Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

Academia.eduAcademia.edu
Leituras Crí ti cas G. MAGALHÃES, OS CRIMES INOCENTES FRANCISCO TOPA JOSÉ EDUARDO FRANCO E PEDRO CALAFATE ( DIR.), OBRA COMPLETA PADRE ANTÓNIO VIEIRA MÁRIO GARCIA JOSÉ EDUARDO FRANCO E JOSÉ MARIA SILVA ROSA (COORDS.), JESUÉ PINHARANDA GOMES — PENSAR PORTUGUÊS: TEXTO INÉDITO E ESTUDOS AMÉRICO PEREIRA E - LETRAS COM VIDA — N.º 3 JULHO/DEZEMBRO DE 2019: pp. 185-189 Magalhães, G. (2018). Os crimes inocentes. Planeta. Lisboa. 408 pp. Francisco Topa1 Dizem os especialistas — e parece fácil confirmá-lo empiricamente — que é recente e pouco expressiva a presença do romance policial em Portugal. Segundo Maria de Lurdes Sampaio (2001), que fez uma tese de doutoramento sobre o tema2, «Se tivermos em conta que os ingredientes de mistério ou de crime também não são por si só, isoladamente, traços definitórios suficientes, podemos afirmar, sem reservas, que até aos anos de 80 do século XX, é impossível falar de um romance policial português» História crítica do género policial em Portugal (1870-1970): Transfusões e transferências. 2 1 Universidade do Porto / CITCEM. 185 (col. 310). A explicação estaria no facto de o capar, até chegar ao esclarecimento total do(s) género ser tido como estrangeiro e menor. mistério(s). Neste caso, trata-se de uma traba- Seja como for, num país a que não faltam lhadora precária do museu, Rosário do Amaral, crimes, nem criminosos, nem detetives, nem — que substitui, até 26 de abril, uma técnica em sobretudo — consumidores ávidos da espuma licença de maternidade. Logo por aqui fica a que os rodeia (aspeto aliás trabalhado com suspeita de que a detetive é uma espécie de perícia no romance de Gabriel Magalhães), alegoria da História, com maiúscula: a que fica seria uma questão de tempo até o género se depois da festa para arrumar a sala e fechar afirmar, embora sem o vigor que o caracteriza as contas. noutros países. Nascida em Aveiro, educada na Bélgica e re- A estreia do nosso autor no policial talvez não gressada a Portugal para cursar História em chegue a ser uma verdadeira novidade, na me- Lisboa, Rosarinho não é apenas a represen- dida em que ele já andara próximo do género tante da nossa jovem geração de precários num romance anterior, Restaurante canibal, de ultraqualificados: é também a imagem da 2014. Há, de resto, uma relação próxima entre complexidade do emigrante, que Gabriel Ma- Crimes inocentes e muitos dos numerosos e galhães tem explorado em alguns dos seus diversos livros de Gabriel Magalhães, seja ao brilhantes ensaios sobre Espanha e Portugal, nível das ideias, seja no estilo e, acima de tudo, tanto em livro quanto nas crónicas que escreve na maneira de ver e estar no mundo. para La Vanguardia. Nas palavras do narrador, «Percebeu que nunca se volta completamente Ambientado no Portugal da troika, o romance quando se volta. Se residirmos no estrangeiro acompanha um conjunto de estranhos acon- bastante tempo, a nossa pátria passará a ser tecimentos ocorridos no Museu dos Coches, algo a meio caminho entre duas nações que em Lisboa, em abril de 2015: a morte de um nos explicam: um sítio em que quase ninguém guarda trespassado por uma lança, a morte habita» (p. 71). Mas, para além disso, que já não da diretora e de uma das técnicas, o suicídio é pouco, a figura da protagonista serve, pelo de outro guarda e, last but not least, o desa- menos, duas outras interessantes estratégias: parecimento da cadeira de que teria caído por um lado, permite a apresentação de um Salazar, em 1968. Mas, para além dos crimes olhar, por assim dizer, estrangeiro sobre Lisboa (que neste caso são inocentes), o policial ne- (e, de certa forma, sobre o próprio país); por cessita também de um detetive que, através outro, justifica uma espécie de homenagem a de uma estratégia mais intelectual do que uma das grandes figuras do policial, o belga propriamente policial, vá juntando os dados, Georges Simenon, criador da figura do Ins- reunindo os sinais que os outros deixam es- petor Maigret, que — como veremos — acaba 186 por contribuir decisivamente para o esclare- do orçamento, seja pelo poder em Lisboa. Por- cimento do título e para a determinação do tugal