo, tampouco é formulada
internamente de maneira homogênea. Há modelos em competição (FRY, 1982b, p. 91).
É sobre a inspiração destes modelos tipológicos recriados por Fry (1982b), que
pretendo diferenciar não somente dois sentidos da categoria ―hipocrisia‖ na perspectiva
dos homossexuais a respeito do sistema de gênero cabo-verdiano (o silenciamento e a
contradição), como diferenciar as próprias experiências em relação à sexualidade
(modelo hierárquico e modelo simétrico)74.
Assim, de um lado, tem-se um modelo hierárquico hegemônico no arquipélago
em que emergem as figuras dos ―homens‖ e das ―bichas‖, cujos comportamentos
sexuais respectivamente serão no plano ideal ―ativo‖ e ―passivo‖, reproduzindo a
dominação masculina sobre o feminino; por outro lado, percebo a emergência de um
modelo sexual tipicamente igualitário ou simétrico, onde surge a figura do
―homossexual‖ (ou ―homoafectivo‖) masculino, cujo comportamento sexual (se ―ativo‖
ou ―passivo‖) não é o diacrítico por excelência entre esses sujeitos ―homossexuais‖ (ou
―homoafectivos‖).
Operarei analiticamente com esses modelos tipológicos, pois eles contribuem
para o trabalho de estabilização, pressuposto em uma peça antropológica. E, apesar
desse modelo teórico ter sido gerado em outro quadro de referência empírica, o Brasil,
serve como grande inspiração ao caso cabo-verdiano. Por outro lado, a teoria queer já
nos relembrou que estes modelos nunca são realizados na sua plenitude pelos sujeitos.
É, portanto, nas repetições dos atos performativos destes, em suas bricolagens de signos
de sexualidade dispostos na cultura, é que se cria a falsa aparência de substância de
gênero (e desses modelos). Portanto, nem todos os ―homoafectivos‖ viverão de fato
relações simétricas com outros ―homoafectivos‖, tampouco, no outro modelo, todos os
―homens‖ serão sempre ―ativos‖ ou todas as ―bichas‖ sempre ―passivas‖75. Como
74
Modelos que seriam inspirados nas ideias de Louis Dumont, como o próprio Fry fez questão de
enfatizar na banca de avaliação desta dissertação.
75
Desde o início do trabalho, Fry alerta deliberadamente para o fato de se propor analisar representações
sociais, discursos e retóricas e não as práticas sexuais em si, o que lhe proporciona criar modelos ideais.
Mas em uma nota de fim, o autor é claro quanto a essa fluidez ao dizer que os ―entendidos‖ – uma figura
análoga ao aqui ―homoafetivo‖, supostamente simétricos aos parceiros – preferem manter relações
sexuais com os classificados ―homens‖ e não com outros ―entendidos‖, apesar da ―regra‖ do modelo
igualitário (FRY, 1982b, p. 113).
85
sugere a teoria queer, resta-nos estudar as performatividades de gênero empreendidas
pelos sujeitos, para perceber os deslocamentos neste empreendimento.
Por último, pretendo transformar a categoria ―hipocrisia‖, verificadas nas duas
das maiores ilhas do país, de uma acusação moral nativa em uma categoria analítica,
que dê conta da perspectiva da população ―gay‖76 cabo-verdiana a respeito do sistema
de gênero em que estão inseridos. Assim, o ―Sistema Hipocrisia‖ – com letras
maiúsculas – será sempre aqui a objetivação que fiz, a partir de suas próprias
enunciações, para estabilizar a percepção dos gays cabo-verdianos em relação ao seu
próprio sistema de gênero. A categoria ―hipocrisia‖ é êmica, mas passou por um
processo de esvaziamento da carga moral para se tornar uma categoria de análise
objetificante e, portanto, virtual. Há no que chamo de Sistema Hipocrisia os dois
modelos propostos por Fry (1982b) e, diz a população gay cabo-verdiana, um
silenciamento sobre suas existências e uma contradição entre valores e práticas sexuais.
Vejamos o que seja isso tudo.
Do pa dodu
Nesta subseção, pretendo me deter no primeiro sentido êmico de ―hipocrisia‖, ou
seja, quando ela assume a forma de crítica dos sujeitos gays sobre o silenciamento (ou
não-confrontação) da sociedade cabo-verdiana em relação à existência empírica da
homossexualidade. Farei isso a partir dos meus dados e do diálogo com a pesquisa de
mestrado da socióloga cabo-verdiana Claudia Rodrigues77, que colheu depoimentos dos
Usarei a categoria ―gay‖ sempre que precisar me referir a todos os sujeitos que se reconheçam a partir
de uma identidade sexual não-heterossexual, sejam eles ―homossexuais‖, ―homoafectivos‖, ―travestes‖,
ou ―bichas‖.
77
Uma ressalva importante a ser feita é que Rodrigues pesquisou membros da elite da Praia
(RODRIGUES, 2010:14), com exceção de uma traveste da periferia. A questão da classe sócioeconômica é um vetor fundamental para a conformação de diversos discursos, inclusive discursos que
forjam diacríticos mesmo dentro de um suposto grupo, como os chamados LGBTs. O que quero dizer é
que se deve levar em conta que os relatos por ela obtidos possuem um viés de classe inegável – como a
conjugalidade romantizada em contraposição à ―promiscuidade‖, o interesse nos direitos civis e
patrimoniais, o poder econômico e simbólico para viver uma vida ―dentro do armário‖, a crítica do
travestismo e da passividade das ―bichas‖ etc. Como veremos, Rodrigues pesquisou indivíduos que se
aproximariam de um sistema moderno de experiência da ―homossexualidade‖, que Peter Fry já chamou
de ―o sistema B‖, onde o ato sexual dramatizaria a igualdade e a simetria (FRY, 1982b, p. 94). Contudo,
analisar os ―homoafectivos‖ possibilitará vislumbrar um sentido de ―hipocrisia‖, qual seja, o de
silenciamento, difuso na população gay do país. Para verificar os diacríticos discursivos dos
homossexuais da elite cabo-verdiana para com os das classes populares, ver RODRIGUES C., 2010, p.
81.
76
86
―homoafectivos‖78, que vivem relações conjugalizadas e de co-habitação na capital do
país.
Antes de dar prosseguimento, é preciso que fique absolutamente claro que
dialogo com os dados da socióloga Claudia Rodrigues, porque eles nos dizem muito
acerca de um dos sentidos que a categoria ―hipocrisia‖ ganha entre os homossexuais de
Cabo Verde – o silenciamento. Contudo, eu mesmo pude tanto em meu campo mais
longo no Mindelo, quanto nas minhas rápidas incursões na capital Praia, perceber que o
silenciamento em relação à homossexualidade extravaza não só o limite físico da Ilha de
Santiago, como os limites simbólicos da classe dominante, na qual Rodrigues fez
pesquisa. Tal fato me permitiria generalizar o chamado Sistema Hipocrisia,
incorporando as percepções dos homossexuais tanto de Praia quanto do Mindelo. Mas
ainda assim, aviso ao leitor que o ―Sistema Hipocrisia‖ não passa de um exercício
hipotético gerado pela pesquisa de um marinheiro de primeira viagem.
Dito isso, embarquemos no depoimento de Joana, uma das interlocutoras
―homoafectivas‖ registradas por Rodrigues na capital:
Joana: Resumindo... o que é que eu acho é que realmente seja muito hipócrita... enquanto que
as pessoas não são confrontadas até gostam de falar... cada uma dá a impressão de que gosta de
mostrar que sabe mais ou que conhece mais pormenores ah nunca fui confrontada também tudo
que apareceu de maldoso é sempre anónimo... portanto concordo em tudo... é uma sociedade
hipócrita em relação a esse tipo de relacionamento (RODRIGUES C. , 2010, p. 89)
O que se percebe neste relato é que a ―hipocrisia‖ é aqui uma acusação moral
dos indivíduos ―homoafectivos‖ em relação àqueles outros indivíduos de sua sociedade
que,
supostamente
incapazes
de
confrontar
a
realidade
da
existência
da
homossexualidade diante dos próprios homossexuais, tratam-na como uma interdição,
algo a não ser dito ou, se dito, longe da ―frontalidade‖ dos homossexuais: ―Tudo que
apareceu de maldoso é sempre anônimo‖ (RODRIGUES C. , 2010, p. 89).
Rodrigues esclarece que optou pelo termo ―homoafectivo‖, ao invés de outros termos para designar
seus interlocutores, por considerar que este termo ―êmico‖, apesar de importado do Brasil, daria conta de
uma totalidade mais ampla que apenas a dimensão sexual (RODRIGUES C. , 2010, p. 3). Ainda que
concordemos com a aplicação do conceito no trabalho da socióloga, em meu trabalho, porém, usarei o
termo ―homoafectivo‖ apenas para me dirigir aos seus interlocutores. Neste trabalho os termos
―homossexual‖ e ―gay‖ se mostram mais convenientes tendo em vista que: 1) ainda que precário do ponto
de vista de sua capacidade de conferir identidade, estes são termos êmicos operantes e que atribuem
significados em Cabo Verde; 2) esta etnografia, pelos rumos que ela mesmo tomou, pretende ter como
foco a (homo)sexualidade dos cabo-verdianos; 3) O ―afecto‖ entre sujeitos homossexuais em São
Vicente, foco desta dissertação, é muitas vezes negado como possível.
78
87
A forma em que a categoria ―hipocrisia‖ frequentemente ganha seu sentido nesta
elite, ou seja, como sendo uma acusação dirigida a pessoas e não claramente como uma
crítica social mais radical está diretamente ligada às características da classe social na
qual é elaborada. Rodrigues nos mostra o ethos individualista desta elite
―homoafectiva‖, que busca se ―acobertar‖:
Na cidade da Praia, apesar de toda essa busca para a modernidade/modernização, não existe, de
forma evidente, uma cultura gay, e as manifestações homoafectivas têm surgido de forma
bastante individualizada e discreta (ou mesmo escondida). [...] Os homoafectivos da elite da
sociedade praiense, pelo contrário, estão bastante retraídos e individualizados: não há uma
busca por uma assumpção pública, e, por vezes existe um esforço de ―encobertamento‖
(RODRIGUES C. , 2010, p. 56).
Contudo, mesmo entre sujeitos dessa elite, é possível captar uma crítica
sistêmica, como no depoimento de Maria, companheira de Joana e também interlocutora
de Rodrigues. Maria dirá que sua ―sociedade desde que não seja confrontada com uma
certa actividade de forma bastante explícita, ela é hipócrita o suficiente para não ser
frontal, nem em termos de perguntar para tirar dúvidas nem em termos de agredir‖
(RODRIGUES C. , 2010, p. 89).
Tal crítica social, contudo, não levará essa elite ―homoafectiva‖ de Praia ao
enfrentamento do status quo. A hipótese de Rodrigues é de que aos ―homoafectivos‖ da
elite da Praia, detentores de capital econômico, intelectual e artístico, portanto
detentores de poder na sociedade praiense (RODRIGUES C., 2010:55), não lhes têm
interessado confrontar politicamente a estrutura de poder existente, inclusive a
heteronormatividade, pois são, em outros aspectos, os próprios beneficiários dessa
estrutura. Em outras palavras, não parece vantajoso aos ―homoafectivos‖ da Praia
colocar em risco seus privilégios de elite em prol de uma identidade sexual
(RODRIGUES C. , 2010, p. 100).
A partir dessa perspectiva classista e conservadora desta elite gay da praiense, a
―hipocrisia‖ parece ganhar o sentido de uma crítica moral àqueles que ousam
desestabilizar a hierarquia de classe posta, ao colocar em questão a sexualidade
desviante dos estabelecidos membros dessa elite. A queixa então desses membros
―homoafectivos‖ da elite se torna moralizante e não aspira a um movimento de
transformação social mais profunda. Constatação que levará Rodrigues a uma autoreflexão crítica sobre não ser da obrigação dos sujeitos ―homoafectivos‖, que estes
participem em movimentos sociais por seus supostos direitos (RODRIGUES C.,
2010:91).
88
Parece desnecessário dizer que em um sistema político democrático, como o é o
cabo-verdiano, não é obrigatória, a qualquer indivíduo, a militância por seus supostos
direitos. Mais importante do que constatar isso é perceber, por um lado, a dinâmica
nativa de desvencilhamento de rótulos sexuais-identitários, como faz Rodrigues, é
verdade, mas, por outro, também perceber os jogos de poder contidos nesta ideologia
individualista, que prega a liberdade do indivíduo ―autônomo‖. Nesta ideologia, o
indivíduo se supõe desprendido de seus pressupostos de classe. Sugiro que esta
ideologia poderia ser uma das possibilidades de explicação para o não-engajamento no
movimento LGBT desses sujeitos da elite de Praia.
Contudo, parece-me que mais do que uma perspectiva deste ou daquele
indivíduo, essa postura cultural de não-confrontação das pessoas em relação a
homossexualidade, a princípio, teria duas explicações possíveis: por um lado, poderia
ser explicado como uma perspectiva pós-moderna de desestabilização das identidades
sexuais antes fixas. Ou seja, tratar ou acusar alguém por sua identidade ou orientação
sexual parece não mais ser gramatical nos dias de hoje. Por outro lado, no caso
específico de uma elite, como a pesquisada por Rodrigues, o aspecto cultural da nãoconfrontação ou silenciamento ganha ainda mais força neste grupo, que gozaria
positivamente do silêncio social em relação ao seu ―desvio‖.
Mas minha hipótese central é que acima de tudo, há um contexto de relativa
―tolerância‖ com a homossexualidade em Cabo Verde, razão pela qual a ―nãoconfrontação‖ e o ―silenciamento‖, expressados no termo ―hipocrisia‖, são
características culturais e não desvios morais, como pensam os sujeitos gays do país. E
que estas características só permanecem porque gozam de uma ressonância tanto entre
os sujeitos ―héteros‖ quanto entre os próprios sujeitos ―gays‖ cabo-verdianos, que
também participam destes jogos simbólicos e performativos e, assim, contribuem para a
sua manutenção. Quando for tratar dos significados da ―violência‖ neste país,
defenderei com mais detalhes a hipótese da tolerância cabo-verdiana. Por ora, creio ser
importante estar bem atento aos indícios que os sujeitos homossexuais fornecem a
respeito disso, como Maria:
Maria: também é assim que não se estaria preparada para um excesso de responsabilidade de
ter que empunhar bandeiras... eu não sou muito de assumir causas no sentido de enfrentar...
batalhas... Cabral morreu... ãh mas vocês deveria lutar por um lugar ao sol... calma eu tou bem
e eu acho que consigo... conseguimos gerir a nossa relação de uma maneira total... as pessoas
perguntam vocês já assumiram... nós assumimos para nós nunca fizemos isso de Hellooo... isso
nunca existiu... vivemos o nosso dia-a-dia. (RODRIGUES, 2010:91, grifo meu)
89
Assim, fica claro desde já que, apesar das reclamações pontuais, de maneira
geral, os ―homoafectivos‖ entrevistados por Rodrigues vivem ―bem‖, ―de uma maneira
total‖. E eu poderia dizer algo parecido para os meus próprios interlocutores no
Mindelo. Suspeito que os interlocutores ―homoafectivos‖ de Rodrigues não aderem a
um movimento LGBT: primeiro, porque, assim como muito de meus interlocutores no
Mindelo, eles já não se afetam ou se sentem representados pelas identidades sexuais
postas nesta sigla (elas já não seriam mais tão gramaticais atualmente); segundo, existe
uma ―tolerância‖ em Cabo Verde em relação à homossexualidade, o que, como
veremos, dificultará bastante a solidificação de um movimento LGBT no arquipélago,
porque o ―inimigo‖ a ser combatido – supostamente a ―homofobia‖ – é mais difícil de
ser localizado.
Tratarei de ambos os pontos ainda neste capítulo. Mas, parece-me evidente que,
acima de tudo, não há uma saturação por parte tanto dos interlocutores da Praia como os
do Mindelo com o silenciamento em relação à (homo)sexualidade – característica
cultural marcante da sociedade cabo-verdiana – que os leve a contestar radicalmente o
sistema de gênero em seu país. Talvez essas sejam boas chaves para pensar a angústia
da socióloga em relação à falta de associativismo dos ―homoafectivos‖ em Praia em
torno da questão. Além do mais, esta tese do não-associativismo é estranha quando a
experiência etnográfica demonstra uma forte tendência associativa no arquipélago,
muito associada aos processos de modernização/cosmopolitização. E, por fim, o
movimento associativo LGBT em Cabo Verde, iria surgir justamente pelas mãos das
travestes de São Vicente, não por acaso, um dos grupos mais marginalizados da
estrutura social daquele país.
De certa forma, Rodrigues corrobora com a constatação do silenciamento da
homossexualidade em Cabo Verde quando demonstra a partir do discurso de Joana que
a prática crioula difusa da ―hipocrisia‖ (lida aqui, como não-confrontação) em relação
aos ―homoafectivos‖ não chega a afetar os sujeitos, tamanho é seu assentamento numa
tradição corroborada socialmente. Seria somente nas relações diádicas, vindo de
―pessoas próximas‖, que sua interlocutora apontaria como algo que a ―magoa mais‖
(RODRIGUES, 2010:93).
Fica claro no depoimento de sua interlocutora Joana que a afetação se dá a partir
do momento em que o sujeito tem suas expectativas frustradas. Tais expectativas,
90
porém, são projetadas sobre os outros mais próximos, a quem se espera certos tipos de
lealdade. O depoimento de Joana demonstra que em relação à sociedade mais ampla já
não se espera lealdades neste sentido, mas o silêncio em relação à(homo)sexualidade,
tão característico dos costumes locais. Assim, a ―hipocrisia‖ (ou a não-confrontação),
enquanto prática, só se torna um problema para aquele grupo, de fato, quando ela
encarna nas pessoas do círculo social daquele sujeito ―homoafectivo‖, que quebram o
pacto do não-dizer e ―tecem ilações‖ ainda que indiretas.
Sobre a constituição deste silenciamento
em Cabo Verde, e mais
especificamente na sociedade da Praia, Rodrigues nos oferece uma boa sociologia
nativa. Desta vez de Ana, outra interlocutora ―homoafectiva‖ de sua pesquisa:
Ana: Ãh... Eu acho que vou usar o termo que usa o crioulo, vamos tentar explicar um
bocadinho, ela (a sociedade praiense) age num estilo ―do pa dobu‖ (fingir-se de doido), ou seja,
eu entendo que a sociedade não é que seja declaradamente, na minha experiência, homofóbica,
mas também não é aberta... há um sistema de alguma hipocrisia, de alguma suposta
indiferença de dizer que somos todos iguais desde que não haja nenhuma atitude chocante...
mas que esteja aberta eu não diria, eu acho que é mais uma sociedade estilo avestruz, ou ―da pa
dobu‖, avestruz que prefere enfiar a cabeça dentro da areia para não enfrentar e não discutir. Eu
vi o caso, por exemplo, do jornal Asemana, que provocou uma única reacção, foi a sua, mas
não houve mais reacções, mas imagino que haja pessoas que fizeram comentários a favor ou
em desfavor, mas não houve muito mais para além disso, é um exemplo para ilustrar o nível de
alguma indiferença que possa existir (RODRIGUES C., 2010, p. 98, grifo meu).
Rodrigues deixa escapar a valiosa dica de sua interlocutora: trata-se de um
―sistema‖. Um sistema nativo que evita confrontos diretos como forma de lidar com o
dado empírico da existência pública da homossexualidade, desde que as práticas sexuais
e as identidades sejam, ao máximo, veladas. Aliás, deve ser dito que a atitude social em
Cabo Verde em relação à homossexualidade parece se assemelhar com atitude social em
relação à sexualidade de uma forma mais ampla: as práticas sexuais devem ser mantidas
na esfera da privacidade, da intimidade e domesticidade. Isso ficará claro quando for
tratado do uso da categoria de acusação ―paneler‖ e do termo ―estrilo‖, assim como
quando demonstrar a atitude de reserva dos meus interlocutores gays em relação aos
seus parceiros afetivos. Ao leitor, peço paciência para essas futuras demonstrações.
Feito o parênteses, a forma como as interlocutoras de Rodrigues descrevem a
atitude social diante delas parece se assemelhar a atitude de ―indiferença‖ do próprio
Estado cabo-verdiano diante do até então crime de sodomia, como já tratamos no
primeiro capítulo. Sugiro que assim como os ―hipócritas‖ da atualidade, narrados pelos
interlocutores de Rodrigues e pelos meus, o Estado cabo-verdiano também parece ter
evitado os confrontos diretos, não levando, aparentemente, ninguém a julgamento até
91
2004, enquanto vigorou a lei que criminalizava os ―vícios contra a natureza‖, entre eles,
a homossexualidade. Mas ao mesmo tempo
é dito não ter reconhecido
institucionalmente estas pessoas enquanto portadoras de alguns direitos79.
Acerca desse silenciamento do Estado cabo-verdiano, Maritza, uma professora
universitária cubana erradicada na Praia, contribuiu insistindo que o tema da
homossexualidade era pouco discutido em Cabo Verde e que ainda não entrou na
agenda pública. Alegou só lembrar-se de ―um ex-presidente do parlamento ter citado
algo sobre os direitos dos homossexuais se enquadrar dentro dos direitos humanos‖.
Talina, atual presidente do ICIEG – Instituto Cabo-verdiano para Igualdade e Equidade
de Género, que fica na capital do país – é igualmente enfática: ―Não há políticas
públicas para LGBT ainda. O tema ainda não está na agenda‖.
Enfim, tanto na perspectiva de profissionais ligados a um tipo de movimento
social que toma a desigualdade de gênero como algo que deve ser combatido e discutido
na sociedade, quanto aos próprios ―homoafectivos‖, a sociedade praiense e o Estado
cabo-verdiano, assim como parte da sociedade mindelense, ―da pa dodu‖, ou seja,
fingem-se de doidos ou que não estão vendo que filhos, vizinhos, colegas de trabalho e
parentes são homossexuais. Preferindo não destratar, não tratam, silenciam-se. É claro
que esta é apenas uma das hipóteses possíveis para explicar o fato do Estado caboverdiano nunca nem ter aplicado as penas sobres ―os vícios contra a natureza‖, nem ter
conferido direitos civis a esta população. Mas uma vez entendido o hábito difuso de
silenciamento dos crioulos em relação à (homo)sexualidade, a postura do Estado caboverdiano como um espelho dessa sociedade parece uma boa hipótese a se perseguir.
E se engana quem pensar que este é um fluxo unidirecional e simplesmente
opressor da sociedade mais ampla ou do Estado em relação a esses grupos minoritários,
os ―LGBTs‖. Este é um processo histórico de retroalimentação entre indivíduos e
sociedade que permanece como marca cultural ainda muito evidente na Praia, mais do
que no Mindelo. Vejamos a afirmação de Rodrigues diante dos relatos sobre as atitudes
que suas interlocutoras tomam diante de sua sociedade:
79
O Estado cabo-verdiano, foi-me narrado diversas vezes, não possui qualquer política pública
direcionada aos grupos LGBT. Sobre a temática do direito à união estável, que tratarei mais detidamente
em outro momento, cito por ora, uma passagem da fala de Ana, registrada por Rodrigues: ―sim em termos
sociais não há outras questões, estávamos a pensar e a tentar transformar numa união de convivência
numa união de facto, formalmente reconhecida e não há lei, não se consegue...‖ (RODRIGUES C., 2010,
p.99 grifo meu).
92
Em termos de vivência, e de como esta forma de agir da sociedade as afecta, as duas afirmam
que esta situação não as afecta, pois levam a sua vida como querem. E percebe-se que
incorporam o agir social da suposta indiferença e não agem como atitudes que possam
provocar algum choque. O refreamento das suas manifestações públicas é visto como um sinal
de respeito pelos outros (RODRIGUES, 2010:99)
Vimos neste depoimento, naquele de Maria sobre a sua não-militância, alegando
viver ―bem‖ e de maneira ―total‖ e na negação recorrente da existência de ―homofobia‖
– como ficará ainda mais claro nas sessões a seguir –, que se as dinâmicas
(homo)sexuais geram alguma dor ou ―mágoa‖, seja na Praia seja no Mindelo, não
parece de forma alguma gerar uma situação sociológica insustentável de opressão
desses sujeitos, com vistas a uma ruptura radical. A própria Rodrigues traz exemplos de
boa relação familiar entre travestes e ―homoafectivos‖ e suas famílias na cidade da
Praia (RODRIGUES, C., 2010, PP.67-8, 78).
Rodrigues tampouco achou que houvesse perspectivas para a emergência no
curto prazo de um movimento LGBT em Cabo Verde (RODRIGUES, 2010:107), apesar
de ele ter surgido no Mindelo poucos anos depois. O que quero dizer é que parece haver
algum equilíbrio ainda que instável nesse sistema em que o silêncio impera e no qual,
de certa forma, também se beneficiam os próprios sujeitos gays.
Ainda que meu foco de análise nesta dissertação não pretenda ser a população
―homoafectiva‖ da cidade da Praia, na Ilha de Santiago, mas os gays de São Vicente,
registro, porém, que os relatos ora expostos nos revelam um aspecto importante do que
chamei de Sistema Hipocrisia: a homossexualidade neste país parece ter sido
socialmente tolerada desde que fosse silenciada. As relações homoeróticas precisam
ocorrer ―sem estrilo‖ (sem escândalo), repetiram-me diversas vezes em crioulo. Assim,
a homossexualidade é permeada por interdições inclusive discursivas, entre elas, aquela
da acusação direta a um homossexual por sua orientação ou práticas sexuais, seja na ilha
de Santiago seja em São Vicente80.
O que parece é que faz parte do funcionamento da matriz heterossexual caboverdiana, para usarmos um termo de Butler, conter as sexualidades nãoheteronormativas. Por um lado, não se confronta os sujeitos homossexuais e, por outro,
manda-se bocas. Mas se o ato de mandar bocas é justamente, como veremos, trazer à
80
Como veremos com o depoimento da traveste Sandrinho, a relação dos familiares com os filhos
homossexuais era particularmente reveladora dessa atitude de não-confrontação. E mesmo no Mindelo,
onde as marcas da homossexualidade são mais permitidas de serem impressas nos corpos, há uma
hegemonia do silêncio, que somente aos poucos é quebrada. Quando tratar das histórias de meus
interlocutores, espero deixar ainda mais clara esta hipótese.
93
tona a (homo)sexualidade do outro de maneira pública, com estrilo, denunciando-a, não
estaríamos aqui incorrendo em um paradoxo? Eu respondo que não, se considerarmos
que além de uma estratégia eficaz de contenção da heteronorma, na medida em que no
ato do mandar bocas as fronteiras entre a norma e o desvio são discursivamente
reestabelecidas e o desvio é denunciado performativamente, o mandar bocas também é
uma estratégia de silenciamento, mas silenciamento dos desejos dos próprios
acusadores, que almejam com aquela performance masculinista, disfarçar seus próprios
desejos em estabelecer relações com parceiros do mesmo sexo. No fim deste capítulo,
este ritual ficará mais claro.
Se até agora privilegiei os dados da dissertação de Rodrigues acerca do sentido
de silenciamento que está contido na categoria ―hipocrisia‖ entre os homossexuais de
Cabo Verde e não os meus próprios dados, faço-o apenas porque esta autora, diferente
de mim, focou nisto em seu campo e, consequentemente, tem mais dados sobre. Mas
mesmo no Mindelo, a não-confrontação e o silenciamento são tão fortes que podem ser
verificados em meu próprio diário de campo. Reproduzo dois trechos, a respeito de
Leandro e da traveste Sandrinho, entre muitos outros possíveis:
Leandro falou sobre como ele enxergava o que ele chamou de ―comunismo moderno‖ em Cabo
Verde. Não entendi direito o porquê da expressão, mas ele dizia sobre o processo de vivência
da homossexualidade no que parecia o sistema ―don’t ask don’t tell‖ (não pergunte, não diga),
apesar de não fazer referência aos EUA ou usar esta expressão inglesa. (―Oficina e os rapazes
do ‗Regala‘‖ 16/10/2013. Diário de Campo, p.199)
***
E aí quando você está a fim? Você leva na sua casa? Você pode levar na sua casa?
Sim. Já teve alguns que eu já levei pra casa. Mas é meio arriscado (risos).
Por que? Sua avó e seu primo não sabem?
Sabem, sabem. Minha família inteira sabe. Porque minha opção sexual é um... Um
homossexual.
Mas eles não gostam então?
Não... Gostar, gostar, no fundo, não gostam, agem normal.
Mas tem problema de levar os caras em casa ou você que não gosta de levar?
Eu não gosto de levar. Mas se levar é como amigo, nada como um parceiro. (Entrevista
Sandrinho. Mindelo, 09/10/2013)
Como nas sociedades mediterrâneas e sulamericanas, onde o conceito de honra é
fundamental e a masculinidade é uma performance pública rigorosamente vigiada,
parece que também na sociedade cabo-verdiana ―todo hecho, nada dito‖ (tudo feito,
94
nada dito) (MURRAY, 1996, p. 246), ou pelo menos feito sem ―estrilo‖ (escândalo),
para usarmos uma categoria do próprio crioulo cabo-verdiano81.
“Contradição”
Contudo, subamos ao Barlavento, pois será na Ilha de São Vicente que se
apresentará mais claramente o segundo aspecto central do que chamo de ―Sistema
Hipocrisia‖: aqui, à diferença do significado captado por Rodrigues na capital Praia, a
categoria ―hipocrisia‖ irá nomear e acusar uma suposta contradição entre valores
heteronormativos e práticas homoeróticas. Mais precisamente, a suposta contradição
estaria no uso de uma linguagem heteronormativa para as experiências homoeróticas.
Uma formulação local para a diferença das experiências em relação à
homossexualidade, ou em outros termos, para os diferentes modelos (homo)sexuais, é
fornecida por uma professora universitária na Praia:
Ela comparou os gays de Praia e do Mindelo. Segundo ela, enquanto os de Praia seriam mais
discretos, os gays do Mindelo seriam mais ―folclóricos‖. ―Muitas pessoas travestidas‖, disseme. Contou-me que tem colegas homens e mulheres gays, mas que não se expõem. Enquanto
no Mindelo seria diferente. (―Chegando no Mindelo e tudo parece perfeito‖. 24/09/2013.
Diário de campo, p.22)
Assim, não se trata obviamente de uma dicotomia ―folclórico/contido‖ ou
―moderno/tradicional‖ ou ―menos avançado/mais avançado‖ entre as ilhas de Santiago e
de São Vicente, como querem muitos dos cabo-verdianos interessados nesta temática,
mas de formas distintas e complexas sobre como uma sociedade vai lidar com
determinado fenômeno humano inevitável, como o são as experiências homoeróticas. A
diferença dos modelos encontrados em Praia e no Mindelo, são respectivamente, muito
próximos dos modelos teorizados por Fry (1982b). Contudo, ressalto que, reproduzindo
as relações de gênero mais amplas do país, o ―modelo hierárquico‖ parece ter uma
hegemonia neste, enquanto o ―modelo simétrico‖, somente aos poucos, começa a ganhar
terreno em ambas as ilhas.
Chegamos à conclusão de que talvez deveríamos
indicado em conversa no facebook: a de que os
homossexuais‖. Elzo e Didi disseram que quando
categorizados como ―lésbicas‖. Pela lógica sexista
focar na questão que Didi já havia me
―homossexuais não se relacionam com
dois ―homossexuais‖ se relacionam são
binária, que me explicaram, de que ser
Sobre o ―indizível‖, por exemplo, das (homo)sexualidades camponesas no interior do Brasil, ver
ROGERS, 2006.
81
95
homossexual aqui é ser efeminado, que é igual a ser mulher. Dois homossexuais que se
relacionam, são duas mulheres que relacionam. E a isso dão o nome de ―Lesbianismo‖.
(―Dando a largada na organização do plano de trabalho‖ 25/09/2013. Diário de Campo, p.42)
Suspeito que haja outro aspecto pressuposto nesta associação, que não somente a
adequação das identidades homossexuais dentro de um sistema de gênero binário, tal
qual sugere o modelo hierárquico de Fry (1982b). Judith Butler em Bodies That Matter,
dá o exemplo de um cartoon, em que a enfermeira/parteira com o bebê recém-nascido
no colo, ao invés de exclamar ―é menina!‖, exclama: ―é lésbica!‖. E a autora afirma:
―Longe de ser uma piada essencialista, a apropriação queer do performativo imita e
denuncia tanto o poder vinculante da lei, que impõe a heterossexualidade, quanto a sua
‗expropiabilidade‘‖ (BUTLER, 1993, p. 232).
A associação ―homossexualidade masculina‖ = ―mulher‖ é um artifício
adaptativo do modelo hierárquico no Sistema Hipocrisia, que por ter como base uma
ideologia sexual binária (macho e fêmea), tenta encaixar a homossexualidade masculina
dentro da categoria ―mulher‖, reatualizando a assimetria de gênero. A brincadeira da
acusação de lesbiandade pode ser, por outro lado, uma forte evidência do caráter queer
dos sampadjudus. Afinal, tal qual a enfermeira, aqueles que enunciam a lesbiandade
entre dois homens gays não o fazem pela fidedignidade conceitual ou simbólica, por
realmente acreditar que se trata de lesbianismo ou por desconhecer o conceito, mas por
uma jocosidade metafórica que denuncia a própria falseabilidade das identidades de
gênero neste sistema, sejam os denunciantes sujeitos gays ou não.
Assim, acrescento o relato de Elzo, em entrevista, para reforçar o argumento:
Sim. Por exemplo, eles acham que todo gay é feminino. A maioria trata todos os gays por
adjetivo feminino, por ―elas‖ e tananan... E não sei, não vem a gente como homem que gosta
de homem. Eles vêem meio ―é afeminado, é mulher, né?‖. É mais essa ideia de que a gente é
meio feminino.
Mas entre vocês, vocês também não se tratam às vezes no feminino?
Sim, sim... (risos) A gente se trata muito no feminino, mas isso não sei... (risos). Acho que
tanto desse costume deles tratarem a gente no feminino, que a gente acaba se tratando mesmo
entre si no feminino. E, mais... Não é. Mais uma... carinhoso, né? mais carinho. Não é no gozo
nem porque você ache que a pessoa seja mulher ou esse tipo de coisa. (Entrevista Elzo.
Mindelo, 30/09/2013)
Tal associação não é novidade na literatura etnográfica, caso muito semelhante
já fora descrito em relação às ―bichas‖ e aos ―homens‖ da cidade de Belém, no Brasil,
nos anos 1970 (FRY, 1989b). As semelhanças dentro do mundo lusófono já é tema
antigo entre pesquisadores, inclusive comparando diretamente Cabo Verde ao Brasil
(ROMANO, 1964), mas o que isso nos importa aqui? Em primeiro lugar, não acreditar
96
ingenuamente que se trata de um sistema absolutamente autóctone e, em segundo lugar,
tentar perceber as especificidades encontradas no Mindelo do século XXI.
Desta forma, se os interlocutores gays do Mindelo se chamam frequentemente
no feminino e o fazem conscientes de que não se consideram propriamente ―mulheres‖,
como esclarece Elzo, é seguro afirmar que os demais – os não-gays82 – têm a plena
dimensão de que os gays e as travestes não são ―mulheres‖. Como veremos no próximo
capítulo, os sujeitos não-gays reconhecem uma distinção clara entre sujeitos gays e
mulheres. Assim, a brincadeira difusa no Mindelo de classificar dois homens
homossexuais que se relacionam entre si enquanto ―lésbicas‖, parece-me evidenciar um
reforço do binarismo sexual por um lado e, ao mesmo tempo e paradoxalmente, uma
postura queer de alguns sampadjudus, que neste ato de enunciação performativa
subvertem e denunciam o próprio sistema binário no qual estão inseridos. Mas
precisamos aprofundar ainda mais no que tange à ―hipocrisia‖.
Assim, volto e aproveito para trazer algumas referências captadas no Mindelo
em relação a esta categoria. Ela aparece diversas vezes na entrevista de Suzete. Na
primeira delas, ela se refere ao episódio de sair travestida pelas ruas do Mindelo na
década de 1990, como estratégia de aniquilamento da ―hipocrisia‖, já então
diagnosticada:
Eu faço parte dos pioneiros gays cabo-verdianos. Os que deram, os que disseram ―basta a
hipocrisia‖, ―basta a discriminação‖. (Entrevista Suzete. Mindelo, 29/10/2013)
Por sugestão vocabular da traveste Suzete, chamarei de sujeitos ―não-gays‖ todos aqueles indivíduos
que não se reconhecem enquanto portadores de uma identidade ―gay‖, ainda que tenham experiências
homoeróticas frequentes.
82
97
Fig. 6 – Militante reivindicando contra a ―hipocrisia‖ no Mindelo Pride (2013), primeira parada gay de Cabo Verde.
FONTE: Página do Facebook da Associação Gay Cabo-verdiano Contra a Discriminação.
A ―hipocrisia‖ também aparece na entrevista de Suzete para descrever que a
homossexualidade deve ser exercida discretamente, evidenciando o sentido de
silenciamento e re-significando a crítica entre os ―homoafectivos‖ de Praia, conforme
nos apresentou Rodrigues.
E... Como é que a relação dos parceiros do mesmo sexo aqui no Mindelo? Como é que...
Como é que se conhecem pessoas do mesmo sexo? Como é que se dão as relações?
As relações são bem... Bem bonitas. Mas como disse, a nossa sociedade ainda é um bocadinho
hipócrita. Então é uma relação bem... toda aí atrás do muro, ―ah, não pode saber‖, ―ah minha
família não pode saber‖ ou ―não venha me visitar‖, ―mas discreto‖, ―não venha...‖. É tudo uma
base de hipocrisia, mas na cama, é um ―ó‖. Na cama, bofe é escândalo. (risos) (Entrevista
Suzete. Mindelo, 29/10/2013)
A mesma categoria aparece na entrevista de Suzete, dessa vez, para descrever a
suposta contradição (e decepção, diga-se de passagem) entre uma performance
discursiva de gênero tradicionalmente masculinista e uma perfomance sexual passiva,
esta atribuída quase sempre ao feminino em Cabo Verde, seja à mulher seja ao ―gay‖:
Mas eles [os rapazes não-gays] são sempre ativos?
Ah, olha, em toda a parte do mundo seria bem hipócrita... E não... Não serei coerente se não
responder perante a nossa sociedade. A nossa sociedade é hipócrita. Não, é muita mentira... [...]
Não, muita mentira. Porque já tive homens na cama, ―Ah, eu sou homem assim‖. De dia ou na
noite, latejando. Mas na cama, tive várias presas, que fiquei com a cara: ―oh, eu que tenho que
fazer o ativo? E você é o machão?‖. Eu fazer ―uhum‖. Mas fazer o que? Com toda aquela
carne, que desperdício, né? (Entrevista Suzete. Mindelo, 29/10/2013)
Percebe-se nas palavras e no tom, que há algo de acusatório na suposta
contradição. Se por um lado a sociedade projeta nos homens homossexuais as
98
expectativas de feminilidade e de passividade sexual, entre outros atributos, os próprios
homossexuais esperam encontrar nos rapazes não-gays, a masculinidade, a virilidade, o
falo rígido e grande e a performance de ativos sexuais, aproximando-se dos
pressupostos do ―modelo hierárquico‖ de Fry (1982b). Essa expectativa acaba por
reproduzir uma jocosidade depreciativa do feminino, como ―presa‖, que acaba por
reproduzir o próprio sistema machista cabo-verdiano. Isto fica muito claro na fala de
Tita, uma traveste mindelense que conheci na Praia, publicada por um jornal local:
―Gosto de homens românticos, quando estou cansada, de ressaca, mas quanto ao resto
gosto de homens muitíssimo cavalo, com H maiúsculo, detesto homem boneca" (A
Nação Online, 19/07/2012)83.
Para a maioria dos gays e das travestes no Mindelo, não é um problema que um
homem goste de ser passivo sexual. O problema para eles e elas é quando se espera que
alguém que se diga ―macho‖ frustre, por hipocrisia, as expectativas dos gays. Afinal de
contas, trazer as marcas da ―homossexualidade‖ (ou do ―feminino‖) no corpo, como
fazem os gays e as travestes, tem alguns ônus para os próprios84. Entre os ônus, o
estigma, pois lá como cá, impera o estigma do passivo sexual (MISSE, 2007). Estigma
que os sujeitos que tem uma postura de passividade no sexo, mas que não se identificam
como ―homossexuais‖ ou que ―não se assumem‖ publicamente enquanto tais ―se
livram‖. Isso gera certo desprezo para com esses sujeitos ―héteros com aspas‖. Mas por
que esses homens ―não se assumem‖? Suzete sugere uma explicação:
E eles não se consideram gays?
