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Aproximações entre a estética kantiana e o poema de sete faces de Carlos Drummond de Andrade

2022, Griot : Revista de Filosofia

Este artigo visa abordar a relação entre poesia e o pensamento filosófico através da aproximação entre a estética kantiana e a obra de Carlos Drummond de Andrade. Faz uma apresentação da obra do poeta nas quatro fases de seu desenvolvimento. Expõe brevemente a concepção estética de Kant destacando sua classificação das artes, seu conceito de belas artes e o lugar privilegiado que o filósofo dá à arte poética. Empreende uma aproximação das belas artes e da poesia com o Poema de Sete Faces de Drummond.

Griot : Revista de Filosofia, Amargosa - BA, v.22, n.1, p.266-278, fevereiro, 2022 https://doi.org/10.31977/grirfi.v22i1.2766 Recebido: 29/12/2021 | Aprovado: 19/02/2022 Received: 12/29/2021 | Approved: 02/19/2022 ISSN 2178-1036 APROXIMAÇÕES ENTRE A ESTÉTICA KANTIANA E O POEMA DE SETE FACES DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Luciano da Silva Façanha1 Universidade Federal do Maranhão (UFMA) https://orcid.org/0000-0003-1178-4018 E-mail: luciano.facanha@ufma.br Nildo Francisco da Silva2 Universidade Federal do Maranhão (UFMA) https://orcid.org/0000-0003-2086-6680 E-mail: nildo.fs@discente.ufma.br Zilmara de Jesus Viana de Carvalho3 Universidade Federal do Maranhão (UFMA) https://orcid.org/0000-0003-1991-0250 E-mail: zilmara.jvc@ufma.br RESUMO: Este artigo visa abordar a relação entre poesia e o pensamento filosófico através da aproximação entre a estética kantiana e a obra de Carlos Drummond de Andrade. Faz uma apresentação da obra do poeta nas quatro fases de seu desenvolvimento. Expõe brevemente a concepção estética de Kant destacando sua classificação das artes, seu conceito de belas artes e o lugar privilegiado que o filósofo dá à arte poética. Empreende uma aproximação das belas artes e da poesia com o Poema de Sete Faces de Drummond. PALAVRAS-CHAVE: Kant; Carlos Drummond de Andrade; Belas artes; Poesia; Estética; Imaginação. APPROXIMATIONS BETWEEN KANTIAN AESTHETICS AND CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE'S SEVEN-FACED POEM ABSTRACT: This article aims to approach the relationship between poetry and philosophical thought through the approximation between Kantian aesthetics and the work of Carlos Drummond de Andrade. It makes a presentation of the poet's work in the four phases of its development. It briefly exposes Kant's aesthetic conception, highlighting his classification of the arts, his concept of fine arts and the privileged place that the philosopher gives to poetic art. It undertakes an approximation of fine arts and poetry with Drummond's Poema de Sete Faces. KEYWORDS: Kant; Carlos Drummond de Andrade; Fine art; Poetry; Aesthetics; Imagination. Doutor(a) em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), São Paulo – SP, Brasil. Professor(a) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), São Luís – MA, Brasil. 2 Mestrando(a) em Cultura e Sociedade na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), São Luís – MA, Brasil.. 3 Doutor(a) em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), São Paulo – SP, Brasil. Professor(a) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), São Luís – MA, Brasil. 1 FAÇANHA, Luciano da Silva; CARVALHO, Zilmara de Jesus Viana de; SILVA, Nildo Francisco da; Aproximações entre a estética kantiana e o poema de sete faces de Carlos Drummond de Andrade. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v.22 n.1, p.266-278, fevereiro, 2022. Artigo publicado em acesso aberto sob a licença Creative Commons Attribution 4.0 International License Griot : Revista de Filosofia, Amargosa - BA, v.22, n.1, p.266-278, fevereiro, 2022 ISSN 2178-1036 Introdução A relação entre poesia e filosofia está presente e problematizada desde o nascimento desta última. A poesia tem uma precedência cronológica em relação ao pensamento filosófico. Quando a filosofia surgiu na Grécia Antiga com os pensadores naturalistas a poesia de Homero, Hesíodo, Arquíloco já estava presente na vida dos gregos e inclusive já estava firmada como um discurso legitimado culturalmente como um recurso pedagógico que se destinava à educação do homem grego. Neste contexto, a filosofia aparece como um discurso novo e questionador que aos poucos vai se contrapondo ao discurso poético, então hegemônico, e ao seu estatuto pedagógico. A filosofia nasce com a pretensão de ser a linguagem que traz a verdade ou que a revela (aletheia). Nesse sentido se insurge contra a poesia por esta veicular uma linguagem em que o verdadeiro e o falso convivem. Como a poesia poderia pretender educar os homens se ela transmite simultaneamente verdade e falsidade? Platão nega ao discurso poético qualquer pretensão de se configurar como um discurso provido de razão, afirmando no Íon que a poesia não tem nenhum valor epistêmico, na medida em que o poeta ou o rapsodo compõe ou recita os versos sem techné e sem episteme,4 e só pode fazê-lo por dom divino ou por inspiração. Na República, Platão chega a dizer que o poeta prejudica a efetivação da justiça na sociedade por seus versos que incitam os cidadãos ao vício pela forma de descrever os deuses e heróis. É importante ressaltar, contudo, que a filosofia nascente ainda se expressa de forma poética e que o próprio Platão se utiliza frequentemente do mito ou da narrativa fictícia típica da poesia antiga. Portanto, não há uma rejeição da poesia enquanto tal, mas uma oposição a uma poesia sem propósito de promover o melhoramento das pessoas e da sociedade. Nossa intenção não é aprofundar essa discussão, mas apenas rememorar a relação entre poesia e filosofia, talvez de uma maneira menos conflitiva a partir das reflexões