Nuno Pereira Castanheira
Jair Tauchen
Agemir Bavaresco
Draiton Gonzaga de Souza
(Organizadores)
Questões Ecológicas em Perspectiva Interdisciplinar
V. 2
Editora Fundação Fênix
Porto Alegre, 2022
Direção editorial: Agemir Bavaresco
Diagramação: Editora Fundação Fênix
Imagem da capa e arte: Nuno Pereira Castanheira
O padrão ortográfico, o sistema de citações, as referências bibliográficas, o conteúdo
e a revisão de cada capítulo são de inteira responsabilidade de seu respectivo autor.
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da República Federal da Alemanha através do Serviço Alemão de Intercâmbio
Acadêmico (DAAD).
Série Filosofia – 96
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
CASTANHEIRA, Nuno Pereira; TAUCHEN, Jair; BAVARESCO, Agemir; SOUZA,
Draiton Gonzaga de. (Orgs).
CASTANHEIRA, Nuno Pereira; TAUCHEN, Jair; BAVARESCO, Agemir; SOUZA,
Draiton Gonzaga de. Questões Ecológicas em Perspectiva Interdisciplinar. Vol. 2.
Porto Alegre, RS: Editora Fundação Fênix, 2022.
[Recurso On-line, 209p.]
ISBN – 978-65-81110-67-3
https://doi.org/10.36592/9786581110673
Disponível em: https://www.fundarfenix.com.br
CDD-100
1. Ecologia. 2. Filosofia Política. 3. Design. 4. Ética Ambiental. 5. Crise.
Índice para catálogo sistemático – Filosofia e disciplinas relacionadas – 100
10. Renovações contemporâneas da Filosofia da Natureza
Contemporary Renovations of the Philosophy of Nature
https://doi.org/10.36592/9786581110673-10
Otávio Souza e Rocha Dias Maciel1
Resumo
O presente artigo busca elaborar brevemente como a filosofia da natureza tem sido
renovada na contemporaneidade a partir de movimentos metafísicos e ecológicos
recentes. Embora o projeto remonte ao começo do século XIX, encontrando em
Friedrich Schelling seu primeiro grande expoente, a tendência outrora foi
aparentemente abandonada em prol de filosofias marcadamente antropocêntricas.
Em épocas de catástrofes climáticas cada vez mais frequentes, aquela opção de
reduzir a realidade à relevância centralizada nos humanos mostrou-se
decisivamente errônea. Movimentos recentes buscam retomar o legado daqueles
que pensaram a natureza e a ecologia de forma filosófica – e até mesmo metafísica,
como Platão, Schelling e Hamilton Grant, numa renovada atenção ao que há antes e
além do antropocentrismo.
Palavras-Chave: Filosofia da Natureza (Naturphilosophie). Friedrich Schelling.
Realismo Especulativo (Iain Hamilton Grant). Filosofia da Ecologia. Platão.
Abstract
This paper aims at elaborating, however briefly, how the philosophy of nature has
been renovated in contemporary times, mainly due to recent metaphysical and
ecological movements. Although the project might be traced to the beginning of the
19th century, mainly with Friedrich Schelling as its forefront advocate, such tendency
was abandoned at some point and replaced with remarkably anthropocentric
philosophies. However, times of ever more frequent climatic catastrophes, the choice
of reducing reality to the human-centred aspects of relevancy showed itself to be
decisively wrong. Recent movements have searched for and even to restore the
legacy of those who conceived of nature and ecology in a philosophical fashion –
even a metaphysical one, such as Plato, Schelling and Hamilton Grant, with a renewed
attention to what there is and what lies beyond anthropocentrism.
Keywords: Philosophy of Nature (Naturphilosophie). Friedrich Schelling. Speculative
Realism (Iain Hamilton Grant). Philosophy of Ecology. Plato.
Doutor em Filosofia pela linha “Epistemologia, Lógica e Metafísica” do PPGFIL/UnB. Mestre em
Teoria do Direito e Direito Global pela European Academy of Legal Theory (Goethe-Frankfurt; ULBBruxelas). Bacharel em Filosofia e em Direito, ambos pela UnB. Professor na Faculdade de Direito da
UnB, na área de Teoria do Direito e domínios conexos. ORCID-ID: 0000-0003-3137-8738. E-mail:
oe.maciel@gmail.com
1
188 | Questões Ecológicas em Perspectiva Interdisciplinar – v. 2
Introdução
Este artigo surgiu a partir de uma apresentação no evento “Questões
Ecológicas em Perspectiva Interdisciplinar”, organizado pelo Programa de PósGraduação de Filosofia da PUC/RS. Minha fala neste evento foi intitulada “Filosofia
da Ecologia: Schelling, Grant e o retorno da Filosofia-da-Natureza”. Na ocasião,
passamos brevemente por alguns dos tópicos que têm animado esta direção recente
de minha pesquisa e, agora, com a elaboração deste artigo, poderei apresentar
sumariamente os interesses e direcionamentos destas investigações.
A área de concentração de meu doutoramento foi na metafísica
contemporânea, mais especificamente, nas complexidades dos Realismos
Especulativos que têm redirecionado as pesquisas e interesses de tantos nos
últimos quinze anos. Embora em termos de filosofia contemporânea nada seja
consenso definitivo, parece haver certo entendimento de que a obra Depois da
Finitude, do filósofo francês Quentin Meillassoux (2006), serviu de catalizador para o
movimento, gerando conferências, coletâneas, obras e até mesmo diversas
subdivisões de abordagens que são ora concorrentes, ora aliadas.
Embora tal obra seja central para as discussões, não nos concentraremos nela
por agora2. Focaremos em duas recepções distintas que Meillassoux teve. A primeira
diz respeito ao diagnóstico do problema do correlacionismo filosófico, bem como
sua subsequente (re)classificação da filosofia ocidental de até então. A segunda diz
respeito à aceitação ou rejeição das propostas específicas de Meillassoux para que
façamos uma filosofia que abandone tal correlacionismo como a orientação
filosófica básica. Antecipamos que corroboramos com o diagnóstico, mas não
seguiremos exatamente pelo mesmo caminho que Meillassoux.
Antes de mais nada, é necessário deixar claro que o correlacionismo não é
uma “escola” ou um “movimento”, mas uma atitude perante o que há, perante o fazer
filosófico, uma orientação que arregimenta o que percebemos, e até mesmo o que
nos perguntamos acerca do que existe. Há um caráter metafilosófico mais geral, ou
2
Para mais informações mais resumidas, confira o artigo que escrevi para a Coleção da ANPOF, na
área de Filosofia Contemporânea (Maciel 2019). Para um tratamento mais detalhado, confira os
Capítulos 1 e 2 do Título I de minha tese doutoramento (Maciel 2021a).