Ah, não é que se consideram, é hipocrisia. Eles, sabe? Eles têm medo da, da reação da
sociedade. Então se oprimem ou se auto-discriminam, não sei. (Entrevista Suzete. Mindelo,
29/10/2013)
Em Cabo Verde, alguns homens, por razões diversas, não incorporam a
identidade homossexual, ainda que habitem o universo do homoerotismo, sendo alguns
deles, inclusive, ―passivos‖ no ato sexual. Eles exercem frequentemente sua sexualidade
83
De certa forma, esta fala de Tita aponta para uma maior cautela na leitura performativa do gênero,
típica da teoria queer butleriana. Contestando o caráter performativo das experiências transexuais, Prosser
afirma: ―há trajetórias ‗transgenerificadas‘ e, em particular, trajetórias transexuais, que almejam aquilo
que esse esquema (ou seja, a performatividade) desvaloriza. Em outras palavras, há transexuais que
buscam, em vez disso, ser constativos, que simplesmente buscam ser (PROSSER, 1998, p. 32). Assim,
Tita – e outras diversas travestes com quem convivi – se estão em seus corpos bricolando uma nova
possibilidade de gênero, em seus discursos, porém, há um ideal de gênero tradicional a ser alcançado, ser
mulher, substanciada e ontológica, em conformidade com o binarismo do próprio Sistema Hipocrisia.
84
Vale lembrar que também os ―homossexuais‖ ou ―homoafectivos‖ masculinos no modelo simétrico de
Fry tendem igualmente a performar um gênero que escape desses ônus, como fica claro nos exemplos
retirados da etnografia de Carmen Dora Guimarães (2004).
99
com os homossexuais e esta identidade ―não-gay‖ é uma possibilidade disposta na
cultura cabo-verdiana. Uma das razões da não-incorporação identitária se explica pelo
papel sexual que desempenham majoritariamente dentro do modelo hierárquico: são
ativos no coito (penetram) e este signo não está associado ao feminino e, por extensão, à
―homossexualidade‖ em Cabo Verde. Mas a ―passividade‖ não é o único signo do
universo semântico da ―homossexualidade‖ no modelo hierárquico, existe um universo
de vocábulos, expressões corporais, gostos e atitudes que pressupõem a feminilidade, a
―homossexualidade‖ ou o ―sujeito homossexual‖. Além disso, levando a sério os
nativos, é possível também que alguns homens não ―assumam‖ uma identidade gay,
pelo simples receio de serem discriminados, ainda que nenhum desses rapazes não-gays
tenha me explicado sua identidade por essa via85.
Como veremos ainda neste capítulo mandar boca não será sempre ou por todos
entendido como ―homofobia‖, no sentido de um discurso de ódio contra homossexuais.
Da perspectiva dos sujeitos gays nativos, a atitude dos rapazes não-gays não é
necessariamente ―homofóbica‖, mas hipócrita, revelando mais um aspecto do sistema
da (homo)sexualidade em Cabo Verde. Espero que tenha ficado claro para o leitor que a
categoria de acusação ―hipocrisia‖, mencionada tanto na Praia quanto no Mindelo,
possui dois significados distintos, mas frequentemente acionados pelos sujeitos
homossexuais de Cabo Verde: ela serve para acusar o silenciamento social diante da
evidência da homossexualidade, mas também serve para acusar a convivência e
propagação da heteronorma principalmente por aqueles que habitam o universo
homoerótico, que se configuraria, segundo meus interlocutores, como uma contradição.
Por último, as dinâmicas do sistema de gênero em Cabo Verde têm como ideal
preservar ao máximo a heteronorma, ainda que a homossexualidade seja algo
culturalmente possível. Assim, veremos que a performatividade dos rapazes não-gays
no ritual homoerótico do mandar bocas ou até mesmo em suas abordagens sexuais aos
gays é perpassada por signos de masculinidade até que o ato homossexual consumado
estrangule a possibilidade de coerência (para os sujeitos gays) entre a heteronorma e a
prática homossexual. Mas isso ficará mais claro depois que passarmos em vista pelo
ritual do mandar bocas neste capítulo, e pela abordagem dos rapazes não-gays, no
próximo.
85
Tratarei dos rapazes não-gays no capítulo III desta dissertação.
100
A Revolta das Tchindas e o (re)surgimento do “homossexual”
Antes, porém, é importante dizer que se no sistema de gênero local, onde impera
o modelo hierárquico, existem basicamente ―homens‖ e ―mulheres‖, sendo os
homossexuais masculinos mal-enquadrados como mulheres em corpos de homens e
homossexuais femininas como o inverso simétrico, no sistema classificatório dos
próprios homossexuais, esta divisão binária sexista, típica do modelo hierárquico, não
os é sempre satisfatória. Uma dessas categorias do léxico cabo-verdiano que englobaria
os homossexuais masculinos seria ―tchinda‖, mas como veremos mais adiante, ela
encontra enorme resistência de metonimização entre os gays sampadjudus. Um exemplo
da diversidade de identidades sexuais que opera dentro do universo gay masculino é
encontrado no relato a seguir:
Fechadas essas questões dos questionários e da Suzete pedi ao Elzo para fazer uma lista das
pessoas que poderíamos contatar e lhe entreguei um caderno e caneta. Espontaneamente, ele
elaborou uma classificação própria e fez listas de ―gays‖, ―travestis‖, ―heterossexuais‖,
―lésbicas‖, e ―bissexuais‖. Ao lado de cada nome, indicou se fazia parte ou não da associação.
E ainda criou uma legenda ―M.T.‖, que, segundo ele indicaria, seriam as travestis que apenas
às vezes se transformam. (―Dando a largada na organização do plano de trabalho‖ 25/09/2013.
Diário de Campo, p.41)
Cabe-nos ainda falar sobre o mais recente marco de surgimento ou
ressurgimento das identidades gays em Cabo Verde86. Como já mencionamos no
capítulo um, existiu na década de 1990, uma ruptura simbólica e política que reiniciou
as discussões públicas sobre homossexualidade em Cabo Verde. Convoco o depoimento
de Tchinda, a ―primeira‖ pessoa a se assumir homossexual publicamente no país:
Tá ok. É... Como... Você falou que se diz homossexual... Desde quando você se identifica
assim?
Em 1996, comecei... Tinha 15 anos... não. Aos 13 anos eu descobri que já tinha minhas
tendências de criança. Mas comecei mesmo a assumir, assumir, por volta dos 16 até os 18
anos. Mas já... Quando assumi, já tinha 18 anos que... Vesti no carnaval de travesti, eram 98
mulheres era só que era homem. Eu vesti o maior, aí chamei o jornal, dei uma entrevista, onde
toda parte de Cabo Verde... Eu sou o primeiro homossexual que assumiu em Cabo Verde.
Digo ―surgimento ou ressurgimento‖ porque não posso garantir a partir de meus dados de campo ou da
bibliografia que tais identidades são completamente inéditas na história do país ou se já eram esboçadas
em outros tempos históricos. Porém, parece-me que, a partir dos relatos do antropólogo Luiz Mott, o
esboço de identidades ―fanchonas‖ ou ―homossexuais‖ já poder-se-iam ser encontradas desde o século
XVI naquele arquipélago. O que posso garantir é que, tal como são hoje, elas já pareciam existir desde a
década de 1970, nas Águas Quentes da Laginha, passando pelo movimento político de solidificação
dessas identidades sexuais na década de 1990 e assim permanecem até hoje, ainda que tenham sofrido
críticas, desconstruções e atualizações.
86
101
Então, por isso que eu tenho toda esta fama em Cabo Verde. E não só, em outras partes do
mundo, onde há cabo-verdianos que...
Lhe conhecem
Me conhecem. (Entrevista Tchinda. Mindelo, 27/09/2013)
Tchinda é uma traveste alta, negra e já pelos seus quarenta anos. Na primeira
vez que eu a vi, vestia-se bem, ainda que simples como se espera de uma ida ao
supermercado, que é para onde estava de fato indo. Usava uma calça saruel marrom de
um material mole, fresco. E uma blusa apertada, de tecido fino e estampada, que ia até
seu pescoço, fazendo um conjunto elegante. Brincos, batom vermelho e algumas
pulseiras, além do cabelo quase ―Chanel‖, acompanhavam sua construção feminina.
Chamava-me sempre a atenção o fato dela, assim como outras travestes em Cabo
Verde, não possuir seios, devido a indisponibilidade de políticas públicas locais, assim
como de recursos, materiais e profissionais, necessários aos processos de feminilização
dos corpos travestes87.
Fig. 7 – Tchinda dando entrevista para os meios de comunicação locais a respeito do primeiro Mindelo
Pride (2013). FONTE: Divulgação/Página do Facebook da Associação Gay Cabo-verdiana
87
Em Cabo Verde, país de recursos bastante escassos, diziam-me as travestes, não há a possibilidade, via
saúde pública, de cirurgia de mudança de sexo, tampouco a disponibilização de hormônios femininos.
Além disso, não há em Cabo Verde, um mercado de próteses de silicone, e mesmo que existisse, poucas
seriam as travestes que teriam recursos financeiros para aplicá-lo. No geral, elas alegam não terem
interesse em mudar de sexo, dizem que têm medo da cirurgia e não parecem dispostas a abdicar de seu
órgão sexual masculino. Mas afirmavam que estavam dispostas, caso fosse possível, a implantar silicone
nos seios e nas nádegas. O objetivo era unânime: parecem-se mais ―mulheres‖. O mesmo fenômeno fora
observado por Rodrigues na cidade da Praia (2010, pp. 62-3).
102
No dia em que eu a entrevistei, ela andava acompanhada de sua sobrinha
pequena pelas ruas da morada e de Fonte Filipe sem grandes tensões. Poucas pessoas
olharam para ela, e as que fizeram pareciam fazer mais pelo fato de se estar diante de
uma celebridade do que pelo exotismo da desconstrução de gênero que ela trazia no
corpo. Outras a cumprimentavam. Pegamos um taxi e fomos para sua casa/bar, onde
tomamos uma bebida alcoólica chamada ponche e comemos as famosas ―coxinhas de
Tchinda‖, uns salgadinhos fritos feitos de peixe que levam seu nome. Lá, ela me
apresentou sua mãe, irmãos e sobrinhos. Se o silêncio familiar e social em relação à
homossexualidade parece contínuo na história da sociedade crioula, a possibilidade de
andar assim nas ruas é uma conquista historicamente recente.
É verdade que desde os carnavais mais remotos, a prática do travestismo já
existia em Cabo Verde, como nos descreve o antropólogo cabo-verdiano Moacyr
Rodrigues:
Nos anos 40 toda a gente se mascarava, a euforia era maior. Os que não pertenciam a nenhum
bloco, saíam e ainda saem sozinhos, isolados ou em pequenos grupos mascarados ou
fantasiados conhecidos por mascrinhas, isto é, foliões que eram engolidos pela multidão
ululante de mirones, muitas vezes, como se de alguma tribo se tratasse. Na maior parte das
vezes, trazem máscaras de comediante, de farsante, de travesti, daí o nome. (RODRIGUES M.,
2011:65, grifo do autor)
Rodrigues dirá que mesmo depois dos anos de 1940, a figura do travesti
permanece no carnaval, como figura de subversão da moral pública:
Apesar das modificações sofridas a partir dos anos 40 do século passado, ainda conserva os
seus palhaços, travestis, que atiram farinha ou um tipo de fuligem para cima dos
espectadores/mirones, e usam bisnagas de água suja ou lama (o que hoje já é proibido, por
causa dos abusos), que criticam as instituições, que subvertem a moral pública, que provocam
o inusitado e pela surpresa do acontecer nunca imaginado (RODRIGUES M., 2011:67 grifo
meu).
Não há como saber desde quando o travestismo existe em Cabo Verde nem
quem seriam essas pessoas que se travestiam. Provavelmente havia homens
heterossexuais que apenas dramatizavam jocosamente uma inversão social, no caso a de
gênero, característica do carnaval do Brasil (DAMATTA, 1997), mas também de Cabo
Verde (RODRIGUES M. , 2011, pp. 18-19). É possível que estas perfomances drags do
carnaval não passassem de um ―entretenimento hétero de luxo‖ [―high het
entertainment‖]. Segundo Butler, tais perfomances, como seriam as do travestimento no
carnaval, apenas confirmariam as fronteiras entre as identidades ―hétero‖ e as ―nãohétero‖, como ―um escape ritualístico para uma economia heterossexual que precisa
103
constantemente policiar suas próprias fronteiras contra a invasão do queer‖ (BUTLER,
1993, p. 126).
O que se pode garantir, a partir dos meus dados, é que somente nos anos de 1990
surgem ou ressurgem travestes e gays, que sabemos auto-identificados como tais. Ou
seja, somente nos anos noventa é que surgem ou ressurgem homens que extrapolam o
travestismo para além da festa do carnaval, tomando-a como identidade sexual e
politizando-a. Assim, Rodrigues no relata sobre a participação de Tita e Guta já no
carnaval do final dos anos 1990 e início dos anos 2000:
O outro grupo que saiu de dia e que, com os ―Sonhos Sem Limites‖, disputava os prémios, foi
o grupo ―Os Africanos‖. Superioramente orientado por Aristides da Cruz Gomes, que usa o
hipocorístico Tite e muitas vezes assume a forma feminina Tita, órfão de pai e mãe desde os 7
anos, e que a partir de então tem-se mantido pelos seus próprios meios. Fez o 11.º ano do
ensino secundário. Sempre teve um sonho, de um dia vir a ser advogado, mas as dificuldades
fizeram-no ficar pelo caminho, trabalha e mora no Bairro da Bela Vista, no Discô Flórida. Tita
continou relatando que ―desde criança que brinco o carnaval e gosto muito. Ao tornar-me
adulto quis continuar a fazê-lo, como as outras pessoas, com a intenção de contribuir para a
manutenção de nossa cultura. Em 1998, desfilámos num grupo de carnaval que saiu à noite,
chamado Pomba Gira, e há algum tempo começamos a executar um projecto para o ano de
2001, e assim resolvemos reactivar ‗Os Africanos‘. [...] Acompanhado de ―Tita‖, Agostinho
dos Santos Rodrigues, de 24 anos, mora em Lombo de Tanque, e entre os amigos é conhecido
por Guta, hipocorístico que usa desde criança; esquivava-se a falar muito da sua experiência
carnavalesca, que foi bastante cansativa e trabalhosa. (Rodrigues, 2011:83-4, grifo do autor)
O grupo carnavalesco Pomba Gira – um nome importado dos cultos afrobrasileiros – ainda desfila pelos carnavais do Mindelo e muitos de seus integrantes
foram meus interlocutores de pesquisa, entre eles, Tita.
Fig. 8 – Dery desfilando em um dos blocos no carnaval do Mindelo (2014). FONTE: Divulgação/Página do Facebook
de Dery.
104
Mas a transição entre poder travestir-se apenas num evento anual e tornar-se
uma prática cotidiana no Mindelo não foi algo pacífico. Foi preciso que um grupo de
travestes saísse às ruas do Mindelo, a luz do dia, reivindicando o direito de existirem
como queriam. Quem nos conta é Suzete, uma das figuras importantes do movimento
que chamarei aqui de ―Revolta das Tchindas‖88:
Refiro que eu fui um dos primeiros gays, pioneiros a dizer ―não à discriminação‖. Eu, Tchinda,
eu, a Botina, deus o tenha, Kate, a Katrina, Barbie, então fomos uns dos primeiros a dizer
―basta com essa hipocrisia‖. Então era chocar com a religião, era chocar com a sociedade. Era
como dizer ―oh, seu renegado, que você ta fazendo aqui‖. A sociedade então... Foi assim: foi
bem cruel, bem duro conosco.
Isso na década de 90?
Sim. Fomos apedrejados, fomos... Fomos socorridos pela polícia!
Aqui no Mindelo?
Sim, sim. Mindelo não é tudo... Mindelo também já teve a sua parte. Porque agora, os
homossexuais, que eu referi, ta mais aberto. Tem mais arestas, tem mais aresta, tem mais...
Tem mais espaço, tem menas discriminação. Mas no princípio não foi nada fácil, né? Eu que te
conto... (Entrevista Suzete. Mindelo, 29/10/2013)
Além de trazer essa história, relembro ao leitor a fala da funcionária do Arquivo
Nacional de Praia, que mencionei no primeiro capítulo, para mostrar que existe um
marco relativamente recente para a visibilidade, expansão e ressonância das novas
categorias (homo)sexuais no Mindelo e em Cabo Verde. É na década de 1990 que
surgirá o germe do movimento LGBT hoje existente na ilha de São Vicente. Claudia
Rodrigues sugere o mesmo ao tratar da participação das travestes no carnaval e nos
concursos de Miss Gay dos anos 2000:
Apesar de, em Cabo Verde, existir uma forte resistência social acerca da homoafectividade, a
afirmação pública e médiatica do movimento das Travestis de Mindelo, liderado pela Txinda,
tem demonstrado um esforço estratégico ao desfilarem todos os anos no Carnaval mindelense e
na organização de concursos de Miss Travestis, em S. Vicente e nas noutras ilhas,
despoletando um movimento social com contorno das paradas "gay pride" mundiais
(RODRIGUES C. , 2010, p. 50)
Contudo, a autora prevê que, pela condição de desprovimento de ―capital
político, social e cultural‖, o movimento em prol dos direitos das travestes no Mindelo
dependeria, para ter sucesso, de uma aliança com as instituições de poder reconhecidas
no país (RODRIGUES C. , 2010, pp. 50-1). Em conversa particular comigo, Rodrigues
contaria que depois de escrita a sua dissertação de mestrado, ela coordenaria uma
capacitação de alguns sujeitos gays e travestes do Mindelo, com intuito de empoderá―Tchinda‖, como adiantei, é uma figura traveste que acabou virando à época uma espécie de tótem, que
representaria todos os homossexuais masculinos de Cabo Verde. O nome próprio vira um nome comum,
um vocativo. Escolho nomear assim o evento, pela ressonância social da categoria e em homenagem a
este importante personagem da genealogia homossexual do Mindelo e de Cabo Verde.
88
105
los com as ferramentas técnicas, políticas e jurídicas necessárias ao movimento que
ensaiavam. Mas é somente no ano de 2013 que haverá a primeira passeata pelo orgulho
gay no Mindelo, chamada Mindelo Pride, e a primeira discussão na televisão estatal
sobre o tema da homossexualidade, a qual pude acompanhar ao vivo da sala de
transmissão da emissora.
Assim, se o homoerotismo já existe, como vimos no primeiro capítulo, desde
pelo menos o século XVI em Cabo Verde, um movimento homossexual organizado só
surgirá na transição do século XX para o XXI. E junto com ele, surgem as categorias
contemporâneas de identidade sexual que em Cabo Verde ganham seus contornos
semânticos específicos. Esses novos atores sociais foram e ainda são responsáveis por
uma clara ruptura no sistema de gênero cabo-verdiano, pois não só denunciam seus
mecanismos de funcionamento, como ao instaurarem novas identidades sexuais,
desestabilizam e reorganizam as identidades de gênero e as classificações sexuais no
arquipélago. Requalificam-no como um sistema hipócrita.
Assim, o ato performativo dessas travestes ao saírem de drag pelas ruas é
também um ato político subversivo, que desperta uma reação violenta porque
justamente expõe de maneira desestabilizante a natureza imitativa de todas as
identidades de gênero, incluídas aquelas dentro da heteronorma: ―Ao imitar o gênero, o
drag revela, implicitamente, a estrutura imitativa do próprio gênero – bem como a sua
contingência‖ (BUTLER, [1990] 1999, p. 137). Assim, as mesmas ―deslocam os
pressupostos heterossexuais, ao revelar que as identidades heterossexuais são tão
construídas e ‗não originais‘ quanto as suas imitações‖ (SALIH, 2012, p. 94). Travestirse naqueles dias corriqueiros do Mindelo da década de 199089, ao contrário do que já
faziam nas festas de carnaval, foi parodiar subversivamente, foi arriscar-se a usar o
próprio corpo para desnaturalizar o sistema de gênero cabo-verdiano instituído e, assim,
atualizá-lo.
89
Tal ato não acontece sem que não haja um diálogo com um contexto global de pós-modernidade. Em
―A identidade cultural na pós-modernidade‖, Stuart Hall afirma: ―as velhas identidades que por tanto
tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando
o indivíduo moderno [...] A chamada crise de identidade é vista como parte de um processo mais amplo
de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando
os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social‖ (HALL,
2002, p. 7). Não é a toa que a categoria identitária ―tchinda‖ nasceria para se desvanecer logo em seguida.
106
Anacronia do movimento LGBT em Cabo Verde e posturas queer
Se as novas categorias como ―tchinda‖ entraram para o léxico das classificações
sexuais em Cabo Verde e conquistaram certa operacionalidade, elas não parecem hoje
tão gramaticais. Percebi em campo que as identidades ―homossexuais‖, travestes,
tchindas, ―homens‖, ―gay‖ ―heterossexuais‖, ―bissexuais‖, ―lésbicas‖ etc sofrem – pelo
menos para os próprios sujeitos que nelas se inserem pontualmente ou pelos outros são
inseridos – da fluidez pós-moderna tão típica de outros centros urbanos mundiais.
Percebi uma postura que poderia classificar como queer entre muitos dos gays
sampadjudus.
Para ilustrar trago um caso-limite dessa fluidez não só no nível vocabular, mas
no nível das práticas afetivas e sexuais. Trata-se de uma experiência de namoro entre
um dos meus interlocutores ―gays‖ e uma moça ―lésbica‖, chamada Rex90:
Didi me contou que já teve um relacionamento de mais de 1 ano com uma lésbica, chamada
Rex (Nome original: Regina, mas ela odiava que a chamassem assim). Os três [Didi, Elzo e
Lunga] concordaram que as lésbicas eram aqui quase sempre muito masculinas e que batiam
nas namoradas. Essa Rex, seria um exemplo, disse Didi. Didi contou como foi esse
relacionamento. Que, sexualmente, o combinado é que ela usaria um ―dildo‖, um pênis de
borracha para penetrá-lo, mas que na hora ele não gostou e depois de uma conversa, acabou
que ele a penetrou com seu próprio pênis e o relacionamento se deu assim enquanto durou. No
entanto, apesar do Didi ter uma postura mais feminina, razão pela qual ele disse Rex ter
gostado dele, ele era o ativo sexualmente. E Rex, apesar da postura masculina, era passivo na
relação sexual. No comportamento, no entanto, Rex queria ―colonizar‖ Didi, como ele disse.
Tinha ciúmes dele com outras mulheres e com homens e ―bancava o protetor‖. Essa foi uma
relação muito interessante, muito queer, no sentido dos papeis e as performances de gênero não
serem muito intuitivas e muito fixas. E em relação aos vocativos, também é curioso, porque ele
se referia a ela no feminino, mas se referia a si mesmo também no feminino, mas não eram os
dois enquadrados como ―lésbicas‖, pelo menos não mencionou isso hora nenhuma. Quando lhe
perguntei sobre o sexo, Didi disse que gostava, que o ato sexual era ―ótimo!‖ (―De volta às
entrevistas‖. 30/09/2013. Diário de campo, p.89)
Outro exemplo muito forte da dissolução desses modelos identitários-sexuais
estanques é a performance corporal dos meus interlocutores, traduzido na forma como
construíam seus corpos através de roupas e adereços. O primeiro exemplo seria do Elzo,
que além de militante do movimento LGBT, é costureiro no carnaval:
Não, não inclui. Eu faço tudo isso. (risos) Eu não me visto de mulher, eu posso usar peças
femininas, né? Mas eu dou uma misturada bem (risos).
Uhum.
Eu não tenho nenhum problema com isso. Acho que sou meio (?) com isso.
Meio...?
90
Apenas relembro o leitor que todos os nomes foram trocados, para não identificar as pessoas.
107
Meio andrógeno nessas questões de vestuário, de coisas.
Você articula roupas masculinas e femininas?
Sim. Eu gosto muito. Que eu acho a roupa masculina muito quadrada, muito certinha. Você
não tem muita criatividade. E gosto muito de... Misturando um pouco. (Entrevista Elzo.
Mindelo, 30/09/2013)
Outro exemplo, dessa vez do ator Didi:
Mas, por exemplo, quando você vai comprar roupas, você procura em seção feminina ou
masculina, ou você procura pela peça que te agrada?
Eu consigo achar coisas muito interessantes na seção masculina e na feminina. Desde que me
sirva... Mas aqui... Aqui não tem, a gente reveza. A gente procura umas coisas no armário da
mamãe (risos). E não só: tenho uma irmã também que já sabe do meu gosto e ela sempre
procura umas coisas aí e me dá. E a gente acaba também por achar umas coisas interessantes. E
aproveito também quando saio e acho alguma coisa. (Entrevista Didi. Mindelo, 26/09/2013)
A mim, causaram thauma 91, suas performances públicas, no que tange a
composição do vestuário. Fiquei especialmente surpreso em uma noite de sábado em
que, ao invés da discreta Praça Dr. Regala, ficamos conversando na agitadíssima Praça
Nova, rodeado de centenas de jovens sampadjudus em pleno espaço público e
tradicional de sociabilidade e flerte:
Estávamos, inclusive eu, de gloss nos lábios, uma espécie de batom para tornar os lábios
brilhosos. (Eles sugeriram que eu o passasse e eu aceitei na condição de não colocarem tanto
quanto Cesar havia posto nele mesmo). Cesar estava com um macacão jeans, com os botões do
peito bem aberto. Elzo estava de roupa social masculina preta, mas usava batom vermelho e
Didi, também de batom, e com muita maquiagem no rosto (alguns de nós ficaram brincando,
pois ele estava muito branco até Cesar tirar um pouco da base) a sua roupa era a de costume,
calça comprida e blusa bem decotada. (―O sexo de Didi e Elzo‖ 12/10/2013. Diário de campo,
p.172)
Além da performatividade no que tange a construção de seus corpos, percebi
uma grande fluidez no léxico identitário-sexual deles. Se a aglutinação de todas as
individualidades identitárias no termo tchinda é rechaçada pelos homossexuais
sampadjudus, mesmo os termos mais específicos como ―homossexual‖, ―gay‖,
―passivo‖ ou ―ativo‖, ―traveste‖, ―bissexual‖ parecem já não atender tão bem às
expectativas identitárias dos sujeitos, ainda que o modelo hierárquico seja hegemônico
no Mindelo. Reparei que muitos dos meus interlocutores rechaçavam o enquadramento
em identidades sexuais estanques. Um dos exemplos é de Suzete, uma das líderes do
movimento LGBT local:
Mas, sabe, na vida, às vezes, temos que quebrar a regra, temos que quebrar a regra. Mas
sexualmente sou muito bem servida. Gosto de ser tratada por ―ela‖.
Uhum. E chamado também por ela?
O termo grego ―thauma‖ é cunhado na filosofia de Platão para indicar a experiência que origina o
pensamento filosófico. Significa o espanto, a admiração ou a perplexidade primordiais que conduzirão ao
ato reflexivo.
91
108
Também. Mas para mim não é problema um ―ele‖ ou ―ela‖. O importante é eu saber, ta
consciente do que eu sou.
Mas você se considera homossexual, traveste, ou tudo isso...?
Olha, eu sou uma mistura capaz de fazer toda peripécia, todas essas coisas... E... Eu me
considero um cidadão cabo-verdiano. Hã... Independente de ser gay ou não gay, traveste ou
não traveste... É... um cidadão cabo-verdiano. (Entrevista Suzete. Mindelo, 29/10/2013)
Curioso notar esta questão da repulsa a uma identidade sexual estanque, até
mesmo partindo de um militante da causa. Seguindo esta lógica, que privilegia a
identidade nacional à sexual, a própria Associação Gay Cabo-verdiana, criada e
presidida por Suzete foca outros ―públicos‖ que não somente os ―LGBTs‖, pelas razões
que ela mesma explica:
É... Isso é uma outra questão: você inclui [...] nos objetivos da Associação, os deficientes,
os idosos, as crianças de ruas [...] Por que incluí-las dentro de uma associação gay, né?
Por que que é importante?
Porque... Um fato, o fato de ser gay, não quer dizer que você não pode dar contributo a tua
sociedade, mas sim tentar quebrar essa ideologia da vida, que é bem hipócrita. Então é uma
associação gay – várias pessoas já me fizeram essa pergunta – porque a Associação Gay tem
como objetivo tentar ajudar pessoas idosas, cadeirantes, pessoas é... De terceira... Pessoas com
HIV e outras coisas mais. É dizer que nós todos somos iguais, nós todos somos capazes de
fazer [...] É tentar mudar aquela mentalidade retórica ―és gay, não és... és gays, és capaz só de
dançar e fazer trabalho doméstico‖. Não, és gay és capaz de trabalhar como qualquer cidadão.
És gay és capaz de ser um agente social, és capaz de ser um agente cultural, és capaz de dar um
contributo bem a tua sociedade. É isso. É isso. É essa a questão (Entrevista Suzete. Mindelo,
29/10/2013).
A busca pela igualdade, como se percebe, acaba por eclipsar a própria identidade
sexual, vista agora, de maneira estratégica, não mais como um diacrítico. E isso, vale
lembrar ao leitor, por uma integrante ativa de um movimento que se arroga ―LGBT‖, ou
seja,
um
movimento
de
acrônimo
―lésbicas,
gays,
bissexuais,
travestis/transexuais/transgêneros‖. Com Leandro, um jovem desempregado, que recusa
a militância, essa crítica às identidades sexuais se conforma pelo suposto processo
inerente de objetificação das pessoas:
É... Como você se identifica sexualmente ou você não se identifica dentro de uma
categoria. Você se considera homossexual, heterossexual, bissexual...
Eu sou categórico a mim mesmo. A única, a única categoria que eu me oriento é a minha.
Porque essa, essa história de catalogar pessoas é uma forma de, de por.. este telemóvel dali,
esse isqueiro lá, mas continuam sendo objetos. Ou seja, ser gay, ser transexual, ser... a base é o
mesmo: homens, humanos. Mais nada. (Entrevista Leandro. Mindelo, 26/09/2013)
Com Didi, a recusa da identidade sexual se dá pela preeminência de uma
identidade ―artística‖:
Bom, e como é que você se identifica sexualmente?
(risos)
Agora, né? Porque isso é uma pergunta sempre um... um pouco localizada...
109
(risos) Bom, sexualmente eu me identifico como... homossexual, né? (risos) Mas é muito
difícil me tipificar.. Eu acho que fica... Por exemplo, Vou te dar um exemplo.. As pessoas
gostam muito de me rotular pelo o que eu visto. Não sei se você viu de quando em quando....
(risos) Mas eu acho que não tem nada a ver com a minha identidade sexual. Tem a ver com
uma faceta artística que eu tenho (risos) Sim, mas exatamente, sou homossexual e... é isso aí...
(risos) Não sei... (Entrevista Didi. Mindelo, 26/09/2013)
Mas Cesar era, dos amigos, frequentemente, o que mais se indignava com a
pergunta e como muitos dos outros, apelava para uma justificativa pela ―igualdade‖:
E... Como você se identifica assim sexualmente ou identidade de gênero ou você não se
identifica numa categoria...
Eu não gosto de me identificar como homossexual porque... Eu não vejo a necessidade de ―Eu
sou homossexual, ele é hétero‖. Acho que somos todos gente, pessoas. E eu não quero
pertencer a um gueto, a uma casta. Eu sou igual a todos. Eu não penso antes de agir. Eu não
penso que eu sou gay e eu não quero pensar nisso. Eu quero conviver com as pessoas, sejam
elas quais forem.
E... E desde quando você tem essa visão do mundo?
Desde sempre!
Desde sempre...
Vem de casa.
Jovem já você não queria se identificar, como você se...
Não é uma questão de não querer se identificar. A minha mãe me educou duma forma que eu
tinha que me sentir igual a todos. Não é por eu ter, ser sexualmente... ter uma procura diferente
da maior parte das outras pessoas, eu teria que me identificar como uma casta ou me identificar
como... não! Sou assim e pronto. (Entrevista Cesar. Mindelo, 26/09/2013)
Logo no início, achei que a pergunta sobre a identidade sexual do meu
questionário não era muito boa e percebia isso tanto nas expressões faciais que faziam
meus interlocutores todas as vezes que eu a formulava, como no embaraço de suas
respostas. Pois ela impõe uma categoria na qual eles costumam querer se desvencilhar.
Mas perguntá-la foi importante e continuei a fazê-la, pois me proporcionou enxergar o
próprio exercício de desvencilhamento. E mais ainda: a categoria de forma alguma era
inútil, pois ela operava muitas vezes entre nós e entre eles, ainda que precariamente.
Assim, com Elzo, outro líder político do movimento LGBT local, é possível perceber
que mesmo havendo um rechaço da categoria ―homossexual‖ ou de outras relativas à
sexualidade, enquanto definidoras de identidades, ela continua sendo operacional no
discurso, funcionando, ainda que precariamente, para comunicar identidades, valores e
práticas:
Entendi. É... Bom, agora saindo um pouquinho do assunto da Associação, queria saber
mais sobre você mesmo assim, da sua vida. Como é que você se identifica sexualmente ou
você não se identifica a partir de uma categoria sexual? Mas, basicamente, você se
enxerga como homossexual, heterossexual...
Como homossexual, mas eu não gosto que sejam atribuídas categorias, né? Acho que não é
necessário isso.
110
E... Mas você não gosta, mas se atribui uma...
Sim, claro, tenho que... Já que existe, eu tenho que pertencer a alguma, né? (risos)
Entendi. E desde quando você se identifica assim?
Desde criança, desde novinho, eu acho. Eu tive as primeiras experiências homossexuais com
meus colegas de brincadeira, da altura de 5, 6 anos. A gente brincava muito uns com os outros
e beijava, e tudo isso. Mas... sempre me senti homossexual. Quer dizer, mais no período da
adolescência, né? Que eu meio que lutei um bocadinho contra. Queria arranjar namorada,
arranjei. Mas depois vi que não dava mais, que não era minha praia.‖ (Entrevista Elzo.
Mindelo, 30/09/2013)
Além do que, as categorias ―homossexual‖, ―gay‖, ―lésbica‖, ―bissexual‖,
―traveste‖, ―transexual‖ etc. são categorias políticas, que dão visibilidade a grupos
sociais. Portanto supunha-se que interessaria principalmente ao movimento LGBT
investir nelas. Contudo, como vimos, nem os líderes do movimento gay no Mindelo
parecem, no raiar do século XXI, aceitá-las sem que façam, no mínimo, algumas
ressalvas.
Ao perguntar a vários interlocutores sobre suas participações no movimento gay
local, a maioria deles disse não participar:
1) por questões de embates pessoais com certos líderes:
Aham. Mas você acha que é importante uma associação pros direitos gays?
É importante... Quando tiver uma que seja uma associação de verdade, acho que é importante
sim. Porque essa que existe pra mim não...
Por que?
Porque eu acho que o presidente, o dito presidente da Associação não... não acho que ele seja
capaz de representar a classe. A postura dele e muitas outras coisas, eu... Por isso eu não acho
que... Que eu não me interesso. Se calhar, pela forma como ele faz as coisas, ou melhor, ele
não faz nada, né? Por isso eu não me identifico com a Associação. (Entrevista Lunga. Mindelo,
30/09/2013)
2) pelas formas de atuação da Associação Gay Cabo-verdiana:
E por que você não participa? Por que você não se associou?
É... Talvez é... Digamos que o grupo é... A organização tem falta de organização, estou à
espera que organizem primeiro para depois ser membro.‖ (Entrevista Sandrinho. Mindelo,
09/10/2013)
3) por simplesmente não se sentir representado dentro de uma associação de
caráter segregacionista no que tange à sexualidade, o que era a maioria das justificativas
para não-participação92:
Apesar de Didi achar, em algum nível, importante a existência da associação, ele, no fundo,
não se vê privado de nenhum direito atualmente. Disse que ele circula por onde quer, vive a
Justificativas pautadas na crítica da ―guetização‖ também foram encontradas na cidade da Praia, de
acordo com o relato da socióloga Claudia Rodrigues (RODRIGUES C. , 2010, p. 82)
92
111
vida como quer, fala com as pessoas, respeita e é respeitado e que, por isso, não tem nenhuma
bandeira a levantar. Lunga disse algo parecido. (―A antropóloga nativa, o sentimento egoísta e
a conversa mágica‖ 14/10/2013 Diário de campo, p.181-2)
Mesmo sobre o Mindelo Pride, um dos seus principais organizadores explica, a
posteriori, sua participação supostamente não-política, mas artística.
A hipótese que eu lanço é de há algo de anacrônico no surgimento tardio do
movimento LGBT em Cabo Verde. Trazido pelos ideais da fundadora Suzete, recémregressa da emigração na Itália, o movimento LGBT se organiza formalmente em São
Vicente já no início anos 2000 e se torna uma associação oficialmente reconhecida pelo
Estado por volta de 2010. Seu principal evento formal até hoje foi a Semana Pela
Igualdade que culminou no Mindelo Pride93, uma passeata pelo orgulho gay realizada
em 2013 nas ruas do Mindelo, que teve parceria com uma ONG LGBT das Canárias94.
Esta ONG estrangeira foi de fato a instituição que tornou o evento possível, pelo menos
financeiramente, como me repetiram algumas vezes os líderes locais.
Se na década de 1990, o movimento das travestes do Mindelo foi de certa forma
revolucionário, hoje o movimento LGBT local é pouco orgânico, no sentido de que não
possui demandas sociais sólidas, não está organizado coletivamente e carece de
legitimação do público que pretende representar. A Associação Gay Cabo-verdiana
contra a Discriminação (AGC) é um projeto quase particular de dois de seus líderes, que
não encontra ressonância e adesão social hoje nem em São Vicente nem nas outras
ilhas. Mas para além das críticas aos seus líderes e as críticas à forma como a AGC está
atualmente organizada – ou ―desorganizada‖ – é evidente que o discurso das identidades
sexuais construídas desde o fim da década de 1960 e exportadas para o Cabo Verde
atual tem um assentamento precário. Não faz mais tanto sentido, pelo menos, aos pósmodernos sampadjudus reafirmar identidades (homo)sexuais e se congregar a partir
delas, como forma de lutar por ―direitos‖.
Em 2010, Claudia Rodrigues, por outro lado, apostava no ―estigma‖ como
principal obstáculo ao movimento LGBT de Cabo Verde:
[...] os homoafectivos são estigmatizados pela população e pela sociedade e têm como principal
obstáculo a uma (auto)assumpção pública, reconhecimento social, e organização enquanto
93
Nomeada em língua inglesa, talvez como estratégia de marketing internacional. Mas não descartaria a
sempre resgatada herança inglesa da cidade como justificativa complementar. Até hoje nas ruas do
Mindelo, algumas placas oficiais de sinalização de trânsito, que indicam a parada, têm em sua simbologia,
a palavra ―stop‖.
94
As Canárias são um arquipélago atlântico espanhol, localizado a 1600 km ao norte de Cabo Verde.
112
movimento, o modelo de sociedade patriarcal arraigado no pensamento machista e
heterocentrista vigente no país. Modelo este com manifestações sociais de repressão e auto
repressão, vinculada nos valores moralistas da religião, que actuam enquanto "modelador" de
opiniões de massa dos cabo-verdianos (RODRIGUES C. , 2010, pp. 49-50).
Diferente do que insiste a autora (RODRIGUES C. , 2010, p. 107), não acredito
que o maior impedimento para o movimento LGBT em Cabo Verde seja o estigma
associado aos indivíduos homossexuais. Muito pelo contrário, creio que o maior
combustível para um movimento LGBT seja exatamente o aprofundamento do estigma
e a repressão social, que leve os sujeitos a uma condição de impedimento de vivência
minimamente satisfatória. As experiências de movimentos LGBT pelo mundo
demonstram seus surgimentos a partir de processos de esgotamento das ―minorias‖: seja
tendo como pauta o fim do preconceito difuso (como parece ter sido no caso do Brasil e
em Cabo Verde), seja pelo fim da criminalização (como parece ter sido o caso dos
EUA, da Europa) (FRY, 1982b, pp. 105-6) e agora de África.