trazidas pelo pensamento estético do filósofo alemão Immanuel Kant que privilegia a arte poética como a que detém superioridade sobre todas as demais e vê a boa poesia como “meio mais eficaz de vivificar a mente” (Anth 07: 248).5 Para tornar mais palpável essa relação entre a arte poética e o pensamento filosófico, relacionaremos as reflexões kantianas sobre as belas artes e a poesia ao fazer poético do grande poeta brasileiro Carlos Drummond Andrade, sobretudo a partir de seu Poema de Sete Faces, confrontando assim uma obra de arte poética com um parecer filosófico. O poeta e sua obra Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987) – poeta, contista e cronista – é um dos maiores nomes da poesia brasileira do século passado. Sua obra poética transbordou os limites nacionais e pode ser considerado também um dos grandes nomes da poesia mundial. Como afirma Silva (2013, p. 177-178), “hoje podemos ver Drummond como um poeta mais ‘universal’, traduzido e estudado em muitas línguas, do que os paulistas primitivistas” de sua época. Sua Íon 532c. Techné, normalmente traduzido por arte, tem significado bem amplo abrangendo desde pescaria, caça e medicina até pintura e escultura. Episteme é traduzida por “ciência” e compreende todo saber sistemático, refletido e organizado logicamente. 5 No decorrer do nosso texto, as obras de Kant, serão referenciadas de acordo com Edição da Academia (Akademie-Ausgabe) tanto pela abreviação do título da obra como pelo volume e o número, conforme exemplo a seguir: Antropologia de um ponto de vista pragmático Anth 7: xxx, Crítica do juízo KU 5: xxx. No tocante à Crítica da razão pura: KrV, seguida de A para a primeira edição (1781) e de B para a segunda edição (1787) e respectiva paginação original – ex: KrV A xxx ou KrV B xxx. 4 267 FAÇANHA, Luciano da Silva; CARVALHO, Zilmara de Jesus Viana de; SILVA, Nildo Francisco da; Aproximações entre a estética kantiana e o poema de sete faces de Carlos Drummond de Andrade. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v.22 n.1, p.266-278, fevereiro, 2022. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa - BA, v.22, n.1, p.266-278, fevereiro, 2022 ISSN 2178-1036 obra se inscreve no movimento literário modernista,6 na medida em que o poeta segue a libertação de um metro fixo, como sugerira Oswald de Andrade e Mário de Andrade, e expressa sua poesia em verso livre. Mais particularmente, Drummond costuma ser localizado entre os poetas da segunda geração do modernismo brasileiro. É mister, contudo, ponderar que, não obstante essa filiação ao modernismo, sua obra transcende esse movimento, não se restringindo especificamente às suas formas e às suas temáticas. Drummond, sem dúvida, recebe como herança do modernismo a liberdade linguística, o verso e o metro livres bem como as temáticas ligadas à vida cotidiana. Entretanto, o poeta pertence ao momento em que o movimento modernista faz sua curva crítica. Talvez fosse esse o fator que o fez sobreviver ao século XX como o maior poeta brasileiro, o mais popular, mais vendido e aclamado. Ele foi a contração muscular da poesia modernista pelo motivo de não se adequar totalmente a nenhuma das fases modernistas (SILVA, 2013, p. 169). Essa originalidade e inquietude do poeta que não se deixa prender por um movimento literário e artístico, mas dialoga sempre com as ideias e contextos em que está inserido dão à sua obra um caráter clássico e universal. “Sua vasta obra lírica perpassa admiravelmente os grandes e inquietantes temas de sua época, de forma aguda e original, contribuindo decisivamente para a configuração da poesia da cidade moderna” (DIAS, 2006, p. 13). A obra drummoniana é ampla, plural, de muitas tendências e diversas linhas de força, abrangendo desde temas cotidianos até questões existenciais e filosóficas como o sentido da vida e da morte, perpassando por temas familiares como também por temáticas de conotação social e política. Seguindo uma divisão proposta por Affonso Romano de Santana (1980), exporemos brevemente esta vasta e rica obra poética em, seu devir histórico e literário, em quatro fases. Lembramos que Santana propôs apenas três atitudes ou desdobramentos da obra de Drummond, precisamente a partir da dialética "eu x mundo". Assim teríamos: o “eu maior que o mundo”, o “eu menor que o mundo”, o “eu igual ao mundo.” Seguimos essa proposta, porém, acrescentando um quarto desdobramento – o que é de domínio comum – denominado a fase da memória.7 Na primeira fase – eu maior que o mundo –, vemos um acento irônico, jocoso, deparamonos com um indivíduo que mesmo estando na cidade, vive longe dos acontecimentos. Essa fase é comumente designada a fase “gauche”8 do poeta, que retrata a experiência marginal de seu eu lírico, a vivência do sujeito excluído, isolado. Podemos perceber na obra poética drummoniana dessa época o distanciamento do mundo e a marca de um humor desencantado como também o uso constante de uma linguagem coloquial, típica do modernismo. As obras dessa fase trazem habitualmente uma reflexão existencial, além portarem algumas atitudes que acompanharão permanentemente a obra de Drummond como a ironia e a metalinguagem. Obras típicas desse período são Algumas Poesias (1930) e Brejo das Almas (1934). O termo modernismo não está isento de problematicidade. “Desde a década de 1980, pesquisas têm demonstrado a complexa ambiguidade do modernismo bem como as implicações de pensar tal movimento como um mar de opiniões unívocas e hegemônicas. Por esta constatação, não existe apenas um modernismo e isto é irrefutável” (SILVA, 2013, p. 10). 