Otávio Souza e Rocha Dias Maciel | 189
até mesmo algo de metametafísico, quando se discute esta atitude. Meillassoux a
define:
“Por correlação entendemos a ideia segundo a qual nós não temos acesso que
não seja à correlação do pensamento com a realidade, e jamais a um destes
termos tomados isoladamente. Nós chamaremos, assim, de correlacionismo,
toda corrente de pensamento que sustentar o caráter insuperável da correlação
assim entendida” (Meillassoux, 2006, p. 18, tradução nossa) 3.
O francês apresenta esta leitura diferenciando o que podemos nomear de
correlacionismo fraco e forte. O primeiro caso, típico da filosofia de Kant,
contrastava-se em relação ao “realismo ingênuo”, que sustentava que haveria uma
conexão direta, clara e distinta da mente com o mundo. Assim, seja o que
experienciamos, vemos, pensamos, sentimos e etc. – isso já poderia ser considerado
real. Kant rejeita esta ingenuidade ao longo da Crítica da Razão Pura (2015),
separando fenômenos e coisas-em-si. Temos a possiblidade de aplicar categorias
puras do entendimento nos fenômenos para tentarmos construir conhecimentos
científicos – já acerca das coisas-em-si, não podemos as conhecer cientificamente.
Ou seja, o fenômeno só tem a chance de se tornar objeto da razão científica através
de uma correlação entre o “Eu Penso”, puro e lógico, que hospeda as categorias do
entendimento, com aquilo que é dado do real no espaço-tempo. Que o conhecimento
precisa de um correlato para ser operacionalizado é a Primeira Lição de Kant4.
Meillassoux observa que praticamente todos os filósofos pós-kantianos
entenderam bem a necessidade do correlato para se fazer filosofias – até mesmo
em escolas bem distintas entre si. Não obstante, ele percebe que pouquíssimos
compreenderam bem a Segunda Lição de Kant (Maciel, 2021a, p. 37): a de que o
correlato é, ele mesmo, contingente. Não apenas Kant não determina que há apenas
Original: “Par corrélation nous entendons l’idée suivant laquelle nous n’avons accès qu’à la
corrélation de la pensée et de l’être, et jamais à l’un de ces termes pris isolément. Nous appellerons
donc désormais corrélationisme tout courant de pensée qui soutiendra la caractère indépassable de
la corrélation ainsi entendue.”
4
Esta expressão veio durante as aulas do doutorado com meu orientador, o professor Hilan Bensusan
(UnB), nas quais ele elaborou com mais didática a posição de Meillassoux. A incorporei a expressão
em Maciel, 2021a, p. 135 e ss.
3
190 | Questões Ecológicas em Perspectiva Interdisciplinar – v. 2
um único tipo de correlato humano que seja inquestionável, outras formas de
conhecimento não são reduzidas ao conhecimento científico particular a categorias
puras de quantidade, qualidade, relação e modo. Além disso, Kant separa entre o
conhecimento (centrado na Razão Pura) e o pensamento. Este, livre, é associado
tanto às leis da liberdade da Razão Prática, como também aos juízos sobre filosofias
da natureza e das artes – e, até mesmo, da razão especulativa.
Não obstante, esta Segunda Lição parece ter sido perdida. A quase totalidade
dos filósofos subsequentes no Ocidente se engajaram em uma tentativa de
radicalizar o correlato kantiano a proporções que ele jamais pensou, ultrapassando
não apenas os limites da razão, mas também criando Absolutos que promovem um
monopólio da produção do sentido. Estes Absolutos parecem cobrar pedágio para
que algo possa “ter sentido” ou “ser correto”. A virtual destruição da intuição geral
do realismo filosófico, a de que haja algo que existe fora do que os humanos pensam
acerca do que há, foi acompanhado da radicalização que chamamos de
“correlacionismo forte”. Segundo os desta atitude, tudo que há, ou que há de
relevante, só pode ser se for mediado, acessado, monopolizado a partir de um
correlato absoluto para tudo: o poder, a linguagem, o gênero, o mercado, a história, a
vontade de poder, o inconsciente – fica à escolha do freguês. O que Meillassoux
diagnostica não é que estes correlatos sejam “incorretos”, mas que a radicalização
de exageros e desorientações acabou por gerar uma filosofia enfurnada nas
“metafísicas da intersubjetividade”, onde o antropocentrismo se torna a orientação
filosófica basal da quase totalidade de pensadores dos últimos duzentos anos
(Maciel, 2021a, p. 31 e ss.).
Como alertamos, embora o diagnóstico de Meillassoux seja certeiro, em nossa
opinião, discordamos dos rumos para onde o francês quer levar a discussão. Em
busca de uma filosofia do “hipercaos” e da “necessidade da contingência absoluta”
(Meillassoux, 2006, p. 87 e ss.), ele nos leva a uma celebração da matemática pura e
da teoria dos conjuntos como o acesso privilegiado ao que há. No entanto, esta não
é a única maneira de se reativar um realismo filosófico, onde o que existe pode ser e
pode ser pensado independentemente do antropocentrismo ou das categorias deste
ou daquele correlacionismos fortes ou radicais que estiverem mais na moda.
Otávio Souza e Rocha Dias Maciel | 191
Origens da Filosofia-da-Natureza na filosofia pós-kantiana
O realismo filosófico, em geral, significa a defesa de que há algo que existe
independentemente de ser pensado ou conhecido, inclusive por seres humanos. Esta
orientação filosófica, inimiga das formas do correlacionismo radical, não é
necessariamente contrária ao correlato fraco de Kant. Como vimos brevemente, a
existência da coisa-em-si, um “de onde” vem a dadidade do fenômeno, não pode ser
descartada ou subestimada tão facilmente. Na seção “Refutação do Idealismo”, Kant
(2015, B274) assevera que a coisa-em-si é requisito como aporte realista empírico
de seu sistema filosófico. Do contrário, houvesse apenas percepções do nada e para
o nada, apenas para um sujeito (ou alguma divindade onisciente), o que distinguiria
sua filosofia em função ao “idealismo empírico” do Bispo George Berkeley?