Em São Vicente, pelo menos, o ―encobertamento‖ apontado pela autora no
contexto praiense já não é uma estratégia acionada por vários dos sujeitos homossexuais
da Ilha de São Vicente, que performam suas bricolagens de gênero pelas ruas com
alguma liberdade. Assim, hoje não é o estigma que inviabiliza o movimento LGBT no
Mindelo, mas a própria cultura crioula, que ao permitir desde há muito tempo a
possibilidade de existência das práticas homoeróticas, desde que cumpridas as exigência
e interdições, não parece estimular uma luta contestatória mais radical. Em outras
palavras, a não-aderência dos crioulos ao movimento LGBT local, entre outros motivos,
pode ser explicada por uma vivência já minimamente satisfatória de suas
(homo)sexualidades, seja na Praia seja no Mindelo, principalmente depois de alcançada
certa visibilidade, desde a Revolta das Tchindas. Mas acredito que o principal motivo da
não-aderência está no fato de que o léxico das identidades sexuais no qual o movimento
LGBT se funda e assim chega ao Mindelo já não se encaixam bem nas perspectivas
identitárias pós-modernas e queers de muitos dos homossexuais do país. E mais ainda, a
atual luta do movimento LGBT internacional por ―direitos‖ não encontra em Cabo
Verde adesão, como demonstrarei na seção a seguir.
Direitos LGBT: um discurso que não pega
A conversa começou com o Didi finalmente falando para o Elzo que não estava à vontade para
participar da nova associação ACADIS. (Isso porque o Elzo pretendia fazer o lançamento
113
amanhã da nova associação e estava contando ainda com Didi). Explicou que ele acha que foi
bom ter participado da organização do Mindelo Pride – até então organizado pela AGC – mas
que acha que sua contribuição foi (e deve ser sempre) artística. Ele não quer isso para a vida
dele, não tem pretensões políticas nesse sentido. Depois de conversarmos muito sobre
sexualidade, cultura cabo-verdiana e teoria queer, argumentou principalmente que ele não se
identifica primordialmente a partir da categoria ―homossexual‖, mas como ―Didi‖. Foi
interessante, que aconteceu toda essa conversa que narro a seguir e, no fim, Didi disse que
sempre pensou assim – tal qual a teoria queer que eu o tinha resumido – e concluiu com um
puta incentivo para mim dizendo que achava que eu tinha captado já muito bem as coisas, que
eu estava no caminho certo! (―A antropóloga nativa, o sentimento egoísta e a conversa
mágica‖. 14/10/2013. Diário de campo, p.181)
Esta era uma das importantes conversas que vínhamos tendo nas nossas longas
noites na Praça Dr. Regala, no Mindelo. Peço paciência ao leitor para reproduzir a
seguir a longa (mas também reveladora) discussão que tivemos naquela noite, com o
intuito de mostrar a complexidade dentro do movimento LGBT local, assim como a
complexidade das próprias identidades daqueles sujeitos. Tentarei demonstrar que
existem razões mais complexas do que o ―estigma‖ para explicar a atual falta de
ressonância social do movimento LGBT em Cabo Verde.
Elzo, costureiro e vice-presidente da AGC, por razões de discordâncias com o
atual presidente e movido por ambições pessoais, estava em pleno processo de ruptura
com a Associação e pretendia formar uma nova, a ACADIS. Didi, convidado para
participar dessa nova associação, não estava confortável com o convite, pelas razões que
já expus no trecho transcrito de meu diário. Apesar de ele achar importante, em algum
nível, a existência de uma associação LGBT, no fundo, Didi não se vê privado de
nenhum direito atualmente em seu país e em sua cidade. Disse-me que circula por onde
quer, vive a vida como quer, fala com as pessoas, respeita e é respeitado e que, por isso,
não tem nenhuma bandeira a levantar. O professor Lunga dizia algo parecido. Na
verdade, tal fato não me causara tanto espanto, pois uma vez entendida que a existência
pública da homossexualidade, encarnada inclusive nos corpos, era possível no Mindelo,
Didi era apenas um rapaz inteligente, educado e simpático, merecedor do respeito que
lhe conferiam.
Todavia, a conversa na Praça Dr. Regala desenvolveu para uma crítica moral de
meus interlocutores gays sobre algumas das travestes, mas em especial a Dadinha, que
não é escolarizada, que supostamente não é dedicada aos assuntos coletivos e que
parece não ―levar as coisas a sério‖. Segundo as palavras de Didi e de Lunga, Dadinha
só quereria ―saber de homem, de colocar roupa de mulher e sair pra rua e beber‖.
Dadinha, que foi a única pessoa que conheci no Mindelo que ou não sabia ou se
114
recusava sistematicamente a falar o português fluentemente, era uma figura muito
caricata, vivia fazendo caras e bocas, gritava, falava alto, brigava com as pessoas na rua
etc. Contudo, naquele momento eu não entendi qual era a associação entre esse grupo de
pessoas alvo das críticas, as travestes – na qual a Dadinha foi a metonímia – e a
formação da nova associação.
Didi e Lunga me explicaram que elas têm uma visibilidade pública negativa,
devido ao seu comportamento, e que é muito difícil trabalhar com elas – como o foi no
Mindelo Pride, disseram-me. Em algum momento, comentaram também o fato delas
serem (ou terem sido) quase todas profissionais do sexo, como mais um fator
supostamente depreciativo para a imagem dos homossexuais em Cabo Verde. Assim
como Suzete, atual presidente da Associação – também uma traveste e que, segundo
eles, teria problemas de alcoolismo – elas manchariam a visão que a sociedade tem dos
―homossexuais‖ e, consequentemente, manchariam moralmente a nova associação.
Sobre sua inclusão na nova associação, Elzo era a favor de incluí-las, caso elas
quisessem. Didi achava que deveria existir um ―departamento de censura‖, para coibir
certas atitudes.
Mas aquela conversa não estava ainda fazendo sentido para mim. Assim, o
professor Lunga tentou, como sempre, ser mais didático. Disse-me que existiam duas
possibilidades: chamar a Dadinha, estimulá-la, tentar fazer com que ela leve o trabalho a
sério e convencê-la a voltar a estudar ou, simplesmente, não tê-la na nova associação.
Ele acreditava na segunda alternativa, pois achava muito difícil fazê-la levar a sério este
trabalho. Eu, ainda sem compreender, perguntei se ao menos ela queria participar e
perguntei o porquê de nós estarmos falando sobre a participação dela (e das outras) se
nem ao menos sabíamos se ela (e as outras) quer(eriam) participar. Pois, se ela não vai
fazer parte de nenhum cargo diretivo ou de representação da Associação, qual seria o
problema dela participar fazendo qualquer coisa mais trivial, questionei-os. Elzo
confirmou que não a convidou para nenhum cargo diretivo da nova associação e que
também não estava entendendo a questão do Lunga e do Didi.
A moral dessa história é que eles estavam (ainda que com muito cuidado para
não associarem a falta de escolarização ou pobreza diretamente à precaridade de valores
morais e sem querer dizer que eram ―melhores‖ do que elas), fazendo uma crítica moral
e política das travestes, que são, por suposição deles, politicamente desinteressadas dos
115
assuntos coletivos95. Conscientes ou não da história do movimento LGBT local, mas
foram as travestes as pioneiras do movimento, não só no evento da Revolta das
Tchindas, como na criação da primeira associação gay em Cabo Verde.
Naquela conversa esclarecedora, Lunga sentenciou que, de uma maneira geral,
os cabo-verdianos são pouco participativos politicamente e que as pessoas só queriam
saber de ver novela, ao invés de quererem se informar, estudar, participar etc96.
Também ―por ser um país pobre,‖ disse-me, ―o povo acaba tendo que se preocupar
muito com as coisas do dia-a-dia‖, com o ―ganhar do pão‖. Lunga profetizou ainda que
no evento que se realizaria no dia seguinte àquela conversa, uma oficina pública sobre
gênero, sexualidade e movimento LGBT em contextos africanos, no qual eu seria o
palestrante, poucas pessoas apareceriam. E seu prognóstico se confirmou.
Contudo, aquele bate-papo ganhou muito o tom marxista da ―alienação‖ dos
outros – palavra, aliás, usada várias vezes por eles nessa conversa – e eu os questionei
sobre se era realmente – ou somente – uma ―alienação‖ ou duas outras hipóteses: a
AGC não estava sabendo captar as demandas dessas pessoas travestes e daí correria
seus desinteresses (e neste momento eu sugeri que talvez a produção dos seus corpos,
como colocar silicone, fosse algo que as atraísse para o movimento, porque parecia ser
uma demanda concreta e real), ou as pessoas ditas ―LGBT‖ locais realmente não
possuíssem demandas políticas enquanto classe.
Para provocá-los ainda mais, eu os incitei a pensar se suas visões não eram
―colonialistas‖ e fiz a analogia de seus pensamentos com o colonialismo português e a
necessidade pretérita de levar o cristianismo às pessoas. Eles rebateram dizendo que não
pretendiam forçar ninguém aos valores que julgam importantes, mas que era
fundamental que essas pessoas pelo menos os conhecessem. Sabendo que não eram
cristãos e possuíam, em sua maioria, até certa aversão às religiões, eu lhes perguntei
então o que eles achariam se alguém de uma igreja quisesse que eles mesmos ―pelo
menos conhecessem o cristianismo‖. Eles responderam que não iriam, mas
imediatamente Elzo e Lunga argumentaram que eles não falavam no sentido de obrigar
95
Uma discussão semelhante pode ser encontrada num debate de 1979 do grupo Somos de São Paulo,
descrito por Fry (1982b, p. 106).
96
A socióloga Claudia Rodrigues afirma algo do que parece ser uma visão da elite a respeito dos pobres
do país: ―em Cabo Verde, no geral, as pessoas são pouco dadas a empenharem-se em causas ou "darem a
cara" por qualquer movimento, algo que podemos considerar como um estilo de vida, oposto a aqueles
que têm uma vivência mais militante‖ (RODRIGUES C. , 2010, p. 87)
116
ninguém a ter a tal ―consciência‖, mas que deveriam proporcionar às pessoas a
possibilidade delas conhecerem, ao menos.
Perguntei se as travestes, elas mesmas, tinham algum interesse que fosse por
conhecer: ―Será que as travestes já não estão felizes nas suas condições?‖ ―E se elas já
vivem uma sexualidade desejada, baseada nesses encontros sexuais fugazes?‖
Questionei-os desta forma porque já tínhamos uma proximidade suficiente que
possibilitava um debate acirrado e simétrico e porque estas perguntas começavam a
surgir como questões urgentes para mim no campo. Razão pela qual aproveitei o
momento para produzirmos juntos uma reflexão sobre as reais condições e demandas
dos gays cabo-verdianos. Assumindo eles mesmos a atitude colonizadora, típica de
alguns movimentos de direitos humanos, não restou outra coisa se não Elzo confessar:
―Se isso é colonialista, então eu sou colonizador mesmo‖.
Para estimular o debate, confessei a minha incompreensão do movimento LGBT
local, pois eu não conseguia enxergar atualmente uma base social sólida para o
movimento. Disse-lhes que pelos seus discursos, eu não conseguia perceber as
demandas nascendo de dentro para fora, um pressuposto meu sobre como deveriam ser
os movimentos sociais de sucesso. E lhes perguntei de maneira exagerada se existia
alguma crise em Cabo Verde, que justificasse o movimento: ―Estão matando
homossexuais aqui?‖ ―Estão discriminando nas ruas homossexuais a níveis
inaceitáveis?‖ ―As pessoas que não conseguem se transgenerizar estão se suicidando?‖
Para todas as perguntas eles responderam sempre que não. Nem perguntei sobre
a questão do desemprego, porque ela não atinge só os homossexuais, mas é estrutural no
Mindelo e também não perguntei sobre se as famílias expulsavam os jovens
homossexuais, porque a resposta, de acordo com as minhas próprias entrevistas, eu já
sabia que também era, no geral, ―não‖97. Elzo, porém respondeu afirmativamente à
questão do suicídio, mas não deu detalhes, como quem, contrariado, apenas simula um
contra-argumento. Não duvido que possa haver algum caso, mas ninguém nunca me
narrou qualquer situação de suicídio por razões de estrangulamento psíquico e opressão
social em relação à própria (homo)sexualidade em Cabo Verde.
97
Exceto em alguns casos narrados a mim, mas sem muitos detalhes, de famílias ricas do país que
mandavam seus filhos para estudar na Europa e nos EUA, assim que percebiam que eles eram ou tinham
tendências homossexuais. O intuito, diziam-me, era de esconder esses filhos da opinião pública local.
117
Eu já imaginava que as respostas seriam negativas, porque vejo que a
homossexualidade no Mindelo, apesar do ―machismo‖ e de alguns atos de violência
muitíssimo esporádicos, é ―tolerada‖ pela sociedade. E, arrisco dizer, até mesmo na
Praia98. Vários dos meus interlocutores usaram, inclusive, a categoria ―tolerância‖ para
se referirem à atitude dos seus compatriotas. Eu observava diariamente que as pessoas
os cumprimentam nas ruas e que eles são, de alguma forma, respeitados. Até quando
alguém manda boca para eles nas ruas, quase nunca é ofensivo, da perspectiva deles.
Pelo contrário. Na rua do Mindelo, os rapazes chamam os gays de ―gostosas‖, param
para conversar, falam para os gays os levarem para onde estiverem indo, dizem que
estão ficando dodu com a presença deles (dodu no sentido de ―excitados‖). E mesmo
quando chamam de ―panelers di merda‖ (o que há de mais insultante na terminologia
local), muitas vezes, o objetivo final é chamar suas atenções para que haja alguma
relação sexual, como veremos nas sessões a seguir.
Eles me diziam que há ―discriminação‖ por eles serem gays e eu sentia que
havia alguma tensão – principalmente quando via que muita gente os reparava na rua,
em uma cena clara de que suas identidades sexuais impressa em seus corpos não são tão
triviais socialmente. Mas no Mindelo, está-se longe de haver o ódio contra
homossexuais, que existe, por exemplo, no Brasil ou na África continental. O professor
Lunga me disse algo que eu ainda não sabia, mas a ―homossexualidade‖, ainda que
silenciada, vem sendo tema de debates na escola. E me contou que a opinião mais antihomossexualidade que escutou, no seu tempo de liceu, era de um colega ―evangélico‖
que disse que não tinha nada contra, mas que não a achava ―uma coisa muito legal‖.
Talvez essa ―tolerância‖ ou abertura para o outro possa ter algo da conformação cultural
incorporadora da sociedade crioula, como conceituada por Trajano Filho (2003, 2008).
Todavia, se voltarmos aos dilemas do atual movimento LGBT local, fica-se
claro que havia um sentimento de culpa dos líderes em relação ao seu próprio trabalho
frente à AGC. Algumas vezes, captei reclamações sobre a falta de adesão ao
movimento, justificada por Elzo, como culpa da própria AGC (e dele, por consequência,
98
Em uma de minhas últimas noites em Cabo Verde, conheci dois homossexuais na capital, uma delas era
a famosa Tita, a outra, um jovem rapaz chamado ―Graça‖. Elas, que preferiam ser chamadas no feminino,
vestiam-se de maneira claramente feminina: Graça com uma faixa na cabeça e Tita vestida com roupas
femininas. Mesmo vestidos assim e performando vários outros signos de feminilidade nas suas expressões
orais e corporais, as entrevistei na rua, em um bairro periférico da cidade, por onde costumavam andar. Se
nesta conversa, Tita contou-me ter sua casa destruída por um incêndio criminoso logo depois de dar uma
entrevista contando sua vida para um jornal local, ela terminou a conversa dizendo que estava atrasada
para o culto na Igreja Universal do Reino de Deus, onde, segundo ela, ela era muito bem acolhida.
118
por ser o vice-presidente e não ter feito, segundo ele, quase nada em seus três anos de
existência). Senti-me à vontade para provocá-los sobre se as demandas que o Elzo tinha
estavam sustentadas em demandas sociais. Desistindo de tratar das travestes e da sua
suposta ―alienação‖, pois já estava para mim clara a crítica moralmente conservadora e
de classe dos meus interlocutores, tentei desviar o foco da discussão e perguntei se não
existia uma classe média gay na cidade. Eles ficaram pensativos, mas concluíram que
ela existia. Perguntei para sugerir em seguida que a essas pessoas, de uma maneira
geral, as demandas do movimento LGBT que esses líderes perseguiam poderiam ser
mais interessantes.
Isso, porque o movimento LGBT internacional é hoje no ocidente
majoritariamente um movimento burguês, que está atualmente interessado em legislar
sobre a propriedade, sobre os direitos civis, trabalhistas, previdenciários etc, uma vez
conquistadas minimamente a visibilidade, a descriminalização e o reconhecimento.
Argumentei que talvez fosse interessasse para a classe média dividir patrimônio,
compartilhar plano de saúde, previdência etc, pois a esse grupo sócio-econômico faria
mais sentido falar em direitos sobre patrimônio. Pelo fato um tanto evidente de que eles
são quem, de fato, possuem patrimônio.
Perguntei irônica e retoricamente: ―as travestes têm patrimônio?‖ ―Têm casa?‖
―Bens?‖ ―Têm plano de saúde?‖ ―Então a que lhes interessa o casamento em sua forma
jurídica, se elas já vivem o travestimento e a sua sexualidade mais ou menos livre por
aqui?‖ Insisti que talvez lhes interesse como pauta política transformar seus corpos,
porque é isso que lhes parecia interessar nas entrevistas e conversas rotineiras. Pareciame que mais do que querer casar – ou antes de se casar –, elas queriam ser mulher. Mas
esta não era uma pauta prioritária para AGC, no que tange às ―transexuais‖.
Enfim, dessa conversa e outras, cheguei a algumas conclusões, entre elas, a de
que a ACADIS é um projeto pessoal do Elzo. Certa hora, ele mesmo interrompeu a
conversa pra dizer algo como ―vou confessar uma coisa muito egoísta, mas eu quero e
estou fazendo a associação porque eu acho importante no dia que eu quiser casar, eu
poder‖. Outra conclusão é que se no debate sobre identidade de gênero, as travestes
parecem reforçar o sistema sexista ao quererem transformar seus corpos para que se
aproximem cada vez mais do que é ser mulher, reafirmando o caráter substancial desta
categoria, por outro lado, sua postura em não conceder ao Estado o poder de
119
reconhecimento de suas afetividades e corpos parecem de alguma forma realizar o
projeto político defendido por Butler: ―Ser legitimado pelo Estado é aceitar os termos de
legitimação oferecidos e descobrir que o senso público e reconhecível da pessoalidade é
fundamentalmente dependente do léxico dessa legitimação‖ (BUTLER, [2002] 2003, p.
226).
O que registro e quero aqui enfatizar é que em meus dias no Mindelo, não
parecia existir sustentação social sólida para a existência de uma associação gay caboverdiana, pelo menos não nos termos que estavam postos. Várias das pessoas com quem
conversei ou entrevistei não se sentem privadas de direitos. Algumas delas chegaram
inclusive a sugerir que o trabalho da Associação deveria ser o de auxílio a jovens
homossexuais para que passem bem pelas suas fases de descobrimento e dúvidas, mas
direitos legais perante o Estado não aparecia nas falas das pessoas. Elas falam mais em
educação da população para uma vivência na diversidade, com menos discriminação.
Mas uma educação ora defendida de ser dirigida aos pais, ora às crianças. De fato,
pouco citavam reivindicações ao Estado99.
E por que, assim, você pensou em participar? Você acha que é importante...
Pensei em participar não porque... por lado ideológico que é ―propósito‖ da Associação. Mas
pelo... pela orientação, mas... direi que a associação deveria ser mais para um lado orientativo.
Tipo um... uma plataforma de apoio. Especialmente para os mais jovens. Acho que, pra mim,
não creio que seja... que já preciso de uma plataforma, mas para os que virão, vão precisar
muito.
Então você não pensa a Associação como um espaço político para conseguir direitos...
Não! Direitos todo mundo tem. É... as pessoas é que não veem isso. Não respeitam os direitos
delas, imagina o do outro. (Entrevista Leandro. Mindelo, 26/09/2013)
Algo que ficará mais claro no próximo capítulo, mas que é importante já
mencionar, é que a homossexualidade entre meus interlocutores do Mindelo é
majoritariamente vivida de maneira não-conjugalizada e dificilmente romantizada. Seja
nas classes populares seja nas médias. Mesmo havendo uma queixa e angústia de
muitos por essa falta de romantismo, a homossexualidade é vivida majoritamente em
encontros sexuais pontuais, diferente dos casos selecionados por Rodrigues (2010).
Aliás, de acordo com a bibliografia etnográfica, isso não é só um ―problema‖ dos
homossexuais, também a heterossexualidade encontra barreiras em Cabo Verde para se
conjugalizar, pelo menos em nossos termos (LOBO A. d., 2012; MIRANDA, 2013).
99
Arrisco dizer que isso se deve a uma percepção generalizada da população cabo-verdiana sobre a
escassez de recursos do Estado. Frequentemente umas das mais fortes imagens que meus interlocutores
promoviam de seu país em conversas comigo é a de um país ―pequeno‖, ―pobre‖, ―sem recursos‖,
―dependente das remessas internacionais‖.
120
Fig. 9 – Steffy carrega uma placa com os dizeres ―Quero casar em C.[Cabo] Verde‖, como uma das pautas
do Mindelo Pride, que, no entanto, destoa das práticas conjugais locais. FONTE: Divulgação/Página do Facebook da
Associação Gay Cabo-verdiana.
Nesse sentido, nesta mesma conversa, Didi sarcasticamente perguntou a Elzo,
defensor do casamento entre pessoas do mesmo sexo como pauta prioritária do
movimento LGBT local: ―Ok. Se instauram o casamento [entre pessoas do mesmo sexo]
aqui. Quem vai casar com quem? Você vai convencer o rapazinho ali a casar?‖ Didi
estava se referindo aos rapazes não-gays que eventualmente ―tem com‖100 eles. E
prossegue: ―Eu vou casar com o Lunga? Com a Tchinda?‖ O que Didi estava querendo
dizer é que como homossexuais não namoram homossexuais, coisa muito me dita por
lá, assim não tinha razão para ter casamento se não havia pessoas que perspectivassem
isso. O mesmo nos relata a traveste Bela, que retomo:
Nós em Cabo Verde, nós é gay, nós é traveste, mas nunca se envolver mais gay. Nós gostar de
se envolver mais homem. Homem que não gostar de levar na bunda. Homem. Ihh... Nós gostar
de homem, não gostar próprio de gay, diferente dos estrangeiros. No estrangeiro, gay gostar de
gay. Mas nós não, nós é diferente. (Entrevista Bela. Mindelo, 09/10/2013)
Didi defendeu ainda que ―demoraria décadas para mudar a cabeça dos homens
cabo-verdianos‖, para que quisessem se casar. Esta era mais uma das provas da falta de
sustentação do movimento LGBT a partir de uma demanda social forjada externamente.
Mas não só isso: a conjugalidade é uma questão mais ampla que afeta também os
heterossexuais em Cabo Verde. Trata-se de uma forma de vivenciar as relações
100
Ter com é uma locução crioula que abrange alguns de significados no campo semântico das relações
pessoais. Quando um sujeito tem com outro, isso poderá significar que o sujeito teve uma única relação
sexual com o outro ou que com ele mantém relações sexuais contínuas. Por outro lado, a expressão pode
se referir também a um relacionamento afetivo/sexual com alguma fixidês que se estabeleça entre dois
sujeitos. A locução, contudo, não está restrita ao universo homoerótico e é também acionada em relações
heterossexuais.
121
conjugais, que tem nas categorias ―mãe de fidji‖ e ―pai de fidji‖ suas maiores
expressões101. As formas como se constrói a masculinidade do homem cabo-verdiano
(LOBO A. d., 2012) tem seus ônus e bônus tanto para as mulheres quanto para os autoidentificados ―homossexuais‖, com quem esses homens costumam se envolver
(MIRANDA, 2013). Assim, no Mindelo, os rapazes gays valorizam a virilidade, a
―pegada‖ dos outros homens não-gays, a forma máscula como abordam, mas, e ao
mesmo tempo, se queixam algumas vezes da falta de romantismo, da falta de uma
relação fixa e de ―carinho‖. Existe uma angústia de alguns desses meus interlocutores
que compartilham dos valores românticos, da monogamia e da conjugalidade – que
chegam de muitas formas, mas em grande parte através das novelas brasileiras. A
verdade é que não são somente os gays sampadjudus que reclamam dessa falta de
afetividade dos homens cabo-verdianos, as mulheres por lá parecem fazer o mesmo102.
No próximo capítulo tratarei melhor das abordagens dos rapazes não-gays aos
gays e vice versa, assim como tratarei das maneiras como se dão as relações sexuais e
afetivas entre ―homens‖ e ―homossexuais‖ no Mindelo. Por ora vejamos apenas o relato
de Didi, em entrevista, a respeito do assunto, para que se compreenda o dissenso entre a
atual pauta do movimento gay internacional, pelo menos aquela perseguida na maioria
dos países ―ocidentais‖, e o que de fato acontece nas ilhas de Cabo Verde:
E aí.. Bom, a relação sexual acontece, mas existe alguma cumplicidade, existe alguma
relação afetiva, de ciúme, de saudade...
Hum... não. Se existir, acho que é imediatamente aniquilado por eles mesmo. Porque a pressão
é tanta... Eles, não sei, muito confuso... Não dá mesmo, não dá. Eu diria que não existe
qualquer tipo de afetividade, não... Não existe. Se começar a despontar alguma coisa, como te
disse, é anulado imediatamente. Tem nada. Não tem como mesmo. Comigo e com os outros
também. É claro que existe outros casos de alguns que conseguem levar, não sei o que... Mas
porque eles investem do seu tempo e insistem e insistem e sofrem, sofrem, sofrem, sofrem,
sofrem... Mas eu não! Eu costumo dizer que eu gosto muito, muito de mim mesmo. (Entrevista
Didi. Mindelo, 26/09/2013)
Assim, até ―namoro‖, uma categoria tão naturalizada em diversos contextos
culturais distintos, é uma categoria de significado muito instável e distinto no universo
homoerótico de Cabo Verde, como elabora Leandro:
Mas já namorou? Já foi casado?
101
Trata-se categorias êmicas cabo-verdianas que designam pessoas com quem se tem uma relação a
partir do compartilhamento de um descendente. ―Pai de fidji‖, por exemplo, é uma categoria que
privilegia não o laço conjugal entre homem e mulher, mas a relação que o homem tem com uma mulher, a
partir de um filho.
102
Esta é, inclusive, uma das razões me ditas por Mônica, uma amiga sampadjuda entrevistada, do porquê
ela se envolver afetiva e sexualmente com outras moças.
122
Não. ―Namorado‖ entre aspas, por aqui, por aqui não se deve nem utilizar esta palavra.
Ah é? Por que?
Namorar aqui é... tem... é como uma balança: tem um prato pra cima e outro pra baixo. É
difícil equilibrar-se. Porque o parceiro nunca, nunca é totalmente entregue a ti. Tem sempre
uma conjuntura ou um outro. Um outro lado envolvente. É uma coisa, tipo... Uma salada.
E você está falando de parceiros homens especificamente?
Especificamente.
[...]
Você teria vontade de namorar?
Com certeza! É a minha maior vontade.
E não consegue porque esses homens não assumem, não querem esses relacionamentos...
É... (Entrevista Leandro. Mindelo, 26/09/2013)
Assim, é possível perceber que pautas do movimento LGBT internacional, como
o reforço das identidades presentes em sua sigla, assim como a legalização das relações
conjugais, não se encaixam automaticamente no contexto cabo-verdiano. Tampouco a
pauta da descriminalização das práticas homoeróticas – tal qual existe na África
continental ou em outros lugares – é uma pauta viável em Cabo Verde, haja vista que a
criminalização da homossexualidade, mesmo quando existiu, nunca pareceu ser uma
questão no arquipélago103. Além disso, meus interlocutores renegavam discursivamente
as identidades sexuais, assim como detectavam uma impossibilidade de efetivação de
relações conjugais burguesas em sua cultura, o que inviabiliza uma luta política por
legalização dessas relações, que sequer existem de maneira significativa em Cabo
Verde.
Isso não quer dizer que Cabo Verde esteja ―atrasado‖ nas discussões sobre
direitos LGBT como quer certa elite local, pelo contrário: em algum nível Cabo Verde é
mais moderno que o próprio movimento gay, que ainda está refém de uma narrativa de
fortalecimento de identidades sexuais104. Mas diante de todo esse ruído aparente entre
uma pauta global dos direitos humanos e o que de fato ocorre no arquipélago, como
explicar então a persistência do movimento LGBT em Cabo Verde?
Não tenho por ora, condições de responder com precisão a esta pergunta, mas
sugiro que existem algumas hipóteses para a perpetuação da AGC e da criação da nova
ACADIS no Mindelo, ambas denominadas associações civis pelos direitos LGBT: 1)
103
Sobre a criminalização da homossexualidade em Cabo Verde, ver capítulo I desta dissertação.
O mesmo pode ser dito para as críticas externas e internas sobre a suposta desestruturação das famílias
cabo-verdianas. Lobo ao tratar do fenômeno na Ilha de Boa Vista, demonstra que ao contrário das críticas
eurocêntricas, que concebem um modelo específico de família, tratar-se-ia em Cabo Verde de ―outra
forma de organização familiar‖ (LOBO A. d., 2007, p. 14).
104
123
Elas são fruto do esforço de alguns indivíduos em promoverem não só as causas que
julgam socialmente importantes, como suas próprias carreiras políticas; 2) São frutos
também de um espírito sampadjudu que, como vimos no primeiro capítulo, se pensa
cosmopolita e, portanto, em diálogo direto com as questões globais mais caras da
atualidade; 3) faz parte de uma concepção de modernidade muito disseminada em Cabo
Verde – desde, pelo menos, a implantação do regime neoliberal na década de 1990 –
que as associações civis são espaços de atuação política e de exercício da cidadania, por
excelência, principalmente em um contexto de Estado com recursos escassos; 4) São
expressões das angústias de um grupo em relação a um sistema ―hipócrita‖, no qual eles
não se sentem realizar plenamente seus projetos de sujeito.
Ainda que essas hipóteses sejam plausíveis, o movimento LGBT de Cabo Verde
precisa de alguma agenda para sobreviver. Se como vimos, as pautas da
descriminalização, da visibilidade, do casamento, entre outras, não parecem fazer
sentido em Cabo Verde, sobraria então ao movimento gay local apostar na
―homofobia‖, como ponto a ser combatido. Mas ela existe no Mindelo?
“Homofobia”, “preconceito” e “violência” no Mindelo
Atravessamos a rua em direção ao bar onde se realizaria o encontro com o diretor e, no
caminho, observei pela primeira vez desde que cheguei, a abordagem dos tais ―héteros‖, dos
―HSH‖, dos ―homens‖ com os meninos (e comigo também, afinal estávamos juntos). Cesar me
alertou: ―Escutou? Chamaram a gente de ‗coisinhas‘. Igual em português mesmo. É assim que
eles fazem‖. Eu observei na mesma hora e vi o rapaz que havia mexido conosco na esquina da
Rua Baltasar Lopes da Silva, ainda estava olhando. Cesar completou que isso não era
―homofobia‖. (―Mais um dia de trabalho, mas é sexta-feira‖ 27/09/2013. Diário de Campo,
p.61)
Seja nas entrevistas que muitas vezes foram realizadas em grupo de amigos, seja
nas nossas intermináveis noites de conversa na Praça Dr. Regala, uma permanente
questão se colocava para nós: há ou não ―homofobia‖ em Cabo Verde? A categoria
―homofobia‖, um neologismo criado pelo psicólogo George Weinberg em 1971 e que
de tão falada já possui até dicionário próprio105, não fora introduzida por mim, como por
um vício etnocêntrico, no léxico dos gays do Mindelo. Como vimos no trabalho de
Rodrigues (2010)106, a categoria já fora por eles incorporada dos fluxos globais de
(DELANOË, Bertrand (org). Dictionnaire de L‘homophobie. PUF: Paris, 2003)
Claudia Rodrigues, porém, naturaliza a categoria, afirmando que a ―dominação masculina produz
homofobia‖ (RODRIGUES C. , 2010, p. 29)
105
106
124
informações, das experiências emigratórias, da mídia e do movimento gay internacional,
para dar conta, entre outros, de um fenômeno típico da sociedade crioula, o mandar
bocas107.
O interessante para esta perspectiva antropológica não é desvendar a origem da
categoria ―homofobia‖, mas apreender suas concepções nativas, em especial como ela
aqui se articula com o mandar boca e como, assim sendo, ela ganha um novo contorno
semântico. Concepções estas, importa dizer, que de maneira alguma se encontram
acabadas, conquanto são permanentemente alvo de disputas de significado. Nesse
sentido, uma grande questão que gera acalorados debates entre os gays do Mindelo é até
que ponto as bocas que se mandam aos gays nas ruas da cidade podem ou não ser
enquadradas como ―homofobia‖.
Não é consenso entre meus interlocutores que as bocas mandadas sejam
necessariamente pejorativas ou humilhantes. Não há uma percepção compartilhada de
que bocas são sempre formas de violência simbólica. Pelo contrário, há quem considere
entre eles que elas podem ser simplesmente uma forma de flerte, ainda que desajeitada.
Há aqueles que não vinculam as bocas ao ―preconceito homofóbico‖, alegando que elas
são uma característica da jocosidade cabo-verdiana mais ampla que não se restringe à
sexualidade. Como é a opinião de Lunga, um professor de 36 anos que se identifica
como ―homossexual‖:
E são sempre pejorativos assim?
Mas eu nem acho que é pejorativo, eu acho que é mais pra fazer graça. Eu não... Acho que é
mais pra fazer graça, não é no sentido de...
De humilhar, por exemplo...
Acho que não. Pelo menos eu... Que eles sempre com ―ah, olha... ele é bicha, é viado...‖,
sorrindo não sei o que, não é não. Acho que é mais pra fazer troça, pra... Pra brincar. Porque
aqui em São Vicente as pessoas gostam muito de... brincar com as outras pessoas. Falam assim
―você é gordo‖, mandam boca, se você é magro, mandam boca...
É só mais uma...
É, mais um. Pra mim, é nesse sentido assim. (Entrevista Lunga. Mindelo, 30/09/2013)
A diversidade de percepções sobre as bocas nos revela um pouco da sociedade
crioula do Mindelo e, no caso da homossexualidade que ora nos interessa, o double-bind
―Mandar bocas‖ é uma locução verbal crioula que permite um conjunto mais ou menos alargado de
significados. Pode, portanto, se referir tanto a fazer brincadeiras entre amigos, tidas como inocentes, até
operar como deboches, insultos e humilhações. As bocas podem ser dirigidas aos alvos típicos de
―troças‖ e ―gozações‖, como os gordos, os muito magros, os do interior rural, os sem dentes, os
efeminados, os muito estúpidos e quaisquer outros identificados como ―desviantes‖.
107
125
(BATESON, 1972) entre a permanência de uma moralidade tradicionalmente sexista e a
sua auto-imagem de cidade ―cosmopolita‖, ―liberal‖ e ―avançada‖, como vimos no
primeiro capítulo.
Nesse sentido, para melhor expor meus argumentos, trarei aqui as impressões
dos gays do Mindelo sobre a existência ou não de ―homofobia‖, de ―preconceito‖, de
―discriminação‖ e de ―violência‖, assim como suas histórias particulares associadas por
eles a estes termos.
Porém, uma das primeiras coisas que deve ficar clara é que atualmente em São
Vicente pode-se dizer que são raros os casos de agressão física a gays nas ruas, ainda
que haja. Não computei dados policiais em relação à questão, pois eles nem sequer
existem. Este quadro mais ou menos estável que reproduzo foi, portanto, o cenário
desenhado pelos meus interlocutores gays, assim como fora fruto de minha percepção
ao não experienciar qualquer situação deste tipo nos dias e noites em que andávamos
juntos pela ilha. Desta forma, não vi ou ouvi falar de qualquer caso de agressão física a
homossexuais seja na morada seja nas zonas mais periféricas da cidade, no período em
que por lá permaneci. Como parece confirmar Dadinha, a traveste de 30 anos:
Na princípio, num bons tempos, jogavam umas pedras assim, jogavam...
Antigamente ou agora?
Antigamente (Entrevista Dadinha, 30/09/2013)
Tal especificidade contemporânea, ou seja, a não-violência com homossexuais
no Mindelo é inclusive um diacrítico ufanista ou regionalista acionado pelos gays
sampadjudus não só em relação a outras ilhas do arquipélago, como em relação a outros
países como o Brasil:
Eu to falando aqui de São Vicente, ta? Porque nas outras ilhas é muito pior. (Entrevista Elzo.
Mindelo, 30/09/2013)
***
Na varanda do apartamento em que me hospedo, eu puxei o assunto também sobre as
diferenças entre aqui e o Brasil. Pois o Didi já esteve no Rio e em São Paulo. Eu disse que não
lembrava quem havia me dito, mas que no Brasil haveria grupos violentos contra gays e grupos
de extermínio mesmo, enquanto no Mindelo isso não existiria, apesar de também haver
―preconceito‖. Didi logo me interrompeu para falar que foi ele mesmo que havia me dito isso e
confirmou que colegas brasileiros haviam falado desses grupos quando ele estava no bairro da
Lapa, no Rio de Janeiro. Mas que aqui não havia esse tipo de coisa. (―Dando a largada na
organização do plano de trabalho‖ 25/09/2013. Diário de Campo, p.33)
De fato, de acordo com relatório 2013-2014 de assassinato de sujeitos LGBTs no
Brasil, produzido pelo Grupo Gay da Bahia, o país parece ser o ―campeão mundial de
126
crimes homo-transfóbicos‖, com 312 assassinatos contabilizados (GGB, 2013, p. 1).
Contudo, nas entrevistas que realizei em Cabo Verde, seja no Mindelo ou na Praia, os
casos de violência física contra os gays também apareceram. No Mindelo, os primeiros
que tive notícia remetem à década de 1990, na já mencionada Revolta das Tchindas,
quando um grupo de gays e travestes resolveu sair às ruas, vestidas de drag queen, para
lutar contra o ―preconceito‖108. Sobre o episódio, este sim narrado como uma violência
por ―discriminação‖, convoco o relato de Suzete, uma das mais antigas travestes de São
Vicente, em entrevista concedida a mim:
Você já sofreu preconceito aqui?
Sim!
Como?
Hum...
Violência física?
Já tive, já tive. Posso me referir? Refiro que eu fui um dos primeiros gays, pioneiros a dizer
―não à discriminação‖. Eu, Lady, eu, a Botina, deus o tenha, Kate, a Katrina, Barbie, então
fomos uns dos primeiros a dizer ―basta com essa hipocrisia‖. Então era chocar com a religião,
era chocar com a sociedade. Era como dizer ―oh, seu renegado, que você ta fazendo aqui‖. A
sociedade então... Foi assim: foi bem cruel, bem duro conosco.
Isso na década de 90?
Sim. Fomos apedrejados, fomos... Fomos socorridos pela polícia!
Aqui no Mindelo?
Sim, sim. Mindelo não é tudo... Mindelo também já teve a sua parte. Porque agora, os
homossexuais, que eu referi, ta mais aberto. Tem mais arestas, tem mais aresta, tem mais...
Tem mais espaço, tem menas discriminação. Mas no princípio não foi nada fácil, né? Eu que te
conto...
Entendi.
[...] uma fase de vida saber chocar, ou... Chocar própria uma sociedade. [...] a sociedade já tem
uma imagem ―é homem, nasceu homem‖ e ―mulher nasceu mulher‖. É homem e mulher. É...
Apesar de que eles... Te vejam de pequeno [...] querendo... estar sempre com as mulheres, mas
o fato de você travestir em 1996 e sair com, com, com os salto alto, pintada de drag queen,
verde, amarelo, de dia era chocar com... Com a boca negra, tipo drag queen, né? Uma coisa
bem exagerada, porque queríamos é chocar com a sociedade e conseguimos chocar com a
sociedade. Mas não foi fácil. Porque uma é quebrar tabu e outra é... Tipo chocar mesmo...
