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Lima. B. Penha (UFAC) Gregório Foganholi Dantas (UFGD) Gustavo Vargas Cohen (UFRR) José Batista Sales (UFMS) Lucilene Soares da Costa (UEMS) Lucilo Antonio Rodrigues (UEMS) Milena Magalhães (UNIR) Paulo Custódio de Oliveira (UFGD) Rauer Rodrigues (UFMS) Ravel Giordano Paz (UEMS) Regina Zilberman (UFRGS) Rogério da Silva Pereira (UFGD) Rosana Nunes Alencar (UNIR) Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS) Sandra A. F. Lopes Ferrari (IFRO) Susanna Busato (UNESP) Susylene Dias Araújo (UEMS) DIAGRAMAÇÃO E FORMATAÇÃO Lucilene Soares da Costa TÉCNICO RESPONSÁVEL Joab Cavalcante da Silva O conteúdo dos artigos e a revisão linguística e ortográfica dos textos são de responsabilidade dos autores. REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS, ano 4, n. 7. Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Campo Grande: UEMS, 2013. Semestral ISSN: 2179-4456 1. Literatura. 2. Teoria literária. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO .............................................................................................................................. 5 DOSSIÊ ................................................................................................................................................ 8 A Crítica Literária Marxista e a Questão do Preconceito (Luiz Maurício Azevedo da Silva) ....................... 9 O vínculo de Cidade de Deus com a realidade (Renato Oliveira Rocha) ................................................... 19 O Cânone e a Sexualidade em Panamérica, de José Agrippino de Paula (Flavio Pereira Senra e Rafael Ottati) .......................................................................................................................................................... 33 A escrita feminina na voz de Maria Judite de Carvalho (Jane Pinheiro de Freitas) .................................. 53 Para aquém de O Escravo: os poemas de José Evaristo d’Almeida (Francisco Topa) ............................... 62 Em versos, a Buenos Aires de Raúl González Tuñón (Dayenny Miranda) ................................................ 78 O cânone crítico e historiográfico de Álvares de Azevedo e a questão do fantástico em Noite na taverna (Karla Menezes Lopes Niels) ...................................................................................................................... 95 A recepção de Teixeira e Sousa - o escritor renomado e o autor secundário (Hebe Cristina da Silva) .... 104 A controvérsia do cânone: criado das elites ou ministro da morte? (Fabrício Tavares de Moraes) ......... 119 SEÇÃO DE TEMA LIVRE ............................................................................................................. 132 A viagem e o viajante através dos séculos (Elis Crokidakis Castro) ........................................................ 133 Pensar com olhos e dedos: a desligação da arte plástica e a obra literária no modernismo português (Renee Payne)........................................................................................................................................................ 145 Influências, referências e intertextos poéticos: aparições de Elizabeth Bishop em Ana Cristina Cesar e Angélica Freitas (Raquel Machado Galvão) ............................................................................................. 152 ENTREVISTA ................................................................................................................................. 161 Questões de poesia e de crítica com Gilberto Mendonça Teles (Rosemary Ferreira de Souza)............... 162 RESENHAS ..................................................................................................................................... 167 A aurora das dobras: introdução à barroquidade poética de Affonso Ávila (Rosane Ferreira de Sousa) 168 Selva trágica revisitada (Elanir França Carvalho)................................................................................... 172 APRESENTAÇÃO A REVELL edita seu 7º número, o 4º temático. Vinculada ao Programa de PósGraduação em Letras da UEMS e aos grupos de pesquisa “Literatura, História e Sociedade” e “Historiografia, Cânone e Ensino”, a publicação resulta de pesquisas e questionamentos suscitados pelas atividades desses grupos no ano corrente. A fim de aprofundar o debate com pesquisadores de outras instituições, esta 7ª edição traz colaborações de autores de várias Instituições de Ensino Superior do Brasil e do exterior, o que contribui para a consolidação da revista como espaço de reflexões dentro da área de Letras. Tendo como título “Literatura e marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária”, o Dossiê temático reúne um conjunto de nove artigos que tratam da literatura que se convencionou chamar de marginal, tanto no que diz respeito à abordagem de determinados conteúdos e às questões de gênero – sexual e literário – quanto à focalização de espaços periféricos e a recepção que obteve da crítica. Além do Dossiê temático, o número 7 da REVELL inclui três artigos da Seção de temática livre, bem como uma Entrevista e duas Resenhas inéditas. Abrindo o dossiê, Luiz Maurício Azevedo da Silva aborda o tema da marginalidade, sob a perspectiva da crítica literária do séc. XX. Seguindo os passos da crítica marxista, o autor refuta a ideia, comumente aceita, de que esta teria sido superada em consequência da derrocada política dos regimes comunistas, defendendo que ela se faz presente no meio acadêmico, embora precise retomar questões sócio-históricas essenciais. Na sequência, Renato Rocha discute o conceito de “Dialética da marginalidade”, proposto por João Cezar Rocha para caracterizar o realismo mimético de Cidade de Deus. Tal realismo se alimenta de elementos que surgem da experiência empírica de Paulo Lins, como morador da Cidade de Deus, até de uma tradição literária urbana brasileira, muito forte nas décadas de 1960 e 1970, que mantém estreito liame com a realidade social, sobretudo a periférica e marginal, do país. Partindo de uma densa abordagem teórica, que retoma Agostinho, Foucault e Agamben, Flávio Pereira Senra e Rafael Onetti revisitam o romance PanAmérica, de José Agrippino de Paula (1967), pouco lembrado pela crítica. Com tintas ousadas, a obra trata da sexualidade de forma aberta e transgressora, a contrapelo do que pregava o moralismo autoritário do regime militar. O autoritarismo do regime e da moral patriarcal também é tema essencial do artigo de Jane Pinheiro de Freitas, que analisa em alguns contos da autora portuguesa Maria Judite de Carvalho a representação da mulher, circunscrita então à esfera doméstica, em um contexto préemancipação nos anos de 1950. A literatura colonial se faz presente com o artigo de Francisco Topa, da Universidade do Porto, que analisa, por meio de uma minuciosa exegese, dois poemas de José Evaristo d’Almeida, REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 autor de O Escravo (1856), obra que é considerada o primeiro romance cabo-verdiano. Da África para a América do Sul, Dayenny Miranda debruça-se sobre alguns poemas de Raúl González que têm na imagem de Buenos Aires seu principal veio temático. Contemporâneo de Arlt e Borges, Tuñón foi um dos grandes expoentes do surrealismo argentino. Em seguida, Karla Lopes Niels revisita a crítica de Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, que comumente insere a obra no gênero fantástico. Desfazendo o consenso em relação à designação, a autora argumenta que nem todos os contos da obra correspondem àquela que é a mais tradicional concepção do gênero, a de Tzvetan Todorov. Numa perspectiva de revisão crítica do cânone, Hebe Cristina da Silva discute a recepção, nos séculos XIX e XX, da obra de Teixeira e Sousa, escritor romântico apreciado por seus contemporâneos, mas considerado autor secundário por críticos como Antonio Candido e Alfredo Bosi. A partir dessas questões, o texto discute as razões que levam um escritor a ser canonizado ou relegado ao segundo plano pela historiografia literária. Fechando o dossiê, Fabrício Tavares de Moraes retoma a polêmica em torno do cânone literário, analisando seus sistemas de valorização estética, bem como sua funcionalidade no contexto acadêmico atual, frequentemente sujeito a critérios de valoração ideológicos. Abrindo a seção de temas livres, Elis Castro faz um percurso diacrônico sobre a representação da viagem na literatura e no cinema. Partindo da epopeia grega, passando pelo romantismo inglês até chegar ao cinema road movie contemporâneo, a autora demonstra que o imaginário sobre a viagem permanece presente nos blogs de viagem. Três poetas singulares do século XX e XXI - Elizabeth Bishop, Ana Cristina Cesar e Angélica Freitas - são objeto de estudo de Raquel Galvão. As relações intertextuais que ligam as autoras são reveladas em uma escrita fluida e imagética. Renne Payne trata da “desligação” da arte plástica e da obra literária no modernismo português a partir da análise de dois textos fundamentais do modernismo português: “Saltimbancos”, de Almada-Negreiros, e “a paisagem do relógio branco”, de Mário Cesariny. Na parte final da publicação, Rosemary Ferreira de Souza apresenta uma entrevista inédita com o poeta e crítico literário Gilberto Mendonça Teles, que descortina aos leitores as sutis relações que ligam a poesia e o ensaísmo. Na seção de resenhas, Rosane Ferreira de Sousa dá a conhecer “A aurora das dobras: introdução à barroquidade poética de Affonso Ávila”, dissertação de mestrado de Anelito de Oliveira, ora publicada em livro, sobre um dos mais expressivos poetas mineiros. Por fim, encerrando o número, voltamos à região sul-mato-grossense com “Selva trági6 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 ca revisitada”, resenha em que Elanir França Carvalho relembra a trajetória, a obra e a nova edição da romance fundamental do escritor e historiador paulista Hernâni Donato, morto em 2012, sobre os Ervais de Mate do Estado. Desejamos a todos uma ótima leitura. 7 DOSSIÊ “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” A CRÍTICA LITERÁRIA MARXISTA E A QUESTÃO DO PRECONCEITO THE MARXIST LITERARY CRITICISM AND THE PREJUDICE QUESTION Luiz Maurício Azevedo da Silva (PG - Unicamp) RESUMO: O artigo a seguir tem como objetivo principal a discussão da abordagem marxista da crítica literária sobre o tema das identidades étnicas e a problematização do comportamento dos pesquisadores a respeito do tema do racismo. O argumento aqui é que, quando decide evitar certas produções, a crítica literária burguesa está evitando, na verdade, seus produtores. Não é o preconceito o tema desconcertante para o arcabouço crítico tradicional, mas sim os sujeitos vítimas de preconceitos. A presença deles na cena literária opera como uma denúncia da reduzida diversidade do universo crítico literário. A interdição não é, portanto, às suas produções, mas à evidência ofuscante de que há produção onde seria mais desejável que as minorias estivessem em silêncio. Palavras-chave: Crítica literária, marxismo, preconceito. ABSTRACT: The following article has the main target the discuss of the marxist aproach about the ethnical identities and the position of the researcher role of literary question about the theme. The point in here is that when avoid some productions, the literary criticism is avoinding, in the fact, its producers. It is not the prejudice the disturbing theme, but its victims. Their existences operate as a complaint of the fact that there is not many like them. The ban operation is not, therefore, to their productions, but to the obvious evidence that there is production where is much likeable if all minorities were in silence. Keywords: Literary criticism; Marxism; prejudice. Quando se pensa abordar a crítica literária marxista, pensa-se essencialmente na operação inversa de examinar tudo aquilo que não tem sido crítica literária marxista. Esse exercício faz parte da própria luta dos conceitos no domínio da Teoria. Contudo, isso abre portas para um tipo vulgar de pensamento, segundo o qual tudo aquilo que a crítica tradicional não faz – e deveria fazer – pode ser levado em conta para compor o programa fundamental de uma crítica literária marxista1. Evidentemente, a crítica marxista tem seus expedientes e seus próprios compromissos. Ela não está – e nem deveria – interessada em preencher as lacunas deixadas pelo pensamento crítico tradicional burguês. Como todo pensamento marxista ela possui ambições maiores: ela necessita transformar o presente com vistas ao futuro. E isso demanda uma certa capacidade iconoclástica, uma disposição a desfazer os pactos sociais do presente. O estado atual da crítica literária é o de uma radical simulação (tomando-se como simu1 Sem dúvida, a própria crítica marxista faz também parte, em certo sentido, dessa crítica tradicional, uma vez que suas postulações são produzidas por forças inseridas no miolo da burguesia. Contudo, a distinção desse artigo crítica tradicional x crítica marxista diz respeito ao modo como os próprios críticos tradicionais veem a uma e outra. A tradição, para eles, é tomada em um sentido positivo, de arcabouço, de espólio, de reservatório de valores culturais, de acúmulo. E nessa compreensão, a crítica marxista é, evidentemente, bem distinta da crítica tradicional. REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 lação a atividade descrita por Jean Baudrillard (1992), na qual procura-se fazer crer que se possui algo que de fato não se possui) da superação dos impasses teóricos apresentados até o momento. Trata-se de uma representação cada vez mais frequente entre os críticos literários, a de que a crítica tradicional seria uma espécie de síntese do percurso crítico universal. Para tornar possível tal empreendimento, a crítica tradicional tem lançado mão de expedientes linguísticos antes restritos a certos grupos, como a suspensão de juízo através de conclusões inconclusas. Entretanto, essa operação, na maioria dos casos, não passa de uma celebração burguesa do espetáculo da dúvida. Certamente um desdobramento trágico das teorias de Guy Debord (1997), a consciência de que a dúvida é um valor gerou a proliferação de estratégias de intelectualização e de falsificações de incertezas, até culminar na criação de simulacros de dúvidas. E a posterior celebração da suposta dissipação delas faria o mais crente Kantiano corar em silêncio. Possivelmente, isso é um resultado da radical extensão do domínio do capital na cena acadêmica. No esforço para reivindicar sua relevância nas sociedades capitalistas, a crítica literária tem que se mostrar cada vez mais atual, cada vez mais ampla, abarcando a objetos cada vez mais distintos (do cinema ao MMA) emulando poder pensar a tudo ao mesmo tempo, inclusive a si mesma sem anular-se. Essa operação, que termina por bloquear as dúvidas reais, não deixa espaço algum para uma crítica, de fato, comprometida em criticar. Ela produz, cada vez com mais força, o discurso de que tudo está sendo catalogado, revisto e criticado, sem no entanto realizar a crítica de coisa alguma. Identificado o sintoma, é preciso agora compreender a que se destina esse tipo de desenho ideológico. Um caminho especulatório possível seria analisar o que a crítica tradicional atual deseja ocultar? O que ela omite com sua presença? O que, afinal, deseja suplantar com sua aparição ofuscante? Certamente não é o objeto. A crítica literária tem sido bastante generosa com os objetos que propõe a analisar, em parte porque parece ter diagnosticado um risco do desaparecimento deles no mundo, de modo que cada livro editado é recebido com celebração, por se tratar de um exemplar raro em um mundo cada vez mais digitalizado, uma espécie de testemunho quixotesco da atividade editorial. Esse engajamento, esse curioso exercício de empreendedorismo teórico, gerencia uma série de atividades que visam garantir o nascimento do objeto e a encurtar o papel da crítica. Resiste, no entanto, a questão: o que pretende a crítica esconder com sua multiplicação viral dos objetos? Ora, as condições de produção. O objetivo de grande parte da crítica literária é apagar das obras as marcas sociais existentes nelas, até que os objetos se constituam integralmente mercadoria, substância sem resquício aparente de atividade humana ou de testemunho. Não se trata, evidentemente, de 10 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 um engajamento maciço, de um grande plano de manipulação, inculcação ou coisa do gênero 2. Trata-se, isso sim, de uma organização das concepções burguesas em sua realidade evidentemente burguesa. Dessa atividade podem participar tanto formalistas, quanto críticos da escola psicanalítica; tanto teóricos da crítica genética quanto da desconstrução. Quando Jonathan Culler (1997) diz que a desconstrução afeta mais os críticos do que a atividade crítica, sem dúvida realiza um precioso diagnóstico. O que deixa de dizer é que no atual estado das coisas, a desconstrução já não mais afeta nem sequer os pesquisadores. Trata-se então agora do mero anúncio de um trabalho já desconstruído, que visa ostentar um longo percurso crítico sempre intuído e nunca demonstrado. Já se disse até aqui que a crítica literária tradicional tem se caracterizado por simular possuir qualidades que não tem; já se afirmou que o objetivo disso é desidratar os objetos de análise até que virem eles mesmos mercadoria. Resta refletir, então, sobre como crítica tradicional aborda os produtos que resistem a essa transformação. Para isso, tome-se como exemplo as produções marginais dos autores negros. É bastante razoável elucubrar que a presença reduzida deles naquilo que, com algum esforço, se possa chamar de cânone, não é resultado da tradição ou de um eco histórico distante. Isso é produto de um patrulhamento constante que visa manter como majestosos objetos literários que são totens da cultura tradicional. A literatura dos negros; a literatura das mulheres; a literatura dos gays; a literatura dos indígenas; a literatura dos irlandeses; a literatura dos catalães; essa multiplicação de visões tem sido usada pela crítica nãomarxista como autorização para vilipendiar as produções de negros, mulheres, gays, indígenas, irlandeses, catalães e o que quer que pareça, aos seus olhos, nãouniversal, como critica Rodrigues: Hoy creo que las cosas han quedado mucho más claras. Se ha partido del Hombre, como categoría central de los planteamientos y no resultaría exagerado indicar que, a partir ahí, hasta el planeta se nos ha agrietado entre las manos. Tampoco es este el sitio para plantear el debate en su nivel profundo, y para plantearlo no como Feuerbach ni como los actuales “guardianes” de la libertad. Solo sabemos que no existe El Hombre, sino los que gritan o huyen, los que se callan o están a favor, los que hecho sufren incluso sus neurosis “normales” son no solo categorías concretas, sino categorías teóricas a las que convendría comenzar a pluralizar. Digamos: los hombres y las mujeres; los explotadores y los explotados; los negros y los blancos; todo el arco iris de colores y todo el arco iris de una vida está destina2 Não é à toa que Paul De Man relacionava a atividade de leitura à atividade da morte. Essa atividade tão bem conhecida de todos os estudantes de literatura e dos ambientes reservados à leitura e a introspecção: o silencio das bibliotecas, o isolamento do leitor a semelhança evidente entre a atividade de leitura e da oração silenciosa. Eis um positivo traço apontado por Harold Bloom em O cânone Ocidental. Mas que evidentemente já anunciava essa atração herdeira de Edgar Allan Poe pela coisa morta, pelos rituais do que não se pode mover, pela atração patológica a estabilidade das coisas inanimadas e, evidentemente, por aquilo que por excelência não possui animação, novamente, a mercadoria, que se apresenta em todos os lugares e a todos, sem, no entanto, poder mover-se a nenhum lugar. Ela aparece, somente. E por isso, quanto maior sua aparência, maior o esforço para ocultar as engrenagens sociais necessárias para fazê-la se mover de um lugar ao outro. 11 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 da a ser vendida desde el nacimiento. Existen los países pobres y los pobres dentro de los países ricos. Claro que existe la “humanidad” como especie, pero eso no nos resuelve ninguna cuestión teórica ni practica. Si no se está contra de la explotación social y subjetiva, en contra del dominio del genero o de etnia, resulta hasta cruel – por no decir obsceno – que hable de los derechos humanos o de crímenes contra la humanidad. El Hecho es pues muy otro: unir un termino tan vacuo como el hombre a un termino tan indeciso como el de literatura, nos ha levado como máximo a decir que literatura es la expresión del Hombre o de la Mujer. Lo cual se asemeja mucho al hecho de no decir nada. O peor aún a ignorar demasiado todo lo que se refiere a la dislocación personal, id est, la explotación continua e inabarcable en la vivimos” (RODRIGUEZ, 2002:13). A reação da hegemonia a esse pensamento pode ser exemplarmente demonstrada pelo que Harold Bloom cunhou de escola do ressentimento. Isso sem dúvida nos reserva um tom chistoso à questão, mas deixa escapar um componente importante que é o da ameaça. Aparentemente vencida a ameaça socialista, com a autoproclamada vitória das forças progressistas sobre o “fantasma do comunismo”, parece ter havido um certo receio de que haja um contrataque. Curioso o temor de contrataque de uma força extinta. Sem dúvida, o socialismo parece ter perdido a batalha contra o capitalismo e o sistema existente na antiga União Soviética parece ter ruído, mas ainda resta um resíduo ideológico, uma espécie de poeira marxista que sopra por todos os ambientes fazendo tremer certas forças. A crítica de Bloom se refere à conduta crítica de outros críticos. É ela mesma a crítica do ressentimento. Pois foi o próprio Bloom quem perdeu a batalha teórica. Tão logo perdeu o campo político, o marxismo parece ter migrado para o ambiente acadêmico. E se instalado de tal maneira lá, que hoje muitos de seus críticos realizam a pública concessão de que “era um sistema interessante, porém de gabinete, inviável no plano real”. O marxismo tornou-se tão identificado com o ambiente acadêmico que hoje a própria descrição de um crítico literário remete a um sujeito de meia idade, possivelmente de centro-esquerda, com ideias de revolução. Se isso acontece em várias partes do mundo, como se explica então que não haja no corpus da crítica brasileira, nenhum resquício dessa postura? A questão é que o marxismo jamais fechou suas partes para o diálogo com a burguesia. E não há lugar no mundo onde essa relação incestuosa tenha ficado mais clara. O resultado é que brancos partidários dos ressentidos e brancos partidários do sistema produziam o mesmo tipo de crítica. O que diferenciou um grupo de outro, no que diz respeito à cor, é que o primeiro grupo acredita que a condição dos excluídos é fruto inadmissível do capitalismo e a do segundo grupo é que isso é o preço necessário. Os dois discordam, portanto, do que deve ser feito, mas concordam com os diagnósticos: há inferiores e superiores. Uma mínima parte da crítica marxista conseguiu se elevar à condição crítica superior e pensar em termos de inferiozados e superiorizados. Nesse sentido, fica claro que as filiações ideológicas da academia e a origem biográfica dos teóricos impediu um tipo de reflexão mais ampla sobre a questão racial no Brasil. O resultado foi um discurso sem conteúdo programático. 12 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Sem dúvida alguma, produzimos conhecimento para as prateleiras da escola do ressentimento. Mas pelo que consta há apenas três escolas fundamentais, a dos ressentidos, a dos cínicos e a dos que causaram o ressentimento. Não se pode ocupar a uma e a outra. E a dos cínicos leva a todos os lugares menos à crítica. Dificilmente os humilhados e explorados podem fazer parte da escola dos humilhadores. Dificilmente, é possível escolher entre ser humilhado e humilhante. Em geral, para todos os seres, é dado no máximo, a fantástica possibilidade de, em algum momento da trajetória humana descobrir-se um explorado. A metáfora dominante do pesquisador de teoria literária é a de um oceano muito amplo onde cada um deve se dedicar a uma parte específica. Em primeira vista parece um plano de pesquisa consistente. Na prática, apenas desabilita pesquisadores a compreender de um modo complexo a literatura dos gays, dos negros, dos catalães, dos indígenas, dos irlandeses e das mulheres, gerando uma crença na inevitável fragmentação da realidade. Por outro lado, como parte daquela primeira atividade de simulação já investigada aqui, a literatura dos que estão à margem passa a ser tomada como já avaliada, já catalogada, já vista. A contribuição dos estudos culturais, nesse sentido, foi sequestrada como argumento. Atualmente não há departamento de teoria literária onde mesmo os autores mais conservadores simulam certo respeito e uma superação das leituras de Stuart Hall ou mesmo de Raymond Williams. A esquiva tem o efeito de “foi importante termos analisado as produções das periferias, mas esse trabalho já foi concluído, não há mais nada a ser feito” ou o fatal “disso já sabemos”. Espanta perceber que esses mesmos pesquisadores jamais aceitariam que se dissesse o mesmo de seus cânones, como Shakespeare. Há um mito universitário, ainda intocável, o da inesgotabilidade dos objetos tradicionais “há sempre algo novo a se dizer sobre Shakespeare” e o vazio dos objetos considerados marginais “é interessante, é claro, mas Toni Morisson repete Austen”. Dentre as tensões de preconceito, sem dúvida o racismo irrompe como um dos temas mais traumáticos e de maior dificuldade para os pesquisadores conservadores, forçados a registrar aquilo que gostariam de destruir. Tudo isso se constitui num preconceito crítico, que se caracteriza como uma ignorância constante em relação ao objeto de pesquisa que manifeste qualquer opinião sobre o próprio tema do preconceito. É a esterilidade silenciosa disfarçada de empanturramento. Assim, o preconceito crítico é uma operação em duas etapas: na primeira opera-se um esforço para deixar o tema de lado. E, caso algum evento extraliterário, em geral pressão de grupos políticos ou movimentos sociais organizados, exija uma revisão de suas práticas, ensaia-se uma aceitação do debate e o posterior reconhecimento do preconceito como sendo parte de um passado condenado, o 13 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 qual não existe mais3. O autor é tomado como uma vítima inevitável daquilo que afligia a todos. Paradoxalmente, o autor antes acusado de preconceituoso é tido agora como mais uma das vítimas de um tempo de preconceitos. Essa é a condição necessária para o reconhecimento de qualquer tipo de exclusão: que ele seja uma força natural, inegavelmente negativa, mas irremediavelmente sem fonte e sem beneficiados. O preconceito passa a ser um conceito que não tem seu contrário, uma mazela de uma sociedade atrasada, um tipo de característica negativa imutável em certa época, como a topografia local ou as condições meteorológicas. O mal estar frente a um autor compele certos pesquisadores a alternar critérios bibliográficos e critérios de julgamento de suas obras. Ora o autor não pode ser considerado racista porque, apesar dos personagens racistas de sua obra, o estudo de sua vida particular revela que “era um homem cordato”; ora a vida particular do autor não pode ser levada em conta porque “não se pode misturar as duas instâncias”. Assim, a crítica literária estabeleceu um critério flutuante para suas análises: o social aparece e desaparece dependendo da disposição de análise ou do objeto a ser analisado. Tome-se como outro efusivo exemplo o caso de Machado de Assis. Durante muito tempo, foi tomado como indivíduo branco. Depois, como parte de um esforço em construir uma imagem brasileira miscigenada, foi tido como mulato. Em 2011, um filmete publicitário do banco Caixa Econômica Federal trazia um autor caucasiano interpretando o personagem do escritor. Longe de ser apenas um erro biográfico, o episódio ilustra o problema de uma certa transformação da história social a serviço dos poderes constituídos. Não há dúvidas de que, no Brasil, o ponto nevrálgico dessa questão foi a discussão iniciada em 2010 sobre a aquisição de obras literárias de Monteiro Lobato para crianças. O nítido, porém contestado racismo nelas contido, transformou o caso em um exemplo do campo de disputas simbólicas que é a crítica literária. Realizou-se uma complicada operação de proteção à biografia de Lobato. Quando se trata de anular sua trajetória de missivas francamente racistas, levanta-se a bandeira histórica de que elementos de sua vida pessoal não devem ser levados em conta. Quando se trata de exaltar sua conduta pessoal em defesa do monopólio do petróleo brasileiro, tal fato se ergue como barreira a ser levada em conta em sua defesa. Ora o marco ético é público, ora é privado. A vida particular evidentemente é delicada e há diferenças entre as acusações de racismo e de obra com personagens racistas. Em um exemplo elucidatório, Othelo possui inúmeros per3 Essas concepções ideológicas, segundo as quais o passado é depositário de toda a nocividade e o presente é o guardião de tudo o que já está resolvido e pacificado tem sido tema de inúmeros textos e produções de Fábio Akcelrud Durão. 14 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 sonagens racistas. Mas Othelo, em si, não é uma obra racista. Costuma ser difícil demonstrar a diferença entre uma e outra, mas um exercício de discernimento eficaz costuma ser o de elencar as atividades dos personagens negros em contraponto aos brancos. Como são retratados, quais seus ofícios, quais seus papéis na trama, se aparecem como protagonistas ou como coadjuvantes, se são sistematicamente responsáveis por erros ou se são sistematicamente responsáveis por feitos incríveis. E, principalmente, se suas ações são assumidas pelo narrador como produto de sua raça. Nesse sentido, parece não haver dúvidas de que quando Monteiro Lobato menciona “como uma macaca de carvão” está emprestando a Tia Anastácia uma metáfora racista. Esse entendimento é imediatamente combatido por seus defensores porque, segundo eles, o universo social da época, a despeito da vontade do autor, resvala para a obra, contaminando-a com as impurezas do real. Analisando essa perspectiva de forma acrítica, trata-se de um equívoco; encarando dentro de uma perspectiva ampla, trata-se inevitavelmente de uma repercussão ideológica fruto da concepção de literatura burguesa. O indivíduo, na crítica literária, aparece somente para obter lucro. Não se admite dele nenhum tipo de responsabilização ou de ônus. O resultado da crítica literária brasileira está na praticamente ausência de autores brasileiros nas rotinas das salas de aula. Não há sistema literário negro, no Brasil. Se Machado de Assis pode, com alguma sinceridade, ser tomado como mulato, não é por essa razão que ele é levado em conta. Não se trata de reivindicar o valor da cor, em detrimento do talento real machadiano, trata-se de notificar que sua cor é vista como um valor de dificuldade a ser superado “apesar de descendente de negros”, ou, no mais sofisticado “apesar de sua controversa condição.” A mesma estratégia aparece: a confusão entre cor e racismo. O racismo como sendo uma consequência direta da cor, uma resposta inevitável às diferenças. Uma razoável contribuição crítica foi trazida pela sociologia da literatura, através dos trabalhos de Robert Escarpit, Roger Chartier e Robert Darnton. Era uma forma de resolver, ao menos em parte, as lacunas de uma formação acadêmica raquítica em noções de sociologia. Contudo, apesar de robusta, as pesquisas da sociologia da literatura sempre padeceram de um certo conformismo e de uma visão da história como uma série de pequenas decisões individuais que propiciariam a mudança do mundo. A história da edição de livros, tal como tem sido contada, nada mais é do que uma série de anedotas sobre o universo editorial, algo que surge como uma pequena coleção de segredos sobre os autores, e que diz muito sobre o passado dos meios de produção, mas com muito pouca – e às vezes francamente nenhuma – vontade de confrontá-los. O que a crítica literária tem feito não é clarear o objeto, mas sim transformá-lo. A literatura não contém em si o social, ela é o próprio social. Ao recomendar a abordagem do texto e não 15 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 “neste caso” “da questão social” o pesquisador procura amputar da análise tudo o que lhe parece questão social. E invariavelmente a questão social é sempre a presença da questão social do outro. Tudo aquilo que me impede de verificar a palavra, é tomado, nesse sentido, como o social. É aparição da história como ruído, como poluição, como impureza. A crítica literária parece estar sempre procurando fundamentar o que é ela mesma, e acredita o crítico estar fazendo a mais correta das críticas enquanto segue sem rota prévia. Sem dúvida, não ter roteiro facilita a possibilidade de ir em todas as direções, o que é muito saudável em um mundo cheio de regramentos e proibições teóricas; contudo, sempre que não há direções indicadas, se pode estar parado sem nenhum tipo de restrição. Assim, é exatamente esse o ponto onde se encontra a crítica literária atual. Nas universidades mostra-se paralisada pelo compromisso com o sistema ideológico do capital. Nos jornais e nas publicações, está preocupada em não parecer hermeticamente inacessível para as massas. De forma consistente, está sempre, portanto, falando de outra coisa. E não em um sentido polissêmico, mas no sentido em que fala de uma outra coisa enquanto deveria estar falando disso; apontando cada vez um outro objeto, enquanto deveria dedicar-se àquilo. De qualquer forma, é previsível que a classe dominante se negue dentre seus instrumentos de legitimação e comunicação, a reconhecer os expedientes de suas estratégias de exploração. Em ampla medida, tem-se assistido a uma constante negação até do fato de que se explora, a medida em que o termo exploração tem sido tomado como uma espécie de imprecisão – nos casos brandos – e uma ofensa, nos casos graves, aos empresários e a toda ideologia capitalista. A crítica literária atual pretende se apresentar como pós-tudo. Ela não aborda a questão do racismo porque o racismo já está superado. Não basta a ela apenas não pensar o negro. É preciso interditar a validade dessa atividade. É preciso lembrar que o pensamento dessa questão enfraquecerá o debate, enfraquecerá a crítica literária e, em um sentido ameaçador, enfraquecerá a própria civilização. Uma solução a isso aparece em Terry Eagleton (2006), onde o texto literário é interpretado como um produto da ideologia. Assim se pode tomá-lo como um artefato, como uma unidade. Há vantagens e desvantagens interessantes nesse raciocínio. A primeira é que é sem dúvida uma visão marxista derivada da consciência de que a ação dos seres produz a cultura. A desvantagem maior reside no fato do risco de se pretender gastar o tempo buscando as fidelidades do texto com o mundo e suas diferenças. Pensar o texto como ator das funções sociais parece mais promissor, na medida em que evita a crença de que o texto fornece ao seu leitor informações estáticas. A produção do texto não é, portanto, reflexo das relações ideológicas, e sim parte fundamental delas. 16 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Em um exercício exemplar prático, não se pode tomar a literatura de Ralph Ellison (como também não se pode fazer o mesmo com a maior parte da literatura norte-americana negra) como um produto das condições de vida dos negros no século XX. Ela é, essencialmente, a própria condição de vida dos negros no século XX. Isso não significa, de modo algum, que possa ela mesma responder a um mesmo tempo como objeto e crítica de si mesma. Significa, isso sim, que não pode ser compreendida como um fragmento independente (pois fora da realidade social não possui significado) e nem mesmo como miniatura metafórica do mundo (porque sua força está em justamente fornecer um aspecto da experiência humana específica). Em suma, a crítica literária nãomarxista, quando evita certos produtos, está evitando, na verdade, seus produtores. Não é o preconceito o tema desconcertante, mas os marginalizados. A fobia não é, portanto, em relação ao objeto que rejeitam, mas à denúncia daquilo que a presença do autor dos objetos supostamente irá causar. É comum cair na circularidade de que o papel da crítica é o de… criticar. Sem dúvida, mas criticar o quê? Esse quê tem sido fundamentalmente transmutado em um infinito como. É justamente dentro desse campo semântico que a crítica literária tem se refugiado para se omitir ao ofício de criticar, evitando assim o embate entre academia e poder. Toma-se aqui por poder seu conceito mais trivial de força, de imposição do status quo, das rotinas sociais, da ideologia dominante. A função de uma crítica literária marxista é recompor o espaço da indagação, devolvendo a capacidade do espaço para a resposta. Afinal, a crítica literária deve ser uma oportunidade de potência e não uma confirmação do poder. Assim, as questões étnicas, as questões de gênero, as questões de classe, escanteadas, vilipendiadas e francamente desprezadas pela hegemonia burguesa podem encontrar na crítica marxista um espaço onde não figuram como elementos estáticos de legitimidade, mas como objetos a serem criticados pelo conteúdo do que tem a dizer. Não se trata apenas de um maior interesse da crítica marxista, mas de sua natural disponibilidade para discernir sobre aquilo que já não pode ser discernido sem barulho e sem rupturas. Referências BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’agua,1992. BLOOM, Harold. El canon. Guante Blanco, 1998. CULLER, Jonathan. Teoria literária. Rio de Janeiro: Beca, 1999. DEBORD, Guy. Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Contraponto, 1997. 17 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 DURÃO, Fabio Ackcelrud. Teoria (literária) americana: uma introdução crítica. Campinas: Autores Associados, 2011. EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006. JAMESON, Fredric. Marxismo e forma. São Paulo: Hucitec, 1998. LUKACS, Gyorgy. Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2012. RODRIGUEZ, Juan Carlos. De qué hablamos cuando hablamos de literatura. Granada: Guante Blanco, 2002. SHAKESPEARE, William. Othelo. Porto Alegre: L&PM, 2006. WILLIAMS, Raymond. Marxismo y literatura. Barcelona: Ediciones Península, 2000. 18 O VÍNCULO DE CIDADE DE DEUS COM A REALIDADE THE BOND OF CITY OF GOD WITH REALITY Renato Oliveira Rocha (PG - UNESP/Araraquara) RESUMO: Neste trabalho, tentaremos demonstrar a ligação do romance Cidade de Deus (1997) com a realidade que ele representa. A prosa de Paulo Lins se insere na constatação da crítica em relação ao retorno das técnicas narrativas na prosa contemporânea e do apelo ao leitor, de forma a fazê-lo se posicionar criticamente diante do texto literário. A aventura artística de Paulo Lins, conforme observou Roberto Schwarz (1999), tem alto alcance na representação do real, devido ao trabalho de campo que o escritor realizou enquanto entrevistava moradores do local para a pesquisa antropológica de Alba Zaluar. Em sentido amplo, a representação da realidade pode ser lida à luz da “dialética da marginalidade”, proposta por João Cezar de Castro Rocha (2004). Palavras-chave: Dialética da marginalidade; prosa brasileira contemporânea; realidade; realismo. ABSTRACT: In this work, we will try to demonstrate the binding of the novel City of God (1997) with the reality that it represents. The prose of Paulo Lins fits what the criticism noted about the return of narrative techniques in contemporary prose and in relation to the appeal to the reader, so makes it stand critically on the literary text. The artistic adventure by Paulo Lins, as noted Roberto Schwarz (1999), has high reach in the representation of reality due to field work that the writer made while interviewing local residents for anthropological research of Alba Zaluar. In a broad sense, the representation of reality can be read in the light of the “dialectics of marginality”, proposed by João Cezar de Castro Rocha (2004). Keywords: Dialectics of marginality; brazilian contemporary prose; realism; reality. Fui feto feio feito no ventre-brasil estou pronto para matar já que sempre estive para morrer Sou eu o bicho iluminado apenas pela luz das ruas que rouba para matar o que sou e mato para roubar o que quero Já que nasci feio, sou temido Já que nasci pobre, quero ser rico e assim o meu corpo oculta outros que ao me verem se despiram da voz Voz indo até o grito Grito e tiro disputando intensidade Sou eu o dono da rua O rei da rua sepultado vivo no baralho desse jogo O rei que não se revela nem em copas nem em ouro Revela-se em nada quando estou livre renada quando sou pego pós nada quando sou solto REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Sou eu assim herói do nada De vez em quando revelo o vazio de ser irmão de tudo e todos contra mim Sou eu a bomba que cresceu na flor do cerne da miséria, entre becos e vielas onde sempre uma loucura está para acontecer Sou teu inimigo Coração de bandido é batido na sola do pé Enquanto eu estiver vivo, todos estão para morrer Sou eu que roubo o teu amanhecer por um cordão por um tostão por um não Meço-me e arremesso na vida lançando-me em posição mortal Prefiro morrer na flor da mocidade do que no caroço da velhice Sem saber de nada me torno anacoluto insistente, indigente nas metáforas de tua língua vulgar que não se comprometeu pois a minha palavra – inaugurada na boca do homem, a dama maior do artifício social – perdeu a voz Voz sem ouvidos é mero sopro sem fonemas É voz morta enterrada na garganta E a palavra vida, muda no mundo legal, me faz o teu marginal. Paulo Lins. 1. Introdução Paulo Lins começou a escrever Cidade de Deus (1997) ainda em 1986, após ser recrutado pela antropóloga Alba Zaluar para realizar as pesquisas de campo que seriam utilizadas em sua pesquisa sobre “Crime e criminalidade no Rio de Janeiro” e “Justiça e classes populares”. Alba enfrentaria problemas para ouvir os membros das quadrilhas, então recrutou moradores do local, que foram recomendados pela Associação de Moradores de Cidade de Deus, entre eles, Paulo Maluco – como o autor do romance era conhecido na favela pelos amigos, por ser “da rapaziada do conceito”, ou seja, não estava envolvido com os bandidos do local, além de ter formação universitária na UFRJ. A antropóloga, percebendo que Paulo Lins tinha mais facilidade com a literatura do que 20 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 com a pesquisa científica, pediu que ele escrevesse um poema a partir do que tinha visto e vivido durante os anos de pesquisa. Em conversa com Roberto Schwarz, que tem participação em sua carreira de pesquisadora, Alba Zaluar mostrou-lhe o poema sem título que Paulo Lins escreveu (Cf. HOLLANDA, 1998, p. 256-257). O crítico literário gostou e, por meio dele, seus versos chegaram às páginas do número 25 da Revista Novos Estudos CEBRAP; nesse poema, o ponto em comum com Cidade de Deus é a matéria prima. O contato com Roberto Schwarz foi se estreitando e o crítico pediu a Paulo Lins que escrevesse um romance, o que foi feito até a primeira parte. Logo depois, o escritor foi incentivado a candidatar-se à Bolsa Vitae de Artes, foi aprovado e conseguiu terminar seu romance, publicado por uma das maiores editoras do Brasil. De lá para cá foram duas reedições, várias traduções, um filme (2002), reconhecimento e alguns processos, o preço de sua aventura literária. Neste trabalho, tentaremos demonstrar a ligação de Cidade de Deus com a realidade a partir de estudos que identificam e problematizam o retorno do realismo como técnica de representação na prosa brasileira contemporânea. Frequentemente, a crítica aponta o romance de Paulo Lins como um dos baluartes dessa retomada do real pela narrativa contemporânea, sobretudo por causa da ligação com a realidade, calcada na violência. 2. É tudo verdade! Paulo Lins afirmou que “[...] as cenas mais brutais do romance são justamente as calcadas no real” (Revista Veja, 13/08/1997, p. 114-120), com autoridade de quem entrevistou moradores e, posteriormente, ficcionalizou o cotidiano de Cidade de Deus no período que vai dos anos finais da década de 1960 até meados dos anos 1980. De fato, os jornais da época eram povoados por notícias sobre a criminalidade no conjunto habitacional, o que estigmatizava a população que não estava envolvida com a guerra pela disputa de poder sobre o domínio do tráfico de drogas. Coube ao escritor transformar essa realidade brutal em romance. Desde Aristóteles e Platão já havia a preocupação com a verossimilhança, o que implica na forma de narrar e na maneira através da qual a realidade será representada. Cidade de Deus, enquanto história, em consonância com a definição de Todorov (2009), “[...] evoca uma certa realidade, acontecimentos que teriam ocorrido, personagens que, deste ponto de vista, se confundem com os da vida real.” (p. 220). Os personagens que existiram de fato, Zé Pequeno, Mané Galinha, entre outros, fazem parte da realidade que o romance retrata e, sobretudo, de um contexto mais amplo que é o do envolvimento deles com a criminalidade. Enquanto discurso, o romance merece atenção pela maneira através da qual o narrador nos faz conhecer os acontecimentos, que tentaremos interpretar aqui mais adiante. 21 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Na ficção brasileira, a violência ganha destaque a partir da década de 1960, impulsionada pelo golpe militar, ocorrido em 1964. Nesse período conturbado no campo político, as cidades vão recebendo cada vez mais pessoas devido ao processo de rápida industrialização e urbanização, que resultou no aumento dos índices de violência em meio às grandes concentrações de pessoas. Tânia Pellegrini (2004), no ensaio “No fio da navalha: literatura e violência no Brasil de hoje”, aponta a violência como um fator constitutivo da cultura brasileira, assim como acontece com a maior parte das culturas que se desenvolveram através do método de colonização (p. 16). No Brasil, o crescimento urbano dos grandes centros, que ocorre na maioria dos casos de forma desordenada, contribui para a proliferação de diversas formas de violência. A pesquisadora lembra que “O roteiro do desenvolvimento da literatura urbana necessariamente passa por espaços que, já no século XIX, podem ser chamados de espaços de exclusão: os ‘cortiços’ e ‘casas de pensão’ de Aluísio Azevedo. [...].” (p. 19). Na literatura urbana de hoje, as favelas são bastante representadas e representam bem esses espaços de exclusão, uma vez que, em Cidade de Deus, não aparecem os bairros considerados nobres do Rio de Janeiro. Guardadas as devidas proporções, se, para Guimarães Rosa o sertão era o mundo, Paulo Lins fez da favela o seu mundo, marcado por uma série de injustiças sociais acumuladas durante séculos. Tânia Pellegrini aponta a revitalização do realismo nessa reconfiguração dos centros urbanos no Brasil. Avançando em seu raciocínio, a pesquisadora diz que “Esse novo realismo caracteriza-se acima de tudo pela descrição da violência entre bandidos, delinquentes, policiais corruptos, prostitutas, todos habitantes do ‘baixo mundo’.”