7 Há ainda uma “fase erótica”, que poderia ser classificada com uma “quinta fase” da obra de Drummond. Essa fase dataria da sua maturidade. Quem opta por incluí-la nas fases da produção do poeta, identifica como sua marca distintiva o erotismo e a presença de textos curtos. No entanto, esses poemas não datam de um período determinado, daí o consenso dos especialistas em não optarem por pensar essa parte da produção literária drummoniana como uma fase de fato. 8 A palavra "gauche", usada por Drummond no Poema das Sete Faces, é de origem francesa e significa precisamente "lado esquerdo". Aplicada à dimensão humana, tal como o poeta a utiliza, a palavra evoca um sujeito às avessas, um indivíduo torto que não consegue estabelecer uma comunicação com o mundo que o rodeia. 6 268 FAÇANHA, Luciano da Silva; CARVALHO, Zilmara de Jesus Viana de; SILVA, Nildo Francisco da; Aproximações entre a estética kantiana e o poema de sete faces de Carlos Drummond de Andrade. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v.22 n.1, p.266-278, fevereiro, 2022. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa - BA, v.22, n.1, p.266-278, fevereiro, 2022 ISSN 2178-1036 A segunda fase denominada “eu menor que o mundo” é marcada pela temática social, retrata as tensões e os medos que rondavam o Brasil e o mundo da década de 1940. O poeta se solidariza com os problemas do momento. O tom de sua poesia é de engajamento social e político, retratando as mazelas sociais como a fome, a desigualdade e a miséria. Os poemas dessa fase – Sentimento do Mundo (1940), José (1942) e Rosa do Povo (1945)9 – iniciam de modo desesperançoso, porém terminam com um toque de esperança. Na terceira fase da obra de Drummond, a fase do “eu igual ao mundo” também chamada “fase do não”, opera-se um deslocamento de temáticas cotidianas e políticas para uma poesia com característica mais metafísica e reflexiva. Foi um momento de virada, no qual ele abandonou o seu “namoro” com o Partido Comunista para tornar-se um fervoroso adversário do grupo. Sua poesia desincorporou os problemas do tempo presente e a causa revolucionária que animava os versos de Rosa do Povo para voltar-se a temas mais intimistas e metafísicos (BORTOLOTI, 2017, p. 267). Observa-se também uma marca pessimista e desencantada, o poeta passa a abordar temas como vida e morte, infância e velhice, amor e tempo. O poema Claro enigma (contendo 41 poemas e publicado em 1951) introduz essa fase, que inclui também obras como Fazendeiro do ar (1955), Vida passada a limpo (1959) e Lição de coisas (1962). Por fim, temos a “fase da memória” (1970-1980), na qual o poeta aprofunda temas que foram retratados em toda a sua obra. Seu eu lírico rememora e aprofunda temas que vão desde as ruas de Itabira até temas de grande abrangência. As memórias do poeta, nessa última fase de sua obra, apresentam-se como produto de um olhar que volta, em sua maturidade, para as realidades do passado, compreende o período de lembranças da infância na cidade natal, além de reflexões universais sobre o tempo e a memória. A principal obra dessa fase é Boitempo (1973), a qual se acrescenta outras obras como As impurezas do branco (1973), Discurso de primavera (1977), A paixão medida (1980) e Corpo (1984). Dessas quatro fases da obra de Drummond, queremos destacar uma obra da primeira, o Poema das Sete Faces (ANDRADE, 2013, p. 11). Poderíamos ter escolhido qualquer outro poema de qualquer outra fase, uma vez que não há nenhuma fase da obra de Drummond que não nos seja encantadora. Escolhemos o referido poema com a intenção de empreender uma aproximação dessa sublime obra de arte com o pensamento estético kantiano. Para isso, passamos agora à reflexão sobre as belas artes e, particularmente sobre a poesia, na perspectiva kantiana, para, em seguida, relacionar esses pareceres filosóficos com o poema de Drummond. As belas artes e a poesia O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) é autor de um grande empreendimento teórico na história do pensamento ocidental. Não é possível imaginar ou interpretar o pensamento filosófico posterior ao século XVIII sem uma referência implícita ou explícita à filosofia kantiana. Forjada no contexto histórico e filosófico do empirismo inglês e do movimento iluminista, a obra de Kant se configura como um grande projeto crítico, no qual a razão humana é convocada a colocar-se diante de si mesma como perante um tribunal e avaliar seus próprios limites e suas reais possibilidades. Novos Poemas (coletânea de composições escritas entre 1946 e 1947) também pode ser posto nessa fase da obra de Drummond, porém, sua localização cabe muito mais na transição para a fase do não “trazendo apenas resquícios da fase engajada” (BORTOLOTI, 2017, p. 11). 9 269 FAÇANHA, Luciano da Silva; CARVALHO, Zilmara de Jesus Viana de; SILVA, Nildo Francisco da; Aproximações entre a estética kantiana e o poema de sete faces de Carlos Drummond de Andrade. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v.22 n.1, p.266-278, fevereiro, 2022. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa - BA, v.22, n.1, p.266-278, fevereiro, 2022 ISSN 2178-1036 Sua obra comumente é pensada em duas fases fundamentais: a fase pré-crítica e a fase crítica. Não obstante, a problemática relacionada ao que distinguiria esses dois períodos do pensamento kantiano, poderíamos afirmar que a marca fundamental da fase crítica é justamente o fato de convocar a razão a se colocar perante si mesma e fazer um auto-julgamento, uma espécie de gnôthi seautón10 da própria razão. Na obra crítica de Kant consagraram-se classicamente três obras principais, também chamadas as três críticas: Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática e Crítica da Faculdade de Julgar. O que nos interessa no presente trabalho é, sobretudo, a terceira crítica, apesar de que ocasionalmente recorreremos também a outras obras kantianas. O que visamos a partir de agora é apresentar a reflexão de Kant