Te bateram?
É! Muitas vezes... Quantas vezes próprio meu irmão... Meu irmão pegou uma, uma... Uma vez
ele [...] militar, pegou uma faca assim ―Vou te matar, você é a vergonha da família!‖ Foram
dois homens segurando ele num braço, porque ele tava 120 quilos. 1 e 85. O homem tava... O
108
Há o relato de um dos meus interlocutores mais velhos, hoje na faixa dos seus cinquenta anos, sobre
uma pedrada que teria levado na juventude, por volta da década de 1970, quando estava a ―ter com‖ um
rapaz em um local ermo, na zona acima da Laginha. Contudo a vítima em momento algum associou
explicitamente ou deu a entender que se tratava de uma violência ―homofóbica‖ ou gerada por
discriminação em relação a sua sexualidade. Alertando aos mais jovens que ali estavam, sobre o perigo
daquela área, Marlon deixava aberto à interpretação vaga de que tal lugar era simplesmente ―perigoso‖.
Se a violência da pedrada fora ou não por razões de ―preconceito‖, não é possível saber, contudo não
parece ter sido pelo menos assim registrada mentalmente por ele.
127
homem tava assim. Eu magrinho, como um espaguetti. Com uma faca assim... Ai, fiquei toda
assustada. Mas graças a deus, lá se foi aquela parte. Eu nem quero lembrar daquela parte.
(Entrevista Suzete, Mindelo, 29/10/2013)
Atualmente, como uma das líderes do movimento gay local, Suzete, para além
de suas percepções subjetivas e concretas da realidade cabo-verdiana, tem interesse
político em demonstrar que há ―preconceito‖, ―homofobia‖ e ―discriminação‖ em Cabo
Verde, com fins de justificar sua militância. Afinal, não à toa, a organização a qual criou
e na qual é presidente se chama: ―Associação Gay Caboverdiana contra a
Discriminação‖. Igualmente, era comum Elzo, outro líder do movimento gay local, se
mostrar contrário às perspectivas de negação da ―homofobia‖, defendidas, por exemplo,
por Cesar, um dos nossos amigos ―gays‖, que alega nunca ter sofrido preconceito nem
em Cabo Verde nem nos outros vários países onde morou, por ter sempre ―se dado ao
respeito‖. Diz ele:
Nós estamos numa sociedade muito boa, que não existe homofobia. Nós somos ilhéus, ou seja,
somos pessoas que vivem presas numa ilha. Portanto, a visão é diferente: tudo se goza, tudo se
brinca, não é?
E reafirma enfaticamente minutos depois:
Nós temos uma sociedade não-homofóbica. Temos uma sociedade que aceita. Claro que
brinca, e faz isso, mas quando você não tem certeza do que você é, acabam te enlouquecendo,
com certeza! Porque você... isso tudo vem da casa onde você nasceu. De como você foi
tratado. É muito, muito comum aqui as pessoas serem chacoteadas de uma certa forma, porque
elas não se respeitam.
E isso não é homofobia para você?
Não. Absolutamente! Porque eles fazem a mesma coisa com uma mulher que não se respeita.
Fazem a mesma coisa com um homem que não se respeita também, que não seja homossexual.
Ele é chacoteado até ficar maluco. (Entrevista Cesar. Mindelo, 26/09/2013)
Dias depois, na casa de Lady, o líder político Elzo revelaria para mim o que
pensa deste discurso de Cesar, presenciado por ele:
Elzo compartilhou comigo que acha que o Cesar tem uma visão muito ―homofóbica‖. Que não
concorda com ele, quando ele diz, por exemplo, que não existe ―homofobia‖, porque, segundo
Elzo, o Cesar era a existência em si da homofobia. ―Como não existe homofobia, Cesar? Você
é a homofobia em pessoa aqui em frente‖ – disse-me simulando se dirigir a Cesar. Explicoume que quando Cesar diz que não há homofobia em Cabo Verde, ele está querendo dizer que
não há violência física como em outros lugares fora de Cabo Verde (apesar de que já sei, pelas
entrevistas, que há sim ou já houve!). Mas completou que existe outras homofobias e que o
Cesar seria um representante. (―Mais um dia de trabalho, mas é sexta-feira‖. 27/09/2013 Diário
de Campo, p.60)
Contudo, nem mesmo este líder político local escapa aos mitos sociais nos quais
está imerso. Elzo titubeia entre o mito sampadjudu da liberalidade do Mindelo – e,
consequentemente, da maior aceitação e não-violência com os gays – e a evidência
128
empírica e a bandeira política que carrega da existência de violência contra gays em
Cabo Verde, inclusive a violência física, como é possível apreender de sua entrevista:
E você acha que existe preconceito em Cabo Verde? Como é que... Se ele existir, como é
que ele se dá? Ou não existe?
Existe sim. Acho que a gente viveria num paraíso, né, se não existisse preconceito. Existe
sim... Ela se dá... Bom, ela não é muito, né, muito visível. É um preconceito mais escondido.
Um preconceito mais no acesso ao trabalho, mais em relação às travestis e transexuais. Mais
em relação a nível social, né? É mais nesses termos, a discriminação...
Não existe casos de violências físicas ou verbais?
Verbais existe, existe muito. Já agrediram verbalmente na rua, mas.... Eu to falando aqui de
São Vicente, ta? Porque nas outras ilhas é muito pior. E, bom, física é raro, mas acontece. Já
aconteceu algumas vezes, mas é mais raro. Já aconteceu. Mais difícil.
Você já sofreu preconceito?
Eu já, já. Verbal muitas.
E físico?
Físico por ser gay? Já, eu acho que já. Mas foi mais assim nessa época que tinha muito cassi
bodi, te falei, né? As pessoas ficavam agredindo as pessoas. Eu já fui vítima disso, porque
achavam que era mais fácil por eu ser gay, eu acho. Por causa disso. Porque eles têm uma ideia
aqui que gay tudo é rico, que gay é cheio de dinheiro, todos têm dinheiro. (Entrevista Elzo,
Mindelo, 30/09/2013)
O que se percebe é que a violência física por motivo de rejeição ou ódio à
(homo)sexualidade d‘outro costuma ser negada enquanto prática comum em terras
mindelenses ou cabo-verdianas. Há depoimentos de sujeitos gays que corroboram com
esta tese, afirmando nunca terem sofrido qualquer agressão física, como Lunga. O
professor, ainda assim, não nega a possibilidade de violência física, apenas aponta-a
como ―caso pontual‖:
Violência física...
Não, física, não.
Nunca?
Comigo não.
Mas é comum aqui?
Pode acontecer um ou outro, mas caso pontual.
Uhum.
De alguém que, por exemplo, manda uma boca pro gay. Aí ele responde, pode surgir um
atrito... Assim. Comigo nunca aconteceu. (Entrevista Lunga, Mindelo, 30/09/2013)
A violência física contra gays, se não há ou houve em Cabo Verde em níveis
alarmantes como em outros países do continente africano ou no Brasil, de fato existiu e
ainda povoa o imaginário de muitos daqueles sujeitos gays, mesmo os jovens, que já
sofreram tal violência. Um exemplo desses jovens é Didi, de 28 anos:
129
E eu já fui vítima também de violência física. Que é uma coisa mesmo muiiito pouca, muito
raro. Nem existe uma estatística, não existe. Eu já fui vítima de violência e não entendi muito
bem, não sei o que. Não consegui... não processei muito bem. Mas depois, eu já fui...
Na rua?
Na rua! Eu tinha acabado de chegar de Angola, de Luanda. Tinha saído com Elzo. E... Eu tinha
saído com uma amiga, minha colega de teatro, não? Bebi muito naquela noite. Acabei
encontrando o Elzo com uns... alguns travestis, né? Normalmente, não, não é o meu ambiente.
Mas acabei... Não que tenha a ver. Não tem nada a ver com eles. Mas eu saí.
E continua o depoimento, contando que um grupo de rapazes estava lhe
mandando umas bocas na rua:
Então chega num ponto que a gente acabou por chamar a polícia, né? Veio o carro da polícia
que falou com eles, tirou o número, o nome deles. Mas eu acho que a polícia se esqueceu de
mandar... de mandar eles pra casa. Eles ficaram nas redondezas. Houve um bate-boca, né? Com
eles. Eu tive um bate-boca direto com um, com o que veio me agredir. Então quando a gente
tava vindo pra casa, eles iam me deixar no ponto e iam seguir. Vieram com o carro e... Pegou
de uma garrafa de vidro, de cerveja Super Bock e partiu nos nossos pés. E os estilhaços voaram
para cima e um me atingiu aqui mesmo. E fui pro hospital, levei ponto e não sei o que... Todo
esse drama.
No supercílio?
Exatamente. Eu fiquei... Quase que eu perdi o olho. (Entrevista Didi, Mindelo, 26/09/2013)
E Didi não é o único a me narrar, em conversas, acontecimentos deste tipo,
como o que ocorreu com Leandro, em um carnaval de outrora:
Saímos do ensaio. Viríamos na... Pela rua. Mas estes rapazes já tinham começado a insultarnos lá no ensaio. Seguiram-nos, vieram (?). Sacaram a pedra na mão...
Jogaram uma pedra?
Exato.
E sua atitude foi de sair e ir embora?
Sair e ir embora. (Entrevista Leandro, Mindelo, 26/09/2013)
Como visto, mesmo Leandro, um jovem de 29 anos que nunca saiu do
arquipélago, apesar de narrar um caso de violência física sofrido por ele mesmo, faz,
como Didi, a ressalva sociológica da raridade e da especificidade do fenômeno em São
Vicente. A atitude dos dois diante das agressões foi o silenciamento. Enquanto Leandro
simplesmente saiu da cena, Didi resolveu tirar a queixa contra o agressor, pois o teriam
aconselhado a deixar o rapaz (que já teria um contrato de futebol assinado no exterior)
seguir a vida dele sem pendências judiciais na ilha. Tanto Didi quanto Leandro
encarnam o espírito regionalista do mindelense de enxergar em tudo especificidades de
São Vicente, seja para exercer sua distinção do ―continente‖, seja porque quer
reconhecer que mesmo o que sofrera está longe de ser – pois seria menos grave – o que
sofrem outros sujeitos gays alhures:
Então você acha que existe realmente preconceito, que existe homofobia nessa sociedade.
130
Existe. É só não é muito barbarizada como tenho visto em outros lugares. Tipo, na África
continental. Coisas nem de se ver.
No Brasil também, infelizmente...
Infelizmente. Aqui ainda não temos casos extrema. Não temos. Acho impressionante aquelas
boquinhas ao ar, ao vento. Mas já... Muitos dizem essas palavras pra... pra chamar a atenção.
Muitos deles dizem isso para chamar a atenção. (Entrevista Leandro, Mindelo, 26/09/2013)
Deixando transparecer uma frequente ideologia evolucionista, que ora
hierarquiza os países (em que Cabo Verde estaria em qualquer nível entre a Europa e a
África continental), ora as ilhas (em que São Vicente seria a mais ―avançada‖ do país),
ora as pessoas (em que alguns são mais instruídos que outros em termos de
sexualidade), uma das explicações disseminadas entre meus interlocutores é que a
―homofobia‖ em Cabo Verde seria fruto de uma suposta ignorância da maioria deste
povo a respeito da diversidade da sexualidade humana. É assim que uma das travestes,
que diz nunca ter sofrido qualquer tipo de preconceito ou violência física, contudo, tenta
explicar a existência de ―homofobia‖ em sua sociedade:
É como eu já tinha dito, digamos que tem uma percentagem que aceita, que tem conhecimento
acerca da sexualidade, quer feminino ou masculino e tem a outra percentagem que não aceita.
A causa é a falta de conhecimento, falta de esclarecimento. Porque... Digamos, falta de
comunicação na sociedade. (Entrevista Sandrinho, 09/10/2013)
Mas é o jovem professor Lunga, que ao tentar dissociar ―homofobia‖ de
―preconceito‖, nos encaminha para a verdadeira questão que interessa à antropologia da
(homo)sexualidade masculina em Cabo Verde. A saber, a característica marcante da
―hipocrisia‖, aqui no sentido de contradição.
Há muita hipocrisia aqui. Porque você tem... Aqui, você não tem homofobia, mas tem o
preconceito. Aliás, preconceito existe em todo mundo... Mas aqui... Quando eu digo hipocrisia,
que muita gente que fala mal, que quando ta assim no grupo de amigos, fica mandando bocas e
dizendo ―ah, esses paneleiros‖ e não sei que... No fundo, são essas pessoas que gostam de
abordar os gays. Mas assim, no ambiente público fazem que são heterossexuais firmes e não
sei que... E debocham e fazem muitos comentários desagradáveis. Mas nos bastidores é
exatamente o contrário. Se eles te encontrarem sozinhos na esquina, metem logo conversa e aí
não sei que... Mas se tiver no ambiente público, nem se quer olham e podem até mandar bocas,
para poder ficar bem no grupo onde eles tão. Porque se todo mundo ta dizendo ―ah, to cansado
desses gays‖ e não sei o que e eles para se sentirem, né? Machos e... Mas depois atrás, a
conversa é outra. (Entrevista Paulo. Mindelo, 30/09/2013)
Se a ―violência física‖, traduzida algumas vezes por ―homofobia‖ é, no nível do
discurso, algo negado enquanto prática recorrente nas ruas do Mindelo, ela aparece
timidamente, vez ou outra, no depoimento dos sujeitos gays. Sem estatísticas, é-me
difícil precisar as taxas de agressão, violação ou homicídios de homossexuais em Cabo
Verde, mas a impressão geral que se tem a partir da etnografia no Mindelo – e esta é
uma visão que necessita de melhor aprofundamento – é que a violência física contra
homossexuais por motivo de discriminação da orientação sexual, tal como se conhece
131
em outras cidades do mundo, não tem no Mindelo as proporções alarmantes encontradas
em outras paragens. Na verdade, parece quase inexistente.
Enquanto um trabalho de cunho antropológico, este não tem a pretensão de
responder se há ou não ―homofobia‖ no Mindelo. Minha intenção é apenas demonstrar
que, no que diz respeito ao termo, há divergências locais sobre sua aplicação. Mais do
que constatar que os níveis de violência física contra gays são menos graves que em
outros lugares, o mais interessante, contudo, é descobrir, ao longo da convivência com
os gays do Mindelo, que o mandar bocas, longe de ser apenas uma agressão dos nãogays com fim em si mesma, ou ―homofobia‖, pode realmente servir para ―chamar a
atenção‖ destes, em uma espécie de ritual homoerótico permeado de signos machistas.
Como demonstrarei nos relatos a seguir, o mandar boca pode ser uma das
estratégias culturais que o crioulo não-gay do Mindelo encontrou para exercer o jogo
homoerótico, inerente a toda e qualquer sociedade humana (KIRKPATRICK, 2000;
NEIL, 2009). E é o jogo que se admite, desde que se jogue com os peões masculinistas,
seja sem estrilo e ameace o mínimo possível a heteronormatividade crioula, como
veremos no próximo capítulo.
O ritual de mandar bocas
Verdade seja dita, mandar bocas não é uma exclusividade masculina em São
Vicente. Romeu, um jovem bailarino de 21 anos, nos conta um episódio que acabara de
ocorrer, pouco antes de seu encontro comigo:
Mas hoje quando estava a vir, estava a vir duas, duas e outra... Duas meninas que falaram e
outra. Estavam a vir. Estavam a me chamar. Eu estava indo e ignorando. Mas eu disse: ―eu não
posso deixar essa situação continuar‖. Porque eu nunca disse a elas nada. Elas começaram a
chamar essas coisinhas, que todo mundo... Você já sabe, que todo mundo já falam, mas são
poucos...
E continua:
Mas quando eu voltei, eu disse àquela rapariga: ―Vocês estão a falar comigo?‖ [...] São
covardes com as pessoas aqui em Cabo Verde, quando você confronta. Com certeza, se
disserem alguma coisa, vão desmentir ou vão ficar calados. Eu disse ―Vocês estavam a falar
comigo?‖ Elas disse: ―Não, não estava a falar contigo‖. Continuo meu caminho, continuaram a
chamar. Eu disse: ―Olha, uma coisa: É... Eu sou... Eu posso ser o que que eu, que eu quero. Eu
sou eu. E tu, com certeza, se tinhas algum familiar na mesma situação com, que eu, Tu ias, tu
queria que alguma pessoa assim troçar com ele, falar mal dele, chamar ele na rua? Querias que
isso acontecer com ele? Ela ficou calada e também eu disse: ―Eu estou a fazer, cuidando da
132
minha vida. Enquanto estou a cuidar da minha vida, estou a avançar. Com certeza vou avançar
muito para frente e você repara na sua situação.‖ E depois elas se calaram e foram falando.
Mas com certeza não sei se levaram aquela lição, aquela coisa, mas com certeza alguma coisa
levaram. Daquela situação, por parte delas, eu tenho certeza que nunca mais eu vou passar.
(Entrevista Romeu. Mindelo, 09/10/2013)
Presenciei também pelo menos uma vez um grupo de meninas mandar bocas a
Elzo e a mim. Já havia anoitecido e, sentadas no banco da praça em frente à
universidade, algumas meninas nos olharam e reconheceram Elzo. Chamaram-no
sarcasticamente de ―presidente das tchindas‖, em referência ao seu cargo na associação
gay local. Falaram para nós as escutarmos, em claro tom de provocação: ―É o presidente
das tchindas! Amigo da Suzete‖.
Tchinda, como já foi dito, fora supostamente o primeiro homossexual assumido
em Cabo Verde e tornou-se muito famoso por isso. Didi contou-me que o nome
―tchinda‖ fora então usado para designar todos os homossexuais em Cabo Verde. São
todos tchindas, porque ―as pessoas não diferenciam os diferentes homossexuais que
existem‖ – reclamava Didi. Disse-me ainda que por essa indistinção, esse termo já o
irritou muito, mas que hoje em dia não mais109. Elzo me disse logo depois da fala das
meninas, que nem sabia que ainda usavam esse termo e riu.
Mas afinal de contas, quais são as bocas que os rapazes mandam? O que dizem
eles aos gays no Mindelo? Além de ter ouvido muitas vezes na rua alguns desses
termos, fiz essa pergunta aos meus interlocutores gays e as respostas foram variadas.
Para além do não muito usual ―coisinha‖, do largamente usado ―paneler‖ e do antigo
―tchinda‖, existe ainda um rico léxico de vocativos: ―maracas‖110, ―biba‖, ―bicha‖,
―bichona‖, ―boiola‖, ―frutinha‖, ―viado‖, ―mona‖, ―diabólica‖111, ―cadela‖, ―pandu‖,
109
Durante minha permanência na ilha, um colaborador estrangeiro, ativista gay e que os ajudara a
realizar o Mindelo Pride em 2013, havia postado em sua página do facebook algo sobre as ―tchindas do
Mindelo‖, o que gerou uma fúria entre meus interlocutores, pois, segundo eles, o colaborador estaria
supostamente cometendo a mesma gafe que cometeriam todos aqueles cabo-verdianos, que seriam
supostamente incapazes de reconhecer a diversidade dentro dos chamados LGBTS. Na verdade, a figura
deste ativista já não era muito bem quista por um dos líderes do movimento local e por alguns de seus
amigos.
110
―O outro caso é que um rapaz ao passar pela gente, chamou-nos de ‗maracas‘. Termo ‗novo‘ que nem
o Elzo nem o Didi souberam me dizer o significado. Mais tarde, quando estávamos no bar, ainda cogitei
com Didi a aproximação fonética de ―maricas‖, termo largamente usado na língua espanhola e menos na
língua portuguesa para ―gays‖, no que ele já conhecia e concordou que podia ter a ver. E o perguntei se
tinha alguma referência no crioulo e ele disse que não. E continuamos sem entender o termo.‖ (―Mais um
dia de trabalho, mas é sexta-feira. 27/09/2013. Diário de campo, p.62)
111
Esses últimos oito termos importados das telenovelas brasileiras, segundo me disseram.
133
homem do diabo‖, ―fode de cu‖, ―menininha‖, ―gay‖, ―homossexual‖, ―poderosa‖,
―doida‖, ―gostosa‖112.
Um, em especial, o ―paneleiro‖, merece uma consideração maior. A categoria de
origem portuguesa ―paneleiro‖ (pronuncia-se ―paneler‖ no Mindelo) é o insulto mais
comum e um dos mais agressivos dirigidos aos sujeitos gays e travestes, segundo os
mesmos. Ninguém soube me precisar a origem desta categoria, mas suspeito que o
paneleiro, aquele que na etimologia é o sujeito que vende/faz panelas, o faz batendo-as,
com barulho, com estrilos113, com escândalo público. Metaforicamente, essa atitude é
repudiada em Cabo Verde. Ou seja, nesta sociedade muito longe de ser uma sociedade
que penalize formalmente os sujeitos homossexuais ou que pratique recorrentemente
violência física contra os ―gays‖, vê a identidade e as práticas sexuais, seja hétero ou
homossexual, como algo que não deve ser publicizado ou anunciado com alarde, mas
restrito às relações privadas e à intimidade. A escolha desta categoria acusatória e a
frequente condescendência dos parentes do núcleo doméstico à homossexualidade dos
rapazes, desde que praticada o mais privadamente possível, são reveladoras nesse
sentido. Contudo, não descartaria a associação com ―panela‖, um utensílio do universo
doméstico e feminino em Cabo Verde.
Se já vimos que as percepções das bocas pelos gays variam, interessa-nos agora
saber como elas podem fazer parte de um ritual erótico dos rapazes não-gays. Para
tanto, trago os discursos dos sujeitos gays, que inicialmente me revelaram essa prática
dos não-gays, assim como as situações em que eu mesmo não só vi o ritual, mas nele
estava inserido.
Começo por uma entrevista bem elucidativa feita com Leandro, na qual
participaram juntos também os amigos Cesar, Didi e Elzo:
112
Alguns desses vocativos também são positivados pelos gays, ainda que não sejam direcionados
exclusivamente a eles, como é o caso de ―gostosa‖ e ―poderosa‖. Segue um relato de meu diário de
campo e uma entrevista com Lady acerca disso: ―Nesse rápido intervalo, passou um carro por nós cheio
de rapazes, que dá janela se dirigiram a nós dizendo ‗gostosa‘ e ‗está nos deixando doido‘ (essa frase em
crioulo, traduzida pra mim pelo Didi). É muito comum essas cantadas na rua, quase sempre é feita por
rapazes mais jovens. (―O sexo de Didi e Elzo‖. 12/10/2013. Diário de campo, p.172). ―E a abordagem
deles? Como é que eles... O que que eles falam? Muitas vezes dizem. Por exemplo, eu... Me chamam de
‗gostosa‘, chamam de ‗poderosa‘, outros... (risos)... ‗Doida‘. Essas coisas...‖ (Entrevista Lady. Mindelo,
27/09/2013)
Categoria nativa do crioulo que significa ―escândalo‖, acionada algumas vezes para se referir à atitude
equivocada a se tomar em uma relação homoerótica.
113
134
Cesar: Deixa explicar que as pessoas que fazem esses comentários acabam sempre indo pra
cama convosco.
Didi: Ah, exatamente.
Cesar: por isso não é homofobia. Há que saber dividir coisa! Eles lançam a boca bem profunda,
pra chocar o gay, o gay olha pra eles com raiva e a gente...
(Risos gerais).
Entendi.
Cesar: não é homofobia.
Mas...
Didi: É uma estratégia!
Cesar: sim!
Ah sim, uma estratégia de caça.
Leandro: Exato.
Elzo: Ou falta de estratégia.
Leandro: Ou falta de estratégia!
(risos gerais)
Este bate-papo entre o grupo de amigos acabou por revelar que as bocas
mandadas pelos rapazes não-gays em público podem ter a função ritual de atrair a
atenção dos gays para eles. Seria uma ―estratégia‖ neste sentido. Quando Elzo diz e
Leandro concorda com o que seria supostamente uma ―falta de estratégia‖ dos rapazes,
aludindo negativamente a uma ―falta‖, não querem naquele contexto negar que se trate
de uma estratégia propriamente, mas com ironia desejam criticá-la. O que eles querem
dizer é que essa forma de abordagem é ―grosseira‖, ―estúpida‖, que os rapazes não
sabem ―chegar‖, são ―desajeitados‖, ainda que se divirtam ao contar isso114.
Na entrevista particular que concedeu a mim, Didi trata do assunto, mostrando o
que seriam também outras estratégias, além do mandar boca, como o olhar e a
abordagem tímida,
Por exemplo, uma coisa que é usada muito é o contato visual. É muito usado. E também eles
gostam de chamar a atenção sobre eles, né? Por exemplo, com esse tipo de abordagem (risos)
chamando nomes, não sei o que. E às vezes a coisa evolui para o sexo, que é isso mesmo que
eles estão pensando. A ideia é fazer a coisa chegar mesmo naquele ponto. Tem alguns que são
corajosos o suficiente para fazer uma abordagem muito tímida. Tipo, a gente está sentado aqui.
Eles se sentam ali. Existem conversinhas e pirocos, tipo "psiiu", e daí adiante. E a gente
também... Normalmente, na maior parte das vezes somos nós que tomamos a iniciativa. A
gente dá um sinal. (Entrevista Didi. Mindelo, 26/09/2013)
114
Essa forma de abordagem dos rapazes não-gays não se restringe ao momento do primeiro encontro ou
do flerte inicial, mas ela permanece ao longo das frágeis relações que eles constroem com esses rapazes.
Quero dizer que a ―estupidez‖ ou ―agressividade‖ destes rapazes geram consequências mais graves para
as sensibilidades dos gays no longo prazo, pois é algo que, perpetuado para além do ritual da conquista
sexual, gera angústia e frustrações.
135
Se o olhar e a chamada ―abordagem tímida‖ dos rapazes são estratégias
relativamente acionadas para a conquista da relação sexual com os gays do Mindelo, a
estratégia de mandar bocas, nem por isso deixa de ter sua eficácia. Trago três relatos
que confirmam a permanência dessa estratégia em Cabo Verde, seja no Mindelo ou até
mesmo na Praia. Começo por Lunga que, em entrevista, confirma esse tipo de
abordagem dos rapazes não-gays:
E quando eles mandam essa boca, é sempre o intuito de troça, de gozação, ou pode ser um
jeito de se aproximar deles...
Também. (risos) Às vezes é pra chamar a atenção. Muitas vezes é pra chamar a atenção. Pra
aproximar, é.
Que aí chama a atenção pra eles, vocês vêem e pode daí surgir alguma coisa...
Sim. (Entrevista Lunga. Mindelo, 30/09/2013)
A traveste Bela também narra o mesmo tipo de experiência:
E das pessoas na rua... Mandam boca de vez em quando...
Sim, sempre metem boca.
E o que que se fala? Quais são as palavras que...
―Paneleiro do diabo‖, ―homem do diabo‖, ―fode de cu‖, deixa eu me lembrar mais o que...
―Puta que pariu, também tem faca na popa‖, (?) Um bocado de coisa, só ignorância...
E alguma dessas vezes que eles mandam essa boca, eles tem algum intuito de conhecer
vocês?
Sim. [...] Chega com estupidez.
Mas acontece às vezes de começar nessa estupidez e, de repente, terminar vocês se
relacionando...
Sim (Entrevista Bela. Mindelo, 09/10/2013)
Mesmo na cidade da Praia, Graça, um jovem gay badiu, narrou-me experiência
de uma boca muito parecida, ainda que neste caso tenha dito ter negado a relação:
Graça me contou de um episódio que um outro rapaz mandou boca para ela e tentou humilhá-la
em público. Logo depois o rapaz o chamou para irem a um canto, a sós, pois ele queria
conversar com ela. No local, ele a pediu desculpas, falou que gostava dela. Graça contou
orgulhosa, mas no fundo um pouco triste também, que nesse episódio ela pôde se vingar.
Segundo ela, o rapaz estava sexualmente excitado e ela pode ver isso no enrijecimento do pênis
dele marcando na calça. Para ela, era claro que ele estava ali, pois queria ter com ela. Mas ela
disse que quando ele terminou de falar, ela virou as costas e foi embora. Disse que se sentiu
muito bem naquele momento, porque foi a vez dela de humilhá-lo, deixando-o lá excitado e
sem correspondência. Disse que gostou porque se sentiu melhor que ele. No entanto, com a
recusa de desculpas e a não-consumação do ato sexual, o rapaz voltou a mandar bocas para ela.
Os atos sexuais acontecem geralmente ou em casas de amigos ou nas casas dos parceiros, ou
em sua própria casa, quando mora-se sozinha, ou na rua. Mas sempre sem ―estrilo‖, disse-me.
(―Conhecendo os gays de Santiago‖. 31/10/2013. Diário de campo, p.276)
Estes termos ora expostos aqui carregam a ambiguidade inerente a todas as
categorias acionadas no mandar boca dos rapazes não-gays aos gays, quando estas têm
a função ritual da conquista sexual. São palavras que são provocativas, tanto pelos seus
136
sentidos pejorativos, como pelos sentidos apreciativos. Seja ―paneler‖, seja ―gostosa‖,
como todos os signos linguísticos, nenhuma categoria tem sentido em si mesma e
depende sempre das relações semânticas para ganhar sentido. E é nesse ritual privado ou
público, permeado por tensões, que a categoria ganhará um sentido específico.
Como é da natureza do ritual, este pode não ser efetivo, pode dar errado, seja
como no caso de Graça, como vimos, em que a ―boca‖ gerou uma humilhação tamanha
e uma oportunidade de provar seu orgulho, que não se permitiu que a relação sexual se
consumasse ali, seja como quando os sujeitos gays mal-interpretam os ―sinais‖ dos
rapazes não-gays:
E se não for o caso desses rapazes não estarem querendo e, de repente, vocês tomam a
iniciativa e não é isso.
Às vezes, é chato. Alguns acabam por ser bem agressivos. E.. pode ser constrangedor e...
Porque às vezes você compreende errado, os sinais, interpreta de uma forma errada, distorcida.
Mas na maior parte das vezes, (risos) a gente acaba por estar certo mesmo. (Entrevista Didi.
Mindelo, 26/09/2013)
Mas nos casos em que são eficazes, eu pergunto com certa consternação, afinal
de contas, porque os gays se envolvem com esses rapazes não-gays e se frustram, se
está posto culturalmente que a linguagem da relação está permeada por esses signos
entendidos como ―estupidez‖, ―ignorância‖, ―grosseria‖ etc.
É... Ainda tem mais essa, porque nós... Eu falo por mim, mas posso também falar por outros.
E... Temos fetiches para dificuldade. Quase isso atrai. Ao invés de estarmos aqui no meio gay,
umas pessoas mais associadas uma com a outra. Ao invés de estarmos aqui pacíficos, vivendo
nossa conversa. Não! Não vivemos assim! Vamos procurar o problema bem... peludo e bicudo
também.
Que são esses rapazes...
Exatamente.
E por que? O que atrai neles?
Não sei (risos). Até hoje estou a procura da explicação. Não sei, não sei... Gosto. Acho que
gosto. Porque só uma pessoa para gostar.
Mas existe algum atributo físico, um jeito, o que que atrai?
Com certeza! Muito atrai. A questão física é indiferente. Mas agora, às vezes mesmo por, pelo
caráter também. Às vezes vemos alguma coisinha que, tipo um... um grãozinho que atrai. Mas
no fim da conta não, não é acertado. Fica sempre uma coisa... (Entrevista Leandro. Mindelo,
26/09/2013)
Tais relatos nos conduzem a pensar que um dos aspectos mais importantes para
uma antropologia da (homo)sexualidade em Cabo Verde é entender que o mandar
bocas – por vezes apressadamente interpretado como ―preconceito‖ ou ―homofobia‖ –
nem sempre podem ser facilmente enquadrados nestes termos. No Mindelo, e não
apenas na Ilha de Santiago, como diagnostica Miranda, a masculinidade é construída,
137
sobretudo, através da exibição pública da virilidade (MIRANDA, 2013, p. 77). Desta
forma, a masculinidade é construída através de ações teatralizadas, simulações, muita
exibição pública, discussões e a depreciação do feminino (2013, p. 81). O que tentei
mostrar aqui é que o ―mandar bocas‖, em algumas situações, faz parte de um ritual
eficaz não só de construção da própria masculinidade, mas um ritual de conquista sexual
dos gays pelos não-gays, ainda que este seja permeado pelos signos masculinistas, da
virilidade e da suposta ―discriminação‖. O mandar bocas é uma estratégia, é uma
linguagem sexual, uma expressão do desejo, que não se traduz sempre ou
necessariamente em violência seja ela física ou simbólica. Além disso, é uma estratégia
de encobertamento do próprio desejo homoerótico. Por último, fica claro neste
depoimento de Leandro que os próprios sujeitos gays participam e acabam por perpetuar
este Sistema Hipocrisia.
***
Neste capítulo, a partir de meus dados e daqueles fornecidos por outros
pesquisadores, busquei mostrar ao leitor a perspectiva dos homossexuais caboverdianos a respeito do seu próprio sistema de gênero. Neste intento, construí uma
categoria analítica, que chamei de ―Sistema Hipocrisia‖ e que pretendeu dar conta da
sistematização desses dados. Pareceu-me significativo a recorrência da palavra
―hipocrisia‖ quando os sujeitos gays se referiam a sua sociedade, acusando-a
moralmente. Contudo, longe de ter um único significado, a categoria êmica ―hipocrisia‖
é recorrentemente entendida ora como acusação do típico silenciamento da sociedade
cabo-verdiana em relação à evidência empírica da homossexualidade, ora como
acusação da suposta contradição – diagnosticada por estes mesmos sujeitos – entre
(hetero)normas e (homo)práticas conviventes nesta sociedade. Além disso, o ―Sistema
Hipocrisia‖ é uma estratégia analítica minha, esvaziada da carga moral, que pretendeu
objetificar um quadro onde convivem em disputa pelo menos dois modelos de
sexualidade masculina, como elaborados pelo antropólogo Peter Fry. Em linhas gerais,
tentei demonstrar que enquanto o ―modelo hierárquico‖ é ainda hegemônico na
sociedade cabo-verdiana, entre outras razões por dialogar com o sistema de gênero mais
amplo do arquipélago, marcado pela dominação masculina, o ―modelo simétrico‖
desponta como outra possibilidade de conformação das subjetividades masculinas em
relação à (homo)sexualidade em Cabo Verde.
138
Compreendido isso, busquei contextualizar o momento histórico em que o
movimento LGBT surge no país, assim como o novo léxico sexual e identitário. Para
tanto descrevi o evento que denominei de a ―Revolta das Tchindas‖, momento de
ruptura simbólica em que as travestes do Mindelo saíram vestidas de drag à luz do dia
na década de 1990, como forma de lutarem contra a hipocrisia em sua sociedade.
Argumentei que este evento foi um marco historicamente importante para: 1) trazer a
silenciada homossexualidade de volta ao debate público; 2) instaurar ou reatualizar as
identidades sexuais e, assim, reorganizar o sistema de gênero cabo-verdiano;
3)
inaugurar o que viria a ser o moderno movimento LGBT local. Em seguida, contudo,
lanço a hipótese da anacronia deste movimento que, inspirado nas experiências e na
gramática do movimento LGBT internacional (construído desde o final da década de
1960 em outros países norte-americanos e europeus), não parece mais corresponder às
expectativas e aos dilemas da sociedade crioula cabo-verdiana – tampouco à sua
população gay – neste início de século XXI. Pois as pautas que estão postas, geradas em
outros sistemas sociais, encontram um assentamento precário no arquipélago. Por
exemplo, a descriminalização da homossexualidade, tal como perseguida pelos
movimentos LGBT em muitos países africanos, é uma pauta não-gramatical em Cabo
Verde, pois a efetiva criminalização de fato nunca parece ter ocorrido no país, apesar do
código penal prescrevê-la até 2004. Outro exemplo seria a inviabilidade da legalização
do casamento gay. Isso porque o modelo hegemônico de casamento ocidental, marcado
pela co-habitação dos cônjuges, é um modelo historicamente rejeitado pelas práticas
culturais na sociedade crioula e as homoafetividades no arquipélago parecem não fugir
dos modelos de afetividade e conjugalidade tradicionais. Por último, a própria
demarcação das fronteiras identitárias promovida pelo movimento LGBT parecem não
corresponder
à
fluidez
dos
homossexuais
cabo-verdianos,
que
se
afastam
discursivamente das classificações sexuais-identitárias como tchinda, ―homossexual‖,
―bissexual‖, ―ativo‖, ―passivo‖ etc, em uma clara postura queer.
Desta forma, busco compreender como é possível a permanência de tal
movimento político. Sugiro a hipótese de que a associatividade pela causa gay em Cabo
Verde pode ser explicada por uma busca pela modernidade e cosmopolitismo, típicos na
sociedade mindelense onde este movimento nasce e se mantém restrito. Além disso, o
movimento LGBT local, encarnado na Associação Gay Cabo-verdiana Contra a
Discriminação, pode ser explicado não somente por pretensões políticas e pessoais de
139
seus líderes como também refletindo um descontentamento difuso em relação às
possibilidades de construção de pessoa dos sujeitos homossexuais naquele país. Neste
sentido, trago à tona a polissemia de categorias nativas como ―homofobia‖,
―preconceito‖, ―discriminação‖ e ―violência‖. O que descubro ao analisá-las é de que
elas possuem significados cambiantes e, por vezes, distintos do que se supõe em outros
contextos culturais. Se a ―homofobia‖ é frequentemente negada entre meus
interlocutores sampadjudus, pois é largamente associada à ―violência física‖ – algo que,
apesar de acontecer, se diz não ser uma prática comum no Mindelo, o ―preconceito‖ ou
a ―discriminação‖ competem com a ―tolerância‖, no discurso e na prática. É neste
debate, que surge, ao fim, uma análise do ritual de mandar bocas – um hábito
encontrado nas ruas do Mindelo, em que rapazes provocam os sujeitos gays. Argumento
que este ritual não só não pode ser apressadamente compreendido como atos
homofóbicos, pois muitas vezes as intenções da provocação é a consumação do ato
sexual com os gays, como este ritual, quando analisado de perto, pode revelar que a
suposta dominação masculina, encarnada na performance da penetração, pode ser
simbolicamente invertida, contradizendo em parte o ―modelo hierárquico‖ de Fry, como
ficará ainda mais claro no capítulo que se segue.
140
Capítulo III – “Levam má bô”
Perdoam se tcheu vez m'maguob / Ma mi m'sabê ke m't'amob / Perdoam
cretcheu, perdoam / Ess nha iguismo e machismo / E herança d'nha raça 115
Zé Delgado (X-treme)
Neste capítulo, pretendo trazer ao leitor diferentes tipos de abordagens
homoeróticas dos rapazes não-gays no Mindelo, assim como as estratégias e agências
dos sujeitos gays nos rituais de cortejo que ocorrem nas ruas da cidade. No intuito de
melhor entender as categorias com as quais operam as relações com os sujeitos gays,
apresento biograficamente alguns desses rapazes não-gays. O objetivo do capítulo é
mostrar como se efetivam os rituais de cortejo, as práticas sexuais e as relações entre os
rapazes não-gays e os gays dentro do Sistema Hipocrisia.
Ao fim, revelo que a
incompatibilidade entre alguns valores românticos ideais, cada vez mais absorvidos
pelos sujeitos gays sampadjudus e a sua realidade empírica, tende a levá-los a um
sentimento de angústia.
Abro o capítulo com um evento que considero uma síntese não só das
abordagens dos rapazes não-gays do Mindelo, como de todo o chamado Sistema
Hipocrisia. Trata-se de uma ―cantada‖ na qual eu mesmo fui o alvo e que me revelou
muito do que pensam os rapazes cabo-verdianos que não se reconhecem enquanto
―gays‖, mas que, no entanto, habitam o universo do homoerotismo. Os ruídos na
comunicação com o jovem Julio far-me-ão compreender os significados do que é ser
―gay‖ para os sampadjudus e todas as consequência que disso decorrem.
Na seção seguinte, parto para exemplificar os tipos de abordagem dos rapazes
não-gays, que podem ser compreendidas dentro de um continuum entre um tipo
―estúpido‖ e outro, mais ―sutil‖. Estratégias como o mandar boca, o olhar, a chamada, o
assovio, o pedir dinheiro são possíveis e articuladas pelos envolvidos, a depender dos
desejos, das conjunturas e dos próprios sujeitos.