Contrastando com o britânico, Kant poderia dizer claramente que não, ser não é ser
percebido, visto que o que há independe de ser experienciado, pensado ou conhecido
por humanos. O que humanos podem conhecer é o que existe, antes mesmo de
humanos aplicarem suas categorias. Disso, o que puder aparecer, ser categorizado,
e ser transformado em objeto da razão, poderá, eventualmente, vir a se tornar
conhecimento científico.
Vemos que há um longo e árduo caminho desde uma simples coisa (Ding), o
seu aparecimento (Phänomen), a sua transformação em objeto da experiência
(Gegenstand), e a possibilidade de o transformar em um objeto da razão (Objekt).
Dos poucos pensadores que compreenderam bem ambas as lições de Kant, Nicolai
Hartmann observa (1953) como, em cada uma destas transições, o realismo jamais
é perdido. Do “mero” empirismo, Hartmann observa como Kant nos dá elementos
para transforma-lo em um realismo crítico, sobre condições de possibilidade não
apenas do conhecimento, mas da própria ontologia.
Esta pergunta já nos alinha com os propósitos deste artigo, que é de pensar a
“estrada que não pegamos” na filosofia pós-kantiana. Entre os vários defensores e
detratores do idealismo transcendental de Kant, parece haver prevalecido o
entendimento de que não havia um “sistema filosófico fechado” em Kant.
Concordamos, embora isso, para nós, seja algo de positivo. Não obstante, seus
sucessores o criticaram por não fornecer um único mega sistema que
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arregimentasse ciência, razão prática, arte, política e psicologia num único bloco
monolítico totalizante. De novo, para nós, esta é uma vantagem da filosofia de Kant,
não um defeito. Acabou que o sistema de Spinoza, o mais fechado e estável
conhecido na época, se tornou imensamente atrativo para os jovens pós-kantianos,
que buscavam um pensamento tão absoluto quanto rítmico.
A atração por Spinoza não se deu apenas pelo sistema logicamente fechado,
cognitivamente estabilizado em ritmos, postulados, axiomas e propósitos
rigorosamente definidos. A proposta de pensar a substância divina como
“onipresente”, levada às últimas consequências, resultou na conhecida onda
panteísta ao longo de décadas entre os séculos XVIII e XIX, com notáveis nomes
como Gotthold Lessing e Novalis. Não tanto como na intransigente correlação entre
substância única e a divindade judaico-cristã, tais pensadores viam Spinoza como
um caminho para os românticos alemães pensarem a natureza como algo livre,
dotada de sentido, de agências, interesses e beleza própria. A análise kantiana do
sublime certamente influenciou nesta predisposição em relação ao natural como
deleite estético.
Apesar da teoria da arte ser, de fato, um carro-chefe para os que começaram
a repensar a natureza na filosofia pós-kantiana, há duas elaborações anteriores que
merecem ser mencionadas. Quando se fala de “Filosofia Natural”, pensa-se em duas
principais formas de levar a cabo tais investigações. A primeira, mais à época da qual
estamos falando, é relacionada às investigações científicas sobre a física, a química
e a biologia. Galileu Galilei, Isaac Newton e Charles Darwin são personagens
principais que inspiram esta Filosofia Natural, geralmente apresentada como
elaborações sistemáticas, metafísicas e até mesmo políticas baseadas nas “ciências
duras” ou “ciências naturais”. O esforço, embora não seja sem suas honras, é
majoritariamente receptivo. Por exemplo, as controversas doutrinas de Herbert
Spencer construídas a partir do darwinismo, ou as reelaborações filosóficas do
mecanicismo entre os franceses do século XVII.
A segunda forma de se fazer “Filosofia Natural” é mais especulativa,
tradicionalmente sendo rastreada desde as primeiras civilizações. Entre os gregos,
por exemplo, a φύσις (physis) parece ter sido, desde os primórdios, objeto central de
suas investigações, conhecidos à época como os Fisiologistas. A sistematização da
Otávio Souza e Rocha Dias Maciel | 193
physis ainda não era levada ao pesado rigor dos modernos, mas, perguntamos, seria
isso algo necessário em si, incontornável? Os gregos geralmente tratavam a physis
a partir da pergunta acerca da origem, do “de onde”, do “para onde”, dos
desdobramentos dos elementos e dos seus entrelaçamentos com as vontades dos
deuses, dos seres religiosos e mitológicos, além dos humanos. Esta era a
investigação acerca da ἀρχή (arché), comumente traduzida como princípio ou
origem.
Esta segunda forma de fazer “filosofia natural” é ao que geralmente é feito
quando se distingue o termo para “Filosofia-da-Natureza”. Escrevo com os hífenes
para deixar mais próximo do que os alemães chamam de Naturphilosophie. Esta
maneira de ser fazer filosofia não parece ser “subordinada” ao que as ciências
naturais fazem, mas buscam se postar como paralelas ou aliadas a pensadores
como Newton e Einstein. Nesta forma de se fazer filosofia, a razão científica e a
metafísica se tornam coexistentes e, não raro, até mesmo coextensivas em certa
medida, mas sem perder de vista os seus propósitos particulares. A matematização
e a institucionalização, tão importantes para as disciplinas científicas, é apresentada
de forma aliada, paralela ou suplementar à filosofia especulativa acerca das origens,
das animações da matéria, dos direcionamentos políticos e éticos que podemos
pensar disso tudo. Assim, é menos uma questão de receptividade passiva, e mais de
uma proativa aliança profícua entre disciplinas distintas.
Esta primeira elaboração anterior, que distinguiu entre a “Filosofia Natural” e
as “Filosofias-da-Natureza”, é acompanhada de uma segunda. Agora, podemos
distinguir entre as filosofias-da-natureza que antecedem a Kant adicionando outros
personagens distintos de Spinoza. Com este, a natureza é pensada como um sistema
definido, fechado, sobredeterminado por predicados tradicionalmente atrelados
pelas religiões judaico-cristãs nos assuntos da substância divina. Não obstante, há
outras perspectivas, por exemplo, relacionada a Gottfried Leibniz e à sua
monadologia. Embora o termo mônada seja presente desde Pitágoras e Giordano
Bruno, foi a partir da Viscondessa Conway e do próprio Leibniz que ele entra para o
vocabulário filosófico comum. Bensusan e Freitas (2018) observam em sua
investigação acerca da “Teoria Geral das Monadologias” que o pensamento de que
a natureza é composta por centros de ação, com interesses, apetições,
194 | Questões Ecológicas em Perspectiva Interdisciplinar – v. 2
conhecimentos, desejos e propósitos próprios perpassa esta forma de se fazer
filosofia-da-natureza. Além de Leibniz, Bensusan e Freitas analisam textos de nomes
importantes como o sociólogo francês Gabriel Tarde, o matemático e filósofo inglês
Alfred N. Whitehead, e o filósofo da antropologia francês Bruno Latour.