. (PELLEGRINI, 2004, p. 20). Como representantes desse estilo, no período, a autora aponta João Antônio, Dalton Trevisan e Rubem Fonseca. Mais recentemente, o realismo voltou à cena com as obras de Ferréz, Marcelino Freire, Paulo Lins, entre outros. A volta do realismo como técnica de representação é abordada novamente por Tânia Pellegrini (2009) no ensaio “Realismo: a persistência de um mundo hostil” de forma mais detida, e a pesquisadora delineia as características da (eterna) volta da realidade como técnica de representação na prosa contemporânea. Ela constata que, nas formas narrativas, o caráter realista se acentua cada vez mais, tendência que cresce desde os anos 1970 e se propõe a pensar os propósitos para o retorno da representação do real, afirmando que “[...] o realismo em literatura continua vivo e atuante nas formas narrativas contemporâneas, assumindo as mais diferentes roupagens e possibilidades de expressão.” (PELLEGRINI, 2009, p. 12), apresentando-se como nova postura e novo método. Para a ensaísta, o processo de representacional vai de encontro à história e à sociedade e a representação realista depende da mediação do escritor entre o dado real e a obra. Esse processo implica 22 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 na refração, onde o conteúdo de origem é modificado a partir de questões ideológicas e políticas. Constatada a volta do realismo na prosa contemporânea, em Cidade de Deus, os efeitos da realidade se manifestam de forma afetiva, que se resume em um estímulo imaginativo que liga a ética à estética. Essa é a ideia de Karl Erik Schøllhammer (2004) no ensaio “Os novos realismos na arte e na cultura contemporâneas”. O ensaísta assinala a década de 1970 como o ponto de partida da relação entre a representação da realidade daquela época e da situação contemporânea que abriu caminho “[...] para um novo tipo de realismo que procura realizar o aspecto performático da linguagem literária, destacando o efeito afetivo e sensível em detrimento da questão representativa.” (SCHØLLHAMMER, 2004, p. 219). Nesse sentido, é possível afirmar que o apelo sentimental para os aspectos da realidade é capaz de envolver o leitor com a narrativa. O livro de Paulo Lins tem como epígrafe um poema de Paulo Leminski e, mais adiante, o narrador evoca a poesia, em parágrafo único e sucinto, para lhe ajudar a contar sobre a Cidade de Deus. A dificuldade para falar da vida igualmente difícil do local e até mesmo para trabalhar a palavra diante da vida dura da população inverte os valores e reduz o poder de alcance da fala à expressão: “Falha a fala. Fala a bala.” (LINS, 1997, p. 23), ou seja, demonstra o silenciamento da voz de pessoas comuns que o romance vai representar. Na estrutura dividida em três partes, o narrador acompanha de perto “A história de Cabeleira”, “A história de Bené” e “A história de Zé pequeno”, utilizando o discurso indireto livre para reproduzir a fala e o pensamento dos personagens. Estamos diante da “visão por trás”, do narrador em terceira pessoa, como queria Jean Pouillon ou, de acordo com a tipologia de Norman Friedman (2002), o narrador é caracterizado como “Autor onisciente intruso”, bastante flexível, que resulta na eficiência da narração, como é o caso de Cidade de Deus. Para Friedman, ‘Onisciência’ significa literalmente, aqui, um ponto de vista totalmente ilimitado – e, logo, difícil de controlar. A estória pode ser vista de um ou de todos os ângulos, à vontade: de um vantajoso e como que divino ponto além do tempo e do espaço, do centro, da periferia ou frontalmente. Não há nada que impeça o autor de escolher qualquer deles ou de alternar de um a outro o muito ou pouco que lhe aprouver. (FRIEDMAN, 2002, p. 173). Essa categoria proposta por Friedman tem toda a liberdade para narrar, com toda a intrusão que lhe convier. Isso fica claro quando o narrador “entra” no pensamento dos personagens, como ocorre na reflexão a seguir, de Cabeleira, quando este recorda seu passado, a vida que os pais levavam e a morte da avó, queimada em um incêndio. [...]. ‘Se eu não fosse molequinho ainda’, pensava Cabeleira, ‘eu tirava ela lá de dentro a tempo e, quem sabe, ela tava aqui comigo hoje, quem sabe eu era otário de marmita e o caralho, mas ela não tá, morou? Tô aí pra matar e pra morrer’. (LINS, 1997, p. 25-26). 23 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 A visão do narrador é tão privilegiada que ele é capaz até de entender até mesmo o pensamento dos galináceos, como ocorre na passagem em que Zé Pequeno e sua quadrilha vão à casa de Almeidinha, que prometera preparar um almoço para receber os bichos-soltos. Vale a pena transcrever: O galo, de tanto ouvir comentários a propósito de sua existência, antes mesmo do sol nascer, tratou de bicar, malandramente, o barbante que o prendia a um pedaço de bambu fincado no chão, até que ele ficasse suficientemente fraco para rebentar ao mínimo puxão. Iria fugir, porém, só depois que Almeidinha lhe jogasse os milhos que tanto gostava, o que ainda não tinha acontecido. É certo que o galo de Almeidinha não entendia bem as coisas, por ter raciocínio de galo, o que não é muita coisa, mas ao olhar aquele monte de crioulos com as bocas cheias de dente, bebendo cerveja, olhando à socapa para ele, fumando maconha e dizendo que não iriam cheirar para não perder o apetite, não cantou como de costume. Ficou ali na dele esperando a refeição. (LINS, 1997, p. 332). Nesse meio tempo, um dos membros da quadrilha saiu para comprar galinhas, que iriam complementar o almoço, e Zé Pequeno, acreditando que, se o galo cruzasse com elas antes de ir para a panela morreria feliz, com a carne mais macia e saborosa, mandou jogar as galinhas no terreiro: [...]. O galo, esquecendo-se de tudo, pulou em cima de uma galinha e logo procurou outra e todos bateram palmas, enquanto Almeidinha aguardava com uma enorme faca na mão. O galo não dava chance às galinhas. Mesmo com a certeza de que tudo era pertinente ao seu cozimento, achava que iria morrer e ao mesmo tempo não achava. Coisa de galo. Mas ao ver, de relance, a faca sendo sustentada por aquele que durante toda a sua vida acreditara ser seu amigo, certificou-se de que tudo ali concorria para o seu falecimento. Na primeira tentativa, livrou-se do barbante, que foi ficando mais fraco no momento em que executava a galinha, saçaricou entre os convidados e saiu quebrando pelas vielas. (LINS, 1997, p. 332333). Apesar da perseguição, o galo conseguiu se embrenhar pelo mato e fugir. Esse recurso na narração do romance permite que o leitor tenha acesso a vários tipos de informação possíveis, entre pensamentos e sentimentos dos personagens; “[...] ele [o narrador] é livre não apenas para informar-nos as ideias e emoções das mentes de seus personagens como também as de sua própria mente. [...].” (FRIEDMAN, 2002, p. 173), o que deixa o leitor próximo da narrativa. Porém, como o assunto é o crime, a voz narrativa não se presta a contar apenas situações relativamente engraçadas ou cômicas como o episódio do galo. Na primeira parte do romance, os crimes são motivados por ciúmes, fofocas, brigas entre vizinhos etc., acontecimentos cotidianos do período. A primeira empreitada do Trio Ternura, composto por Alicate, Cabeleira e Marreco, é o assalto ao motel. Vendo que interceptar o caminhão de gás não era uma atividade tão lucrativa, os três, junto com Pelé, Pará, Carlinho Pretinho e Dadinho, resolvem sondar o motel e esperar a melhor hora para investir e levar o máximo de objetos valiosos dos quartos. Nesse momento, os crimes 24 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 começam a impulsionar a narrativa e o narrador se dedica a uma das cenas mais brutais do romance, na qual um homem que se sentia traído pela mulher, uma vez que ele era negro e ela tinha dado à luz uma criança branca, resolve se vingar da esposa e desconta seu ódio no bebê, esquarteja-o e entrega à mulher em uma caixa de sapato, tudo isso com descrição minuciosa do narrador. Na cena seguinte, outro marido traído planeja se vingar da esposa e coloca seu plano em prática ao decepar a cabeça do amante com um golpe de foice e depois entregou o membro à mulher. Na sequência, a ação volta para o assalto ao motel, que, excetuando-se as duas mortes que contrariaram as ordens de Cabeleira para não matar, teve saldo positivo para os bandidos. Dias depois, os jornais estampavam os crimes na primeira página e os assaltos e as mortes brutais começavam a fazer a fama da Cidade de Deus no Rio de Janeiro. No romance, algumas passagens conseguem atingir o efeito de realidade através do apelo afetivo, como, por exemplo, quando o Trio Ternura assaltou o caminhão de gás e Cabeleira “[...] deu um chute no rosto do trabalhador para ele nunca mais dar uma de esperto”. (LINS, 1997, p. 24). As condições nas quais os moradores foram colocados na favela e as histórias de alguns personagens como Cabeleira, Pelé e Pará, marcados por dificuldades em suas histórias de vida, apesar dos crimes que cometeram, reforçam essa ideia. Durante a primeira parte do romance, começa a se estruturar o comércio lucrativo de drogas, com Cabeleira no comando das ações. Seu antagonista é o policial Cabeção, que começou a perseguição ao bando de Cabeleira após a morte de Francisco, o odiado alcaguete que delatava membros da quadrilha para a polícia. Cabeção, cearense, assim como o assassinado, e comovido com a morte do trabalhador, identifica-se com as dificuldades e com os preconceitos que os “paraíbas” – como os nordestinos são pejorativamente conhecidos – enfrentam no Rio de Janeiro, e começa a busca por Cabeleira. Após os vários momentos de enfrentamento, o policial, já perturbado pelo abandono da esposa e pelo insucesso no confronto com Cabeleira, não percebeu a aproximação de seu assassino, de quem ele havia matado o irmão. A narração da morte do policial corrupto conta, de forma afetiva, com o relato de uma espécie de expurgação das injustiças que ele cometeu, com direito a ser arrastado por uma carroça, açoitado, cuspido e ter seus pertences roubados (p. 175). Algumas páginas depois, Cabeleira é surpreendido pelo policial Touro e a poesia, como que atendendo ao pedido do narrador, se faz presente e ilumina a cena da morte do bicho-solto: Cabeleira não esboçou reação. Ao contrário do que esperava Touro, uma tranquilidade sem sentido estabeleceu-se em sua consciência, um sorriso quase abstrato retratava a paz que nunca sentira, uma paz que sempre buscou naquilo que o dinheiro pode oferecer, pois, na verdade, não percebera as coisas mais normais da vida. E o que é normal nessa vida? A paz que para uns é isso e para outros aquilo? A paz que todos buscam mesmo sem saber decifrá-la em toda sua plenitude? [...]. Deitou-se bem devagar, sem sentir os movimentos que 25 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 fazia, tinha uma prolixa certeza de que não sentiria a dor das balas, era uma fotografia já amarelada pelo tempo com aquele sorriso inabalável, aquela esperança da morte ser realmente um descanso para quem se viu obrigado a fazer da paz das coisas um sistemático anúncio de guerra. Aquela mudez diante das perguntas de Touro e a expressão de alegria melancólica que se manteve dentro do caixão. (LINS, 1997, p. 201-202). Na segunda parte, a acumulação de injustiças que ocorreram na primeira vai aumentando e a história de Bené começa a ser contada com a revolta de Sérgio Dezenove, o Grande, que odiava policiais, tinha prazer em matar brancos, justamente por terem participação exclusiva na transformação do negro em escravo vindo da África, e, posteriormente tê-los colocado nas favelas, o quilombo moderno. A brutalidade em torno de Bené não é tão presente, em relação aos demais personagens, possivelmente por causa de sua parceria com Zé Pequeno, que encabeçava o funcionamento da boca de fumo. Bené queria sair da criminalidade, chegou até a se envolver com os “cocotas” (jovens de classe média que tinham na Cidade de Deus a fonte para a manutenção de seus vícios), chegando até a abrir uma pizzaria em sociedade com seus amigos. No entanto, o personagem não consegue sair a tempo da criminalidade, e acaba morto. Enquanto Bené se dedicava à convivência com os viciados de classe média, Dadinho começava a buscar sua ascensão no mundo do crime e, em vez de assaltos, o tráfico de drogas passará a chamar a atenção de quem desejava ter o poder no comando de Cidade de Deus. Como tinha certa fama entre os policiais, Dadinho se torna Zé Pequeno (antes disso, participa de um ritual em homenagem a Oxalá e Xangô) e vai ganhando o comando do tráfico com sucessivas mortes dos chefes de quadrilha. Entre outras peripécias, a história avança, formando um mosaico de crimes, que são o motor para o desenvolvimento da narrativa. Ao longo do romance, o crime toma forma e a organização da favela se dá através das disputas pelo poder. As mortes continuam a ocorrer e a prisão de alguns bandidos revela a corrupção policial e a força que o tráfico de drogas tinha na manutenção das injustiças tanto do lado de policiais quanto do lado de bandidos. Na terceira parte, “A história de Zé Pequeno”, temos o traficante já no comando de Cidade de Deus, com a brutalidade do personagem se manifestando intensamente. Sua disputa com Manoel Machado da Rocha, o Mané Galinha estampou as manchetes dos jornais da época (ZALUAR, 2000, p. 134). Essa parte evidencia a ligação com a realidade que o romance representa e talvez justifique o medo de Paulo Lins ao escrever o romance em relação à presença de personagens reais, como podemos constatar no relato do escritor: [...]. Era doido. Aconteceu várias vezes de eu estar romanceando um personagem e ele passar na frente lá de casa, em carne e osso. Eu saía correndo, com meu gravadorzinho de bolso, e ia atrás. Comecei procurando personagens amigos, com quem cresci, pois na Cidade de Deus a relação bandido-morador, bandido-cidadão, bandido-não-bandido é distante. Mas à medida que as entrevistas se multiplicavam a notícia do livro correu a favela e o pessoal 26 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 vinha dar uma conferida. ‘E aí, professor? Você me botou lá?’, ‘Não vai me sacanear, hein?’, ‘Peraí, esse cara não morreu assim’, diziam, ignorando que o que eu estava tentando fazer era ficção. Acabei amealhando uma montanha de histórias reais, ou contadas como reais, sem saber como colocá-las em literatura. Como descrever o estado de alma do marido traído que seleciona a faca com que vai esquartejar o bebê que chama de ‘aquela porrinha’? Os personagens reais frequentavam minhas noites e o meu dia-a-dia. Na hora de cortar um ou outro, eu tinha pesadelos. Sonhava com todos os bandidos vestidos de Exu. Ao acordar, acabava colocando pedaços do sonho no livro. Como eu não tinha computador, o meu medo era deixar alguém sem final (Revista Veja, 13/08/1997, p. 116-118). Distanciando-se dos realistas clássicos, o texto de Paulo Lins “não copia o real, mas pretende fazer crer que remete a uma realidade verificável.” (PELLEGRINI, 2009, p. 16). Zé Pequeno, personagem da favela Cidade de Deus e do romance, encarna a brutalidade na narrativa contemporânea. Seu riso fino, estridente e rápido, que se manifestava nos momentos de maior tensão ao longo da narrativa, supera o personagem de Rubem Fonseca (2001, p. 11-29), no conto sobre o cobrador de uma dívida social difícil de ser paga que, diante das injustiças sociais tinha uma solução para encarar os problemas: só rindo. Um raro momento de bondade de Zé Pequeno aconteceu com um dos membros da quadrilha de Mané Galinha, que ficou sozinho com o traficante, mas, por ser parecido com Bené, comoveu Pequeno e este, acreditando que o amigo reconheceria esse momento, aconselhou o menino: “– Sai dessa vida, rapá... Vai embora! Alguém te fez alguma coisa pra entrar na guerra? Vai procurar uma escola!” (LINS, 1997, p. 483). Mané Galinha e Zé Pequeno travaram uma disputa depois que este estuprou a namorada de Galinha, trabalhador, que, revoltado após o ocorrido, decide se vingar e resolve pegar em armas para limpar sua honra. Esse é o segmento final que se prolonga por mais de 150 páginas e marca o início da guerra entre as quadrilhas de Mané Galinha e Pequeno. A disputa começa a repercutir na mídia, e o saldo negativo das mortes era comparado ao da Guerra das Malvinas no mesmo período. Nessa batalha sangrenta, Mané Galinha perde parte da família e a vida enquanto Zé Pequeno perde o controle do tráfico e é preso, mas consegue sair da cadeia tendo praticado suborno e se esconde fora da Cidade de Deus, para onde pensava em voltar. Quando consegue retornar, é atingido com um tiro no abdômen e morre na entrada do ano-novo, ao som dos fogos de artifício. Assim, se inicia uma outra fase, agora com a favela pacificada. O impacto que Cidade de Deus causa e fica evidenciado no segmento final desconstrói a vida pacata na favela carioca sem dar expectativa de que a história pudesse ter sido contada de maneira diferente. A realidade representada em forma de painel da violência revela o papel que esse fator tem na cultura e na prosa contemporâneas, que reconfigura os modelos de análise da sociedade, na transição da figura do malandro para a do marginal, da conciliação pacífica na resolução de conflitos para a exposição da violência como forma de tentar modificar a realidade. 27 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 3. De malandros a marginais Uma via para compreender o alcance da representação de Cidade de Deus de forma ampla é pensar o romance através da “dialética da marginalidade”, proposta por João Cezar de Castro Rocha. Em 2004, o crítico publicou o artigo “Dialética da marginalidade – caracterização da cultura brasileira contemporânea”1 no caderno Mais!, do jornal Folha de S. Paulo, coincidentemente no mesmo dia em que o filme dirigido por Fernando Meirelles concorreria ao Oscar em quatro categorias (direção, roteiro adaptado, montagem e fotografia) . Suas ideias foram ampliadas em artigo publicado no mesmo ano na revista Letras, da Universidade Federal de Santa Maria/RS, que utilizaremos aqui. Nesse ensaio, o pesquisador propõe uma nova maneira de interpretar (e de encarar) a sociedade e a cultura brasileiras através da contraposição entre a “dialética da malandragem”, conforme foi formulada por Antonio Candido em 1970 e a “dialética da marginalidade”, proposta por João Cezar. Ele fundamenta suas ideias com a releitura do chamado “pensamento social brasileiro” e da tradição de ensaios sobre a formação social brasileira que caracteriza nosso povo como sendo pacato, gentil e, por vezes, exótico que consegue, com facilidade, negociar as diferenças para resolver os problemas sociais. Para isso, utiliza, basicamente, as visões expressas por Roberto DaMatta, em Carnavais, malandros e heróis e pelo próprio Antonio Candido, no ensaio “Dialética da malandragem”. A visão romântica em relação ao brasileiro começa a mudar e a ser representada na literatura com Cidade de Deus, fenômeno literário que, também por ocasião do Oscar, deu visibilidade à cultura brasileira e sugere que a violência brutal que o romance representa, personificada em Zé Pequeno, exige novas formas de interpretação que não sejam aquelas associadas ao sadismo da literatura comercial, conforme assinalou Roberto Schwarz (1999). Ainda para falar da representação do brasileiro como povo pacato, João Cezar utiliza como exemplo Zé do Burro, personagem da peça “O pagador de promessas”, de Dias Gomes. A história foi transposta para o cinema, com direção de Anselmo Duarte e, entre outras premiações, recebeu a Palma de Ouro em 1962, no Festival de Cannes. Zé do Burro é a personificação do bom brasileiro que representa o deslocamento do interior para os grandes centros urbanos que começaram a se desenvolver na segunda metade do século XX no Brasil. A distância entre ele e Zé Pequeno é evidente, e o ensaísta aponta, como elo de ligação entre ambos, Carolina Maria de Jesus, considerada por ele uma das precursoras da “dialética da marginalidade”, que surge na cena literária na década de 1960. Catadora de papel e moradora na 1 29 fev. 2004. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2902200404.htm>. Acesso em: 31 jul. 2013. 28 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 favela do Canindé, em São Paulo, a autora de Quarto de despejo: diário de uma favela (1960) representa um marco da cultura de periferia feita por quem não era privilegiada socialmente, no caso, a escritora, que deu início à representação das margens através da literatura, ou seja, os excluídos começaram a encontrar condições para contar suas próprias histórias e a matéria para isso era a vida sofrida, nada romântica e pouco idealizada de pessoas comuns. A transição da “dialética da malandragem” para a “dialética da marginalidade” começa a colidir em forma de “guerra de relatos” (ROCHA, 2004, p. 158) e através do desenvolvimento de crítica à desigualdade social, como é o caso de Cidade de Deus, ou seja, tem início o desmoronamento da crença sólida na capacidade de conciliação pacífica. Nesse sentido, as mudanças sociais, políticas e econômicas começam a modificar o cenário urbano, em forma de violência e injustiças sociais, assim, “[...] ao que tudo indica, a violência substituiu a célebre paciência dos brasileiros. Sem dúvida, Zé Pequeno, o criminoso impiedoso, tomou o lugar de Zé do Burro, o ingênuo homem do povo.” (ROCHA, 2004, p. 159). Nesse sentido, a proposta de interpretação de Cidade de Deus através da “dialética da marginalidade” contribui para compreender a representação da realidade brutal que está presente no romance. Para exemplificar com as ideias do pesquisador, ele propõe “[...] a “dialética da marginalidade” como um modo de descrever a superação parcial da “dialética da malandragem” – superação parcial, pois ambas dialéticas estão atualmente disputando a representação simbólica do país. [...].” (ROCHA, 2004, p. 159). Já na década de 1980, Alba Zaluar constatou que, socialmente, o malandro tornava-se, cada vez mais, uma figura do passado. Ela chegou a essa conclusão ao analisar a identidade que os trabalhadores de Cidade de Deus construíam de si próprios, em contraposição à figura do bandido: Bandido é o termo usado hoje para quem tem arma de fogo e a utiliza na defesa deste rendoso comércio que é o tráfico de drogas ou nos assaltos. Ao contrário dos malandros, ele não sobrevive por não ter a malícia, a lábia ou a habilidade como ‘armas’ para vencer. A mesma ‘máquina’ que é a fonte de seu poder mata-o cedo nesta guerra implacável. Bandido, dizem, é quem ‘arma a sua própria morte’. Malandro é o termo usado para quem, num passado recente, recusava-se a trabalhar e usava várias habilidades pessoais para sobreviver, fosse explorando mulheres, fosse enganando os ‘trouxas’, fosse jogando carteado, fazendo samba ou dedicando-se à boemia. Não precisavam da ‘máquina’. Usavam quando muito a navalha nas brigas do morro e eram admirados pela sua elegância no vestir. Hoje, dizem, ‘malandro é quem sobrevive’. [...]. (ZALUAR, 2000, p. 149-150). O malandro foi importante para a formação social brasileira enquanto esta se baseava na negociação entre os polos da ordem e da desordem. A capacidade do malandro para tirar vantagem de determinada situação e a maneira de negociar as diferenças se dava de modo sempre a evitar os conflitos sociais. Em Memórias de um sargento de milícias, Leonardo malandramente consegue sair do polo nãooficial, desordenado, e se integra ao polo da ordem através de casamento e de uma pro29 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 moção que o fez sargento de milícias, conforme identificou Antonio Candido. João Cezar de Castro Rocha (p. 160) recorre ao pensamento de Roberto DaMatta em Carnavais, malandros e heróis, trabalho no qual o autor esquematiza as consequências da “dialética da malandragem”. “DaMatta argumenta que o dilema brasileiro se originou da oscilação entre o mundo das leis universais e do universo das relações pessoais, entre a rígida hierarquia da lei e a branda flexibilidade da vida cotidiana. [...].” (apud DAMATTA, 1990, p. 15). Tanto nos estudos de Antonio Candido quanto nos de Roberto DaMatta, a violência se mantém sob controle justamente por causa da capacidade conciliatória e, nesse sentido, o crítico apresenta a sua hipótese: [...] a ‘dialética da malandragem’ está sendo parcialmente substituída ou, para dizer o mínimo, diretamente desafiada pela ‘dialética da marginalidade’, a qual está principalmente fundada no princípio da superação das desigualdades sociais através do confronto direto em vez da conciliação, através da exposição da violência em vez de sua ocultação. Em outras palavras, estou interessado em identificar as representações culturais e simbólicas desse conflito [...]. [...] a “dialética da marginalidade”, ao contrário, apresenta-se através da exploração e da exacerbação da violência, vista como um modo de repudiar o dilema social brasileiro. [...]. (ROCHA, 2004, p. 161-162, grifo nosso). Essa proposta vai de encontro com Cidade de Deus à medida que a “dialética da marginalidade” promove uma reconfiguração da forma de ver e de representar as desigualdades sociais, mostrando a violência sem expectativa de reconciliação pacífica, ou seja, caracteriza a produção literária feita a partir da margem e pela margem e dá subsídios para compreender a representação da imagem social que a prosa contemporânea constrói e a maneira como ela se relaciona com a violência. Em Cidade de Deus ninguém é confiável, uma vez que o autor iguala malandros, bichos-soltos, trabalhadores e os policiais corruptos em meio à guerra pelo poder no controle do tráfico de drogas e pelos benefícios que essa atividade gera. O que a “dialética da marginalidade” proporciona é a apropriação da imagem coletiva, no caso dos que estão “fora do eixo” na sociedade, imagem esta que será representada no modelo “a vida como ela é”, na intenção que a literatura possa transformar a realidade e projetar a voz do marginalizado, “a fim de articular uma crítica inovadora das raízes da desigualdade social.” (ROCHA, 2004, p. 172). 4. Considerações finais A questão do narrador de Cidade de Deus é complexa (em relação ao filme, por exemplo), porém, é através dele que, na narrativa, a “dialética da marginalidade” se manifesta e fortalece a voz da coletividade que o romance representa. As mudanças ocorridas na vida social brasileira revelam que a exposição da violência é um sintoma do cotidiano e que deve sim ser representado na 30 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 ficção a fim de que a realidade seja transformada e para evitar, por exemplo, que os programas que exploram e banalizam a violência como mercadoria, de forma sensacionalista, impeçam mudanças sociais para manter o discurso excludente em relação à imagem estereotipada do marginalizado. Desse modo, é possível afirmar que Paulo Lins utilizou o material bruto que lhe era próximo e representou no romance sua própria compreensão da sociedade na qual vive. A ideia central que Cidade de Deus problematiza – o tema da exclusão social – é conduzida pelo discurso do narrador, e as soluções para esse problema estão no próprio texto. Ele observa o funcionamento da Cidade de Deus e representa textualmente, conforme já observou Roberto Schwarz, [...] a pressão do perigo e da necessidade a que as personagens estão submetidas. Daí uma espécie de realidade irrecorrível, uma objetividade absurda, decorrência do acossamento, que deixam o juízo moral sem chão. [...]. (SCHWARZ, 1999, p.167). O dinamismo que a narrativa alcança não está restrito à brutalidade das ações, apesar do que, ela deve, sim, ser representada, como tentamos demonstrar aqui. A representação da realidade em Cidade de Deus alerta para um posicionamento do leitor (e da sociedade) menos indiferente em relação à violência urbana, no sentido de que o pobre não é portador de ameaça social, mas sim do acúmulo de injustiças. Essas questões sempre estiveram vivas no cenário nacional, e foram problematizadas no romance. A prosa de Paulo Lins está diretamente ligada com aspectos da realidade e, em consequência disso, produz seu próprio efeito de realidade. 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Desde o emblemático tema “É proibido proibir” ao relevante discurso antibelicista, outro eixo temático entremeou tanto a práxis juvenil quanto as criações estéticas de então: a sexualidade. Largada em terreno marginal, a literatura canônica praticamente só aproveitou-se do tropo sexual em metáforas rebuscadas e em sátiras – ou comédias – despojadas. Conforme demonstrado pelo exemplo da figura de Marquês de Sade, os textos que abordassem tal tema seriam relegados à periferia do cânone – quando mencionados por este. Neste grupo, José Agrippino de Paula, em 1967, publicou seu segundo romance, PanAmérica, empreendendo uma vigorosa crítica à ordem moral vigente. Sendo assim, este artigo visa analisar tal obra em tensão com o cânone, sob o viés do discurso aberto sobre a sexualidade, tendo por base os pensamentos de Santo Agostinho, que permearam o código moral ocidental por séculos, e os de Michel Foucault, que descortinaram a relação que foi criada nesse mesmo código entre o sujeito “anormal” e a sexualidade. Palavras-chave: Sexualidade, transgressão, PanAmérica, cânone. ABSTRACT: Many were the protesting works made by the revolting youth throughout the 60’s. Amongst the moto “It is prohibit to prohibit” and the anti-war discourse, another theme was relevant and central to the young praxis: sexuality. The literary canon only approached the sexual theme in metaphors or in satires – or comedies, leaving the theme to the marginal edge. Texts that approach that topic in a serious way are ignored or left out of the tradition, such as, for example, Sade’s. In this marginal group, José Agrippino de Paula, in 1967, published his second novel, PanAmérica, criticizing the so then morality. This article, then, aims at analyzing that novel dialoguing with the canon, through the theme of the open discourse on sexuality. For that, Santo Agostinho’s, Michel Foucault’s and Giorgio Agamben’s reflections shall be used, in a way to question the relation established between the not normal individual and sexuality. Keywords: Sexuality, transgression, PanAmérica, canon. 1. Introdução: cânone e tradição Como é sabido, o contexto cultural do Brasil em seus séculos de formação foi moldado à luz de preceitos eurocêntricos. Previsivelmente, a tradição judaico-cristã encontrou aqui um espaço bastante frutífero para seu desenvolvimento. Não é a proposta principal do presente trabalho esmiuçar as condições históricas e sociais que favoreceram de várias formas a disseminação do pensamento religioso, nem tampouco a atuação de alguns de seus agentes (tais como os jesuítas). O que deve ser constantemente trazido à baila de discussão é que, de um modo geral, os segmentos sociais mais influentes defendiam uma visão de mundo orientada pela moral judaico-cristã, o que, conse- REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 quentemente, nos conduz ao tema central desse texto: a renúncia total de toda e qualquer forma de prazer a ser obtida através do corpo. Podemos afirmar que o pensamento cristão, de certa forma, exerce um papel na (longa e complexa) formação identitária cultural do Brasil. O projeto civilizatório lusitano, levado a cabo pelas grandes aventuras no mar desconhecido, tinha como grande força-motriz (ou pretexto ideológico) a fé cristã. Já nos diz Camões, em um dos trechos iniciais de Os Lusíadas, sobre a principal missão do povo português com as grandes navegações: “Espalhar a fé e o Império”. Logo, pensar sobre a expansão do império português é, concomitantemente, pensar sobre a expansão do Cristianismo. Deve-se ter em mente, então, que esse ideal missionário universalizante que caracteriza o arcabouço de origem judaico-cristã foi o principal elemento constitutivo da maneira como o português enxergou esta Terra Brasilis. Segundo Sérgio Buarque de Holanda em sua obra Visões do Paraíso, a carta de Pero Vaz de Caminha nos mostra que a maneira como são descritas as terras recém-descobertas remetem ao Jardim do Éden descrito na Bíblia: A terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia parma, muito chã e muito formosa.Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.(...) a terra em si é de muito bons ares, (...)Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Esse olhar, carregado de uma cosmovisão cristã, evidentemente se estende à maneira como o elemento corpo é tratado. O próprio Caminha em sua descrição do povo indígena ressalta o fato de estes não terem vergonha da própria nudez. Era imagem da pureza da nudez que remete à imagem de Adão e Eva antes de provarem da Árvore do Conhecimento. Não deve ser ignorado que Caminha encerra sua emblemática carta afirmando ao Rei D. Manuel que “o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar”. É desnecessário mencionar que essa ideia de salvação está intimamente atrelada à catequese. Durante a Literatura produzida ao longo do período colonial, uma série de cartas e outros documentos escritos por viajantes e jesuítas do século XVI tocam em um tema recorrente: a “degradação moral” em terras brasileiras. O Padre Manoel da Nóbrega, por exemplo, em cartas enviadas a Portugal, se queixa da imensa decadência moral, o desamparo espiritual e, principalmente, a promiscuidade existente entre o português e o índio nas terras brasileiras. Anchieta, outro exemplo de célebre figura religiosa da época, também ecoa essa preocupação com a corrupção moral 34 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 do Paraíso Reencontrado que era o Brasil. A questão da moral cristã, logo, esteve presente na constituição do imaginário cultural desde a época colonial, e se fez presentes de várias formas nos séculos seguintes. Dando um salto temporal do século XVI ao XIX, encontramos profundas heranças desse tipo de pensamento na Literatura produzida no Brasil naquele momento. No contexto pré e pós-independência, vemos que essa abordagem moralizante que, dentre outras visões, condena qualquer forma de prazer obtido através do corpo, é perceptível em diversos aspectos no cânone literário. Uma questão previsível, se levarmos em consideração que as classes sociais de maior prestígio, fomentadoras e consumidoras da produção literária (de inspiração europeia, lembremos), tinham uma visão de mundo tradicional e religiosa. É o caso das classes burguesas, grupos de grande representatividade no século XIX, em sua relação com o ideal romântico. O Romantismo exerceu, como é sabido, um papel central na definição da identidade nacional do país. Em um momento em que o Brasil precisava afirmar-se como Nação, fazia-se necessário que nossa cultura literária fosse reconhecida, ou seja, que fosse considerada análoga à europeia. Essa necessidade urgente de integração ao cânone literário e ao arcabouço teórico/artístico europeu fez com que, paradoxalmente, fosse produzida uma literatura que aspirava ao ente nacional, mas com evidentes inspirações/motivações/questões culturais europeias. Somente a título de exemplificação, citemos um romance romântico que metaforiza a fundação do Brasil: Iracema, de José de Alencar. Na obra em questão, como é sabido, é narrado o amor proibido do português Martim com a índia Iracema (cujo nome é um anagrama para “América”). O caráter de proibição desse relacionamento deve-se ao fato de a índia ser uma sacerdotisa de sua tribo, a “virgem de Tupã”. Logo, ela carregava uma maldição: “O guerreiro que possuísse a virgem de Tupã, morreria” (ALENCAR, 2012, p.18). Vê-se que a personagem-título, uma figura feminina, mesmo sendo uma indígena, carrega consigo a sacralidade tipicamente cristã atrelada ao corpo feminino. A maneira como se dá a perda de sua virgindade é digna de nota: sendo a detentora do “segredo da jurema”, Iracema é aquela que tem a missão sagrada de preparar o licor de Tupã, a bebida que faz com os guerreiros entrem em contato com seus sonhos mais recônditos – ou seja, saindo do plano consciente. Em um determinado momento da obra, a índia, motivada única e exclusivamente pela paixão que a domina, faz com que o branco Martim beba desse licor. Enquanto o branco sonha que estava a concretizar o ato amoroso com a índia, eis que ela se aproveita do momento e se entrega a ele. Deve-se ressaltar que Martim temia que isso ocorresse, pois ele, ainda que cristão, acreditava na “Maldição de Tupã”. Iracema, guiada por sua paixão, a este ponto da obra já havia abandonado a sua tribo, preparado a 35 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 bebida sagrada para alguém que não era de sua tribo e, por fim, entrega sua virgindade sagrada. A descrição alencariana do ato sexual, metaforizada e eufemística, evidentemente, atende aos preceitos estilísticos românticos: A juruti, que divaga pela floresta, ouve o terno arrulho do companheiro; bate as asas, e voa para conchegar-se ao tépido ninho.Assim a virgem do sertão, aninhou-se nos braços do guerreiro. Quando veio a manhã, ainda achou Iracema ali debruçada, qual borboleta que dormiu no seio do formoso cacto. Em seu lindo semblante acendia o pejo vivos rubores; e como entre os arrebóis da manhã cintila o primeiro raio do Sol, em suas faces incendidas rutilava o primeiro sorriso da esposa, aurora de fruído amor. (ALENCAR, 2012, p. 34). Iracema, previsivelmente, sofre a punição: morre, dando à luz Moacir, o “filho do sofrimento”. Podemos afirmar que, no fim das contas, a perspectiva moralizante cristã se faz presente nesta obra, já que a entrega do corpo implicaria a condenação da índia por uma força de natureza metafísica – Tupã, descrito, evidentemente, sob uma ótica que o equipara ao moralizante e vingativo Deus do Velho Testamento. Tal associação não é forçosa se for levado em consideração que, mesmo sendo um romance indianista, o narrador deixa escapar em certos momentos um posicionamento religioso eurocêntrico: “A palavra do Deus verdadeiro germinou na terra selvagem” (Ibidem, p. 72). Há, evidentemente, outros exemplos da Literatura Brasileira que poderiam ser empregados para corroborar essa presença da moral cristã punitiva na abordagem do prazer sexual. Porém, como não é este o foco do trabalho, o que deve ser mantido em mente é que ao longo da constituição da Literatura e da Identidade brasileira, essa herança ideológica judaico-cristã se fez presente – até o momento em que começou a ser desconstruída. Dentre os diversos críticos brasileiros que analisaram essa complexa relação de poder encontra-se Luiz Costa Lima, o qual em sua obra Dispersa Demanda, afirma o seguinte: (...) o intelectual oitocentista brasileiro se contentava em estar em dia, na medida do possível, com as novidades europeias, adquirindo ou perdendo prestígio na proporção em que divulgava ou não as ideias lá dominantes. (...) A capacidade de se integrar, de conseguir ser aceito sem pagar o preço da superficialidade e do inacabamento foi privilégio de um Machado, que dava piparotes tão polidos em seu leitor que ele antes louvava a fluência castiça de seu estilo. (LIMA, 1981, p. 10). Não se pretende, aqui, dizer que toda a produção literária brasileira foi mera cópia da produção europeia. Tal pensamento cairia em erro limitador. Apenas que, enquanto polo imperialista, a Europa detinha as, digamos, regras do jogo. Não apenas o como se fazer, mas, igualmente, a maneira pela qual se formam as instituições legitimadoras para manter esse esquema. Citando o pesquisador Alastair Fowler em um texto já clássico, um dos seis tipos de cânone que ele estabelece 36 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 é justamente o oficial, resultante da mescla de um recorte de toda a produção literária com o que resulta das antologias, estudos e resenhas (FOWLER, 1988). Resulta daí que o cânone se faz em tradição não apenas por escolha de seu público leitor, mas principalmente por escolha daqueles que foram legitimados a essa função: a Academia, a Universidade e os outros escritores em hipertextos e intertextualidade incessante. Contudo, faz igualmente parte do cânone a ideia de ruptura, conforme a pesquisadora Regina Zilberman afirmou em texto analítico do período Modernista da nossa literatura: Com efeito, o Modernismo é o berço da noção mesma de cânone, porque, ao contestar a ordem vigente, ele estabelece como regra o princípio da contradição, desde o qual o cânone se constitui. Assim, é preciso haver um preceito dominante, para cada autor desconstruí-lo, processo desde o qual se estabelece a proposta da história da literatura enquanto transformação e mudança. Harold Bloom, em obra clássica, chama isso de angústia da influência, segundo a qual as criações mais inovadoras começam pelo desejo simultâneo, nutrido pelo artista, de ruptura e emulação do escritor que ele admira. Esse processo é vivido de modo ambíguo, porque, tal como no caso de Édipo, o artista busca a sua própria identidade, mas, ao mesmo tempo, não consegue fugir à atração exercida pela obra de um grande mestre, que ele precisa de certo modo “assassinar”. (ZILBERMAN, 2001, p. 38). Dentre as várias obras transgressoras do século XX, este artigo pretende focar no romance PanAmérica, de José Agrippino de Paula, inserindo-o neste debate entre a ruptura e o cânone, através da análise do leitmotif do corpo, cuja representação canônica da nossa literatura foi sumariamente apresentado anteriormente. A partir do contraponto com a moralidade da modernidade ocidental, oriunda do pensamento de cunho religioso de Santo Agostinho, será estabelecido um paralelo de transgressão entre essa moral vigente e a obra de Agrippino de Paula. 2. Sexualidade: a moral vigente Giorgio Agamben (2007), filósofo contemporâneo italiano, em obra dedicada ao profano – artístico, filosófico e social –, assim descreve o sagrado na época áurea da Antiga Roma: Sagradas ou religiosas eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses. Como tais, elas eram subtraídas ao livre uso e ao comércio dos homens, não podiam ser vendidas nem dadas como fiança, nem cedidas em usufruto ou gravadas de servidão. (AGAMBEN, 2007, p. 65). Para o ser humano comum, a existência cotidiana ocorria sempre em relação à esfera divina. As histórias contadas no seio familiar, os exemplos dados ao longo dos estudos, as representações artísticas, mesmo objetos do dia-a-dia de alguma forma estavam em tensão constante com o transcendental. O homem tinha sempre a esfera superior, intocável, para se lembrar de sua condição mundana. E limites religiosos eram impostos, quiçá desde o início dos tempos, sobre as ações hu37 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 manas. Ora, tais delimitações mostravam-se como importantíssimas, já que a religião seria uma forma de agir, mais até do que uma forma de pensar, conforme defende a ex-freira Karen Armstrong: “(...) religião não é, essencialmente, algo que se pensa, mas algo que se faz. Chega-se a sua verdade por meio de atos concretos.” (ARMSTRONG, 2011, p. 12). A autora, ao longo de seus estudos, percebeu o caráter prático e ético da religião: guiar o ser humano em sua via crucis diária. Assim, a religião seria, enquanto atividade, uma rota de fuga dos problemas materiais, assim como uma crítica construtiva ao comportamento humano que o levasse a uma postura mais ética, preocupação concomitante aos filósofos antigos. Por outro lado, as esferas do mundano e do transcendental possuíam limites rigidamente demarcados, de forma a estabelecer uma liturgia primitiva, isto é, rituais que auxiliassem o homem nessa sua travessia existencial por entre os signos míticos (ARMSTRONG, 2011, p. 12). Sendo a esfera do sagrado aquela que envolvia o que pertencia aos deuses, logo cabia ao homem a esfera do profano, que ocorria quando trazia-se algo da esfera divina para a esfera humana. Retomando, assim, Agamben: Sacrílego era todo ato que violasse ou transgredisse essa sua especial indisponibilidade, que as reservava exclusivamente aos deuses celestes (nesse caso eram denominadas propriamente “sagradas”) ou infernais (nesse caso eram simplesmente chamadas “religiosas”). (AGAMBEN, 2007, p. 65). Desta maneira, o filósofo italiano define religião como sendo “aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfera separada” (AGAMBEN, 2007, p. 65.). Sendo a religião uma prática diária, visando uma mudança mental e espiritual, e sendo o mito narrado e os rituais exercidos valiosos instrumentos nessa mudança, resta indagar qual a intenção disso tudo. Ora, a pesquisadora e ex-freira responde: “revelar algo profundamente verdadeiro acerca da humanidade”, isto é, “como levar uma vida mais rica e intensa, como lidar com a mortalidade e como suportar o inevitável sofrimento da carne” (ARMSTRONG, 2011, p. 12). A conexão entre o pós-morte, no caso da religião cristã uma nova existência que ocorre em um plano extramaterial por vir, o sofrimento carnal e a riqueza da vida são o cerne temático de toda uma discussão teológica que remonta aos primórdios da fé humana. Conforme foi dito anteriormente, a religião seria uma forma de manter o homem no caminho do Bem, como uma práxis: uma decisão diária sobre as ações. A religião está além do pensamento, centrada na ação humana. Ao aliar o extramundano à riqueza de vida e fazendo com que esta ocorra em consequência de uma vida sem excessos, sem pecados, sem caídas em tentações, o discurso religioso, de uma certa maneira, está digladiando-se com o corpo, os instintos naturais e os desejos do homem. Uma das mais importantes vozes na longa tradição teológica da religião católica, que foi 38 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 predominante no Ocidente – e em partes do Oriente – por praticamente dois milênios, foi Santo Agostinho (2011). Em sua obra Confissões, o filósofo-teólogo estabelece a seguinte relação entre as coisas de Deus, sagradas, e as profanas: A vida neste mundo seduz por sua própria beleza e pela harmonia que mantém com todas as pequenas coisas belas que nos cercam. (...) Mas se desejamos todos esses bens imoderadamente e por eles mesmos, bens inferiores que são, e abandonamos os bens superiores como és tu, Senhor nosso Deus, a tua verdade e a tua lei, então cometemos pecado. Na verdade, esses bens inferiores também satisfazem, mas não como satisfaz o meu Deus, que tudo criou (...) (AGOSTINHO, 2011, p. 57). Neste caso, pecaminoso seria o caminhar fora da estrada que leva a Deus. Estabelece-se no trecho a importância dos bens divinos e a felicidade que advém desses, por serem verdadeiros. Colocam-se em tensão a verdade extramaterial e a falsidade do mundano. A satisfação por conta do profano, existente e importante ao longo da aventura humana, deveria ser repensada, de forma que o homem deveria se convencer de que os bens de Deus valeriam mais. Agostinho parte do mito do Gênese bíblico para elaborar essa sua visão de religião, uma vez que lá textualmente o homem é expulso do paraíso, a “Terra do Prazer”, de acordo com Karen Armstrong (2011, p. 44). Na terra, o homem passou a experimentar os sofrimentos da carne: a dor, a fadiga, a fome por conta do trabalho; o impulso sexual para a procriação por conta da vivência limitada, etc. Porém, o Gênese, anteriormente a Agostinho, era entendido como uma representação do homem. Como mito, portanto: uma narrativa metafórica, um símbolo que transcendia palavras – as quais nunca dariam conta de seu amplo e profundo significado. Afinal, “o conhecimento da dor e a consciência do desejo e da mortalidade são componentes inevitáveis da experiência humana” (ARMSTRONG, 2011, p. 45). A visão de Agostinho tornou o mito em “História”: um relato factual. “Trata-se, porém”, afirma Armstrong, “de uma interpretação exclusivamente cristã, proposta de maneira controversa por santo Agostinho de Hipona no início do século V” (ARMSTRONG, 2011, p. 45). A tradição religiosa inicia, então, seu discurso moralista dogmático a partir desse pensador, para quem a existência humana é um poço de tentações profanas: “Quem poderá negar que a vida humana sobre a terra seja uma tentação sem tréguas?” (AGOSTINHO, 2011, p. 300). A partir de então, o pensamento religioso em geral e bíblico em particular torna-se um modelo de conduta. Tal pensamento enraizou no senso comum e, mesmo, na ética ocidental1. Culturalmente, o homem centrado, correto e desejoso de viver em harmonia com os próximos, fazendo o 1 Por conta do espaço reduzido deste artigo, não se pode abordar um dos pensadores mais importantes no campo da moral ocidental, o filósofo alemão Kant. Porém, cabe ressaltar a proximidade do seu conceito moral mais importante, o imperativo categórico, com o pensamento religioso “Faça ao próximo o que queres que façam contigo”: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.”