Na terceira seção, busco apresentar meus dados sobre algumas das biografias
dos sujeitos não-gays, suas agências e suas subjetividades, para contextualizar as
operações particulares que estes fazem a partir dos signos culturais de gênero dispostos
115
Perdoe-me se eu te machuquei muitas vezes / Mas eu sei que eu te amo / Perdoe-me, meu amor,
perdoe-me / Meu egoísmo e meu machismo / É a herança de minha raça.
141
no Sistema Hipocrisia. Assim, tanto John e Joaquim quanto Julio serão fundamentais
para compreender padrões de comportamento de gênero desses sujeitos, em que se
destacam a não-incorporação de uma identidade ―gay‖ e o descolamento conceitual
entre prática sexual e afetividade conjugalizada.
Em seguida, procuro enfatizar as agências e estratégias dos gays do Mindelo,
assim como mostrar parte de suas práticas homoeróticas. Auto-imaginados por vezes
como ―passivos‖ e ―vítimas‖ de um sistema de gênero opressor, esses sujeitos ganham
agência não só na militância, mas também no ritual homoerótico, invertendo a
hierarquia posta na sociedade crioula mais ampla, onde os gays deteriam menos signos
de positivação dos que os sujeitos não-gays. Seu poder de decisão, a partir da expressão
levam má bô (me leve contigo), proferida pelos não-gays, de alguma forma os confere
poder. Principalmente, porque é na reflexão sobre a inversão possível no próprio ritual,
que uma consciência sobre o Sistema Hipocrisia surge e lhes possibilita, ao menos,
denunciá-la.
Por fim, identifico que nessas relações sexuais e afetivas fugazes, há uma
sequela possível. O sentimento de angustia atinge muitos de meus interlocutores gays,
que não conseguem operacionalizar o plano ideológico de uma afetividade e
conjugalidade burguesas, tal qual apresentadas seja nas telenovelas brasileiras, seja nos
discursos do movimento LGBT internacional, com a sua própria realidade cultural, em
que esses valores são sistematicamente negados pelos homens não-gays com quem eles
se relacionam.
A cantada de galo116
O título é um trocadilho entre a expressão jocosa ―cantar de galo‖, que na língua portuguesa significa
uma atitude de exibição de si, exaltando as próprias qualidades, com ―cantada‖, que na mesma língua
significa ―flerte‖, ―abordagem afetiva ou sexual‖, com, finalmente, a ―briga de galo‖, evento famoso na
literatura antropológica. Em poucas palavras, trata-se de um episódio em que o antropólogo Clifford
Geertz e sua esposa decidem correr da polícia assim que esta chega numa rinha de galos, que apesar de
típica nas aldeias de Bali, eram então reprimidas pelas forças policiais. Correr subitamente como um
nativo fizeram-lhes ganhar a admiração e identificação instantânea daqueles balineses. Além disso, a
briga de galos revelaria grande parte do que é Bali, assim como um campo de beisebol revelaria a
América do Norte (GEERTZ, 2011). É nesse sentido metonímico que creio ser possível enquadrar essa
―cantada‖ do jovem Julio em relação à sociedade Mindelense.
116
142
Peço permissão e paciência ao leitor para lhes narrar de forma literária uma
história em que, inevitavelmente, o antropólogo que a escreve virou também um dos
seus principais personagens. Algo relativamente comum em peças etnográficas que se
dedicam a compreender a sexualidade em outros universos culturais (LEWIN & LEAP,
1996). Assim, cada momento desse diálogo será de importância ímpar para que se
compreenda como pensam e agem alguns dos rapazes não-gays117 de Cabo Verde.
Estávamos alguns amigos gays e eu caminhando ao lado da mureta que divide o
calçadão e a praia da Laginha. Naquela noite de outono, havia já três rapazes sentados
na grade da mureta. Despretensiosamente, sentamo-nos próximos a eles. Ao nos ver, o
mais velho pediu algo a meu amigo Cesar. Creio que era dinheiro para comprar bebida –
uma abordagem típica entre os jovens mindelenses sejam eles amigos ou não. Por acaso,
Cesar já conhecia o homem e, por não nutrir simpatias por ele, negou a demanda.
Em seguida, com um sorriso no rosto, este homem ficou falando em crioulo
comigo, mas na hora eu não o compreendi. Cesar, gentilmente como sempre, traduziu
para mim. O tal homem estava querendo ter comigo118 e, ao que parece, estava sendo
bem direto desde o princípio, apesar d‘eu só ter entendido depois suas intenções.
Surpreso, fui gentil, mas disse ―não‖. Ele não estava só, mas com outros dois rapazes,
estes bem mais novos que ele.
Um desses rapazes se chamava Julio e dizia ter dezenove anos. Eu nunca o tinha
visto antes. Era mulato e de estatura baixa. Vestia-se um pouco mais simples – ou mais
casual – que os demais rapazes vaidosos que frequentam a noite da Laginha. Calçava
chinelos de dedo, uma bermuda e uma t-shirt clara. Ele era muito simpático e
comunicativo, apesar de não falar fluentemente o português. Exemplificando a
morabeza da ilha de São Vicente, ele estava sempre com um sorriso no rosto e de pouco
em pouco tempo, ao longo da conversa, ou me dava um abraço ou apertava minha mão.
Na primeira vez em que ele me cumprimentou, abraçando-me, eu reparei em sua
roupa simples, que parecia indicar uma condição socioeconômica mais pobre do que a
Como já adiantei em outros capítulos, uso o termo ―não-gay‖ para me referir a todos os sujeitos que,
apesar de habitar o universo homoerótico, não se identificam a partir de uma categoria (homo)sexual.
118
Ter com é uma locução crioula que abrange alguns significados no campo semântico das relações
pessoais. Quando um sujeito tem com outro, isso poderá significar que o sujeito teve uma única relação
sexual com o outro ou que com ele mantém relações sexuais contínuas. Por outro lado, a expressão pode
se referir também a um relacionamento afetivo/sexual com alguma fixidês que se estabeleça entre dois
sujeitos. A locução, contudo, não está restrita ao universo homoerótico e é também acionada em relações
heterossexuais.
117
143
média dos meus interlocutores. Contudo, ele não me pedira dinheiro, bebida ou
cigarros, algo também raro na minha experiência de estrangeiro e ―branco‖119 por
aquelas terras. Era, portanto, uma figura incomum e que por isso, despertara ainda mais
interesse.
Quando ele soube que eu era brasileiro, perguntou-me de que lugar eu era no
Brasil. Respondi que do ―Rio‖ e ele, empolgado, contou-me que esteve lá recentemente
para a ―JMJ‖, a Jornada Mundial da Juventude, organizada pelo Vaticano. Basicamente,
o evento consiste em um encontro do Pontífice com jovens católicos do mundo inteiro
em uma cidade previamente escolhida, que naquele ano era a cidade de São Sebastião
do Rio de Janeiro, no Brasil. Enfim, um evento internacional da Igreja Católica
Apostólica Romana, que reunira brasileiros, cabo-verdianos e milhares de jovens de
outras nacionalidades no Rio e que agora servia de pretexto para uma conversa entre um
brasileiro ―laico‖ e um cabo-verdiano ―católico‖ no Mindelo.
Julio me contara da hospedagem de seu grupo num bairro carioca e as
informações bateram com os relatos de Pedro, um outro interlocutor católico
mindelense que também tinha ido à ―JMJ‖ e com quem eu já conversara, inclusive a
respeito de suas preferências (homo)sexuais. Logo supus que os dois tivessem ido na
mesma caravana, já que ambos são do Mindelo. Apesar de Julio não reconhecer, pelo
nome, quem era Pedro, ambos os rapazes católicos realmente ficaram hospedados no
mesmo local, de acordo com as descrições semelhantes que me forneceram120.
Mas Julio continuou a conversa, insistindo que adorava o Brasil. Um sentimento
relativamente comum no Mindelo, lugar que tem uma grande influência da cultura
brasileira, seja na música, no carnaval, nos programas televisivos sobre crimes, nos de
auditório ou nas telenovelas. Com o sorriso que não saía de sua boca, disse-me que
tinha o sonho de ir morar no Brasil. Uma das razões, as mulheres. Falou sobre as
No Mindelo, fui espontaneamente classificado como ―branco‖ em algumas oportunidades. Entre elas,
quando sofri um cassi bodi, um termo crioulizado da expressão inglesa ―cash or body‖, que significa
―assalto‖ ou ―roubo‖. Sugeriu-se que minha condição de ―branco‖ teria sido um atrativo para os ladrões
me escolherem como vítima, haja vista que eu trazia no corpo ―branco‖ as marcas de uma estrangeiridade
associada à riqueza. Além disso, minha condição de ―branco‖, principalmente simbolizada em meus fios
lisos de cabelo, era um diacrítico no mercado (homo)sexual local.
120
Pedro, um jovem universitário de São Vicente demonstrava sempre uma fervorosa fé católica. Apenas
depois de conhecer seu namorado, um policial da cidade de Praia, é que Pedro, agora ―assumidamente‖
gay, se sentiu a vontade para falar de suas preferências homoeróticas. Contudo, ao ser perguntado sobre
como ele conciliava a sua fé católica e a sua identidade gay, muito incomodado, ele disse que ele preferia
não falar disso.
119
144
mulheres brasileiras, que segundo ele, são ―as mais lindas‖. Fez com as mãos a silhueta
de uma grande bunda e teve um tremelique, como quem só de lembrar, já fica excitado.
O tal homem mais velho, já à margem da conversa, insistiu em flertar comigo e a
certa hora eu disse que era casado. Julio então se virou para mim e perguntou se era com
―uma pequena‖121. Eu disse que era com um ―gajo‖. Ele inclinou-se para trás, olhou-me
bastante espantado e perguntou novamente. Corrigi-me, disse que não era casado ainda,
mas que pretendia casar e que, portanto, eu seria noivo. Ele passara os olhos em minhas
mãos provavelmente procurando uma aliança, mas não havia nenhuma. Julio perguntou
novamente com uma expressão de espanto se era com um ―gajo‖ mesmo. Eu reafirmei e
ele fez caretas de espanto, jocosamente exageradas. Sem se convencer, ele soltou um:
―Sem preconceito, não tenho nada contra‖.
Em seguida, ele pediu que eu sentasse ao seu lado e a partir daí eu pude
conhecer em parte como pensam e agem alguns dos rapazes ―não-gays‖ do Mindelo. Ele
me viu chegar com amigos ―gays‖ à praia, pessoas reconhecidas por todos como tais,
naquela cidade de pouco mais de setenta mil habitantes. Para ele minha sexualidade era
confusa, pois eu não trazia às vistas, como eles dizem, as marcas do ser ―gay‖ no
Mindelo, ou em Cabo Verde.
Ele então insistia algumas vezes com a pergunta sobre se eu era realmente ―gay‖
e eu lhe respondia todas as vezes que sim. Testando-me e com alguma curiosidade,
perguntou-me o porquê d‘eu gostar de ―gajos‖. Eu respondi que não sabia, que era
―desde sempre‖ assim. A cara dele permanecia como a de alguém incrédulo, olhos
descrentes, boca entreaberta. Minhas roupas e voz masculinas não se encaixavam na sua
classificação de identidades sexuais. Somente aos poucos ele me concederia o indulto
da estrangeiridade e entenderia junto comigo a possibilidade da existência d‘outro gay.
Para compreender melhor, ainda que com algum pudor, ele me perguntou bem
baixo em meu ouvido se eu gostava mesmo de ―dar o cu‖, pois como eu entenderia
depois, este ato é como uma espécie de metonímia para o ser gay em Cabo Verde.
Rindo e um pouco sem graça, eu revelei minha preferência em ser o ―ativo‖, aquele que
penetra. Confundi-lhe mais uma vez. Em toda sua expressão corporal, Julio não
O fato d‘eu chegar na Lajinha com amigos gays talvez tenha despertado desde já a sua curiosidade
acerca da minha sexualidade. Se andar com amigos gays não é condição necessária para ser socialmente
lido como ―homossexual‖, trata-se no Mindelo de um indício.
121
145
escondia sua incompreensão. E antes d‘eu mesmo entender o ruído, devolvi para ele a
mesma pergunta que ele me fizera, provocando-o. Ele negou balançando bruscamente a
cabeça e exibindo no rosto, uma expressão de nojo e/ou de dor. Contudo, ele
permanecia avidamente interessado em matar aquela charada que eu me tornara para
ele.
Em algum momento, entre uma rápida mexida e outra em seus órgãos genitais,
um hábito frequente da expressão de virilidade dos rapazes do Mindelo, sempre
desconfiado, ele afirmou que eu não parecia ―gay‖. Informação crucial, mas que só
depois de conviver com os sampadjudus no Mindelo, eu entenderia plenamente. Daí em
diante, Julio não parou de conversar comigo ao pé do meu ouvido, falando em voz baixa
e em tom de segredo. E para tal, lançava seu corpo sempre em direção ao meu, haja
vista que não estávamos completamente próximos. Era-me claro naquele momento que,
sem grandes tensões, o canal de comunicação entre nós estava se sofisticando.
Sentindo-me confortável para tal, perguntei-lhe se ele também gostava de
―gajos‖. Ele titubeou. Disse em um português um tanto precário que gostava de ―ser o
homem‖. Tentando traduzir na hora para o meu sistema simbólico, eu não entendi se ele
estava dizendo ser ―heterossexual‖ ou se ele gostava de ―ser o homem‖ com outros
homens. Mas ele esclareceu em um tom muito confessional que era a segunda
alternativa: que ele gostava de meter em gay (ou seja, em termos crioulos ―ser o
homem‖, ser aquele que penetra).
Estando nada certo ainda em relação à minha (homo)sexualidade e portanto,
inseguro sobre se eu era um interlocutor ideal para suas confissões e investidas, disseme que gostava de mulher também. Para logo em seguida, contudo, dizer que preferia
―cu de gay‖. O que lhe fez permanecer ainda no campo mais seguro da ambiguidade. Eu
lhe perguntei se ele já tinha tido com gays e ele respondeu que sim.
Para entender melhor sua experiência sexual e afetiva, questionei-lhe se ele já
havia namorado ―gays‖. Ele fez uma de suas caretas hilárias. Senti que o peguei de
surpresa com a pergunta. Assustado e com uma expressão de dúvida, como quem não
entendeu o sentido da pergunta, ele respondeu que não. Quando lhe inquiri sobre o
porquê disso – já que ele dizia preferi-los sexualmente – ele me deu uma resposta
reveladora: disse-me que nunca havia nem pensado nisso.
146
Não foi o único dos rapazes não-gays do Mindelo a me dar essa resposta para
esta mesma pergunta. ―Namorar‖ e ―gay‖ não costumam fazer parte do mesmo campo
semântico para este(s) rapaz(es) e, juntas, as duas categorias não fizeram sentido,
mesmo quando eu argumentava, provocando-o(s), que se ele(s) gostava(m) mais, ele(s)
deveria(m) namorar um. Julio era-me uma espécie de ―tipo-ideal‖ dos rapazes ―nãogays‖ do Mindelo. Ele enquadrava as categorias ―gay‖, ―homossexual‖ – enquanto
sujeitos, e não práticas – como algo do plano estritamente sexual, como objetos para
satisfação de um desejo momentâneo. ―Namorar‖ é de outro campo semântico, o da
norma, da afetividade, da publicidade, da continuidade no tempo e da tradição122.
Curioso pelos caminhos surpreendentes que aquela conversa seguia, perguntei
qual era a diferença entre homem e mulher. Ele disse-me então que ―comer cu‖ de
homem é mais ―sab‖ (―bom‖, ―gostoso‖, em crioulo), pois pode meter ―mais forte‖ e ―é
mais quente‖. Curioso pela especificidade da expressão daquele desejo, perguntei se
para ele o ―cu de mulher‖ não era igual ou ao menos parecido. Ele respondeu
enfaticamente que não! Reclamou ainda que as mulheres não gostam de ―dar‖ (fazer
sexo anal sendo ―passivas‖), ao contrário dos ―gays‖. Como quem diz que, ainda que
fossem iguais, a oferta dos primeiros é ínfima.
Com homem, o sexo é mais ―moral‖ – sentenciou espontaneamente. ―Moral‖
(pronuncia-se ―murale‖ no crioulo dos mindelenses) neste contexto significa ―menos
cheio de frescuras‖, ―mais sacana‖, segundo informações que depois meus
interlocutores me forneceram. Diferente de antes, ao simular com as mãos a silhueta da
bunda de uma mulher brasileira genérica, Julio agora classificava os orifícios anais
masculinos com um entusiasmo de quem realmente gosta da coisa, mas ao mesmo
tempo com alguma vergonha que o faz permanecer falando baixo ao meu ouvido, sem
estrilo, sem escândalo. Uma estratégia que, ao mesmo tempo em que o protege das
fofocas, o faria mais sedutor.
Mas Julio não se convence nada fácil. A minha identidade sexual ainda é muito
pouco gramatical para ele, que permanece desconfiado. Ele ainda não tem certeza sobre
onde está pisando e me pergunta, testando-me e tentando ao mesmo tempo me seduzir,
122
Mesmo o namoro entre parceiros de sexos diferentes têm suas especificidades em Cabo Verde e
categorias como ―afetividades‖ e ―publicidade‖ devem ser relativizadas. Sobre conjugalidade nas ilhas,
ver LOBO ( 2012).
147
se eu gosto da piça 123 grande. Eu respondo que não, ele espanta-se novamente. Nesse
momento, sem querer, eu confundo mais ainda seu sistema classificatório, porque os
sujeitos gays do Mindelo quase sempre valorizam esse signo da enormidade do falo e
até classificam os rapazes a partir dele. Um rapaz que nos abordava frequentemente na
rua em busca de sexo rápido ganhou de meus amigos gays mindelenses até o maldoso
apelido de ―paliteiro‖, pela fineza de seu conhecido órgão.
E eu, que para Julio já não parecia um sujeito ―gay‖ pela minha vestimenta
tipicamente masculina e pela minha performance como um todo muito pouco feminina,
depois de tudo, ainda falar que não gostava de ―piça grande‖, causava-lhe mais
insegurança ainda quanto à minha (homo)sexualidade.
Nesse momento ele comenta reticente, levantando o queixo e afastando o tronco
para trás, como quem pergunta desconfiando e espera uma resposta: ―Você não é gay...‖
Eu imediatamente insisto que sou, já achando bastante graça naquele ruído de
comunicação interminável e aparentemente insolucionável. Era engraçado e intrigante
aquela tradução precária da categoria ―gay‖, homônima homófona em nossos sistemas
linguísticos. Pois que não era somente um ruído causado pela disparidade de nossas
línguas maternas, mas um uma incompreensão de todo um sistema simbólico que
extrapola a língua.
No embalo daquela conversa reveladora e descontraída, pergunto então se ele
tinha uma piça grande, já que eu entendera que ele iniciara este assunto sobre o tamanho
do pênis, em grande medida, para fazer uma autopromoção, e faço o gesto que eles
fazem no Mindelo sempre para se referir a isso. Trata-se de colocar o dedo indicador no
antebraço (ou no pulso), como quem mostra a medida de um pênis, cujo tamanho seria
medido da ponta dos dedos esticados de uma mão até aquele local indicado no
antebraço ou no pulso pelos dedos da outra mão.
Ele me diz que a sua piça não é grande e faz o gesto com seu indicador, fixandoo abaixo de seu pulso, como quem mostra que é ―pequeno‖. E pelo menos para os
padrões que sempre me foram narrados pelos meus interlocutores, segundo sua
indicação métrica, seria de fato ―pequeno‖. Julio disse isso muito provavelmente
porque, uma vez que eu tinha dito que não gostava da piça grande e que ele estava,
Significa ―pênis‖ em crioulo. ―Piça‖ seria o termo mais vulgar para tratar do órgão masculino, mas há
outros termos como ―peixe‖, que são largamente usados.
123
148
claramente, disposto a ter comigo, ele não podia me afugentar. Do contrário, tenho
quase certeza que ele enalteceria esse seu atributo, insígnia valiosa no mercado
(homo)sexual local124.
Não sei se imediatamente em seguida, mas a certa hora, perguntou-me também
se eu gostava da vaquinha. Eu não entendi a categoria e lhe perguntei o que era a
vaquinha. Ele respondeu ―a posição [sexual]‖. E eu imaginei que era uma posição em
que os quadrúpedes ficavam em suas relações sexuais, ou seja, o popularmente
conhecido ―de quatro‖. Não me recordo da resposta, mas todo esse léxico pornográfico
e supostamente ofensivo à moralidade, de maneira alguma me ofendia ou me
repugnava. Tratava-se de um inquérito, de uma provocação, de falar obscenidades para
angariar sexo, tratava-se de um ritual homoerótico.
Durante toda aquela conversa, a postura de Julio era ao mesmo tempo de uma
ternura e de uma honestidade tão grande que para mim neutralizava por si só qualquer
caráter moralmente ofensivo ou de despudor. E, claro, como antropólogo, fui treinado a
ter uma postura séria e respeitosa diante dessas situações, sem perder a ironia inerente
aos discursos de meus interlocutores quando o assunto era sexo.
Ao longo e no fim da conversa, Julio se mostrou muito respeitador, dizia ter
gostado de mim e, após perguntar onde eu me hospedava, sugeriu: Levam má bô! (―Me
leva contigo!‖ em crioulo dos sampadjudus). Curioso é que essa expressão crioula,
muito comum nessas situações de abordagem dos gays pelos rapazes, dá a entender e,
de fato é assim que efetivamente acontece, que são os sujeitos gays que levam esses
rapazes, que os conduzem e ditam as regras sexuais. Numa inversão ritual de poder em
relação ao cotidiano da sociedade crioula mais ampla, onde os sujeitos gays detém
menos signos de positivação social do que os sujeitos ―heterossexuais‖125. Nesse
sentido, parece interessante a sugestão do antropólogo inglês Victor Turner a respeito
dos ―ritos de inversão de status‖ (TURNER, 1974, p. 203), como veremos depois com
mais detalhes.
124
Não pude averiguar a extensão social em que este atributo é positivado no Mindelo. Contudo, a ficção
de Germando Almeida, célebre romancista da ilha de São Vicente, indica que tal atributo extrapolaria a
sociabilidade gay, quando um de seus personagens, Eugênio, para impressionar sua amiga Sulena, diz
jocosamente ser um trauma desde a juventude ter um ―cacete de polícia [...] entre as pernas‖ (ALMEIDA
G. , O Mar na Lajinha, 2004)
125
Sejam eles heterossexuais ―de fato‖ ou ―de direito‖, para usarmos uma expressão do mundo jurídico.
149
Julio, diferente de outros rapazes mais ousados ou mais ―agressivos‖, era um
rapaz muito educado126. Perguntou-me umas duas vezes de maneira muito tranquila e
gentil se ele não estava me incomodando e dizendo que se ele por acaso estivesse, que
eu poderia pedir-lhe para se retirar, que ele sairia imediatamente. Eu lhe disse todas as
vezes que estava tudo bem, que ele não precisava sair. Ele disse morar em Fonte Inês
(pronuncia-se ―fondnês‖), uma zona periférica e pobre adjacente à morada, o centro da
cidade. Mas ele não parecia ser um menino sem a instrução da educação formal, como
alguns dos residentes daquela área o são.
Certa hora ele perguntou o que eu fazia no Mindelo e eu disse que vim fazer
uma pesquisa. Um amigo dele, introduzindo-se na conversa, perguntou-me o que era a
pesquisa e eu disse que era sobre ―as relações [sexuais] entre homens aqui‖. O amigo
não pareceu mais interessado, mas Julio, para a minha surpresa, imediatamente disse:
―Então está me pesquisando?‖ Eu fiquei sem jeito com a situação e disse que estava
apenas conversando. A partir daí também, entendi que entre os rapazes não-gays
amigos, era possível compartilhar algo de seus próprios homoerotismos127.
Mas, para meu alívio, ao ver meu desconserto, Julio gargalhou. Estava mesmo
só de troça (―brincadeira‖) com a pergunta, pois não aparentou se importar nem um
pouco com a pesquisa e já foi logo, mais uma vez, apertando minha mão, como quem
reafirma a amizade (ou também, para sermos mais realistas, como quem ainda se mostra
interessado e disposto a ter comigo, apesar de revelado meu interesse acadêmico
naquela conversa).
Por fim, Julio fazia caretas muito engraçadas quando o assunto era a passividade
no sexo, algo pressuposto pelos cabo-verdianos como do gosto de qualquer sujeito gay.
Perguntava o porquê e do como gostar desse tipo de ato sexual, como quem fica
impressionado com a possibilidade de alguém gostar de fazer tais coisas. Ele mesmo
126
E possivelmente Julio era menos experiente, pela pouca idade, na arte de sedução dos crioulos caboverdianos, que não costumam conceder tempo para que você racionalize sobre sua suposta ―educação‖.
127
Sobre a questão, anoto em meu diário de campo em relação a outra situação: ―Perguntei também se
entre os rapazes, eles conversavam entre si sobre essas experiências e Didi me disse ter certeza que sim e
esclareceu: Disse que às vezes acontece de algum rapaz vir já sabendo de todos os atributos (físicos ou
performativos) deles. O que, me confessaram, é às vezes bastante constrangedor e riu. Nesse momento
Cesar retornou da Caravela e Didi repetiu minha pergunta para ele, para integrá-lo na conversa e para que
ele pudesse dar a opinião dele. Cesar foi categórico: ‗Conversam tudo! Você nem chegou na sua casa
ainda e eles já estão pegando o telefone para contar pro amigo‘. Eu perguntei então: ‗Se eles têm a
liberdade de contar entre os amigos, de quem afinal de contas, eles escondem?‖. Didi respondeu que eles
escondem da sociedade mais ampla, da família, das namoradas.‖ (―Um passeio de domingo‖ 29/09/2013.
Diário de campo, p.83)
150
parecia não gostar. De fato, não sei se ele aceitaria ser penetrado caso estivesse na
terceira ou na quarta relação sexual com o mesmo sujeito homossexual (e, portanto,
com mais intimidade e mais livre). Pois, segundo me diziam os amigos gays de lá, os
rapazes no intuito de performarem a virilidade que os próprios gays esperam deles, se
recusam a serem ―passivos‖ inicialmente. Mas eventualmente acabam dando depois de
alguns encontros, por livre vontade, por um ―desejo enrustido‖ ou por mera
―curiosidade‖. Os gays contam sobre essas situações com uma ironia misturada a certa
decepção. O que sei é que, definitivamente, não parecia a Julio uma boa ideia.
Como já aludi no capítulo anterior, ser ―gay‖ no modelo hegemônico de Cabo
Verde guarda proximidades ao ser ―bicha‖ na periferia de Belém, etnografada em 1974
pelo antropólogo inglês Peter Fry (1982b). Ou seja, a conversa com Julio me ajudou a
entender que ser ―gay‖ hoje tem muito a ver não só com uma postura de assumir a
própria homossexualidade publicamente (e isso se realiza não só de forma verbal, mas
também com as pessoas com quem se anda, os vestuários, a performance corporal etc.)
mas também com a classificação local sobre as performances sexuais, que cola
―passividade masculina‖ à ―homossexualidade‖. Ser ―gay‖ naquelas ilhas também é
trazer no próprio corpo masculino signos do feminino, é parecer mulher, de alguma
forma ou em algum aspecto128.
Daí uma das brincadeiras do suposto envolvimento sexual de dois gays, que
como vimos no segundo capítulo, é algo que na prática nunca acontece no Mindelo, é
desses serem classificados como ―lésbicas‖, ou seja, mulheres que se interessam
sexualmente por outras mulheres, numa correlação lógica sexista e binária. Signos de
feminilidade não são somente e sempre alvos de chacotas, mas são muitas vezes
valorizados, buscados e articulados pelos próprios sujeitos gays em seus corpos, de
maneiras as mais diversas, como afirmação de uma identidade diferenciada e como
subversão de uma ordem heteronormativa, numa postura que se poderia classificar de
queer, como já tratado anteriormente.
Contudo, no limite, a feminilização exacerbada do sujeito gay em Cabo Verde,
expressa nas expressões corporais ―exageradas‖, pode ser acusada de leviandade, seja
pelos sujeitos não-gays seja pelos próprios sujeitos gays. Assim sendo, é possível no
Mindelo recomendações tais como: ―Só espero que você não seja um gay leviano‖,
128
Sobre ser gay em Cabo Verde, ver a Introdução e o Capítulo II desta dissertação.
151
como disse a irmã de Elzo, quando ―descobriu‖ sua homossexualidade. O mesmo estava
implícito em alguns comentários de alguns gays que escutei em relação às travestes129.
Além disso, o mais significativo nessa conversa com Julio e a razão pela qual eu
a escolho para abrir esse capítulo é que ela é uma espécie de síntese do que encontrei no
exercício (homo)sexual de alguns rapazes do Mindelo. A princípio e na superfície, a
virilidade do homem cabo-verdiano e de sua abordagem; a exaltação do corpo feminino
como signo de sociabilidade entre os homens; a menção e a filiação à religiosidade
católica (e seu quadro moral e normativo); a aproximação cultural com o Brasil e as
atualizações que este exporta para Cabo Verde; a simulação da ―homofobia‖ através das
bocas130 e obscenidades ditas; e, sob o manto dessa heteronormatividade, surge o desejo
homoerótico, que permanece envergonhado. Se enunciado, deve ser feito em volume
baixo, sem estrilos131, assim como a sua consumação.
As relações sexuais entre homens parece ser uma prática muito mais recorrente
do que se poderia supor quando se associa a homossexualidade apenas aos rapazes e
moças que publicizam em seus corpos suas identidades sexuais. Etnograficamente,
captei uma parte da vida sexual dos sampadjudus que mostra que as relações
homoeróticas entre homens são muito mais recorrentes do que se supõe. Sentindo-se por
vezes alvos do ―preconceito‖ de sua sociedade, meus interlocutores gays revelaram-me
um sistema em que eles são os testas-de-ferro, se os posso chamar assim, expostos tanto
às investidas sexuais quanto à violência, muitas vezes iniciativas dos mesmos
indivíduos, o que geraria a suposta contradição. No rastro de suas próprias concepções,
chamei tal sistema de Hipocrisia132.
Assim, sob a invisibilidade socialmente estimulada dos desejos homoeróticos de
alguns homens cabo-verdianos, que por motivos culturais e psicológicos não
incorporam uma identidade ―gay‖ (no sentido de ―bicha‖) ou ―homossexual‖ (no
sentido do modelo simétrico proposto por Fry), os sujeitos que o fizeram e fazem – ou
129
Como vimos no capítulo anterior, a fronteira que separa gays e travestes, é muito tênue e porosa. A
identidade traveste diz respeito não somente a classificações por intensidades de
masculinização/feminilização dos corpos, mas também reverbera posições de classe. No geral, porém, as
travestes são aquelas que nasceram com órgãos genitais masculinos, são pessoas mais pobres, que ao
desejarem ser mulher mantêm seus corpos ao máximo feminilizados e que advogam, por vezes, esta
identidade para si.
130
Ao dizer, que ele não tem ―nada contra‖, ele deixa clara a pressuposição de que a homossexualidade é,
sociologicamente, alvo de críticas. Sobre as bocas, ver capítulo 2.
131
Termo que em crioulo significa ―escândalo‖.
132
Ver capítulo 2.
152
seja, os gays – acabam por realizar em seus próprios corpos uma grande demanda de
efetivação desses desejos homoeróticos dos não-gays, e sustentam assim o Sistema
Hipocrisia, apesar de tentar subvertê-lo em alguns momentos, como na formação e luta
do neófito movimento LGBT local133.
Esse tipo de configuração cultural encontrado em Cabo Verde para dar conta do
desejo homossexual dos homens, se gera o tipo ―não-gay‖, que proporciona aos sujeitos
gays muitas experiências sexuais narradas como ―prazerosas‖ e até um símbolo nacional
(ao destacarem o ―homem cabo-verdiano‖ como tendo uma pegada supostamente
melhor que os de outras nacionalidades), também gera neles algumas angústias,
principalmente à medida que os valores românticos da conjugalidade e do afeto se
solidificam entre eles e se tornam expectativas frustradas perante esses homens caboverdianos, avessos a um modelo de conjugalidade cristã. O ativismo internacional das
organizações LGBT no Mindelo, suas experiências migratórias e as telenovelas
brasileiras exibidas diariamente na televisão estatal têm pressionado esse fenômeno134.
Mas antes de passar à análise da angústia que o Sistema Hipocrisia tem gerado
nos atuais gays do Mindelo, é importante que analisemos as abordagens dos rapazes
não-gays e as estratégias dos gays, nos rituais de cortejo.
A abordagem dos rapazes
Nos meus primeiros dias de morador do Mindelo, eu ainda não acreditava
quando meus interlocutores falavam sobre como se davam os cortejos entre os rapazes e
eles. Ouvindo falar dessas abordagens desde quando eu ainda estava no Brasil e
conversávamos no facebook, parecia-me surreal que os rapazes agissem da forma como
os gays me diziam que eles agiam. Mas eu não esperaria para além da minha primeira
sexta-feira no Mindelo, para vê-la e ouvi-la, eu mesmo:
Atravessamos a rua em direção ao bar onde se realizaria o encontro com o diretor e, no
caminho, observei pela primeira vez desde que cheguei, a abordagem dos tais ―héteros‖, dos
―HSH‖, dos ―homens‖ com os meninos (e comigo também, afinal estávamos juntos). Cesar me
alertou: ―Escutou? Chamaram a gente de ‗coisinhas‘. Igual em português mesmo. É assim que
133
Sobre o movimento LGBT de Cabo Verde, ver capítulo 2.
Por um lado, o ativismo LGBT local pressiona, entre outras pautas, pela legalização da conjugalidade
homoafetiva. Por outro lado, as telenovelas brasileiras estimulam em suas tramas os valores românticos,
entre eles, a homoafetividade.
134
153
eles fazem‖. Eu observei na mesma hora e vi o rapaz que havia mexido conosco na esquina da
Rua Baltasar Lopes da Silva, ainda olhando. Cesar completou que isso não era ―homofobia‖.
(―Mais um dia de trabalho, mas é sexta-feira‖ 27/09/2013. Diário de Campo, p.61)
Até então, com exceção do ―HSH‖135, os termos êmicos que classificavam esses
rapazes eram ―héteros‖, ―héteros com aspas‖, ―bissexuais‖, ―homens‖, ―rapazes‖,
―mucin‖ e outros mais. Daí a razão do registro em meu diário de campo de alguns destes
termos. Mas já tivemos oportunidade de ver no capítulo anterior, como essas categorias
são fluidas e precárias. O que importa é que eu presenciara pela primeira vez a
abordagem dos rapazes sampadjudus aos gays. Fora uma abordagem extremamente
provocativa, como quase sempre o é. O termo ―coisinhas‖ possui uma ambiguidade
inerente, necessária a este ritual de cortejo. Mas antes de explicar a ambiguidade dos
termos e sua necessidade ritual, vejamos antes mais exemplos.
Noite de sexta-feira, o relógio devia marcar qualquer horário depois das dez. O
grupo de rapazes seguia-nos por trás. Eram todos jovens, não deviam passar cada um
dos 25 anos. E em meio à penumbra que as árvores faziam abaixo dos postes de luz da
rua, eles arriscavam o flerte. Estávamos em quantidade menor e éramos todos mais
velhos que eles, mas isso não os intimidara. Aliás, isso quase nunca os intimidava.
Constato que praticamente não há tensão em termos de uma eventual violência física.
Meus interlocutores gays não costumam temer os rapazes nesse sentido136:
E é uma situação tranquila ou tem alguma tensão?
Não, porque normalmente são eles que abordam, né? Então... Porque é assim: nós já por
sermos gays assumidos... É como se a gente tivesse já uma etiqueta: ele é gay, ele é gay...
Essa categoria é a sigla para ―homens que fazem sexo com outros homens‖, a qual introduzi sem muito
sucesso entre meus interlocutores do Mindelo. Trata-se de um termo utilizado no Brasil para se referir a
homens que não se reconhecem enquanto ―gays‖ ou ―homossexuais‖, mas que mantêm relações com
outros homens. Essa categoria fora absorvida pelas políticas públicas de saúde no Brasil, para dar conta
de um contingente populacional, que por não se reconhecer enquanto ―gay‖ ou ―homossexual‖, muitas
vezes também por apenas serem eles os penetradores, não era alvo de campanhas epidemiológicas de
doenças sexualmente transmissíveis, frequentemente dirigidas ―apenas‖ aos homossexuais masculinos.
136
Constatei apenas uma única vez o receio de Didi com um grupo de rapazes que estavam aparentemente
bêbados na rua, como anoto em meu diário: ―Um grupo de rapazes estava na nossa frente caminhando na
mesma direção que nós, porém no meio da rua, enquanto estávamos na calçada esquerda. Didi pediu para
que eu andasse mais devagar, para a gente não alcançar os meninos e minha atitude foi de quase parar.
Ele riu e falou que eu não precisava me preocupar, me apontou os rapazes e falou só que os rapazes
pareciam meio ‗alterados‘ e era melhor não chamar muita atenção. ‗Vê a garrafa de bebida na mão?‘ Eu
via. Fomos andando mais devagar, mas eles, em grupo, andavam mais devagar ainda. Foram mais para
direita da rua e passamos paralelos a eles. Didi estava bem produzido: maquiado de base e batom, com
um macacão de pano fino branco, com uma enorme fenda no peito e duas botas de cano longa sem salto.
Os meninos nos viram. E um deles, da onde estava, falou em voz alta, para escutarmos, que era ‗fã‘ do
Didi. Didi olhou meio desconfiado, mas cumprimentou o garoto e agradeceu. Depois os meninos
continuaram andando e o mesmo menino disse que o amigo dele queria uma coisa com o Didi. Falavam
em crioulo e Didi foi me perguntando se eu entendia e fazendo a tradução simultânea. Passamos, sem
incidentes.‖ (―Mais um dia de trabalho, mas é sexta-feira‖.27/09/2013. Diário de campo, p.65-6). Sobre a
violência física contra gays no Mindelo, ver capítulo 2 desta dissertação.
135
154
Então a gente.. Ta passando na rua, pode te chamar, ―quero te conhecer‖, e não sei que sei que,
―me dá teu número‖, ―onde você mora?‖, não sei que, ah... ―vai sair hoje?‖, ―vô‖, ―então a
gente se encontra na Laginha‖, ―a gente se encontra na praça‖ e não sei o que...
E se você não quiser, é tranquilo?
Sim, pois você não é obrigado. Se você não quiser... (Entrevista Lunga. Mindelo, 30/09/2013)
Entendendo que Lunga pretendeu criar uma breve síntese em sua resposta,
apenas registro que as supostas falas dos rapazes as quais ele se refere parecem
idealizadas. As abordagens costumam ser um pouco mais complexas do que faz parecer
neste trecho. Sendo mais ou menos simplificadas, o surpreendente na forma como os
rapazes abordam é que suas estratégias são absolutamente flexíveis e seguras para eles
quaisquer que sejam os resultados do flerte. Assim, se eles os chamam de ―coisinhas‖ e
os gays estão dispostos a ter com eles naquela noite, o termo ―coisinha‖ poderá ganhar o
sentido de uma provocação, de uma cantada. Esta cantada pode ser entendida como
―desajeitada‖ ou ―patética‖ se o sujeito gay estiver aspirando experienciar algo mais
romântico do que ser chamado de ―coisinha‖ ou poderá ser considerada viril se o sujeito
gay possuir expectativas mais eróticas do que afetivas. Ambas as percepções dos gays
não inviabilizariam automaticamente a eventual relação sexual que decorra desse ritual,
pelo contrário.
Por outro lado, o mesmo termo ―coisinha‖ poderá ser interpretado como uma
provocação, mas de cunho pejorativo, discriminatório e até humilhante, caso os sujeitos
gays, alvos do vocativo, não estejam dispostos a receber essa abordagem, por infinitas
razões pessoais ou conjunturais. Se isto acontece, ―coisinha‖ passa ser lido socialmente
como uma boca mandada, no sentido uma gozação ou uma troça de mau gosto, o que
mantém os provocadores distanciados e seguros em suas posições de ―macho‖. E, de
fato, a boca pode algumas vezes não passar disso mesmo para os rapazes, umas simples
troça. Refiro-me à ―coisinha‖, pois neste caso é muito evidente a flexibilidade do sufixo
diminutivo ―inha‖ contido nele, que sabidamente na língua portuguesa tem tanto a
potência da afetividade e do carinho quanto da desqualificação e do rebaixamento. Mas
a ambiguidade ora mencionada serve para quaisquer desses vocativos lançados no ritual,
inclusive ―paneler‖137.