Filosofia-da-Natureza em Friedrich Schelling
Numa visão sinóptica do que apresentamos até então, temos que a rejeição
do correlacionismo (especialmente de suas formas radicais) é talvez a principal
tarefa da metafísica contemporânea. Pensar ou repensar o realismo, uma realidade
ou natureza para além dos caprichos e interesses antropocêntricos se torna cada
vez mais urgente dada a catástrofe climática que, a cada dia, se torna mais presente.
Vimos que a abordagem no contexto da filosofia pós-kantiana mais imediata recebia
influências tanto do idealismo transcendental como das filosofias naturais de cunho
científico; além das filosofias gregas e alemãs da natureza.
De uma forma até mesmo contrária a este projeto de pesquisa havia o
centramento na razão prática antropocêntrica por parte de Johann Gottlieb Fichte
(1762-1814). Sua difícil, e às vezes até mesmo ininteligível, filosofia do Eu
(Ich/Ego/Self) era não apenas centrada na subjetividade humana, mas é um dos
principais exemplos do que Meillassoux diagnosticara com o nome “metafísica da
intersubjetividade”. Para Fichte, o que há é como dividido entre seres racionais
finitos, dos quais o meu Eu é o do qual posso ter mais certeza; e o Não-Eu, qualquer
coisa que fosse meramente passivo, mecânico, responsivo, determinado por leis.
Fichte buscava reconstruir os sistemas e razões de Kant não em isolado, como este
o fizera, mas como uma “dedução genética” a partir de um único princípio, a
autoconsciência dos humanos. Neste sentido, tanto a teoria, quanto a prática, seriam
literalmente antropocêntricos, direcionados para o intelecto e para a vontade dos
humanos. Will Dudley, professor e comentador do Idealismo Alemão, esclarece a
posição de Fichte:
“A filosofia prática de Fichte está preocupada com as maneiras que o self precisa
limitar ou delimitar o não-self, as maneiras que o sujeito precisa se esforçar para
Otávio Souza e Rocha Dias Maciel | 195
impor sua vontade no mundo. Sua filosofia teórica está interessada com as
maneiras que o self está limitado ou determinado pelo não-self, as maneiras que
o mundo se impõe sobre o sujeito conhecedor” (Dudley, 2013, p. 137).
Neste cenário intelectual que surge a figura de Friedrich Wilhelm Joseph
Schelling, que viveu entre 1775 e 1854. Sua tarefa não era simplesmente retomar a
filosofia-da-natureza tal como era levada a cabo pelos pensadores pré-kantianos. O
problema de filósofos como Tales de Mileto ou mesmo Leibniz é que, embora eles
acertadamente tenham visto a necessidade de se pensar a realidade e a natureza
como algo independente da presença do humano, eles não elaboravam tanto acerca
do acesso a esta natureza. Embora buscasse uma “metafísica futura”, há certo
consenso de que as principais preocupações das Críticas de Kant são
majoritariamente epistemológicas. Ou seja, não basta dizer que há algo “lá fora” de
nós – é necessário entender como isso pode ser dado, experienciado, categorizado,
transformado etc.
Schelling aceita as preocupações com a filosofia do sujeito de Kant, e até
mesmo de Fichte, no começo de sua carreira filosófica. De fato, pensar o que há
envolve não apenas uma asserção puramente intuitiva de que “há objetos fora do
sujeito”, visto que pensar sobre ferramentas e processos epistêmicos é tão
importante quanto a defesa da natureza. Não obstante, Schelling parece identificar
uma pergunta relativamente simples, mas de consequências poderosas. O idealismo
subjetivo de Kant e de Fichte são excelentes na exposição e defesa do estudo das
condições da possibilidade da experiência humana, mas não oferecem elucidação
sobre por que é que a experiência, afinal de contas, acontece. Para elaborar sobre
este tipo de investigação, Schelling vai percorrer um denso caminho que, embora
tenha gerado várias obras, será interrompido de forma abrupta após a morte de sua
esposa, seu subsequente período depressivo, e o eventual ofuscamento quase
completo por parte de Hegel e de outros autores que conquistaram o público à época.
De toda sorte, Dudley comenta a herança kantiana no pensamento de Schelling:
“Kant fez uma pergunta epistemológica (como é possível saber se alguma coisa
é necessária e universalmente verdadeira que não seja uma relação conceitual
196 | Questões Ecológicas em Perspectiva Interdisciplinar – v. 2
analítica?), à qual Schelling oferece uma transformação ontológica (como é
possível que haja assuntos diferenciados e objetos sem os quais não haveria
necessidade de síntese cognitiva?)”. (Dudley, 2013, p. 164).
Ou seja, a “transformação ontológica” à qual Dudley faz referência é uma
pergunta acerca não apenas da natureza de mecanismos físicos ou da biologia
celular, mas é também acerca da própria natureza do sujeito capaz de fazer
perguntas acerca da epistemologia, da metafísica e das ciências. De forma resumida,
poderíamos dizer que, enquanto Kant e Fichte buscaram condições subjetivas do
estudo da objetividade, Schelling busca condições objetivas da emergência da
subjetividade. Observa-se que são projetos complementares, não rivais: a
subjetividade é, de fato, importante para se atingir algum grau de objetividade do
conhecimento, tal como Meillassoux observara sobre o correlacionismo fraco de
Kant. Não obstante, a pergunta de Schelling não é apenas direcionada ao idealismo
subjetivo, mas, também, envolve um realismo transcendental.
A complementaridade de ambos os projetos levou Schelling a nomear seu
esforço de Identitätsphilosophie, período da “Filosofia da Identidade”. Talvez não
seja o melhor nome, visto que não é tarefa da natureza ser igual ao sujeito que a
percebe – no entanto, talvez possamos conservar tal rótulo pensando em
identidades parciais, ou de que há algumas categorias coextensivas entre a filosofia
da subjetividade (humana, ou não), e a filosofia-da-natureza. De toda sorte, são
obras importantes deste período a primeira edição do Ideias para uma Filosofia da
Natureza (1797), ainda escrito com uma linguagem notadamente fichteana. Com o
Da Alma do Mundo, de 1798, Schelling parece se tornar um pensador mais autônomo
que atrai a atenção e admiração de ninguém menos do que Goethe. Em 1800 surge
seu primeiro esforço mais completo de apresentação da Filosofia da Identidade em
seu Sistema do Idealismo Transcendental, obra particularmente importante na
gênese do hegelianismo. Finalmente, em 1803, lança a segunda edição do Ideias,
removendo a linguagem fichteana residual e dando uma apresentação mais bem
acabada de sua Filosofia-da-Natureza.