. (KANT, 2007, p. 59) 39 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 bem, passou, aos seus próximos, preceitos permeados do pensamento moral agostiniano. Assim, a literatura que não focasse nos homens santos ou abençoados pelo Divino era vista como viciada ou profana, conforme a crítica que esse pensador teceu às narrativas homéricas, que não centravam em homens-modelo, catolicamente dizendo: Mas seria mais exato dizer que Homero, inventando tais coisas, atribuía qualidades divinas a homens viciados, a fim de que os vícios não fossem considerados como tais, e quem os comete pareça imitar, não homens corruptos, mas divindades celestes. (AGOSTINHO, 2011, p. 40). Na reflexão moral agostiniana, a Literatura passa a ter poderes subversivos. Ela pode incitar o bem como pode, é claro, incitar o mal. Defende-se, assim, que aquilo que é humano, corporal, material e/ou instintivo simboliza vícios não desejosos pelo homem de bem, que deseja aproximar-se do ser superior. Afinal, a “nostalgia do paraíso perdido”, pontua Armstrong, relaciona-se justamente com a “sensação do afastamento da plenitude do ser [imaterial e transcendente]” (ARMSTRONG, 2011, p. 45). Agostinho não apenas acreditava no poder subversivo da Literatura, como sabia que a tradição literária levava a uma vontade de ser como os mestres. Na sua época, o conceito de imitatio ainda não estava formulado explicitamente, porém a leitura ou exposição sistemática às obras dos mestres profanadores era regra do dia. Por isso, Agostinho critica as obras antigas e a tradição artística que as engloba. O problema para ele não são as palavras em si, uma vez que estas podem ser rearranjadas, mas sim o poder da tradição que confere status aos gênios primevos: “Não acuso as palavras, que são como vasos eleitos e preciosos, mas o vinho do erro que aí nos era apresentado por mestres ébrios, e que devíamos sorver (...)” (AGOSTINHO, 2011, p. 41). Cabe ressaltar que data de quase um milênio antes desse pensador o início de toda uma discussão sobre a poesia, a qual cria em cima de representações “de segunda mão”, e sobre seu poder de agradar aos seus receptores de maneira tal que os desvirtua do caminho do bem. Porém, cada grupamento humano possui uma visão de si e é inerente ao homem produzir esteticamente. Assim, remetendo à pesquisadora Regina Zilberman: Cada nação formula uma imagem de si mesma, mas sua carnadura provém dos textos literários. Eles se tornam canônicos, quando respondem positivamente a esse desiderato ideológico, amarrando as pontas da construção social, para criar a impressão de unidade. (ZILBERMAN, 2001, p. 37). O cânone literário, assim, vai se formando ao longo das gerações, as quais encontram nas obras anteriores um determinado tipo de discurso ideológico que acreditam representativo. Agostinho, deste modo, percebe já no século V d.C. que uma tradição literária, ao eleger seus representantes maiores, pode vir a ser perigosa – sob este viés moral. Ele tece, então, sua crítica a esse 40 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 movimento intrínseco à Literatura: a de produzir a legitimidade de sua origem e de sua herança. O pesquisador brasileiro Luiz Costa Lima (1991), debatendo sobre o grande momento de ruptura com a tradição, o movimento Modernista, acaba tocando igualmente neste ponto, ao afirmar o seguinte: O Manifesto Antropófago e Le Collège de Sociologie, na verdade, como inúmeros outros movimentos e autores contemporâneos, começam a considerar a ruptura, a descontinuidade, não só como ferramenta mental e uma categoria intelectual, mas também como uma exigência histórica. Desde esse ponto, a tradição pode significar duas coisas distintas: ou uma transmissão regular de valores ou o contato problemático com um solo rugoso. A partir de então, essas duas maneiras de experimentar a tradição emblematizarão, respectivamente, o pensamento conservador e o transformador. A opção de Oswald e Bataille é indiscutível (LIMA, 1991, p. 67). Costa Lima pontua, assim, que no século XX a tradição se fará também com o que se produz contra ela, em uma dicotomia conservadorismo-transformação, centro das revoltas artísticas da contracultura da década de 1960, na qual José Agrippino de Paula se insere. Embora não haja espaço aqui neste artigo para indagar a forma de eleição da tradição literária, pode-se, ao menos, apontar que se tem teorizado tanto com enfoque no lado dos escritores, através da intertextualidade, quanto no lado dos leitores, através da recepção estética da obra. Quanto a esta última, pode-se destacar o movimento juvenil massivo nas ruas da tumultuada década de 1960 no Brasil, principalmente pós-golpe. Espetáculos teatrais, shows, happenings, exposições, festivais musicais, saraus literários. Na segunda metade da década, o Brasil testemunhou a proliferação de produções artísticas engajadas politicamente, dentre as quais Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves destacam o musical Opinião, de Zé-Keti e João do Valle. Ela afirma o seguinte acerca dessa criação emblemática: Mas, em que pesem os limites dessas concepções, Opinião revelou-se um espetáculo extremamente oportuno. Reunindo um publico jovem, o show parecia interpretar o sentimento de toda uma geração de intelectuais, artistas e estudantes naqueles dias em que a realidade do poder militar configurava-se como um fantasma no imaginário da revolução brasileira. Para espantá-lo, surgia um novo imperativo: falar, cantar, manifestar. Tratava-se de expressar, contra o autoritarismo que subia ao poder, a determinação, a denúncia e ao enfrentamento. (HOLLANDA & GONÇALVES, 1999, p. 23). Tal enfrentamento, sentido nas ruas pelas massas em discurso antibelicista nos EUA ou em discurso antiautoritarismo no Brasil, não se endereçada apenas às questões políticas da época, mas, sobretudo, a uma questão em particular, que permeia tanto a política quanto os produtos culturais: a linguagem. Em outros termos, a linguagem do discurso e a liberdade deste. Foi destacado anteriormente que a tradição literária poderia ser considerada, sob o viés agostiniano, como nociva à sociedade, por ter a possibilidade de eleger como obras-primas aquelas 41 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 que levassem a uma vida hedonista, regrada nos pecados carnais. A preocupação com esta possibilidade levou o cânone a constituir-se de obras “sérias”, como a alta poesia – a épica, por exemplo – e os romances. Estas obras não davam espaço a todos os discursos da comunidade humana. Pelo contrário, muitos foram os discursos limados do centro da produção estética. Houve uma preocupação em eleger apenas os discursos normatizadores, disciplinadores, para conferir um ar de homogeneidade inexistente na fauna humana. O pesquisador Emerson Inácio tece as seguintes ponderações sobre o assunto: Explico: para a crítica literária sedimentada a aproximação entre o que está no intervalo eminentemente estético e aquilo que está no que comumente chamamos cultura, parece pouco provável ou até mesmo desaconselhável. Infere-se disso que ou a Literatura mimetiza o que lhe interessa da realidade empírica, elegendo os grandes temas em detrimento do que é desprovido de defesa e exprimido nas margens, ou ainda se crê que ela deva cumprir uma função formadora de homens e mulheres de bem e reparadora de caracteres resistentes à varinha do cânone. (INÁCIO, 2011, p. 100). Pode-se apreender disso que a tradição da literatura ganhou uma função perigosa de moderadora discursiva, preocupada com o caráter moralizante da linguagem, e que acaba por causar uma censura dos excluídos da sociedade, isto é, dos marginalizados. Dentro desse escopo, obviamente, encontram-se todos aqueles que praticam atividades ou possuem desejos sexuais díspares do que foi aceito pela norma ideológico-moral religiosa. Michel Foucault (2001) dedicou alguns anos aos estudos sobre as origens do problema da sexualidade: seu silenciamento, sua limitadora castração e sua nãoaceitação nas normas disciplinares. Uma hegemonia moral acaba por causar uma séria marginalização dos discursos plurais da sexualidade humana. Se Agostinho filosoficamente demonstrou a tênue relação de os desejos carnais e as sensações de uma forma geral com o pecado e os bens inferiores, Foucault preocupa-se em perceber como esse pensamento enraizado na Modernidade adentrou o terreno da legislação e da jurisprudência. Em outras palavras, como o discurso moral anti-hedonista causou a marginalização legislativa da Justiça europeia moderna. Ao longo de seus estudos, o filósofo francês chegou ao fenômeno oitocentista de preocupação exacerbada com a vida sexual das crianças e dos adolescentes, a qual foi posta sob vigilância dos pais. Afirma, pois, o filósofo: Parece-me pois que a sexualidade da criança e do adolescente é posta como problema no decorrer do século XVIII. Essa sexualidade é posta inicialmente sob sua forma não relacional, isto é, é posto em primeiro lugar o problema do auto-erotismo e da masturbação; masturbação que é perseguida, masturbação que é valorizada como um perigo maior. A partir desse momento, os corpos, os gestos, as atitudes, as caras, os traços da fisionomia, as camas, os lençóis, as manchas, tudo isso é posto sob vigilância. Os pais são convocados a partir à caça dos cheiros, dos vestígios, dos indícios. Acho que é aí que temos a instauração, o 42 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 estabelecimento de uma das novas formas de relação entre pais e filhos: começa urna espécie de grande corpo-a-corpo pais-filhos, que me parece característico da situação não de toda família, mas de certa forma de família na época moderna. (FOUCAULT, 2001, p. 335). Percebe-se, pela exposição longa do pensador, que ocorre um aumento de biopoder por parte dos pais, os quais são levados pelas instituições sociais, como a Igreja de um lado e a Escola de outro, a controlar o corpo dos filhos, de forma a coibir a entrega destes a suas vontades mais íntimas. O filósofo continua, afirmando que ocorre aí “a instauração de um medo em torno desse corpo e de um medo em torno da sexualidade enquanto detentora dos perigos corridos pela criança e pelo corpo da criança” (FOUCAULT, 2001, p. 337). Tais perigos, esmiúça Foucault em seus estudos, são descritos como sendo uma das três características basilares que, acreditava-se, poderiam levar a criança ou adolescente a tornar-se um criminoso, foco central desse curso dele, intitulado na edição livresca Os Anormais. Os desejos sexuais, conforme passou a ser discutido abertamente ao longo do século XX, são inerentes ao ser humano. Porém, ainda no século XVIII, preocupavam os representantes da ordem vigente, de forma a declararem tal guerra às atitudes íntimas dos infantes. Disso resulta uma aniquilação da intimidade, um esfacelamento da distância que existia até então entre os pais e os filhos, além da criação mesma da célula familiar quadrangular pais-filhos, dentre outros resultados: [as] culpabilização e responsabilização simultâneas dos pais e dos filhos em torno desse corpo mesmo, arranjo de uma proximidade obrigatória, estatutária, dos pais e dos filhos; logo organização de um espaço familiar restrito e denso; infiltração da sexualidade através de todo esse espaço e investimento desse espaço por controles ou, em todo caso, por uma racionalidade médica. Parece-me que é em torno de todos esses processos e a partir do encadeamento circular desses diferentes elementos que se cristaliza finalmente a família conjugal, a família restrita, a família quadrangular pais-filhos, que caracteriza pelo menos uma parte da nossa sociedade. (FOUCAULT, 2001, p. 337). Tendo-se por base tal pensamento belicoso, com o advento da teoria do desejo incestuoso, a situação só tenderia por piorar. Contudo, as instituições legitimadoras do saber estabeleceram que o desejo incestuoso da criança pelos pais não seria culpa destes últimos. Estes, ao contrário, seriam des-culpados pelo discurso moral (ainda hoje) vigente: Eis que, ao cabo de um século, desculpam os pais precisamente da culpa que, no limite, eles teriam podido sentir por descobrir assim o corpo desejante de seus filhos, e lhes dizem: não se incomodes, não são vocês que são incestuosos. O incesto não vai de vocês a eles, da indiscrição de vocês, da curiosidade de vocês pelo corpo deles que vocês desnudaram, é o contrário: é deles a vocês que vai o incesto, pois são eles que começam, desde a origem, a desejar vocês. Por conseguinte, no mesmo momento em que se satura etiologicamente a relação incestuosa filhos-pais, desculpa-se moralmente os pais pela indiscrição, pelo procedimento, pela aproximação incestuosa a que haviam sido obrigados por mais de um século. Logo, primeiro benefício moral, que torna aceitável a teoria psicanalítica do incesto. (FOUCAULT, 2001, p. 339). 43 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Após a descoberta do desejo incestuoso e da conseguinte retirada de culpa da parte dos pais, o pensamento moral estaria pronto para a visão psicanalítica sobre essa situação – embora, ainda assim, ela tenha sido chocante em seu início. O tabu do sexo dentro de casa estaria minimamente controlado nesse ponto. O problema, então, é que essa des-culpabilização e esse reposionamento dos pais na hierarquia sexual familiar levaram, desta maneira, à posse do corpo da criança, enquanto polo de sensações e de desejos sexuais: Em segundo lugar, vocês estão vendo que, no fundo, dá-se aos pais uma garantia suplementar, já que dizem a eles não apenas que o corpo sexual de seus filhos lhes pertence de direito, que eles têm de zelar por ele, que têm de vigiá-lo, de controlá-lo, de surpreendê-lo, mas também que ele lhes pertence num nível ainda mais profundo, já que o desejo dos filhos é dirigido a eles, pais. Nessa medida, não é apenas, de certa forma, a posse material do corpo da criança, de que eles são senhores, mas, ainda por cima, do próprio desejo de que eles se veem dispor pelo fato de que é a eles que esse desejo é dirigido (FOUCAULT, 2001, p. 340). Destarte, com esse discurso sobre o incesto como proveniente da criança, reforçava-se o ponto central da dinâmica de poder intrafamiliar: o controle sobre o corpo da criança, não só pelos pais, mas pela ciência ou, em outros termos, pelo saber. Com isso, “reforçava-se a urgência de uma intervenção exterior, de uma espécie de elemento mediador, ao mesmo tempo para analisar, controlar e corrigir”, de forma que “garantia-se, melhor ainda, a ligação da família ao poder médico” (FOUCAULT, 2011, p. 340). Desta maneira, a medicina, campo respeitado do saber tanto no meio acadêmico quanto nas ruas, inseriu-se na relação de poder domiciliar, como que doutrinando os pais a agir corretamente para com sua prole, adentrando e violentando, desta maneira, a liberdade de criação que por ventura os pais poderiam ter sobre os filhos. Mais ainda, a medicina, através do estudo sobre o desejo incestuoso e a relação deste com a figura dos pais ainda confere a estes uma nova posição de controle de biopoder: eles são o fruto do desejo filial, o motivo pelo qual essas crianças se excitam sexualmente: Em linhas gerais, trata-se (...) de uma espécie de formidável gratificação para os pais, que doravante se sabem objeto de um desejo louco e que, ao mesmo tempo, descobrem, por essa teoria mesma, que eles podem ser sujeitos de um saber racional sobre suas relações com os filhos: o que a criança deseja (...), eu sei de um saber científico autenticado, já que é um saber médico. Sou portanto sujeito do saber e, ao mesmo tempo, objeto desse desejo louco. (FOUCAULT, 2001, p. 341). Essa campanha antimasturbação que acaba por envolver todo o corpo da criança e do adolescente no domínio bélico-moral da família voltava-se àquela célula familiar que era doutrinada na escola, na Igreja, nos hospitais/consultórios médicos; àquela, pois, a que o Estado chegava. Ou44 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 tro discurso, embora igualmente dominador e castrador, focava a família popular, aquela excluída do centro político, social e econômico das comunidades capitalistas modernas: A cruzada antimasturbação (...) se dirige quase exclusivamente à família burguesa. Ora, na época em que a cruzada antimasturbação estava no auge, desenvolvia-se ao lado dela, mas sem relação direta, outra campanha que se dirigia à família popular ou, mais precisamente, à família do proletariado urbano que se constituía. (...) A campanha diz simplesmente: ‘Casem-se, e não façam filhos antes, para abandoná-los depois.’ É toda uma campanha contra a união livre, contra o concubinato, contra a fluidez extra ou para-familiar. (FOUCAULT, 2001, p. 341-2). Mesmo posteriormente, quando se necessitava que a classe operária, que vivia na fluidez das trocas de emprego, mantivesse-se em um mesmo lugar, o discurso doutrinário e dominante sobre a sexualidade intrafamiliar continuava o mesmo, especialmente na separação dos corpos dentro da casa: “campanha contra os quartos comuns, contra as camas comuns de pais e filhos, contra as camas comuns para crianças ‘de sexo diferente’. No limite, o ideal é uma cama por pessoa”. Em outros termos: “Logo, nada de corpo-a-corpo, nada de contatos, nada de misturas”. Acreditando-se no teor sexual dos desejos mais íntimos dos menores de idade, tomou-se cuidado extrapolado com a possibilidade de incesto. “Não é mais o perigo do incesto, que viria dos filhos e cujo perigo é formulado pela psicanálise. É o perigo do incesto irmão-irmã; é o perigo do incesto pai-filha”. Por conta disso, tem-se que o “essencial é evitar que do ascendente ao descendente, ou do mais velho ao mais moço, se estabeleça uma promiscuidade que seria responsável por um possível incesto” (FOUCAULT, 2001, p. 344). O biocontrole, presente em um primeiro momento na ideologia moral vigente pelos últimos séculos, agora adentrou finalmente a região mais íntima politicamente falando: o domicílio do cidadão comum, tanto foco central da comunidade quanto aquele relegado à periferia desta. Para evitar o incesto, então, a doutrinação precisa do saber legitimado. Aqui entra em campo ainda mais explicitamente a psiquiatria, como aponta Foucault: Da pequena soberania da família à forma geral e solene da lei, a psiquiatria aparece agora, deve aparecer e deve funcionar como uma tecnologia do indivíduo que será indispensável ao funcionamento dos principais mecanismos de poder. Ela vai ser um dos operadores internos que vamos encontrar indiferentemente ou comumente em dispositivos de poder tão diferentes quanto a família e o sistema judiciário, na relação pais-filhos ou ainda na relação Estado-indivíduo, na gestão dos conflitos intrafamiliares assim como no controle ou na análise das infrações às proibições da lei. Tecnologia geral dos indivíduos que vamos encontrar afinal onde quer que haja poder: família, escola, fábrica, tribunal, prisão etc. (FOUCAULT, 2001, p. 350-1). Para este artigo, cabe ressaltar o papel da psiquiatria como sintomatologia do poder exercido sobre a sexualidade. Institucionalmente aceita, a psiquiatria ao longo do século XVIII, após 45 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 avanços nas investigações sobre a loucura e a criminalidade (FOUCAULT, 2001, p. 349-50), alargou seu poder para sobre o seio familiar. Foucault, nesse curso, persegue a genealogia do criminoso, percebendo que além do indivíduo louco, o desajustado psicótico também é oriundo do adolescente masturbador. Sendo assim, parte da função da psiquiatria era que “ela terá de mostrar o jogo entrecruzado do instinto e da sexualidade, no limite o jogo do instinto sexual como elemento de formação de todas as doenças mentais e, mais geralmente ainda, de todas as desordens de comportamento” (FOUCAULT, 2001, p. 351). Interessa-nos, portanto, deixar claro como socialmente foise criado o tabu sobre o sexo que foi largamente criticado durante toda a década de 1960, em geral, e em PanAmérica, em particular. 3. Panamérica e a sexualidade Por um lado, o tabu domiciliar do sexo, por medo do incesto. Por outro, o ideário moralista das religiões cristãs. Ambos resultam em um biocontrole por sobre os indivíduos, desde os mais jovens até os mais avançados etariamente. A cultura, dentro da qual encontra-se a Literatura, tem como função, também, demonstrar seu recorte histórico, social, ideológico e político. Neste âmbito, a tradição literária tem sempre contra si o advento dos escritores mais originais e transgressores. Estes abalam as estruturas limitadoras dos gêneros e do escopo temático aceito. É um alargamento de limites, conforme defende Foucault, em célebre texto homenageando Bataille: A transgressão é um gesto relativo ao limite; é aí, na tênue espessura da linha, que se manifesta o fulgor de sua passagem, mas talvez também sua trajetória na totalidade, sua própria origem. A linha que ela cruza poderia também ser todo o seu espaço. O jogo dos limites e da transgressão parece ser regido por uma obstinação simples; a transgressão transpõe e não cessa de recomeçar a transpor uma linha que, atrás dela, imediatamente se fecha de novo em um movimento de tênue memória, recuando então novamente para o horizonte do intransponível. Mas esse jogo vai além de colocar em ação tais elementos; ele os situa em uma incerteza, em certezas logo invertidas nas quais o pensamento rapidamente se embaraça por querer apreende-las. (FOUCAULT, 2009a, p. 32). A incerteza existe dentro do jogo do conservadorismo e do tradicionalismo, de forma que o que se considera em dado momento como ruptura acaba, tempos depois, tornando-se parte do bloco tradicionalista. A transgressão é sempre um momento presente, novo, neste sentido: ela rompe com algo e alarga seus limites, acaba por ser inserida no discurso tradicionalista, perdendo seu caráter transgressor quando visto sob a ótica diacrônica, até que uma nova transgressão surge. A arte tem essa função transgressora e alguns de seus maiores expoentes chegam a transgredir o tradicionalmente aceito com uma violência tal que são relegados ao ostracismo por anos, décadas ou, mesmo, séculos. Se Qorpo-Santo e Sousândrade valeriam como exemplos seculares, há, mais recentemente, o caso PanAmérica. Embora publicado em 1967, as poucas obras acadêmicas que o pes46 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 quisaram revela seu teor vanguardista de transgressão, mesmo numa década conhecida pela ruptura. Como o tabu sexual manteve-se do seio familiar ao discurso literário canônico, ele acabou por se tornar um eixo temático importantíssimo para a obra em questão. O corpo ressurge com força promíscua e sensorial nesta obra. Promíscua pela questão abertamente sexual: a liberdade carnal, pecaminosa, libidinosa, em termos e em descrições tórridas e viscerais. Sensorial pela questão do toque, importantíssimo para a década. Evelina Hoisel, a primeira pesquisadora a estudar PanAmérica, remete a Lígia Clark, expoente artística da década de 1960, quando esta fala que sua arte tem por função fazer com que o espectador a experiencie sensorialmente através do tato (HOISEL, 1980, p. 35). Por um lado, Santo Agostinho clamava a Deus para livrá-lo dos desejos carnais, conforme o trecho abaixo evidencia: Ó Senhor, multiplica cada vez mais teus dons sobre mim, a fim de que a minha alma, liberta dos laços da concupiscência, siga para junto de ti, que minha alma não se revolte contra si mesma. Que ela no sono, estimulada por baixas imaginações que desenfreiam os instintos carnais, não cometa certas obscenidades, e, muito menos venha a consentir nelas. (AGOSTINHO, 2011, p. 302). Por outro, o corpo entra em festa em PanAmérica: Eu e ela estávamos ali encostados na parede. Ela estava em silêncio e eu estava em silêncio. Eu sentia o corpo dela junto ao meu, os dois seios, o ventre, as pernas, e os seus braços em envolviam. Eu pensei que ela deveria sentir o calor que eu estava sentindo. Nós dois estávamos imóveis encostados à parede, eu não me recordo quanto tempo, mas nós estávamos abraçados e encostados ali há muito tempo. Eu não me recordava se eram horas, dias, meses. (PAULA, 2001, p. 61). O corpo de Marilyn Monroe encontra-se, nesse trecho, totalmente presente na sensação aguçada do narrador. Mais do que visualmente, o narrador reconhece-a através do tato e, por conta disso, da sensação do encostar intercorpóreo. Essa sensação explode e subverte a passagem do tempo: os dois deixam de ser indivíduos perfeitamente inseridos em um contexto sócio-políticohistórico e passam a existir enquanto comunhão carnal em um contexto puramente estético. Duas páginas e uma tórrida relação sexual depois, o narrador descreve-os desta maneira: Eu tocava o corpo dela de leve com meu corpo e ela tocava de leve o meu corpo com o corpo dela. Nós permanecemos nessa oscilação e toques leves durante longo tempo. Marilyn Monroe tocava as pontas dos seios no meu peito e eu segurava de leve a sua barriga e acariciava os pelos dela com os dedos. (...) Nós permanecemos nesse toque mútuo longo tempo [sic] enquanto eu ouvia a sua respiração leve e ritmada. (PAULA, 2011, p. 63-64). Percebe-se, pois, que o tato não provém apenas dos dedos: a sensação corpórea é oriunda de todo o corpo. Isso é sintomático para a obra enquanto expressão máxima estética: o corpo pulsa nas páginas de PanAmérica inicialmente enquanto polo de sensações, ou seja, além de mero 47 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 instrumento: ele é um fim em si mesmo. Posteriormente, o narrador descreve uma cena em que passa óleo de bronzear no corpo da atriz, novamente subvertendo o tempo: sua existência delimita-se no sentir do corpo dela. Pode-se dizer, assim, que sua existência tem por limite máximo os contornos do corpo que deseja sexualmente. Valendo-se de uma linguagem não muito vanguardista nesse ponto, o narrador obtém um resultado emblemático: através de frases simples e de uma narrativa de características tradicionalistas até, ele penetra com o texto o tabu sexual da sociedade moralista de então. Esses desejos sexuais, quase “comportados”, explodem em transgressão em outros pontos da obra, dos quais destaca-se o trecho abaixo: Eu e ela deitamos no chão vestidos e nos agarramos um ao outro excitados. Eu via o rosto dela avermelhado nas faces, e na fronte pequenas gotículas de suor. De instante a instante eu ela fechávamos os olhos e nos beijávamos. (...) Eu subi sobre o corpo dela e eu ela estávamos vestidos. Eu introduzi as mãos sob o vestido e retirei a calcinha (...). Eu voltei a subir sobre o corpo dela e nós nos mantivemos esfregando um corpo ao outro. (...) Eu via o sexo dela úmido e semiaberto para mim. Eu aproximei a boca do pequeno lábio vermelho e úmido e beijei introduzindo a língua. Marilyn tremeu, soltou um gemido e girou o corpo bruscamente. (PAULA, 2011, p. 151). Se Eça de Queirós popularizou as “cenas de alcova”, colando no seu fio narrativo situações íntimas do ser humano – mas com uma temática testemunhal do que seria considerado um desvio animalesco da ordem sexual –, Agrippino de Paula, por outro lado, traz para primeiro plano o intercurso sexual. Inicialmente, deve-se destacar que a cena inicia-se dentro de uma sala de cinema. Marilyn encontra-se na cadeira da frente e o narrador na de trás, posições já simbólicas de um ponto de vista sexualmente transgressor. Eles logo se atracam conforme demonstrado no trecho. A sala mostra-se desimportante: havendo pessoas lá ou não, os dois são “sequestrados” pelo desejo, quase remetendo aos medos agostinianos. Essa volúpia de fato os cega para o mundo: eles deixam novamente de existir dentro do contexto em que estavam inseridos para tornar a existir enquanto um só, em um enlace carnal simbolizado pela construção pronominal “eu ela” na terceira linha da citação. Destaca-se igualmente a parca presença de vírgulas: o desejo atropela inclusive as regras formais da linguagem. A transgressão agrippineana neste romance não tem por objetivo a anulação da existência social de então, mas, sim, uma contestação dos tabus e da ordem moralista vigente, esvaziando o seu ser para, lá, no vazio existencial, criar-se de novo: A contestação não é o esforço do pensamento para negar existências ou valores, é o gesto que reconduz cada um deles aos seus limites, e por aí ao Limite no qual se cumpre a decisão ontológica: contestar e ir ate o núcleo vazio no qual o ser atinge seu limite e no qual o limite define o ser (FOUCAULT, 2009a, p. 34). 48 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Essa nova criação estabelece novas regras, novas tensões em relação ao mundo exterior. Há uma nova criação de verdades e de preceitos ideológicos, igualmente. Se o sexo homem-mulher fora da instituição matrimonial podia, talvez, chocar a sociedade de então, claramente o sexo homossexual era mais do que silenciado: ele não existia na norma padrão da moral vigente, sequer aparecia seriamente ou em romances de formação. Adolfo Caminha, em seu O Bom Crioulo, no século XIX, valeu-se da temática homossexual para pintá-la como característica deformadora e enfraquecedora do caráter e, mesmo, do físico viril masculino. Agrippino, por sua vez, destaca a relação homossexual através de um discurso de naturalidade por conta do seu narrador: Quando eu entrei no alojamento um soldado adolescente da divisão aeroterrestre estava deitado na cama. Eu me aproximei da cama onde estava o adolescente deitado de calção e beijei o seu pescoço. Eu estava excitado e sentia o corpo do soldado adolescente e a sua voz grave e baixa. O soldado sorriu e olhou o teto. Eu falei baixo que ele era lindo e o adolescente sorriu novamente. Eu segurei o calção do adolescente e puxei o calção para baixo. Eu abri as nádegas do soldado nu e, deitado numa das camas do alojamento, eu esfregava o meu membro rijo entre as suas nádegas. (PAULA, 2001, p. 90). Dois pontos precisam ser destacados nesse trecho. O primeiro é o discurso homossexual e a forma que ele toma no discurso livre do narrador do romance. Sendo o sexo heterossexual um tabu, PanAmérica mostra-se transgressor ao romper o limite entre a explicitação do desejo sexual homossexual com a naturalidade das frases citadas no trecho acima. O narrador, o mesmo “eu” que envolveu-se com Marilyn Monroe, age com o jovem na mesma explosão sensorial de antes. Não há penetração, pois o soldado saiu da cama. Afinal, neste ponto da obra, o narrador era um membro do exército e eles estavam em guerra contra os capitalistas ianques. Ainda assim, o narrador, que havia ido ao alojamento para conhecer o lugar e, ao ver o jovem, imediatamente desejou-o e tentou possuir seu corpo, sexualmente falando. Deve-se mencionar, ainda, o fato de que o jovem é adolescente: não apenas o desejo sexual foi de cunho homossexual quanto de cunho pedófilo. Entende-se, assim, a solução do autor em não levar a relação carnal a vias de fato. O segundo ponto a ser destacado é em relação à instituição militar. Desde o início da pólis, essa instituição foi vista como exemplar, em uma hierarquia falocêntrica. Poucas foram as civilizações que admitiram mulheres em suas divisões. Independente disso, a instituição clama por respeito, dignidade e moral. Rotulam-se como protetores da família e dos bons costumes, conforme discurso repetido pela nossa Ditadura Militar. Uma instituição legitimada do meio social e disciplinadora por natureza. Castradora dos limites únicos do indivíduo, por conta da necessidade de produção homogeneizada de seres respeitadores de hierarquia e de comandos nem sempre éticos. Agrippino subverte essa mesma instituição milenar ao retratar seu narrador como um recém-soldado e, logo de início, homossexual e pedófilo. Respon49 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 de, desta maneira, às vozes femininas ignoradas pela tradição militar, enquanto brinca ao subverter a moral dentro do alojamento, local mais distante da sociedade possível. Esse lugar, um quarto coletivo, justamente remete ao discurso foucaultiano quando este menciona a responsabilidade dos pais em caçar e reprimir os desejos dos filhos: o quarto coletivo inibe a explicitação dos desejos mais íntimos. Porém, o quarto, mesmo coletivo, não fica ocupado o tempo inteiro... 4. Conclusão José Agrippino de Paula, portanto, insere-se na transgressão artística e política de sua década, porém vai além desta ao subverter os valores morais que regem a sexualidade tanto heterossexual quanto homossexual – esta, ainda hoje, vista preconceituosamente por uma parte da sociedade como desvirtuada e prejudicial. Em PanAmérica, o corpo e o sensorial voltam a importar para o discurso literário, indo de encontro à moral agostiniana que clamava pelos bens divinos. Agostinho, inclusive, em seu afã de diminuir o corpo e os instintos, inclusive remete aos bens sacros em toda a sua plenitude de inacessibilidade ao que é mais humano – e mundano: “Imerso no vício e cego como estava, não conseguia pensar no esplendor da luz e da beleza, desejáveis por si mesmas, invisíveis aos olhos do corpo e só percebidas no íntimo das almas” (AGOSTINHO, 2011, p. 169, grifos nossos). A partir da argumentação pró-moralismo empreendida por Santo Agostinho, o senso comum ocidental foi sendo formulado. As sexualidades, por conta disso, foram silenciadas: para se manter íntegro e merecedor da graça divina, o indivíduo deveria abster-se dos desejos carnais – pelo menos até o casamento. Mesmo durante o matrimônio, em muitas religiões, pedia-se durante os cultos que os indivíduos não se entregassem à libido. Esse silenciamento ocupou igualmente o discurso social e o literário, conforma destaca Emerson Inácio, a partir de suas leituras de Foucault: O sexo e a sexualidade, por sua vez, a partir do momento em que se tornam campos mediados pelo poder estatal e médico, no século XIX, tornam-se uma formação que pula do campo do silenciamento para o campo do controle discursivo, revelando não mais uma discursividade proibida, mas um discurso a que se permite a emissão desde que respeite os limites e as formas de seu próprio controle. Em outras palavras: controla-se não apenas estabelecendo o interdito, mas contendo os dizeres a respeito do sexo e da sexualidade. E mais que isso, controla-se o sexo pela docilização dos corpos (INÁCIO, 2011, p. 102). A docilização dos corpos é o momento último da moralidade ocidental. Contudo, a década de 1960 com a sua contracultura e seu movimento hippie lutou pela transgressão desse mesmo estatuto institucionalizado. José Agrippino de Paula, igualmente, questionou tais determinações castradoras em sua obra, conforme argumentado nas páginas anteriores: primeiro, retomando a explosão sensorial proveniente do corpo enquanto fim em si mesmo; segundo, retomando a sexualida50 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 de em descrições tórridas dentro de uma obra que se quer enquadrada em um dos gêneros mais tradicionais da Literatura – a epopeia; terceiro, retomando a sexualidade enquanto consumação sexual sem relações matrimoniais legitimadas; por fim, retomando ousadamente a sexualidade homoafetiva, com a naturalidade discursiva invejável e, principalmente, no seio de uma das instituições disciplinadoras mais atreladas ao clichê da moral e dos bons costumes. Insere-se, assim, PanAmérica no diminuto leque de obras transgressoras do cânone literário, motivo pelo qual, talvez, ela permaneça longe dos manuais de literatura do século XX. Referências AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. AGOSTINHO. Confissões. 6ª. Ed. São Paulo: Paulus, 2011. ALENCAR, Jose. Iracema. São Paulo: Ateliê editorial, 2012. ARAUJO, Daniel Teixeira da Costa. O cânone literário em perspectiva: o caráter político em detrimento do estético. Via Litterae, v. 3, n. 2, Anápolis, jul.-dez. 2011. Disponível em <http://www2.unucseh.ueg.br/vialitterae/assets/files/volume_revista/vol_ 3_num_2/Vol_32_15_DANIEL_TEIXEIRA_O_canone_literario_em_perspectiva.pdf> Acesso em 15 de Mar. de 2013. ARMSTRONG, Karen. Em Defesa de DEUS: o que a Religião realmente significa. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. BOSI, Alfredo. Historia concisa da literatura brasileira. 36ª. Ed. São Paulo: Cultrix, 1994. 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The increasing number of women writers and socially engaged texts have attracted the eyes of the public. In Portuguese literature some writers have become, through literature, activist for women’s cause. Maria Judite de Carvalho, who is one of them, showed in her writing anxieties present in the daily life of women of her time. Keywords: Portuguese literature; Maria Judite de Carvalho; feminine; society. Penso que isso se passa com todos os escritores. Há uma parte de nós que não é nossa, é a da sociedade em que vivemos, e que está inserida na literatura que fazemos. Nós vivemos numa época, somos influenciados por ela e isso reflecte-se na nossa obra. Natália Nunes A história da literatura portuguesa nos mostra que os anos 1950 foram marcados por mudanças literárias importantes, entre elas o considerável aumento do número de escritoras, resultando no aumento da literatura de autoria feminina. Não sendo esse um fenômeno apenas português, vários autores, entre eles José Antonio Saraiva, reconhecem o considerável crescimento de tal literatura também como um importante acontecimento universal do período pós-guerra. O teórico ressalta que em Portugal esta tendência evoluiu de maneira relevante dentro do contexto europeu, guardando um “extraordinário relevo histórico-social e qualitativo”. Algumas autoras, ainda que bem recebidas pela crítica, ficaram em um único livro, como se assim tivessem vencido uma batalha e assim esgotado tudo que tinham para dizer. Mas o que se deve considerar é que tal fenômeno aparece também como consequência das várias mudanças sociais de nível sócioafetivo ou econômico que ocorriam na época, como defende Saraiva: o aspecto social do fenômeno como consciência acerca de situações femininas típicas na sociedade portuguesa; e isso liga-se a fatores como a crescente entrada das mulheres nas profissões intelectuais e certa atenuação das dependências domésticas nas classes médias” (SARAIVA, 2000:1100). REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Muitas foram as escritoras portuguesas que se destacaram no período acima mencionado, para nos referirmos apenas a alguns nomes, levando-se em consideração a palavra da crítica, temos Agustina Bessa-Luís, Irene Lisboa, Maria Judite de Carvalho, Teresa Horta, Natália Nunes. Agustina Bessa-Luís está entre as escritoras que construíram densa carreira literária, sendo sua primeira publicação Mundo fechado, 1948, muito bem recebida por diferentes escritores, entre eles Ferreira de Castro, que se manifesta de maneira profética em relação à jovem escritora: “No seu livro não há ingenuidades. Ele parece demonstrar todo um belo trabalho de filtragem, de controle” (apud MACHADO, 1979, p. 15). Suas personagens seguem um caminho do acidental, num jogo de ideias que burla a realidade do cotidiano, mas sem feri-lo, onde as relações são tensas, mas guardam um fio de esperança: Passamos hoje por um caminho que tem nele marcado outras pegadas, e ocorre-nos as histórias de outras idades. Por deserto que esteja o campo, o frio, o sol, o tempo está presente e nos penetra de sabedoria e de fortaleza. A única solidão é aquela que não tem passado (BESSA-LUÍS, 1971, p. 44). Agustina Bessa-Luís retrata com fidelidade certas regiões portuguesas, traduzindo de forma singela aspectos socioculturais e as angústias de mulheres inconformadas com suas condições, tudo isso em uma prosa universal, um dos motivos que faz a crítica apontá-la como uma grande escritora do século XX. Em sua obra o regional e o universal não se opõem e sim se complementam através da trajetória de suas personagens, que sabiamente vão semeando seus passos na história de um cotidiano à parte. Segundo Álvaro Machado, a autora consegue resolver a oposição “romance regionalista versus romance universalista” de maneira genial, e trafega entre os dois com a mesma intensidade, com temas que partem de uma parte para revelar o todo, tendo como alvo a existência humana: “Resolve essa oposição, portanto, através da cultura como elemento essencial de reflexão sobre a realidade portuguesa na sua relação com o mundo, a vários níveis” (MACHADO, 1979, p. 25). De semelhante importância é a obra de Irene Lisboa, que produziu narrativas intimistas que tinham como temática principal as angústias e o estado de solidão vistos pela perspectiva feminina. Tal perspectiva caracterizará posteriormente a obra de Maria Judite de Carvalho, pois além de voltarem-se para temas parecidos, as duas autoras se aproximam ainda no que diz respeito à observação do momento social a sua volta. Por isso alguns críticos afirmam que parte da obra juditiana sofreu influência da escritora neorrealista. Irene Lisboa contribuiu para algumas revistas neorrealistas embora afirmasse não simpatizar com as perspectivas do movimento, e dele não participar diretamente. O estado de não per- 54 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 tencimento da autora a rótulos ou movimentos pode ser visto no estado de exílio de suas personagens, características que também encontramos em Maria Judite. Segundo Oscar Lopes (1994), um dos aspectos que faz a ficcionista do neorrealismo figurar entre as grandes escritoras portuguesas é a maneira como seus textos aproximam a realidade exterior ao mundo interior das personagens, sem perder o tom de protesto pela causa feminina: É de qualquer maneira óbvio que esta obra parte de uma experiência de mulher com implantação histórica e social, e realiza mesmo o acesso possível dessa específica experiência a uma consciência basicamente narrativa e testemunhal. (LOPES, 1994, p. 198). Através das leituras de Irene Lisboa1, chegamos à Maria Judite de Carvalho (Lisboa, 1921-1928), escritora que possui obra de grande importância no contexto da literatura portuguesa do século XX assim como no espaço literário em geral. Na escrita juditiana o olhar é o ponto de partida para apreender o espaço e as relações sociais, fazendo de tal apreensão um caminho de autoconhecimento, que resulta na necessidade de transgressão, de fuga e exílio. Saber-se em uma condição limitada e a impotência diante de tal constatação é muitas vezes a causa primeira da angústia dessas personagens femininas. O caráter transgressor que essas personagens assumem é fruto da lucidez impactante que possuem e que resulta na construção de um eu melancólico. Mesmo tendo uma fortuna crítica bem ampla, não são conhecidos muitos estudos sobre a obra juditiana que tenham como alvo aspectos histórico-sociais, no entanto encontramos trabalhos que analisam as relações socioafetivas das personagens, sobre o espaço da rua como busca de liberdade, ou mesmo os olhos observadores das personagens que estão quase sempre observando as angústias femininas diante dos submissos papéis sociais que lhe são propostos. Muitos críticos ressaltam que a abordagem de aspectos sociais não é o grande alvo das novelas e contos de Maria Judite, talvez por se tratar de uma autora não engajada, no entanto, ao nos aproximarmos de sua obra, observamos que no silêncio e na passividade, marcantes na trajetória de suas personagens femininas, há o protesto contra a condição social opressora em que vivem. Os malogros das mulheres casadas, acostumadas a renunciar à liberdade para dedicarem-se às obrigações do cotidiano, ou a dificuldade de adaptação à vida doméstica, são fatores que se apresentam ao centro da obra juditiana como em tom de reivindicação. O crítico Fernando Mendonça faz um interessante panorama das particularidades da escrita juditiana ressaltando a existência da denúncia sutil que se constrói em torno do tema das limitações do papel feminino na sociedade. Segundo o crítico, as narrativas da autora “são janelas indis1 Irene Lisboa (1892-1958) foi importante escritora e pedagoga portuguesa, afastada do trabalho por questões políticas, ela dedicou-se à literatura e publicou novelas, romances e manuais de pedagogia. Entre suas principais obras estão Um dia e outro dia, 1936; Uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma, 1955. 55 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 cretas, abertas sobre a vida de mulheres”. Essas têm seus conflitos psicológicos e sociais analisados constantemente, seja em reflexões, diálogos ou mesmo quando estão confinadas em um espaço solitário. E essas mulheres são apresentadas “como seres amargurados, frustrados, cientes apenas de que o mundo dos outros é um desgosto sem espanto, a flor aberta da mágoa sem surpresa” (MENDONÇA, 1973, p. 73). O mundo em que essas personagens estão mergulhadas, segundo Mendonça, é a tal ponto angustiante que dele não há como sair, voltar também é algo impossível, então a elas resta a arma da memória que geralmente as remete a um tempo no qual a vida era possível, mesmo sem felicidade. E o adversário desse mundo sem saída é geralmente representado por um homem, sobre o qual a mulher deposita sua carga de dor-esperança; ou pelo tempo, vilão que leva consigo a leveza da juventude, aproximando a personagem da velhice solitária e da morte. O embate da personagem feminina com o outro ou com o tempo acontece no espaço da limitação em que se desenvolvem as relações interpessoais, que são sempre distantes e sem lugar para grandes emoções ou amores desmedidos. Essas mulheres possuem uma imensa falta de jeito para transitar dentro de uma relação, seja ela amorosa ou social, um mal-estar constante como se também não coubessem, ou coubessem mal, no mundo ao qual são condicionadas. São personagens que vitimadas por si mesmas, que estão sempre com: a sensação de que se movem num espaço ou num caminho sem a sinalização adequada. O mundo inviolado que sonharam é permanentemente violado pela displicência e até pela inaptidão dos homens a quem afloraram (MENDONÇA, 1973, p. 173). A constante inquietação que as personagens apresentam diante de si mesmas e a fragilidade das relações sociais que tentam estabelecer fazem com que vivam em constante fuga, seja se atirando por janelas, como a personagem do conto “O grito”, ou partindo em plena incerteza e com a angústia de quem finge crer em um destino ilusório, como no conto “Adelaide”, em que a protagonista descobre que acreditar nas palavras de um homem desconhecido é o único modo de abandonar-se ao acaso. A impossibilidade de realizar algo ou de ter esperanças é marcante na quase totalidade dos textos da ficcionista, gestos são contidos e palavras aparentemente simples não podem ser ditas. Mesmo quando ouvir alguém é a única solução para o caos, o cotidiano impossibilita o contato ou a mínima expressão de afeto. Temos como exemplo o caso de Flores, a protagonista de “Flores ao telefone”, que, buscando fugir de seu completo estado de solidão, tenta falar com várias pessoas ao telefone, porém sem sucesso, pois todos estão comprometidos com suas próprias angústias, comprovando que: “As mulheres de Maria Judite de Carvalho não têm emenda, não rompem o código, 56 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 permanecem na fronteira do acessível sem esperança, aguardam inertes a passagem dos dias” (MENDONÇA, 1973, p. 174). Conforme citado acima, para as protagonistas do universo de Maria Judite não há como voltar ou consertar a vida quebrada, fugir também é impossível, por isso o primeiro pensamento que lhes acode é o suicídio, e quando não o fazem confessam ser por fraqueza. Filhos, maridos ou quaisquer outros laços são amputados da vida dessas personagens, ou então fazem parte de um passado para o qual só é possível voltar através da memória, assim elas se deixam estar em uma existência em que tudo poderia “ter sido”, mas nada acontece de fato. As personagens juditianas são mulheres traídas por homens pelos quais não conseguem manifestar afeto, ou que se sentem frustradas por amizades superficiais. Não esquecendo que as relações familiares também não escapam ao olhar juditiano, como vemos com Dora Rosário, protagonista da novela Os armários vazios, uma mulher “sem idade e sem solução”, que após dez anos de viuvez aceita a ideia de um outro homem em sua vida, mas o perde para a filha de 17 anos. A angústia que já lhe acompanhava torna-se mais forte juntando-se à sensação de perder mesmo o que não possuía. A consequência será o descrédito em si, no outro e no mundo, o desfecho da história é descrito pelo narrador como um quadro de pessimismo e desesperança e a protagonista como “uma mulher cinzenta, um pouco curvada, perdida na cidade deserta depois da peste e do saque” (CARVALHO, 1966, p. 45). Durante os vários anos em que escreveu crônicas para jornais de Lisboa, Maria Judite deixou ver sua posição de observadora da sociedade de seu tempo. Como cronista a autora constrói seu argumento, entre outros, propondo à mulher que se recuse a aceitar a organização de poderes e leis que a fazem preencher sempre os mesmos pequenos espaços, sem se questionar a respeito. Sem se perguntar por exemplo o porquê de as revistas femininas voltarem-se apenas para produtos de beleza e eletrodomésticos, a sociedade feminina as consumia em estado de cegueira. Assim a narradora-cronista propõe um caminho de descobertas que ao mesmo tempo que amplia a visão de suas leitoras, pode conduzi-las ao banimento e à solidão. Ao distanciar-se de seu papel e expressar total consciência da condição feminina da qual faz parte, a cronista constrói em seus textos espelhos propondo à leitora a auto-observação: Por que ela não era feliz, nunca o fora, nunca o seria, com as tais pequenas coisas da vida. E as mulheres felizes, por acaso ou por escolha, davam-lhe sempre uma grande, uma infinita tristeza misturada com um pouco de inveja, com um pouco de troça. Era uma mulher inteligente, solitária e sem solução (CARVALHO, 1979, p. 101). Os textos da autora induzem a mulher de seu tempo a ter certa consciência de que sua 57 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 existência está sempre relacionada ao outro, para quem ela deverá dedicar sua vida. No entanto observar tal realidade pode tornar-se perigoso, como previne a própria ficcionista: “Se você olhar em volta com olhos de ver, bem abertos, se se esquecer de si própria durante uns minutinhos... Meu Deus, o que você vê!” (CARVALHO, 2002, p. 74). A busca constante por um exílio ou fuga que observamos nas personagens juditianas vem de um olhar que relaciona o eu ao tempo, tendo como consequência um passado que aprisiona em lembranças dolorosas; ou a impossibilidade de um futuro reparador. As características apontadas nas crônicas são marcantes também no universo dos contos e se revelam no jogo entre autor/narrador (Cf. NAVAS, 1990), que se faz quase personagem a si e ao leitor, para abordar o presente que incomoda. Eis uma das características que tornam suas crônicas atemporais e seus contos obras que fazem parte da melhor literatura da segunda metade do século XX em Portugal: “Caminhamos, por assim dizer, no fio da navalha e estamos sempre, portanto, à espera do pior. Se nos distrairmos, por pouco que seja, se alguém se distrai, é o fim” (CARVALHO, 2002, p. 41). Através da análise e desvendamento de conceitos e comportamentos criados e defendidos pela sociedade para a mulher, a autora desenha aos poucos o caminho para o exílio. Aqui vemos também um outro ponto de semelhança entre as novelas, contos e crônicas da autora: o desejo de romper com a condição limitadora imposta ao feminino. Ao colocar-se em alguns enredos como um quase-personagem, o narrador confunde-se ao universo dos textos, dialoga com a leitora, aconselhaa, ou tenta convencê-la da importância de fugir da alienação proposta à mulher: Mulheres super-perfeitas mas inexpressivas, geladas, exibem perfumes luxuosos, jóias raras, peles preciosas, quase extintas no mundo. Há frascos de cristal de rocha, boiões de tartaruga. E por entre tudo aquilo os rostos mortos das mulheres-cartaz (CARVALHO, 1979, p. 160). Os temas abordados pela cronista levam a refletir sobre a organização social não só da Lisboa da época, mas do cotidiano das mulheres em geral. O trabalho doméstico é frequentemente abordado e de uma maneira que ressalta o jogo de poder existente na organização da família que faz com que a mulher, sem contestar sua posição de indivíduo explorado, submeta-se ao aprisionamento do espaço da casa e às obrigações diárias. Em alguns dos enredos juditianos há a breve sugestão do narrador de um caminho para onde fugir, mas é apenas uma ilusão que logo se dissipa. Seja a tentativa de se emancipar por uma profissão, uma atividade a desenvolver, ou mesmo de fazer a vida ter sentido pelo amor, e quando nada disso é possível, novamente se expõe o conflito: como pode a mulher atingir tal êxito em um 58 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 mundo de homens? É que os homens exigem muito mais “companheirismo” do que as mulheres. Acham que elas, só porque são mulheres, devem desistir sem amargura da sua própria personalidade e vestir a dos maridos a fim de serem as companheiras de quem nunca fez esforço para ser companheiro (CARVALHO, 2002, p. 175). Na crônica “Encontro”, que figura entre os textos com títulos, no final de Diários de Emília bravo (CARVALHO, 2002), temos de fato uma breve crônica/conto em que o narrador joga com contradições que começam desde o título, uma vez que a situação exposta nos leva a um (des)encontro da protagonista com antigas colegas de colégio. Em uma tarde passada com as quatro mulheres ela transita inquieta dentro de um universo que também deveria ser o seu, mas ao qual ela não pertence. O relato apresenta diálogos que definem o papel que se espera da mulher na sociedade da época, as quatro personagens, com suas trajetórias bem arrumadas, levam a vida adequando sempre seus destinos a um papel que figure dentro do quadro desenhado para o feminino, assim buscam banalidades que as afastem de si mesmas: Veio o chá e também fiquei a saber que uma delas fazia dieta, outra era muito gulosa, a terceira não tinha problemas de alimentação, a quarta tinha alguns. E falou-se de ginástica, de crianças, do problema das empregadas domésticas (CARVALHO, 2002, p. 317). As impressões da narradora-personagem são contadas como se ela se dirigisse a um outro de si mesma, num relato de frases cortadas, reticentes, suprimidas por reflexões como: “Agora... Bem, é de fato melhor esquecer” (CARVALHO, 2002, p. 317). O diálogo com o duplo propicia o perigoso encontro consigo, e com a situação “demasiado deprimente” que havia passado naquela tarde com as colegas que se tornavam “vagos fantasmas” dentro da vida que ela agora habitava. Sentindo-se totalmente à margem dos papéis exercidos pelas amigas, ela se convence de que não tem um lugar social. Através da situação vivida pelas personagens em “Encontro” a autora confronta sua leitora com o jogo das relações sociais, descreve com minúcia e sutileza as inquietudes de uma mulher diante da passividade das quatro amigas. Assim, através de uma reunião aparentemente banal entre amigas, há o convite a observar e intervir na estrutura da qual essa leitora também faz parte. Vistas por esse ângulo, as crônicas juditianas, assim como seus contos e novelas, expressam o desejo de mudança e com as inquietudes que manifestavam as mulheres nos anos 1970, como os explica Ruth Navas: Maria Judite de Carvalho contava histórias de uma forma aparentemente espontânea, criando personagens e ambientes, próprios do espaço sócio-afectivo de muitas mulheres portuguesas da época (NAVAS, 2004, p. 11). 