Assim, terminando em um bate-boca público ou em um ato sexual, qualquer que
seja o resultado da provocação, este jogo entre os rapazes garante no plano ideal a
perpetuação da heteronormatividade para além do ritual. O que quero dizer com isso é
137
Para uma análise do uso do termo ―paneler‖ no Mindelo, ver capítulo 2 desta dissertação.
155
que no Sistema Hipocrisia, o sujeito não-gay é protegido, pois controla a performance
heteronormativa no ritual até o momento em que a suposta contradição entre o plano
ideal (heteronomativo) e as práticas (homossexuais) se torna insustentável, como
quando o ato (homo)sexual se consuma. Não perdendo de vista que o ―Sistema
Hipocrisia‖ é uma objetificação do antropólogo para estabilizar as perspectivas dos
sujeitos gays cabo-verdianos, a contradição ora mencionada é um acusação dos
homossexuais, verbalizada e denunciada por eles, apenas. Quero dizer com isso que os
próprios sujeitos não-gays não parecem encarar suas performances masculinistas e suas
relações (homo)sexuais como necessariamente contraditórias entre si. Contudo,
encontro-me em um enorme impasse analítico aqui, porque se a perspectiva nativa dos
―homens‖ – tais como descritos no ―modelo hierárquico‖ de sexualidade proposto por
Fry (1982b) de fato concebe, discursivamente, o sexo com as ―bichas‖ como uma
possibilidade que não os desestabiliza como ―homens‖, suas necessidades de
reafirmarem continuamente suas masculinidades parece indicar que assumem que elas
estão permanentemente em risco, necessitando da proteção do discurso masculinista,
como sugere a teoria queer.
Ainda não tenho condições de dar conta teoricamente deste impasse, que
precisaria de um trabalho etnográfico e intelectual mais profundo. Dessa forma, apenas
garanto que o ritual de mandar bocas só não irá garantir a efetivação ou não da relação
sexual, o que dependerá quase sempre da vontade e agência do sujeito gay. É um
sistema que opera nas ruas do Mindelo e opera relativamente bem, porque tem
ressonância entre os gays, como veremos em outras abordagens aqui.
Assim, mais tarde no mesmo dia, ouviríamos mais bocas, desta vez, porém, de
outros rapazes:
Fomos para o bar. No caminho, em uma das calçadas da principal avenida do centro, passamos
por um grupo de rapazes que mexeram conosco. Como falaram em crioulo, a princípio, eu
entendi só parte da abordagem. Assim que passamos por eles, entendi perguntarem: ―Vão dar
hoje?‖. Falaram umas duas vezes. Perguntei a Didi se era isso mesmo que tinham dito e ele
confirmou. Não respondemos à provocação. Depois os rapazes falaram ―levam má bô‖, que
Elzo e Didi me explicaram que em crioulo significava ―Me leva contigo‖. Em seguida, Didi me
explicou que esses rapazes veem os homossexuais na rua, à noite, produzidos e querem que os
levem para onde estão indo, que coloquem eles para dentro de boate, por exemplo. Ou apenas
tenham uma relação sexual. (―Mas um dia de trabalho, mas é sexta-feira‖ 27/09/2013. Diário
de Campo, p.63)
156
É evidente que dentro deste ritual há estratégias e agências dos sujeitos. Se os
rapazes percebem que uma provocação como ―Vão dar hoje?‖138 não funciona, pois os
ignoramos, e eles ainda estão desejosos de algo, outras estratégias serão acionadas.
Quase sempre a tendência das próximas bocas é de serem mais brandas, mais
claramente elogiosas, até o extremo de levam má bô, que sugiro inverter a relação de
poder existente no ato, ao conceder aos sujeitos gays as rédeas dos próximos
movimentos. Pois estes rapazes não-gays, bastiões da (hetero)norma e por ela
protegidos, é quem, a princípio, parecem deter a vantagem no embate e na negociação.
Ao solicitarem ―me leva contigo‖, invertem então o poder, seja pelo receio de não ter
seu desejo atendido – e assumem com isso o risco da inversão da hierarquia – seja pela
indisponibilidade de perpetuar aquele ritual demasiadamente. Em outras palavras, ao
declararem ―me leva contigo‖, assumem de maneira quase incontornável seu desejo real
e com isso perdem sua vantagem inicial.
Antes de partirmos para outro exemplo, gostaria de aproveitar para analisar a
dimensão da troca envolvida nesse ritual homoerótico. Em um ensaio reflexivo sobre o
trabalho de campo, o antropólogo gay norte-americano Stephen O. Murray, que
desenvolveu um vasto trabalho sobre homossexualidade em países da América Latina,
afirma que nem sempre a razão para que uma pessoa se engaje em um ato sexual é
propriamente o desejo ou suas preferências, mas pode ser para ascensão social,
benefícios financeiros ou motivos outros. Assim, relembra a sua condição em campo de
estrangeiro gay norte-americano em países em desenvolvimento e diz que ―não lembra
de ninguém que tenha dito ‗me leve contigo‘ diretamente, mas que o desejo [de emigrar
com ele] foi mais de uma vez visível‖ nas situações de flerte (MURRAY, 1996, p. 244,
tradução minha).
De acordo com o depoimento de Didi, Elzo e outros amigos, os gays do Mindelo
são frequentemente vistos como pessoas que possuem dinheiro, seja pela super
produção de seus vestuários seja pela sua grande circulação em festas caras pela cidade.
Não sei, acho... Que por a gente ter um bom gosto, uma coisa assim, se vestir de uma forma
diferente, excêntrica, mais... mais cuidada, né? Talvez por causa disso, né? E por a gente
frequentar... Digamos, meios um bocadinho mais... De nível mais alto, não sei, eles acabam
pensando que a gente tem dinheiro (Entrevista Elzo. Mindelo, 30/09/2013).
138
Efetivamente, perguntavam sobre a concessão de nossos orifícios anais.
157
De fato, pode haver outros interesses envolvidos neste ritual homoerótico que
não apenas a realização do desejo sexual contida no ato. Não só Didi me falava a
respeito do desejo dos rapazes para que fossem convidados para as festas que os gays
iam como eu mesmo pude constatar isso algumas vezes. Além disso, o dinheiro era
frequentemente algo que perpassava as negociações do sexo nas ruas do Mindelo, como
neste exemplo:
Passava já da meia-noite [...] Um rapaz passou pela rua que margeia a praça olhando para nós
sem parar por um segundo. [...] Os olhares continuaram mútuos. O rapaz chegou na esquina da
rua, ainda olhando para trás, em nossa direção. Parou e gritou de lá, perguntando em crioulo, se
tínhamos 100 escudos, pois ele precisava de dinheiro. Dissemos que não e ainda ficou parado
um tempo pensando e olhando para ver se topávamos dá-lo os 100 escudos (em troca do sexo
que ele ofereceria). Desistiu e continuou andando, mas ainda olhando. [...] Ele sumiu do
alcance de nossas vistas. Pouco tempo depois, o rapaz volta, olha de novo e Elzo o chama. Ele
sobe os três degraus que conduz à praça em que estávamos (que é mais elevada que a rua) e
vem em nossa direção. Estávamos sentados no banco (e eu em pé). O rapaz cumprimenta a
todos, com o tal soquinho, inclusive a mim. Pergunta nossos nomes e dissemos. Ele é um
garoto magro, mulato, com cara de menino, mas um jeito muito marrento. Ele pede, em
crioulo, agora, 50 escudos. Insistimos que não temos. Ele, meio irritado sai na hora, acusando
de estarmos ali apenas para passear à noite, como se nós tivéssemos fazendo-o perder tempo.
Meus amigos chegam à conclusão de que ele não estava ali só pelo dinheiro, que ele queria
alguma coisa, mas ficou amedrontado por nós sermos 4. Didi e Elzo confessaram depois que já
saíram com esse rapaz [...] Nas diferentes ocasiões em que eles tiveram algo com o rapaz,
disseram-me, o rapaz não pediu dinheiro algum (―De volta às entrevistas‖ 30/09/2013. Diário
de campo, p.92-3)
Apenas para que fique entendido, ―o tal soquinho‖ era uma forma padrão jovem
e masculinizada pela qual os rapazes se cumprimentavam, chocando levemente os
punhos da mão, e, por vezes, levando-a ao seu peito em seguida. Apesar do
cumprimento entre nós ser quase sempre feito com beijos no rosto, os rapazes
costumavam nos cumprimentar com o tal soco: uma outra forma, assim como as bocas
mandadas, de não só construírem performativamente as suas masculinidades, mas de
proteger as mesmas caso o ato homoerótico não se realizasse. Dito isso, é perceptível
que nesta e mesmo em outras situações, se o dinheiro era um mediador frequente (tanto
nas relações eróticas quanto nas relações de amizade), não acredito como Didi e Elzo
que o principal ou exclusivo objetivo dos rapazes com os gays fosse sempre ganhos
financeiros ou bilhetes de festas. Primeiro, porque os sujeitos gays raramente tinham
dinheiro para dar aos rapazes e mesmo que o tivessem, diziam se recusar a pagar por
sexo, pois ainda eram ―jovens‖. Além disso, nunca os vi aceitando levar os rapazes a
qualquer festa que fosse. Em segundo lugar, no mercado homossexual do Mindelo há
sempre rapazes desejáveis e disponíveis ao sexo não-pago. Segundo Elzo, esses rapazes
então lhe pedem dinheiro com a estratégia de ―se colar, colou‖.
158
Vejamos outro exemplo de abordagem. Já era madrugada de outro dia e Lunga e
Elzo me acompanhavam até em casa, como era de costume, depois de uma pequena
comemoração no hamburgoff139. Nas ruas desertas e precariamente iluminadas do Alto
Miramar, um rapaz nos seguia desde a praça Dr. Regala.
No caminho, o ―Palito‖, o rapaz que segundo dizem, tem o pênis fino, chamou Lunga. Lunga
primeiro o ignorou, mas depois foi ver o que ele queria e o diálogo traduzido do crioulo foi
mais ou menos assim:
-Tá afim de chupar o mano aqui?
- Mas eu nem te conheço – respondeu Lunga.
- E daí? Precisa conhecer?
E Lunga saiu sem dizê-lo mais nada. Em seguida, contou-me qual tinha sido o diálogo. O
garoto não se acanhou e continuou vindo atrás da gente e começou a falar qualquer coisa com
Lunga, chamando-o de antipático. Lunga rebateu-o, dizendo que ele é quem era um ―sem
educação‖. O rapaz seguia-nos pedindo para falar com ele em particular. Quase chegando aqui
em casa, porém, eu propus ao Lunga que ele deixasse o rapaz vir falar, pois eu queria conhecêlo. Eu ainda não havia conversado com nenhum desses rapazes e estava ansioso por conhecer
suas perspectivas. Lunga perguntou se eu queria mesmo isso e disse que, por ele, tudo bem.
Então parou e mandou o rapaz vir ao nosso encontro. Mas o rapaz queria falar com ele sozinho,
em particular. Eles se falaram, se cumprimentaram e o rapaz foi embora. Elzo já estava lá na
frente eu fiquei meio deslocado, no caminho entre os dois – pois não estava nem lá na frente
com o Elzo, nem podia estar na conversa com Lunga, já que o assunto entre os dois era
particular. Lunga expeculou que o rapaz deve ter ficado intrigado dele ter recusado o ―broche‖
e veio atrás para saber se tinha dito besteira, se ele tinha passado do limite na sua pergunta tão
direta. E assim terminou mais uma noite no Mindelo, com um rapazinho querendo sexo rápido
com os gays. E, na televisão, horas antes, discutia-se o casamento homoafetivo em cadeia
nacional. (―O programa de TV‖. 23/10/2013.Diário de campo, p.246-247)
Antes de mais nada, ―broche‖ é um termo usado no Mindelo com o mesmo
sentido que se usa em Portugal: sexo oral. Diziam-me eles que os termos ―mamada‖ e
―chupada‖ eram mais correntes, mas, para mim, sempre falavam em ―broche‖.
Explicado isso, importa constatar que esta era uma das abordagens típicas dos rapazes:
uma abordagem mais agressiva, mais direta ao ponto, que só era suavizada na medida
em que os sujeitos gays não demonstravam interesse e o forte desejo do rapaz ainda o
encorajava a negociar os termos. O ritual não teve eficácia imediata, o ato sexual não se
consumou em seguida, mas pode, ou poderia, ter acontecido até dias depois.
Como forma de trazer ainda mais elementos elucidativos, forneço outro caso que
aconteceria numa fresca noite de quarta-feira no Monte Sossego:
À noite, decidimos ir ao Monte Sossego: Elzo, Didi, Carlos e eu. Passamos por uma série de
ruas desertas e escuras pela madrugada e chegamos no bar ―Noites cabo-verdianas‖, onde
segundo Didi e Elzo, Cesaria Evora começou sua carreira como cantora. Conversamos muito
―Hamburgoff‖ era o nome de um estabelecimento comercial na periferia da cidade, homônimo ao seu
principal produto. Tratava-se de um enorme hambúrguer com ovo, além de uma série de outros
condimentos e recheios, entre eles, batatas fritas. Havíamos ido Elzo, Cesar, Lunga, Mônica e eu
comemorar a participação de Elzo no programa de TV ao vivo sobre homossexualidade.
139
159
sobre carnaval, eles me contaram como era a dinâmica das festas. Como saíam os blocos.
Disseram que era no inverno, no período mais frio (mínimas de 20ºC, segundo Elzo).
Contaram por onde os grupos desfilam, sobre as fantasias e as dinâmicas da competição.
Falaram que no carnaval, é uma ―loucura‖. Didi supôs que no carnaval fosse o período que
mais se fazia sexo. Elvis disse que era todo dia. No bar em que estávamos, Carlos pagou a
conta, porque já não tínhamos mais dinheiro. Um cara muito bêbado abordou Didi. Ele já vinha
atrás de nós, há algum tempo, chamando-nos. Didi fingia que não o ouvia, mas comentou com
o Elvis quem era o homem. O tal, que já era mais velho, entrou no bar onde estávamos e foi
perguntar se Didi não queria hoje [ter com ele]. Didi disse que não enfaticamente e tentava sair
de perto. O cara insistiu um pouco, mas a certa hora viu que não teria o que queria. Segundo
Didi, ele já havia tido com esse cara. Elzo disse que quando era pequeno esse cara o perseguia.
Que quando ele era criança, achava que o rapaz queria batê-lo e morria de medo, mas que só
depois entendeu o que ele realmente queria. Um bêbado abordando um homossexual na rua
para ter uma relação sexual não é novidade nenhuma para mim que já vi isso aqui e acolá, mas
impressiona que em Cabo Verde os homens façam isso com muito menos discrição do que
exigiria a moral urbana brasileira. Os homens vêm até nós publicamente, diante de outras
pessoas, dos clientes e dos funcionários do bar, com muito menos pudor do que no Brasil,
tenho achado. (―Oficina e os rapazes do ‗Regala‘‖. 16/10/2013. Diário de campo, p.203)
Um último exemplo, que já fora mencionado no segundo capítulo, foi quando eu
encontrei na cidade da Praia, capital do país, um rapaz gay de pseudônimo Graça. Ele
relatou-me ter sido abordado por outro rapaz que queria ter com ele, após ter mandadolhe bocas em público.
Sem entrar nas discussões sobre ―homofobia‖ e o mandar bocas, pois já o fiz no
segundo capítulo, esclareço que até aqui tratei das abordagens ou ―estratégias‖ que
alguns dos meus interlocutores gays consideram mais ―estúpidas‖, ―desajeitadas‖, ou,
jocosamente, como ―falta de estratégia‖. Estas estratégias fariam parte de um processo
ritual concomitante de construção da própria masculinidade comum em Cabo Verde
(MIRANDA, 2013). Contudo, há também aquelas estratégias mais brandas, digamos,
como parecem ser as do relato a seguir:
E como é que se dá essa abordagem na rua? Você pode me contar um pouco? Como é que
é? Você encontra alguém...
Sei lá, às vezes os rapazes te abordam, falam com você, metem conversa e aí a coisa vai... Se
você quiser e tal... Se não quiser também...
Mas eles chegam sozinhos? Eles estão em grupos de amigos...?
Pode ta sozinho, pode ta em grupo. Depende. (Entrevista Lunga. Mindelo, 30/09/2013)
Nestas abordagens mais sutis, era-me muito narrada a estratégia do olhar, a
importância do contato visual:
Conversamos ainda sobre seus olhares. Como o olhar dos rapazes na rua (ou em qualquer outro
local, mas principalmente local público) é o primeiro contato para uma eventual relação. Disselhes que eu tenho reparado no olhar que os rapazes lançam sobre eles e que percebo que muitas
vezes não me parece um olhar de estranhamento ou de curiosidade, mas um olhar de desejo
mesmo: um olhar fixo, sério, com a testa franzindo, um olhar que não se satisfaz só quando se
passa ao lado, mas que vira para trás, para continuar. Didi achou interessante que eu tivesse
reparado nisso, porque o olhar, disse ele, realmente é muito importante. ―É o primeiro sinal‖.
Elzo e ele disseram que ―todos‖ olham. Até com a namorada do lado ―eles‖ viram. Às vezes dá
160
até briga entre o casal, me disseram. Perguntei se ―pai de família‖ também olhava, e eles
disseram com ênfase que sim. Didi disse para eu me preparar, porque os rapazes já estão
começando a ver que eu estou andando com a ―irmandade‖, vão ficar mais seguros sobre qual é
a minha, e que mais cedo ou mais tarde, podem acabar me abordando. Eu disse, com alguma
modéstia, mas também sincero, que eu acho que não chamo tanta atenção. Eles foram enfáticos
em dizer que ―TODOS chamam‖. (―Um passeio de domingo‖. 29/09/2013. Diário de campo,
p.83)
Como veremos adiante, tanto o olhar seria a estratégia privilegiada de um
sampadjudu dias depois na praça Dr. Regala quanto o prognóstico de Elzo e Didi em
relação a mim estaria correto. Mas se eu reparava os flagrantes olhares de desejo dos
homens, suas performances orais seriam ainda mais interessantes. Assim, outra
abordagem típica era a dos estudantes do liceu, muitas vezes acompanhados, inclusive
de meninas, suas colegas de classe. Como ficávamos todas as noites na Praça Dr
Regala, ponto final de muitos ―autocarros‖140 que atendem ao público do liceu, era
comum vê-los sempre. Inclusive, neste sentido, era um ponto estratégico dos gays para
o flerte com os estudantes. A seguir, uma dessas experiências que anoto em meu diário
de campo:
Havia um grupo de rapazes saindo do Liceu. Eles passaram pela praça e notaram nossa
presença. De longe, aos risos, eles tentavam chamar nossa atenção enquanto seguiam seu
caminho. Eles gritam e assobiam. Chamamos os rapazes, um deles veio. A cena já é um tanto
cotidiana para mim aqui, mas Didi me explica: Sempre que passa um grupo de rapazes (mesmo
com meninas e eu já vi passaram com meninas também), eles tentam chamar a atenção,
―mandando boca‖, ou simplesmente gritando, assobiando, rindo alto, olhando fixamente ou
dizendo qualquer coisa. Didi continua: se nos interessa (aos ―gays‖) conhecê-los, ―chamamos‖
(os ―gays‖ chamam). Eles, os rapazes, sempre ficam empolgados com uma resposta nossa e
quase sempre param no mesmo instante, onde estiverem. Eles conversam qualquer coisa entre
eles e sempre é um deles que vem. Segundo o Didi, sempre o mais corajoso. Um dos rapazes
veio e o assunto é sempre uma besteira, linguagem fática, nunca se vai direto ao assunto. Se
não conhecem ainda, os ―gays‖ podem falar que acharam que era uma pessoa conhecida –
mesmo sabendo que não era. Ou podem ir perguntando alguma coisa mais prática, como se
estão vindo do liceu. O importante é começar a conversa, de uma maneira tranquila, sem
conotações sexuais explícitas, faz parte da etiqueta da paquera. Os rapazes, frequentemente
jovens, em idade escolar, vem e nos cumprimentam, dizem seus nomes ainda que um pouco
tímidos. Olham para os lados, respondem rapidamente as perguntas e ficam ansiosos. Mas se
for um primeiro encontro assim, entre amigos, no Regala, é quase certo que nada vai acontecer.
O encontro e as poucas palavras trocadas servem para fazer conhecer aos pares da eventual
disponibilidade para uma relação sexual. A relação sexual não precisa desse ritual para
acontecer necessariamente, ela pode acontecer de madrugada, na rua ou em casa, sem que os
parceiros se conheçam ou sequer tenham se visto algum dia. Mas esse tipo de ritual público de
reconhecimento é importante porque: 1) faz saber às partes um eventual desejo mútuo; 2) dá
segurança aos gays para levar os rapazes às suas casas (já que eles conhecem os rapazes
previamente o que evitaria levar um bandido); 3) cria a possibilidade de construir uma relação
não tão fixada no ato sexual, tal qual acontece com os encontros noturnos nas ruas. Os rapazes
foram embora com 1 ou 2 minutos de pura linguagem fática. Mas o ritual foi cumprido.
Perguntei ao Didi algumas vezes: ―e aí? Não gostaram? Por que deixaram eles irem?‖ E ele me
responde que era só um primeiro encontro. ―Eles voltam depois‖ – garantiu-me. Essa estratégia
da linguagem fática é muito usada. As conversas frequentemente se iniciam por um suposto
reconhecimento da pessoa: o rapaz é filho, irmão, primo de alguém. Ou por um copo d‘água
140
―Autocarros‖ são como os cabo-verdianos, assim como os portugueses, chamam os ônibus.
161
que se peça, por exemplo.‖ (―Oficina e os rapazes do ‗Regala‘‖. 16/10/2013. Diário de campo,
p.202-203)
Esses estudantes do Liceu, realmente deixavam-me muito intrigado. Lembreime, inevitavelmente, de meus tempos de escola no Rio de Janeiro e não consegui
vislumbrar qualquer possibilidade de um grupo de amigos, como o meu, naquele tempo,
sair a conversar à noite com figuras sabidamente gays pelas praças da cidade, sem que
isso gerasse uma chacota imensa e aquele que o fizesse, acusado até o fim do colegial
de ser ―viado‖, com todos os ônus desse estigma141. A homossexualidade em meu
sistema cultural era metaforicamente contagiosa. O contato com os reconhecidamente
gays era evitado, negado, fugido. Não parecia ser sempre o caso no Mindelo atual.
E Didi aproveita o momento para me ensinar sobre a dinâmica do flerte com os
estudantes:
É estranho isso, mas Didi me disse que é sempre assim: os rapazes quando estão em grupo
sempre mandam um deles vir e o mais ―corajoso‖ vem, me disse. Daí, dependerá, entre outras
coisas, do tipo de informação que esse que vai levar para os outros. É estranho também porque
dessa vez tinha umas meninas juntas. Não sei o que passa entre eles, e como seja normal um
deles vir falar com um grupo de homens sabidamente gays, que não seja para hostilizar, mas
por pura curiosidade ou interesse sexual. Mas não sei como isso pode ou não ser de boa entre
os amigos de escola. Sinceramente, isso me deixa muito encucado. Preciso entrevistar esses
rapazes!. Depois ele voltou pro grupo e depois foram embora. (―Gamja e a volta dos rapazes do
Regala‖ 17/10/2013. Diário de campo, p.209)
Sejam de homens mais velhos, seja dos estudantes, nós não éramos os únicos
alvos de suas investidas, as travestes contam abordagens semelhantes dos rapazes:
Ah ta. É... Sendo eu gay aqui em Cabo Verde, no Mindelo, como que eu faço pra
encontrar parceiros, se eu quiser namorar, se eu quiser... Eventualmente só ter uma
relação sexual...
Para mim é muito fácil. Ou mesmo pra você também é fácil. Porque os homens aqui do
Mindelo, esses de Cabo Verde gostam imensa de homossexual. Gostam. Então é muito fácil. É
só, pronto, exemplo: você vais fazer um volta, mesmo como tás aqui ou como tô. Eles
começam a chamar... Não tem mistério... Pra mim é fácil. É muito fácil. Muitos são tímidos,
tímidos modo pela [devido à] sociedade. Mas é fácil. Os homens do Mindelo já estão
acostumados com os homens daqui, então são todos umas galinhas. Isso não é problema.
E a abordagem deles? Como é que eles... O que que eles falam?
Muitas vezes dizem. Por exemplo, eu... Me chamam de ―gostosa‖, chamam de ―poderosa‖,
outros... (risos)... ―Doida‖. Essas coisas...‖ (Entrevista Lady. Mindelo, 27/09/2013)
Com Suzete, o mesmo parece se confirmar:
Que que eu precisava fazer...?
―Que que precisava fazer..‖ Você não precisa fazer nada, porque são eles que chegam. Ham. É
mais fácil ta acompanhando com um gay, que aí tens mais... Uma legião atrás. Porque eu adoro
141
Com direito eventualmente a violência física, violência simbólica, exclusão do grupo, desprezo
coletivo etc.
162
quando eles dizem ―Eu não sou gay, sou macho, eu sou isso, sou aquilo‖. Mas no vamos ver...
Eu sou mais macho do que eles. (Entrevista Suzete. Mindelo, 29/10/2013)
Se já vimos como agem, resta perguntar quem são, afinal de contas, esses
rapazes. A qual faixa etária pertencem? Qual é seu perfil socioeconômico? Qual seu
estado civil? Tantas questões e tão pouca possibilidade de interação para os fins
acadêmicos, que aproveito para perguntar por eles em algumas entrevistas, como na
seguinte:
E... Eu queria que você falasse mais um pouquinho desses, desses homens, né? Caboverdianos que... é... procuram os homossexuais.
É muitos... (risos)
Mas assim, eles têm relacionamento com mulheres?
Sim, sim, sim.
Quem são esses homens? Como é que eles são?
Muitos são, são homens... a camada jovem.
Quantos anos mais ou menos?
(Risos) Ah... Uns... Posso dizer...
(Elzo: Bem novinho!)
Uns 14 pra cima. Já começam a procurar os homossexuais. Dos 14 até os 80. Sim, até os 80
anos. (Entrevista Lady. Mindelo, 27/09/2013)
Eu não estava ainda satisfeito, queria saber tudo sobre esses rapazes. Em
determinado momento do trabalho de campo meu maior objetivo era conseguir
entrevistar alguns, movido, confesso, por certo fetiche do segredo. Mas conhecê-los não
foi uma missão fácil. Senti que meus interlocutores gays, apesar de prometerem sempre
trazê-los a mim, para uma conversa ou entrevista, acabavam por não fazê-lo.
Justificavam-se dizendo que os rapazes não iriam se dispor a conversar sobre isso
comigo, que isso era difícil. Para ser honesto, até vi Didi tentar uma ou duas entrevistas
com esses rapazes para mim, mas elas nunca se realizaram formalmente142. Então,
enquanto eu não conseguia falar com eles, eu tinha que conhecer esses rapazes através
dos próprios gays, que coincidentemente ou não, traziam descrições muito parecidas
sobre quem eram esses homens.
142
De fato, além do argumento exposto, sempre senti que não apresentavam seus parceiros a mim com
medo de que esta atitude de alguma forma prejudicasse seus relacionamentos com eles. Cesar, por
exemplo, em certo momento do campo, voltou a se relacionar com seu ―ex-marido‖, mas apesar de
estarmos sempre juntos, jamais vi o tal homem. Mesmo quando batíamos a sua porta e ele dizia estar com
o homem lá dentro de sua casa, este homem nunca aparecia. Outro exemplo, seria o recente casamento da
traveste Barbie, que nos contou numa noite na praia da Laginha ter tido direito até a ―véu e grinalda‖, mas
esse marido era uma espécie de fantasma para nós todos. Parecia-me muito evidente, que eles protegiam
esses homens os quais tinham relações um pouco menos fluidas. Refletindo mais tarde, percebi que além
da proteção fazia parte do ethos cabo-verdiano preservar a privacidade das relações afetivas.
163
E esses caras são quem? São jovens? São héteros?
São jovens. São pessoas que já tem uma certa idade, são héteros. É todos os tipos de pessoas
que podemos encontrar. (Entrevista Romeu. Mindelo, 09/10/2013)
***
E como são esses homens, esses rapazes que você está se referindo?
São totalmente confusos e perturbados. Ou seja, frustrados.
E se relacionam só com outros homens ou se relacionam com mulheres também?
A nossa sociedade é muito machista, portanto não se entregam total. É... tem que ter tipo uma
capa. Nesse caso, uma mulher. Para esconder. Gostam de estar contigo, mas tem de ir para um
outro lado, porque tem que dar algumas responsabilidades [satisfações] ao povo, porque o povo
é que os alimenta, o povo dá-lhes casa, o povo passa água no corpo. Enfim, essas coisas que
me barbarizam. Me deixam muito afetado com isto. (Entrevista Leandro. Mindelo, 26/09/2013)
Romeu me conta sobre o primeiro rapaz com quem teve uma relação sexual e o
perfil permanece muito semelhante:
Eu queria voltar na, bom, nesse rapaz aí que foi da sua primeira vez. Ele era assumido?
Ele não era assumido, não é assumido e continua não sendo assumido. Pra mim, ele é um rapaz
que tem sua vida, que tem seus filhos, gosta... Ele... Acho que ele gosta de ter relações com
―homensexuais‖, mas por mim, ele fez aquilo alguma vez e gostou e continua sempre a fazer.
Mas eu acho que ele tem alguma atração por gay. Não sei dizer. Mas acho que ele tem alguma
atração sim, se não ele não tinha... Ele não fazia relações com homens, com ―homensexuais‖.
(Entrevista Romeu. Mindelo, 9/10/2013)
Poderiam ser trazidos aqui muitos outros depoimentos sobre quem são esses
homens, sobre suas abordagens e como se dão as relações com eles. Mas por se
assemelharem demasiadamente, pouparei o leitor. O que consegui reunir de informações
sobre estes rapazes é suficiente para informar ao leitor que se trata de homens tanto
jovens quanto já mais velhos; sendo que em todo o campo, a maioria dos homens que vi
abordando os gays eram mucin, rapazes mais jovens. Não posso afirmar isso
categoricamente, mas em relação às condições sócio-econômicas, a maioria era de
jovens de classe média e baixa. Esmagadora maioria deles não são ―assumidos‖ diante
da sociedade e muitas das vezes possuem namoradas, esposas e filhos. Mas eu não
sossegaria enquanto não pudesse conversar com pelo menos alguns desses rapazes.
Badiu (John) e Joaquim, os rapazes não-gays
De fato, ao longo de todo o campo consegui conversar apenas com três dos
rapazes não-gays143. O primeiro foi Julio, em uma conversa a qual abro este capítulo e
143
Tenho ciência de que a perspectiva que construirei aqui a partir de seus depoimentos poderia ser mais
rica, caso eu houvesse conseguido depoimento de outros rapazes enquadrados como não-gays. Mas por
164
foi quem mais me abriu o mundo das perspectivas dos rapazes não-gays do Mindelo.
Além dele, conversei com o Badiu e com Joaquim, como relato nesta seção.
Comecemos pelo Badiu.
Era dia 11 de Outubro de 2013. Estávamos, como quase sempre, sentados na
Praça Dr. Regala conversando sobre mil assuntos e vendo mais uma madrugada ventosa
de outono passar. Não havia mais ninguém, que não nós. Não me recordo qual era o
tema da conversa na hora, só recordo que, de repente, chegaram dois rapazes na praça,
de uns vinte e cinco anos cada (ou mais), que vieram direto em nossa direção. Um deles
era um negro de pele mais escura, bem alto, muito forte, grande, bonito, que soubemos
pela conversa, que era badiu, ou seja, originário da Ilha de Santiago. O outro tinha a
pele um pouco mais clara, era mais magro e mais baixo, mas também bem mais bonito
que o amigo, concordamos depois entre nós. Este era de São Vicente mesmo. Ambos
vestiam-se como os demais rapazes do Mindelo, camisas t-shirt, calça jeans e cordões.
Uma vestimenta típica para as saídas noturnas, jovem e masculina.
Chegaram com copos de bebida alcoólica nas mãos. Os dois estavam bêbados,
mas o badiu parecia mais: ele não ficava em pé muito bem, falava mais alto, tinha mais
―atitude‖, gesticulava, enquanto o sampadjudu, seu amigo, ficava mais quieto, apenas
observando. O badiu pediu para acendermos seu cigarro, ficou se insinuando, passando
a mão nos meninos. Mãos que de tão grandes foram assunto para muitas especulações
depois sobre qual seria o tamanho de seu pênis, numa correlação jocosa. O badiu fez
com que bebêssemos a sua bebida, oferecendo-a a cada um de nós por vez. Mas sempre
que segurávamos o seu copo, para bebermos o conteúdo, ele o retirava com a
advertência de que queria ele mesmo nos dar na boca. Deixávamos.
Disse-nos que Didi e eu éramos as mais ―gatinhas‖, no feminino mesmo. E nos
beijou a todos no rosto, demonstrando uma atitude de cumprimento diferente dos socos
com punho, típicos dos jovens não-gays. Certa hora ele perguntou meio retoricamente
se todos nós éramos gays, algo que nem respondemos, mas estava subentendido. A
partir daí então ele focou mais no Cesar, sentou em seu colo, abriu-lhe as pernas, pediu
um beijo na boca, fez carícias, falou bem perto do seu rosto. Sempre de uma forma bem
viril e sedutora, sem deixar de encarar a todos em sua performance. Seu amigo
ora é o possível com a difícil interação que se pode ter com eles. Além do que, de certa forma, apoiei-me
na máxima de alguns interlocutores gays que diziam que ―conhecendo um, você conhece todos‖, num
exercício de homogeneização daqueles sujeitos, que, aliás, eles mesmos repudiavam para tratar de si.
165
permanecia em pé, mais quieto, um pouquinho mais afastado de nós, mas interagindo,
ainda que mais discreto. O badiu perguntou para onde nós iríamos mais tarde. Nós
respondemos que iríamos para Laginha, e ele perguntou se eles podiam ir com a gente,
nos acompanhar. O jogo de sedução durou por volta de uns vinte minutos. Certa hora,
antes de sairmos da praça, ele sugeriu que fôssemos os seis fazer ―alguma coisa‖, num
convite claro à orgia.
Foi a primeira vez que vi uma abordagem dos rapazes tão explícita, tão sedutora,
tão tradicionalmente masculina e apesar de não ter ninguém na rua àquela hora, tão
pública. Eles estavam realmente afim de fazer sexo. O badiu era um cara com uma
atitude extremamente viril, enquanto o outro tinha um charme mais sutil, com o ―olhar‖.
Didi e Elzo depois falariam para mim dessa suposta diferença entre as abordagens dos
são vicentinos e dos rapazes de Praia. Enquanto os primeiros seriam mais discretos,
investiriam mais com o olhar, os badius seriam mais ―agressivos‖, menos sutis144.
Os rapazes resolveram não ir mais à Laginha e ficar na Praça Nova. Antes,
porém, o badiu ainda tentou provocar, urinando na rua, exibindo a piça, bem perto de
onde estávamos. O que quero registrar, porém, é esse poder de sedução dos rapazes.
Didi, Lunga e Elzo sempre me falavam que ―esses homens começam a falar no teu
ouvido e quando você vê, você já está todo aberto, derretido‖. E foi sensação parecida
que ocorrera diante dos meus olhos. Importante ressaltar que, desta vez, os rapazes não
pediriam dinheiro nem nada.
Fomos para Laginha pela avenida marginal, já sem os rapazes, que acabaram
desistindo, quando deixamos Cesar vir conversando com eles atrás. Eu ainda estava
perplexo. E ficamos comentando sobre o episódio. Didi disse brincando que se eu fosse
com aquele badiu, eu nunca mais ia querer sair de Cabo Verde. Cesar disse que não
gosta dos badius, apesar de ter conhecido alguns ―lindos‖, mas porque os homens de
Santiago ―fodem que nem máquina‖ e ele não gosta. Sinceramente, exceto por Cesar,
que dizia ter voltado a se relacionar com o seu ―ex-marido‖, numa relação de perfil
monogâmico, não sei exatamente o porquê deles não terem aceitado o cortejo. Talvez os
rapazes tenham errado em ir direto ao ponto ou o fizeram rápido demais. Ou porque ao
serem abordados em grupo, se acanharam, apesar da grande intimidade que
144
No primeiro capítulo, explorei as diferenças culturais e as rivalidades entre badius e sampadjudus,
expressas também nas perfomances eróticas. Para a construção da virilidade nos meninos badius, ver
MIRANDA, 2013.
166
compartilham entre si. Ou simplesmente meus interlocutores gays não queriam nada
naquela hora.
O certo é que eu nunca mais veria aquele amigo do badiu, mas o próprio eu
encontraria semanas depois em uma festa de uma universidade local, quando finalmente
descobriria seu nome: John145. Se na hora da abordagem súbita dele e do amigo, eu não
tive chance de conhecê-lo melhor, eu não poderia perder essa nova oportunidade na
festa da universidade. Desta vez, ele estava com o irmão daquele amigo, um
sampadjudu gay emigrado em Lisboa, que passava férias no Mindelo. Seguem minhas
anotações do diário:
Ele pediu cigarro e eu dei. O amigo já foi logo botando a mão na garrafa de cerveja que eu
bebia. E eu tirei rapidamente a garrafa e disse que se ele quisesse, ele pelo menos teria que
pedir. John pediu, numa boa, para eu pegar leve com o amigo que já estava bêbado e falou que
eu podia dá-la para ele, que ele era ―brother‖. Pediram para nós comprarmos bebidas para eles,
mas apenas dividimos as nossas. Depois saíram. Em certo momento da festa, nos
reencontramos. Estávamos conversando e ele me disse que tem uma mãe de fidji portuguesa e
que é casado com uma francesa que mora em Paris. Ele estava com o tal amigo bêbado, que
não é o mesmo do dia no ―Regala‖, mas o irmão daquele, também daqui de São Vicente. John
apresentou o rapaz como ―gay‖ e o rapaz confirmou. Mas John disse que ele era um gay que
não ficava aparecendo muito e explicou que ele morava em Portugal. Esse amigo logo
perguntou se eu era também e eu disse que sim. Ele, que estava bêbado, veio logo com uns
braços por cima dos meus ombros e ficou me olhando e falando qualquer coisa, como quem
flerta. Logo eu disse que era noivo e o rapaz, que estava bem em cima, tirou gentilmente seus
braços e ficou mais acuado para investida – apesar de ter continuado de forma mais sutil
(perguntando, por exemplo, onde eu morava, se meu noivo era daqui também e quanto tempo
eu ficaria). Logo depois disso, eu perguntei ao John se ele também não curtia. Ele disse, com
cara de safado, que gostava de homem e de mulher. Lembro que eu ainda apertei o braço dele,
que é gigante, e perguntei se ele malhava. Ele disse que não malhava, que era da ―natureza‖.
Eu duvidei, argumentei que ninguém ficava assim do nada e sugeri que ele fizesse algum
esporte, como jogar futebol. Ele confirmou que joga futebol, handebol, basquete, mas que já
estava sem jogar desde que veio de Praia. Continuaram pedindo que eu comprasse cerveja para
eles, mas eu disse que não tinha dinheiro, que Didi que estava comprando pra mim. Eu até
tinha, mas era verdade também que Didi é que estava pegando cerveja para gente naquela
noite. Do pa dodu, como dizem na Praia. (―Festa dos calouros no Pontd‘água‖ 19/10/2013
Diário de campo, p.224)
Para John, fora preciso explicar que o amigo era gay, ainda que não aparentasse,
e rapidamente justificar que o amigo viera de Portugal146. John mesmo não parecia
assumir tal identidade gay para si, colocava-se apenas como um homem que se atraía
sexualmente não só pelas mulheres.