Diferentemente da Filosofia Natural à qual nos referimos, e das filosofias-danatureza pré-kantianas, Schelling não pensa a natureza em termos de mecanismos
Otávio Souza e Rocha Dias Maciel | 197
estáticos ou vazios. Para usar a expressão de Spinoza, a natureza é “naturante”,
produtiva, plena de sentido e de atividades que não existem em função do sujeito
humano. A natureza transcende o conhecimento na medida em que o torna possível
de maneira incondicionada, originária. A categoria última do sistema de Schelling é
o Unbedingt, que jocosamente gosto de apresentar a partir do prefixo de negação
(un-) e o termo Ding (coisa, thing): é tal como um “Descoisado”, que não é uma coisa,
um objeto definido – mas também não é um ritmo absoluto assegurador de algum
processo histórico antropocêntrico. De uma maneira que é reminiscente à teoria das
emanações do neoplatonismo, do Unbedingt parece brotar (e brotamento é um dos
sentidos originais de φύω, raiz da palavra physis) as condições necessárias para o
aparecimento de seres com subjetividade no mundo objetivo.
Esta ênfase realista na Filosofia-da-Natureza de Schelling é particularmente
muito fértil, visto que seu propósito não é apenas dar uma descrição de como o
sujeito pode pensar em objetos – mas, também, mostrar as condições precisas para
que um tal objeto seja tal objeto. Dudley comenta que a geometria é um bom exemplo
disso, visto que ela não nos diz acerca dos processos subjetivos de se pensar em um
triângulo: o que ela nos diz é exatamente como um triângulo necessariamente tem
de ser na teoria e na prática concreta, não apenas nas abstrações epistemológicas
da cabeça de um humano. Padrões matemáticos na natureza parecem fascinar a
Schelling, como a presença da razão áurea em tantos processos físicos e biológicos
– ou mesmo da cuidadosa construção de hexágonos praticamente do mesmo
tamanho em colmeias. A ideia é que há um realismo decisivamente objetivo que,
mais do que tudo, não é esgotado como sendo apenas uma “invenção” ou
“construção” dos humanos.
Natureza e especulação em Schelling
Para começar a se enveredar pelo interminável projeto da Filosofia-daNatureza, Schelling concebe uma disciplina aliada, embora distinta, das ciências
naturais de sua época, especialmente em relação àquelas relacionadas ao que se
entendia por “Filosofia Natural”, que mencionamos neste artigo. O nome não é tão
específico quanto gostaria o público analítico, mas a ideia é apresentada como física
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especulativa, física dinâmica, física dos processos producentes, entre outros.
Podemos pensar algo como Estudos Acerca do Incondicionado (Unbedingt), ou
tantos outros. Talvez seja melhor entender a ideia do que tentar antecipadamente
rotular o projeto.
A principal diferença da disciplina que ele quer inaugurar para com a física
comum de sua época se deve ao fato de aquela não dever ser empírica ou
mecanicista. Melhor dizendo, não deve ser primariamente empírica, apenas
contingentemente mecânica, e majoritariamente voltada para outro tipo de
abordagem. A ideia, reminiscente das monadologias de Bruno e Leibniz, é pensar a
natureza como repleta de forças motivacionais e interações de apetições desde os
mais primários momentos de fonte do movimento. A física empírica, neste sentido, é
a física do “sendo”, de que um objeto, agora, é tal como é descrito, enquanto durar.
Já a física especulativa de Schelling é um estudo do “tornar-se”, uma filosofia do
processo, para usar a expressão associada à cosmologia filosófica de Alfred N.
Whitehead. A primeira está preocupada com movimentos de corpos particulares,
enquanto a segunda está preocupada com a natureza como um todo. Dudley
observa: “a natureza como um todo é a totalidade produtiva que constantemente dá
origem e destrói os produtos particulares ou os objetos que são a preocupação da
física empírica” (Dudley, 2013, p. 174).
Novamente, não são disciplinas “opostas”, mas, sim, complementares. A física
empírica lida com o finito produzido, já a física especulativa lida com o infinito
producente. Na edição de 1803 do Ideias, Schelling substitui a noção de física
especulativa, dinâmica, acerca do processo infinito producente pelo estudo acerca
do Unbedingt, tal categoria metafísica última de seu sistema filosófico. Dudley traz
duas citações diretas de Schelling:
“O nascimento das coisas vem através da eterna autodivisão do Unbedingt em
sujeitos e objetos, que através de sua subjetividade, e da infinitude desconhecida
lá escondida, é dada a conhecer na objetividade a finitude, tornada em algo. (...).
A coisa individualizada é somente um momento do ato eterno da transformação
da essência em forma; por esta razão, a forma é distinguida como particular, por
exemplo, como a corporificação do infinito em finito; mas aquilo que se torna
Otávio Souza e Rocha Dias Maciel | 199
objetivo através desta forma é ainda somente a própria unidade absoluta”
(Schelling, 1995, 2, p. 48 e 150, traduções livres)
Neste sentido, há duas tarefas que Schelling parece herdar da filosofia
neoplatônica do século III-IV, que é explicar por que é que este Unbedingt se move e
cria entes particulares (sujeitos humanos, objetos etc.); e explicar por que é que tais
coisas duram, permanecem, resistem em meio de forças tão destrutivas, caóticas e
devastadoras. Este tipo de investigação que Schelling propõe é curiosamente
próximo do que Meillassoux foi propor séculos depois, também sob o nome de
filosofia especulativa, que seria a investigação acerca das condições de estabilidade
manifesta do que há, a despeito do caráter tão aniquilador do hipercaos5. A metáfora
favorita dos estudiosos de Schelling parece ser de um redemoinho ou de um furacão:
os seres subsistem enquanto há condições de serem mantidos, reproduzidos, pelas
forças fundamentais da natureza. Se as condições desparecem, as correntes de ar
ou de água se dissipam, e o redemoinho/furacão deixa de ser. Dudley observa que
há uma especificação da tarefa de Schelling:
“A física dinâmica está interessada em determinar as características essenciais
de que estas forças fundamentais da natureza precisam ter a fim de explicar o
surgimento e a persistência do mundo dos objetos e dos sujeitos conscientes
com os quais nós estamos familiarizados” (Dudley, 2013, p. 176).