59 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 O quadro simples de um chá entre amigas em uma tarde de sábado nos permite analisar os diferentes papéis sociais ocupados por cada uma delas: Cecília, dona de casa exemplar e dedicada aos cinco filhos e ao marido médico; Adélia, sem jamais mudar de casa ou cidade, vive a canalizar suas emoções na fabricação incansável de flores; Alice cultiva o sentimento de falência por continuar solteira; e Júlia que esperançosa tenta a sorte em um segundo casamento. O retrato das quatro mulheres abrange anseios, medos e angústias comuns à sociedade feminina de então. O estranhamento da protagonista vem da consciência de não pertencer a nenhum dos lugares sociais ocupados ou buscados pelas outras. Seu olhar crítico é também o da cronista e traduz angústias de alguém que habita fora do mundo das obrigações e das relações afetivo-sociais, sentindo-se por isso à margem e em completa solidão: “Foi demasiado deprimente, como já te disse e repito. E o pior é que desde aquele dia ando a pensar em como é que elas me terão visto. Que história!” (CARVALHO, 2002, p. 318). O quadro social de “Encontro” é o de submissão e angústia de um grupo de mulheres diante da condição e do destino a seguir. O estado de exílio é representado nas reflexões e inquietudes da protagonista que recusa tudo o que as demais concebem como os rumos de uma vida “feliz”, seu destino será como o de tantas outras personagens juditianas, o de uma “mulher inteligente e solitária”. O convite a exilar-se do estado de passividade e a tomar o próprio destino é feito constantemente pelo narrador juditiano. Mas a aparente saída ou fuga das leis que regem o espaço social da mulher não representa uma solução, mas um caminho que conduz ao estado de isolamento, o que vai se revelar mais fortemente nos enredos das narrativas curtas da autora. Como exemplo temos o conto “O grito” do volume Seta despedida, no qual a protagonista, Camila, ensaia projetar-se em várias maneiras de viver, mãe, escritora, pintora, mas não conseguindo de fato ter êxito em nenhuma de suas tentativas. Nada é marcante em sua existência, nem mesmo a expressão do rosto ou a voz e, a cada falência consigo e com o outro, ela caminha um pouco mais para dentro de si até sentir-se em total isolamento: “E foi se tornando cada vez mais vazia e mais só” (CARVALHO, 1995, p. 117). Sua angústia atinge o insuportável e ela reage atirando-se pela janela num exílio final, que, se não era a solução, poderia ser a saída para o seu nãopertencimento. A protagonista de “O grito”, assim como aquela de “Encontro”, partilha a angústia de não ter voz nem lugar para si, de ter que calar o grito e mascarar seu inconformismo no isolamento. É por elas e por todas as demais que ouvimos os ruídos de vozes e pequenos protestos da autora. Detalhes mínimos, vestígios do cotidiano se juntam para construir a grande denúncia, a fala daque60 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 las que não têm voz e que muitas vezes não se dão conta disso, e é também por elas que lemos a palavra forte de Maria Judite de Carvalho, com seu senso para ver e ouvir mesmo o que se quer esconder. Referências CARVALHO, Maria Judite de. Os armários vazios. 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Confirmando a fragilidade estética e técnica desses textos em verso, o autor mostra contudo o seu interesse para o conhecimento de aspetos até agora desconhecidos ou ignorados da vida de Evaristo d’Almeida e da fase de formação da literatura em Cabo Verde. Palavras-chave: Cabo Verde, José Evaristo d’Almeida, poesia. ABSTRACT: The paper studies the two poems and a fragment of poem published by José Evaristo d’Almeida, author of O Escravo (1856), the first novel of Cape Verde. Although ratifying the aesthetic and technical fragility of these texts in verse, the author shows their interest for the knowledge of aspects yet unknown or ignored of the life of Evaristo d’Almeida and of the formative stage of literature in Cape Verde. Keywords: Cape Verde, José Evaristo d’Almeida, poetry. Como é sabido, José Evaristo d’Almeida, para além do romance O Escravo, publicou, pelo menos, dois poemas e um fragmento de poema. Se a menor qualidade destas composições – sobretudo se postas em confronto com um texto ficcional a que tem sido atribuído o título de primeiro romance cabo-verdiano ou de temática cabo-verdiana – pode justificar a pouca atenção que lhes tem sido conferida, não justifica contudo que elas não tenham voltado a ser convenientemente estudadas. Será esse portanto o modesto objetivo deste trabalho. O primeiro poema foi identificado por Manuel Veiga (1994) nas páginas do Boletim Official do Governo Geral de Cabo-Verde: começado pelo verso “A ti, Bastos eximio, ati, que encheste” é um texto de louvor ao Governador cessante, Francisco de Paula Bastos, e saiu no n.º 106 do Boletim, de 12 de julho de 1845. Como é sabido, Francisco de Paula Bastos (*11-VI-1793 †2-IX-1881), Barão e Visconde de Bastos, foi governador de Cabo Verde entre 1842 e 1845. Segundo Afonso Eduardo Martins Zuquete (2000, II, p. 407), destacara-se nas batalhas da Guerra Peninsular, mas a sua adesão aos princípios liberais tinha determinado o seu afastamento do serviço. Apesar de reintegrado depois da morte de D. João VI, a restauração do governo absoluto leva-o a emigrar para Inglaterra, de onde passaria à Ilha Terceira. Fez parte das tropas desembarcadas no Mindelo e bateu-se no cerco do REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Porto. Foi promovido a brigadeiro e, depois do regresso de Cabo Verde, foi governador de Elvas e comandante da 2.ª Divisão Militar e da 10.ª. Seria ainda promovido a marechal-de-campo, em 1860, servindo como ajudante-de-campo de D. Pedro V. A festa que assinalou o final do seu governo em Cabo Verde é noticiada no número anterior do Boletim Official, de 5 de julho. O artigo dá conta de um baile realizado a 27 de junho, na Praia, na grande sala do quartel do Batalhão de Artilharia de 1.ª linha, uma iniciativa “(...) que os empregados Ecclesiasticos, Civis, e Militares desta Villa offereceram a S. Ex.ª o Sr. Brigadeiro Francisco de Paula Bastos, ex-Governador Geral desta Provincia, em testemunho do apreço em que tinham os bons serviços por elle prestados durante o seu triennio, e a justa magoa e saudade pela sua ausencia.” (p. 419). Procurando destacar a solenidade dos festejos, o redator descreve o ambiente de modo pormenorizado: (...) [a salla] se achava elegantemente ornada com bandeiras e outros troféos militares, em um dos quaes, que avultava no topo da salla, se achava um Escudo com as iniciaes F. P. B., coroadas com o capacete, e orladas com ramos de carvalho e oliveira. Magico era o effeito que produziam as bandeiras das nações amigas ostentando as suas cores, abrilhantadas pelo reflexo de um grande numero de vellas em castiçaes e serpentinas, e por dous magnificos lustres de bronze; e sobre estes grupos multicores se elevava magestosa e radiante como a Lua entre as estrellas a Bandeira Portugueza, com as Quinas, Padrão de gloria e de civilisação em campo bipartido de branco e azul, como para attestar a união intima do Throno e do Povo, união sem a qual não ha liberdade: e mais agradavel se tornava ainda este espectáculo pela multidão de senhoras, ornadas com gosto e luxo, e ostentando a louçania das galas d’envolta com a belleza e attractivos de seus rostos, e que formavam como um jardim de lindas flores. A entrada e frente do Quartel estavam elegantemente illuminadas (p. 419-420). Mais à frente, acrescenta-se que foram recitadas “(...) diversas peças poeticas allusivas ao assumpto, como foram duas Odes pelo Sr. Capitão José Antonio Ferreira, uma Epistola do Sr. José Evaristo d’Almeida, que foi recitada por um seu amigo em consequencia daquelle Sr. se achar na Ilha do Sal: e por ultimo, ao finalisar o Baile, o que teve logar pelas tres horas da madrugada, foi recitada por um dos circumstantes, com uma commoção que era a expressão fiel de seus sentimentos e dos de toda a Assembléa que applaudiu com um bravo unisono, a seguinte peça de versos, de que não publicamos o A. por assim no-lo pedir com instancia.” (p. 420). O Boletim Official apresenta de seguida o poema, começado pelo verso “É pois verdade, ó Bastos! que te ausentas?”. Formado por 57 decassílabos brancos, sem divisões estróficas, o texto não apresenta particular interesse, nem estético, nem informativo, embora não deixe de constituir um indicador da vida cultural e literária da colónia, ao findar a primeira metade de oitocentos. O sujeito exprime a sua incredulidade na partida do Governador, acentuando a falta que ele fará “Ao Povo, que de Pai te dava o nome” (v. 4). Mais à frente, recorrendo a imagens mitológicas convencionais, dá conta dos preparativos para o 63 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 início da viagem: Adunco ferro, que o ceruleo reino Foi devassar ousado, e das Nereiades Os bandos tão fermosos viu cercarem Amphitrite donosa, eis quasi a pique; (v. 29-32). O texto termina com a expressão dos votos de feliz viagem formulados pelo povo e com a manifestação de esperança do sujeito na sobrevivência de “Lembranças tão queridas, e fagueiras” (v. 56). Como ficou dito, a epístola de José Evaristo d’Almeida saiu no número seguinte, o 106, do Boletim Official, de 12 de julho de 1845. Tanto quanto julgo saber, o texto só voltou a ser publicado, por sinal com uma série de falhas1, por Manuel Veiga. Com base nessa edição, Cláudia Almeida, na sua recente tese de mestrado (2009, p. 105-107), também reproduziu o poema, acrescentando mais alguns erros2. Iniciada pelo verso “A ti, Bastos exímio, ati, que encheste”, a composição é formada por 51 decassílabos brancos, repartidos por cinco estrofes irregulares. Como seria de esperar, o tom é encomiástico, como o revelam bem os adjetivos: “Bastos eximio” (v. 1), “innumeraveis bens” (v. 2), “governo providente” (v. 3), “Sabias divinas leis” (v. 9), “governo feliz” (v. 10), “extremo affecto” (v. 22), “Bastos immortal” (v. 33). Ao contrário do que talvez fosse de esperar, Evaristo d’Almeida justifica o elogio do governador cessante com o combate que ele terá promovido a alguns dos males habituais na administração ultramarina: Fizeste baquear, cahir no inferno A lisonja servil, a intriga infesta, A tartarea e cruel venalidade, O orgulho, o despotismo, e quantas furias Raivosas pela terra se derramam; (v. 4-8). Na dedicatória, falta “Sr.” depois de “Exm.º” e deveria estar “Bastos” em vez de “Basto” (erro que se repete nos v. 1, 33 e 34), faltando ainda um ponto no final; no v. 3, falta “com” depois de “que”; falta o v. 8 (“Raivosas pela terra se derramam;”); no v. 13, falta o ponto de exclamação a seguir ao segundo “ah” e a forma verbal é “possa” (e não “posso”); no v. 18, a preposição “de” a seguir a “hade” está a mais; no v. 20, a forma verbal é “possa” (e não “posso”); no v. 22, falta “de” antes de “ti”; no v. 29, devia haver um ponto de interrogação (e não de exclamação) antes das reticências; no v. 36, falta “em” depois de “que”; o v. 38 devia terminar com “podem” (e não “pode”), seguido de dois pontos; no v. 50, devia estar “rosas” (em lugar de “rosa”); no último verso, “Lyzia” devia estar com maiúscula inicial. Para além destas falhas, são visíveis ainda alguns desvios à grafia e à acentuação do original que se procura reproduzir. 2 No original do Boletim, não vem o título “Epístola”; no v. 12, falta o ponto depois de “envia”; no v. 25, falta “o” a seguir a “Qual”; no v. 29, devia ser “o povo” (em vez de “um povo”); no v. 30, devia estar “havê-lo” (em lugar de “havê-los”); no final do v. 36, falta a vírgula; no final do v. 42, há uma vírgula; no v. 44, há um ponto depois de “filhos”; no v. 45, o original apresenta “hão de bradar” e não “hão debradar”. A autora corrigiu, nas suas várias ocorrências, a forma “Basto”. 1 64 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Que a proclamação não era inócua nem meramente circunstancial, prova-o a reação de José Alexandre Pinto, Secretário-Geral da Administração anterior, presidida por João Fontes Pereira de Melo3. No n.º 108 do Boletim Official, de 27 de setembro desse mesmo ano de 1845, Pinto faz publicar uma carta em que solicita a Evaristo d’Almeida que esclareça se as expressões mais contundentes acima citadas devem ser lidas como referentes ao governo precedente: Illustrissimo Senhor José Evaristo d’Almeida. = Praia dezeseis de Julho de mil oitocentos quarenta e cinco. = Uma das peças poeticas que aqui se recitaram, nos intervalos do baile dado pelos empregados publicos, ao Senhor Brigadeiro Bastos, foi a que em obsequio e louvor do mesmo Senhor ex-Governador Geral V. para esse fim dirigira ao Senhor José Maria de Sousa Monteiro, que assim o disse; e pareceu-me então quando ouvi a leitura que V. para realçar o elogio da administração que terminava, deprimia consideravelmente as administrações transactas; o que por certo me não podia ser indiferente, porque na epocha immediatamente anterior eu era, como V. sabe, o Secretario Geral do Governo em exercicio. Mas os factos e a consciencia me faziam regeitar toda a ideia, que uma tão desagradavel impressão me podia causar; e avaliando como devia as intenções de V. guardei inteiro silencio, que esperava não ter de quebrar. Havendo-se porêm agora publicado, no Boletim Official do Governo de doze do corrente Numero cento e seis a sobredita peça poetica; tornando-se assim do dominio publico o avaliar as expressões de que V. nella usou, não posso nem devo permanecer indifferente a similhante respeito; e por isso rogo a V. se sirva declarar mui explicitamente, se as referencias de = lisonja servil = intriga infesta = cruel venalidade = e outras similhantes por V. empregadas, devem ou não reputar-se aplicaveis á administração do Senhor Fontes, como a mais próxima daquella que segundo alli se lê, fizera baquear o já citado nas mencionadas referencias. Não pediria certamente esta explicação necessaria, se não estivesse bem convencido de que ella se torna indispensavel, por muitas rasões que fora ocioso mencionar; mas cumpre-me prevenir a V., que uma tal declaração deve ser feita com plena liberdade, precisão, e franqueza, porque só assim poderá avaliar-se devidamente. = De Vossa Senhoria Attento venerador Ob.o = (assignado) José Alexandre Pinto. (p. 431) Antes de passarmos à resposta do futuro autor de O Escravo, convém sublinhar uma informação com algum interesse contida na carta de José Alexandre Pinto: o poema de Evaristo d’Almeida fora lido na festa de 27 de junho por José Maria de Sousa Monteiro4, à época Secretário do Governo-Geral de Cabo Verde, o que sugere, para além de uma relação próxima entre eles, algum tipo de concordância e de apoio da parte do segundo às posições veiculadas pelo autor do poema. Imediatamente abaixo da carta de Pinto, o Boletim Official transcreve a resposta de Evaristo d’Almeida, datada do Sal, em que este, declarando embora não ter tido a intenção de visar em Militar e político (*25-I-1780 †27-X-1856), o pai de António Maria tinha sido Governador de Cabo Verde entre 1839 e 1842, voltando a desempenhar o cargo de 1847 a 1851. 4 Cf. SILVA e ARANHA, Vols. V e XIII, p. 52-3 e 118-9. Nascido no Porto, a 25-III-1810, vivera no Rio de Janeiro entre 1828 e 1833, tendo passado também algum tempo em Cabo Verde. Em Maio de 1844, fora nomeado Secretário do Governo-Geral de Cabo Verde, vindo a ser demitido em 1846 e reintegrado pouco depois. Por razões de saúde, voltaria à metrópole no ano seguinte, sendo colocado na Secretaria da Marinha. Faleceu a 16-IX-1881, tendo sido redator e colaborador de diversos jornais políticos e literários. Publicou várias obras de tipo histórico, jurídico e político, sendo também autor de um Diccionario Geographico das Provincias e Possessões Portuguezas no Ultramar, saído em 1850 e com várias reedições. 3 65 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 particular a administração anterior, não recua nos motivos que o levaram a elogiar o Governador Francisco de Paula Bastos, mantendo assim – com uma elegante coragem – a crítica aos males endémicos da administração colonial: Illustríssimo Senhor José Alexandre Pinto. = Ilha do Sal sete de Agosto de mil oitocentos quarenta e cinco. = Acabo de receber a carta de V. S.a com a data de dezeseis do proximo passado, na qual me pede que declare se as expressões empregadas no primeiro paragrapho da minha epistola, dirigida ao Senhor Brigadeiro Bastos por occasião da sua saída desta Provincia, e que se acha publicada no Boletim Official numero cento e seis, devem ou não reputar-se applicaveis á administração do Senhor Fontes, na qual foi V. S.ª um dos primeiros funccionarios: ao que passo a responder, como me cumpre. A lisonja, a intriga, e a venalidade não nasceram nesta Provincia durante a administração do Senhor Fontes, cujo governo foi em demasia justiceiro, pacifico, e tolerante; porêm se não nasceram tambem com elle não findaram: e se de alguma maneira nessa epocha foram atenuadas as paixões que tanto prejuiso causaram á Provincia, não deixavam contudo de existir quando o Senhor Bastos chegou a este Archipelago; talvez pelo motivo, aliàs bem forte, de ter sido pouco o tempo em que o Senhor Fontes o governou, para extinguir totalmente paixões, que quando chegou á Provincia estavam no seu auge. Á vista do que levo dito já V. S.ª vê que as mencionadas expressões não se referem immediatamente á administração do Senhor Fontes, em cuja epocha eu igualmente exerci o logar que V. S.ª hoje occupa; e que estou intimamente convencido que foi ao Senhor Bastos que coube a gloria de exterminar totalmente, nesta Provincia, a lisonja, a intriga, e tudo quanto se acha mencionado no paragrapho primeiro da minha epistola. Agradecendo a V. S.ª o ter-me impelido a esta declaração, pela qual me é permettido patentear a pureza dos meus sentimentos, e significar igualmente a quantos lerem a minha epistola, que as expressões nella exaradas são todas filhas do coração, e que a penna que a escreveu foi impelida tão somente pela amisade de accordo com a consciencia; agradecendo igualmente a justiça com que V. S.ª avalia as minhas intenções, resta-me assegurar a V. S.ª que desnecessaria era a recommendação que me faz no ultimo paragrapho da sua carta; por quanto, devendo V. S.ª ter conhecido, desde que me concedeu a sua amisade, que jámais minha boca profere o que o coração não sente, franca, livre, e precisa deveria V. S.ª esperar a minha declaração, quando a fizesse. = Permaneço de V. S.ª Amigo e obrigadissimo creado = (assignado) J. E. d’AImeida. (p. 431) Antes de passarmos adiante, impõe-se a consideração, mesmo que breve, de uma questão que também se coloca no segundo texto e que parece revelar a fragilidade ‘técnica’ de José Evaristo como poeta: a métrica. Cláudia Almeida estudou a questão na sua tese de mestrado, embora a sua análise apresente falhas – parte delas decorrente da errada fixação do texto, a que já me referi – e a conclusão seja mais do que discutível: Pode-se constatar, portanto, que José Evaristo de Almeida tinha o domínio da técnica poética clássica e também romântica, vez que, se por um lado, revela que sabia fazer decassílabos heróicos perfeitamente, por outro, permite-se romper por vezes com tal métrica, para que o poema soe mais autêntico, como se tivesse sido criado por pura inspiração, sem qualquer medida, tal qual recomendava a estética romântica, ainda que sua proposta de poesia laudatória tenha sido concebida no espírito do neoclassicismo (ALMEIDA, 2009, p. 111) Ao contrário do que sugere a investigadora, a métrica nunca foi impeditiva da autenticidade nem o romantismo viu nela nenhum tipo de obstáculo. Quanto ao poema de Evaristo 66 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 d’Almeida, basta uma leitura minimamente atenta para que se perceba que ele está composto em decassílabos regulares, ainda que – por insuficiência técnica do autor ou por lapsos tipográficos – sejam visíveis alguns desvios. Nos 51 v. de que é formada a epístola, a maioria adopta o esquema acentual do heroico, mas há oito que são sáficos. Quanto à métrica, há vários casos normais de redução silábica, podendo servir de exemplo o v. 3, em que ocorre uma ectilipse, seguida de elisão: A/ ti,/ que/ co{m} um/ go/ver/no/ pro/vi/den/te 1 2 3 4 5 6 7 9 10 8 Mas há também exemplos, como o do v. 37, em que a redução, não sendo impossível, seria muito pouco natural: Nos/ a/cc{u}mu/lou/ de/ bens/, nos/ deu/ ven/tu/ras, 1 2 3 4 5 6 7 9 10 8 São também vários os casos de hipermetria, como acontece com o v. 15: E/ nes/te/ mu/do/ fa/llar/, que/ tan/to ex/pri/me, 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 Neste caso, a correção seria fácil, consistindo numa alteração do determinante – substituía-se o demonstrativo pelo artigo indefinido, o que permitiria obter um decassílabo heroico: E/ num/ mu/do/ fa/llar/, que/ tan/to ex/pri/me, 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Perante exemplos como este, subsiste a dúvida: a que se deve a falha? A descuido do autor ou a uma falha tipográfica? A segunda possibilidade parece mais difícil de explicar, tanto mais que não consta que tenha havido pedido de correção feito por Evaristo d’Almeida. Situação contrária é a do v. 34, que tem 9 sílabas, falha que poderia ser corrigida através da introdução, no início, do artigo definido: 67 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 [O]/ Bas/tos/ i/mmor/tal,/ e/sse/ que/ sa/be 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Sete anos mais tarde, em 18525, José Evaristo d’Almeida publicaria em Lisboa, pela Imprensa Nacional, um folheto in-8.º de 8 páginas, contendo um poema intitulado “Epístola a ***”, que está mencionado no volume de Aditamentos ao Dicionário Bibliográfico Português (FONSECA, 1927, p. 233). Mais longo do que o anterior, este texto – que, tanto quanto julgo saber, nunca foi reeditado – está datado de Lisboa, 25 de fevereiro de 1852, e apresenta vários motivos de interesse: para além das referências e comentários sobre Cabo Verde, fornece algumas indicações biográficas que obrigam a rever o que tem sido escrito sobre a matéria. Composto em decassílabo branco e estrofação irregular, o texto não tem particular interesse literário. Descreve um acontecimento público destinado a angariar fundos para a assistência à pobreza, promovido num espaço não nomeado mas que, sem grande dificuldade, podemos identificar como o Passeio Público de Lisboa. Com efeito, podemos ler nos v. 63-64: N’essas tres noites, em que um genio grande, O Passeio fez abrir á caridade. Imediatamente a seguir, o autor precisa o seu ponto de observação: Quando, em pé no terraço onde subira, Dominava, com a vista, o amplo espaço, (v. 65-66). Ora estes dados coincidem com o que se sabe do Passeio Público de Lisboa. De criação pombalina, foi projetado em 1764 pelo engenheiro militar e arquiteto Reinaldo Manuel dos Santos, estendendo-se desde a atual Praça dos Restauradores até à Praça da Alegria. Embora tenha levado tempo a entrar no gosto dos lisboetas, que não estavam habituados a passear em jardins públicos, acabou por tornar-se, na segunda metade de oitocentos, o ponto de encontro da sociedade local e um espaço de intensa atividade social, onde eram realizadas festas, bailes e concertos. Para isso contribuíram os melhoramentos introduzidos em 1834, sob projeto do arquiteto Malaquias Ferreira Leal, que adaptou o Passeio ao gosto romântico. Júlio Dantas comenta assim o resultado das obras: 5 Não é pois correta a informação de Manuel Ferreira (ALMEIDA, 1989, p. 9), que dá a Epístola como publicada no mesmo ano em que saiu O Escravo. A indicação errónea surgira antes em MOSER / FERREIRA, 1983, p. 137. 68 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 A primeira coisa que fizeram foi arrasar-lhe os muros e substituí-los por um gradeamento de ferro interrompido de espaço a espaço por grossas pilastras de pedra. O velho jardim monacal tomou logo um ar moderno de square europeu. Depois, em vez da antiga cancela de quinta nobre, levantaram duas enormes portas de ferro, “mais seguras que a Bastilha”, como dizia Alexandre Herculano num artigo desalentado e triste do Panorama. O largo anterior à cancela, que primitivamente não estava compreendido nos muros, foi envolvido pela nova cinta de varões de ferro: o Passeio Público ficou por conseguinte mais extenso e menos abafado, mais inglês e menos solarengo, mais civilizado e menos conventual (DANTAS, 1966, p. 13). Com a introdução, em 1848, da iluminação pública a gás na cidade de Lisboa, o Passeio, que fechava às 18h, passa a reabrir às 20h, com música e entradas pagas. Dentre uma gama diversificada de espetáculos e festejos, destacavam-se as festas de beneficência, que habitualmente ocorriam ao domingo e à quinta-feira, atraindo grande assistência, pelo fim caritativo que prosseguiam e pela qualidade dos entretenimentos que proporcionavam. A frequência dessas festas chegou a motivar a crítica bem-humorada de Júlio César Machado na sua crónica de abril de 1864 publicada na Revista Contemporanea de Portugal e Brazil: Uns restos de Lisboa, gente que não foi ainda ou não vae este anno para o campo, tem entretido o seu ocio e o seu dinheiro todo este mez em ir aos beneficios do Passio Publico. É mais do que desagradavel, é verdadeiramente reprehensivel o abuso com que de um logradouro publico se arma constante ratoeira aos tostões da familia portugueza! O inverno vae encontrar toda a gente arruinada, por causa das caritativas festas. (MACHADO, 1865, p. 273). O poema de Evaristo d’Almeida refere-se precisamente a uma festa de beneficência, promovida por um indivíduo de apelido Guedes: E tudo isto era obra d’um só homem! De Guedes bemfazejo, que merece Mil bençãos da pobreza, a quem soccorre, Como se fôra da piedade o Nume! (v. 178-181) Trata-se de José Isidoro Guedes, 1.º Visconde de Valmor, que foi deputado em várias legislaturas, par do Reino, membro do Conselho de Sua Majestade Fidelíssima e diretor de diversas instituições, como as Associações Comerciais do Porto e de Lisboa e o Asilo de Mendicidade (cf. ZUQUETE, 2000, Vol. III, p. 471 e PEREIRA, 2005, p. 373-6). O primeiro aspeto dos festejos que Evaristo d’Almeida destaca diz respeito às iluminações: Deleitava-se a vista contemplando Os milhares de lumes multicôres; Mas frouxos, de maneira a não tirarem, Do ingente arvoredo, a magestade. (v. 70-73) 69 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Um pouco mais à frente, o poeta refere outro aspeto da decoração do recinto: Louvei a edea feliz, que collocára, De modo a dominar todo o recinto, Da caridade o pharol, brilhante Estrella! Sustiam-na, do mundo, as quatro partes, Sobre as quaes esparzia, engrinaldados, As rosas, os jasmins, as açucenas: Essa Estrella brilhante, em si continha De lumes.... talvez mil, que pareciam Outros tantos pirópos, ali postos Pela poderosa Mão da Providencia. (vv. 83-92) José Evaristo fala ainda dos bazares, das senhoras que neles trabalhavam e da música “De Mozart, de Rossini, e de Maerbeer6” (v. 163), escutada com enlevo por seis mil pessoas (v. 169). Com estes elementos, não é difícil identificar a festa que está na base da epístola: promovida por uma comissão encabeçada por José Isidoro Guedes com o objetivo de obter receitas para a ampliação do Asilo de Mendicidade de Lisboa, realizou-se no Passeio Público, nas noites de domingo, 31 de agosto de 1851, terça-feira, 2 de setembro, e quinta, 4. A iniciativa foi amplamente noticiada pelos periódicos da época. Na Revista Popular, por exemplo, podemos ler o comunicado da comissão promotora no n.º 32 (agosto de 1851, p. 326) e, no número seguinte (setembro de 1851, p. 334), um anúncio. Quanto ao sucesso do divertimento, é bastante positiva uma primeira apreciação feita pelo redator da Revista Universal Lisbonense: A função, se não igualou o que nos contam das festas parisienses, esteve luzida e apparatosa: o obelisco illuminado fez bom effeito, assim como toda a frontaria da cascata ao cabo da espaçosa rua central do Passeio; a profusão de balões de variegadas cores, suspensos em fiadas presas de arvore a arvore, as estatuas que sustentavam na cabeça cestos luminosos, em summa toda a ornamentação póde chamar-se brilhante, não porque resplandecia mas pelo bom gosto da collocação. (2.ª série, tomo IV, n.º 4, 4-IX-1851, p. 47) Uma segunda notícia corrobora a impressão favorável: Dissemos que esta festa era nova entre nós; porque um simulachro de illuminação no Passeio, em a nossa primeira epocha constitucional, distou muito e muito da actual festa, segundo o testemunho ocular de pessoas mui capazes de estabelecerem a comparação: a disposição, o methodo, a ornamentação, os baazares, tudo agora foi absolutamente novo. – Com efeito, o espectador assim que se transpunha o espaço onde está collocado o grande tanque circular do Passeio sentia uma impressão deliciosa, que lhe enlevava os olhos e simultaneamente consolava a alma; a sensação physica era agradavel pelo aspecto daquelles milhares de lumes convenientemente distribuidos e pelo matiz das côres, resplandecendo 6 Giacomo Meyerbeer (nascido Liebmann Beer) (*1791 †1864), compositor alemão. 70 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 entre a folhagem do arvoredo soturno áquela hora, pela variada harmonia das musicas, que tocavam alternadamente nas duas ultimas noites bem desempenhadas peças de musica, pelo giro continuo e encruzado dos concorrentes, e finalmente pelos lances de vista grandemente picturescos, tomados de alguns pontos, como por exemplo: desde o obelisco elevado ao meio da rua central até o topo e até á entrada do Passeio; da varanda superior á cascata; e nas ruas laterais aquella abobeda multicor e ondeante formada pelos pequenos balões. (ibid., n.º 5, 11-IX-1851, p. 59). A arrecadação de fundos, não tendo sido extraordinária, foi satisfatória, devido ao grande número de entradas vendidas: 3.317 na 1.ª noite, 5.415 na 2.ª e 6.879 na 3.ª (incluindo sempre os menores). Cumprindo um papel próximo da crónica social, o poema de Evaristo d’Almeida tem pouco interesse literário, mas fornece-nos algumas informações importantes sobre a vida do autor. A primeira tem a ver com a sua permanência na metrópole em 1851, ano em que se realizou a festa, e em 1852, data da composição e da publicação do poema. Este dado é aliás corroborado pela circunstância de José Evaristo ser nesse período membro da Câmara dos Deputados, aspeto que, sendo embora conhecido, não mereceu ainda a atenção demorada dos que têm escrito sobre o autor de O Escravo7. Numa consulta rápida do Diario da Camara dos Deputados, pude apurar que Evaristo d’Almeida tomou assento como deputado na sessão de 8 de janeiro de 1850 (Diario da Camara dos Deputados. Vol. 1.º = Janeiro = 1850, p. 18), mantendo-se em funções pelo menos até 18528, o que confirma portanto a sua presença na metrópole e em Lisboa no período que está em causa. Outro elemento biográfico que pude colher do seu processo parlamentar diz respeito à sua família: José Evaristo tinha filhos, devendo portanto ser casado, uma vez que, na sessão de 26-VI-1852, um seu colega, Justino de Freitas, participa à Câmara “(...) que o Sr. Evaristo de Almeida não compareceu á Sessão de hontem, e não comparecerá a mais algumas por grave molestia de seus filhos.” (Diario da Camara dos Deputados. Vol. 5.º = Junho = 1852, p. 347). Aproveitando esta breve referência à atuação de José Evaristo d’Almeida como deputado, importa acrescentar que, na sua intervenção mais destacada, se colocou do lado menos simpático de uma importante batalha que sacudiu a sociedade portuguesa da época: na sessão de 22 de março de 1850 (Diario da Camara dos Deputados. Vol. 3.º = Março = 1850, p. 271-2), defende o projeto governamental de uma lei que visava reprimir os abusos da liberdade de imprensa. Apresentada a 1 de fevereiro desse ano, a proposta tinha gerado protestos imediatos, entre eles um manifesto público, datado de 18 do mesmo mês, subscrito por intelectuais como Alexandre Herculano, Almei7 Cf. CARVALHO, 1995, col. 159 e OLIVEIRA, 1998, p. 691. Mais recentemente, a atividade parlamentar de Evaristo d’Almeida nas legislaturas de 1848-51 e 1851-2 foi sucintamente apreciada por DÓRIA (2004, p. 143). 8 A última referência que encontrei ao seu nome ocorre na ata da sessão de 1-VII-1852. Cf. Diario da Camara dos Deputados. Vol. 6.º = Julho = 1852, p. 25. 71 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 da Garrett e Latino Coelho. Apesar disso, aquela que ficaria conhecida como “lei das rolhas” entraria em vigor a 3 de agosto, vindo a ter contudo uma vida efémera: devido aos protestos, seria revogada a 22 de maio do ano seguinte. Justificando a intervenção com a necessidade de explicar o seu sentido de voto, José Evaristo d’Almeida sustenta que as restrições à liberdade de imprensa são determinadas pelo bem maior da própria liberdade: Ouvi a um dos illustres Deputados que me precedeu, chamar á Liberdade de Imprensa a casta filha da Liberdade; eu peço licença para adoptar a figura, porque a acho apropriada e exprime exactamente a idéa que ligo a uma similhante instituição. A Imprensa, Sr. Presidente, em quanto se conserva dentro dos limites prescriptos a um conselheiro circumspecto, a um censor justo; em quanto propaga doutrinas que despertem o respeito á religião, o amor ás instituições liberaes, e a devoção ao trabalho; em quanto tracta de censurar o vicio, elogiar a virtude, promover a paz e a ordem; em quanto finalmente procurar não desmerecer o epitheto de honesta, é uma filha que sustenta aquella que lhe deu o ser, e cujo anniquillamento levaria necessariamente comsigo a mesma liberdade: mas quando essa filha esquecendo preceitos que a propria conveniencia lhe aconselha, se revolta contra essa instituição sagrada a quem deve a existencia; quando ella promove a desordem provocando o Paiz á revolta, injuriando e calumniando os defensores dessa liberdade, pela qual deveria sempre pugnar, então o interesse da liberdade nos obriga a buscar os meios de pôr diques a esses desvarios, dos quaes ella póde tornar-se victima. (Ibid.) Mais à frente, desmonta com inteligência e humor um dos argumentos da oposição: Dizem alguns illustres Deputados, que passando o Projecto da maneira por que se acha, irá reduzir á indigencia os Escriptores Publicos; porque não abundando de meios pecuniarios os talentos no nosso Portugal, segue-se que não podendo fazer o deposito reclamado, verse-hão na dura necessidade de cessar de escrever, e por esse facto reduzidos á miseria; por quanto a maior parte tiram os meios de subsistencia unicamente de seus escriptos. Se este argumento, Sr. Presidente, aproveitasse para este caso, seria logico aquelle que produzisse a abolição das Leis que castigam o roubo, o contrabando, etc. porque individuos ha que tiram os meios de subsistencia unicamente dessa industria criminosa. (Ibid., p. 272) Voltando à Epístola de 1852 e às indicações biográficas nela contidas, devemos reparar na passagem em que o autor justifica a sua insuficiente mestria poética com a circunstância de “A mais bella porção da juventude” (v. 34) ter definhado “Nas africanas plagas (...)” (v. 33), impedindo-o assim de polir “(...) o engenho” (v. 37): Tres lustros só contava, e já da Patria Os beneficos ar’s me não sorriam; Nas africanas plagas definhava A mais bella porção da juventude; Por constante doença atormentado, Via, em ocio, decrescer os bellos dias, Que podéra aproveitar, pulindo o engenho; Por fim que succedeu? O éstro altivo, Que devêra aspirar a amplos vòos, Finou-se, qual, de jardim, flor mimosa, 72 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Que fôra pelo tempo maltratada, Se do cultor a mão a não soccorre, Sécca mesmo em botão, não desabroxa. (v. 31-43) A esta luz, José Evaristo d’Almeida terá ido para África – não necessariamente para Cabo Verde – com quinze anos, por razões de sobrevivência, sendo atingido por uma doença que não é explicitada. Mais à frente, a partir de uma taça de café tomada no botequim do Passeio Público, o autor evoca a sua vida em Cabo Verde, exprimindo simpatia e solidariedade para com o povo do arquipélago: Fui ter ao botequim, a caridade A minha entrada ali também pedia; Reclamei de café pequena taça, E, mal os labios meus tocaram n’elle, Logo o reconheci, como oriundo D’ilhas de Cabo Verde, onde eu passára Uns doz’annos de bem custosa vida; Reconheci-o porque, se não tão forte, Em aroma e sabor não cede ao moka. O café me levou a edeas tristes: Lembrei-me d’esse povo meigo e docil, A quem, mais d’uma praga, o céu mandára; Que luta com a peste, a fome e a sêcca; Que precisa, tem jus á caridade! El’, que não duvidára, em tempos prosp’ros, Ás rochas marinhar, d’ali tirando, Com risco de perder a própria vida, A urzella, mordente valioso, A qual deu á Nação quanto bastára Para hoje o livrar de taes flagellos! A experiencia, porém, lhe tem mostrado Que, em Lysia, a caridade não s’extingue; E, se um Governo paternal não póde, Pagando a divida, extinguir os males, Que pungem, apoquentam, mortificam Um povo que tambem de Lysia é filho, Estão cá muitas almas bemfazentes, Que, ao primo aceno, correm pressurosas, Offertando, com gosto, quanto podem, E mandando-lhe, como já fizeram, Com que se lhe minore o sofrimento. Honra lhes seja por acção tão nobre. (v. 121-152) Podemos começar por sublinhar a informação biográfica: a esta luz, Evaristo d’Almeida viveu – até 1852, data da Epístola –, doze anos em Cabo Verde, o que significa que contaria à época pelo menos 27 anos. O seu nascimento fica assim situado nunca depois de 1825, tornando-se improvável a hipótese que indica o seu falecimento já no século seguinte. Mais importante contudo será notar o modo como o arquipélago é representado nesta passagem. Depois do elogio do café – produto que, alguns anos mais tarde, merece comentário i73 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 dêntico a Guilherme da Cunha Dantas, em Memórias dum Pobre Rapaz (DANTAS, 2007, passim) –, nota-se a expressão da estima para com o povo de Cabo Verde e a preocupação com um destino marcado por fatalidades como “a peste, a fome e a seca” (v. 133). Há também a referência a outro produto de grande importância na economia do arquipélago durante a primeira metade de oitocentos: a urzela, um musgo utilizado na tinturaria que será depois progressivamente substituído por corantes químicos. A passagem termina, num registo que parece denunciar a condição de deputado de Evaristo d’Almeida na época, com um comentário sobre o apoio e a solidariedade da metrópole, seja através do seu governo, seja através daquilo a que hoje chamaríamos a sociedade civil. Para terminar a breve apreciação do poema, falta fazer uma referência aos numerosos problemas de versificação. Idênticas às que tínhamos observado no poema anterior, estas falhas parecem confirmar que José Evaristo, mais do que não ser um verdadeiro poeta, não é também um bom versejador. Dos 253 versos de que se compõe a epístola, a larga maioria é do tipo heroico, havendo contudo 27 que seguem o modelo sáfico e quatro que são pentâmetros iâmbicos. Vejamos um exemplo desta última modalidade: O/bje/ctos/ d’ar/te e/ gos/to, a/li/ le/va/dos 1 2 4 3 5 6 7 8 9 10 Ao nível da métrica, há pelo menos quatro casos de versos hipermétricos, com 11 sílabas, podendo servir de exemplo o v. 69: De/li/cio/sa/ sen/sa/ção/, que/ não/ s’ex/pri/me. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 São também vários os casos em que se impõe uma redução silábica, por vezes normal e aceitável, como no v. 44: Co/mo/ pois/, qu{e}ri/as/ tu/ que eu/ a/ccei/ta/sse 1 2 3 4 5 6 7 8 9 ou no v. 66: 74 10 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Do/mi/na/va,/ co{m} a/ vis/ta, o/ am/plo es/pa/ço, 1 2 3 4 6 5 7 8 9 10 mas noutros casos muito discutível, como se pode ver no v. 36: Via, em/ o/cio/, de/cres/cer/ os/ be/llos/ di/as, 1 2 3 4 6 5 7 8 9 10 Para além da métrica, há também problemas com a acentuação de alguns versos. É o caso do v. 80, que, mesmo admitindo a sinérese no vocábulo inicial, é um falso heroico, dado que a 6.ª sílaba é muito branda: Mo/viam/-se/, co/mo/ que/, pa/ra/ cha/ma/rem 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Para além das duas epístolas, há um terceiro poema – ou “fragmento”, como lhe chama o autor – de José Evaristo d’Almeida: refiro-me ao texto que faz parte da dedicatória a Henrique José de Oliveira do romance O Escravo: Porém tu, Henrique meu, Que tens no peito abrigado Coração sómente dado Aos escolhidos do Ceu; Entender pódes meu canto, Por isso que sabes quanto Minha alma soffre, e soffreu. Contrariamente aos outros dois poemas, este apresenta uma estrofação regular (sétima), com rima (ABBACCA) e com um metro diferente, a redondilha maior. A anotação que se lhe segue – “Fragmento do auctor.” – indica que haveria um original mais longo que até hoje não terá sido encontrado e que importaria conhecer. Acrescente-se aliás que esta estrofe – e a dedicatória – não foi incluída na versão de O Escravo publicada pel’ A Voz de Cabo Verde, o mesmo tendo acontecido com a edição em livro preparada por Manuel Ferreira (ALMEIDA, 1989), como Manuel Veiga (1994, p. 106)9 já fez notar. Concluindo este breve percurso pela poesia conhecida de José Evaristo d’Almeida, não 9 O autor transcreve o poema, mas com um ligeiro lapso: no v. 4, representa Céu com minúscula. 75 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 se pode dizer que seja imerecido o esquecimento a que tem estado votada. Contudo, se é inegável que o autor de O Escravo não passou de um sofrível versejador, a verdade é que esses textos revelam também um homem atento à realidade cabo-verdiana e, de algum modo, comprometido com o destino do arquipélago. O seu estudo poderá também servir para mostrar o muito que falta ainda fazer no que diz respeito à fase de formação da literatura de Cabo Verde: não haverá muitas mais descobertas a fazer – nenhum dos três poemas de Evaristo d’Almeida era verdadeiramente desconhecido –, mas continua a ser necessário muito trabalho de releitura e de contextualização. Referências ALMEIDA, Cláudia Bernardete Veiga de. “O escravo”: entre a identidade caboverdiana e a literatura européia. Dissertação de Mestrado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, 2009. ALMEIDA, José Evaristo de. O Escravo. Linda-a-Velha: ALAC, 1989. CARVALHO, Alberto. “José Evaristo de Almeida”. In AAVV. Biblos: Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa. Vol. I. Lisboa: Verbo, 1995. DANTAS, Guilherme da Cunha. Memórias dum Pobre Rapaz. Organização, prefácio e notas de Manuel Brito-Semedo. 