O mesmo poderia ser dito para Joaquim, um menino de apenas quinze anos, mas
que, por ser criado relativamente solto nas ruas do Mindelo, já domina toda a gramática
adulta local, entre elas, a (homo)sexual:
145
Evidentemente, como quase todos os nomes aqui, eu troquei seu nome para não expô-lo. De qualquer
forma, eu o veria ainda mais uma vez, desfilando em um concurso de beleza masculina na boate Caravela.
146
Sobre o que é ser gay em Cabo Verde, ver também o segundo capítulo desta dissertação.
167
Despedi-me do Didi e do Lunga e fui com o Elzo para casa. Joaquim nos acompanhou. No
caminho, botou a mão no meu ombro e no do Elzo. Ele é um rapaz alto, apesar de ter muito
cara de menino. Quando passamos a rua do Elzo, ele empurrou o Elzo e disse ―vá para casa, eu
levo ele em casa‖, se referindo a mim. (Agora você veja! Tem 15 anos e já tem essa atitude
toda!) Elzo disse que não e eu disse que Elzo tinha que passar lá em casa para pegar remédio.
Cheguei na porta do prédio em que eu me hospedo e eles se sentaram na soleira para me
esperar. Eu subi, procurei o remédio, mas não achei. Desci, pedi desculpas para o Elzo, que não
pareceu chateado e se levantou. Joaquim continuou sentado onde estava. Enquanto eu falava
com o Elzo, ele passou descaradamente o dedo nos pêlos da minha perna e eu senti na hora,
mas não me assustei, nem disse nada. E me olhou. Cumprimentei Elzo que já se encaminhava
para ir embora. Joaquim reclamou, perguntando se não íamos ficar ali conversando e demorou
para ele mesmo se levantar. Eu fiquei em pé, meio que esperando ver qual era a reação dele.
Elzo estava cada vez mais longe e se afastando e Joaquim ficou olhando pros lados, meio se
fazendo de perdido e como quem ta aguardando que eu o faça um convite para subir. Antes que
Elzo virasse a rua, porém, eu estendi a mão para o Joaquim, que olhava para os lados, e lhe
disse gentilmente: ―Então tchau, boa noite‖. Ele se virou e meio decepcionado, apertou a mão e
respondeu a saudação noturna. E saiu correndo para alcançar o Elzo.‖ (―De volta à rotina do
Regala‖. 18/10/2013. Diário de campo, p.237)
Conheci o garoto Joaquim quando este chegara no ―Regala‖ exibindo o
certificado que acabara de ganhar de ―aluno nota 10‖, conseguido por suas habilidades
no piano. Ele chegou com um amigo, mas o amigo logo foi embora. Sentou-se conosco
e parecia muito íntimo do Didi, do Elzo e do resto dos amigos, ou melhor, forçava
claramente uma intimidade. Didi não tinha a menor paciência com Joaquim, mas o
mesmo o abraçava e o beijava no rosto muitas vezes. Joaquim permanecia agarrado a
Didi, para sua ira. Certa hora também me chamou para sentar ao seu lado no banco e me
abraçou.
Quando lhe perguntei se ele gostava de rapazes, ele me disse já ter tido com o
Cesar, que tem uns vinte e cinco anos a mais que ele. Joaquim não se considera gay,
apesar de gostar de ter com eles. Quando perguntei a diferença entre homens e
mulheres, disse-me que, à diferença das meninas, ele não beija na boca dos gays, seria
raro. Disse que gay geralmente fuma e usa drogas. E que ele podia acabar pegando essas
―sujeiras‖. Ainda que, de fato, quase todos os meus interlocutores fumassem cigarros e
―gamja‖ (maconha) e pudessem usar algumas outras drogas, essas sujeiras que ele alega,
pelo tom da entrevista informal que fiz com ele, enquanto nos encaminhávamos para a
festa no Pontd‘água147, faz-me crer que as sujeiras não seriam só físicas, mas morais.
Aliás, o comentário sobre o beijo me revelaria algo muito significativo sobre afetividade
e angústia, que tratarei mais tarde.
Naquela noite em que conversamos com mais profundidade, ele disse que é
apaixonado por uma menina chamada Julia. Perguntei se namorava e ele disse que não.
147
Um complexo local de lojas e de lazer à beira-mar
168
Perguntei se já tinha namorado homem. Ele disse que nunca tinha nem pensado nisso.
Assim como o Julio, da Laginha, ele ficou meio desconcertado com a pergunta, não
parece constar no seu universo de possibilidades.
Ao perguntar se as pessoas sabiam que ele tinha com os gays, ele me respondeu
que não, porque ele ―disfarça[ria]‖. Perguntei-lhe então se ele não se importava de ser
visto andando com gays nas ruas. Ele respondeu que ninguém teria nada com a vida
dele. Justifiquei a pergunta dizendo que me parecia óbvio que o fato dele andar com os
gays poderia sugerir para as pessoas que ele também era gay.Joaquim me respondeu que
se ele está com meninas, suspeitam que ele estaria disfarçando, se não, também. ―Então
que se dane‖, disse. Perguntei se os amigos sabiam dele, se já tinham comentado que
também procuravam gays. Ele respondeu que só tem um ―amigo-irmão‖ e revelou que
este tal amigo – outro menino da sua idade ou ainda mais novo, que eu conheceria horas
mais tarde – não sabia e que nunca tinham conversado sobre isso. Assim acredito que
essa leitura cultural da homossexualidade como contágio simbólico – que é muito
comum em alguns sistemas heterocentrados – ainda que exista no Mindelo, parece não
ter a mesma intensidade que em outros lugares.
Mas Joaquim é visivelmente mais esperto que os demais rapazes de quinze anos.
E muito solto na rua também. Naquele dia ficou conosco até uma da manhã na porta do
Pontd‘água, em pleno período escolar. Fora os outros dias da semana em que ficava até
de madrugada conosco na praça. Ele tentava se enturmar num grupo onde tínhamos
vinte e quatro, vinte e sete, vinte e oito, trinta e seis e até mais de quarenta anos. Mas
Joaquim não entrara conosco naquela festa, não tinha dinheiro para pagar o ingresso e
não seduziu ninguém a fazê-lo por ele.
No dia em que ele tentou ter comigo, porém antes do episódio, anoto em meu
diário de campo:
No caminho encontramos o Joaquim (o menino de 15 anos, filho de pai senegalês e mãe caboverdiana emigrada em Portugal). Eu o conheci no dia da festa do Pontd‘água. Didi está sempre
irritado com ele e não tem a menor paciência, não sei ainda tanto o porquê disso. Joaquim é um
rapaz muito saidinho, como a gente diz no Brasil. Hoje, na volta da casa do Cesar, viemos
conversando nós dois somente. Ele perguntou como ia a pesquisa com os ―gays‖ (falou essa
palavra baixo e apontou simultaneamente Didi, Elzo e Lunga que caminhavam a nossa frente).
Eu disse que estava caminhando bem. Eu disse que a pesquisa o incluía também.
Imediatamente ele disse que não, como quem diz que não é gay e que, portanto, não teria nada
a ver com ele. Eu achei engraçada a reação e aliviei: disse que de uma certa forma incluiria ele
também e aí sim ele concordou meio sem graça. (―De volta à rotina do Regala‖ 18/10/2013.
Diário de campo, p.236)
169
Todavia, seria somente em outra conversa com Didi, que eu descobria mais da
biografia de Joaquim, como assim fazendo, compreenderia a implicância que Didi nutre
por ele:
Ainda conversamos sobre o menino Joaquim. Finalmente entendi porque Didi tinha tanta
implicância com ele. E foi Didi mesmo quem me explicou. Joaquim, apesar de não ser garoto
de rua, fica andando pela rua desde muito novinho, pois tem pai estrangeiro e mãe emigrada –
daí sua malandragem e esperteza. Didi me disse que ele, junto com outros amigos ainda mais
novos, uma vez estavam debruçado sobre o carro de Cesar, conversando. No dia seguinte,
parece que rolou uma fofoca de que eles, Didi e Cesar, eram pedófilos, afinal de contas,
estavam de conversa com meninos de 12, 13 anos. Didi ficou revoltado, porque era o Joaquim
e os amigos que ficavam em cima, e por isso que até hoje, ele não quer saber desse menino. Me
contou ainda que Joaquim era um dos meninos no ―escândalo do Simpatia‖. Um prédio onde,
de acordo com ele, uns irlandeses passavam estadias aqui e contratavam os meninos (e também
meninas) menores de idade para transarem. Prostituição infantil. Uma das vizinhas uma vez fez
um barraco e chamou os irlandeses de ―porcos‖. Didi me disse que prostituição infantil é um
problema sério aqui e crescente. Muitos meninos novinhos ficam andando na rua e acabam
aliciados. Joaquim seria um desses que teria dormido com estrangeiros. Por isso que Didi
perguntou se eu pagaria a entrada do Joaquim na festa, pois segundo ele, o menino estava
achando que eu iria fazê-lo. Joaquim, diferente do que eu acreditava, não estuda no liceu. Faz
só aulas de piano. (―O programa de TV‖ 23/10/2013. Diário de campo, p.240-1)
Não podendo avançar sobre sua biografia ou sobre suas perspectivas em relação
à sexualidade e compreendendo o processo ritual de construção da masculinidade em
Cabo Verde (MIRANDA, 2013), limito-me a evidenciar uma perspectiva de construção
dessa identidade sexual não-gay. Espero ter cumprido até aqui a tarefa de ilustrar quem
são, como agem e o que pensam, ainda que parcialmente, alguns dos rapazes não-gays
do Mindelo, que, no entanto, habitam o universo do homoerotismo. Basicamente,
destaco que os rapazes não-gays parecem se aproximar bastante dos ―homens‖ descritos
no modelo hierárquico de sexualidade masculina proposto por Fry (1982b) e, diferente
dos sujeitos gays, não verbalizam uma contradição entre (hetero)norma e
(homo)práticas. Falta-nos ver como a relação (homo)sexual pode ser desencadeada
entre esses sujeitos e como a angústia pode ser um de seus produtos.
Estratégias gays e sexo no Mindelo
Ao longo da seção anterior, mostrei diversos casos de abordagens dos rapazes
não-gays. Mas se o leitor estiver atento, perceberá que em todas elas, a princípio, o
ritual de cortejo não foi eficaz ou, para ser mais correto, do ritual não se seguiu
imediatamente a relação sexual. O que poderia eventualmente gerar a pergunta: se a
estratégia não parece ser eficaz, por que ela permanece enquanto tal? Mas se engana
170
quem tomar a ineficácia como premissa. Propositalmente, deixei os casos de sucesso
para o final, pois agora pretendo explorar com profundidade não somente as narrativas
sobre o ritual, mas o ritual em si. De fato, em todo meu trabalho de campo, em apenas
uma única vez eu estive presente em tal ritual de sucesso imediato, apesar de ter ouvido
sempre muitas histórias post facto148:
Em algum momento dessa conversa, Cleiton nos contou que se encontrou
com um rapaz na rua, na noite de ontem. Que o rapaz o abordou
discretamente, dizendo: ―vamos lá?‖ (em crioulo, só que não sei como se
diz). E ele foi. Mas, importante ressaltar, foi um pouco atrás do rapaz, ―uns
100 metros‖, para ser discreto. Foram para um lugar ermo perto da casa de
Abreu e tiveram a relação. Cleiton não gostou, primeiro porque o rapaz tinha
o ―peixe‖ pequeno, depois porque o rapaz disse para ele no final ―você não
me conhece e eu não te conheço‖ (também em crioulo) e, acima de tudo,
porque ele sentiu-se mal por estar ―traindo‖ o Vagner. (―Um passeio de
domingo‖. 29/09/2013. Diário de campo, p.84)
***
Abreu emendou o assunto para me dizer que ontem, depois que o deixamos,
ele viu dois rapazes na rua e os chamou para subir para casa. Só um deles
porém chegou. Ele subiu com o rapaz e estava fazendo um broche, quando o
outro bateu na porta. O segundo era um rapaz de 15 anos e Abreu queria mais
ele do que o outro de 25. Abreu então mandou o de 25 anos ir embora e ―teve
com‖ o de 15, que segundo ele era muito bonitinho. (―Gamja e a volta dos
rapazes do Regala‖ 17/10/2013. Diário de campo, p.208)
***
No almoço, pedi e Marcelo me contou do tal caso da noite anterior. Parece
que ele foi beber num bar perto da casa do Carlos e encontrou uns amigos.
Ficou conversando com um desses rapazes, que já conhecia. Segundo me
contou, teve uma festa na casa de um deles há mais ou menos um mês. Daí
que sumiu uma chave e o dono da chave ficou, brincando, acusando um dos
rapazes de tê-la pego. O rapaz acusado disse que não era ele e para provar
tirou toda a roupa. No fim, acabou tirando a até a cueca e Marcelo o viu nu.
Parece que esse mesmo rapaz – o acusado que ficou nu – estava no grupo de
amigos do bar, que Marcelo se referiu. Em determinado momento, em meio à
conversa, rolou um interesse mútuo e tal rapaz o chamou para uma viela. Ele
tirou o pênis para fora da calça e Marcelo fez um ―broche‖ e, no fim, engoliu
o sêmen. Não houve penetração. Parece que depois ainda conversaram
qualquer coisa. Não tive mais detalhes que isso, mas Marcelo estava feliz de
ter saído de um longo período sem ter qualquer contato sexual desse tipo.
Disse, porém, que não gosta de ter essas transas rápidas e que por isso fica
muito tempo sem fazer nada. Cleiton, que participava da conversa, disse que
agora que ele tinha recomeçado, que agora iria voltar a fazer direto. Todos
rimos. (―A abordagem dos rapazes‖. 11/10/2013. Diário de campo, p.160161)
Ficou-me claro que nestes rituais de cortejo, são os gays quem, de fato, dão a
última palavra para que o ato sexual se realize. A partir das experiências narradas, das
minhas observações e das entrevistas, percebi que os gays nem sempre performam nos
148
Alterarei aqui os nomes que vinha usando até então para não expor em demasia a vida sexual de meus
interlocutores.
171
rituais de cortejo o papel de passividade que lhes é esperado, enquanto seres
―femininos‖. Também eles olham, usam alguns truques de sedução e abordam.
Já era tarde da noite, ruas mais ou menos desertas. Dois rapazes rondavam a praça, parando em
uma loja de roupas que estava fechada, mas com a luz da vitrine acesa. Eles olhavam as roupas,
de costas para nós, mas bem próximos. Depois eles saíram. Mas algum tempo depois
regressaram e ficaram parados olhando a mesma loja. Cleiton, Abreu e Marcelo logo sacaram.
Cleiton disse que tinha ―boi na linha‖ e virou-se para olhar. Depois de algum tempo, quando
eles reapareceram ao redor da praça. Cleiton os chamou: ―você não é o ―irmão de Zé?‖. Mas
Cleiton chutou qualquer nome, nunca tinha visto os meninos, não os conhecia. Nenhum deles
havia visto os meninos até hoje. E eles vieram em nossa direção. Meio tímidos, mas rindo.
Eram rapazes novos, de uns 17 ou 20 anos. Os rapazes trocaram qualquer conversa com eles.
Os mesmos respondiam, abaixavam a cabeça, meio sem-graça. Nenhum assunto sexual, nada...
só amenidades em crioulo. Em certo momento, os rapazes se despediram e saíram. Me
explicaram que, como era a primeira vez, não propuseram nada, ―Para não assustar‖ e Abreu
disse que deixou eles irem, porque não queria nada com eles mesmo. Na classificação
compartilhada deles: um deles tinha mais cara de menino e por isso era menos interessante. O
outro era mais ―fortinho‖, mais alto (e, por acaso, de pele mais clara) ―tinha mais cara de
homem‖. (―De volta às entrevistas‖. 30/09/2013. Diário de campo, p.92)
Dois aspectos das estratégias dos sujeitos gays que chamaram minha atenção são
o abuso da linguagem fática e o acionamento de parentescos fictícios. Tais estratégias,
foi-me dito diversas vezes, funcionavam por não espantar os rapazes. Na primeira
abordagem não parece ser muito conveniente falar logo em sexo, ambos os lados do pa
dodu (―fazem-se de doidos‖) no ritual. O segundo aspecto – o acionamento do
parentesco (ainda que fictício) – pareceu-me ter o sentido de criar uma aura familiar à
abordagem, baseada nas relações de confiança, lealdade e vizinhança, no intuito daquele
rapaz se sentir à vontade149, o que seria o inverso das abordagens ―estúpidas‖ dos
rapazes.
Em relação às táticas dos sujeitos gays, obtive de Nonô, um homossexual de 63
anos e, portanto, o mais velho que conheci no Mindelo, o depoimento mais rico:
Começou contando algumas de suas ―tácticas‖ para conseguir rapaz. Uma delas era assistir
filmes pornôs em sua casa, de maneira que a imagem da TV refletisse na janela. Isso atraía os
rapazes curiosos que, volta e meia, pediam para entrar. Ele dizia que sempre vai aos poucos.
―Não pode assustar‖. Daí a razão dele responder que os filmes são sempre héteros, quando lhe
perguntei se eram filmes gays. O filme gay chocaria, já revelaria a situação e me parece que
aqui se cultiva muito o mistério das relações entre homens: a conquista, a conversa, o charme,
a dúvida e o risco (do gostar ou não de homem, quase sempre não muito explícito)... Tenho
escutado de alguns, que não gostam quando o rapaz é ―muito dado‖, ou ―muito rápido‖. Nonô
nos contou ainda uma história sobre outro rapaz muito bonito que passava todo dia na sua rua.
Um dia ele puxou conversa com o rapaz, perguntou-lhe se ele era parente de uma pessoa lá
É de se notar que acionar os parentescos dos pretendentes, que frequentemente não são ―assumidos‖,
não os intimida pelas possíveis consequências do insucesso na instauração daquela relação. Em outras
palavras, parece que saber (ou fingir saber) que o tal pretendente é filho, irmão ou primo de alguém, não é
um aviso de que, dando errado o ritual, acionar-se-ia a rede de relações do pretendente para uma eventual
vingança, contando do seu interesse secreto por gays. Não parece estar no horizonte que ao conhecer
previamente ou demonstrar conhecer os parentes do pretendente esteja implícito que o pretendente poderá
ser alvo de uma denúncia, caso não aceite o cortejo.
149
172
qualquer. (Vi essa mesma tática sendo usada por Elzo, há alguns dias). Eles conversaram e,
entre outros assuntos, o rapaz contou a Nonô que sua mãe estava doente. Então, noutro dia,
Nonô lhe perguntou como estava sua mãe e uma amizade se formou entre o senhor e o rapaz.
Até que um dia, o rapaz pediu para entrar para beber uma água. A mãe de Nonô, bem idosa,
estava na sala vendo televisão. Eles entraram e tiveram uma relação sexual. (―Conhecendo a
velha guarda‖ 2/10/2013. Diário de campo, p.105-106)
Até aqui, expus muitas das abordagens de rua, mas existem outros meios e
locais também possíveis para o cortejo:
Existem meios também, locais, tipo existe uma boate que se chama "Caravela" - não é uma
boate gay, é uma boate heterossexual, que abre as quintas, sextas e sábados - mas já se sabe a
que as pessoas vão ali, pelo sexo mesmo. Então também é um meio. Não sei... Você mesmo
pode fazer propostas, se você ver alguém que te interesse, né? Você pode fazer propostas, não
sei o que...
Internet?
Também, pode ser. Também, também, sim. Hoje em dia, sim.
Na internet, como que é? Existe um site? Facebook?
Não existe. Sim, é mesmo pelo facebook, sim. As pessoas estão descobrindo esse instrumento.
O facebook mesmo. (Entrevista Didi. Mindelo, 26/09/2013)
Mas foi na rua, de fato, que eu presenciaria um caso de sucesso imediato do
ritual de cortejo, que narro a seguir.
Era uma agitada noite de sábado e estávamos indo para a Laginha. No caminho,
um pouco depois de atravessarmos a Praça Nova, passamos por um grupo de uns seis
rapazes, que pararam e ficaram querendo conversar com a gente. Mas Elzo foi o único
que parou para lhes dar atenção. Eles sabiam seu nome e pediram cigarro. Didi passou
direto. Eu estava mais lento e Didi me avisou que se eu ―diminuísse o passo‖ com esses
rapazes, que eles me ―pegariam‖, no sentindo sexual mesmo. Um certo exagero de Didi,
pois a possibilidade do estupro a homossexuais me pareceu bem remota no Mindelo.
Mas chegamos à Laginha. Já na praia (que estava em grande parte interditada
para o banho, devido às obras de alargamento da faixa de areia) passamos por um outro
grupo de quatro rapazes, dessa vez bem mais jovens, de uns dezesseis anos, com
aparência de meninos. Eles mexeram conosco, assobiaram, falaram e gritaram. Em
resposta, eu também dei um grito, de brincadeira. O ritual já havia iniciado, mas eu não
sabia que naquele dia, culminaria no sexo. Cleiton e Abreu então me disseram que
queriam urinar e eu fui atrás deles.
Eles foram subindo uma rua deserta, no alto da Laginha e em determinado
momento parei, para esperá-los. Quando olhei para baixo, os rapazes que tinham
mexido conosco já tinham atravessado a avenida da praia e se encaminhavam para a
173
esquina da rua onde estávamos. E, depois de algum tempo de conversas entre eles,
começaram a subir em direção a nós. Passaram por mim e olharam, mas continuaram
pelo caminho por onde haviam passado Abreu e Cleiton minutos antes, morro arriba
(―acima‖). Quando me dei conta do que realmente iria acontecer, Aline, que estava
comigo, e eu resolvemos descer. Ficamos então os quatro (Aline, Cesar, Mônica e eu)
conversando no banco do calçadão.
Depois de algum tempo, desceram os quatro rapazes. Imaginei que Abreu e
Cleiton desceriam em seguida e foi o que aconteceu. Eles realmente tiveram com os
meninos. Fizeram broche em pelo menos três dos rapazes. Cleiton deu para um deles.
Abreu me contou que primeiro eles conversaram qualquer coisa. E depois Abreu disse
que queria ter uma conversa em particular com um deles e o arrastou para um canto.
Cleiton contou que, na hora, não soube gerenciar sozinho os outros três.
Abreu confessou que adora quando está conversando com um rapaz e o tal fica
vidrado olhando fixo em seus olhos, ―fissurado‖ naquele momento. Assim, Abreu
começa a alisar o pênis do rapaz e começa a sentir ele endurecendo aos poucos até
latejar. Contou-me isto generalizando, mas se referindo obviamente ao ato sexual que
acabara de experienciar. Abreu parecia, assim como Graça, na Praia, sentir prazer não
só no sexo em si, mas na própria inversão de poder que performavam. Se Graça, como
vimos, sentiu o prazer da vingança, pois era quem agora tinha o poder de dizer não ao
rapaz que a desejava, Abreu também não escondia o prazer de ter os rapazes sob seu
domínio temporário.
Os rapazes ejacularam e se foram. Abreu e Cleiton ficaram ainda um tempo no
local. A explicação para a demora era que Abreu estava com o pênis ainda em estado de
ereção e, vestido com sua calça legging, colada ao corpo, ele precisaria esperar até
diminuir a ereção, senão iria ―aparecer tudo‖. Os rapazes depois sentaram num banco do
calçadão, próximos de onde estávamos. Cleiton foi então lá para pedir seu(s) número(s)
de telefone(s), mas acabou conversando com eles150. Quando o vimos, ele estava
150
Eu estive alguns minutos com esses meninos, mas infelizmente não conversei tanto com eles. Não
senti que era viável questioná-los sobre o que eles tinham acabado de fazer. Ao meu pedido, um deles
acendeu um cigarro para mim. Eles pareciam bem tranquilos com toda aquela situação, apesar de
novinhos. Um deles dormia deitado no banco. Pareciam um pouco cansados e com os pensamentos
dispersos. Riam, ouviam música e conversavam entre eles. A cena me lembrou muito da canção brasileira
―Geni e o Zepelim‖, na parte em que fala dos ―meninos de internato‖.
174
novamente se encaminhando, junto com um dos rapazes, para o mesmo lugar onde
acabaram de ocorrer as relações sexuais.
Dessa segunda ida, Cleiton estava demorando mais a descer e, preocupado,
Abreu me chamou para irmos atrás dele. Foi só aí que conheci pessoalmente o local
onde tudo tinha acabado de acontecer. Era uma rua no alto, deserta, com pouca luz.
Muitas casas grandes e geminadas. Seguimos por um caminho íngreme de terra e pedras
no morro, até alcançarmos um platô, que Abreu contou-me viver algumas pessoas de
classe média alta da cidade. Abreu me mostrou onde foi que ele ficou com o rapaz, um
canto qualquer entre alguns carros.
Procurávamos, mas não achávamos Cleiton, até que ele gritou de um beco muito
escuro que já estava indo nos encontrar. Na penumbra, percebemos que ele estava
agachado sobre os joelhos, e eu logo deduzi que ele devia estar se limpando. Abreu e eu
ficamos rindo. E não deu outra, depois de algum tempo Cleiton veio em nossa direção
com uma cueca suja e embrulhada, era dele. Procurava um saco de lixo para pô-la
dentro. Depois pegou um saco na rua e jogou tudo em um terreno baldio próximo.
Cleiton falou que quando sentiu que, por problemas intestinais, o sexo anal não seria
possível ou desejável, mandou o menino ir embora. Abreu disse que por isso que não
tem mais o hábito de fazer sexo anal na rua, ―penetração só em casa‖, justamente para
evitar essas situações constrangedoras. O risco e o medo do passar um cheque (como
alguns sujeitos gays do Mindelo, por uma importação da expressão do universo gay
brasileiro, chamam o ato de sujarem de fezes o parceiro no ato sexual anal) são uma
constante, principalmente quando as práticas sexuais de penetração ocorrem em locais
públicos.
O intercurso sexual anal é uma questão central para um ―modelo hierárquico‖ de
(homo)sexualidade masculina, como proposto por Fry (1982b). De acordo com o
modelo, no ato sexual a ―bicha‖, que se comportaria sexualmente como ―passivo‖,
dramatizaria a sua submissão ao ―homem‖, aquele que é ―ativo‖ sexualmente, e,
portanto, se configuraria como o sujeito dominante. Assim, o que se percebe na análise
do ritual é que ao contrário do que supõe o modelo, a ―passividade‖ neste ritual sexual
não está colada necessariamente ao papel de submissão, ainda que as identidades de
gênero dos sujeitos permaneçam próximas do que se propõe no modelo proposto por
Fry (homem:masculino::bicha:feminina). Aqui, percebo que é o ―passivo‖ sexual
175
(aquele que é penetrado) que conduz os rapazes, que dita as regras e que pode, a hora
que lhe convier, interromper o ato e mandar que seu objeto de prazer – o falo do rapaz –
se vá. E o falo obedece.
A intenção de rememorar esta cena é não só ilustrar o ritual, mas mostrar como o
ato sexual pode se realizar a partir de um investimento e iniciativa dos rapazes não-gays
do Mindelo, ao mesmo tempo em que há, por outro lado, uma agência dos sujeitos gays
não só no sentido de retribuir os olhares e flertes, mas também na decisão final sobre se
o ato sexual se realizará ou não, com quem, como, onde etc. É claro que nem sempre os
atos sexuais ocorrem da mesma forma e a inversão aqui descrita não se realiza em todos
os casos, mas, pela primeira vez, eu vi sendo atendido o pedido levam má bô, que, de
fato, inverte as relações de poder entre sujeitos gays e não-gays, concedendo aos
primeiros as decisões sexuais, e, pela primeira vez também, acompanhei todo o
processo ritual homoerótico mais significativo do Sistema Hipocrisia, quando rapazes
não-gays performam o intercurso (homo)sexual.
Angústia
Talvez como mais um indício do chamado ―amor líquido‖ (BAUMAN, 2004) na
contemporaneidade, essas relações sexuais rápidas, expostas na seção anterior, cada vez
são culturalmente menos lidas com entusiasmo pelos sujeitos gays no Mindelo. Essa
máxima que paira sobre o espírito crioulo de que ao ―homem‖ (entendido como o
sujeito heterossexual e macho) não cabe a paixão, afeta as subjetividades dos meus
interlocutores gays. Segundo diagnosticado por Miranda na Ilha de Santiago, mas que
em certa medida parece ser possível de ser expandida para os homens não-gays de São
Vicente, a sexualidade é muito marcada pela proibição às emoções (MIRANDA, 2013).
Apesar da maioria dos sujeitos gays dizer que vive relações casuais com os
rapazes, é verdade que pelo menos três interlocutores no Mindelo disseram viver
relações conjugais e fixas, ainda que elas se distanciem ainda em muito de um modelo
romântico mais hegemônico fora de Cabo Verde. O primeiro era a traveste Barbie, que,
porém, jamais me contara qualquer coisa sobre seu ―marido‖. O segundo era Cesar, que
176
entre idas e vindas com antigos parceiros, acabou por reatar com um ―ex-marido‖, que
jamais conheci. Mas anoto em meu diário:
Cesar também contou rapidamente que tinha voltado com seu ―ex-marido‖. Um rapaz de 28
anos, de São Vicente mesmo e que mora numa ―zona‖ pobre. (Apesar de sua família ter a
melhor casa do local, segundo Cesar). Cesar contou que ele é muito cobiçado em sua zona.
Contou ainda que quando eles terminaram e ele, Cesar, foi para Paris, as pessoas por lá diziam
ao rapaz que Cesar não voltaria mais para Cabo Verde, como forma de dissuadi-lo de esperálo. O rapaz então foi namorar a ―menina mais linda do local‖, diz Cesar concordando sobre sua
beleza. Parece que ontem, essa menina que teoricamente ainda é namorada do tal rapaz ligou
para o rapaz e este mandou que Cesar a atendesse. Cesar atendeu e ao ser perguntado sobre
quem era, Cesar respondeu que era ele, ―Cesar‖. Como o rapaz e Cesar foram ―casados‖
durante 13 anos, todos o conhecem. E a menina, que ligou para seu namorado à noite e acabou
falando com o ―ex-marido‖ dele, imediatamente entendeu que os dois teriam reatado. Cesar diz
que gosta muito dele, que ele foi o homem mais importante da vida. [...]Completou ainda que
quando eles foram transar ontem, depois de uns 3 anos separados, o rapaz ficou muito ansioso
e não conseguiu, a principio, ter mais ereção. Cesar disse que o ofereceu uma coca-cola para
ele se acalmar. Mas ele e Cesar brigaram ontem, quando o rapaz resolveu mostrá-lo fotos da
namorada, para que ele visse o ―nível de mulher‖ que ele conseguia atrair. Cesar então contou
que o questionou: se ele achava que ela era melhor do que ele, que o rapaz podia ir ficar com
ela, como quem tem muita segurança sobre o seu próprio valor. Quando perguntei a Cesar
porque ele tinha voltado com este ―ex-marido‖ (já que ele andava bem com o outro rapaz de
quem dizia também gostar), ele respondeu que foi obrigado pelo ―ex-marido‖. Eu perguntei se
o rapaz tinha essa moral e ele respondeu afirmativamente. Depois passou falando o resto do dia
desta ―confusão‖ que ele tinha arrumado em voltar com esse ―ex-marido‖. (―Uma segunda
abandonado‖. 7/10/2013. Diário de campo, p.138-9)
O terceiro era Pedro, o professor de educação física de 29 anos, que disse ter
vivido um relacionamento conjugal, com coabitação na Ilha de Santo Antão, mas que
agora vivia o que parecia ser um casamento à distância:
Você hoje em dia mora só? É casado?
Pronto, eu sou casado. Moro com a minha mãe neste momento e com um sobrinho meu.
Uhum. E é casado com quem?
Com um canariano. Pronto, canariano, não! Porque ele é nascido na Espanha, em Galícia.
Então ele vive em Tenerife. Hoje já não. Agora ele está vivendo em Ferrole, Corunha, na
Espanha, com a mãe. E... pronto. Em breve, ele vem, em breve. Pra Cabo Verde, talvez...
E como é essa relação de vocês?
Pronto. Nós temos uma relação estável. Uma relação, pronto. Nós temos uma relação (?) uma
relação lindo. Porque nós damos muito bem. Nunca tivemos, é... Desavenças na nossa relação
e atualmente eu estou feliz com ele.
E vocês se encontram de quanto em quanto tempo?
Pronto. Neste momento, com problema que ele tem com a sua mãe, que a sua mãe está doente,
então ele já vem raramente para Cabo Verde. Porque ele está mais em cima da sua mãe, porque
ele estava... a trabalhar aqui. Estávamos a viver juntos. Neste momento ele está ausente, mas
temos comunicação pela internet, pelo fone. Então estamos sempre a comunicar.
E você, você vai pra lá também?
Vou, vou. Vou nas férias.
Ah ta. É... Mas... Esse casamento de vocês é monogâmico, ele pode ter outro parceiro, ele
pode ter outros parceiros ou não?
177
Não... (?) Esse nosso casamento é, pronto... Eu, eu... (?) com ele que eu tenho
responsabilidade. Mas podemos (?) parceiro, porque neste momento estamos viver... estamos
longe.
Então pode ter outros parceiros?
Pode ter outros parceiros. (Entrevista Pedro. Mindelo, 9/10/2013)
Elzo certa vez ironizou a afirmação tanto de Cesar quanto de Pedro de que
ambos tinham ―marido‖, pois para Elzo parecia muito estranho alguém ter marido e não
morar com este, como no caso de Cesar, ou, pior, ficar muito tempo sem o ver, como no
caso de Pedro151. Mas não pretendo investigar os sentidos da categoria ―casamento‖ e
―marido‖ para os sujeitos gays e travestes, pois me faltam dados para tal152. Gostaria,
contudo, de demonstrar que uma queixa corrente entre os sujeitos gays é a de que essas
relações que eles estabelecem com esses homens não-gays são quase sempre ―casuais‖.
Diferente da acusação dos gays da elite de Praia descritos por Rodrigues153, não se
trataria de uma ―ignorância‖ típica dos gays das classes populares, mas se daria
principalmente pela recusa dos homens não-gays na ―assunção‖ de uma identidade
propriamente ―gay‖, como fica claro nessa entrevista com Lunga:
Como é que a relação entre os parceiros do mesmo sexo aqui no Mindelo? É sempre
assim casual? Existe namoro?
Não, é casual! Acho que 99% é tudo casual. Se é que existe 1% (risos), é tudo casual. Pode ser
um casual que dure alguns meses, pode durar anos, mas é tudo casual.
Por que? Que que é então ser casual?
Porque assim... Aqui... É muito complicado. Porque aqui, não sei se por ser um lugar pequeno,
as pessoas... Isso... A homossexualidade aqui em Cabo Verde é muito complicada. Eu que sou
gay assumido, por exemplo, ou o Elzo que é assumido... Nós somos gays, nós dissemos que
somos gays e que nós gostamos de homens e não sei que... Os rapazes que se relacionam
conosco, eles não são... Podem se relacionar com você anos e anos, mas pra eles, eles não são
gays. Eles são rapazes que gostam deestar com gays, mas eles não se identificam como gays.
Uhum.
151
A literatura etnográfica de Cabo Verde, porém, demonstra que tais regimes de casamento não são nada
incomuns nos sistemas de parentesco locais. Ver LOBO A. d., 2007, p.180).
152
Parece-me apenas significativo quanto a isso, que tanto Pedro quanto Cesar tenham tido uma longa
experiência emigratória – o primeiro na Europa e o segundo tanto no continente americano, quanto no
europeu – de onde podem ter introjetado certos valores estrangeiros de conjugalidade. Arrisco tal
associação pela semelhança com um terceiro caso, o do professor Lunga, também já emigrado para a
Europa: ―E você namora? Não, infelizmente. Infelizmente? Porque queria namorar... Sim. É... Mas já
namorou alguma vez? Uma vez só em Portugal. Em Portugal. Por que não aqui? Porque... (risos) não
encontrei ninguém. Por isso, só por isso. É difícil encontrar alguém? Eu acho que sim. Porque eu acho
que as pessoas querem mais só sexo, esse tipo de coisa. Eu já to cansado disso, então prefiro ficar
sozinho. To querendo uma pessoa para estar com a pessoa... Não estar aqui um dia com um, um dia com
outro. Isso não. Então...‖ (Entrevista Lunga. Mindelo, 30/09/2013)
153
―A seu ver, os gays das classes populares reproduzem o modelo de homoafectividade que se resume a
uma relação sexual, com clara distinção entre o homem ‗macho‘ e o gay, reportanto para a relação de
poder entre dois homens. Aquele que pratica sexo oral no outro, ou tem uma postura afectiva, é visto
como um igual ou, na voz do meu interlocutor, como ‗bicha‘, e os gays da classe popular querem ter
relações com homens que eles vêm como héteros e não como ‗bichas‘‖ (RODRIGUES C. , 2010, p. 81)
178
Então, daí eu acho que vem essa dificuldade de ter uma relação. Porque eles podem até gostar
de você e querer ficar com você, mas não querem enfrentar a sociedade, não querem assumir.
Por exemplo, ele pode dizer pro Elzo, por exemplo, ―Ah, eu quero ficar com você‖ e pode até
ter uma relação, mas é tudo escondido. Ele não vai sair com você aí... Eu não to falando de sair
na rua de mão dada, porque eu também não quero isso. Mas eles não vão... Por exemplo, dizer
―ah, eu namoro com ele‖, ―eu namoro com esse‖ e sim pra te encontrar e vir até a sua casa ou...
É tudo muito discreto, porque... eles não querem enfrentar, não querem dizer na rua ―Ah, eu
moro com rapaz‖ ou... Então a relação é um bocado complicado. Acho que é mais por causa
disso que as relações ficam só na esfera da casualidade, né? É tudo...
Entendi. E esses rapazes namoram meninas também?
Na maior parte dos casos sim. Nos 99% dos casos (risos).‖ (Entrevista Lunga. Mindelo,
30/09/2013)
A ―casualidade‖ apontada pelos sujeitos gays, também entendida como certa
falta de compromisso dos rapazes com eles, é algo que é diagnosticado desde o ritual de
cortejo, no mandar bocas, na performance ―agressiva‖ ou ―estúpida‖, passando por um
desprezo deles no cotidiano, até a recusa definitiva de dar prosseguimento ao
relacionamento. Neste sentido, interessei-me por saber, por exemplo, como agiam os
rapazes, quando os sujeitos gays com quem tinham algum tipo de vínculo afetivo ou
sexual, os cumprimentavam nas ruas.
E por exemplo, um desses rapazes que não, não assumem a homossexualidade e de
repente se você encontra na rua, você pode cumprimentá-lo, diante dos amigos, se ele
tiver diante de amigos.
Tem uns que não, tem uns que sim. E... Aqui é sempre um intermédio. Há sempre um
intermédio. Tem aqueles que nem, nem, nem deves pôr a cara.
O que acontece? O que aconteceria?
Não, ficariam totalmente perturbados. (risos) Ficam totalmente perturbados. Especialmente se
tiverem acompanhado, tipo, da namorada, ou outra qualquer. Ficam com aquele... com aquela
maneira perturbada, como se vamos fazer alguma coisa: vamos atirá-lo...
E como você se sente numa situação dessa de, eventualmente, você ter um desses
parceiros mais fixos e você ter algum carinho e, publicamente, você não poder nem...nem
cumprimentá-lo, na rua assim... Como é que isso? É tranquilo pra você?
[Certa] vez não [foi] tranquilo. Hoje em dia é tranquilo. Torno-me a repetir: ―torno-me loira‖.
De talento. Passo porque... Antigamente, ficava super chateado.
Uhum.
Super chateado com a atitude, hoje em dia passo por cima.‖ (Entrevista Leandro. Mindelo,
26/09/2013)
Se Leandro localiza a ―super chateação‖ no passado, não era exatamente isso
que seus olhos e sua expressão diziam. Em nossas conversas a mágoa da nãopossibilidade de efetivação de um modelo específico de relação romântica era uma
constante. Os avisos dos rapazes ―você não me conhece e eu não te conheço‖ logo após
o ato sexual fugaz nas ruas, ou as bocas agressivas como ―paneler!‖, o desaparecimento
dos rapazes quando os sujeitos gays os procuram, a hesitação quanto ao beijo na boca
na hora do sexo, a negação da relação por parte dos rapazes quando estão com amigos
179
em local público, tudo isso vai criando um sentimento de angústia entre os
homossexuais do Mindelo.