Retornando à diferenciação entre o empírico e o especulativo, no sentido
empregado por Schelling, podemos didaticamente distinguir entre as experiências
empíricas como coletâneas de fatos, dados e relatos sob circunstâncias
laboratoriais ou artificiais; e o que significa fazer ciência. Embora especulação e
ciência pareçam ser antônimos no século XXI, este não é necessariamente o caso.
Especulação, mesmo em Kant, envolve todo o caminho que aludimos que
cuidadosamente perpassa por coisas, objetos da experiência e princípios racionais,
tentando sistematizar tanto o que veio dos fenômenos como também os “resultados”
das categorias, dos postulados e dos axiomas. Tudo isso contribui para a lenta e
5
Meillassoux, 2006, p. 138. Cf. também Maciel, 2019.
200 | Questões Ecológicas em Perspectiva Interdisciplinar – v. 2
contínua construção da ciência. Sistematização e especulação também fazem parte
da constituição da ciência. Ou, digamos com Niklas Luhmann, o Sistema da Ciência,
que coordena princípios, articulações lógicas, teoréticas e experimentais sob
programas de pesquisa. Mais uma vez, não havia “competição” entre o empírico e o
especulativo, e Dudley esclarece isso em Schelling:
“A física especulativa precisa, portanto, permanecer disponível e responsiva aos
desenvolvimentos da física empírica, uma vez que tais desenvolvimentos
demandarão demonstrações mostrando que os novos fenômenos observados se
originam necessariamente dos princípios fundamentais da dinâmica” (Dudley,
2013, p. 177).
O projeto é, visivelmente, infinito e altamente complexo. Schelling, em meio a
tragédias pessoais e dificuldades sociais, acabou por não levar a cabo todo o plano
que se propôs em sua Filosofia da Identidade. Chega a ficar décadas sem
movimentos significativos na comunidade filosófica, até que é praticamente
intimado por Frederico Guilherme IV, então Rei da Prússia, para oferecer cursos de
filosofia em Berlim para combater os radicalismos de direita e esquerda que surgiram
a partir das obras de Hegel. Embora tenha lecionado para jovens que seriam grandes
pensadores no futuro, como Kierkegaard, Engels e Bakunin, o recuo para a mitologia
e para a religiosidade soou como conservadora e até mesmo reacionária,
desinteressando logo o público. Neste contexto, a Filosofia-da-Natureza acabou
sendo posta de lado por muito tempo.
Iain Hamilton Grant na metafísica contemporânea
Muito tempo após a virtualmente total dominação da cena filosófica por
adeptos das mais diversas formas de correlacionismos radicais, a obsessão pelo
antropocentrismo como metafilosofia parece ter arrefecido nestes primeiros anos do
século XXI. Embora ainda haja pensadores que pratiquem o chamado “giro
linguístico” ou outras formas de correlacionismos fortes, as preocupações
ecológicas se tornam cada vez mais incontornáveis em nossos tempos. Não basta
Otávio Souza e Rocha Dias Maciel | 201
mais pensar que a ecologia é “Para-Nós”, ou que a Terra deva ser tratada como um
mecanicismo infinitamente disponível para uma elite depredadora; mas também não
deve ser tratada como se a natureza fosse uma incapaz a ser pastoreada pelos
benevolentes humanos. Uma renovação completa na filosofia da ecologia se faz a
tarefa mais importante.
Ao mesmo tempo que Quentin Meillassoux, mas ainda de forma separada,
aparece a obra Filosofias da Natureza depois de Schelling, lançada também em 2006
pelo filósofo britânico Iain Hamilton Grant. A obra é bastante ambiciosa, buscando
não apenas defender a existência de um sistema que perpassa todas as fases e
obras de Schelling, mas apresentar minuciosamente como a Filosofia-da-Natureza
é o carro-chefe de cada uma de suas obras. Grant retoma o naturalismo na época
pós-kantiana, onde ele diagnostica o ressurgimento da Física e da Cosmologia do
tipo de Platão, especialmente nas discussões sobre natureza, evolução e genética.
Logo, Grant apresenta a “antifísica” de Fichte, com diversas e duras críticas a este
autor e às apropriações posteriores por parte de Hegel. Por fim, retorna à filosofia
dinâmica, à física transcendental e à história natural do Unbedingt, o “Descoisado”
(que, curiosamente, ele também traduziu por Unthinged), concluindo com o
prenúncio de uma nova disciplina no horizonte filosófico, a Geologia Transcendental.
A obra é bastante desafiadora, e aqui vamos recorrer brevemente, para fins de
uma apresentação sumária, ao auxílio de Graham Harman, mais um dos principais
nomes do realismo especulativo, particularmente da corrente da Ontologia Orientada
a Objetos6. Grant nasceu em 1963, fez parte do famoso Cybernetic Culture Research
Unit (CCRU), onde dedicou-se à filosofia de Deleuze e, mais intensamente, à de
Schelling. Retomando a pergunta deste acerca da objetividade da emergência da
subjetividade, Grant coloca o pensamento como apenas um dos vários produtos da
Natureza. Grant tem uma explícita rejeição ao “somatismo”, termo do qual ele acusa
o pensamento aristotélico-kantiano de privilegiar entidades empíricas individuadas,
tais como objetos específicos. Ao contrário, ele busca reativar uma Filosofia-daNatureza como força de dinamismos producentes que não pode ser reduzida aos
6
Cf. por exemplo, O Objeto Quádruplo (Harman, 2011).
202 | Questões Ecológicas em Perspectiva Interdisciplinar – v. 2
seus produtos particulares, sejam eles pedras, a evolução de salamandras, o
pensamento humano ou aos organismos saprófagos.
No encontro dos realistas especulativos de 2007 7 , que famosamente se
reuniram no Goldsmiths College na Universidade de Londres, Harman observa que
Grant,
que
havia
desenvolvido
uma
pesquisa
realista
e
especulativa
independentemente dos outros autores então presentes, buscava mostrar que
Schelling é o filósofo do agora, não “do futuro”. Grant rejeita a dialética hegeliana nos
termos mente-mundo, visto que o mundo não bifurcado entre cultura vs. natureza é
o que produz mentes e pensamentos como seus substratos. Rejeita que se pense
uma mente formalista sem substrato ou corporificação, mas também rejeita que a
Filosofia-da-Natureza deva ser subserviente e vassala à neurociência ou à
psicologia cognitiva. A filosofia deve ser aliada, não serva ou camareira das ciências.