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Como um excelente observador, o poeta descreve o porto ressaltando a melodia particular desse lugar que o encanta. Em “Poetango de la belle époque”, o poeta se posiciona como cancioneiro da cidade, evocando de maneira criativa e fantasiosa os espaços por onde passou. Com o seu rememorar, ele propicia ao leitor a imersão em sensações nostálgicas e irreais, exaltando todo o ambiente citadino de forma quase que universal. Palavras-chave: Cidade; poesia; Raúl González Tuñón; Buenos Aires. ABSTRACT: This article aims to discuss the city's image in the poetry of the Argentine writer Raúl González Tuñón. In order to do this, the poems “Música de los puertos” and “Poetango de la belle époque”, compositions that represent both the beginning and the end of production of the lyrical tuñoneana, are taken as object of study for the analysis. In “Music de los puertos”, the lyrical I beholds the unique melody port, revealing his love for this emblematic part of the city. As an excellent observer, the poet describes the port emphasizing the melody of that particular place that enchants him. In “Poetango de la belle époque”, the poet stands as the city’s songbook, evoking in a creative and imaginative manner the spaces where he had been to. With such a recall, he provides the reader immersion in nostalgic and unreal feelings, exalting the whole city environment to almost a universal way. Keywords: City; poetry; Raúl González Tuñón; Buenos Aires. Raúl González Tuñón (1905-1974) nasceu em Buenos Aires, filho de imigrantes espanhóis; sua mãe morreu quando ele ainda era criança e tinha sete anos; seu pai, operário, morreu atropelado por um ônibus com um pouco mais de cinquenta anos. González Tuñón foi jornalista e poeta, mas pode-se dizer que a lírica sempre esteve avant-garde de sua função periodística. É notório que o poeta argentino Rául González Tuñón pertenceu à geração de Jorge Luis Borges, Oliveiro Girondo, Roberto Arlt, Ricardo Güiraldes entre outros, compreendendo assim a corrente surrealista. Na poesia, junto com Borges, González Tuñón foi um dos poetas que desenvolveu com mais coesão o tema urbano, pois a diferença está na abordagem tuñoneana que focaliza mais o papel do ser humano, sobretudo o do homem e o da mulher pobre na cultura citadina, situando-os no seu espaço social e no seu trabalho. Como uma constante, o poeta desenterra os elementos de uma mitologia urbana, onde o simples, o popular, possui papel protagonista. Raúl González Tuñón elabora suas poesias urbanas a partir da observação de espaços REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 comuns da cidade como o porto, a rua, o cortiço, seus habitantes... Ele passa a descrever esse mundo, em seus poemas, localizando o leitor na Buenos Aires da época em questão, seus costumes e as peculiaridades dos grupos sócio-econômicos oprimidos. Seu amor pelo povo operário, assim como sua fé na possibilidade de mudança e transformação social tornam sua poesia única. Essa atitude de tomar uma grande urbe como tema poético não tinha antecedentes literários na América Latina. Até o século XIX, era quase desconhecida, um dos primeiros que se atreveu a dedicar uma obra total à grande metrópole foi o renomado poeta francês Charles Baudelaire, o qual descreveu Paris com enorme fervor. Na Argentina, a partir do escritor Evaristo Carriego, com seu poema “La canción del bairro”, o espaço da cidade, principalmente o subúrbio de Buenos Aires, ingressou na literatura como tema poético habitual. Seguidores dessa temática, os jovens poetas da década de XX, entre eles González Tuñón, decidiram revelar a cidade mediante palavras, contribuindo a edificar uma mitologia portenha, que não estivesse somente povoada de personagens baderneiros, de cortiços e de casas pouco conceituadas. A nova poesia teria que resgatar do esquecimento a simplicidade, a população trabalhadora, o clima peculiar e familiar dos bairros e ruas, enfim, o cotidiano da urbe moderna. Raúl González Tuñón foi um dos poucos poetas que assumiu essa temática citadina ao longo de toda sua obra, tanto que alguns poemas desse cunho aparecem inclusive em seu livro póstumo El banco en la Plaza (1977) e, segundo o seu mais expressivo biógrafo Hector YÁNOVER (1978:101), referindo-se a González Tuñón, quien no lo ha leído no ha leído poesía argentina. As poesias de Raúl González Tuñón exercem uma influência singular quando se escondem nas dobras da memória, aglutinando-se com o inconsciente coletivo ou individual. Nesse território do surrealismo encontram-se poemas, como “Eche veinte centavos en la ranura”, “Escrito sobre una mesa en Montparnasse”, “Poetango de la Belle Époque” e as inúmeras andanças de “Juancito Caminador”, que contribuem para a fundamentação de modernidade na poesia argentina do século XX. Nessa liberação do inconsciente, isto é, nesse automatismo psíquico dos poetas foi que surgiram poesias de suma importância para toda a literatura mundial. O surrealismo foi a libertação do pensamento mais íntimo, que possibilitou principalmente para González Tuñón o desabrochar de sua produção literária. É importante ressaltar que, antes mesmo da chegada da corrente surrealista na Argentina, o autor já elaborava composições dentro dessa linha poética. A exemplo, tem-se o poema “Eche veinte centavos en la ranura”, escrito quando ele tinha 17 anos, em 1922. Esse movimento literário foi o marco da obra tuñoneana e, a partir dele, foram desenvolvidas outras formas de expressão, surgiram novas correntes de cunho social que também arrebataram o escritor argentino, 79 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 mas a imagem surrealista nunca esteve ausente em suas obras, como se pode verificar a partir das análises poéticas seguintes. “Música de los puertos” O poema “Música de los puertos”, pertencente ao seu primeiro livro de poesias intitulado El violín del diablo (1926), é uma evocação a sonoridade peculiar e particular da diversa musicalidade existente no porto. Em uma longa e única estrofe poética, o poeta propaga sua lírica à semelhança de uma balada rítmica, a fim de representar toda a musicalidade portuária de uma forma intensa e singular. Em meio a um lugar transitório, o sujeito do poema observa atentamente os sons originais que perambulam pelas redondezas do cais e provocam constantes mudanças nesse ambiente aglutinador de sonhos e desesperanças: Música de los puertos siempre igual y distinta. Banderas con iguales colores para todos los ojos iguales y distintos. Proa de la esperanza. Jugo de nostalgia. Enamorada de todos los caminos. Mujer. Entregadiza y sabia. Te estiras a lo largo de los muelles o entras en los recovecos de las almas. Inclinas tu cansancio en las tabernas o te cuelgas de las ventanas huérfanas de pedazos de cielo en la desesperanza. Os cincos primeiros versos do poema se referem à diversidade na unidade que há dentro do ambiente portuário, pois o mesmo acolhe e recebe pessoas de inúmeras procedências, com cultura e visões de mundo diversas que encontram na música uma possibilidade de fraternidade, a partir de uma linguagem universal que é a melodia. O escritor argentino Jorge Luis Borges (1921, p. 115), em seu texto La metáfora, define a mesma como “uma identificação voluntária de dois ou mais conceitos distintos, com a finalidade de emoções”, sendo assim as metáforas “Proa de la esperanza” e “Jugo de nostalgia” simbolizam sentimentos angustiantes, pois na primeira metáfora a esperança está posta em último plano, já que a proa se encontra na parte dianteira da embarcação e na segunda, a nostalgia se encontra na forma “suco”, líquida, ou seja, liquidando-se, esvaindo-se devido sua fluidez. Desta forma, a música age como propulsora da esperança e da nostalgia, por quanto desperta no homem emoções a partir de alguma melodia. 80 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Enamorada de todos los caminos. Mujer. Entregadiza y sabia. Nos versos 7 e 8, o sujeito lírico humaniza a música, pois além de denominá-la como mulher ele atribui à mesma características humanas. A imagem privilegiando o afetivo é uma das características da poética tuñoneana. Segundo o escritor Kevin Lynch (1997) em seu texto “A Imagem do Ambiente”, cada pessoa possui inúmeras associações com alguma parte de sua cidade, e a imagem de cada um está impregnada de lembranças e significados. Essas imagens não são somente de elementos visuais, concretos e determinados. Cada ser humano, ao longo de sua vida, é capaz de aglutinar milhões de imagens visuais e, também sensoriais. Nos versos 9 e 10, “te estiras a lo largo de los muelles o entras en los recovecos de las almas”, nota-se que a música admitida como “sujeito humanizado”, não só transita por espaços físicos e integrados à cidade, como “muelles” (cais do porto), mas também invade espaços menos acessíveis, como o espaço emocional através da metáfora “recovecos de las almas”, (caminhos das almas). A música é capaz de cumprir o papel de instigadora e integradora da imagem visível e invisível, pois, ao se ouvir uma melodia, que se assoma ao indivíduo, este imediatamente a transfere para seu espaço emocional, resumindo o lugar à emoção por meio desse objeto abstrato que é a música. Isto “não significa que exista um espaço dual, mas sim um só e mesmo espaço que, por um lado, é exterioridade e, por outro interioridade, particular manifestação “intensa” do “ex-tenso”, como afirma o escritor Fernando Aínsa (1998) em “Del espacio mítico a la utopia degradada: los signos duales de la ciudad em la narrativa latinoamericana”. O professor Carlos Azambuja (2003), em seu texto “A Aurora da Imagem”, afirma que as imagens se constroem primordialmente pela sensação de uma presença, não importa se concreta, verdadeira ou não. Esta é a condição para a sua própria formação e deve ser distinta de nós mesmos, os seus observadores [...]. Logo, a ideia de música dos portos permite ao leitor mais atento percebêla como fruto da experiência de se fazer contato, encontrar algo que lhe afeta a ponto de ser sentido dentre o conjunto de todas as outras coisas que o envolvem. Dessa forma, a partir de vivências noturnas dentro do eixo cidade-porto, o eu-lírico mais uma vez cria imagens surreais por meio da humanização da melodia portuária, ao se referir à “mujer”: “Inclinas tu cansancio en las tabernas o te cuelgas de las ventanas huérfanas de pedazos de cielo en la desesperanza”, nos versos 11, 12, 13 e 14. Essa emoção e ação tipicamente humana atribuída a elementos não humanos, forma uma imagem que transmite a sensação de desilusão e abandono, ratificada pelos substantivos “cansancio” e “desesperanza”. Nas tabernas a música sempre se faz presente e, geralmente, seu funcionamento começa à noite e termina na madrugada, quando cansados, os músicos pendem de seus instrumentos para descansar e pensam na vida que se segue e em seus projetos particulares. Os desejos dos homens 81 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 estão aludidos nos versos acima citados através de dois símbolos: “ventanas (janelas)” e “cielo (céu)”. Segundo o Dicionário de símbolos (CHEVALIER, 2002, p. 512), a janela “enquanto abertura para o ar e para luz, significa receptividade”, ou seja, eles esperam, porém está aspiração do homem representada pelo vocábulo céu (CHEVALIER, 2002, p. 230) significando, “a consciência, o absoluto das aspirações do homem, como a plenitude da sua busca, como o lugar possível de uma perfeição do seu espírito [...]” não transmite esperança, porque as janelas são órfãs de pedaços de céu, são a própria desesperança. Logo, a imagem sensorial é a da melancolia, imagem esta que é bem peculiar à música, já que a mesma pode suscitar no homem lembranças de um tempo perdido. Música de los puertos siempre igual y distinta. Políglota. Tus velas se izaron a los vientos más extraños. Patio sonoro, evocador y bueno para los hombres que no saben patios. No tienes ni cabellos ni manos. Eres sonido nada más. Entras despacio, convincente. Avivas el fuego de una pipa y desarrugas una frente. Música de los puertos siempre igual y distinta. Políglota. Tus velas se izaron a los vientos más extraños. Nos versos 15, 16, 17 e 18, o sujeito-poético reafirma a intercontinentalidade da música portuária, denominando-a de poliglota e configurando nesta característica toda liberdade rítmica que a música transmite. Ela é a única capaz de ser igual, pois sua construção está explicitamente vinculada aos sons e, ao mesmo tempo diferente, devido à melodia particular de cada cultura. É nessa diversidade da unidade que a música se torna universal e concomitantemente nacional; assim como a poesia, que quanto mais nacional, tanto mais internacional se torna, de acordo com as próprias palavras de González Tuñón: La poesía es internacional, porque cuando más nacional es, más internacional se torna (In ORGAMBIDE, 1997, p. 33). Como já afirmado anteriormente, ao longo da poesia, o eu-lírico humaniza a música, mas também a revela apenas como som, nos versos 21 e 22, “No tienes ni cabellos, ni manos. Eres sonido nada más”. Para ele, embora a música também possa assumir a forma personificada, humanizada em sentidos, ela também é presença abstrata, não possui nenhuma característica física. Nos versos que se seguem, o sujeito do poema cria uma atmosfera nebulosa, a partir da construção de uma imagem musical penetrante e persuasiva que entra sorrateiramente e convence, verso 23, “Entras despacio, convincente”. Essa imagem transmite ao leitor uma agradável visão 82 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 ilusória de que, através da música, tudo se transforma, até mesmo os ânimos, versos 24 e 25, “Avivas el fuego de una pipa y desarrugas una frente”. Música de los puertos. Muchas y una. Pirata que te robas los espíritus y los llevas de un muelle hacia otro muelle. Faro invisible y guiador de oídos. Rompes un ademán o apagas un cuchillo, o transformas una blasfemia en padre-nuestro. Ya vengas tormentosa y lúgubre o ya pierdas tu tono siniestro. Música de los puertos. Muchas y una. Uma vez mais, o eu-poético usa o paralelismo da diversidade na unidade para afirmar a característica única da música, aquela que trabalha com várias realidades de uma forma singular, para atingir as emoções. Nos versos seguintes, o eu-poético cria uma imagem móvel, fluida e lírica para exaltar o som melódico do porto. A partir de símbolos, como “pirata” e “cais do porto (muelle)” e das metáforas “farol invisível, guiador de ouvidos”, o poeta atribui à música o poder de manipular nosso espírito, nosso imaginário por meio do real, do som. Versos 28 e 29, “Pirata que te robas los espíritus y los llevas de un muelle hacia otro”. A música, personificada na forma de pirata rouba o espírito humano. Se por um lado, os piratas são os ladrões dos mares, que costumam roubar objetos valiosos; por outro lado, o “pirata da poesia” objetiva roubar o que há de vital no ser humano, sua alma, e levá-la de um lugar a outro. Essa mobilidade espacial pode ser entendida como uma mobilidade sensorial, imaginária, pois é o “pirata-música” que conduz essa mobilidade a partir do primeiro cais, tomado como foco da realidade em que está inserido o homem e, do segundo cais como o destino final, o imaginário. É por meio do real que o homem atinge o imaginário e a música é o meio capaz de realizar essa transição. Além de transportadora da realidade para o imaginário, a música está colocada em posição de norteadora da alma humana, verso 30 “Faro invisible y guiador de oídos”, pois o farol que aí está é invisível, ou seja, o farol não guia pela visibilidade real, mas sim pela “visibilidade imaginária”, pelos sentidos humanos. É por meio do ouvir que ela, a música, norteia o espírito do homem. Rompes un ademán o apagas un cuchillo, o transformas una blasfemia en padrenuestro, nestes versos, o poeta coloca a música como transformadora da realidade. Ela é capaz de modificar o ambiente (“rompes un ademán”), já que acaba com formalidades, de apaziguar situações de perigo (“apagas un cuchillo”), pois, conforme o Dicionário de símbolos (Chevalier, 2002, p. 414), “o símbolo da faca é, frequentemente, associado à ideia de execução, de morte, vingança [...]” 83 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 e até de transformar palavras grosseiras em vocabulário imaculado (“transformas una blasfemia en padre-nuestro”). Os últimos versos encerram uma imagem totalizadora da música, que, ao longo do poema, o poeta vem detalhando. Para ele, a melodia portuária pode ser traduzida numa imagem transitória de tensão e melancolia “Ya vengas tormentosa y lúgubre”, a se dissolver (“o ya pierdas tu tono siniestro”) numa imagem agradável. Toda diversidade da música do porto, toda tensão e melancolia, deságua na harmonia, na unidade rítmica que age como modificadora da realidade, transportando o indivíduo à “outra realidade” mais agradável e feliz. Percebe-se que em todo o poema o poeta joga com percepções e sentimentos caóticos que se dissipam em sensações prazerosas, ou seja, percebese que a partir do caos emerge a beleza poética e, conforme González Tuñón (1976, p. 143): La poesía es ese maravilloso equilíbrio entre la armonía y el caos. “Poetango de la belle époque” A poesia “Poetango de la belle époque” a ser analisada a seguir, foi extraída do livro La veleta y la antena de 1971, a penúltima obra poética de Raúl González Tuñón. Tanto A la sombra de los barrios amados (1957), como La veleta y la antena constituem uma etapa de síntese da obra tuñoneana. Como afirma a escritora Nora Domínguez (in ZANETTI 1980/1986, p. 130, tradução nossa), […] nesta etapa convivem em uma situação de equilíbrio o chamado poeta social e o mais individual. É, talvez, sua etapa mais homogênea; nas anteriores havia em todos os casos um livro que destacava sobre os outros, aqui no se pode fazer essa distinção. Em La literatura resplandeciente (1976), seu único livro teórico, González Tuñón desenvolve o conceito de realismo romântico, o qual, segundo ele, deve estender todas as artes, inclusive a poesia. Segundo ele No hablamos de arte puro, de arte por el arte y tampoco proponemos un arte de propaganda, decimos sencillamente arte, simplemente literatura, que cuando es auténtico no es ni ha sido jamás evasión, sino reflejo y aun invención. […]. Un arte, una literatura, en fin, que considerando todos los matices, los caminos infinitos, la vasta geografía de la realidad y la imaginación, tiene sus raíces en la tierra y de ésta asciende “flamboyant” (como la pintura abstracta del chileno Vargas Rosas) enviada hacia la altura, hacia el futuro. No nos gustan las clasificaciones, pero lo designaríamos como realismo romántico (1976, p. 10). Contudo, este conceito se fortalecerá nesta etapa de conjunção entre fantasia e consciência, que são os espaços a que nos remetem La veleta y la antena. Raúl González Tuñón utiliza o substantivo realismo acrescentando a ele o qualificativo romântico. Para o autor, houve realistas 84 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 românticos em todas as épocas. O escritor argentino afirma, Eso que tiene el arte auténtico: la realidad (no su copia, mediocre, además, y de inspiración libresca, como la que hacían en Buenos Aires, por ejemplo, los escritores del llamado “grupo de Boedo”) el hecho humano y el artista que lo interpreta, lo desentraña, lo explica, lo muestra, lo da vuelta, si se quiere, lo inventa, pero siempre real, humano y aún demasiado humano. Y absolutamente en proyección universal. (De “El camino” en Hay alguien que está esperando, 1952) (1952, p. 124). Em “Poetango de la belle époque”, percebe-se a presença desse conceito mesclado ao surrealismo. O título do poema sugere esse realismo romântico. O eu-lírico, para marcar seu envolvimento total com a poesia, joga com as palavras numa apreciável junção de poeta + tango, criando assim um neologismo que nomeia o poeta como um cantor e, no caso de González Tuñón, um cantor da cidade. Essa identificação com a música é revelada pelas palavras do próprio autor em seu texto autorretrato (in ORGAMBIDE, 1997, p. 33) quando afirma: porque no soy un químico del verso sino un cantor, en el sentido más neto de la palabra. Em quase toda sua obra, percebe-se a marca da musicalidade, tanto que muitas de suas poesias foram transformadas, pelo grupo musical Quarteto Cedrón, em canções, especialmente em tangos, como é o caso de “Eche veinte centavos en la ranura”, “Juancito Caminador”, “La Libertaria”, entre outras. Este poeta-cantor também faz menção à corrente à qual pertence, ou seja, apresenta sua filiação literária, no caso, a La belle époque. Esta foi uma época na história da França, que começou no fim do século XIX e durou até a Primeira Guerra Mundial. A belle époque foi considerada uma era de ouro da beleza artística e intelectual, marcada por profundas transformações culturais, que se traduziram como novos modos de pensar e viver o cotidiano. Ao se intitular “poetango de la belle époque”, o sujeito do poema atribui a seus versos todo aquele período áureo da arte literária. Ele evoca para sua poesia todo o glamour que rodeia este período de inovação, emblematizando e embelezando, desta forma, sua lírica. O poema está divido em duas partes, cada parte com três estrofes de versos díspares. Na primeira parte, o sujeito poético revela uma cidade com seus locais e personagens típicas. São imagens aludidas a uma cidade que se modificou, abandonando o encanto do antigo para ceder passagem ao novo, ao moderno. Na segunda parte, o eu-lírico se dirige diretamente à cidade e, em meio aos relatos de experiências passadas neste ambiente urbano, renova a esperança de futuros cantos poéticos. La noche de la razzia los herreros cantaban y quedaron después de la tormenta súbita 85 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 la sombra vigilante del árbol esquinero y el silencio insolente del arrabal herido. … Sin embargo, Raúl, ¿no te acordás? tenía su encanto, eh, la belle époque, mirada desde el ángulo de nuestra adolescencia implacable y ansiosa. Nos quatro primeiros versos, da primeira estrofe, dessa primeira parte, o poeta indica uma mobilização perante o foco de sua observação (a cidade), não somente o pensamento, a verbalização (linguagem – ideologia) do poeta, mas também os mecanismos (consciente-inconsciente) de sua percepção. Esses dados de sua percepção pouco informam sobre sua visão poética, porém indicam a presença de uma atitude receptiva, mobilizadora e, sem dúvida, sensível aos estímulos do real concreto. Nos versos acima, o autor descreve um acontecimento situando tempo (“la noche”) e espaço (“arrabal”). Por meio de metáforas, registra conscientemente os problemas sociais que ocorrem nesse ambiente citadino: “sombra vigilante” / “arrabal herido”. Também mostra a preocupação da população, aqui representada pelos ‘herreros’, que vivem nos subúrbios, atentos a possíveis tribulações. Ainda se pode entender esses versos como se o poeta estivesse mergulhado no subconsciente e de lá fosse arrancado ferozmente, para logo a seguir refletir sobre o real. Esta interpretação seria possível se comparada a este momento literário do eu-poético com o próprio momento do autor. Como já foi citado, o início da obra tuñoneana está marcado pelo surrealismo, depois esse estilo é sobreposto por um estilo mais social, mais tenaz e, nas suas obras posteriores, o escritor retoma do interior de sua memória o fabuloso e inquietante mundo dos sonhos. Uma das características da poética de Raúl González Tuñón é o emprego de citações e referências. É o que se verifica no quinto verso da estrofe, “... Sin embargo, Raúl, ¿no te acordás?”, quando o eu-lírico utiliza, apesar de ter alterado o pronome pessoal tú para vos, um verso do poema “España en el corazón”: “Raúl, te acuerdas?” elaborado pelo escritor chileno Pablo Neruda (2004, p. 118) em homenagem ao autor argentino. Essa intertextualidade adotada estabelece uma interação entre o texto original e o que o cita, revelando um novo objeto de leitura. Com referência ao mesmo verso, a pontuação adotada no início é um recurso muito recorrente na poética tuñoneana, pois, segundo seu criador, permite que a imaginação do leitor, a partir do que já leu, crie suas próprias inferências, construindo assim uma significação individual. Esse apelo à recordação do autor feito pelo eu-lírico é uma forma de personificação, que reforça a vinculação do gosto de ambos por um mesmo estilo de época; ao mesmo tempo, marca um saudosismo, 86 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 uma nostalgia por aquela época que tanto assombrava aos jovens escritores do mundo, sedentos daquela “nova arte”. Absorvido pelo inconsciente1, o eu-poético perambula por esse ambiente oculto, voltando seu olhar para antigos espaços e formando imagens aparentemente desconexas do mundo real. Por sobre los exilios y las muertes, los gobiernos volteados y el último tranvía que dobló hacia la vaga estación del ocaso veo ahora en la gris esfumatura de la distancia, que es el tiempo, el íntimo esplendor de la Vuelta de Rocha con su perfil de patio, con su siempre domingo. La tarima del trío musicante en Barracas palpitando en el ritmo grave y cordial de un tango y ese Bar y Billares saliendo a la vereda donde una vez Aieta sacó viruta al fueye junto al cine Buen Orden cuyo antiguo esqueleto cayó luego de haber proyectado en su sábana la última película del hondo cine mudo. Nesses versos, o sujeito do poema emerge num túnel do tempo e recorda fatos e locais que estiveram presentes em sua vida em um momento anterior. Cita a sucessão de governos fracassados que se estabeleceram na Argentina, explicitando como foi o término dos mesmos “exilio y muertes”. E como representante do último sopro de imaginação, que conduz o processo criador até a nostalgia, o “tranvía”. Esse condutor ao chegar a alguma estação, qualquer ponto, permite que o eu-lírico vislumbre, através do tempo, a época esplendorosa de um local familiar “perfil de pátio”, extremamente vivaz, que era a “Vuelta de Rocha”. Este ambiente portenho era conhecido pelos vários eventos de domingo e, principalmente, pelas apresentações de tango. No poema, há uma identificação do bairro “Vuelta de Rocha” através da recordação. A partir da observação do sujeito-poético, se conhece esse espaço urbano. Contudo, esse olhar é mais maduro, o olhar do viajante. González Tuñón já havia percorrido diversos países e vivenciado inúmeras culturas, logo, o seu olhar havia se transformado, e sua cidade agora era vista com outros olhos. Conforme o sociólogo Sérgio Cardoso (In NOVAES, 1988, p. 359-360): “[...] o distanciamento das viagens não desenraiza o sujeito, apenas diferencia seu mundo”. González Tuñón, apesar de ter conhecido várias localidades, nunca deixou de ser o mais legítimo portenho e admirador do tango. A nostalgia precede e sucede Raúl González Tuñón. Sua cidade é nostalgia, é tango. De [Inconsciente] o psiquismo não é redutível ao consciente e [...] certos “conteúdos” só se tornam acessíveis à consciência depois de superados certas resistências [...]. In: Lampanche (1992). 1 87 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 acordo com Héctor Yanóver (1978, p. 55), poesía y música son una misma cosa. Y en la medida que buscamos la expresión de Buenos Aires, escribimos innumerables tangos con música de poema. O autor sempre declarou seu amor pelos bairros dos subúrbios da capital argentina que fizeram parte de sua vida. Em muitas de suas obras é possível encontrar referências a alguns desses bairros como el Once, el Judío, Riachuelo entre outros. Nessa poesia, ele descreve com saudosismo a região de La Boca. O eu-lírico cita seus bares, sua música, seus cantores e o cinema Buen Orden que não existe mais. Nada lhe escapa. Com o olhar aguçado do viajante, ele vai relatando, através de sua memória, fatos, objetos, pessoas que emergem de seu subconsciente. De forma quase mecânica, como se mudasse a tela do cinema, o sujeito poético mergulha ainda mais no interior de sua memória, aproximando-se ao automatismo psíquico. Y reflejada en otra pantalla, en la memoria, pasa ahora la insomne y extraña singladura del Paseo de Julio con su ángel y sus monstruos. Los vidrios de colores del bailetín insólito con su pianola henchida de cálidas mazurkas y el pop-art inefable de los muñecos móviles y los juegos lumínicos vibrando en el inverosímil Salón de Novedades -donde nació el surrealismocon su violín de lata y el barco en la botella que amamos para siempre. Y la noche soltando su empecinado grillo por la gran selva de cemento. La buseca del Chanta y el vendedor de globos. Nessa parte do poema se percebe “o máximo de precisão para o máximo de desvario”, forma que, conforme o escritor mexicano Octavio Paz (1983, p. 15), pode condensar o surrealismo. A partir de várias enumerações, que parecem aleatórias, Raúl González Tuñón reflete ludicamente em sua poesia seu subconsciente. Se anteriormente percebíamos a flutuação do consciente, agora não mais, posto que há uma profunda absorção interiorizada de suas percepções mentais. A insônia também está associada ao subconsciente e, nesses primeiros versos, a encontramos vinculada à memória. É uma espécie de “memória inconsciente” ocasionada pela ausência do sono. A aparente dicotomia “angél/monstruos” forma um jogo análogo a outros pares, luz/trevas, claro/escuro, bem/ mal, quando o sujeito do poema registra esse ambiente citadino (“Paseo de Julio”) efetuando um intenso confronto urbano entre o bem e o mal. Essa dualidade de Raúl González Tuñón é adequada a sua preocupação também aparentemente dicotômica pela política e a literatura, o real e o mágico, o militarismo e a aventura, o nacional e o universal, interesses que não 88 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 se submetem uns aos outros, mas que se complementam na visão do poeta por esse mundo. Um mundo que o perturbava e sempre o assombrava. Ele mesmo declara em seu autorretrato (In ORGAMBIDE, 1997, p. 32), Contempla el mundo. Porque contemplando el mundo se aprenden más cosas que encerrándose años y años en una biblioteca como hicieron muchos escritores. Porque contemplando el mundo uno aprende a luchar por todo aquello que pueda embellecerlo y contra todo aquello que lo afea. De acordo com Mircea Eliade (1991, p. 8-9), “as imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser”. Por meio dessas inúmeras imagens, o sujeito lírico deixa registrado, no poema, símbolos que são frequentes em sua obra, como: “el barco en la botella”, “el vendedor de globos” e “el grillo”. Estas alegorias integram o mundo infantil sempre retomado nos poemas tuñoneanos. A insistente recorrência ao subconsciente infantil aciona a liberação da memória individual, que desembocará no surrealismo, uma importante estratégia usada por González Tuñón para se atingir o inconsciente em suas obras. No surrealismo, as palavras ganham vida. É como se elas fossem autossuficientes e, por isso, comandassem o fluir do canto imagístico, representado em versos e estrofes poéticas. Assim, ao mencionar “bailetín” e “mazurkas”, o sujeito do poema concede ritmo e sensualidade à estrofe já que os dois vocábulos se referem à dança. Ainda na mesma estrofe, verifica-se uma vez mais o comprometimento do poeta com o surrealismo. Ele vê nas grandes invenções do século (“muñecos móviles”, “juegos lumínicos”) a perpetuação dessa corrente literária: “el inverosímil Salón de Novedades -donde nació el surrealismo”. Também marca a importância da suprarrealidade em sua obra, pois retoma parte do título do seu primeiro livro El violín del diablo, “violín” totalmente surrealista, para demonstrar a retomada desse estilo em sua produção poética. A imagem desta grande selva de cimento, ou seja, a cidade moderna, mais uma metáfora utilizada como recurso poético, não afugenta seu canto de amor e nostalgia de uma urbe que mescla o novo com o antigo. Conforme Justo Villafañe “o mundo da imagem esta aí, com seu tremendo poder de sugestão e sua indubitável influência social, suas incógnitas e problemas, que exigem uma solução imediata, mesmo que seja ilusória” (2002, p. 13). Na segunda parte do poema há um direcionamento da observação do eu-lírico, que antes passeava pelas ruas e bairros da cidade, e agora se dirige a essa cidade como um todo. 89 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Buenos Aires, yo amo tu aire impuro y puro que inspiró largamente mi verso impuro y puro a la luz de la estrella del bosque de ladrillo. Te caminé, te olí, te bebí, te canté: dejada la bohemia, su lado oscuro y áspero, nunca olvidé al bohemio ni al francotirador que vigila en mi sangre. Em um momento de profunda exaltação lírica, o sujeito do poema declara seu amor pela cidade, um amor incondicional, pois ama tanto o ruim quanto o bom (impuro/puro) que ela tem. Essa aparente dicotomia o inspirou a criar seus versos, que assim como a cidade, são sujos e limpos, e estão impregnados totalmente com o urbano, mas, principalmente, com o marginal do lado urbano. Buenos Aires desde o início da lírica tuñoenana foi cantada exaustivamente como principal motivo poético. Conforme o escritor alemão Walter Benjamin (apud PEIXOTO, 2004, p. 99), “o surrealismo dá voz a esse mundo de coisas, em cujo centro está a cidade”. González Tuñón fundou a cidade mediante palavras, contribuindo a edificar uma mitologia portenha que não estivesse só povoada de marginais, cortiços e lupanares. A poesia trataria de resgatar do esquecimento cenas de suas ruas, matizes da paisagem e personagens anônimos, não o épico, e sim o cotidiano; não somente o heróico, mas também o monótono. De acordo com Kevin Lynch (1997, p. 103), um ambiente não se apresenta de uma única forma. A cada observador lhe é atribuída a função de recriar uma imagem mental da realidade, que naquele momento é captada por seu olhar, O ambiente visual torna-se parte integrante da vida dos habitantes. A cidade não é de modo algum perfeita, mesmo no sentido restrito da imaginabilidade, nem todo o seu sucesso visual se deve apenas a essa qualidade, mas parece haver um prazer simples e automático, um sentimento de satisfação, presença e certeza, que decorre da simples contemplação da cidade ou da possibilidade de caminhar por suas ruas. O sujeito do poema revela sua vivência citadina como experiência desde o sensorial. Ele emprega os cincos sentidos do corpo humano para retratar tudo que absorveu da capital argentina. O caminhar é a ação mais completa porque envolve todos os sentidos. Talvez, por isso Buenos Aires é representada na poética de González Tuñón de forma constante e incansável. Ao caminhar vemos, ouvimos, tocamos e sentimos aromas que nos recordam sabores, enfim nos envolvemos mutuamente numa interação ímpar entre o sujeito e o ambiente. Porém, o eu-poético enfatiza essas sensações ao discriminá-las; “Te caminé, te olí, te bebí, te canté” e registra toda sua comoção por essa urbe evocadora através de sua música poética. Certa vez, disse o poeta (In GONZÁLEZ TUÑÓN, 2005, p. 113): “...la música amontonada del mundo...”. Esta frase é utilizada em outras poesias tuñoneanas 90 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 e sintetiza a ideia de uma cidade vivente, em pleno desenvolvimento, que “pulsa” e “olha” adiante. A poesia de Raúl González Tuñón é uma tessitura em que o social e o político se entrelaçam como em uma atitude lírica regida pela nostalgia e pela ternura. Percebe-se uma confirmação da relação entre sua vida e sua fundamentação poética: “nunca olvidé al bohemio ni al francotirador que vigila en mi sangre”. Essas duas vertentes, a lírica e a social, sempre frequentaram as páginas das escrituras tuñoneanas: o sujeito do poema afirma que abandonou o lado escuro e áspero da boêmia, mas que a mesma segue presente em suas entranhas. En las cosas que nombro está la poesía y aún crece en mi duende tu aventura y se asoma a mis ojos reflejando al destino de esa magia plural de ciudades que forman el país argentino, imán de las bitácoras, en cuyo azul transfondo transcurre la esperanza. Verifica-se que o eu-lírico se intitula nomeador da poesia e, portanto, detentor do conhecimento poético. Como um sujeito criador, o poeta dá vida às palavras, aos objetos e aos espaços, transformando-os em alegorias ilusórias. Conforme Octavio Paz “as palavras são paraquedas que se abrem em pleno voo [...] Antes de tocar a terra, estalam e dissolvem-se em explosões coloridas” (1983, p. 201, tradução nossa). Desta forma, seria como se os vocábulos se despregassem do inconsciente poético e fossem se agrupando para compor a poesia e, no momento da leitura, se dissipam. De acordo com o autor Kevin Lynch “olhar para as cidades pode dar um prazer especial” (1997, p. 1). Na poesia de González Tuñón, encontra-se indícios de prazer através de detalhes da observação, que funda a constante exaltação desse ambiente urbano. Para o poeta, a grande aventura do inconsciente está na comoção, no assombro que os objetos e os espaços citadinos lhe causam. Esse descobrir, desvendar o desconhecido, surpreender o destino é que move o sujeito-poético. Conforme o sujeito do poema, o país é formado por cidades tão plurais que encantam o transeunte. Essa diversidade é derivada dos muitos substratos culturais da Argentina, especialmente de Buenos Aires, onde vários imigrantes se estabeleceram. Os poetas mais originais, que cantaram a capital argentina, advertiram que não se poderia cantar o inexistente e, por isso, buscaram seus motivos nas histórias simples e nos seres desconhecidos; retiraram seus ídolos do próprio povo e acrescentaram a cadência do tango à poesia. Baseando-se nessa busca, González Tuñón retrata como principais elementos inerentes a sua poética citadina, o simples e o popular existente em cada lugar. A imagem espelhada é uma imagem aflorada do subconsciente, uma imagem do desejo 91 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 poético sobre Buenos Aires. O eu-lírico deixa evidente a esperança que habita no país argentino, o qual é denominado como aglutinador de direções “imán de las bitácoras”. A realidade e a imaginação sobrevivem na memória e afloram por meio dos símbolos empregados pela poesia. Percebe-se que o eu-lírico se relaciona com o poema por meio do subconsciente, do qual saltam as imagens plurais da sociedade argentina. Y ese perfil de niebla de ciudades que anduve -laboriosas, angélicas o canallas y absurdasy el resplandor de las belles époques en los mapas sutiles de soñados países que me están esperando en el futuro. De acordo com o poeta Jorge Luis Borges (apud SARLO, 1994, p. 20, tradução nossa), “a cidade é o teatro por excelência do intelectual, e tanto os escritores quanto seu público são atores urbanos”. Nessa estrofe, o sujeito do poema realiza uma síntese de seu percurso como espectador desse ambiente. As cidades por onde andou estão sendo resgatadas de seu subconsciente: “ese perfil de niebla de ciudades que anduve”. Através de adjetivos “-laboriosas, angélicas o canallas y absurdas”, o poeta qualifica as cosmópolis que percorreu com seu canto. Essa dualidade constante entre o bem e o mal “angélicas o canallas” reflete a incansável busca pela exaltação do marginal, não o discriminando, mas revelando a integração entre esses elementos, pois em todo lado negativo reside o positivo. Conforme Raúl González Tuñón “Era un mundo increíble, canalla, sombrío y tremendo, pero dentro de esa canallería había algo de angelical también [...] todo lo imaginable y lo inimaginable, un mundo sórdido y al mismo tiempo puro” (In SALAS, 1975, p. 2). O olhar analisador que Raúl González Tuñón lança sobre a cidade se deve a sua obstinada busca pelo novo sem desprezar o antigo. Sérgio Cardoso (In NOVAES, 1988, p. 358) em seu texto o “Olhar do viajante” exemplifica essa forma de enxergar o mundo ao seu redor. Para ele, o olhar não se anestesia na amplitude de um espaço; ao contrário, está sempre em busca de barreiras que despertem e fixem sua atenção [...]. Essa procura pelo novo é o que impulsiona González Tuñón a percorrer o mundo, é o que o motiva a seguir sonhando com espaços, pessoas ou objetos cotidianos distantes de sua realidade, mas que o assombram vivazmente e proporcionam a ele projetar-se no amanhã, no desconhecido de maneira destemida. Para o autor ainda há países a descobrir e esse é o desejo que mantém pulsando sua imaginação. Certa vez, afirmou “y mi corazón continúa alegre y violento como el corazón alborotado de un mundo nuevo”. Sua fé é inabalável. Não pode deixar de crer, é um poeta... (In ORGAMBIDE, 1997, p. 48). Tanto em “Música de los puertos” como em “Poetango de la belle époque”, encontra-se 92 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 refletida a imagem da cidade. Se num primeiro momento, o olhar do poeta é um olhar primário de um jovem descobridor e inquiridor dos recônditos de Buenos Aires; no segundo momento, esse olhar é um olhar amadurecido pelo transcurso do tempo, pelas incontáveis experiências que esse sujeito vivenciou nas grandes urbes modernas. Agora o olhar que o poeta lança sobre sua cidade natal é um olhar nostálgico e saudoso, que perscruta cada lugar na tentativa regatar dos vastos palácios de sua mente a memória adormecida. Com essas duas breves análises poéticas, percebe-se a importância da vertente surrealista para a obra de Raúl González Tuñón. 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Apesar de não corresponderem plenamente à concepção toroviana do gênero, é possível encontrar em seu cânone crítico e historiográfico termos e categorias estéticas – “Fantástica”, “sobrenatural”, “de horror”, “tétrica”, “sombria”, “macabra”, “monstruosa”, “dantesca”, “simbolista avantla lettre”, “gótica”, “satanista”, “byroniana” – que aproximam os contos azevedianos do gênero fantástico. No entanto, a multiplicidade de termos e classificações não a caracterizam adequadamente e só demonstram a dificuldade de definir-lhe o gênero. Palavras-chave: Crítica, historiografia, fantástico, Álvares de Azevedo. ABSTRACT: The criticism fortune of Álvares de Azevedo has strongly emphasized the characteristics of the fantastic genre present in his prose. Although at present the Taverna Night is regarded as a hegemonic narrative fantastic, not all his short stories correspond to that which is the more traditional conception of gender, of Tzvetan Todorov. Although not fully match the design toroviana the genre, it is possible to find in your canon criticism and historiographical terms and aesthetic categories - “Fantastic”, “supernatural”, “horror”, “gloomy”, “dark”, “macabre” “monstrous”, “Dante”, “symbolist avantla lettre”, “gothic”, “Satanist”, “Byronic” - approaching the tales azevedianos the fantastic genre. However, the multiplicity of terms and classifications do not adequately characterize and only demonstrate the difficulty of defining him the genre. Keywords: Criticism, historiography, fantastic, Álvares de Azevedo. 1. Introdução Desde o século XIX, a obra de Manuel Antônio Álvares de Azevedo tem sido objeto de muitos estudos, teses, dissertações e apreciações críticas diversas. Contudo, a atenção que se dispensa aos títulos não é equitativa. Assim, as obras em prosa, como Macário e Noite na taverna, jamais gozaram do mesmo espaço e prestígio de A lira dos vinte anos, por exemplo, cuja fortuna crítica é significativamente mais extensa. Ainda que haja um ou outro estudo de fôlego dedicado às incursões de Azevedo nos gêneros narrativo e dramático – e, para nomes como João Ribeiro e Mario de Andrade (cf. ROCHA, 1982, p. 57), Macário represente o nível mais alto da sua obra –, pode-se dizer que a prosa azevediana foi preterida ou relegada a um segundo plano pela crítica. Um exemplo contundente é o juízo de REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Joaquim Nabuco (1875), que afirmava ser melhor para a memória do jovem paulista que esta parte de sua obra fosse esquecida – opinião compartilhada por Ferdinand Wolf (1863) e até mesmo por Machado de Assis (1866). Consultas aos principais livros de história da literatura brasileira revelarão que nossa tradição historiográfica concede pouco ou nenhum espaço ao livro de contos de Azevedo. Nélson Werneck Sodré (1915) e José Aderaldo Castello (1999), por exemplo, sequer mencionam o teatro e a narrativa azevediana em suas obras. José Guilherme Merquior (1977), no pouco espaço que concede à prosa do paulista, julga-a sumariamente de desleixada e desigual. Massaud Moisés (1983, p.149) considera o fantástico de Noite na taverna como “inverossímil, artificioso, europeu e de segunda mão”. Antonio Candido (1971), no seu Formação da Literatura Brasileira, considera a produção byroniana de Azevedo como meras imitações, fruto de um satanismo provinciano1. Somente a partir de meados do século XX surgiram estudos dedicados exclusivamente à Noite na Taverna, geralmente atrelando-a ao “byronismo” e ao “mal do século”. Nas décadas de 1980 e 1990, alguns ensaios passaram a considerar o livro de ensaios como sequência narrativa de Macário, seguindo a hipótese postulada por Veiga Miranda, em 1931, e retomada por Antonio Candido ao proferir, em setembro de 1981, na Academia Paulista de Letras, a palestra “Teatro e prosa de Álvares de Azevedo”2. Nos últimos anos, temos percebido que Noite na taverna tem sido estudada na universidade como a primeira manifestação de uma literatura de cunho fantástico em nossas letras. Citamos como exemplo um artigo de Maria Cristina Batalha (2010, p. 4), de outubro de 2010, onde a ensaísta, ao traçar o percurso de uma possível literatura fantástica brasileira, aponta o escritor em questão como o primeiro e mais representativo autor desta pouco estudada vertente em nossa literatura. Para a ensaísta, os contos de Noite na taverna e o drama Macário inaugurariam, na literatura brasileira, uma espécie de “estética da incerteza”. Afrânio Peixoto (1931), décadas antes, já havia filiado a prosa de Álvares de Azevedo ao gênero fantástico e de horror, ao afirmar que Noite na Taverna seria um conto fantástico, perverso e gótico que poderia ser classificado como o pioneiro desse gênero no Brasil. Mas não foi o único. Outros antes e depois dele se ocuparam de categorizá-la de diversas formas que contribuíram para a sua consagração como narrativa de gênero fantástico. A multiplicidade de termos – fantástica, fantasiosa, gótica, de terror, de horror, simbolista avant la lettre, produto do romance negro – que aparecem em sua fortuna crítica não só mostram a dificuldade de se definir o gênero da obra, 1 Ressalte-se que Antonio Candido se dedicará a essa parte da produção literária azevediana na década de 1980. A palestra foi publicada no ano seguinte, como introdução a uma edição de Macário, e republicada sob o título “Educação pela Noite” sete anos depois, em 1989. 2 96 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 mas também a fizeram oscilar entre os gêneros conexos ao fantástico, a saber, o gótico, o estranho e o horror. Embora na atualidade Noite na Taverna seja hegemonicamente considerada como uma narrativa fantástica, nem todos os seus contos correspondem àquela que é a mais tradicional concepção do gênero, a de Tzvetan Todorov. É o que postula Roberto de Souza Causo (2003), ao afirmar que a obra não se encaixaria estruturalmente neste modelo teórico. Para o ensaísta, a atmosfera construída por Azevedo não apresenta quaisquer acontecimentos inexplicáveis, imprecisos, em que personagem e leitor hesitem diante da ambiguidade dos lances do enredo, elementos essenciais para que seja considerada como pertencente ao gênero fantástico. Apenas o segundo conto, “Solfieri”, estaria adequado à concepção todoroviana do fantástico, pois seria o único a apresentar a ambiguidade definidora do gênero. Se Noite na taverna não corresponde plenamente à concepção de “fantástico” desenvolvida por Todorov, cabe-nos perguntar: em que momentos da história e da crítica literária brasileira a obra foi classificada com termos que a associam a uma forma de literatura incomum ao Brasil nacionalista da época? 