mata, ai mata, sim senhor. (p. 371) sentido do romance. É esta figura aparentemente frágil — uma jovem mulher algo deslocada, precária, a dias de ser despedida — que se afirma como heroína de Crimes inocentes, testemunha e agente de um 26 de abril mais simbólico do que efetivo. Com inteligência, paciência e método, consegue provar que todos os estranhos acontecimentos foram crimes inocentes, isto é, nem bem crimes nem bem inocentes; ou ainda, mortes sem um agente explícito e sem uma intervenção pessoal que permita responsabilizar alguém em concreto. Isso não significa, porém, que não haja um responsável. Na linguagem futebolística que nos domina, podíamos falar em sistema; na linguagem mais explícita (mas também mais doce) de Gabriel Magalhães, trata-se do Estado, do país, da nação, da pátria. Já em 2014, na frase de abertura do seu ensaio Como sobreviver a Portugal: Continuando a ser português, escrevera o autor: «Às vezes, parece que o nosso próprio país nos quer matar» (p. 9). Agora di-lo de outra maneira pela boca de Rosário do Amaral: Há nisto uma visão consistente de Portugal e da sua sociedade, a de hoje, mas também a de ontem e a de sempre. Essa visão assenta, por um lado, na imagem da cidadela, que no romance é verbalizada pelo diretor interino do museu, Rui de Mascarenhas, do seguinte modo: «O cerco de Lisboa, acontecido em 1147, nunca mais acabou» (p. 296). Numa passagem prévia, o narrador, captando o pensamento de Rosário, escrevera algo de semelhante: «O duelo entre Constança de Noronha e Joaquim Malaquias tinha sido mais um embate de uma longa lista de guerrilhas entre os que vinham ao assalto de Lisboa e os que já lhe habitavam as ameias e a torre de menagem» (p. 208). Quatro anos atrás, no livro de ensaios referido, Como sobreviver a Portugal: Continuando a ser português, já Gabriel Magalhães apresentara como uma das maiores derrotas desta nossa III República essa questão da cidadela: «É como se, nas alturas mais altas do país, existisse uma cidadela que tem muito de castelo de senhor feudal: um âmbito privilegiado, com muralhas, onde não entra quem quer» (p. 27). — Reparem que, na morte do Santos, estão A condição forasteira de Rosário permite ao todos os infelizes de Portugal, meio aniqui- autor desenvolver outros aspetos dessa visão, lados pela própria nação. Na de Ricardo Matos, designadamente ao nível das relações sociais. todos os que são cuspidos para fora e mordidos cá dentro, quando voltam. Nas mortes da doutora Constança e da doutora Cesaltina, vemos É o que acontece com a referência ao exame que uma antiga diretora faz à protagonista: as nossas suaves guerras civis, seja por um «houve uma inspeção ocular, apenas uns se- empreguinho do Estado, seja pelo nosso naco gundos, esses terríveis três segundos em que 187 a pupila da aristocracia lisboeta decreta o es- «ponto de vista lúcido de um otimismo pes- tatuto social do interlocutor» (p. 110). Ou ainda simista, que nos mostra como é que a nação com a abordagem de uma espécie de novo- vai caminhando onde coxeia» (p. 10). Para isso -riquismo cultural patenteado pela figura contribui, certamente, a maneira de estar no de Joaquim Malaquias: «O hall de entrada mundo do autor de Espelho meu, traduzida dava-nos um murro de cultura no estômago» numa espécie de falta de pressa de quem (p. 197). Compreende-se assim o sentimento parece desvalorizar (e descrer) eventuais duplo da protagonista: impulsos justiceiros que visem corrigir a sociedade portuguesa. Sim, errámos e conti- Uma pena que era desprezo sem deixar de ser nuamos a errar; sim, os funcionários públicos pena. Porque aquele homem se rodeara de são uma casta privilegiada, com «cromos» acessórios, que no fundo eram amuletos. […] que se repetem de serviço para serviço;3 sim, Tudo isto era um modo de ele dizer sim a si os nossos crimes são quase todos inocentes próprio, se por acaso Lisboa lhe dissesse que (incluindo o que vitimou Salazar em 1968); não: algo que esta cidade faz com frequência a gentinha que venha de Mirandela. (p. 201) Outro elemento importante da visão de Portugal e da sociedade portuguesa tem que ver com a descolonização e com os chamados retornados, questão introduzida através da figura de Ricardo