Filosofia e Ecologia em Hamilton Grant
A Natureza produz uma miríade de coisas, incluindo humanos pensantes,
elétrons, forças magnéticas e grãos de areia, e pensar que, destes produtos, apenas
um é o mais importante para ocupar o polo dialético “mente-mundo” não passa de
um antropocentrismo narcisista. O é não apenas porque a mente é apenas mais um
entre outros produtos, mas porque a Natureza não se esgota em absolutamente
nenhum de seus produtos produzidos. Na mesma linha do “Descoisado”, do nãocoisa, do não-objeto, Grant também rejeita a noção de Absoluto ou de monismo tal
como vemos em Spinoza ou Hegel, preferindo falar em múltiplas camadas de eventos
e interdependências. Curiosamente, esta não é uma questão de causalidade ou de
teleologia, visto que os entrelaçamentos não são “para este” evento X, aqui, em
específico. Neste sentido, o Unbedingt é produtor e produzido que jamais se encerra
no produto8.
Todo o ônus da realidade está posto primariamente e proeminentemente na
7
Dentre os quatro principais nomes do Realismo Especulativo, que representam quatro direções que
são ora aliadas, ora adversárias entre si, estavam presentes o próprio Quentin Meillassoux
(materialismo especulativo), Graham Harman (ontologia orientada a objetos), Ray Brassier
(prometeanismo) e o próprio Iain Hamilton Grant.
8
Harman, 2018, p. 72 e ss.
Otávio Souza e Rocha Dias Maciel | 203
Natureza. Todos os seus produtos são pensados por Grant como agências do
Unbedingt e seus entrelaçamentos. Assim, não apenas o substantivo “Pensamento”
está atrelado ao Pensar como ato emergente da natureza mais geral, mas
substantivos como Montanha ou Planeta também, como se a Natureza as praticasse
em termos de verbos como “Montanhar” e “Planetear”. Assim, pensar o Real não é
pensar o que alguns produtos fazem ou pensam fazer, mas entender como produtos
são tão dependentes quanto pequenos exemplos de forças naturais tão mais
cósmicas do que a história vista de forma antropocêntrica. A este respeito, Harman
questiona Grant sobre o que ele pensa da noção de “matéria” do assim chamado
“materialismo histórico e dialético”, ou mesmo o que é encontrado pelas formas do
marxismo. Grant responde:
“Amo [essa teoria]. Não, é simplesmente errada. A ideia de que é possível invocar
um reino diminuto, por assim dizer, para a matéria, e condenar o que quer que
seja que não cumpre os propósitos econômicos e teleológicos de certos tipos de
agentes a uma esfera da ‘matéria meramente grosseira’, na qual ela não tem
absolutamente efeito algum, onde ela é deixada de um lado dos problemas
filosóficos e políticos, parece pra mim a receita para um desastre político” (Grant
in. Harman, 2018, p. 76)9.
Curiosamente, como vimos em Schelling, Grant também não pensa a natureza
apenas em termos de um vitalismo ou de um espiritualismo, tal como foi certa moda
filosófica no começo do século XX. Os textos “de aplicação” da Filosofia-daNatureza de Schelling, por exemplo, são primariamente concernidos com óptica,
magnetismo e outros temas da física. Embora ele lide com temas orgânicos, a
Natureza jamais pode ser resumida apenas ao vivo, ao “vitalismo”. Não apenas a
isso, mas a Natureza não pode, principalmente, ser resumida a um objeto, a um
oposto-ao-sujeito-humano, a um mero Não-Eu fichteano. Neste sentido, Grant faz
Tradução nossa. Original: “Love [Marxist materialism]! No, it’s simply wrong. The idea that it’s
possible to invoke a diminished realm, as it were, for matter and to condemn whatever does not fulfil
the economic, teleological purposes of certain types of agents to a sphere of “merely crude matter,”
where it has absolutely no effects whatsoever, where it’s left to one side of the philosophical and the
political problem, seems to me a recipe for political disaster”.
9
204 | Questões Ecológicas em Perspectiva Interdisciplinar – v. 2
uma poderosa asserção de que “uma exposição do schellinguianismo portanto
implica no desfazimento sistemático da revolução crítica de Kant” 10. Isso envolve,
entre várias coisas, rejeitar a determinação lógica/linguística/fenomênica do natural
e rejeitar o primado da razão prática, como se o que há tivesse de ser construído
socialmente – ou, pior, que apenas o que é construído por humanos pode ter alguma
ontologia.
Importante, a rejeição do primado da razão prática, tema corrente encontrado
já em Fichte e em Hegel, não significa rejeitar que a prática humana não tenha
relevância. Como pensar as várias catástrofes climáticas de hoje e as que se
aproximam sem levar em conta a relevância da agência humana? Descentralizar o
humano não significa eliminar o humano, ou ignorar suas ações, ou menosprezar
seus efeitos. Esta estratégia é antirrealista, não coadunando com o que Grant,
Harman e nós defendemos como uma postura mais complexa acerca do realismo.
Rejeitar coisas como o logicismo e o linguismo não significa dizer que a lógica ou a
linguagem não sejam importantes, mas significa trata-los como realmente são: entre
outros, produtos – assim como montanhas, fungos e ideias de amor na mente de
João. Dizer que são produtos apenas significa que não são a produção pura obscura
do que há do Real11.
A ênfase na Natureza como um todo de forças produtivas coloca Grant, e até
mesmo Schelling, bastante próximos dos Fisiologistas e Cosmólogos Gregos, como
Tales, Anaximandro e Leucipo. No entanto, a principal fonte de inspiração para
Schelling e Grant é no Divino Platão. A cosmologia platônica, primariamente exposta
e trabalhada no diálogo Timeu, foi fonte de inspiração para a filosofia e para as
ciências por milênios. Em termos modernos, ou seja, superficiais e insuficientes,
poderíamos dizer que o projeto de Platão não é pensar a Natureza como objeto, mas
como Sujeito. Pensar o sujeito é pensar atividade, Ideias, recuos, avanços, produções
e produtos. Já em Platão, e Schelling e Grant repetem este gesto, não devemos
pensar a Natureza como mera soma de corpos existentes, ao que Grant apelida de
“somatismo”, mas como algo bem mais sofisticado.