sobre as belas artes e, de maneira, mais precisa, sobre a arte poética. Ao tratar da arte, o filósofo de Königsberg propõe uma distinção entre arte mecânica e arte estética. Em sua concepção, a arte mecânica seria aquela que é “adequada ao conhecimento de um objeto possível”. Ela direciona as ações requeridas apenas para tornar real um objeto a que visa produzir (KU 05: 305). A arte estética, por sua vez, “tem o sentimento de prazer como seu propósito imediato”. Ela pode ser agradável ou bela. A arte estética agradável ocorre “quando tem por fim que o prazer acompanhe as representações como meras sensações.” A finalidade a que se visa aqui seria apenas a fruição, tratando-se tão somente de um entretenimento. A arte estética bela ocorre quando se tem por fim que o entendimento a acompanhe como modos de conhecimento (KU 05: 305). “São um modo de representação que é por si mesmo conforme a fins e, embora sem fim, fomentam o cultivo das forças da mente para a comunicação em sociedade” (KU 05: 306). Diversamente de um produto das artes mecânicas que imediatamente nos aparecem como artificiais, como objetos produzidos segundo determinadas regras, um produto das belas artes deve emergir como se fosse um produto da natureza. Com efeito, para nós, a beleza da natureza se dá pelo fato de que a vemos como uma obra de arte. Quando olhamos para uma paisagem com árvores, rios, flores é comum exclamarmos que o cenário que contemplamos nos parece algo feito por um artista, parece ser uma obra de arte, por isso a temos como bela. Da mesma forma, “a arte só pode ser denominada bela quando temos consciência de ser ela arte, parecendo ao mesmo tempo natureza” (KU 05: 306). Se a arte não nos agrada no simples julgamento, ou seja, no juízo desprovido de interesse cognoscitivo, moral ou pragmático, mas apenas nos agrada enquanto nos é útil para construir ou produzir alguma coisa, não seria apropriado denominá-la de bela arte e sim arte mecânica (KU 05: 306). A finalidade nos objetos produzidos pelas artes mecânicas é transparente e imediata ao nosso olhar, porém, “mesmo que seja intencional, a finalidade nos produtos das belas artes tem de parecer não intencional (KU 05: 307). A finalidade deve ser considerada como livre jogo, como livre de regras e coerções. Tendo apresentado a distinção entre as artes mecânicas e as estéticas e tendo encontrado entre as artes estéticas as agradáveis e as belas, passamos agora a pensar com Kant sobre a função do gênio nas belas artes. Se, como vimos, a bela arte deve parecer natural, embora tenhamos a consciência de que é arte, Kant encontra no artista considerado como gênio a possibilidade de pensar a obra de arte como se fosse produto da natureza. Com efeito, na compreensão kantiana, “as belas artes devem ser necessariamente consideradas artes do gênio” (KU 05: 307). 10 Aforismo da Grécia antiga, comumente traduzido por “conhece-te a ti mesmo”, inscrito no templo do deus Apolo, em Delfos. O uso dessa máxima tornou-se célebre com Sócrates que a tem como um princípio motivador para os seus diálogos. 270 FAÇANHA, Luciano da Silva; CARVALHO, Zilmara de Jesus Viana de; SILVA, Nildo Francisco da; Aproximações entre a estética kantiana e o poema de sete faces de Carlos Drummond de Andrade. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v.22 n.1, p.266-278, fevereiro, 2022. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa - BA, v.22, n.1, p.266-278, fevereiro, 2022 ISSN 2178-1036 [...] um produto jamais pode ser denominado artístico sem uma regra precedente, a natureza tem de dar a regra à arte no sujeito (e pela concordância das faculdades deste último), isto é, a bela arte só é possível como produto do gênio (KU 05: 307). As belas artes têm como pressuposto algo mecânico, ou seja, algo que pode ser compreendido e realizado segundo regras que, portanto, também pode ser ensinado ou aprendido como uma técnica. Nesse sentido, artes como a retórica e a poesia não podem ser pensadas como artes que se dão de maneira espontânea. Para ser um bom orador ou um bom poeta requer-se, com efeito, saberes preliminares, como, por exemplo, o conhecimento das línguas antigas, a leitura dos autores clássicos, boas informações históricas acerca da Antiguidade etc. No entender do filósofo, os conhecimentos históricos são imprescindíveis para as belas artes, tanto como preparação a elas quanto como fundamento. No entanto, para que poesia ou retórica atinjam o estatuto de arte, necessita-se da figura do gênio para que sejam pensadas como se fossem livres de coerções e de regras e, portanto, como se obras da natureza. Do que dissemos acima decorre que a bela arte não pode ser transmitida como o saber científico ou técnico. Um grande cientista, um técnico ou um artesão pode transmitir os seus conhecimentos que são passíveis de ser apreendidos. O cientista pode dizer como chegou aos seus resultados. Pode ser difícil entender os meios que ele utilizou, mas é perfeitamente possível acompanhar os seus métodos e compreender como ele chegou aquele resultado. Com a artista ou o gênio não se dá o mesmo. Por isso diz o filósofo: [...] não se pode aprender a escrever poesia de maneira brilhante, por mais detalhados que fossem os preceitos para a arte poética e por excelentes que fossem os modelos escolhidos. [...] nenhum Homero ou Wieland poderia indicar como surgiram e se juntaram em seus cérebros as suas ideias, ao mesmo tempo ricas em fantasia e intelectualmente profícuas, porque nenhum deles saberia dizê-lo a si mesmo, muito menos ensiná-lo aos demais (KU 05: 309). Duas faculdades são fundamentais na produção artística: a imaginação e o entendimento. Não é nosso objetivo abordar essas duas faculdades na sua riqueza de significados. Mas vemos como metodologicamente viável definir