2. A recepção crítica de Noite na Taverna No século XIX, a crítica literária começa a se firmar com abordagens mais históricas e sociológicas, deixando de lado, progressivamente, a tradição da retórica e da poética clássicas. É durante esse período de ascensão e afirmação da crítica literária no Brasil que são publicadas as Obras completas de Manuel Antônio Álvares de Azevedo em dois volumes, em 1853 e 1855, respectivamente. Após a publicação póstuma de suas obras, foram muitos os discursos laudatórios dedicados a ela, ou, mais precisamente, dedicados a sínteses biográficas a seu respeito, um procedimento característico da crítica da época: As celebrações de escritores em cerimônias públicas, mediante alocuções fúnebres ou comemorativas, bem como textos de apresentação protocolar de autores jovens ou estreantes, [eram] práticas comuns na sociabilidade dos tempos românticos (SOUZA, 2009, p. 2). Desse tipo de manifestação é possível destacar a “Notícia sobre Manuel Antônio Álvares de Azevedo”, de Joaquim Norberto de Sousa Silva, lido em uma das sessões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1872 e publicado no ano seguinte, como prefácio da terceira edição das Obras completas. Além de disseminar uma série de lendas sobre a vida do escritor, ainda hoje cultivadas, é a principal referência, no século XIX, da aproximação entre Noite na taverna e o gêne97 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 ro fantástico, ao fazer menção às suas “narrações monstruosas”, “cenas informes” e “inverossimilhanças” (SILVA, 2005, p. 161). Outros exemplos da tradição do biografismo são o “Discurso biográfico do bacharel M. A. Álvares de Azevedo”, do Dr. Domingo Jacy Monteiro, lido na quarta sessão solene do Ginásio Brasileiro e publicado como prefácio do primeiro tomo das Obras completas na edição de 1862, e o discurso pronunciado por Carlos Magalhães de Azeredo, em 15 de novembro de 1892, na sessão literária celebrada pela Academia de Direito de São Paulo, em honra a Álvares de Azevedo, Castro Alves e Fagundes Varela, depois publicado, em novembro do ano seguinte, n’O Estado de São Paulo. Esses discursos contribuíram, mesmo que indiretamente, para filiar os contos de Noite na taverna ao fantástico, ao chamarem atenção para a inverossimilhança das narrativas azevedianas. Além dessas manifestações orais, encontramos ainda notícias sobre Álvares de Azevedo nas introduções de antologias e nos estudos de perfis biográficos, muitos deles presentes nas edições das Obras completas, como o discurso biográfico intitulado “Duas palavras”, do Dr. Domingo Jacy Monteiro, prefácio ao primeiro volume de 1853, e a biografia de Joaquim Manuel de Macedo, constante na edição portuguesa de Noite na taverna, de 1878, e na edição da Garnier, de 1902, bem como ainda a “Notícia biográfica”, de autoria anônima, publicada na edição portuguesa do Poema do Frade de 1890. No século posterior, os estudos literários brasileiros assumiram nova feição, tornando-se mais especializados. Se, no Oitocentos, a fortuna crítica de Noite na taverna resumiu-se a discursos laudatórios sobre o autor, sínteses biográficas e textos resultantes de homenagens em cerimônias públicas, fúnebres ou comemorativas, no século XX começamos a observar mudanças de orientação nesses estudos. No entanto, os primeiros anos do século XX guardam uma estreita relação com o século anterior, dado que a crítica dessa época continua voltada para o biografismo ao modo de Sainte-Beuve, persistindo, por isso, em associar a produção literária de Azevedo a aspectos de sua vida e modo de ser. Será somente a partir dos anos 1930 que se torna perceptível a mudança no movimento da crítica, quando a obra de Álvares de Azevedo passa a despertar considerações de ordem estética, e não mais biografista. Surgem pesquisas de maior fôlego, dedicadas a aspectos formais da literatura azevediana. Aparecem também os primeiros trabalhos que empreendem uma análise de maior profundidade teórica e estética sobre a presença de características do gênero fantástico nos contos do autor paulista. Dentre eles, destacam-se os de Afrânio Peixoto (1931), Homero Pires (1931 e 1942), Letícia Malard (1968) e Julio Jeha (1983). Afrânio Peixoto aponta para os traços inovadores da produção de Azevedo, ressaltando 98 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 sua originalidade criadora, mas não escapa ao vício do século anterior, ao associar a obra do jovem à sua personalidade e à sua condição de espírito. Vale, contudo, observar a visão do crítico sobre o livro de contos, que, para ele, teria sido uma tentativa do gênero fantástico em nossas letras, “uma obra prima de puro romantismo, que pode estar, e estaria bem, entre as obras peregrinas desse gênero terrífico perverso e cruel” (PEIXOTO, 1931, p. 342). Homero Pires eleva a posição de Azevedo como prosador, ao apontar a influência que exercera sobre escritores do romantismo e de fases literárias posteriores. Coloca-o em um patamar superior ao de seus contemporâneos, e até mesmo aos que lhe são anteriores, ao chamá-lo de “nosso romântico por excelência” (PIRES, 1931, p. 355). Para Pires, portanto, Álvares de Azevedo era um “[...] um narrador prodigioso de contos fantásticos e terríveis” (PIRES, 1942, p. XIII, v. 1), estudioso e ótimo leitor, e por isso mesmo suas criações em prosa foram impregnadas pela influência do Romantismo gótico inglês e das narrações fantásticas de Hoffmann e Poe. Letícia Malard desenvolve um aprofundado estudo dos contos a partir de um dos principais traços estilísticos do gênero fantástico – a ambientação noturna. É à noite que as lembranças do passado surgem, que os mortos revivem, que o mal surge. Tudo o que se passará em torno da mesa da taverna “se concentra dramaticamente em torno da noite” (MALARD, 1968, p. 89), e Malard analisa como o campo semântico noturno – negro, escuro, as luzes que se apagam, sombra, trevas, meia-noite – contribuem para produzir um efeito de fantástico: “Tudo se acaba envolvido na escuridão, como se fosse uma representação teatral de horrores e alucinações” (Ibid., p. 92). Julio Jeha, ao analisar a narrativa de Claudius Hermann, afirma que, embora o conto não se enquadre na tradicionais descrições do gênero, é possível encontrar traços característicos dele. A partir dos apontamentos de Bellemin-Nöel (1972) em “Notes sur le fantastique”, propõe que o fantástico se instaura, no caso deste conto específico, a partir da maneira pela qual é narrado. A oscilação das pessoas do narrador, ora primeira, ora terceira, causam no leitor, bem como no narratário, uma incerteza quanto à realidade factual daquilo que se narra (cf. JEHA, 1983, p. 124 -134). Lembremos que foi Arnold quem terminara a narrativa de Hermann, quando o narrador baixa a cabeça e reluta em continuar a sua história, um indício definitivo da oscilação dos narradores. 3. A questão do fantástico em Noite na Taverna O fato inquestionável é que boa parte da fortuna crítica de Azevedo emprega o adjetivo fantástico para caracterizar os contos de Noite na taverna. Karin Volobuef advertiu que o termo, na maioria das referências críticas, deveria “ser entendido como sinônimo de excêntrico, mirabolante e exagerado” (VOLOBUEF, 1999, p. 199). Vale lembrar, entretanto, que, antes dos estudos de Tzve99 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 tan Todorov, na década de 70, “a crítica designava como fantástica toda narrativa de fatos que não pertenciam ao mundo real, contrariando a realidade que nos cerca” (BATALHA, 2011, p. 13), caracterização pois bastante abrangente, que englobava desde o onírico ao sobrenatural. Assim, tudo o que não era passível de ser descrito como realista era enquadrado na condição de fantástico. Para compreender o motivo pelo qual, desde as primeiras edições, Noite na taverna foi categorizada como obra de cunho fantástico, é necessário entender o uso do termo pelos estudos literários ao longo dos anos. Maria Cristina Batalha aponta que o termo foi e ainda é usado para designar as mais diferentes manifestações literárias. A dificuldade remonta às “diferentes concepções filosóficas do final do século XVIII” (ibid., p. 12) que atribuíram ao termo diversos sentidos, bem como aos problemas relacionados à tradução do termo de uma para outra língua europeia: [...] na França, por volta de 1830, quando os românticos se apropriaram do termo tentando desvincula-lo da tradição gótica, eles o reinvestem com um sentido radicalmente novo, ao mesmo tempo em que o substantivam: a partir desta época, para os românticos franceses, “o fantástico” estará definitivamente associado ao nome do contista alemão E.T.A. Hoffmann, embora não tenha sido ele o criador do gênero (Ibid., p. 12-13). A literatura francesa foi uma das mais difundidas entre nós durante o Romantismo. Era comum que até mesmo produtos de outras letras, europeias ou não, chegassem até nós em traduções francesas. Como Hoffmann é mencionado em Noite na Taverna, a crítica associou a obra ao escritor alemão, relacionando-a, por conseguinte, ao gênero fantástico. O fantástico em Noite na taverna ocorre através da exploração de temas transgressores que promovem a incerteza, o questionamento da realidade e da veracidade daquilo que o homem conhece acerca do mundo que o cerceia. Todos os temas trabalhados pelo o gênero foram explorados por Azevedo na parte soturna de sua obra, que se convencionou chamar byroniana. Assim como em Poe, sua prosa apoiou-se no fantástico das exacerbações da natureza e do ser humano. Por isso, causou nos seus leitores, tanto do seu próprio século quanto dos subsequentes, um impacto semelhante àquele determinado por uma narrativa genuinamente fantástica segundo o modelo todoroviano, produzindo, assim, uma experiência de leitura que impulsiona o processo catártico. Mesmo que, após os estudos de Antônio Candido (1982, 1989), a crítica de Álvares de Azevedo tenha mudado seu curso, evitando, em alguns casos, a associação dos contos de Noite na taverna ao gênero fantástico, como é o caso do estudo de Décio de Almeida Prado (1996) e de Hélio Lopes (1997), é possível perceber uma contínua persistência em demonstrar seus vínculos com este gênero, o que fica ainda mais evidente mediante a apreciação dos estudos contemporâneos sobre a prosa do jovem paulista. São inúmeros os ensaios acadêmicos que vislumbram no surgimento desses contos, em 1855, o início de uma literatura fantástica brasileira, haja vista os comentados 100 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 juízos críticos de Cilaine Alves (2004) e Maria Cristina Batalha (2010). Ao explorar temas tabus, como a necrofilia e o canibalismo, inscreveu-se entre as obras fantásticas herdeiras do gótico que se dedicaram ao enfrentamento dos tabus e da exploração do lado irracional do homem e da sociedade. Os escritores góticos do XVIII foram os primeiros a trabalhar com temas controvertidos, em especial os que envolviam morte e sexualidade. Seus finais, no entanto, eram, geralmente, moralizantes e adequados aos “bons princípios da fé cristã”. Os gêneros que deles se desdobraram, o fantástico e o horror, por exemplo, ao aparecerem num momento bastante particular da civilização europeia – a ascensão da burguesia e a queda da aristocracia, as revoluções, enfim, o Iluminismo –, foram mais além, promovendo uma profunda exploração de tais temas. Por isso, a literatura resultante desse tempo dedicou-se exaustivamente à exploração dos tabus e da irracionalidade humana. Em especial, aqueles temas que trabalham com a morte, como o caso da maior parte das narrativas de Poe, foram ainda mais explorados. Para grande maioria da humanidade a morte é um mistério e, portanto, o perfeito ponto de pressão psicológica e mobilização do leitor de qualquer época. É como se tudo que fosse velado, no caso, a morte, despertasse interesse no público no sentido de se colocar a moralidade à prova; e, mais até do que isso, de se contestar o racional através não somente do sobrenatural, mas da representação de atitudes animalescas que o homem é capaz de ter. O gênero fantástico, entretanto, atravessou diferentes fases. Na passagem do século XVIII para o XIX, quando do seu surgimento, exigia a presença do sobrenatural, como no caso das narrativas Hoffmann e Maupassant; já em meados do século XIX, em que se consolidou, passou a explorar mais o psicológico humano, inserindo nas narrativas temas como a loucura, alucinações e pesadelos. Apesar de cada um dos temas tabus em Azevedo ser abordado sob uma perspectiva romântica, em que cada violação moral é descrita com linguajar apto a amenizar o horror das ações narradas, ao abordá-los numa sociedade patriarcal, como a brasileira do século XIX, o jovem paulista conseguiu um efeito muito semelhante às narrativas de Poe, cujos epílogos efetivamente não são nada moralizantes. Referências ALVES, Cilaine. “A fundação da literatura brasileira em Noite na taverna”. In: Intinerários – Revista de Literatura. Araraquara: Unesp/FCL, n. 22, 2004. ASSIS, Machado de. “Fagundes Varela: Cantos e fantasias”. In: Obra Completa. Vol. 3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006 [1866]. 101 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 AZEREDO, Carlos Magalhães de. 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Palavras-chave: Teixeira e Sousa; recepção crítica; historiografia literária brasileira. ABSTRACT: This paper aims to analyzing the reception of Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa (1812-1861) in the nineteenth and twentieth centuries. Most of Brazilian literary histories presents him as a secondary writer who produced texts which have structural and thematic problems. Some of these works consider this author the first national novelist, but emphasize the bad quality of his writings. However, there is an extensive documentation which shows that Teixeira e Sousa was appreciated by his contemporaries, as shown by critical texts published in various periodicals of the nineteenth century. From these questions, this paper discusses the ways that lead a writer to be canonized or relegated for the background by literary historiography. Keywords: Teixeira e Sousa; critical reception; Brazilian literary historiography. 1. Introdução Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa foi um escritor muito versátil e, como a maioria dos “homens de letras” do Brasil oitocentista, publicou obras pertencentes a gêneros diversificados e foi bastante atuante na imprensa. Além de ter divulgado muitos poemas de ocasião, traduções e artigos em periódicos renomados de seu tempo, ele publicou um número considerável de obras, dentre as quais figuram três livros de poesia [Cânticos líricos (1841-1842), Os três dias de um noivado (1844), A independência do Brasil (1847-1855)], duas peças teatrais [Cornélia (1844), O cavaleiro teutônio ou a freira de Marienburg (1855)], duas traduções [(Lucrécia, de M. Ponsard (tragédia – 1845), Mazepa, de Lord Byron (novela – 1853)], um livro de modinhas cujas letras eram de sua autoria [As mensageiras de amor (1851)] e um livro de entretenimento [A sorte (1851)]. Embora tenha produzido obras literárias diversificadas que colaboraram para sua entrada no mundo das letras, o romance foi o gênero de sua predileção, pois publicou um número maior REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 de narrativas em relação à quantidade de textos pertencentes a outros gêneros. As obras em prosa também parecem ter sido as produções de sua autoria preferidas pelo público, pois todos os seus romances obtiveram ao menos uma edição em volume e uma em folhetim no século XIX: O Filho do Pescador foi publicado duas vezes tanto em folhetim quanto em volume1; As Fatalidades de Dois Jovens ganharam quatro edições em volume e uma em folhetim2; Tardes de um Pintor ou As Intrigas de um Jesuíta foi impresso duas vezes em folhetim e duas em volume3; Gonzaga ou A Conjuração de Tiradentes foi divulgado na forma de livro e de folhetins4; Maria ou A Menina Roubada ganhou duas edições em folhetim e uma no formato livro5 e A Providência, seu último romance, foi publicado em folhetim e em volume6. Os textos críticos que abordaram o autor tanto no século XIX quanto no XX têm em comum o fato de conferirem maior relevância à sua faceta de romancista, entretanto, a recepção que esse autor obteve por parte da crítica literária sofreu alterações drásticas ao longo dos anos. Como veremos, seus contemporâneos consideravam-no um autor de importância crucial quando se tratava do estudo do romance brasileiro e, apesar de apontarem alguns problemas em suas narrativas, reconheciam a sua importância para a literatura nacional. Ao longo do século XX, porém, suas obras em prosa foram progressivamente desvalorizadas e ele passou a ser visto como um autor secundário cuja importância se reduz à precedência na publicação do gênero romanesco. 2. Teixeira e Sousa entre seus contemporâneos – o escritor renomado Teixeira e Sousa demonstrou sua versatilidade como escritor ao publicar obras pertencentes a gêneros literários variados e essa aposta na diversidade colaborou para que encontrasse um lugar na roda literária de seu tempo. Os textos poéticos e dramáticos que publicou na imprensa e na 1 As versões em folhetim foram divulgadas nos periódicos O Brasil (1843) e A Marmota (1857) e ambas as edições em volume foram impressas na Tipografia de Paula Brito em 1843 e 1857. 2 Não há informações sobre o responsável pela impressão da edição de 1846, mas as demais edições em volume foram confeccionadas na cidade do Rio de Janeiro: a de 1857 foi impressa na Tipografia de Paula Brito, a de 1874 foi impressa pela Editora Popular e fez parte da coleção “Biblioteca Romântica” e o volume publicado em 1895 foi editado pela Livraria J. S. Coutinho. A edição em folhetim foi impressa na Marmota Fluminense em 1856. 3 A primeira edição em folhetim foi divulgada no jornal Arquivo Romântico Brasileiro, em 1847, e serviu de base para a elaboração da primeira edição em volume, a qual foi impressa na Tipografia de Teixeira e Sousa. O romance voltou a ser republicado em forma de folhetins nas páginas de A Marmota entre os anos de 1857 e 1859, com algumas interrupções, e, no ano de 1868, ganhou uma nova edição em volume impressa pela tipografia carioca Cruz e Coutinho. 4 O primeiro volume da edição em formato livro foi impresso na tipografia de Teixeira e Sousa em 1848, mas o segundo volume veio a lume em 1851 e foi confeccionado pelos prelos da Tipografia Fluminense de C. M. Lopes, em Niterói. Em 1860, o romance foi divulgado em folhetim nas páginas de A Marmota. 5 Quando foi publicada pela primeira vez entre os anos de 1852 e 1853 como folhetim da Marmota Fluminense, a narrativa não foi editada no formato livro. Em 1859, voltou a figurar nas páginas desse periódico e, finda a publicação dos folhetins, foi impressa em volume pela Tipografia de Paula Brito. 6 Ambas as edições se deram em 1854, na cidade do Rio de Janeiro: primeiramente, o romance foi divulgado como folhetim do Correio Mercantil e, em seguida, impresso em volume pela tipografia de M. Barreto. 105 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 forma de livros foram apreciados em estudos críticos divulgados ao longo do século XIX, confirmando a importância dessas produções para a obtenção do reconhecimento de seus contemporâneos. É o que exemplificam os textos críticos que abordaram o conjunto das produções poéticas do autor, como as considerações de N. J. Costa sobre a poesia brasileira, divulgadas em 1850 no periódico O Beija-Flor. Nesse texto, o autor foi considerado um dos escritores que seguiram a “revolução reformadora” inaugurada por Gonçalves de Magalhães e coroada pelas produções de Gonçalves Dias (COSTA, 1850, p. 12). Outro exemplo de abordagem da produção poética do escritor foi o texto que Fernandes Pinheiro divulgou em um exemplar da Revista Popular de 1859, intitulado um “Rápido Estudo sobre a Poesia Brasileira”. Nele, o crítico deu o título de “regenerador literário” a Gonçalves de Magalhães e filiou as produções de Teixeira e Sousa à escola romântica: Como o visconde de Almeida Garrett para a literatura portuguesa, foi o Sr. Magalhães o nosso Moisés: curou-nos da servidão clássica e apartou-nos os novos horizontes românticos. Denodados campeões se ergueram a seu brado e nos arraiais da mocidade brasileira reinou insólito entusiasmo. [...] Os Três Dias de um Noivado do Sr. A. Gonçalves Teixeira e Sousa pertencem a essa escola que chamaremos brasílico-romântica. Poema cheio de interesse, de vida, de calor é um dos monumentos mais estimáveis da nossa jovem literatura. (PINHEIRO, 1859, p. 23). Fernandes Pinheiro escolheu Os Três Dias de um Noivado como exemplo de poesia nacionalista, considerando a obra um dos “monumentos mais estimáveis” entre as produções dos autores que, a seu ver, compunham a “escola brasílico-romântica”. A referência a Teixeira e Sousa como discípulo de Gonçalves de Magalhães foi recorrente nas críticas oitocentistas sobre poesia nacional que o mencionaram. A aparição do autor nesses e em outros textos que discutiram a poesia nacional indica que suas produções poéticas asseguraram-lhe um lugar entre os escritores brasileiros, principalmente se considerarmos que foi incluído em três antologias poéticas divulgadas na época, figurando ao lado de poetas de vulto. Em 1848, ele fez parte do Parnaso Brasileiro, de João Manuel Pereira da Silva, um dos primeiros compêndios literários brasileiros (Cf. SILVA, 1848). Na década seguinte, em 1854, seus poemas foram publicados na Grinalda de Flores Poéticas, uma seleção de produções de poetas brasileiros e portugueses (LAEMMERT, 1854). Anos depois, em 1885, figurou no Parnaso Brasileiro, de Mello Moraes Filho (MORAES FILHO, 1848). A atuação como poeta foi mais importante para a projeção do autor no círculo literário oitocentista que suas peças teatrais, pois ele foi incluído em poucos textos sobre dramaturgia. Como exemplo, podemos mencionar o artigo divulgado em 1844, ano em que se deu sua estreia como 106 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 dramaturgo, no qual a peça Cornélia foi analisada por A. L. Burgain (Cf. BURGAIN, 1844). A partir da década de 1860, esse escritor passou a ser lembrado predominantemente em função do papel que desempenhara na formação do romance brasileiro, o que se justifica se considerarmos que ele dedicou especial atenção à divulgação de suas obras em prosa. A história editorial dos seus romances indica que as narrativas foram as produções de sua autoria mais apreciadas pelo público, pois, como vimos, todos os seus romances tiveram no mínimo duas edições no século XIX. A recepção que suas narrativas obtiveram por parte dos críticos indica que, para seus contemporâneos, a principal contribuição do autor para as letras brasileiras foi sua produção literária em prosa. A Providência, por exemplo, recebeu comentários elogiosos em um texto dedicado inteiramente à sua análise e publicado, em 1855, em O Guanabara. O crítico se mostrou otimista em relação ao romance, observando que se tratava de uma “criação gigantesca” que fazia honra ao seu autor e tinha condições de passar à posteridade. De acordo com ele, três aspectos fundamentais atestavam a qualidade da obra: Além de outros, é de nosso dever notar três coisas no romance, que são: a fidelidade aos costumes da época em que o autor figura a sua história, a conveniência dos seus caracteres e a cor local sempre animada e sempre brilhante. Pode bem ser que exageremos, mas dizemos o que sentimos: há muito tempo não lemos um livro tão abundante de belezas, de tão florido e agradável estilo e de linguagem tão amena e correta. (PINHEIRO, 1855, p. 61). Boa reconstituição dos costumes, caracteres convenientemente traçados, cor local bem explorada, estilo agradável, linguagem amena e correta, enfim, um texto “abundante de belezas”. Nas demais páginas de seu artigo, Fernandes Pinheiro dedicou-se a esmiuçar seus comentários, citando excertos do romance que comprovavam suas impressões. As narrativas de sua autoria também foram abordadas, em conjunto, em vários textos dedicados à análise da prosa nacional, os quais indicaram o lugar privilegiado que Teixeira e Sousa ocupava entre os romancistas brasileiros no século XIX. Em maio de 1861, por exemplo, ele foi incluído no artigo “Literatura Pátria – Romances Brasileiros”, texto em que F. T. Leitão mostrou-se incomodado com o fato de que, a seu ver, o romance era uma “especialidade literária” que não vinha sendo devidamente explorada no Brasil: Podemos dizer que não possuímos romances nacionais! À exceção das limitadas produções que nesse gênero devemos aos senhores Dr. Macedo, Teixeira e Sousa e Alencar, não é desarrazoado declarar-se que nada mais temos, e conquanto a Moreninha, o Moço Loiro, a Vicentina, as Fatalidades, a Providência, o Guarani [...] sejam as provas indestrutíveis de que nesse terreno muito lucro poder-se-ia colher em honra das letras pátrias: não se deve contudo deixar de lamentar o atraso em que elas se acham?! (LEITÃO, 1861, p. 3). Para o autor, a reduzida publicação de romances por parte de escritores brasileiros deri107 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 vava, em grande parte, da falta de incentivo, seja do governo ou mesmo dos cidadãos comuns. No intuito de impulsionar a produção do gênero, mencionou obras que indicavam o êxito que os escritores brasileiros poderiam obter caso se dedicassem à produção de narrativas. O texto indica que Teixeira e Sousa possuía um bom lugar como romancista naquele momento, visto que foi referido como um dos prosadores mais representativos, sem o estabelecimento de hierarquia entre ele e José de Alencar. Na década de 1860, o autor foi abordado em duas publicações que tiveram grande poder consagrador no século XIX, pois foram utilizadas no colégio Pedro II, instituição cujos programas serviam de modelo para o ensino de todo o país: o Curso de Literatura Nacional, do Cônego Fernandes Pinheiro, e O Brasil Literário, de Ferdinand Wolf (Cf. SOUZA, 2007, p. 23-25). Publicado em 1862, o Curso de Literatura Nacional foi um dos primeiros livros dedicados inteiramente à produção literária brasileira. Fernandes Pinheiro, apesar de se deter na abordagem da produção poética de Teixeira e Sousa, referiu-se ao escritor como “romancista fecundo e imaginativo” que ocupava “honroso lugar nos dípticos da nova escola” e observou que, nas produções em prosa, o autor vinha adquirindo “bem merecida reputação como fiel e desapaixonado pintor dos nossos usos e costumes”. Segundo ele, “desde o Filho do Pescador, até a Providência, o mais bem elaborado dos seus romances, descobre-se uma escala cromática de aperfeiçoamento, tanto na substância, como ainda na forma.” (PINHEIRO, 1978, p. 510). A “merecida reputação” referida pelo crítico certamente era uma alusão ao número de edições de seus romances e à boa aceitação do autor por parte do público leitor oitocentista. O Brasil Literário, de Ferdinand Wolf, obra escrita em 1863 e publicada em 1864 sob o patrocínio do imperador Pedro II, também concedeu lugar de destaque ao autor. Apesar de reconhecer a “qualidade de poeta lírico e dramático” de Teixeira e Sousa, o crítico observou que ele, assim como Joaquim Manuel de Macedo, “encontr[ara] no romance um gênero que melhor conv[inha] ao seu gênio.” A abordagem de seus atributos como prosador foi feita mediante a comparação com o autor de A Moreninha: A força de Teixeira e Sousa reside principalmente na invenção de intrigas complicadas, de imbróglios interessantes, de soluções surpreendentes, assim como na verdade de suas descrições, suas tendências morais e suas vistas sérias. Ultrapassa ainda Macedo por seu amor ao misterioso e cremos que ele seja mais original e nacional do que ele. Mas é-lhe inferior na descrição dos caracteres, na vivacidade do diálogo e do espírito. Ele não sabe, como Macedo faz, alternar agradavelmente o cômico e o humorístico com o sentimental e sério; a ironia e os bons ditos deste romancista lhe são desconhecidos. [...] O caminho seguido por Teixeira e Sousa parece ser o que convém melhor ao gosto nacional porque os outros romances brasileiros que nos chegaram trazem todos mais ou menos o mesmo sinal. Mas os lados fracos do autor que vimos de citar chocam mais ainda; o interesse aqui é produzido por meios mais grosseiros e reside unicamente no assunto, as intrigas são tão complicadas quanto possível; todos enfim se distinguem por uma tendência pronunciada para o misterio- 108 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 so e mesmo o melodramático. Nenhum deles tem o valor literário dos romances de Macedo e mesmo de Teixeira e Sousa. (WOLF, 1955, p. 348-9). O crítico demonstrou apreço pelas narrativas de Teixeira e Sousa, acreditando que superavam em mistério, originalidade e nacionalismo os romances de Macedo, que se destacava em outros quesitos. Segundo ele, as características que lhe pareciam reprováveis nas obras do escritor fluminense foram encontradas em vários romances brasileiros com os quais entrara em contato, entretanto, as produções dos demais prosadores não possuíam o mesmo “valor literário” das narrativas do autor de O Filho do Pescador. Ao postular que a trilha aberta por esse romancista foi seguida por muitos outros escritores, o crítico valida a ideia de que a trajetória do autor foi exemplificativa das saídas e soluções encontradas pelos primeiros prosadores nacionais. Em 6 de maio de 1870, a “Revista Bibliográfica” do Dezesseis de Julho, jornal conservador criado e dirigido por José de Alencar e seu irmão Leonel, publicou um artigo que dialogou com as ideias de F. T. Leitão sobre o romance brasileiro. O autor, que não se identificou, discorreu sobre o descaso nacional em relação aos textos produzidos por escritores locais, algo que contribuía para que suas produções fossem pouco conhecidas em outros países. Como exemplo do desconhecimento da produção dos autores brasileiros pelas demais nações, o crítico lembrou que o português Mendes Leal, quando publicou Calabar, declarou que a literatura brasileira não possuía romances. A seu ver, essa afirmação era inadmissível, pois foi feita num momento em que “os nomes de Macedo, Teixeira e Sousa, Alencar e outros já estavam proclamados entre nós como romancista da primeira plana”. Entretanto, ressaltou que não lhe causava admiração que o escritor luso ignorasse “a existência de romances brasileiros do mérito da Moreninha, Tardes de um pintor e Guarani”, tendo em vista que muitos desconheciam as produções literárias de seus compatriotas (Revista Bibliográfica, 1870, p. 4). Chama atenção, no texto, o fato de Teixeira e Sousa ser novamente mencionado ao lado de Alencar como “romancista da primeira plana”. Sua atividade como prosador foi novamente abordada no capítulo que Fernandes Pinheiro dedicara ao “Romance” em seu Resumo de História Literária, publicado em 1872. Para o crítico, o desenvolvimento que o gênero obtivera na França influenciou a literatura brasileira, que foi inundada por “traduções e imitações” de produções europeias. Tais narrativas, segundo ele, não possuíam “nativismo”, nem faziam referência aos usos e costumes brasileiros, distanciando-se do público. Tal lacuna teria sido preenchida por Joaquim Manuel de Macedo e por Teixeira e Sousa. Segundo ele, o prosador em questão participou da “glória de ser um dos criadores do romance nacional” e teve a “manifesta intenção de imprimir em sua obra o cunho da nacionalidade”, mas fizera visíveis empréstimos dos autores da “escola romântica francesa”. Tal ressalva, porém, não impediu 109 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 o crítico de elogiar as narrativas do autor, pois logo em seguida observou que “desde O Filho do Pescador até A Providência [o escritor] deu à luz uma série de romances recomendáveis pelos fulgores da imaginação, vivos toques de costumes [e] quadros natureza [...].” (PINHEIRO, 1872, p. 466). Os exemplos analisados permitem verificar que os textos críticos publicados ao longo do século XIX indicam que Teixeira e Sousa era um escritor reconhecido e constantemente mencionado quando se abordava a produção poética, dramática e romanesca nacionais. A predileção que o autor demonstrou pelo romance não passou despercebida pelos homens de letras do século XIX, já que, apesar de abordarem as facetas de poeta e de dramaturgo, seus contemporâneos deram destaque à sua produção ficcional em prosa. A história editorial de suas narrativas demonstra que eram muito apreciadas pelos leitores não especializados, pois ganharam várias edições tanto em folhetim quanto em volume. Uma das razões para o autor ter sido bem recebido por seus contemporâneos foi o fato de que, em suas obras em prosa, ele procurou explorar os dois elementos mais apreciados pelos homens de letras que analisaram narrativas ficcionais naquela época: a moralidade e o nacionalismo (Cf. SILVA, 2009, p. 31-73). A importância desses critérios está ligada ao contexto de formação do romance moderno na Europa e aos elementos que estiveram em voga quando o gênero passou a ser publicado no Brasil. Quando os brasileiros iniciaram a produção de narrativas ficcionais, o romance moderno ainda era uma novidade na Europa, onde surgira no século XVIII. No momento em que vieram à luz as obras dos primeiros prosadores, a elaboração e a análise das produções literárias era pautada pelas regras presentes nos livros de Arte Poética e Retórica. Para ser considerado excelente, o texto deveria seguir esses preceitos e dialogar, em termos de forma e conteúdo, com as obras eleitas como modelos pelas pessoas eruditas. Como as narrativas ficcionais não eram previstas pela tradição clássica, o romance foi considerado um “novo gênero” e enfrentou muitas dificuldades para ser aceito como uma “leitura séria”. Na Europa dos séculos XVIII e XIX, segundo Márcia Abreu, proliferaram textos teóricos e críticos que discutiram o gênero e dividiram-se em duas posições extremas: “identificar os defeitos estruturais dos romances e condenar os perigos que sua leitura representaria ou exaltar a ‘nova’ forma e glorificar as virtudes que dela adviriam.” (ABREU, 2003, p. 267). Apesar de abordarem questões diversas, muitas das objeções à leitura de romances estiveram associadas à questão moral. Isso se deu porque, como observa Sandra Vasconcelos, o princípio horaciano do utile et dulci (instruir e deleitar) e a justiça aristotélica (que previa a punição do vício e a recompensa da virtude) foram os elementos que balizaram a atividade crítica durante o 110 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 século XVIII, fazendo com que muitas vezes se observassem mais os valores éticos que estéticos das obras (VASCONCELOS, 2000, p. 40-41.) Os argumentos utilizados por aqueles que eram contrários à leitura das narrativas ficcionais, os quais propagavam que o romance moderno comprometia a moral e o gosto de seus leitores, foram rebatidos por pessoas que eram favoráveis ao contato com o gênero e, em termos gerais, alegavam que a leitura de narrativas colaborava para que as pessoas fortalecessem suas noções morais: Como resposta aos críticos que acreditavam que a leitura dos romances conduzia ao pecado, os defensores do gênero tomaram o problema tal como formulado por eles – as narrativas promovem a identificação do leitor com a vida dos personagens – mas inverteram o modo de avaliar tal situação. Enquanto os detratores atinham-se ao pecado que consistia em imaginar-se no lugar de alguém que saía dos trilhos da virtude, os entusiastas dos romances viram aí um fato positivo, pois, em vez de conduzir ao erro, essa experiência ensinaria como evitá-lo, fazendo com que os leitores não tivessem que se equivocar em suas próprias vidas. (ABREU, 2003, p. 309). As saídas encontradas como respostas às queixas quanto ao gênero passaram a ser elementos constitutivos do romance moderno do século XVIII e dos primeiros decênios do século XIX (VASCONCELOS, 2000, p. 103) e, por isso, a moralização ocupava um lugar central nessas obras. Lendo várias narrativas escritas sob esse molde, os escritores brasileiros, mesmo aqueles que não tiveram acesso aos textos que compuseram o debate europeu sobre o “novo gênero”, foram levados a crer que o romance deveria deleitar e instruir o leitor, como indicam as críticas divulgadas pela imprensa da época. Outro elemento cuja presença nos romances brasileiros oitocentistas era decisiva para que uma narrativa fosse bem recebida era a inclusão de elementos tipicamente nacionais nas narrativas, ou, em outros termos, a presença da chamada “cor local”. De acordo com os críticos, cabia aos prosadores brasileiros elaborar narrativas que contribuíssem para o conhecimento e a valorização da história, da paisagem e dos costumes nacionais. Isso se deu porque, naquela época, em virtude da independência política e do contato com as ideias românticas, a literatura passou a ser vista como elemento a ser utilizado a serviço do progresso do país, colaborando para a consolidação da independência ideológica e para a divulgação de uma imagem civilizada e progressista do Brasil nos âmbitos nacional e internacional. De acordo com Antonio Candido, [...] a literatura foi considerada parcela dum esforço construtivo mais amplo, denotando o intuito de contribuir para a grandeza da nação. Manteve-se durante todo o Romantismo este senso de dever patriótico, que levava os escritores não apenas a cantar a sua terra, mas a considerar as suas obras como contribuição ao progresso. Construir uma “literatura nacional” é afã, quase divisa, proclamada nos documentos do tempo até se tornar enfadonha. [...] tratava-se de construir uma vida intelectual na sua totalidade, para progresso das Luzes e consequente grandeza da pátria. (CANDIDO, 2000, p. 12). 111 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Nesse contexto, configurado pelos autores do período como momento inicial da literatura brasileira, o romance moderno parecia um gênero bastante promissor para concretizar as ideias acerca da literatura nacional, já que, entre as suas características na matriz europeia, estavam o olhar atento do escritor para a realidade que o cercava e a abordagem do cotidiano. As páginas romanescas se apresentavam como telas prontas para receber a chamada “cor local” brasileira e, assim, compor o painel da literatura nacional. Segundo Antonio Candido, “o ideal romântico-nacionalista de criar a expressão nova de um país novo encontra no romance a linguagem mais eficiente.” (CANDIDO, 2000, p. 100). A partir da análise do projeto literário de Teixeira e Sousa, percebe-se que ele estava a par das expectativas de seus contemporâneos em relação ao romance. No prefácio divulgado no primeiro volume de Gonzaga ou A Conjuração de Tiradentes (1848), por exemplo, ele expôs aos leitores a noção de romance que fundamentava suas produções em prosa e discorreu sobre as diferenças entre romance e história. Segundo o autor, o historiador cumpria a missão de “instruir” e não precisava construir textos cuja leitura fosse deleitante. O romancista, porém, deveria cumprir a missão de “deleitar e moralizar”, utilizando seu “livre arbítrio” para elaborar produções que exaltassem as belezas naturais, colaborassem para expurgar os vícios humanos e apresentassem quadros mais amenos. Para tanto, deveria recorrer aos livros de história apenas para obter o assunto de suas produções (SOUSA, 1848, p. 5). Além dos prefácios, o projeto literário de Teixeira e Sousa esteve presente em algumas didascálias que ele antepôs aos capítulos de três de seus romances. Esses pequenos textos tinham conteúdo diversificado, podendo consistir em comentários sobre episódios do enredo, discussões motivadas pelas atitudes das personagens ou reflexões sobre elementos temáticos e formais das narrativas. Muitos desses textos eram utilizados para concretizar os propósitos moralizantes do autor e, por isso, forneciam parâmetros para que o leitor percebesse a lição edificante presente no trecho a ser lido. Além da moralidade, as didascálias defendiam o valor da presença da natureza e das descrições de paisagem. Em A Providência, por exemplo, ele indicou que a descrição da natureza era tão importante quanto a descrição dos costumes. A seu ver, trabalhar com esses dois elementos era uma forma de alcançar o equilíbrio entre deleite e instrução, pois, segundo ele, “a descrição das cenas da natureza deleita, as dos costumes instrui. Aquela que só deleita torna-se superficial, a que só instrui, aborrecível; casemos pois estas duas qualidades.” (SOUSA, 1854, tomo II, p. 9). 3. Teixeira e Sousa e as histórias literárias nacionais – o autor secundário Apesar de ter sido um escritor consagrado entre seus contemporâneos, ao longo dos a112 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 nos Teixeira e Sousa passou a ser referido como romancista de importância histórica que produzira narrativas de valor diminuto. Na maioria das histórias literárias publicadas ao longo dos Novecentos, o autor não figura entre os prosadores brasileiros oitocentistas de renome. É o que exemplifica uma passagem retirada do estudo dedicado a ele em Formação da Literatura Brasileira: No entanto, embora a qualidade literária seja realmente de terceira plana, é considerável a sua importância histórica, menos por lhe caber até nova ordem a prioridade na cronologia do nosso romance (não da nossa ficção), do que por representar no Brasil, maciçamente, o aspecto que se convencionou chamar folhetinesco do Romantismo. Ele o representa, com efeito, em todos os traços de forma e conteúdo, em todos os processos e convicções, nos cacoetes, ridículos, virtudes. (CANDIDO, 2000, p. 102). O tom pouco elogioso utilizado por Antonio Candido para tratar das produções em prosa do escritor esteve presente em muitas histórias literárias publicadas durante o século XX no Brasil. Alfredo Bosi, por exemplo, não incluiu Teixeira e Sousa no capítulo dedicado aos romancistas de vulto do período, como Joaquim Manuel de Macedo, José Alencar e Bernardo Guimarães, apontando como um dos motivos a “inegável distância, em termos de valor, que o separa[va] de todos.” (BOSI, 1981, p. 111-12). Importa considerar que alguns dos textos críticos que abordaram as obras em prosa de Teixeira e Sousa no século XIX apontaram alguns problemas formais nessas obras sem, contudo, dar a eles uma relevância tamanha a ponto de desqualificar a produção do autor. É o que se verifica, por exemplo, em uma passagem presente em O Brasil Literário (1865). Quando comparou a obra do escritor à produção romanesca do autor d’A Moreninha, Ferdinand Wolf emitiu o seguinte comentário: “[Teixeira e Sousa] ultrapassa ainda Macedo por seu amor do misterioso, e cremos que ele seja mais original e nacional do que ele. Mas é-lhe inferior na descrição dos caracteres, na vivacidade do dialogo e do espírito” (WOLF, 1955, p. 348). A observação indica que o crítico, apesar de acreditar na superioridade do autor de O filho do pescador quando se tratava da escolha dos assuntos a serem desenvolvidos, reconhecia que ele era menos feliz no manejo das técnicas de produção do gênero. Nesse quesito, segundo as palavras do crítico, o romancista em questão perdia terreno para Joaquim Manuel de Macedo, que caracterizava melhor as personagens e produzia diálogos mais dinâmicos e espirituosos. Apesar dessas observações, vimos que o crítico apregoou a importância dos romances de Teixeira e Sousa para a literatura brasileira, ressaltando que o caminho seguido por ele foi trilhado por muitos outros prosadores de seu tempo. Como exemplificam as considerações de Ferdinand Wolf, as falhas apontadas pelos contemporâneos do autor em suas narrativas não sobrepujavam as qualidades presentes nelas, de acordo com a perspectiva crítica adotada na época. Afinal, no momento em que o autor publicou 113 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 suas obras, os romances eram avaliados basicamente a partir de questões temáticas e, por isso, o fato de suas narrativas possuírem moralidade e cor local colaborou para que fossem apreciadas. Entretanto, houve uma grande mudança nos parâmetros de avaliação das narrativas a partir da segunda metade do século XIX e esse parece ter sido um dos motivos que levou à crescente desvalorização das obras em prosa do autor. Assim como ocorreu na Europa, também no Brasil o romance demorou um certo tempo para ser aceito como gênero literário culto, o que ocorreu somente no final do Oitocentos. Segundo Valéria Augusti, à medida que ganhava prestígio entre os homens de letras, o gênero deixou de ser visto como uma leitura de caráter popular: Deve-se considerar, por fim, que na primeira metade do século não se cogitava que o romance pudesse ter outro público que não fosse o leitor comum e outra finalidade que não fosse a de deleitá-lo e instruí-lo. Não se pensava, por certo, que um escritor pudesse publicar uma obra digna de apreço se fugisse a essa regra, ou seja, deixasse de deleitar esse público. Satisfazer esse leitor ávido por emoção, era, pois, uma espécie de obrigação a qual deveria render-se o romancista. Ignorar as suas demandas não era atitude que se esperasse daqueles que haviam escolhido se dedicar a um gênero “popular”, cuja finalidade considerava-se meramente instrutiva. Em fins do século XIX, no entanto, o romance ganhava um novo público, “erudito”, de gosto refinado, portador de instrumentos de análise capazes de verificar-lhe os defeitos e qualidades. Ganhava também uma nova finalidade: satisfazer os critérios de produção da “obra de arte” [...]. (AUGUSTI, 2006, p. 133). Para corresponder ao gosto de um público meramente interessado em deleite e instrução, as narrativas não precisavam apresentar sofisticações formais, o que não ocorria quando se tratava de agradar a um leitor que possuía uma instrução mais refinada, tarefa que exigia, do romancista, um maior aprimoramento do texto. Essa exigência fez com que os textos de Teixeira e Sousa, que possuíam algumas falhas no que se refere ao trabalho com os elementos da narrativa, passassem a ser vistos com maiores reservas. Na maioria dos textos de historiografia literária brasileira em que ele é referido, o valor das obras foi medido através de critérios estéticos, não só por meio da apreciação da temática do texto, como se dava com grande parte das críticas de romances publicadas até meados do século XIX, quando o autor produziu suas obras. Se atentarmos para o modo como o romancista foi abordado na História da Literatura Brasileira, de José Veríssimo, é possível compreender melhor essas questões. No prefácio, o crítico revelou a noção de literatura que fundamentava suas considerações: Literatura é arte literária. Somente o escrito com o propósito ou a intuição dessa arte, isto é, com os artifícios de invenção e composição que a constituem é, a meu ver, literatura. [...] Esta é neste livro sinônimo de boas ou belas letras, conforme a vernácula noção clássica. Nem se me dá da pseudo novidade germânica que no vocábulo literatura compreende tudo o que se escreve num país, poesia lírica e economia política, romance e direito público, teatro e artigos de jornal e até o que se não escreve, discursos parlamentares, cantigas e histórias populares, enfim, autores e obras e todo o gênero. (VERÍSSIMO, 1954, p. 17). 114 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Para estabelecer a sua versão do cânone literário brasileiro, Veríssimo baseou-se em uma concepção de literatura que previa a seleção dos escritores que demonstrassem mais habilidade para lidar com os “artifícios de invenção e composição”. A partir desses critérios, o estudioso da literatura apresentou a seguinte avaliação da contribuição do autor para a literatura nacional: Não é, porém, como poeta que Teixeira e Sousa tem um lugar nesta geração e nesta História, mas como o primeiro escritor brasileiro de romance, portanto o criador do gênero aqui. [...] A renovação literária indicada por Magalhães, produzira algumas novelas e contos, publicados geralmente nos periódicos dessa época e muito poucos dados à luz em volume. Daquelas, a mais antiga são As duas órfãs, de Norberto, aparecida em 1841. Romance propriamente o primeiro é o Filho do pescador, de Teixeira e Sousa, de 1843. Sucessivamente publicou Teixeira e Sousa mais de cinco romances[...]. Por esta constância de produção num gênero que, antes que Macedo o seguisse em 1844 com a Moreninha, era ele o único a cultivar, ganhou Teixeira e Sousa direito inconcusso ao título de criador do romance brasileiro. Os seus infelizmente tornaram-se para nós ilegíveis, tanta é a insuficiência da sua invenção e composição, e também da sua linguagem. (VERÍSSIMO, 1954, p. 186-7). O crítico parece ter sido o responsável pelo estabelecimento da imagem de Teixeira e Sousa mais recorrente nos estudos panorâmicos da literatura brasileira publicados ao longo do século XX: um autor que merece figurar na historiografia literária nacional porque foi o primeiro escritor brasileiro a dedicar-se à produção romanesca, já que os problemas presentes em suas narrativas tornaram-nas “ilegíveis”. 4. Conclusão Apesar de os estudos panorâmicos de literatura brasileira comumente se referirem a Teixeira e Sousa como um romancista de importância apenas histórica que produziu narrativas repletas de imperfeições e desprovidas de interesse, o autor desempenhou um papel relevante na cena literária brasileira oitocentista. Em suas narrativas, ele colocou em prática o projeto literário divulgado em alguns textos não ficcionais e, com nuances diversas, incluiu a moralidade e a “cor local” em todas as suas produções em prosa (Cf. SILVA, 2009, p. 161-244). Na condição de homem de letras atuante na imprensa de seu tempo, ele estava a par das questões abordadas nas críticas de romances divulgadas nos periódicos em circulação naquela época. Afinal, até meados do século XIX, o escritor brasileiro que pretendesse agradar aos apreciadores do “novo gênero” deveria compor obras moralizantes e nacionalistas. Essas características da produção romanesca do autor parecem explicar a boa acolhida que suas narrativas obtiveram por parte do público leitor brasileiro oitocentista. Como vimos, seus romances alcançaram um número considerável de edições e foram objeto de comentários eminentemente elogiosos por parte dos críticos. 