Cf. “In view of these foul consequences, Grant urges that “an exposition of Schellingianism therefore
entails the systematic undoing of [Kant’s]critical revolution” (Harman, 2018, p. 79).
11
Cf. Harman, 2018, p. 84 e ss.
10
Otávio Souza e Rocha Dias Maciel | 205
Depois de Platão, entre os filósofos da Academia de Atenas e até mesmo dos
neoplatônicos pagãos mais tardios, todos se debruçaram sobre o velho problema da
filosofia grega, que é a passagem do Uno ao Múltiplo, e vice-versa. A ideia é que o
Uno não É, no sentido do Ser, de algo definido e particular – ao contrário, o Uno é tal
como um princípio de individuação que funda a multiplicidade das coisas. Quando
um punhado de coisas adquire ordem, atinge certa sistematicidade ou objectalidade,
de mero agregado torna-se Um Algo. Não basta um punhado de moléculas, mas
certa disposição, ordem e/ou sistematicidade para que uma porção de carbonos se
torne um diamante.
Reversamente, este diamante aqui não é tudo que pode ser o Carbono, ou a
ideia de ordem que pode ser adquirida por tantos outros carbonos. Neste sentido, o
produto jamais é equalizável com a produtividade ela mesma. O ponto não é apenas
explicar a “decomposição do Uno” – mas entender, antes de tudo, a diferença entre
processo de individuação e indivíduo, entre natura naturans e natura naturata. Não
basta ver a emergência de objetos individuais, mas, antes, de entender a
diferenciação ontológica entre o Uno e um múltiplo que pode vir a adquirir unidade.
Assim, o que os modernos entendem como paradoxo é, na verdade, uma simples
intuição de que o Uno, se fosse “unificado”, não seria o princípio de individuação, mas
um indivíduo particularizado.
Também de forma que retorna a nomes como Platão, Plotino e Próculo, além
do próprio Schelling, Grant busca recuperar a tradição grega de tratar dos poderes
da natureza, tal como forças ocultas ou sutis na matéria indeterminada, que seria
prenhe de sementes das Ideias ou dos Eidos. Nesta abordagem, estes poderes não
estariam neste objeto aqui, individual, mas na própria matéria natural que seria
irredutível a exemplificações de produtos particulares. A tradição grega,
especialmente aquela ao redor destes três que mencionamos, explica tudo pela
criação, geração, emergência e processos físicos-químicos-orgânicos da produção
natural que interage Ideias e a individuação de entes particulares. Resumindo, Grant
afirma que “produção é o que causa o ser a tornar-se”12.
12
Cf. Harman, 2018, p. 86.
206 | Questões Ecológicas em Perspectiva Interdisciplinar – v. 2
Harman traz interessantes explicações que Grant fornece acerca de como
“aplicar” esta ideia de forma que seja aliada, embora não submissa, a tópicos da
física contemporânea. Por exemplo, tomemos a Ideia de Cavalo. Se nem a Natureza
em geral se resume a seus produtos, tal Ideia também não se resume a casos
particulares de cavalos mundo a fora. Em termos um pouco contraintuitivos, a Ideia
de Cavalo não “se parece” com um cavalo específico. Isso é explicado pelo motivo
segundo o qual a Ideia é algo que é-em-si, ou seja, não é definida ou limitada à sua
individuação (assim como o Uno não é limitado a esta ou àquela unidade). Assim
sendo, uma Ideia não é definida pelo seu correlato fenomênico.
Embora soe bastante abstrato, podemos pensar no conceito de espaço de
faseamento na Física. Esta é uma aplicação mais empírica da noção matemática de
análise combinatória. Harman dá o exemplo de três lâmpadas: há oito combinações
entre quais estarão ligadas ou desligadas ao mesmo tempo – assim, oito é o espaço
de faseamento relacionado a esta situação. Grant diz que um Tipo, Eidos ou Ideia
platônica é “espaço de faseamento da Ideia em não-ser ilimitado, ou seja, o sempretornando-se, onde a Ideia atua como o limite-atrator em direção ao qual o ser jamais
cessa de tornar-se”13.
Na física contemporânea, tal categoria de atrator é importante, sendo definida
como um conjunto de características para as quais é possível um tal sistema
dinâmico, independentemente de seu ponto de partida, no limite do atrator. Este pode
ser algo fixo ou estável, algo periódico ou rítmico, ou mesmo algo estranho e caótico.
Neste sentido, pensar a Ideia como este atrator das coisas faz com que o que atrai e
o que é atraído sejam coisas bem diferentes. Por exemplo, uma bola de gude girando
em uma pia: ela gira em direção ao buraco para onde escorre a água – mas a Ideia
do movimento não é “feito” nem de pias, nem de bolas de gude, bem como o resultado
final do movimento não é “feito de” rodopios da bola ao redor da pia. O a priori
envolvido não tem relação alguma com um humano observando e produzindo
juízos14.
13
14
Cf. Harman, 2018, p. 87.
Cf. Harman, 2018, p. 87-89.
Otávio Souza e Rocha Dias Maciel | 207
Conclusão
É nesta direção que caminha esta vertente dentro da metafísica
contemporânea, que arregimenta diversos nomes associados às novas Filosofiasda-Natureza com Schelling e Grant, com a tradição da Academia de Platão e dos
neoplatônicos helenistas. Curiosamente, como vemos, as “aplicações” não são
hostis às ciências naturais: mais uma vez, a diferença de métodos e de interesses de
pesquisa não precisa desembocar numa competição ou num afastamento entre a
abordagem especulativa e a abordagem científica. A interpenetração de ambas, que
podemos chamar de Realismo Complexo, é uma das mais sofisticadas áreas de
pesquisa filosófica nos dias atuais.
Perpassamos a crítica ao correlacionismo e a recuperação do interesse no
estudo do realismo filosófico, que foi definido de forma basilar tal como uma
tentativa de se filosofar acerca do que pode ter relação com a mente ou com
humanos, mas não deve sua existência necessariamente a eles. Vimos como a
conexão desta recente área de pesquisa se conecta com temas já encontrados em
pensadores como Schelling e Platão. Ambos autores, além de várias outras
influências, são trabalhados por metafísicos contemporâneos como Iain Hamilton
Grant. Trabalhos como estes são de crucial importância para uma renovação da
filosofia e da ecologia, áreas cuja conexão se tornará cada vez mais profícua e
indispensável no século XXI.
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