esses dois termos antes de continuarmos. O entendimento, para Kant, é a capacidade da mente de oferecer conceitos ou regras para que seja possível o conhecimento. Ele não intui, apenas pensa.11 Ele é “a faculdade de ligar a priori e colocar o diverso de dadas representações sob a unidade da apercepção” (KrV B 135). A imaginação, por sua vez, é a capacidade de unir o diverso, não por meio do conceito – o que seria próprio do entendimento – mas por meio de imagens. Segundo Kant, “a imaginação deve [...] colocar o diverso da intuição em uma imagem; antes disso, no entanto, ela tem de captar as impressões em sua atividade, i.e., apreendê-las” (KrV A 120). Faz-se necessário refletir aqui sobre a relação dessas duas faculdades ou forças da mente, como as denomina Kant na Crítica do Juízo. Uma é a forma como elas se relacionam na atividade cognitiva e outra é a sua relação no âmbito estético. Com efeito, no campo da cognição, há uma relação de submissão da imaginação ao entendimento. Ela é “submetida à coerção do entendimento e à condição de adequação ao seu conceito.” Na dimensão estética 11 Kant concebe o entendimento como “a faculdade de produzir representações por si mesma, ou a espontaneidade do conhecimento. É próprio de nossa natureza que a intuição só possa ser sensível, i.e., que só contenha o modo como somos afetados pelos objetos. Por outro lado, a faculdade de pensar o objeto da intuição sensível é o entendimento” (KrV B 75). 271 FAÇANHA, Luciano da Silva; CARVALHO, Zilmara de Jesus Viana de; SILVA, Nildo Francisco da; Aproximações entre a estética kantiana e o poema de sete faces de Carlos Drummond de Andrade. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v.22 n.1, p.266-278, fevereiro, 2022. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa - BA, v.22, n.1, p.266-278, fevereiro, 2022 ISSN 2178-1036 a imaginação é livre para fornecer ao entendimento, para além daquela concordância com o conceito, um material não procurado, rico em conteúdo e pouco desenvolvido que o entendimento não levava em conta em seu conceito, mas que pode utilizar não tanto objetivamente, para o conhecimento, mas sobretudo subjetivamente para dar vida às forças do conhecimento – indiretamente, portanto, também para conhecimentos (KU 05: 316-317). Definidos os dois termos e suas relações no campo cognitivo e no domínio estético, podemos compreender com maior clareza a constatação de Kant segundo a qual “As forças da mente cuja união (em uma certa relação) constitui o gênio são, portanto, imaginação e o entendimento” (KU 05: 316-317). Há que lembrar que Kant realiza uma distinção no âmbito das belas artes. As ideias estéticas se exprimem de três modos, elas se dividem em três categorias e essas categorias seguem os três modos fundamentais de expressão humana: a palavra, o gesto e o tom. No que concerne à expressão por palavra temos a arte discursiva, no que respeita ao gesto a arte figurativa e no tocante ao tom a arte do jogo das sensações (KU 05: 320-321). As artes discursivas compreendem a retórica e a poesia; as artes figurativas dividem-se em artes da verdade sensível ou artes plásticas, como a escultura e arquitetura, e em artes da aparência sensível como a pintura; a artes do belo jogo das sensações dividem-se em jogo artístico das sensações da audição (a música) e jogo da visão (a arte das cores) (KU 05: 320-324). Essas artes mostram sua superioridade justamente no descreverem de maneira bela coisas que na natureza seriam feias ou desagradáveis. As fúrias, doenças, devastações da guerra etc. podem enquanto coisas dolorosas, ser muito belamente descritas, e mesmo representadas em pinturas (KU 05: 312). Além de terem em comum o que já expomos até aqui, as belas artes também apresentam quatro exigências fundamentais. Elas devem ser providas de “imaginação, entendimento, espírito e gosto” (KU 05: 320). Dentre as categorias de artes elencadas acima, Kant privilegia as artes discursivas e dentre elas a arte poética. De acordo com o filósofo Entre todas as belas artes, a poesia (que deve sua origem quase integralmente ao gênio, e é a que menos comporta ser baseada em preceitos ou exemplos) ocupa a posição mais alta. Ela alarga a mente ao colocar a imaginação em liberdade e, nos limites de um conceito dado, em meio à ilimitada diversidade de formas possíveis compatíveis com ele, fornece aquela que conecta a exposição desse conceito com uma plenitude de pensamentos a que nenhuma expressão linguística seria adequada, elevando-se assim, esteticamente, até às ideias (KU 05: 326-327). Para Kant, é “[...] na poesia [...] que a faculdade das ideias estéticas pode mostrar-se em toda a sua grandeza. Mas essa faculdade, considerada em si mesma, é apenas, propriamente falando, um talento (da imaginação)” (KU 05: 315). O poeta fala não meramente aos sentidos, como os músicos, mas fala ao entendimento, por isso, diz Kant na sua Antropologia que “uma boa poesia é o meio mais eficaz de vivificar a mente” (Anth 07: 248). Muito marcante nessa exaltação à arte poética é a comparação feita pelo filósofo entre as duas artes discursivas. Kant defende a superioridade da poesia em relação à retórica. A retórica é entendida como a “arte de conduzir uma atividade do entendimento como se fosse um livre jogo da imaginação”. De fato, ao produzir um discurso persuasivo, o orador 272 FAÇANHA, Luciano da Silva; CARVALHO, Zilmara de Jesus Viana de; SILVA, Nildo Francisco da; Aproximações entre a estética kantiana e o poema de sete faces de Carlos Drummond de Andrade. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v.22 n.1, p.266-278, fevereiro, 2022. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa - BA, v.22, n.1, p.266-278, fevereiro, 2022 ISSN 2178-1036 anuncia uma operação a realizar e leva a cabo como se fosse apenas um jogo com ideias para entreter o espectador.” [...] fornece realmente algo que não prometia, a saber, um jogo de imaginação que entretém; mas ele também quebra parte da promessa feita quanto à atividade anunciada, a saber, ocupar o entendimento em finalidade (KU 05: 321). Diversamente da retórica, a poesia é entendida por Kant como a arte de levar a cabo um livre jogo da imaginação como se fosse uma atividade do entendimento. [...] O poeta anuncia somente um jogo com ideias, voltado a entreter, mas acabam surgindo tantas coisas para o entendimento que é como se ele só tivesse a intenção de conduzir as suas atividades. [...] O poeta promete pouco ao anunciar um mero jogo com ideias, mas realiza algo que é digno de uma operação, a saber, fornecer ludicamente alimento ao entendimento e dar vida a seus conceitos através da imaginação (KU 05: 321). A comparação entre poesia e retórica tem muitos outros matizes e envolve muito mais questões. Porém, nosso objetivo, até aqui, não é outro senão expor brevemente essa questão para fins de relacionar o conceito kantiano de poesia com um poema de Drummond. Da comparação que expomos até aqui, conclui o filósofo de Königsberg que o orador oferece menos do que promete, enquanto o poeta oferece mais do que promete (KU 05: 321). Poema das Sete Faces e o conceito kantiano de poesia Após essas considerações acerca da estética kantiana, apresentamos o Poema de Sete Faces de Drummond e o relacionamos com as ideias do filósofo. O Poema de Sete Faces encontra-se na coletânea Alguma Poesia (ANDRADE, 2013, p. 11), publicada em 1930. O poema acabou se tornando uma das composições mais populares do poeta de Itabira. Pertence aquela fase da obra drummonina que Affonso Romano de Santana denomina eu maior que o mundo, também chamada fase gauche, como já discutimos acima. O poema expressa os sentimentos de inadequação e solidão do eu lírico, que é uma das temáticas mais frequentes na obra poética de Drummond. Destaca-se nele “o gauchismo e a ironia, o humour e o pessimismo crítico em curso, a partir de então” (PERIUS, 2017, 109). Eis o poema: Poema de Sete Faces Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. 273 FAÇANHA, Luciano da Silva; CARVALHO, Zilmara de Jesus Viana de; SILVA, Nildo Francisco da; Aproximações entre a estética kantiana e o poema de sete faces de Carlos Drummond de Andrade. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v.22 n.1, p.266-278, fevereiro, 2022. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa - BA, v.22, n.1, p.266-278, fevereiro, 2022 ISSN 2178-1036 Tem poucos, raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode, Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo (ANDRADE, 2013, p. 11). Diante dessa magnífica obra de arte da literatura brasileira, queremos destacar alguns pontos a partir da perspectiva kantiana exposta acima. Vimos que uma característica fundamental de uma bela arte, que a distingue de artes mecânicas, é o fato de ela ter no sentimento de prazer seu propósito imediato. Cremos que o poema de Drummond responde perfeitamente a esse quesito uma vez que sua leitura suscita imediatamente no leitor um grande sentimento de prazer. Porém, o poema de Drummond configura-se não somente como algo agradável. Ele não o compôs e nós não o lemos para a mera fruição, ou seja, tendo por finalidade que o prazer acompanhasse as nossas representações como meras sensações. Se assim o fosse, estaríamos diante de uma arte estética agradável não, porém, de uma arte estética bela. O agradável não contém necessariamente beleza porque visa somente o entretenimento. Estamos perante uma obra cuja finalidade implica o acompanhamento do entendimento como modos de conhecimento (KU 05: 305), ou seja, ao lermos o poema somos instados a entendê-lo, ele provoca a nossa faculdade cognitiva. A representação que fazemos de seus versos, por si mesmo, é conforme a fins. Embora sem fim, ou seja, sem visar a cognições, eles fomentam o cultivo das forças da nossa mente para a comunicação em sociedade. Desse modo, o poema se classifica como uma arte estética bela (KU 05: 306). O Poema de Sete Faces não se apresenta a nós como mecanicamente produzido, por uma arte útil ou técnica ou mesmo por um procedimento científico, produzido de acordo com determinadas regras, leis ou métodos. Ao contrário, nós o contemplamos como algo natural, espontâneo, no dizer de Kant, como se fosse um produto da natureza. Temos a consciência de que é algo produzido por um homem segundo regras, mas nos parece, ao mesmo tempo, natureza, ou seja, algo que se produz com liberdade e sem coerções. Não temos uma finalidade transparente e imediata, obedecendo ao princípio segundo o qual “mesmo que seja intencional, a finalidade nos produtos das belas artes tem de parecer não intencional (KU 05: 307). A finalidade a ser atingida pela obra parece-nos um livre jogo, livre de regras e coerções, os próprios versos nos dão essa impressão de um jogo livre de ideias. Obviamente para compor esses versos, Drummond necessitou de conhecimentos prévios, saberes ensinados e aprendidos que podem ser apropriados por um sujeito por regras e métodos. Sabemos que o poeta era um homem de vasta cultura e isso lhe proporcionou a sua atividade artística. Porém, esses conhecimentos não o tornaram produtor de uma bela arte, mas tão somente 274 FAÇANHA, Luciano da Silva; CARVALHO, Zilmara de Jesus Viana de; SILVA, Nildo Francisco da; Aproximações entre a estética kantiana e o poema de sete faces de Carlos Drummond de Andrade. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v.22 n.1, p.266-278, fevereiro, 2022. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa - BA, v.22, n.1, p.266-278, fevereiro, 2022 ISSN 2178-1036 funcionaram como preparação e fundamento para a sua produção artística. Para ser poeta, não basta ter se apropriado dos procedimentos e regras para se compor um poema, já que a poesia não é uma arte mecânica nem uma disciplina científica. Alguém pode conhecer todos os procedimentos da arte poética e nem por isso ser um poeta ou um bom poeta, da mesma forma que pode conhecer a arte retórica sem ser necessariamente um orador ou um bom orador. A resposta para a questão de como é possível a autêntica obra de bela arte, kantianamente falando é o gênio, o artista, enquanto tal. Daí que não poderíamos atribuir a Drummond o fato de compor esses versos simplesmente pelos saberes que possuía, mas pelo seu gênio artístico. Isso é que faz seu poema causar em nós a impressão de serem suas ideias, expressas em seus versos, livres de coerções e de regras e, portanto, como se fossem obras da natureza. No gênio, pensado como aquele que opera por dom da natureza, unem-se, como vimos, as duas faculdades fundamentais na produção artística: a imaginação e o entendimento. Gostaríamos de reproduzir aqui, as palavras do próprio Drummond, numa entrevista, em que ele fala do próprio fazer poético: Eu acho, ao contrário das teorias modernas, que a inspiração existe. A inspiração é o momento em que você sente um impulso, às vezes, criando até uma espécie elevação ligeira da temperatura, você se sente um pouco inflamado, um pouco quente, com vontade de fazer alguma coisa. Depois vem a razão, vem a análise, você vai fazer a frio o poema, já agora com a razão mais do que com o sentimento, mas sem abandonar o sentimento. Essa mistura, essa conjugação de sentimento e de raciocínio, a meu ver, é que vai tocando (DRUMMOND, 1982). Percebemos nas palavras do próprio poeta aquilo que kantianamente poderíamos denominar de imaginação e entendimento. Na poesia, com efeito, como em toda a bela arte, essas duas faculdades ou forças da mente se conjugam. Diversamente de uma operação cognitiva em que a imaginação está submissa ao entendimento e ás suas regras e conceitos, aqui a imaginação, que o poeta chama sentimento, é aquilo que predomina, é o motor do fazer poético. O trabalho poético começa com a imaginação, porém, é dosado de entendimento, que o poeta chama de razão ou análise. Na verdade, é a imaginação que, livremente, oferece às faculdades cognitivas “um material não procurado, rico em conteúdo e pouco desenvolvido”. A imaginação não fornece, e nem poderia fazê-lo, conhecimento “objetivo” às faculdades cognitivas, mas subjetivamente (a partir da experiência do sujeito), ela pode “dar vida às forças do conhecimento” (KU 05: 317). A razão, a análise, que vem depois da imaginação, no dizer do poeta, traduz bem aquela sentença de Kant de que “toda riqueza da imaginação nada produz em sua liberdade sem leis, senão o absurdo” (KU 05: 319). Daí a necessidade do julgamento, da faculdade de julgar, para adequar o sentimento ou a imaginação ao entendimento. Quando atentamos para o conteúdo do Poema de Sete Faces, vemos que ele aborda, através de riquíssimas imagens, a condição humana com suas capacidades, mas também com suas mazelas. O poema traz consigo o propósito de construir “uma poética do olhar” (PERIUS, 2017, p. 110) e nessa poética o leitor depara-se com dores, angústias e emoções que compõem a existência. Na primeira estrofe, por exemplo, a figura do “anjo torto desses que vivem na sombra,” mostra as forças (sociais, políticas, econômicas, biológicas, psicológicas etc.) que nos condicionam e nos limitam. A figura do “gauche” mostra a angústia do eu lírico que se vê estranho, perdido, isolado, diferente ou oposto à maioria. Na quarta e na quinta estrofes, “o homem atrás do bigode”, um tanto solitário e de poucos amigos, símbolo da força e da virilidade é o mesmo que usa as palavras de Cristo crucificado, mostrando sua fraqueza e abandono. 275 FAÇANHA, Luciano da Silva; CARVALHO, Zilmara de Jesus Viana de; SILVA, Nildo Francisco da; Aproximações entre a estética kantiana e o poema de sete faces de Carlos Drummond de Andrade. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v.22 n.1, p.266-278, fevereiro, 2022. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa - BA, v.22, n.1, p.266-278, fevereiro, 2022 ISSN 2178-1036 Ora, se estamos falando de arte bela, podemos perguntar: o que há de belo na opressão, isolamento, fraqueza, abandono, angústia? Como resposta, evocamos as palavras de Kant já citadas acima segundo as quais as belas artes “mostram sua superioridade justamente no descreverem de maneira bela coisas que na natureza seriam feias ou desagradáveis” (KU 05: 312). Essas dores, sofrimentos, fraquezas e angústias que em si são providas de fealdade atingem beleza na poesia de Drummond que as descrevem belamente. Essa capacidade de descrever o que é naturalmente feio e desconfortável como belo é uma marca fundamental da arte poética. Retomando o que diz Kant sobre o fato de o poeta falar ao entendimento, gostaríamos de lembrar a sexta estrofe do poema: “Mundo mundo vasto mundo,/ se eu me chamasse Raimundo/ seria uma rima,/ não seria uma solução./ Mundo mundo vasto mundo,/ mais vasto é meu coração.” Esses versos são utilizados por Marilena Chauí para tratar da liberdade. Para ela, Drummond, nessa estrofe do poema, ao contrapor “nós” e “o mundo”, coloca o leitor diante da liberdade como um problema. Neste poema, Carlos Drummond de Andrade [...] confronta-nos com a realidade exterior: o ‘vasto mundo’ do qual somos uma pequena parcela e no qual estamos mergulhados. [...] estamos agora diante da afirmação de que nosso ser é mais vasto do que o mundo: pelo nosso coração – sentimentos e imaginação – somos maiores do que o mundo, criamos outros mundos possíveis, inventamos outra realidade (CHAUÍ, 2000, p. 459). Ao tratar do