Matos, um jovem poeta inovador sim, o nosso 26 de abril está por fazer. Mas, como diria Manuel António Pina, Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde. Mais importante do que punir é saber, compreender e reparar o que for reparável. Importante é saber que Salazar não caiu da cadeira mas caiu no chão devido à deslocação intencional do lugar da com crescente prestígio, obrigado a sobre- cadeira em que costumava sentar-se; e que o viver como guarda do museu: «Esse, coitado, facto constituiu uma atitude de protesto e de já estava morto quando cá regressou, viajando revolta de uma das meninas suas «protegidas»; nesse enorme caixão que foi a descolonização e que houve (na verdade da ficção romanesca) portuguesa. Morto desembarcou em Lisboa, uma história com essa cadeira, roubada e recu- e por cá andou anos e anos, até que resolveu perada duas vezes, numa intriga que tem tanto optar pela nitidez de se suicidar» (p. 365). de policial como de psicodrama. Mais impor- Mas, ao contrário do que possa sugerir o que está para trás, a visão de conjunto não é pesNum romance anterior, Gabriel Magalhães (2009) dissera através de uma das personagens: «Sou funcionário público para isso mesmo — para que a minha vida seja compreensiva comigo. Enfim, para que as coisas parem um pouco quando eu preciso de parar» (pp. 22-23). 3 simista. Podemos até, mais uma vez, retomar as palavras com que Gabriel Magalhães definiu o seu livro de ensaios atrás citado: um 188 tante do que prender Joaquim Malaquias — para terminar, o modo como o autor capta em cuja figura o leitor mais desatento não uma sensação que qualquer um de nós já ex- deixará de reconhecer outro(s) ator(es) da perimentou: «Quando chegou a casa, Vasco nossa triste realidade político-judicial — é abraçou-a, enquanto ela descalçava os sa- compreender as razões que a permitem e de patos, como quem mergulha os pés na água certo modo a justificam. fresca do soalho» (p. 223). Acabamos, pois, por perceber que as referên- Se queremos sobreviver a Portugal conti- cias a Maigret et le clochard não são inocentes. nuando a ser portugueses, Crimes inocentes é Tanto nesse como no romance de Gabriel Ma- um excelente ponto de apoio, confirmando-nos galhães, as vítimas são duplamente vítimas, um autor que se revela inteiro em cada uma os culpados não o são verdadeiramente e os das suas obras. crimes não são verdadeiros crimes. Em Simenon, sobra a complexidade do ser humano; em Gabriel Magalhães, fica a doçura da compreensão, que o particularíssimo estilo do autor sublinha. Esse estilo, que pode chegar a parecer naïf, destaca-se sobretudo pelo inusitado, pela exatidão e por uma espécie de ternura que frequentemente o envolve. Veja-se a referência «[a]o rosado Palácio de Belém, como um bolo de noiva com vários andares» (p. 11); ou a descrição do novo Museu dos Coches: «Tudo era demasiado amplo, demasiado claro: uma chapa cinzenta no chão e uma bofetada branca nas paredes» (p. 399); ou esta visão da capital: «Dir-se-ia que, em Lisboa, até o frio nos afaga» (p. 300); ou o modo como evita brilhantemente o lugar-comum: «Os taxistas de Lisboa por vezes são assim: gente irritada com a vida, filósofos maldispostos, Diógenes Bibliografia Magalhães, G. (2009). Não tenhas meda do escuro. Difel. Lisboa; Magalhães, G. (2013). Espelho meu: A leitura diária do Evangelho pode mudar a vida. (Pref. J.T. Mendonça). Paulinas. Prior Velho; Magalhães, G. (2014a). Restaurante canibal: Romance: Uma sátira divertida do mais puro humor negro. Alêtheia. Lisboa; Magalhães, G. (2014b). Como sobreviver a Portugal: Continuando a ser português. Planeta. Lisboa; Pina, M.A. (1974). Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde. A Regra do Jogo. Lisboa; Sampaio, M.L. (2001). Policial. Em: J.A.C. Bernardes, A.P Castro, M.D.A. Ferraz, G.C. Melo e M.A. Ribeiro (dirs.). Biblos: Enciclopédia Verbo das literaturas de língua portuguesa. Verbo. Lisboa / São Paulo. Vol. 4. col. 310; Sampaio, M.L. (2007). História crítica do género policial em Portugal (1870-1970): Transfusões e transferências. Tese de Doutoramento em Literatura Comparada. Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto. 731 pp. cujo tonel é o seu carro» (p. 284); ou ainda, 189