Visto que, como dito no capítulo anterior, eles costumam negar a ―homofobia‖
ou a violência de uma maneira geral, o que os magoa mais não é um ódio direcionado a
eles, enquanto grupo desviante ou uma ―discriminação‖, mas é o próprio sistema de
gênero cabo-verdiano, que ao estimular a invisibilização da (homo)sexualidade dos
rapazes não-gays e de suas relações afetivas e sexuais, mostra-se, até então,
incompatível com os valores românticos burgueses, que parecem um ideal e no qual
começam a querer aderir. No Sistema Hipocrisia, privilegia-se um modelo de
experiência da homossexualidade no Mindelo: aquele que já ―tolera‖ suas existências e
restringe a publicidade de suas sexualidades apenas aos seus corpos. Como que
revivendo tradições homoeróticas muito antigas do mundo português, parece não haver
espaço para relações de ―homossexuais‖ entre si154; e aquelas entre ―homens‖ e
―homossexuais‖ devem ser sem estrilo, velada. O que demonstra ainda a vitalidade do
modelo hierárquico apontado por Fry (1982b).
Era com tristeza nos olhos e no tom, que alguns sujeitos gays como Romeu,
Leandro ou Didi, como tantos outros, falavam-me de suas experiências afetivas com os
rapazes:
E como é que são esses relacionamentos? Eles duram algum tempo? Vocês ficam juntos?
Té agora na minha situação não durou muito tempo. Foi só um ficar, dele ir embora logo.
E costuma ser assim?
E costuma sendo assim. Eu não sei se algum dia eu vou encontrar alguém que podemos ficar
assim juntos, não sei. (Entrevista Romeu. Mindelo, 9/10/2013)
***
Você teria vontade de namorar?
Com certeza! É a minha maior vontade.
E não consegue porque esses homens não assumem, não querem esses relacionamentos...
É... (Entrevista Leandro. Mindelo, 26/09/2013)
***
E aí.. Bom, a relação sexual acontece, mas existe alguma cumplicidade, existe alguma
relação afetiva, de ciúme, de saudade...
Hum... não. Se existir, acho que é imediatamente aniquilado por eles mesmo. Porque a pressão
é tanta.. Eles, não sei, muito confuso... Não dá mesmo, não dá. Eu diria que não existe qualquer
tipo de afetividade, não... Não existe. Se começar a despontar alguma coisa, como te disse, é
154
Lembremos do primeiro capítulo o trecho do português Rafael Fanchono depondo na Santa Inquisição
sobre a impossibilidade de fanchonos se relacionarem com fanchonos no século XVI em Portugal.
180
anulado imediatamente. Tem nada. Não tem como mesmo. Comigo e com os outros também. É
claro que existe outros casos de alguns que conseguem levar, não sei o que... Mas porque eles
investem do seu tempo e insistem e insistem e sofrem, sofrem, sofrem, sofrem, sofrem... Mas
eu não! Eu costumo dizer que eu gosto muito, muito de mim mesmo. (Entrevista Didi.
Mindelo, 26/09/2013)
Esses depoimentos são de rapazes relativamente maduros, entre vinte e cinco e
quarenta anos que aos poucos se dão conta do descompasso entre os valores de sua
cultura e os valores românticos que projetam sobre suas vidas. Como já sugeri, suspeito
que parte desses valores tenham sido introjetados de suas experiências emigratórias no
continente americano e europeu; das telenovelas brasileiras que veem exibindo há
alguns anos casais homoafetivos no horário nobre da televisão local155; da pauta
internacional do movimento LGBT por legalização das uniões homoafetivas; e por um
espírito geral e mais antigo de crítica interna a esse modelo de relações afetivas em
Cabo Verde, chamado em diversas instâncias da sociedade cabo-verdiana de
―desestruturação das famílias‖ (LOBO A. d., 2012, p. 14).
Mas relembro ao leitor que de acordo com os rapazes, como vimos até aqui com
Julio e Joaquim, muito deles, ainda que habitem o universo homoerótico e mantenham
relações sexuais com os gays, simplesmente nem concebem a possibilidade de
conjugalização dessas relações. Mesmo aqueles da nova geração, que já instauram uma
mudança ao se identificarem como ―bissexuais‖, como o menino Tiago, de dezesseis
anos, ao ser perguntado sobre seus sonhos, projeta um futuro em conformidade com as
possibilidades fornecidas pelo Sistema Hipocrisia:
É... quero casar, como sempre. Com uma pessoa legal, quero ser médico, deixe ver mais... Sair
fora, conhecer lugares novos...
E casar, quando você diz, é com homem ou com mulher? Ou tanto faz?
Aí eu não sei. Não sei se vou casar com uma mulher e por ela corno. (Entrevista Tiago.
Mindelo, 30/09/2013)
Em meu diário de campo, anoto sobre a tal entrevista, fornecendo mais dados
sobre Tiago e tecendo conclusões:
O próximo entrevistado era o menino Tiago, de 16 anos que era vizinho de Elzo. Tiago é alto,
negro, mas com a pele mais clara, tem um óculos com lentes de um grau bem elevado. Usava
roupa de rapaz da sua idade, bermuda e camiseta. Tiago chegou meio assustado. Segundo Elzo,
que foi quem intermediou esta entrevista, Tiago lhe pediu para não contar para ninguém que
era ―bissexual‖. Razão pela qual, assim que ele chegou, pedi para o Didi e o Lunga nos
deixarem a sós. Algo que eles já tinham oferecido por livre e espontânea vontade antes e que
atenderam sem problemas. Mas somente eu poderia saber de sua ―opção‖, já que iria fazer a
155
Alguns exemplos de telenovelas brasileiras que tinham em sua trama casais homoafetivos e que foram
retransmitidas em horário nobre em Cabo Verde são: ―América‖, ―Paraíso Tropical‖, ―Avenida Brasil‖,
―Senhora do Destino‖ entre outras.
181
entrevista. Tiago é um menino, ainda no Liceu, que se diz ―bissexual‖, mas que não se
assumiu, apesar de sua mãe já saber. Entrevistá-lo foi interessante para ver uma das
possibilidades de como a questão da homossexualidade está sendo reatualizada nessa geração.
No entanto, uma das possibilidades que ele deslumbra pro futuro, é casar-se com uma mulher e
botar-lhe ―corno‖, como é costume dos ―héteros‖ aqui, ou seja, manter o padrão cultural do
grupo dos rapazes ―não-assumidos‖. (―De volta às entrevistas‖ 30/09/2013. Diário de campo,
p.89-90)
Assim, este capítulo traz mais uma evidência de que populações crioulas
expõem dificuldades de replicar a cultura e a linguagem europeia nos trópicos
(RODRIGUES I. P., 2003, p. 92). Termino repetindo a evidência nativa mais clara,
representada na maneira sagaz como Didi provoca Elzo: ―Ok! Se instauram o casamento
[entre pessoas do mesmo sexo] aqui. Quem vai casar com quem? Você vai convencer o
rapaizinho ali a casar?‖ Realmente conquistar a afetividade dos rapazes não-gays parece
tarefa difícil aos gays sampadjudus, quiçá por ora possível no Mindelo, ou em Cabo
Verde.
***
Se no segundo capítulo, dei maior atenção às representações sociais dos sujeitos
gays em Cabo Verde, neste capítulo III, busquei evidenciar a partir dos meus
interlocutores no Mindelo, como se dá uma parte da vida sexual e afetiva dos rapazes
crioulos. Dessa forma, trouxe a cantada de Julio que, além de deflagrar a importância do
corpo gay do antropólogo como agente produtor fundamental da própria etnografia,
revela em seu cortejo, muito do contexto cultural no qual os rapazes cabo-verdianos
estão imersos e a partir do qual eles elaboram suas estratégias sexuais. A síntese cultural
contida na cantada de Julio se reflete em alguns trechos, como quando surgem: a
virilidade do homem cabo-verdiano e de sua abordagem; a exaltação do corpo feminino
como signo de sociabilidade entre os homens; a dominação masculina pressuposta no
―modelo hierárquico‖, que segrega ―ativos‖ e passivos‖, conferindo-os valores distintos;
a menção e afiliação à religiosidade católica; a aproximação cultural com o Brasil e as
atualizações que este exporta para Cabo Verde; a simulação da ―homofobia‖ através das
bocas e obscenidades ditas. E, apenas sob o manto da heteronormatividade, surge o
desejo homoerótico, permitido pela lei, mas ainda envergonhado. Nesta conversa,
percebo que o desejo homoerótico, quando enunciado, é feito em volume baixo, sem
estrilo (como sempre será a própria consumação do ato). Além de tudo, o ruído na
comunicação com Julio, no que diz respeito a nossa (in)compreensão mútua dos
significados de ―gay‖ para o outro, revela para mim, a importante informação de que ser
182
―gay‖ por aquelas ilhas tem a ver com feminilidade, identidade e afetividade para alguns
e apenas desejo homoerótico para outros.
Esses ―outros‖ seriam os homens ―não-gays‖ – categoria na qual pretendi
englobar todos os sujeitos que não se reconheciam a partir de uma identidade nãoheterossexual. Este critério não é apenas uma arbitrariedade do antropólogo, mas dos
próprios interlocutores gays que tendiam sempre a enquadrar esses rapazes ―hétero com
as aspas‖ ou ―não-gays‖ sobre uma mesma classe. O prefixo ―não‖ não é à toa: ele é
utilizado aqui porque é justamente na coincidência das respostas negativas desses
rapazes, quando perguntados se são ―gays‖, que há uma possibilidade de classificá-los
dentro de um mesmo grupo, haja vista que outras características como idade, condição
socioeconômica, estado civil etc. me eram muito difícil precisar. De qualquer forma,
esses sujeitos ainda que não se reconheçam ou que se ―assumam‖ ―gays‖, estão
habitando o universo homoerótico e se relacionando sexualmente com outros homens.
Assim, abordo três rapazes-exemplos: Julio, John (badiu) e Joaquim. Por um lado, os
três têm em comum o fato de não se considerarem gays e, ao mesmo tempo, os
desejarem sexualmente. Por outro, se aproximam por não vislumbrarem se relacionar
com os sujeitos gays de forma afetiva e conjugalizada, como propagado por certos
modelos. Reclamações dos sujeitos gays crioulos acerca da ―estupidez‖ desses homens
não-gays e da ―hipocrisia‖ contida neste sistema de ―homens e bichas‖ são proferidas a
toda hora. Todavia, insisti ao longo deste trabalho que esta não é uma especificidade das
relações homossexuais, pois tal reclamação ocorre, de acordo com a literatura sobre o
país, com as relações heterossexuais.
Por último, vimos que, para além das estratégias de abordagem do Julio, existe
algumas outras possibilidades de abordagem dos rapazes, quando estes pretendem obter
sexo com os sujeitos gays. Seja através do olhar, do assovio ou do mandar boca, esses
rapazes encontram formas de chamar a atenção dos gays e de ter com eles. Mas este não
é um exercício unilateral: também os sujeitos gays possuem estratégias de atração dos
rapazes. Entre essas estratégias, chama a atenção: o uso da linguagem fática e do
acionamento do parentesco, ainda que fictício. Ambas tem o objetivo de não amedrontar
os rapazes. Assim, busquei narrar mais detalhadamente um destes rituais de cortejo
como forma não apenas de ilustrar as dinâmicas, mas de argumentar que a
―passividade‖ pressuposta no ―modelo hierárquico‖ pode ser invertida no ato sexual
real. Por último, percebo que as experiências (homo)sexuais fulgazes com esses
183
fugidios rapazes já não parecem satisfazer às expectativas dos sujeitos gays, que cada
vez mais incorporam valores românticos da monogamia, do afeto mútuo, da
conjugalidade, da cohabitabilidade etc, que chegam através de vários canais, como a
mídia, as suas próprias experiências emigratórias e o movimento LGBT internacional. O
que percebo nos sampadjudus é uma angustia por não poderem realizar plenamente seus
projetos de sujeito gay cosmopolita dentro de uma cultura nacional como a sua.
Considerações Finais
Das hipóteses condensadas
No primeiro capítulo, espero ter demonstrado que o homoerotismo em Cabo
Verde parece existir há muito mais tempo do que dizem muitas das atuais vozes do país.
Neste sentido, busquei não somente dados historiográficos que demonstrassem que no
período da Santa Inquisição registraram-se alguns relatos de experiências homoeróticas
no arquipélago, mas também busquei construir uma memória oral dos meus
interlocutores gays a respeito de suas sexualidades nas últimas quatro décadas. Tais
dados corroborariam com a tese de que a homossexualidade não é nem nova nem
exógena ao continente africano. Além disso, busquei demonstrar que apesar da
perseguição aos sujeitos homossexuais no império português dos séculos XVI/XVII,
desde então não parece mais haver registros da manutenção dessa perseguição jurídica
em Cabo Verde. Assim, sugeri que após a Santa Inquisição, parece haver uma atitude
histórica de desprezo do sistema penal de Cabo Verde em relação às práticas
(homo)sexuais. Atitude estatal esta que, como vimos no capítulo seguinte, pode estar
estreitamente relacionada à atitude mais ampla e típica dos crioulos em se silenciar
quanto à evidência empírica da (homo)sexualidade.
Para dar conta especificamente do Mindelo, tentei recapitular a história
particular da colonização da Ilha de São Vicente – na qual esta cidade é o epicentro –
para mostrar certas especificidades desta experiência de crioulização. Entre elas, a
colonização tardia em relação às demais ilhas; o contingente populacional formado por
crioulos cabo-verdianos e, portanto, culturalmente menos ligados aos ―continentais‖; a
variedade de estrangeiros que habitaram ou passaram pelo Mindelo, sendo
especialmente importante a figura dos ingleses; a urbanidade atrelada a um moderno
184
porto internacional; a ligação desta cidade com as dinâmicas atlânticas, ―ocidentais‖ por
excelência; ea especialização de uma vida boemia e intelectual, que pensaria
posteriormente o país. Neste sentido, o mais importante foi perceber a construção
histórica, historiográfica e mítica do ―cosmopolitismo‖ e ―liberalidade‖ dos
sampadjudus. Essas características, fortemente incorporadas na auto-imagem dos
mindelenses, tornam mais plausível, nesta e não em outras ilhas de Cabo Verde, a
possibilidade de insurreição das travestes, no evento que denominei ―Revolta das
Tchindas‖, assim como do movimento LGBT que daí derivou.
Demonstrando o processo de tentativa de reafricanização dos espíritos, levado a
cabo no século XX, assim como as atuais narrativas de meus interlocutores, e a cultura
material do Mindelo, principalmente expressa nas artes, busquei argumentar que, ainda
que os sampadjudus se pensem cosmopolitas, este cosmopolitismo ou morabeza
encontra alguns limites para a incorporação de outros. Um desses limites diz respeito a
uma difusa, mas igualmente tensa, rejeição dos signos de africanidade em São Vicente.
Signos de africanidade ora ligados aos mandjacos, ora aos badius. Da mesma forma, a
―liberalidade‖ da cidade do Mindelo encontra barreiras, como a manutenção de uma
moralidade tradicional que pressiona para o silenciamento da (homo)sexualidade como
possibilidades sexual, identitária e afetiva. Assim, mesmo que a perseguição estatal não
pareça existir há muito tempo e que tenha existido uma vida sexual ativa dos
homossexuais no Mindelo desde pelo menos a década de 1970, estas experiências
sempre tiveram de ser escondidas, como nas tubulações das usinas de dessalinização,
saudosamente chamadas pelos meus interlocutores como as ―Águas Quentes‖ da
Laginha.
No capítulo II, a partir de meus dados e daqueles fornecidos por outros
pesquisadores, busquei mostrar ao leitor a perspectiva dos homossexuais caboverdianos a respeito do seu próprio sistema de gênero. Neste intento, construí uma
categoria analítica, que chamei de ―Sistema Hipocrisia‖ e que pretendeu apenas dar
conta da sistematização desses dados. Pareceu-me significativo a recorrência da palavra
―hipocrisia‖ quando os sujeitos gays se referiam a sua sociedade, acusando-a
moralmente. Contudo, longe de ter um único significado, a categoria êmica ―hipocrisia‖
é recorrentemente entendida ora como acusação do típico silenciamento da sociedade
cabo-verdiana em relação à evidência empírica da homossexualidade, ora como
acusação da suposta contradição – diagnosticada por estes mesmos sujeitos gays – entre
185
(hetero)normas e (homo)práticas conviventes nesta sociedade. Além disso, o ―Sistema
Hipocrisia‖ é uma estratégia analítica minha que, esvaziada da carga moral, pretendeu
objetificar um quadro onde convivem em disputa pelo menos dois modelos de
sexualidade masculina, como elaborados pelo antropólogo Peter Fry. Em linhas gerais,
tentei demonstrar que enquanto o ―modelo hierárquico‖ é ainda hegemônico na
sociedade cabo-verdiana, entre outras razões por dialogar com o sistema de gênero mais
amplo do arquipélago – marcado pela dominação masculina – o ―modelo simétrico‖
desponta como outra possibilidade de conformação das subjetividades masculinas em
relação à (homo)sexualidade em Cabo Verde.
Compreendido isso, contextualizei para o leitor o momento histórico em que o
movimento LGBT surgiu no país, assim como o novo léxico sexual e identitário. Para
tanto descrevi o evento que denominei de a ―Revolta das Tchindas‖, momento de
ruptura simbólica em que as travestes do Mindelo saíram vestidas de drag à luz do dia
na década de 1990, como forma de lutarem contra a hipocrisia em sua sociedade.
Argumentei que este evento foi um marco historicamente importante para 1) trazer a
silenciada homossexualidade de volta ao debate público; 2) instaurar ou reatualizar as
identidades sexuais e, assim, reorganizar o sistema de gênero cabo-verdiano;
3)
inaugurar o que viria a ser o moderno movimento LGBT local. Em seguida, contudo,
lanço a hipótese da anacronia deste movimento que, inspirado nas experiências e na
gramática do movimento LGBT internacional (construído desde o final da década de
1960 em países norte-americanos e europeus), não parece mais corresponder às
expectativas e aos dilemas da sociedade crioula cabo-verdiana – tampouco à sua
população gay – neste início de século XXI. Pois as pautas que estão postas, geradas em
outros sistemas sociais, encontram um assentamento precário no arquipélago. Por
exemplo, a descriminalização da homossexualidade, tal como perseguida pelos
movimentos LGBT em muitos países africanos, é uma pauta não-gramatical em Cabo
Verde, pois a efetiva criminalização de fato nunca parece ter ocorrido no país, apesar do
código penal tê-la prescrita até 2004. Outro exemplo seria a inviabilidade da legalização
do casamento gay. Isso porque o modelo hegemônico de casamento ocidental, marcado
pela co-habitação dos cônjuges, é um modelo historicamente rejeitado pelas práticas
culturais na sociedade crioula e as homoafetividades no arquipélago parecem não fugir
dos modelos de afetividade e conjugalidade tradicionais. Por último, a própria
demarcação das fronteiras identitárias promovida pelo movimento LGBT parecem não
186
corresponder
à
fluidez
dos
homossexuais
cabo-verdianos,
que
se
afastam
discursivamente das classificações sexuais-identitárias como tchinda, ―homossexual‖,
―bissexual‖, ―ativo‖, ―passivo‖ etc, em uma clara postura queer.
Desta forma, busco compreender como é possível a permanência de tal
movimento político. Sugiro a hipótese de que a associatividade pela causa gay em Cabo
Verde pode ser explicada por uma busca pela modernidade e cosmopolitismo, típicos na
sociedade mindelense onde este movimento nasce e se mantém restrito. Além disso, o
movimento LGBT local, encarnado na Associação Gay Cabo-verdiana Contra a
Discriminação, pode ser explicado não somente por pretensões políticas e pessoais de
seus líderes como também refletindo um descontentamento difuso em relação às
possibilidades de construção de pessoa dos sujeitos homossexuais naquele país. Neste
sentido, trago à tona a polissemia de categorias nativas como ―homofobia‖,
―preconceito‖ e ―violência‖. O que descubro ao analisá-las é de que elas possuem
significados cambiantes e, por vezes, distintos do que se supõe em outros contextos
culturais. Se a ―homofobia‖ é frequentemente negada entre meus interlocutores
sampadjudus, pois é largamente associada à ―violência física‖ – algo que, apesar de
acontecer, se diz não ser uma prática comum no Mindelo, o ―preconceito‖ ou a
―discriminação‖ competem com a ―tolerância‖. É neste debate, que surge, ao fim, uma
análise do ritual de mandar bocas – um hábito encontrado nas ruas do Mindelo, em que
rapazes provocam os sujeitos gays. Argumento que este ritual não só não pode ser
apressadamente compreendido como atos homofóbicos, pois muitas vezes as intenções
da provocação é a consumação do ato sexual com os gays, como este ritual, quando
analisado de perto, pode revelar que a suposta dominação masculina, encarnada na
performance da penetração, pode ser simbolicamente invertida, contradizendo em parte
o ―modelo hierárquico‖ proposto por Fry, como tento deixar claro no terceiro capítulo.
Se no segundo capítulo, dei maior atenção às representações sociais dos sujeitos
gays em Cabo Verde, neste capítulo III, busquei evidenciar a partir dos meus
interlocutores no Mindelo, como se dá uma parte da vida sexual e afetiva dos rapazes
crioulos. Dessa forma, trouxe a cantada de Julio que, além de deflagrar a importância do
corpo gay do antropólogo como agente produtor fundamental da própria etnografia,
revela em seu cortejo muito do contexto cultural no qual os rapazes cabo-verdianos
estão imersos e a partir do qual eles elaboram suas estratégias sexuais. A síntese cultural
contida na cantada de Julio se reflete em alguns trechos, como quando surgem: a
187
virilidade do homem cabo-verdiano e de sua abordagem; a exaltação do corpo feminino
como signo de sociabilidade entre os homens; a dominação masculina pressuposta no
―modelo hierárquico‖, que segrega ―ativos‖ e passivos‖, conferindo-os valores distintos;
a menção e afiliação à religiosidade católica; a aproximação cultural com o Brasil e as
atualizações que este exporta para Cabo Verde; a simulação da ―homofobia‖ através das
bocas e obscenidades ditas. E, apenas sob o manto da heteronormatividade, surge o
desejo homoerótico, permitido pela lei, mas ainda envergonhado. Nesta conversa,
percebo que o desejo homoerótico, quando enunciado, é feito em volume baixo, sem
estrilo (como sempre será a própria consumação do ato). Além de tudo, o ruído na
comunicação com Julio, no que diz respeito a nossa (in)compreensão mútua dos
significados de ―gay‖ para o outro, revela para mim, a importante informação de que ser
―gay‖ por aquelas ilhas tem a ver com feminilidade, identidade e afetividade para alguns
e apenas desejo homoerótico para outros.
Esses ―outros‖ seriam os homens ―não-gays‖ – categoria na qual pretendi
englobar todos os sujeitos que não se reconheciam a partir de uma identidade nãoheterossexual. Este critério não é apenas uma arbitrariedade do antropólogo, mas dos
próprios interlocutores gays que tendiam sempre a enquadrar esses rapazes ―hétero com
as aspas‖ ou ―não-gays‖ sobre uma mesma classe. O prefixo ―não‖ não é à toa: ele é
utilizado aqui porque é justamente na coincidência das respostas negativas desses
rapazes, quando perguntados se são ―gays‖, que há uma possibilidade de classificá-los
dentro de um mesmo grupo, haja vista que outras características como idade, condição
socioeconômica, estado civil etc. me eram muito difícil precisar. De qualquer forma,
esses sujeitos ainda que não se reconheçam ou que se ―assumam‖ ―gays‖, estão
habitando o universo homoerótico e se relacionando sexualmente com outros homens.
Assim, abordo três rapazes-exemplos: Julio, John (badiu) e Joaquim. Por um lado, os
três têm em comum o fato de não se considerarem gays e, ao mesmo tempo, os
desejarem sexualmente. Por outro, se aproximam por não vislumbrarem se relacionar
com os sujeitos gays de forma afetiva e conjugalizada, como propagado por certos
modelos. Reclamações dos sujeitos gays crioulos acerca da ―estupidez‖ desses homens
não-gays e da ―hipocrisia‖ contida neste sistema de ―homens e bichas‖ são proferidas a
toda hora. Todavia, insisti ao longo deste trabalho que esta não é uma especificidade das
relações homossexuais, pois tal reclamação ocorre, de acordo com a literatura sobre o
país, com as relações heterossexuais.
188
Por último, vimos que, para além das estratégias de abordagem do Julio, existe
algumas outras possibilidades de abordagem dos rapazes, quando estes pretendem obter
sexo com os sujeitos gays. Seja através do olhar, do assovio ou do mandar boca, esses
rapazes encontram formas de chamar a atenção dos gays e de ter com eles. Mas este não
é um exercício unilateral: também os sujeitos gays possuem estratégias de atração dos
rapazes. Entre essas estratégias, chama a atenção: o uso da linguagem fática e do
acionamento do parentesco, ainda que fictício. Ambas tem o objetivo de não amedrontar
os rapazes. Assim, busquei narrar mais detalhadamente um destes rituais de cortejo
como forma não apenas de ilustrar as dinâmicas, mas de argumentar que a
―passividade‖ pressuposta no ―modelo hierárquico‖ pode ser invertida no ato sexual
real. Por último, percebo que as experiências (homo)sexuais fugazes com esses fugidios
rapazes já não parecem satisfazer às expectativas dos sujeitos gays, que cada vez mais
incorporam valores românticos da monogamia, do afeto mútuo, da conjugalidade, da
cohabitabilidade etc, que chegam através de vários canais, como a mídia, as suas
próprias experiências emigratórias e o movimento LGBT internacional. O que percebo
nos sampadjudus é uma angustia por não poderem realizar plenamente seus projetos de
sujeito gay cosmopolita dentro de uma cultura nacional como a sua.
Do caminho a seguir
Esta etnografia gerou mais perguntas e hipóteses do que conclusões. Isso não
deve frustrar o leitor, porque uma boa etnografia – penso eu – é aquela que abre mundos
e não aquela que os inscreve em descrições fechadas e acabadas. Dessa forma, entre as
perguntas surgidas, uma se destaca para mim:
Os rapazes não-gays em Cabo Verde recusam uma identidade não-heterossexual
porque 1) a despeito do machismo, de fato não vêem contradição nas suas performances
sexuais com os gays ou 2) nesta sociedade, a não-identificação com uma identidade gay
se dá pela necessidade de construção contínua da masculinidade, que pressupõe a
negação violenta do feminino, expresso também nas identidades gays?
Esta questão surge para mim a partir das duas perspectivas teóricas utilizadas
neste trabalho. Na perspectiva sistêmica de Peter Fry (1982b), que me inspira a pensar
189
Cabo Verde, aos homens da periferia de Belém, no norte do Brasil, não parecia haver
contradição entre serem eles ―machos‖ e ao mesmo tempo terem relações com as
―bichas‖, pois ―o ‗homem‘ poderia desempenhar comportamentos homossexuais se se
restringisse à ‗atividade‘‖ (FRY, 1982b, p.94). Em linhas gerais, Fry defende modelos
de ―sexualidade masculina‖ que variam entre um tipo ―hierárquico‖ (de dominação
masculina, em que ―mulheres‖ e ―bichas‖ teriam equivalência dentro do sistema, ou
seja, ambos submissos e passivos ao ―homem‖) e um tipo ―simétrico‖ (de relações
igualitárias em que aos homossexuais não seria mais tão relevantes os comportamentos
sexuais ―ativos‖ ou ―passivos‖).
O mundo masculino deixa de se dividir entre homossexuais másculos e homens efeminados
como no primeiro sistema, e se divide entre ―heterossexuais‖ e ―homossexuais‖, entre
―homens‖ e ―entendidos‖ (FRY, 1982b, p.94)
Se levarmos em consideração os discursos dos meus interlocutores não-gays em
Cabo Verde, parece que o modelo nativo corresponde idealmente ao modelo analítico
de Fry. De fato, os homens não expressam uma contradição entre ser macho e ter com
os gays, apesar de haver para eles uma clara separação entre essas duas identidades.
Desta forma, é coerente dizer que na sexualidade masculina em Cabo Verde, existe uma
preeminência muitas vezes da performance sexual (se ―ativo‖ ou ―passivo‖), do que o
próprio parceiro com quem se efetivam essas performances, desde que esse parceiro ou
parceira se inscreva no comportamento sexual tal como esperado. E isso serve tanto às
expectativas de feminilidade e passividade que os sujeitos não-gays esperam dos gays,
como, ao contrário, de masculinidade e atividade que esperam os sujeitos gays daqueles
não-gays. De fato, a contradição que apontei ao longo desta dissertação entre
(hetero)norma e (homo)práticas é uma perspectiva (e uma acusação) que parece
exclusiva dos sujeitos gays.
Contudo, pesquisadores filiados à teoria queer têm defendido que, em sistemas
de matriz heterossexual, a recusa de alguns homens em incorporar as identidades nãoheterossexuais, ainda que estes se relacionem sexualmente com outros homens, é
resultado não de uma conformação cultural específica de sexualidade masculina, mas de
um processo violento de manutenção de uma masculinidade, que neste sistema costuma
ser antagônica ao feminino e, por isso, permanentemente em risco. A partir dessa
formulação, poder-se-ia compreender a não-identificação de alguns rapazes caboverdianos com a categoria ―gay‖, ainda que eles se relacionem com outros homens, por
estes precisarem performar uma masculinidade que, em hipótese alguma pode se
190
arriscar à contaminação do feminino. Suas construções de gênero estariam sempre
preocupadas com o afastamento estratégico dos signos do feminino. Desta forma, o que
grande parte dos teóricos queers faria com meus dados é acreditar na tese dos sujeitos
gays de Cabo Verde de que os homens ―não se assumem por hipocrisia‖. Porque esta
formulação, diferente da formulação da explicação de Fry (1982b), não leva em conta
os discursos nativos dos rapazes não-gays, desacreditando de suas agências em prol de
explicações que enfocam as estruturas de poder mais amplas que pressionaria esses
homens a uma não-assunção.
Acredito que meus dados de campo em Cabo Verde, aliados às discussões
teóricas contemporâneas na Antropologia, evidenciam uma questão importante no que
diz respeito à (homo)sexualidade humana nas sociedades urbanas e modernas. No
entanto, este trabalho não pretendeu dar conta dessa questão, que necessitaria não só de
um trabalho de campo mais profundo e um redirecionamento de enfoque para os
rapazes não-gays, mas também de uma análise igualmente cuidadosa. Desta forma,
aponto que os próximos esforços meus ou de outros pesquisadores interessados no tema
deveriam ser na percepção de construção de masculinidade neste país, principalmente
trazendo para o debate as perspectivas dos homens cabo-verdianos, que a despeito de se
relacionarem sexualmente com outros homens, permanecem reafirmando as identidades
heterossexuais.
Do corpo-pesquisador gay
Uma última pergunta seria aquela proposta pela antropóloga feminista AbuLughod: ―quando o ‗outro‘ que a antropologia está estudando é simultaneamente
construído, pelo menos parcialmente, como um self?‖ (ABU-LUGHOD apud LEWIN,
E., & LEAP, W. L., 1996, p.10, tradução minha). Chamando-nos de halfies, a autora
mesmo responde à sua questão dizendo que nestes casos o pesquisador deve fazer a
mediação entre ―falar por‖ e ―falar desde‖. Creio que essa ambiguidade perpassa todo
este trabalho, não como algo que o desqualifique do ponto de vista da ciência
antropológica, mas pelo contrário, como uma perspectiva analítica privilegiada que o
enriquece. A identidade gay do pesquisador costuma proporcionar não só uma boa
abertura para o grupo gay local, como pressupõe em alguns casos o compartilhamento
191
prévio de uma linguagem. Se pensarmos analogicamente, seria como ir a campo já
conhecendo a língua nativa.
Quando, ao fim da Introdução desta dissertação, eu afirmo que, apesar de nossas
diferenças culturais, ―meus interlocutores compartilhavam comigo desejos, perspectivas
e dilemas típicos de nossas gerações e lugares desviantes no mundo‖, eu estava falando
também da possibilidade de uma simetria possível e real nesta relação supostamente
hierárquica entre o corpo-pesquisador e o corpo-pesquisado. Ainda que eu tenha sido
classificado como ―branco‖, como ―brasileiro‖ e como ―pesquisador‖, identidades que a
maioria deles não compartilhava, eu era também ―gay‖ e sinto que isso foi
preponderante para a minha boa inserção. Como sugere Peter Jackson:
As pessoas gays têm uma vantagem significativa sobre outros estrangeiros em estarem aptos de
se integrar mais rapidamente na cultura local. Porque os nativos homossexuais frequentemente
se veem como diferentes, às vezes como outsiders em sua própria cultura, eles estão propensos
a sentir uma imediata identidade com outras pessoas que eles percebem ―como eles mesmos‖ –
ainda que aquelas pessoas sejam de culturas diferentes. Eu certamente encontrei isso no caso
da minha pesquisa (JACKSON apud WILLIAMS, 1996, p.79, tradução minha).
William (1996), pesquisador gay que estudou os indígenas two-spirited norteamericanos e que afirma que teve enorme vantagem em expor sua orientação sexual
para eles, fará a ressalva de que compartilhar uma orientação sexual não garante por si
só a continuidade de boas relações com os outros (seja transculturalmente, seja entre
pessoas de mesmo contexto cultural), mas que isso ajudaria a abrir muitas portas que, de
outra forma, permaneceriam fechadas.
Se os significados das categorias ―gay‖ ou ―homossexual‖ eram, por vezes,
culturalmente distintos entre os cabo-verdianos e eu, havia nelas algo de comum que
nos permitia comunicar temporariamente como iguais. Meu corpo gay e masculino –
assim revelado a eles desde os primeiros contatos – instaurou um tipo de relação
específica com aqueles sujeitos. Peço licença ao leitor para transcrever uma longa
citação do meu diário de campo, quando reflito sobre o meu lugar naquele grupo, tendo
já transcorridas algumas semanas de convívio:
Mas eles sempre, sempre, ou insinuam que eu estou me encontrando com alguém às
escondidas, quando, por exemplo, eu fico em casa e não saio; ou quando eu resolvo ir para casa
mais cedo; ou quando para cá resolvo vir sozinho. Ou, como hoje, quando supostamente
apareço com a ―pele boa‖, como disse Cesar e Didi, ou simplesmente muito alegre. Assim, eles
me acusam jocosamente de ser também uma ―cabra‖, ou um ―safado‖ ou qualquer outro termo
que denuncie a minha suposta libidinagem ocultada. Por outro lado, vez ou outra, eles me
incentivam a ter com um cabo-verdiano. (Nunca é uma imposição opressora, nem maliciosa,
nem ofensiva ou vulgar, mas sempre em tom jocoso comigo). Raras são as vezes que eles
concordam comigo que eu não deveria realmente ter com nenhum dos rapazes daqui. [...] Mas
192
eles costumam dizer, sempre que surge o assunto (e que eu de alguma maneira participo), que
eu deveria aceitar sair com um cara daqui e até agem para isso, por exemplo, chamando os
rapazes e dizendo que sou quem quero conhecê-los (isso já aconteceu uma ou duas vezes). Por
exemplo, hoje, isso ocorreu quando Elzo me deixou em casa e saiu antes que o menino que
veio conosco fosse com ele, como que liberando o caminho para que eu, com privacidade, o
convidasse a subir. Ultimamente, a retórica – principalmente do Elzo – é a de que eu deveria
sair com um rapaz daqui para eu poder entender melhor a dinâmica e, assim, fazer uma
pesquisa melhor. Ele e os outros têm usado esse expediente, porque eu me posiciono algumas
vezes – muito poucas, eu acho – como pesquisador. E quando eles brincam às vezes falando
que eu deveria transar com um cabo-verdiano e eu não uso o argumento de que eu sou
comprometido, eu digo que eu estou aqui ―a trabalho‖. A questão é que eu levo o trabalho bem
a sério e eles já perceberam isso. Razão pela qual, eles viram uma possibilidade de me
convencer por essa via – da qualidade científica. Já até tivemos uma conversa dia desses sobre
isso. Elzo usou esse argumento sobre uma possibilidade de melhor compreensão da coisa a
partir da experiência real da coisa. A coisa, no caso, seria o sexo. Eu disse apenas que tinha
questões éticas também envolvidas nisso. Mas ele não usa esse argumento – creio eu – porque
de fato esteja comprometido com a qualidade científica do meu trabalho ou preocupado com a
minha melhor experiência do real. Ou pelo menos suspeito que esses não sejam seus objetivos
primeiros. Creio que o que ele quer principalmente é dissolver essa hierarquia que está posta: a
de que eles transam e eu só registro (o que, numa sociedade em que o sexo, apesar de certa
liberdade, ainda é tabu, me dá um poder moral sobre eles). Algo que ele já reclamou
claramente para mim, aqui em casa, dizendo que ―o papel de entrevistado é muito mais difícil
do que do entrevistador‖ (e ele não estava somente se referindo à entrevista em si, mas toda a
pesquisa). Além disso, acredito que eles queiram com essa jocosidade também me integrar
mais no grupo, me fazer um deles e etnograficamente isso é um máximo! Eu já me sinto como
um deles, mas apenas em parte: eu compartilho histórias, segredos, risadas, desejos, intrigas,
fofocas, confidências, informações as mais diversas, mas sinto que para eles – apesar da
excelente recepção que tive aqui – não é o suficiente. Eles têm que me fazer viver o que eles
vivem. [...] E também é uma questão de dádiva (eles têm o direito de também conhecerem as
minhas experiências e não só eu as deles. Por isso sempre conto também minhas experiências
com os homens). E eu percebo como eles ficam empolgados com pequenos sinais meus de que
eu estou partilhando daqueles desejos deles pelos rapazes. Se eu mesmo chamo um rapaz para
nosso encontro ou elogio alguns ou até mesmo se eu dou conversa por livre iniciativa a outros,
eles já ficam felizes e demonstram isso com brincadeiras, piadas e troças, mais empolgadas e
mais íntimas. Não é à toa, que depois de que fui cortejado por alguns rapazes, Didi veio
espontaneamente dizer que eu estou um ―cabo-verdiano‖, que eu já estou ―completamente
adaptado‖. (―De volta à rotina do Regala‖. 22/10/2013. Diário de campo, p.233)
Minhas possibilidades de inserção neste grupo de amigos gays era claramente
diferente da inserção de uma antropóloga mulher, cabo-verdiana e supostamente
heterossexual que realizava seu trabalho de campo ao mesmo tempo em que eu
realizava o meu, sobre o mesmo tema e com os mesmos interlocutores. Diferente dela,
nós ficávamos longas madrugadas na praça Dr. Regala, flertando com os rapazes e
conversando assuntos entre nós que, muitas das vezes, eram completamente gramaticais
para mim, não havendo qualquer exotismo. Se eu não era fluente na língua crioula,
como aquela antropóloga, eu o era numa ―linguagem gay‖.
Desta forma, nossos assuntos despertavam desejos em meu corpo para além
daqueles acadêmicos. Meu corpo se afetava com as histórias de meus interlocutores de
uma forma diferente da qual se afetaria qualquer outro pesquisador, claro, mas
principalmente se este pesquisador hipotético não compartilha desse tão parecido ―lugar
193
desviante no mundo‖. Meu corpo não só ouvia, entendia ou interpretava o que eles
diziam, meu corpo, que é também biográfico, sentia. Portanto, não era uma questão
somente de entender ou interpretar o desejo, a angústia, a jocosidade ou o medo
daqueles sujeitos, era uma questão de já tê-los sentido, ainda que de maneiras sempre
muito pessoais. Assim, tendo a concordar com alguns pesquisadores que afirmam que
em suas experiências etnográficas, suas identidades gays se sobrepuseram às fronteiras
culturais (LEWIN, E., & LEAP, W. L., 1996, p.17)
Eu não poderia terminar este trabalho sem expressar a dimensão do corpopesquisador gay, porque ele foi absolutamente fundamental para a produção dos dados
desta etnografia. Sem este corpo, eu talvez não tivesse sido alvo do desejo, talvez eu não
tivesse sido ―cantado‖ e não participaria dos rituais de cortejo. Esta etnografia
prescindiu do meu contato propriamente sexual com meus interlocutores, mas sem a
biografia que este meu corpo trazia, a comunicação com meus interlocutores e a
compreensão de seus dilemas seriam completamente outras.
194
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