115 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Essas questões fornecem uma explicação plausível para o fato de Teixeira e Sousa, na condição de romancista, ter ocupado lugares tão distintos entre seus contemporâneos e nos estudos historiográficos publicados posteriormente. A fortuna crítica do autor indica que os problemas formais de suas obras ganharam maior expressividade que as escolhas temáticas festejadas pelos contemporâneos que elogiaram suas narrativas, fazendo com que sua produção romanesca fosse progressivamente desvalorizada. Nesse sentido, o discurso da deficiência diluído ao longo de alguns textos oitocentistas frutificou e fez escola nos estudos a respeito do autor. Ao analisar os elementos que conduziram esse escritor às margens do cânone, é preciso considerar que as histórias da literatura são construídas posteriormente ao momento em que circularam os textos sobre os quais discorrem e, por isso, os escritores que figuram nesses textos panorâmicos serão aqueles considerados, pelo autor da obra, como mais representativos. Teixeira e Sousa publicou suas narrativas num período em que, segundo os manuais, o Brasil estava vivendo o Romantismo, escola literária na qual costumam ser incluídos tanto os primeiros prosadores, quanto romancistas que produziram em um momento em que o gênero já estava mais estabelecido no país. Assim, apesar de ter sido considerado um grande romancista por seus contemporâneos, a necessidade de elegerem-se os nomes mais representativos fez com que os estudos historiográficos da literatura brasileira atribuíssem um lugar de maior destaque a escritores como José de Alencar, ou seja, a prosadores cujas narrativas correspondiam melhor aos parâmetros críticos utilizados. Diferentemente dos manuais de historiografia literária, este texto não tem a pretensão de estabelecer hierarquias nem definir um cânone. O objetivo primordial foi discutir parte da fortuna crítica desse escritor e apresentá-lo à luz de seu próprio tempo, mostrando o quanto ele sua produção foi considerada significativa pelos seus contemporâneos. A partir da discussão empreendida, acredita-se que seja importante lançar um novo olhar para a produção romanesca desse escritor, já que a imagem de Teixeira e Sousa como romancista secundário que produziu narrativas carentes de qualidades estéticas, a qual é amplamente divulgada pela maioria das histórias literárias nacionais, é bastante limitada. Afinal, considerando a recepção que ele obteve ao longo do século XIX e analisando suas obras em prosa à luz das questões vigentes no momento em que as publicou, percebe-se que o estudo das narrativas de sua autoria colabora de maneira decisiva para a compreensão do contexto em que se deu a formação do romance brasileiro. 116 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Referências ABREU, Márcia. Os Caminhos dos Livros. 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Rio de Janeiro: José Olympio, 1954. 118 A CONTROVÉRSIA DO CÂNONE: CRIADO DAS ELITES OU MINISTRO DA MORTE? THE CONTROVERSY OF THE CANON: A SERVANT OF THE DOMINANT CLASSES OR THE MINISTER OF DEATH? Fabrício Tavares de Moraes (PG - UFJF) RESUMO: O presente trabalho busca traçar uma análise sobre a questão do cânone literário, abordando seus sistemas de valorização estética, bem como sua funcionalidade no presente contexto acadêmico, no qual parte da crítica literária frequentemente negligencia uma valoração e investigação profunda dos aspectos formais das obras a fim de se deter exclusivamente sobre os elementos ideológicos que as perpassam ou não. Dessa forma, através das considerações presentes nas obras de críticos literários tais como Leyla Perrone-Moisés, Harold Bloom, Ezra Pound e outros, pretende-se tecer reflexões sobre a real natureza do cânone, abordando criticamente as objeções feitas em relação a ele e posteriormente apresentando um conjunto de argumentações que dissertam a respeito não apenas da utilidade, mas também da necessidade de uma sistematização que leve em conta toda a diversidade e complexidade da produção literária do passado e da contemporaneidade. Palavras-chave: Cânone; valor estético; tradição. ABSTRACT: This paper aims to draw an analysis about the questions around literary canon by an approach of its systems of esthetical valorization as well as its functionality in the current academic context, in which part of the literary criticism frequently despise the valuation and a thorough research of the formal aspects of the literary works, in order to detain exclusively over the ideological elements that permeates them or not. Therefore, through the reflections present in essays by literary critic such as Leyla Perrone-Moisés, Harold Bloom, Ezra Pound and others, we intend to scrutinize about the real nature of the canon by approaching critically the objections against it. Hence, we will present a set of argumentations that dissert not only about the utility, but also the necessity of a systematization that takes into account all the diversity, richness and complexity of the past and contemporary Literature. Keywords: Canon; aesthetical value; tradition. 1. Introdução Ao se tratar da polêmica questão da canonização de obras literárias é necessário não apenas uma cautelosa tessitura conceitual, mas, sobretudo, um profundo exame das ideias já consolidadas e, por isso mesmo, defasadas, que perpassam toda a discussão. Talvez um dos maiores equívocos com relação à natureza do cânone se deva a uma insuficiente compreensão da própria etimologia da palavra, pois, já sedimentada no senso comum, ela invariavelmente invoca os textos hagiográficos ou sagrados estabelecidos como revelação divina em determinada tradição religiosa. Contudo, F.F. Bruce, em seu livro O Cânon das Escrituras, afirma que o termo somente veio a ser utilizado no sentido sacro no ano de 367 d. C., em uma carta aberta de Atanásio, bispo de Alexandria, na qual tratava sobre as cartas e textos que embasavam a REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 tradição cristã. De fato, ainda segundo as observações de Bruce, “a palavra ‘cânon’ entrou em nossa língua (via latim) vinda da palavra grega κανών (kanōn)1. Em grego, isso significa uma vara, especialmente uma vara reta, usada como régua” (BRUCE, 2011, p. 17). Dessa acepção adveio outro sentido também comumente utilizado nos dias atuais, a saber, uma regra, um padrão ou uma medida estabelecida. Essa visão do cânone como um elemento paramétrico e objetivo evidencia-se, sobretudo, na emulatio clássica, na qual o autor que se propunha alcançar renome deveria emular contra os predecessores, num combate regido tanto pela admiração quanto pelo desejo de superação. Segundo a fórmula de Quintiliano, não existe crescimento apenas pela imitação, pois apenas serão celebrados aqueles que tiverem superados seus antecessores e, dessa forma, ensinado os seus sucessores. Entretanto, as discussões acerca do cânone se detêm, sobretudo, no seu caráter político e ideológico. Vários críticos e autores contemplam as obras do passado como arautos de determinada ideologia política dominante: súmulas da visão de mundo (Weltannschauung) de determinada parcela social – em geral, opressora. Partindo dessa perspectiva surgem os chamados canon-busters (destruidores do cânon) que insistem não apenas na “abertura” do cânone, mas, primariamente, em uma total relativização dos valores estéticos objetivos que regem e que estão por trás das diversas e distintas manifestações literárias. Um ponto controverso que necessita ser elucidado é o que diz respeito às novas modalidades literárias e aos autores ditos periféricos2 que, conforme apontam os detratores do cânone, têm sido incluídos nas novas listagens bibliográficas e nas pesquisas da academia. Segundo eles, o fato de tais autores estarem atraindo a atenção de estudiosos, professores e pesquisadores marca o início de uma nova concepção sobre a literatura, concepção essa mais solidária para com a diferença e alteridade, o que, consequentemente, a torna mais tolerante. Todavia, essa afirmação retrata o cânone de forma hiperbólica e distorcida como se este fosse um Index Librorum Prohibitorum3 ao aves1 Bruce mais adiante afirma que a palavra grega provavelmente foi tomada de empréstimo da palavra hebraica (qaneh) que significa algo como “cano, caniço, vara”. O termo latino canna tem a mesma origem. 2 O termo “periférico” aqui utilizado é apenas uma apropriação dos próprios críticos do cânone e é utilizado para listar “autores empíricos” (na terminologia de Umberto Eco) cujas biografias concretas, históricas e pessoais geralmente estão ligadas às minorias étnicas, sociais ou de gênero. Por vezes, o termo é tomado indistintamente, pois acaba tentando homogeneizar em um agregado indistinto várias individualidades efetivas que não guardam a mínima semelhança (ou que possuem em comum apenas aspectos secundários que nada tem a ver com a matéria literária ou artística que é o objeto da crítica literária) entre si. 3 O Index Librorum Prohibitorum (Índice dos Livros Proibidos) foi uma lista de obras e publicações literárias proibidas pela Igreja Católica, na qual ainda se encontravam as características essenciais que determinavam se um livro entraria ou não na lista. Em 1559, o Papa Paulo IV promulgou a primeira versão do Index e uma versão revista foi autorizada pelo Concílio de Trento (1545-1563) que era administrado pelo Tribunal do Santo Ofício (Inquisição). A última edição do índice foi publicada em 1948 e o Index só veio a ser abolido pela Igreja Católica em 1966 pelo Papa Paulo VI. Na 120 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 so, isto é, como se se tratasse de uma lista hermética e formalmente fechada (espécie de cartilha moral e legalista) que, além de impingir a leitura (daí funcionando como os métodos arcaicos da tabuada) aos educandos, repudia automaticamente qualquer obra que não se enquadre em seus esquemas datados e uniformes. Contudo, tal visão não faz jus à realidade, pois conforme afirmou Leyla Perrone-Moisés, em sua obra Altas Literaturas (1998): Ignorando a flexibilidade e a abertura dos cânones modernos internacionais, e considerando apenas o currículo habitual dos departamentos de inglês, os “canon-busters” [demolidores de cânone] ou “canon-openers” [abridores de cânone] têm uma concepção fechada e imobilista de um suposto Cânone Ocidental, que teria sido imposto aos alunos com objetivos ideológicos escusos. O pressuposto é historicamente falso. Mesmo no que concerne às listas de “leituras recomendadas”, um estudo dessas listas entre 1880 e 1940 demonstra que elas foram centenas e muitas variadas (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 196). Sendo assim, afirmar um suposto “fechamento” e segregacionismo do cânone é desconhecer sua própria natureza e mobilidade ao longo do tempo. Ora, o primeiro argumento contra essa visão equivocada é a própria diversidade de temáticas, métodos e técnicas narrativos, perspectivas existenciais e morais dos vários livros que atualmente podem ser considerados canônicos. Mesmo se se comprovasse que o cânone é dominado pelo “homem branco europeu” (o que é evidentemente falso), ainda assim não seria possível levantar a acusação de que ele é dominado por uma ideologia ou uma cosmovisão monolítica, una, enfadonha e defasada. Bloom aborda essa questão em seu polêmico e controverso livro O Cânone Ocidental (2010) com as seguintes palavras: “[...] Gostaria de observar que a autoridade da morte, literária ou existencial, não é basicamente uma autoridade social. O Cânone, longe de ser o criado da classe social dominante, é o ministro da morte” (BLOOM, 2010, p. 38)4. À guisa de exemplificação da variedade “ideológica” dos livros canônicos basta observar as visões diametralmente opostas de um personagem como Julien Sorel de O vermelho e o negro, de Stendhal e do jovem padre do livro Diário de um pároco de aldeia, de Georges Bernanos. Ambos os personagens são jovens autoridades clericais, com a mesma instrução intelectual e, sobretudo, conterrâneos. Apesar disso, não se poderia conceber duas mentalidades e espiritualidades tão antípodas como as desses dois personagens. A segunda objeção ao pensamento dos canon busters emerge da simples observação dos livros tidos como canônicos – há autores e autoras das mais diversas nacionalidades (obviamente lista encontravam-se livros que divergiam dos dogmas da Igreja, cujos conteúdos e assuntos eram considerados como impróprios pelo clero. Deste modo, a lista buscava evitar a corrupção de seus fiéis, principalmente contra as ideias do então nascente protestantismo. 4 O cânone é o “ministro da morte” na medida em que alerta aos leitores de que o tempo de vida (e consequentemente o de leitura) é limitado. Sendo assim, o cânone agiria como uma orientação para que o leitor possa extrair o essencial do labirinto quase infindável da literatura, antes que seu tempo de vida e leitura esgotem. 121 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 incluindo autores nãoeuropeus que pertencem a países economicamente subdesenvolvidos) e das mais diversas etnias. Nesse sentido, nunca houve razão em dizer que o “cânone” se configura como um elemento exclusivista, pois, por assim dizer, ele está apto a englobar as mais distintas manifestações literárias provenientes dos mais diversos entes pessoais (independente de suas origens sociais ou étnicas), contanto que tenha vencido o ágon da tradição (no dizer de Bloom), se impondo como um fenômeno estético inconteste. As obras de autores como Wole Soyinka, Chinua Achebe e Ngũgĩ wa Thiong’o são consideradas verdadeiros monumentos estéticos, a despeito de suas etnias e nacionalidades; podem-se listar também os projetos literários de Nadine Gordimer, Karen Blixen, Katherine Mansfield e Clarice Lispector, todos eles listados no cânone, o que, consequentemente, invalida a afirmação da exclusão de gênero. 2. A natureza do cânone Todavia, é preciso discernimento para analisar a real natureza do cânone. Pode-se, com efeito, afirmar que em certo sentido o cânone não é inerentemente exclusivista5 (os vários autores citados confirmam isso), configurando-se permanentemente como uma convocação estética. Contudo, isto não significa dizer que o cânone é, por definição, um retentor ou um arquivo indelével. Em termos formais, é lícito afirmar que aquilo que hoje é listado como canônico indubitavelmente possui qualidade estética e densidade experiencial; porém, nem todas as obras literárias que possuem esses atributos são consideradas canônicas. Inúmeras obras grandiosas se perderam ao longo da história, quer seja por fatores externos e involuntários (desgaste dos suportes), quer por agentes conscientes (incêndios de bibliotecas, listas proibitivas e supressões). Herman Melville, por exemplo, após o fracasso de vendas de Moby Dick, teve seu manuscrito The Isle of the Cross rejeitado pelo editor e, posteriormente, se extraviou. Hoje tal texto está irrecuperavelmente perdido. Sendo assim, o cânone, como qualquer técnica ou instrumento humanos, está fadado à incapacidade de retenção e armazenamento indefinidos. Dada sua finitude (bem como de seus autores, leitores e métodos), o cânone invariavelmente sempre estará defasado de seu tempo, quando contrastado com o presente, e incompleto e repleto de lacunas, quando cotejado com as obras do passado. Como observou a professora Leyla Perrone-Moisés: 5 Quando se trata de pressupostos sociais e econômicos dos autores e de outros elementos extraliterários. Cabe ressaltar, no entanto, que o cânone é esteticamente exclusivista – é fato. Contudo, conforme mencionado, isso não implica necessariamente em um segregacionismo social, étnico ou de gênero. Primeiro porque a literatura é, por definição, um ato estético (o que a difere da dissertação científica que está baseada em atos empíricos e repetíveis e da propaganda ideológica que se baseia em atos político-partidários). Uma exceção se dá em países ou regiões onde imperam ditaduras, guerras ou qualquer outro estado de exceção, pois aí não apenas a literatura, mas todos os fatos e elementos sociais são governados, segregados e selecionados por uma força maior, geralmente tirânica, que leva em consideração não a estética, mas sim a afirmação e manutenção de sua visão e ideologia política. 122 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Convém não esquecer que as grandes obras ocorrem tendo como chão e húmus uma cadeia ininterrupta de obras menores, e que os produtores da literatura presente são tão devedores das grandes obras do passado quanto dos milhares de obras menores que prepararam terreno para as maiores (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 24). Fundamentando-se nessas reflexões, poderia se levantar um último argumento contra a visão dos detratores do cânone: as obras ditas canônicas são uma espécie de resquícios de um naufrágio mnemônico. Dito de outra forma, são traços recuperados do esquecimento, uma espécie de bússola estética que fornece um direcionamento, não sistematizado e estanque como o mapa, mas com a mobilidade e adaptação próprias da bússola. Como Ezra Pound em seu ensaio “The Tradition” observou: “a tradição é uma beleza que preservamos e não um conjunto de grilhões para nos aprisionar” (POUND, 1981, p. 91)6. A sistematização canônica é, conforme já dito, uma instrumentalização das obras literárias concretas e singulares, uma disponibilização ordenada (e não necessariamente hierarquizada) dos objetos estéticos do passado e do presente. Portanto, é uma construção humana para fins humanos. Sendo assim, sua imposição arbitrária e impensada trata-se, na verdade, de uma deformação tanto de seu propósito quanto de sua natureza – como se tem observado nas “listas” dos programas de ingressos nas universidades, nas quais as recomendações de leituras de clássicos da literatura parecem se dirigir a um aglomerado impessoal e indistinto, e não a entes pessoais e concretos. De modo semelhante, é possível distorcer os propósitos do cânone de forma a delimitar um campo bibliográfico para defesa de posicionamentos políticos. E esse caso extremo, no qual o mau uso do cânone (e não este elemento em si mesmo) gera um separatismo exacerbado, excluindo as obras que não estão em conformidade com determinada moral ou posicionamento político, é visto pelos detratores do cânone como se fosse a natureza do mesmo. É o que ocorreu com as obras dos russos Alexander Soljenítsin e Boris Pasternak, ambas censuradas pelas autoridades soviéticas, embora atualmente sejam listadas como canônicas e tidas como patrimônios estéticos. Sendo assim, cabe ressaltar novamente que a natureza do cânone (e da tradição literária) configura-se, primordialmente, como instrumental e neutra. É a maneira pela qual se faz uso desse instrumento que determinará sua função segregacionista ou “museológica”. Atualmente as pesquisas e estudos se debruçam sobre questões não necessariamente estéticas e literárias, tais como a etnia, gênero e orientação sexual de seus autores. De fato, não há nada reprovável nessa abordagem, embora alguns vejam nela um retorno ao biografismo de SaintBeuve. Contudo, a questão se torna problemática na medida em que ocorre uma rejeição generali6 No original: “The tradition is a beauty which we preserve and not a set of fetters to bind us” (POUND, 1981, p. 91). 123 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 zada dos elementos estéticos e formais e, por vezes, até mesmo uma supressão voluntária das obras tidas como canônicas. Sobre tal questão, Leyla Perrone-Moisés acentua: Considerando que os estudos literários difundiam e reforçavam a “ideologia ocidental”, qualificada, de modo simplificador, como ideologia “machista”, “imperialista” e “burguesa”, numerosos professores norte-americanos passaram a estudar as obras curriculares a partir de seus conteúdos ideológicos e, em caso de desaprovação, a suprimi-las dos currículos (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 192). Além disso, é nítida a contradição do discurso dos intelectuais que buscam subverter a “ordem branca e patriarcal” do cânone ao inserir ícones e personalidades literárias que correspondam aos seus pressupostos teóricos e críticos – há, assim, uma espécie de esquema baseado em diretrizes solidárias e inclusivas, mas que, incoerentemente, exclui outros nomes apenas pelo fato de não estarem enquadrados em sua “ideologia tolerante”7. Tais intelectuais parecem não notar que todas as formas de pesquisa e estudo pressupõem um objeto (que é tomado dentre outros e, assim, considerado como de maior importância para a pesquisa) e um método objetivo de aferição que será projetado sobre o objeto. Considerando as especificidades dos estudos literários, pode-se afirmar que a simples escolha de determinada obra ou autor já pressupõe um juízo de valor (afinal, como já disse Pierre Bayard, “abrir um livro para ler implica em fechar todos os demais”) e o método crítico utilizado para tal averiguação deve ser até certo ponto objetivo e aplicável, para que a crítica não se torne um simples exercício impressionista. Portanto, uma vez que a literatura se manifesta como um elemento estético e de linguagem figurativa, torna-se necessário, por conseguinte, que sua análise esteja pelo menos em parte baseada em pressupostos formais e estéticos. Afinal, “a defesa do estético, como tudo, está compromissada com uma ideologia. Mas a valorização do estético não é necessariamente reacionária” (PERRONE-MOYSÉS, 1998, p. 201). Além do mais, a arte que se volta primordialmente (mas não exclusivamente) para si mesma não é, necessariamente, alienada do real. Como diria W.H. Auden, “em nossa época, a mera criação de uma obra de arte é em si um ato político” (AUDEN, 1965, p. 182)8. Anteriormente foi mencionada a natureza sempre provisória do cânone. No entanto, é lícito esclarecer que isso não significa que as categorias pelas quais o cânone é regido sejam relativas, particularistas e efêmeras. Até porque algo assim dificilmente seria apreensível e, muito menos, 7 Desses nomes excluídos, tidos como persona non grata devido aos seus posicionamentos políticos, sociais, econômicos e até mesmo ecológicos, pode-se listar: Knut Hamsun, vencedor do Nobel, hoje condenado devido à sua simpatia pelos governos de direita; Mark Twain que, segundo os críticos detratores, era a favor do escravagismo nos Estados Unidos; e Herman Melville, considerado antiecológico devido aos seus relatos de baleação, a caça às baleias. 8 No original: “In our age, the mere making of a work of art is itself a political act” (AUDEN, 1965, p. 182). 124 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 funcional. Embora exista uma espécie de “rotatividade” de obras, há uma sólida permanência de alguns princípios que subjazem à estrutura do cânone – e cabe dizer que mesmo essa “rotatividade” não é tão abrangente como se possa imaginar, uma vez que obras como A Odisseia, A Ilíada9, a Bíblia, A Divina Comédia, Ramayana e outros são permanentemente listadas como patrimônios estéticos há séculos. Caso não houvesse princípios objetivos e permanentes para a apreensão literária, isto é, se de fato os juízos de valor variassem completamente10 ao longo da história, seria inconcebível que obras da antiguidade como as citadas acima pudessem agradar leitores contemporâneos. Em suma, há elementos objetivos e em certa medida permanentes que pautam a seleção canônica, pois, caso contrário, só restaria um amontoado de apontamentos subjetivos que impossibilitaria a discussão. Nesse sentido, é interessante citar os valores literários objetivos comumente apontados por autores e críticos modernos do porte de T.S. Eliot, Ezra Pound, Jorge Luis Borges, Octavio Paz e Haroldo de Campos listados pela pesquisa da professora Leyla Perrone-Moisés, os quais são: maestria técnica, concisão, exatidão, visualidade e sonoridade, intensidade, completude e fragmentação, intransitividade, universalidade, novidade e outros. Nessa perspectiva, cabe lembrar também os valores (leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência) que Italo Calvino havia proposto para um “futuro próximo” em sua obra Seis propostas para o próximo milênio, os quais são ilustrados com exemplos de inúmeras obras literárias (desde a antiguidade, passando pela Idade Média e abordando também os, então, contemporâneos de Calvino) pertencentes às mais variadas tradições. Como foi visto, é possível citar os princípios e valores objetivos que perpassam o cânone – os quais são valorizados nas obras clássicas. Contudo, não é possível afirmar as obras que permanecerão ao longo da passagem do tempo e que no futuro serão apreciadas. Uma obra literária se assemelha ao epicentro de um terremoto: é o princípio de uma série de vagas sísmicas que se desdobrarão ao longo da história e da sociedade. Após alcançar plenamente o imaginário coletivo com suas ondas, pode-se dizer que concluiu seu trabalho11. 9 Lembrando que a literatura épica romana tem como marco inicial as traduções de obras gregas por Lívio Andrônico, dentre as quais se destaca sua versão de A Odisseia, de Homero. Tais traduções foram feitas com a intenção de suprir uma lacuna na educação artística dos romanos, visto que os livros de Homero eram considerados como obras grandiosas e, portanto, essenciais ao crescimento intelectual do homem. 10 Não se pode negar que alguns elementos e, principalmente, gêneros literários (como a epopeia, por exemplo, hoje não mais realizada, com raras exceções) variam com o tempo. A já citada emulatio foi hoje substituída pelo conceito da originalidade e inovação românticas, porém é lícito lembrar que alguns princípios, tais como a maestria técnica da linguagem e a intensidade (condensação de significados) estão presentes atualmente na avaliação crítica, assim como estiveram no passado. Isso se deve ao fato da natureza mesma da literatura que é uma arte que trabalha com as possibilidades e potencialidades da linguagem, buscando sempre clarificar e aperfeiçoar seu impacto sobre o espírito humano. 11 Um exemplo disso é a obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri, que ao criar uma descrição tão vívida dos tormentos e aspectos do inferno acabou por influenciar diretamente a Teologia católica (o Papa Bento XVI a considerou como uma espécie de “quinto Evangelho”) e, consequentemente, o acervo imagístico e imaginativo das pessoas, a ponto de 125 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Harold Bloom compreendeu essa questão de forma profunda ao intitular uma de suas obras como Shakespeare: a invenção do humano – afinal, as obras literárias (as artísticas, como um todo) são verdadeiros “blocos” de experiências simbólicas, vivenciais, espirituais e sensoriais do real que estão disponíveis como patrimônio humano. E é ainda o crítico norte-americano quem, em seu já citado livro O Cânone Ocidental, argumenta de forma provocativa, apontando para a falsa antítese que se estabeleceu entre os valores estéticos e as agendas políticas: Ou existiram valores estéticos, ou existem apenas os superdeterminismos de raça, classe e gênero sexual. Deve-se escolher, pois se se acredita que todo valor atribuído a poemas, peças, romances ou contos é apenas uma mistificação a serviço da classe dominante, então por que se deve ler afinal, em vez de ir servir às desesperadas necessidades das classes exploradas? A ideia de que beneficiamos os humilhados e ofendidos lendo alguém das origens deles, em vez de ler Shakespeare, é uma das mais curiosas ilusões já promovidas por ou em nossas escolas (BLOOM, 2010, p. 673). Cada perspectiva inclui um posicionamento frente ao real e à literatura, tomada como objeto. Bloom assinala as consequências extremas que a relativização/negação total dos elementos estéticos podem gerar, lançando um desafio que se configura como impraticável ou extremista. 3. Pequena apologia ao cânone Ezra Pound em seu famoso livro ABC da Literatura observou que “literatura é linguagem carregada de significado. ‘Grande literatura’ é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível” (POUND, 1997, p. 32). Portanto, é possível afirmar que determinado escritor se destaca dentre os demais à medida que expande a moldura das palavras, desdobrandoas em várias camadas superpostas, numa verdadeira “evolução”12 da linguagem. Assim, mais do que um simples “inventor” (terminologia poundiana, conforme será visto adiante), um escritor original e forte é aquele que sabe se utilizar das potencialidades inerentes à palavra, uma vez que o desenvolvimento só é possível caso a forma desenvolvida (ao menos na esfera virtual) já exista no organismo ou elemento primário. É conhecida a comparação feita por Mallarmé da linguagem com uma moeda de câmbio passada de mão em mão até o ponto do desgaste. Nessa perspectiva, o papel do escritor (principalmente do poeta) é evitar a defasagem total e radical da linguagem cotidiana, buscando insuflar nela, por meio de sua poética, o “sopro primordial”. Na maioria das vezes, a linguagem da qual atualmente se dispõe é compreendida como hoje inúmeras pessoas (até mesmo as que nunca leram a obra) conceberem o inferno segundo a descrição de Dante. 12 No sentido proposto pela própria etimologia da palavra: do latim evoluere (ex- “para fora” e volvere, “girar, rolar”), “desenrolar, abrir algo dobrado”. Sendo assim, desdobrar as potencialidades que estavam “envolvidas” em estado germinal. 126 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 sinal do exílio humano em relação ao uno primordial (Das Ur Eine) e de sua destituição da comunhão silenciosa com a natureza, conforme se pode notar nas citações de Alfredo Bosi, presentes no seu livro O ser e o tempo da poesia: A poesia, que se faz depois da queda, é linguagem da suplência. Primeiro coral, depois ressoante no peito do vate que se irmana com a comunidade, enfim reclusa e posta à margem da luta, a sua voz procura ministrar aos que a ouvem o consolo do velho canto litúrgico, aquele sentimento de comunhão do homem com os outros, consigo, com Deus (BOSI, 2010, p. 202). Contudo, por outro aspecto, a linguagem não é simplesmente uma estrutura plenamente impositiva e embrutecedora que rege completamente os falantes, obrigando-os a seguirem à risca suas formulações e princípios. Na verdade, se assim o fosse, a espontaneidade e a criação literária seriam impossíveis; contudo, é justamente nas lacunas e brechas que perpassam toda a linguagem que o escritor encontra o seu “nicho” e seu habitat natural para a criação. Além do mais, conforme já citado, há certa potencialidade orgânica na linguagem que a permite desdobrar-se indefinidamente e também se saturar, como um palimpsesto, de sentidos e alusões. Nesse sentido, a literatura não apenas atua como um repositório da substância das experiências humanas (quer sejam históricas, psíquicas, espirituais ou simbólicas), mas também como uma espécie de “lapidação” do instrumento simbólico exclusivamente humano, a saber, a linguagem. As grandes obras literárias, de certa forma, não apenas apuram a capacidade de contemplação e apreensão do real, como também aperfeiçoam o domínio da linguagem, o que possibilita uma transmissão mais fiel da experiência individual ao coletivo. Durante a transposição da apreensão subjetiva à exposição, inevitavelmente ocorre um “vazamento da substância” experiencial. É o fenômeno que se dava com Agostinho ao tentar explicar o tempo: “O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei” (AGOSTINHO, 2000, p. 322). Portanto, nesse caso, o domínio e lapidação da linguagem são essenciais para uma maior eficiência no transporte da experiência individual à comunicação coletiva. As obras do passado que se sedimentaram como patrimônios estéticos, invariavelmente, possuem em comum o fato de terem transposto o mais eficazmente possível uma experiência nova do real para a representação simbólica. É como se tais autores tivessem desvendado uma parcela desconhecida do real, conduzido a névoa do mistério em suas mãos, plasmando-a permanentemente em suas obras. Como depositário do imaginário e da espiritualidade de um povo, a língua é uma espécie de arquivo noético que guarda as riquezas do pensamento e concepções de toda uma coletividade. As obras literárias, por sua vez, se configuram como um tipo de meta-arquivo dessa língua que 127 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 condensa em uma estrutura semifixa toda a súmula da substância noética, simbólica e existencial de seus falantes. É por isso que a morte de uma língua é sempre e fatalmente uma perda para toda a humanidade. O mesmo se aplica a uma obra literária que foi capaz de sumarizar e concatenar os vários elementos de determinada língua. Se a civilização só é possível mediante a linguagem, uma vez que é desta que se origina, pode-se inferir que o desgaste e dessacralização da linguagem conduzem ao inverso: à barbárie. Daí surge a dura tarefa do escritor – e-voluir a linguagem, impedindo-a de se esfacelar pelo uso trivial e cotidiano. Portanto, toda obra que surge deve ser considerada mediante os seguintes aspectos: ela, de fato, busca explorar ao máximo as potencialidades de sua língua ou é apenas uma súmula mimética dos discursos prosaicos já destituídos de substância? Tal obra almeja criar camadas cada vez mais densas de significação que busquem, na medida do possível, representar a plenitude do pensamento de sua coletividade ou é apenas um agregado de pressuposições unilaterais e paroquiais? É nesse sentido que Ezra Pound também afirma que a “literatura é novidade que permanece novidade” (POUND, 1997, p. 33) e ilustra essa afirmação com os seguintes exemplos: Não posso, por exemplo, esgotar meu interesse no Ta Hio de Confúcio ou nos poemas homéricos. É muito difícil ler o mesmo romance policial duas vezes. Em outras palavras, somente um policial muito bom será passível de releitura, depois de um longo intervalo, e isso porque a gente prestou tão pouca atenção a ele que já esqueceu quase completamente a sua história (POUND, 1997, p. 33). A natureza inexaurível da grande literatura é o que de fato garante sua sobrevivência ao longo dos tempos. Como afirmou Ítalo Calvino, em sua obra Por que ler os clássicos?, “os clássicos são livros que quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados e inéditos” (CALVINO, 1997, p. 12). Em resumo, uma grande obra não é aquela que comunica um único sentido a diferentes homens, mas aquela que comunica a cada homem uma série incontável de sentidos e interpretações. No dizer de Schelling, cada grande obra literária é um infinito representado de modo finito, o que anula todas as oposições internas; “ela se apresenta, pois, como um microcosmo auto-suficiente” (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 161). Sendo assim, autores como Homero, Dante, Shakespeare, Petrarca e Yeats legaram aos demais homens verdadeiros universos estéticos que, de certa forma, alumiaram um pouco a nebulosidade do real. Na filosofia grega antiga, quando o discurso oficial (mitos, religiões, filosofias, ciências, instituições) se tornava insuficiente ou restrito para explicar a realidade e manter coesa a inte128 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 ração dos indivíduos entre si no que dizia respeito à sua ação na existência, urgia que viesse à tona aquilo que eles chamavam de thaumázein, termo que poderia ser traduzido tanto por “admiração”, “espanto”, “perplexidade” ou até mesmo “angústia”. Esse conceito diz respeito à exposição de uma circunstância, um aspecto da realidade ou uma cosmovisão que antes eram ignoradas ou que não eram percebidas como problemáticas. Transportando tal conceito para a literatura, pode-se afirmar que as grandes obras literárias se configuram como a concretização de uma exploração espeleológica da realidade e do Ser – o lançar de uma pequena luz em fenômenos e substratos escondidos nas sombras. 4. Considerações finais Deste modo, torna-se necessário não uma transmissão restrita dos conteúdos das diversas obras clássicas, ou, em seu lugar, uma transmissão dos conteúdos de obras contemporâneas que se coadunam com posições teórico-críticas defendidas pelos detratores do cânone. Ao contrário, é necessário o desenvolvimento da percepção e fruição crítica, além do desenvolvimento da sensibilidade e autonomia intelectual. Nas palavras enfáticas de Ezra Pound: “Em geral, não creio que o ensino possa fazer muito mais que não seja denunciar obras espúrias, levando assim o estudante gradualmente às obras válidas” (POUND, 1997, p. 151). De fato, não sabemos quais obras serão preservadas do esquecimento próprio da passagem do tempo. Todavia, isso não anula os valores estéticos objetivos das obras presentemente inseridas no cânone. Este só tem valor na medida em que se volta para fins humanos – como um instrumento forjado pelo homem e para o homem, e não como um sistema restritivo e impositivo. Afinal, como já afirmou o professor Joel Rufino dos Santos, a literatura desempenha o mesmo papel que a filosofia: desestabilizar a ciência, ao mesmo tempo que se apresenta como outro conhecimento do mundo e dos homens. Ela trata do homem na sua anterioridade de homem: como ser que ama e odeia, sempre ao mesmo tempo. A literatura vive lembrando à ciência que o homem, antes de ser inteligência do mundo e senhor das máquinas, é desejo insatisfeito (SANTOS, 2008, p. 36). A literatura, portanto, é uma forma de percepção e conhecimento do real; uma forma de apreensão que amalgama a razão, sentimento, vontade e corporalidade – o ser visto sob uma perspectiva holística – durante sua interação com a realidade. Sua principal tarefa talvez não seja a de melhorar a vida do homem, mas sim a de lembrá-lo de sua morte, atuando como um arauto de sua contingência. O que se vê hoje, contudo, é a primazia de superestruturas teóricas (psicanálise, multiculturalismo, neofeminismo) que atuam como verdadeiras chaves interpretativas sobre a literatura. 129 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Em outras palavras, a literatura perde sua ipseidade e torna-se apenas o campo experimental de sistemas conceituais que não levam em conta a singularidade e a gênese única de cada obra literária. Cada objeto literário que vem à tona transforma e amplia o conceito atual de literatura – de fato, os chamados gêneros literários são posteriores às obras tomadas em sua individualidade e concretude13. Sendo assim, a mais profunda verdade sobre a formação de cânone secular é que não é feita nem por críticos nem por acadêmicos, e muito menos por políticos. Os próprios escritores, artistas, compositores determinam cânones, fazendo a ponte entre fortes precursores e fortes sucessores (BLOOM, 2010, p. 673). Em suma, não seria exagerado propor que o cânone está sendo constante reformulado não necessariamente por instituições ou ideologias, mas sim por indivíduos concretos que, acuados pela perspectiva de sua finitude, resignadamente aceitam o axioma infalível da morte e, tomando-o como certeza inquestionável, tentam relativizar – através de suas obras – a certeza quase infalível de virem a naufragar no esquecimento. Referências AGOSTINHO. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos; Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 2000. AUDEN, W. Hugh. The poet and the city. In: SCULLY, James (Org.). Modern poetics. New York: McGraw Hill, 1965. p. 175-184. BOSI, Alfredo. O ser o tempo da poesia. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. BLOOM, Harold. O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. Trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. BRUCE, F.F. O cânon das Escrituras. Trad. Carlos Osvaldo Pinto. São Paulo: Hagnos, 2011. CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. JOUVE, Vincent. Por que estudar literatura?. Trad. Marcos Bagno; Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2012. Vincent Jouve, em seu recente livro Por que estudar literatura?, observa o seguinte a respeito dessa questão: “Não existem propriedades necessárias e suficientes que permitam definir um texto como “romance”. Aliás, por isso é que o conceito abrange textos tão diferentes quanto A Moreninha, Ulisses ou Memórias póstumas de Brás Cubas. Portanto, não é possível catalogar um novo texto como “romance” tendo por base um modelo ideal do romance: simplesmente se perguntará se a obra candidata à identidade romanesca têm traços comuns suficientes com outros textos já considerados como “romances” para que se justifique a extensão do conceito. São os textos efetivamente publicados que determinam nossa ideia do romance, e não o contrário” (JOUVE, 2012, p. 14). 13 130 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas literaturas. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. POUND, Ezra. ABC da literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 1997. ________. Literary essays of Ezra Pound. 11. ed. New York: New Directions Publishing Co., 1981. SANTOS, Joel Rufino dos. Quem ama literatura não estuda literatura. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. 131 SEÇÃO DE TEMA LIVRE A VIAGEM E O VIAJANTE ATRAVÉS DOS SÉCULOS A JOURNEY THROUGH THE TRAVELER AND THE CENTURIES Elis Crokidakis Castro (UFRJ-UNESA-UNIABEU) RESUMO: O texto apresenta um micro panorama da literatura e do cinema de viagem desde a antiguidade até o século XXI, faz este percurso através de seis obras literárias: A odisseia, Dom Quixote, Uma viagem sentimental através da França e Itália, Hotel Atlântico, Às Avessas, de seis blogs de viagem e de três filmes: A grande Viagem (2004), do diretor Ismaël Ferroukhi, A Caminho de Casa (2007) do diretor Zhang Yang e o dirigido por Walter Sales, Na estrada (2012). Palavras-chave: Viagem, literatura, cinema, internet. ABSTRACT: The text presents a micro panorama of travel literature from antiquity to the twentyfirst century, makes this route via 6 works and their characters, namely: The Odyssey, Don Quixote, The Sentimental Journey, Hotel Atlântico, Against Nature and 6 blogs trip and the 3 movies Le grand voyage, Ismaël Ferroukhi, Getting home Zhang Yang, On the Road, Walter Sales. Keywords: Journey, literature, movie, internet. Los viajes son una metáfora, una réplica terrenal del único viaje que de verdad importa: el viaje interior. El viajero peregrino se dirige, más allá del último horizonte, hacia una meta que ya está presente en lo más íntimo de su ser, aunque aún siga oculta a su mirada. Se trata de descobrir esa meta, que equivale a descobrir-se a si mismo; no se trata de conocer al outro. Javier Moro (AGUALUSA, 2001, p. 4). Nossa intenção neste ensaio é fazer uma micro navegação em torno da literatura de viagem. Utilizaremos os textos dos viajantes reais e dos viajantes imaginários, veremos viagens reais e viagens imaginárias com buscas externas e internas, usaremos formas de narrativas antigas e novas, que as viagens trazem, assim como os novos meios de divulgação dessas viagens pelos blogs de viagem. A viagem que aqui propomos não é uma simples viagem de pequena duração, que leva de um ponto de latitude a outro. É uma viagem mais complexa, que mistura o universo do espaço com o mental e por aí caminha sem que o caminho material de fato exista, muitas vezes. Todo viajante é em potencial um narrador, um narrador de suas aventuras em terras distantes, e um narrador de suas aventuras dentro de seu próprio ser. A literatura já constata isso desde as primeiras narrativas escritas ou orais. Desde Ulisses, que para a literatura ocidental pode representar a figura do primeiro navegador, quando da sua volta para Ítaca, até as viagens que estão no mundo virtual, como as dos blogs, uma coisa está sempre presente: o desejo de ver, de sentir aquilo que é diferente do habitual, de mergulhar no outro. Isto é, a busca pelo outro, outro espaço, outra paisagem, outras pessoas, que no fim levam ao encontro do que temos de mais íntimo. REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Quando Ulisses, depois de destruir Tróia, se propõe a voltar, ele sabe que sua volta será longa. E é. São 10 anos para chegar à sua cidade e enfim reconhecer que ali era o seu lugar. Todavia, foi preciso que vivenciasse não a guerra propriamente dita, em Tróia, mas a guerra que existe dentro dele mesmo e que ressurge em cada lugar que sua nau para. Em cada porto uma nova aventura e uma nova questão a ser resolvida, questão que fará exaltar a sua astúcia, a sua experiência de navegador, de homem e de grego. Só a destruição de Tróia não foi suficiente para atestar o valor do povo grego, tinha Ulisses/Odisseu que mostrar mais do que era capaz. Tinha que reverter a seu favor encontros históricos, situações que ficariam marcadas para todo sempre na literatura mundial. Sua capacidade de resolver as pendências que a vida impõe vai desde a sagacidade para enganar e subjugar o Ciclope, assim como ser capaz de abandonar Circe e Calipso, de não se deixar levar pelas mulheres mais lindas. Ou seja, sua força não é só física, de guerreiro que impunha o arco, mas existe ali uma força que é mental, intelectual, que com a viagem só se aprimora, devido às mais diferentes experiências que ele vive. Ulisses então será o grande viajante, que mesmo hoje ainda é copiado em sua trajetória, em seu percurso humano. Para Giucci, em Viajantes do maravilhoso: o Novo Mundo, Ulisses, ao se deparar com habitantes de algumas ilhas estabelece a dicotomia entre o mundo civilizado e a barbárie. Dicotomia esta que permanecerá ainda por muitos séculos, mesmo quando da ocupação da África pelos europeus já no fim do século XIX. Podemos dizer então que nas epopeias a estrutura da Odisseia se repete, a exaltação de um povo e sua cultura podem ser vistos n’Os Lusíadas, na Eneida, e mesmo em Caramuru, aqui por estas bandas brasileiras. Assim, é por aqui, pelas Américas, que a conquista do maravilhoso se fará. Esse maravilhoso que será construído pela imagem de uma terra distante e opulenta. O novo continente representará o lugar da riqueza, isso já é visto nas primeiras cartas mandadas pelos primeiros conquistadores, como a carta de Caminha, todavia, aquela imagem do maravilhoso, do lugar da utopia, do paraíso terrestre é logo desfeita quando o viajante aqui chega e tem que sobreviver nesses lugares tão diferentes do seu, com índios antropófagos, com doenças tropicais, sem o domínio da linguagem local. Ou seja, diz Giucci, a conquista do maravilhoso, que é impulsionada pelo binômio remoto/maravilhas, acaba se tornando um “choque da alteridade e da desilusão e, ao invés das riquezas e maravilhas que os impulsionaram, eles só conseguiram amealhar e viver de suas amargas experiências pessoais” (GIUCCI, 1992, p. 8). São muitos os viajantes que, entretanto, se propõem a essa aventura. Não sei se podemos fazer a distinção entre viajantes e navegadores. Antes creio que as duas palavras não poderiam 134 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 ser usadas como sinônimos. Outrora, só se viajava a pé, de carroça, cavalo, ou de barco, hoje a viagem pode ser feita em barco, a pé, de bicicleta, de avião ou carro, antes, navegador seria apenas aquele que viaja na nau, por via aquática. Hoje usamos tais palavras como sinônimos, embora no século XV só fosse possível alcançar as Américas por mar, esquecendo-nos das primeiras vias migratórias humanas que nos primórdios deram origem ao povoamento das Américas. Isto é, desde os primórdios já se configura o desejo de ir, de não ficar parado em um único lugar. Se antes íamos em nosso nomadismo em busca de alimentos, depois fomos em busca de riquezas, de comércio e de expansão do modelo de civilização que se tinha na Europa. Isto porque, segundo Alfredo Bosi, “a colonização é a resolução de carências e conflitos da matriz e uma tentativa de retomar sob novas condições, o domínio sobre a natureza e o semelhante que tem acompanhado universalmente o chamado processo civilizatório.” (1992, p. 15) Colonização é em suma “um projeto totalizante cujas forças se busca no nível do colo: buscar novo chão, explorar o seus bens, submeter os seus naturais” (BOSI, 1992, p. 15). Desta forma, o mundo se europeíza. Interessante é notar como essa europeização se dá pelas conquistas feitas pelos grandes impérios ultramarinos, Portugal, Espanha, Holanda, Inglaterra, o que se reflete na confecção dos mapas da época. Estes mapas, que serão para todo sempre utilizados pelos viajantes, terão um grande impulso de confecção neste momento. E cada país demonstrava seu poderio ao confeccionar esses instrumentos cartográficos com mais precisão. Mas não são somente as viagens marítimas e suas descobertas que importam em nossa cartografia literária, sem dúvida através destas foi possível ao homem ir o mais distante possível e trazer não só ouro, prata, pimenta, batata, mas também a existência de outras culturas, outras formas de ver a vida, novas civilizações, embora a política primeira fosse de pilhar, carregar tudo que pudesse e ir embora. Desse modo foi feito no Egito, na Grécia e também nas Américas. Objetos de ouro estão até hoje em museus europeus, mesmo depois da campanha feita em prol da devolução desses objetos aos seus verdadeiros donos. Logo, o encontro com o outro não se dá sempre de maneira amistosa. Embora as grandes e antigas civilizações, como