conceito geral de liberdade presente em Aristóteles e Sartre, Chauí, pedagogicamente evoca os versos drummonianos para mobilizar o pensamento dos estudantes de filosofia. Aí se realiza a ideia kantiana de que o poeta fala, não simplesmente aos sentidos - como Kant pensava que fazia a arte musical -, mas fala à nossa faculdade cognitiva, levando-nos, a partir de suas metáforas, a levantar questões, agitando o pensamento e tirando-o de sua comodidade. Por essas e outras coisas – ideias, temas, problemas – que este poema suscita em nós, percebemos nele a ideia kantiana de que a poesia fornece ludicamente alimento ao entendimento e dá vida aos conceitos do entendimento por meio da imaginação. Uma boa poesia, como a de Drummond, - particularmente o Poema de Sete Faces, que usamos como modelo - alimenta nossas potências cognitivas, é um meio muito eficaz de dar vida à mente e alargá-la, de nos fazer pensar, pondo em liberdade a imaginação, obviamente nos limites do conceito para que não seja uma liberdade sem lei e chegue a absurdos. O que nenhuma outra expressão linguística pode mobilizar em nós em termos de pujança de pensamento, a boa poesia nos pode oferecer. Conclusão Drummond é uma figura marcante da nossa poesia. Ele evoca aquilo que é característico do poeta: a liberdade. O livre jogo da imaginação, embora não sem entendimento, é o que podemos identificar no fazer poético de Drummond. Sua poesia, como toda boa poesia, mobiliza as forças da nossa mente, levando-nos a pensar sobre a existência e o mundo em que vivemos, sobre nossas misérias e fraquezas, bem como sobre nossas esperanças e nosso compromisso de transformação do mundo. Haveria muito mais a dizer sobre o Poema de Sete Faces por ser uma expressão artística espiritualmente rica. Há materiais notáveis de análises e interpretações que mostram justamente a sua potencialidade, enquanto obra poética, de alimentar nosso entendimento, dilatar nossos horizontes e enriquecer nosso modo de compreender a vida. Na beleza de seus versos, com seu tom 276 FAÇANHA, Luciano da Silva; CARVALHO, Zilmara de Jesus Viana de; SILVA, Nildo Francisco da; Aproximações entre a estética kantiana e o poema de sete faces de Carlos Drummond de Andrade. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v.22 n.1, p.266-278, fevereiro, 2022. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa - BA, v.22, n.1, p.266-278, fevereiro, 2022 ISSN 2178-1036 íntimo e sensível, ele capta aspectos fundamentais da existência, suas emoções e dores intemporais, levando-nos a vermos a nós mesmos como num espelho, com nossos sentimentos, paixões, percepções e problemas. A estética kantiana, embora, distante cultural e historicamente da nossa realidade brasileira, em sua validade clássica, serve-nos para captar a liberdade poética e nos motivar a pensar a partir dos versos que a imaginação do artista cria. A poesia pode não ser uma techné ou uma episteme, como dizia Platão e como, de alguma forma, concorda o filósofo de Königsberg, mas ela move nosso entendimento e nos ajuda a vislumbrar nossos conhecimentos. Ela promete só um jogo de ideias ou de metáforas e nos dá novas oportunidades e novos campos para pensar. Assim ela oferece, como diz o filósofo, mais do que promete. Esperamos que neste artigo não tenhamos feito o contrário. 277 FAÇANHA, Luciano da Silva; CARVALHO, Zilmara de Jesus Viana de; SILVA, Nildo Francisco da; Aproximações entre a estética kantiana e o poema de sete faces de Carlos Drummond de Andrade. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v.22 n.1, p.266-278, fevereiro, 2022. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa - BA, v.22, n.1, p.266-278, fevereiro, 2022 ISSN 2178-1036 Referências ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. ANDRADE, Carlos Drummond de. Entrevista a Leda Nagle (1982). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=huc9EFfY4Ag. Acesso: 10 de julho de 2021. BORTOLOTI, Marco Marcelo. O poeta e o revolucionário: Drummond e o comunismo internacional (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: UFRJ, 2017. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000. DIAS, Márcio Roberto Soares. Da cidade ao mundo: notas sobre o lirismo urbano de Carlos Drummond de Andrade. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2006. KANT, Immanuel. Gesammelte Schriften: herausgegeben von der Deutschen Akademie der Wissenschaften, 29 vols. Berlin: Walter de Gruyter, 1902-. Disponível em: https://korpora.zim.uni-duisburg-essen.de/kant/verzeichnisse-gesamt.html (Elektronische Edition). KANT, Immanuel. Crítica da faculdade de julgar. 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Nova Fronteira, 1980. ________________________________________________________________________________ Contribuição dos(as) autores(as) / Author’s Contributions:: Luciano da Silva Façanha é o autor idealizador do artigo. Nildo Francisco da Silva colaborou nos textos sobre a poesia de Carlos Drummond de Andrade, dedicou-se aos trabalhos de pesquisa e propôs a estrutura central do texto, redigiu e atuou na revisão do trabalho. Zilmara de Jesus Viana de Carvalho colaborou com a pesquisa e a redação, bem como com a revisão do texto no que se refere aos textos do filósofo Kant. Os (As) autores(as)aceitaram e aprovaram a versão final do texto. ________________________________________________________________________________________________ Autor(a) para correspondência / Corresponding author: Luciano da Silva Façanha. luciano.facanha@ufma.br 278 FAÇANHA, Luciano da Silva; CARVALHO, Zilmara de Jesus Viana de; SILVA, Nildo Francisco da; Aproximações entre a estética kantiana e o poema de sete faces de Carlos Drummond de Andrade. Griot : Revista de Filosofia, Amargosa – BA, v.22 n.1, p.266-278, fevereiro, 2022.