a chinesa e a hindu, já tivessem sido contatadas antes das grandes navegações, pois a rota da seda já era estabelecida para o comércio antes do século XV, esta foi aos poucos abandonada, e posteriormente substituída pela rota marítima. Se a viagem antes se fazia por terra, desbravando matas e montanhas, depois pelo mar ela talvez tenha se tornado menos trabalhosa, com a criação dos instrumentos de navegação pela Escola de Sagres, o que deu a Portugal o domínio da arte de navegar num primeiro momento. O tempo que se levava andando e depois navegando certamente era propício à reflexão, 135 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 não só das estratégias da própria viagem, mas da maneira de lidar com o que estava por vir. Descobertas da fauna, da flora, da geografia, eram intensamente anotadas e servem até hoje como documento, público ou privado, oficial ou não. Os diários de viagem então servem de instrumentos importantes de anotações pessoais dos viajantes e muitos deles serão publicados. Ou seja, há uma literatura informativa, oficial, mas há também uma literatura de cunho pessoal que mistura a imaginação e o real. Cremos que é desse registro pessoal misturado ao oficial, que a literatura vai se nutrir. No momento em que o narrador/viajante “desrealiza” a realidade transformando-a em símbolos, ele, por meio dessa representação de elementos particulares, chega aos espaços universais, nos fala Merquior em A astúcia da mímese. Assim ampliamos o que seria a realidade, imitação da natureza, a mímese, o que implica também a capacidade criadora. Literariamente, um texto oficial de viagem talvez não nos diga, hoje, muita coisa, tratase, na maioria das vezes, de um texto descritivo, com metragens de terra, com identificação de espécies, com descrição do que é literalmente visto como registro das conquistas. Já o texto que possui o que chamamos literariedade pode ocupar um status diferente, uma vez que está mais associado à composição literária. Geysa Silva, em sua análise em torno dos diários de Colombo, publicada no livro Corpos-letrados, corpos-viajantes, nos diz que nesses textos o navegador genovês “descreve o real com febre de imaginação” e que também nesses textos fica evidente que Colombo está representando e dramatizando a existência, assim, não é um texto frio, apenas descritivo do espaço, é um texto que vai se destacar por características que levam à dimensão conotativa abrindo para variadas interpretações. Colocamos no segundo grupo os textos que possuem literariedade, as epopeias, construídas para serem literatura, os romances como O engenhoso cavaleiro D.Quixote de La Mancha (1605), que inaugura esse gênero, dando um foco mais pessoal às narrativas de viagem e textos como de Laurence Sterne, Viagem sentimental (1768), uma mistura de diário e romance. Com a estrutura já romanesca e um pouco mais de introspecção, cheio de sensações, temos a viagem feita pelo personagem des Esseintes em As avessas (1884), ainda a viagem feita pelo personagem sem nome de João Gilberto Noll, em Hotel Atlântico (1989), somando-se às viagens dos blogueiros que inundam a internet. Em que estas viagens se assemelham e se distinguem? Separadamente, analisemos cada uma. Lembremos que o fato de ter literariedade não quer dizer que a literatura seja boa. Dom Quixote é um texto em que a viagem se faz necessária justamente por ser o personagem errante, com esta obra o gênero romance se cria e é no romance que a subjetividade começa a ser explorada pela literatura. Assim nos diz Kundera em A arte do Romance: todos os temas existenciais que Heidegger analisa em Ser e tempo, que ele julga estarem abandonados pela filosofia 136 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 europeia anterior, serão desvendados pelos quatro séculos de romance. Essa aventura romanesca é a viagem que o homem faz em busca de si mesmo. Seria a viagem dentro da sua mente, uma viagem em que nem sempre se faz concomitante à viagem por lugares reais. Entretanto, podemos dizer que se as duas viagens, interna e externa, se derem juntas, o efeito pode ser interessante, como nos mostra a literatura. Dom Quixote traz à tona inúmeras questões, mas a sua viagem, em busca de sua imaginária Dulcineia pelos territórios de seu país é apenas a ponta do iceberg da existência humana e seus questionamentos. Nesse texto, “a linguagem é necessariamente ambígua e em permanente atualização e abertura, vinculadas estreitamente ao caráter conotativo que a singulariza” (PROENÇA, 2007, p. 33). Dessa forma, mesmo passados tantos séculos a viagem do errante cavaleiro continua a emocionar os leitores e servir de inspiração. Cada encontro que o cavaleiro tem abre espaço para uma infinidade de sentimentos e constatações. Mesmo sendo encontros, por vezes imaginários, eles não se esgotam nas possibilidades de interpretações, e talvez por isso, o gênero aí criado perdure por todos esses séculos. A literatura com esse livro finca seu pé nos tempos modernos e ainda hoje vivemos sob essa influência. Assim, Cervantes faz seu Quixote ter o entendimento, a nobreza, a decência e a dignidade de um homem prudente e equilibrado: nem demoníaco, nem paradoxal; um homem que não está cheio de dúvidas, de dilemas e que não se sente apátrida neste mundo, mas que é regular, ponderado, receptivo, e amável e modesto, até na ironia; também é antes um conservador, ou, em todo caso, um homem que está de acordo com as circunstancias dadas. (AUERBACH, 1971, p. 305). Logo, no caso de Quixote, a viagem será o lugar em que todas as suas loucuras se farão presentes, se exacerbarão. No livro Uma viagem sentimental através da França e Itália de Laurence Sterne, o próprio nome já diz, trata-se de uma viagem nos territórios da França e Itália, em um tempo não delimitado. A temática da natureza humana vai compor a narrativa. O texto conta os envolvimentos emocionais e relacionamentos que o personagem\narrador vai estabelecendo ao longo de sua jornada. Não existem datas, nem horas, nem tampouco a definição certa do país onde o personagem se encontra. Em alguns trechos, tem-se a sensação de que a narrativa não sai da França, e a Itália só teria sido ali colocada por uma questão mercadológica e pré-romântica. Sterne, aprimorado em sua técnica de escrita, que implicava numa narrativa fragmentada, entrecortada de pausas, reticências, sugestões de pensamentos para o leitor, não possui um compromisso com a linearidade da narrativa. Tanto faz lermos começando pelo meio ou pelo início, pois que a sensação será a mesma. Percebemos isso quando, ao ler a Viagem Sentimental, nos deparamos com o prefácio no meio do livro, já no capítulo 7, isto é, no meio da narrativa aparece o que seria uma explicação introdutória para a mes137 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 ma. Sterne vai relatando a viagem e nomeando os capítulos de acordo com o seu objeto principal. No capítulo O monge, o narrador vai falar das características desse monge e todas as situações que o envolvem, desde a mais corriqueira até a mais profunda, quando ele analisa a questão das virtudes humanas. Assim, tínhamos a viagem como ponto de fuga, ou ao contrário, o lugar distante de onde se era possível pela distância se pensar a vida. Yorick, o personagem, é um conquistador e galanteador, se envolve em relações com mulheres por toda viagem e nenhuma delas toca seu coração. Ele comenta todos os seus encontros com homens e mulheres, tudo que acontece na viagem é narrado e comentado, muitas vezes já com uma elaboração da consciência e de suas conclusões e aplicações daquele fato na sua aprendizagem. Ou seja, seguindo a teoria de Hume na Investigação sobre o entendimento humano, percebemos que Yorick vive as situações para depois tirar proveito do que aprendeu com elas. Ele age e depois “indaga como chegou ao conhecimento da relação causa e efeito”. Esse tipo de atitude justifica “a proposição de que as cousas e os efeitos não podem ser descobertos pela razão, mas sim pela experiência”. Comparativamente, Sterne e Cervantes apontam para uma necessidade de foco mais detido no ser humano, em suas atitudes diante do mundo das relações com outros seres humanos, e apontam também para a ambiguidade da linguagem literária, cuja interpretação dependerá de quem lê. Esse foco no humano e suas relações já não será o que busca o personagem des Esseintes. Des Esseintes, personagem de Huymanns do livro que se tornou a bíblia do decadentismo, Às avessas, não sai de sua casa nos arredores de Paris, mas ali faz uma viagem não só nos rituais satânicos como em toda sorte de sensações que o ser humano pode experimentar com seu corpo. Drogas, álcool, artes, é o exagero das possibilidades, das formas de sair do senso comum da existência. Anywere out of the world diz o poema de Baudelaire inscrito na sua sala de estar. Essa viagem não contempla um deslocamento físico, no máximo, o personagem vai até Paris, mas seu deslocamento mental excede a sua capacidade de aguentar, tornando-se o personagem um nevrótico, doente dos nervos, devido ao excesso de sensações. No capítulo XI do livro, Huysmans, o autor, faz uma paródia das literaturas de viagem que eram muito comuns no século XIX. Assim seu personagem faz viagens imaginárias provocadas por sugestões de obras de artes e literárias. “São viagens intelectuais e oníricas desencadeadas, na maior parte das vezes pelo universo das lembranças”, nos diz Catharina. Des Esseintes, então, assim como o Decadentismo finissecular, marcam a transição das viagens, do século XV para o século XX, quando atingem seu auge. No século XX as viagens saem do mar e passam para o ar, e ultrapassam nosso planeta indo até a lua e ao espaço, saem também do espaço físico indo ao espaço mental e virtual. Chegamos ao século XXI explorando agora a gigan138 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 tesca capacidade do espaço virtual. Se des Esseintes viajava, em sua casa por sugestões, sem correr riscos, agora continuamos em casa, viajando através da internet, navegando, cada vez mais isolados do mundo, sem as mesmas interações que antes a viagem real possibilitava. Podemos dizer que essa viagem virtual tem seu início com a criação do cinema. A possibilidade de ali na sala escura viver as emoções sem preocupações foi o que detonou uma série de descobertas posteriores que hoje levam às nossas viagens virtuais. Prosseguindo na nossa cartografia literária para navegação, no final do século XX, Hotel Atlântico é outro livro que vai tratar de uma viagem, e que não se apresenta com tempo definido nem espaço. Na história, o personagem principal sai do Rio de Janeiro, mas sem rumo definido. Nesse trajeto, aventuras amorosas e até inocentes envolvimentos em assassinatos são os desvios feitos pelo personagem. Através das pessoas que conhece, o personagem, que é ator, vai formando uma nova concepção das coisas que o cercam. Suas atitudes vão se modificando, e aos poucos a sua personalidade vai se delineando. É como se ele precisasse ter aquele tipo de vivência, de ensaio, para representar seu mais novo papel, o de si mesmo. Encontrar-se é, no caso, a tarefa mais difícil que esse ator teve, pois demanda um total despojamento das coisas materiais e um completo mergulho no seu próprio interior. Todavia esse personagem parece ao final que não se encontra, ele morre em frente ao mar, a imensidão que não tem segredos e que nada sugere a ele, nos diz Vera Figueiredo, que também afirma que nesse fim de século XX a literatura representa então o errante que se desloca, mas não viaja, no sentido moderno da palavra (2010, p. 218). Isto é, as viagens pósmodernas não parecem ter objetivos definidos, nem riquezas, nem terras, nem conquistas, sem objetivos externos e sem internos. Ainda em Hotel Atlântico as personalidades distintas representadas pelo personagem são explicitamente reveladas pelo narrador. A cada dia ou hora ele se sentia incorporado por um personagem diferente, talvez por hábito profissional; num primeiro momento o narrador diz que estava num dia de canastrão, depois sonha ser mulher à espera de um homem, antes disso se diz alcoólatra, e vendedor com praça em todo o Brasil. Ou seja, a viagem e o que ele encontra servem para mostrar a fragmentação do sujeito nesse momento histórico, mais uma vez posso dizer de uma literatura de viagem, uma viagem longa espacial e mental, todavia quase um non sense. Todavia essa viagem confusa será adaptada pelo cinema por Suzana Amaral, que viu nela um enorme potencial cinematográfico o que não é algo recente. Podemos dizer que desde o século XIX, o que antes era literatura de viagem se expandiu em cinema de viagem. De travellogue, termo cunhado por Burton Holmes em 1893 no início do cinema, às viagens outras como as que são feitas no tempo, nos sonhos, no espaço, nas drogas, o cinema é frutí139 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 fero nessas modalidades. Quando o cinema surge, no final do oitocentos, uma de suas funções foi informar e educar, assim viajantes passaram a levar o cinematógrafo dos irmãos Lumière e realizar os filmes de viagem que pela primeira vez mostraram à Europa o que existia do outro lado do mundo através das imagens. Tais filmes consistiam na projeção de imagens fixas ou em movimento seguidas de palestras sobre a viagem ilustrada, esses filmes ainda podiam ser “comercializados como partes avulsas, possibilitando ao exibidor diversas formas de combinações em programas cinematográficos de variedades” (DA-RIN, 2004, p. 41), onde a edição era feita muitas vezes com imagens promocionais de empreendimentos ou meios de transporte. Este tipo de cinema de viagem marca o período dos irmãos Lumière que tem seu fim com o filme Nanook of the North, onde não mais a viagem será apenas mostrada como complementar de uma palestra. A partir de Nanook de Robert Flaherty, outro elemento passa a constituir os filmes de viagem, a perspectiva dramática, ou seja, a introdução de elementos da gramática cinematográfica, aproximou o filme antigo de viagem à ficção. Assim, manipulação de espaço e tempo, identificação do espectador com o personagem dramaticidade são os novos componentes que nortearão os filmes que hoje misturam a viagem com seus enredos. A arte cinematográfica então usa a viagem como motivo, como enredo, ou, adiciona a viagem ao enredo, marcando o espaço e o tempo. São inúmeros os filmes que tem a viagem como tema principal, todavia esta nunca vem só, geralmente, a questão humana é atrelada à jornada escolhida pelo personagem. Sempre quem viaja vive inúmeras situações não esperadas e dessas refaz sua forma de ver e viver. A bagagem/experiência recolhida, normalmente serve a este viajante como conhecimento que vai sendo adquirido para sua formação, e estes reunidos a outros o transformarão. Isto é, para o viajante o caminho será o responsável pela sua mudança frente à vida. Não é novo este movimento de mudança. Ao logo dos anos as viagens cinematográficas também revelam em seu enredo, não apenas o desconhecido, o que é novo, para informar e educar. Agora os argumentos para filmar tais viagens consistem em mostrar fenômenos próprios dos nossos dias: o deslocamento, a errância, a hibridação de culturas, as identidades nacionais ou étnicas, todos estes fenômenos aparecem nos argumentos dos filmes atuais que usam a viagem. Três filmes atuais são exemplo: um franco marroquino, A grande Viagem (2004), do diretor Ismaël Ferroukhi, um chinês A Caminho de Casa (2007) do diretor Zhang Yang e o dirigido por Walter Sales, Na estrada (2012), com múltipla produção. O primeiro filme, A grande viagem, mostra uma peregrinação rumo à Meca. Conta a história de um árabe radicado no sul da França há 30 anos, que obriga o filho francês a levá-lo em uma viagem de carro por 5000 km, atravessando toda Europa, Turquia etc. Nesse percurso eles en140 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 contram diversas culturas e descobrem as suas próprias dificuldades de relacionamento. No rumo à Meca, o pai muçulmano e o filho passam a se conhecer e a se respeitar, o pai morre em Meca, mas seus valores, passados ao filho, permanecem. A viagem então serve de marcação de tempo/espaço e de diferentes sentimentos humanos. A viagem se reserva para isso, para o conhecimento do outro e de si mesmo, além do conhecimento físico da terra e das culturas que eles encontram, ou seja, o que se conhece dentro do carro são a intimidades de cada um, e fora do carro são as outras culturas e espaços. O filme A Caminho de Casa mostra outra cultura, a chinesa, a história é de amizade, lealdade e tradições. Conta a viagem que o personagem principal faz para levar seu amigo morto de volta para casa, para na terra natal ser enterrado. Nessa viagem, road movie, cruzando a China, o personagem enfrenta diversas situações, muitas hilárias, que o fazer rever a vida. Conhece homens, mulheres, passa fome e vê de perto as mais diversas formas de vida de seus conterrâneos, e no final encontra até o amor. Realiza sua missão e por isso também se transforma. Por último o filme Na estrada com base no livro On the Road (Pé na Estrada), de Jack Kerouac, conta a história de jovens americanos, que nos anos 50 buscavam algo diferente, sexo, drogas, etc. O personagem principal queria escrever um livro e juntava, nas viagens sem rumo certo, elementos para tal. Para filmar, o diretor Salles e sua equipe percorreram milhares de quilômetros pelo interior dos Estados Unidos. Assim buscavam entender um pouco mais o que os personagens sentiam. Ou seja, podemos dizer que o filme transmite duas viagens, a dos personagens e do diretor. Mais uma vez a viagem como fonte de conhecimento interno. Assim nos três filmes temos a temática da viagem sendo ou não a pedra fundamental da narrativa. Sem dúvida que através das imagens do cinema, mais facilmente as buscas dos personagens são entendidas pelos espectadores ou leitores e isto, de certa forma, aprisiona a capacidade de imaginação de quem lê, mas também pode servir como um elemento a mais na interpretação do que se pretende dizer e mostrar. Depois da literatura impressa e dos filmes, existem os escritos que se encontram na internet sobre viagens. Começamos pensando o indivíduo comum, que compra seu pacote de viagem em 12 prestações e viaja com um grupo de pessoas em busca dos lugares turísticos para fazer suas fotos e colocar no facebook. Será que este consegue retirar da viagem algo mais? Somente sua interpretação futura poderá dizer. Talvez este indivíduo se assemelhe àqueles navegadores por sua ânsia em ver algo que desconheça, apesar da enxurrada de fotos e relatos na internet. Assim, estar no lugar da foto é uma sensação que somente será sentida, definitivamente, depois que o indivíduo chegar em casa e se ver na foto. Cremos que esse processo de reconhecer a própria imagem num 141 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 cartão postal faz com que o personagem tenha real significado do que viveu e essa vivência pode trazer transformações, quando não, apenas prazer. Muitas vezes o lugar da imaginação, antes de lá se chegar, nada tem a ver com o lugar real. Esta experiência é que faz com que cada vez mais se viaje e se fale sobre a viagem. No mundo virtual encontramos muitos sites e blogs de viagem, inclusive grupos específicos em que as pessoas se dispõem a dizer o que foi bom, o que foi ruim, dar dicas. Esse material é cada vez mais acessado como consulta para novos viajantes. Sites como “Mochileiros.com”, blogs como: “Viaje na viagem”, “Viajando de carro” e outros têm um enorme número de acessos, e ali são colhidas tanto boas quanto más informações e nada de literário, outros ainda se dizem literários, mas são blogs de venda e propaganda de livros e mesmo divulgação de textos, usando a literatura como uma viagem, exemplo o blog, “Viagem literária” e tem ainda os blogs de escritores que são muito usados para divulgar seu trabalho, como “Aprendiz do nada” e “O silêncio e a bagagem”. Dentre esses tipos de blog há aqueles em que o escritor, faz a viagem para ter um objeto de escrita. Blog como “O silêncio e a bagagem” e outros são de fato literatura e misturam a criação literária com informações de cunho pessoal e imaginário e ainda as vivências do personagem ou do narrador, fora ou dentro do período da viagem. A literariedade dos tipos de blog acima (literário e de viagem) faz surgir uma literatura que se cria durante a viagem e não fora dela, não antes e não muito depois, embora saibamos que sempre pode haver um atraso entre o dia presente e o dia da postagem. O narrador coloca a postagem 2, 3 dias depois, o que sugere já um cuidado de escrita. Desta forma, alguns destes “literoviajantes” somente têm novidades enquanto o personagem narrador está na viagem. Uma vez que chegue, retorne a casa, o blog para de receber postagem, mas o que já foi colocado fica ali no mundo virtual ad eterno, à espera de uma nova viagem. No Blog “O silêncio e a bagagem” o autor está em viagem, fora de seu lugar, e ali se permite fotografar e sentir a cidade, os lugares e objetos. Percebemos nas fotos novos lugares, sempre, novos sentimentos, novos personagens, mas quase todos sem nome. Ele, ela, indivíduos sem nome que encontramos nas ruas, lugares indefinidos, realidades “desrealizadas” pela composição em meio ao deslocamento. A magia da criação em ação durante todo o percurso. Por este blog não só a escrita, mas também as fotos permitem compreender melhor os textos. O cuidado com que são escolhidas as imagens para compor a escrita, e não só ilustrar, faz toda a diferença para o leitor virtual. Um blog só com escritos normalmente é muito menos acessado do que aquele que junta escrita e imagem. Estes atraem o leitor a partir da imagem e o prende depois com a escrita. Outra maneira também atual de uma viagem se transformar em material literário é 142 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 quando a editora financia algum projeto para o escritor viver em um lugar distante e escrever algo inspirado por este lugar. Sem dúvida, o produzido pode ser bem interessante na medida em que este escritor busca, como um explorador, aquilo que lhe dê fundamento para a escritura. O mais legal é que em muitas dessas experiências percebemos que mesmo fora de casa o escritor não consegue sair da própria casa, e a distância do seu lugar somente acentua as diferenças, que o fazem narrar sobre o que já conhece e não sobre o desconhecido. Que as diferenças, principalmente as culturais, fazem acentuar no receptor aquilo que genuinamente é seu, não é novidade, todavia a novidade dessas escritas é quando o viajante depois de muito andar, descobre que não pertence mais a lugar nenhum. Neste caso, sua literatura reflete um deslocamento interior e uma sensação de não pertencimento, é um ser que não tem mais um território definido, um povo, uma língua, pois tem que usar outras línguas não a materna para se comunicar. Suas memórias são ambíguas e ele esquece o que viveu em cada lugar e passa a misturar as paisagens e os acontecimentos, às pessoas que conhece, às comidas que come. Exemplo disso são os viajantes que ficam 40 dias rodando pela Europa. De tanto entrar e sair de países diversos, com culturas e hábitos diferenciados, eles acabam se perdendo no labirinto de línguas, comidas, sensações e talvez só estabeleçam de fato o conhecimento daquele lugar depois que de lá retornarem, ou quando parar, ou depois de muito tempo até que a informação seja digerida. Por fim, depois dessa micro cartografia literária e fílmica de viagens escolhidas pelo prazer da leitura e a necessidade do trabalho, pensamos que a viagem por si só, hoje, já implica em uma questão primordial: precisamos, mais do que nunca, nos deslocarmos das nossas realidades cotidianas. Este deslocamento, que pode nos libertar do tempo e espaço em que vivemos nosso cotidiano, traz-nos a sensação de revitalização. Não cremos que no fundo possa trazer transformação de nossa forma de ser, mas com certeza o deslocamento inerente ao próprio ato de viajar, traz bem estar e propicia a criação. Assim, todo e qualquer discurso que advenha da viagem (escrito, fílmico, fotográfico) é uma possibilidade de imaginar, criar e reorganizar o nosso cotidiano. Referências AGUALUSA, José Eduardo. Um estranho em Goa. Rio de Janeiro: Gryphus, 2001. AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. CASTRO, Elis Crokidakis. “A teatralidade do espaço na bíblia decadentista”. In: COUTINHO, Luiz Edmundo. Arte e artifício-manobras de fim-de-século. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. 143 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 CATHARINA, P.P.G.F. “A poltrona mágica de des Esseintes.”, in: COUTINHO, Luiz Edmundo; FARIA, Flora (orgs.). Corpos-letrados corpos-viajantes. Rio de Janeiro: Confraria do Vento-UFRJ, 2007. DA-RIN, Silvio. 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Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. 144 PENSAR COM OLHOS E DEDOS: A DESLIGAÇÃO DA ARTE PLÁSTICA E A OBRA LITERÁRIA NO MODERNISMO PORTUGUÊS THINKING WITH EYES AND HANDS: THE DISCONNECTION OF ART AND LITERATURE IN PORTUGUESE MODERNISM Renee Payne (Universidade do Colorado - Boulder) RESUMO: Este trabalho trata da ligação, ou melhor, a desligação (a eliminação dos limites de gênero), entre as artes plásticas e a literatura através duma análise profunda de dois textos modernistas: “Saltimbancos” de José de Almada Negreiros e “a paisagem do relógio branco” de Mário Cesariny. Propõe-se que uma leitura de corte profundo da obra de Almada Negreiros revela uma crítica do autor da Primeira Guerra Mundial e a subsequente deformação social. Contudo, o tom geral da narrativa (militante e pesado de frustração) fica evidente, embora não se consiga perceber a crítica exata de Almada Negreiros. O conto de Cesariny não tem uma mensagem de caráter crítico detrás das imagens, mas ainda reflete a proposta do movimento surrealista: superar a realidade falsa tratada nas obras neorrealistas da época. O conto “a paisagem do relógio branco” logra ultrapassar a realidade por fazer o leitor, primeiramente, visualizar os deslocamentos e, depois, experimentar o deslocamento sinestésico do texto. Palavras-chave: Futurismo, surrealismo, arte plástica modernista. ABSTRACT: This paper discusses the connection, or rather, the disconnection (the elimination of the designations of genre), between art and literature through a close analysis of two Modernist texts: “Saltimbancos” by José de Almada Negreiros and “a paisagem do relógio branco” by Mário Cesariny. It proposes that an intense reading of Almada Negreiros’ work reveals a criticism by the author of World War I and the subsequent social deformity it caused. However, the general tone of the narrative (militant and weighted with frustration) remains evident even if the reader does not perceive Almada Negreiros’ exact critique. Cesariny’s story does not have a critique behind its images, but it still reflects the goal of the Surrealist movement: to surmount the false reality presented in the Neorealist work of the time period. The story “a paisagem do relógio branco” succeeds in surpassing reality by making the reader first visualize the displacements and then experience the synesthetic displacement of the text. Keywords: Portuguese Futurism, Portuguese Surrealism, Modern Art. 1. Introdução O que distingue o modernismo de movimentos literários anteriores é a tendência para a diluição dos gêneros que existe entre as artes plásticas e a obra literária durante esta época criativa. Para os surrealistas, sua obra escrita pode ser lida como um conjunto de imagens que parece como um quadro e, no caso dos futuristas, só se alcança um entendimento de seus contos ao ler o texto do mesmo jeito que se vê um quadro: experimentando o sentido de ler o conto e aceitando esta sensação. Os contos dos grandes autores de cada movimento (se destacam Mário Cesariny e José de Almada Negreiros) exemplificam a tendência da estética modernista de voltar a representar a experiência visual da arte plástica nas suas narrativas, segundo o modo de sua corrente literária. REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 2. Exame da ligação entre os meios da arte no futurismo através da análise de “Saltimbancos” O exemplo do conto “Saltimbancos” de Almada Negreiros oferece duas leituras ao leitor: há a possibilidade de engajar-se com o texto por meio da proposta de fazer as conexões necessárias para compreendê-lo, ou o leitor pode simplesmente experimentar uma inundação de palavras que constitui o conto. Segundo a crítica de Ellen Sapega, “Saltimbancos” pede muito do leitor porque este texto “só pode funcionar como uma narrativa quando o leitor aceita o desafio de ligar as imagens para tirar delas um sentido possível” (SAPEGA, 1992, p. 38). Este tipo de leitura forçada não é só possível, mas resulta numa mensagem poderosa que vale a pena decifrar do texto caótico. “Saltimbancos” consta de uma crítica bem forte da guerra e a subsequente deformação da sociedade por este acontecimento. A parte I do texto conta a história da guerra, uma guerra em que o “cinzento,” a cor que simboliza com o “brim” dos uniformes dos soldados, domina o sol (ALMADA NEGREIROS, 2002, p. 45). Estas cores, de “cinzento” e de “brim,” são uma sinédoque que representa a Primeira Guerra Mundial, a qual domina e perturba o mundo inteiro da mesma maneira que o sol fica “sujo de letra gótica sem finos nem grossos” (ALMADA NEGREIROS, 2002, p. 45) por conta da inundação de cinzento que ocorre ao longo do texto. Esta ultrapassagem da guerra interrompe as vidas quotidianas da gente e, no contexto da narrativa, o soldado tem que “casar tarde com ela,” com sua noiva, por causa também da guerra (ALMADA NEGREIROS, 2002, p. 47). O fato de que a marca com o “esquerdo esquerdo esquerdo 1 2 1 2” (ALMADA NEGREIROS, 2002, p. 47) dos passos dos soldados continua a interromper esta história do soldado e seu amor, salienta a realidade inelutável da guerra. Contudo, esta situação triste dum casal parece menor em comparação com a deformação social que Almada Negreiros detalha no decorrer do conto. A parte I termina com uma cena perversa do “espetáculo grátis” de sexo entre um cavalo e uma égua (ALMADA NEGREIROS, 2002, p. 49). Enfatiza-se o aspecto violento, e até sangrento, da cena de sexo enquanto os soldados olham e riem. Seu riso, causado pela presença de sofrimento num ato que deveria supostamente ser agradável, sublinha a deformação total do homem pela guerra porque na sua “inconsciência de brim,” do modo da vida soldadesca de só seguir sem pensar, o soldado “às vezes ri não porque haja pra rir, mas porque não é proibido rir” (ALMADA NEGREIROS, 2002, p. 49). Desta forma, a vida do soldado é uma vida que reprime. As partes II e III da narrativa de Almada Negreiros, tanto como a parte I, revelam a degradação social causada pela guerra. A parte II descreve uma cena supostamente tranquila, dum povo rodeado por montes, um povo que parece isolado (“sozinho sem companhia ali plo monte a146 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 cima”) de tudo, incluindo a Primeira Guerra Mundial (ALMADA NEGREIROS, 2002, p. 50). Contudo, até este povo isolado está afetado pela guerra como demonstra a cena final da parte em que “a mãe zanga-se e o pai bate-lhe com certeza” (ALMADA NEGREIROS, 2002, p. 51). Desta maneira, Almada deixa o leitor com uma cena de violência que interrompe a vida quotidiana deste povo e prova a inserção da violência em cada aspecto da vida durante esta época. E esta violência continua com o começo da parte III. Esta seção da narrativa conta a história duma “rapariga” que se perde na escuridão dum bosque (ALMADA NEGREIROS, 2002, p. 51). Ela tem um desejo sexual forte e guarda “o próprio calor do sexo,” mas se associa sua sexualidade com um “rasgão cada vez maior” que implica a violência do sexo para ela (ALMADA NEGREIROS, 2002, p. 52). Outra vez, num paralelo com a descrição perversa de sexo entre o cavalo e a égua na parte I, o autor muda a significância do ato sexual e o faz destacar a corrupção social que é resultado da guerra. Apesar da presença desta crítica social, o texto não exige que o leitor faça o difícil trabalho de procurar esta mensagem através duma análise detalhada das sinédoques, imagens e paralelismos encontradas nas três partes de “Saltimbancos”; também há a opção de tratar o conto como o quadro e só valorizar a experiência de lê-lo sem interpretá-lo. Segundo Marinetti, o fundador italiano do futurismo, “o homem moderno viv[e] numa multiplicidade de tempos simultâneos,” e toda a obra “Saltimbancos” exemplifica este ritmo veloz da modernidade (SAPEGA, 1992, p. 30). Almada Negreiros não emprega nenhum sinal de pontuação, de modo que o conto inteiro representa um inventário caótico. Um modo de ler o conto, um tanto interessante, que permite uma experiência que extrapola o texto, é em voz alta. É fácil ler a narrativa deste jeito por conta da velocidade impressionante que resulta da falta de pontuação. Mesmo que não se perceba nem o argumento nem a mensagem do conto durante esta primeira leitura em voz alta, ainda se sente a militância do texto, sobretudo na parte final quando a narrativa dissolve numa cacofonia de sons, um “catapum-pumpum trrrrrrrrrrrrrrrrr-la-la-la-lalalala-pum” que termina o texto (ALMADA NEGREIROS, 2002, p. 54). Esta filarmônica caótica de sons também constitui um ataque pessoal contra “a minha vida a minha arte,” contra a própria vida e profissão do autor (ALMADA NEGREIROS, 2002, p. 54). Nestes últimos momentos do texto, a repetição e inclusão de sons fazem ainda maior a velocidade já rápida do texto e esta inundação de palavras acabrunha o leitor; “toda a força rompe-me esse bombo pedrada e mais pedrada” (ALMADA NEGREIROS, 2002, p. 54). Por causa desta força repetida de bombos e pedradas, não há outra opção para o leitor senão compartilhar com o autor sua frustração com o mundo. Com o resultado de ler o conto sem analisá-lo, “Saltimbancos” funciona como um quadro futurista que apresenta ao espectador um conjunto extravagante de imagens e sons com o objetivo de provocar, de fazer sentir esta militância e a velocidade da idade moderna, porque, se147 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 gundo a filosofia de Marinetti, “a nova arte tinha que ser imposta pela violência contra a tradição” (SAPEGA, 1992, p. 30). Desta maneira, a literatura e a arte plástica futurista compartilham a mesma meta: fornecer o público com uma experiência chocante. 3. Exame da ligação entre os meios da arte no surrealismo através da análise de “a paisagem do relógio branco” O relacionamento entre as obras literárias surrealistas e a pintura e escultura surrealista difere da relação das obras artísticas futuristas em que não existe no fundo um propósito comum; no caso da literatura surrealista, o conto imita a própria forma dum quadro surrealista porque consta dum conjunto de palavras que cria uma imagem. Palavras para o escritor surrealista desempenham o mesmo papel das tintas usadas pelo pintor surrealista para representar uma realidade sobrerrealista. Esta representação da realidade opõe o tratamento supostamente ‘real’ da sociedade pelos neorrealistas que, desde a perspectiva dos surrealistas, fracassam em cumprir esta meta (CESARINY, 1985, p. 266). Esta falha do movimento neorrealista faz necessária a formação dum novo movimento, um que proponha superar a realidade retratada pelos artistas do neorrealismo para submergir numa realidade mais profunda. Ao princípio do movimento surrealista, Alexandre O’Neill descreveu para Mário Cesariny a possibilidade de formar um grupo “super-realista” que ia ter uma “inteira autonomia” do movimento surrealista francês, do qual O’Neill tomou sua inspiração (CESARINY, 1985, p. 268). Entretanto, O’Neill concordou com a meta da arte que propunha André Breton, o fundador francês do surrealismo. Segundo Breton, “à medida em que mais fundo nós descobrimos, mais comuns são as descobertas” e, por esta razão, a arte surrealista tem certo aspecto universal (CESARINY, 1985, p. 268). No caso do surrealismo português, esta universalidade foi adaptada segundo o contexto histórico da ditadura de Salazar, então o movimento assumiu um caráter de luta. Ainda que este tema da resistência impregne sutilmente toda a obra literária surrealista, os contos surrealistas, tanto como o conto futurista “Saltimbancos”, não exigem nem uma leitura de corte profundo nem uma análise detalhada, porque se pode compreender um conto surrealista simplesmente através das imagens apresentadas no texto. O conto “a paisagem do relógio branco” de Mário Cesariny exemplifica perfeitamente este modo de experimentar, em vez de analisar, as imagens dum conto surrealista para compreendêlo. Até o próprio título sugere a experiência visual que vai acontecer ao se ler o conto. O leitor vai experimentar a descrição dum relógio branco, mas este relógio branco é sua própria cena, sua própria paisagem; não é só um objeto senão um ser vivo. Depois de descrever o paradeiro do relógio branco (“numa janela que dá para certo jardim de três dedos”), o narrador se encontra com esta má148 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 quina que “respira brutalmente” (CESARINY, 1980, p. 80). Personifica o relógio para fomentar o leitor a visualizar esta paisagem. Acrescenta-se que também na paisagem uma “estranha figura gira continuamente em torno de uma grande mão percorrida por inúmeros insetos de madeira” (CESARINY, 1980, p. 80). Este deslocamento visual, mesmo com o deslocamento visual da descrição do paradeiro do relógio, prova a facilidade de compreender este conto como um quadro verbal. É fácil imaginar uma pintura de Antônio Pedro ou do próprio Cesariny com uma figura (por exemplo, uma bailarina) no centro duma mão aberta, com os braços alongados d’alguma maneira que parece um relógio e, sobre este patamar, que é a mão, correm insetos que parecem ser feitos de madeira. E, com esta visualização completa, “o maquinismo” deste relógio branco, composto desta figura na mão que se localiza no centro dum “jardim de três dedos” que o leitor vê através duma janela aberta, este “maquinismo começou a dar horas” (CESARINY, 1980, p. 80). O resto do conto constitui a experiência de ver este relógio funcionando na sua paisagem. Entretanto, por meio dum texto literário, Cesariny tem a capacidade de não só fazer o leitor visualizar uma paisagem super-realista, como se limita um pintor surrealista, mas também pode fazer o leitor imaginar toda a experiência, como se estivesse ali, pelo uso de descrições de sons e sentimentos, acrescentados às descrições visuais da primeira parte do conto. Desta maneira, depois do estabelecimento visual da máquina do relógio, o leitor ouve que “o grito lindíssimo nasceu na parte superior da concavidade” da máquina, do mesmo modo que, anteriormente, se ouviu a respiração brutal do maquinismo (CESARINY, 1980, p. 80). Esta experiência auditiva aprofunda a próxima visualização doutra figura, “uma rapariga graciosa,” que “atou-se vagarosamente ao poste e começou a girar também” (CESARINY, 1980, p. 80). Agora giram duas figuras, duas bailarinas, que dão horas na paisagem do relógio branco. Logo depois, aprofunda ainda mais a experiência tangível do leitor porque o narrador sai da paisagem do relógio branco num balão e se transforma numa mosca (CESARINY, 1980, p. 81). E, com esta transformação concreta, o leitor experimenta com o narrador a vida duma mosca, que vem “dos pântanos” e que mora “no pescoço da prostituta” morta (CESARINY, 1980, p. 81). Contudo, o leitor e a mosca-narrador não permanecem nesta moradia porque “se tratava de incesto” então, vão para “o dentinho...da menina que dorme irregularmente na praça luís de camões” (CESARINY, 1980, p. 81). Com esta mudança, o leitor entra na última paisagem do conto: um lugar onde a menina dorme; onde a polícia “fita distraidamente o último móvel da madrugada”; onde os trabalhadores começam seus dias; onde os insetos, como a mosca-narrador e o leitor, “começam a murar as suas habitações invisíveis” (CESARINY, 1980, p. 81). Mesmo que esta nova paisagem se construa como costumam fazer os surrealistas (através de deslocamentos impressionistas visuais, como aponta Carlos Bousoño em sua Teoría de la expresión 149 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 poética), por causa da transformação literal do narrador noutra criatura, o leitor vive, ou experiência, o deslocamento sinestésico de ser uma mosca; sente a confusão sensorial de tocar o pescoço frio da “carne dorida” da prostituta morta debaixo de “minhas patas” (CESARINY, 1980, p. 81). O leitor compartilha com o narrador a experiência sinestésica criada por Cesariny de ser uma mosca e, por esta razão, os textos surrealistas não só se leem como um quadro surrealista, que fica no plano de deslocamentos visuais, mas aprofundam a experiência visual da arte plástica surrealista. O conto ergue a arte surrealista até um plano em que todos os sentidos desengatam do seu significado para fomentar um deslocamento de qualidade sinestésica. 4. Conclusão: A Desligação Desta forma, se vê na obra de Cesariny, tanto como na narrativa de Negreiros, a ligação forte entre a arte plástica e a literatura no modernismo que, em realidade, consta duma desligação por borrar os limites de gênero. Segundo o crítico Mário Dionísio, a separação que supostamente existe entre a literatura e a pintura representa um equívoco porque faz séculos, incluindo o século XX quando surgiu o modernismo, existiram amizades entre escritores e pintores, e muitos artistas da época desempenharam ambos papeis (como muitos artistas tendem a desempenhar ainda hoje) (DIONÍSIO, 1983, p. 6). Os próprios Mário Cesariny e Almada Negreiros exemplificam esta tendência dos modernistas de trabalhar como pintores e escritores. Contudo, o conhecimento dos dois escritores doutro meio de expressão (a pintura) não explica diretamente o modo possível de ler seus contos como se vê um quadro pintado; só a proposta geral da arte modernista, tanto arte escrita como arte plástica, apresenta ao leitor uma explicação adequada da leitura visual de “Saltimbancos” e “a paisagem do relógio branco.” A arte plástica modernista tem como objetivo questionar o que consta a arte e, deste modo, a literatura modernista propõe questionar como deve ser definida a literatura: ambas questionam a própria definição da arte. No caso da arte escrita, ao acrescentar uma estética visual ao texto literário “contribui para uma diluição das estruturas do verso” (HATHERLY, 1977, p. 8) e esta diluição do verso representa um ato de “subverter a escrita” com propósito de subverter “a institucionalização das sociedades” e “suas estruturas lógicas e psicológicas” que inclui a categorização de gênero (HATHERLY, 1977, p. 14). As instituições das sociedades definem o que consta o gênero da arte plástica e o gênero da literatura e, por esta razão, a subversão e o assalto à escrita pela dissolução da frase escrita com imagens adicionais cumprem a proposta da arte modernista. Armadas com esta meta comum, a partir do começo do simbolismo, “as fronteiras entre as artes vão caindo” (HATHERLY, 1977, p. 8) e, como salienta a experiência de ler os contos de Cesariny e Negreiros, o texto literário começa a parecer o quadro modernista; começa 150 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 a desligação. Nem os surrealistas nem os futuristas tentaram distinguir entre a obra plástica e a obra escrita; deixaram os meios se misturarem porque, afinal, os escritores tanto como os pintores pensam do mesmo modo artístico: pensam “com os olhos e os dedos” (DIONÍSIO, 1983, p. 14). Referências ALMADA NEGREIROS, José de. Saltimbancos. Ficções. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002. BOUSOÑO, Carlos. Teoría de la expresión poética. Madrid: Gredos, 1976. CESARINY, Mário. A paisagem do relógio branco. Primavera Autónoma das Estradas. Lisboa: Assírio & Alvim, 1980. ________. Para uma Cronologia do Surrealismo em Português. As mãos na Água a cabeça no mar. Lisboa: Assírio & Alvim, 1985. DIONÍSIO, Mário. Literatura e pintura, um velho equívoco? Colóquio/Letras, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, n.71, 1983. HATHERLY, Ana. Visualidade do texto: uma tendência universalista da poesia portuguesa. Colóquio/Letras, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, n.35, 1977. SAPEGA, Ellen W. Ficções Modernistas: um estudo da obra em prosa de José de Almada Negreiros, 1915 - 1925. Lisboa: Ministério da Educação, 1992. 151 INFLUÊNCIAS, REFERÊNCIAS E INTERTEXTOS POÉTICOS: APARIÇÕES DE ELIZABETH BISHOP EM ANA CRISTINA CESAR E ANGÉLICA FREITAS INFLUENCES, REFERENCES AND POETICAL INTERTEXTS: APPEARANCES OF ELIZABETH BISHOP IN ANA CRISTINA CESAR AND ANGELICA FREITAS Raquel Machado Galvão (PG – UEFS) RESUMO: Este ensaio propõe uma abordagem acerca das influências, referências e relações intertextuais da poeta americana Elizabeth Bishop presentes nas poesias de Ana Cristina Cesar e Angélica Freitas. A história de cada uma das escritoras aparece enlaçada nas suas construções poéticas, assim como a presença direta e indireta de diversos escritores em um texto poético. As ideias apresentadas se baseiam em estudos e pesquisas realizados por Julia Kristeva, T.S. Eliot, Roland Barthes, Leonor Arfuch, Carlos Alberto Messeder Pereira, Maria Lucia de Barros Camargo, entre outros. A interpretação aqui exposta desemboca em uma discussão sobre a importância de Elizabeth Bishop como inspiração para poetas que a sucederam e como ela compõe e se perpetua nas poesias através de alusões e citações. Palavras-chave: Ana Cristina Cesar; Angélica Freitas; Elizabeth Bishop; intertexto; poesia. ABSTRACT: This paper proposes an approach about influences, references and intertextual relations of the work of the American poet Elizabeth Bishop present in the poetics of Ana Cristina Cesar and Angélica Freitas. The history of the writers appears in their poetic constructions, as well as direct and indirect presence of canonic writers in a poetic text. The ideas presented are based on studies and researches conducted by Julia Kristeva, T.S. Eliot, Roland Barthes, Leonor Arfuch, Carlos Alberto Pereira Messeder, Maria Lucia de Barros Camargo, and others. The interpretation outlined leads into a discussion about the importance of Elizabeth Bishop as inspiration for poets who succeeded her and how she composes and is perpetuated in poetry through allusions and quotations. Keywords: Ana Cristina Cesar; Angélica Freitas; Elizabeth Bishop; intertext; poetry. Cada texto poético está entremeado com outros textos poéticos. Ele não está sozinho. É uma rede sem fim. É o que a gente chama de intertextualidade. (CESAR, 1999, p. 267). 1. Introdução Seja por incorporação, admiração ou simples influência, um poeta traz no seu labor de construção e pulsão lírica, palavras, expressões, citações e informações que remetem direta ou indiretamente a outros escritores. Essas referências podem se apresentar em diversos formatos. Às vezes, como uma homenagem assumida, outras como cópia indireta. Mas em todas elas está presente o que nos estudos literários se chama de intertexto. Julia Kristeva, uma das estudiosas que propôs a noção de intertextualidade para os estu- REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 dos literários, influenciada por Mikhail Bakhtin, trouxe o pensamento que a escrita literária traz textos anteriores ao seu, implícita ou explicitamente. Para ela, “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto”. (KRISTEVA, 1979, p. 68). Para T.S. Eliot, o poeta utiliza emoções e influências para trabalhá-las em um nível poético elevado: A mente do poeta é de fato um receptáculo destinado a capturar e armazenar um semnúmero de sentimentos, frases, imagens, que ali permanecem até que todas as partículas capazes de se unir para formar um novo composto estejam presentes juntas. (ELIOT, 1989, p. 44). Entre percursos, leituras, referências e influências – alusões e citações - e diante do texto e do contexto do ensaio três poetas (por ironia e coincidência, mulheres): Elizabeth Bishop, Ana Cristina Cesar e Angélica Freitas. Cada uma delas poetizando seu tempo e a sua geração, sem perder o elo com os seus locus vivendi e com os seus percussores de escrita. Também apresentaram, nos seus poemas, os limites de produção característicos da vida moderna – labirintos, incertezas, perdas e fragmentos. O auge produtivo das três poetas encontra-se em épocas diferentes. A primeira, Elizabeth Bishop, produziu de forma constante entre as décadas de 40 e 70 do século XX. Ana Cristina Cesar, por sua vez, teve o seu auge literário no final da década de 70 e início da década de 80, um pouco antes do salto inesperado que a levou ao suicídio em 1983. Angélica Freitas já é uma poeta do século XXI: publicou o seu primeiro livro de poesias no ano de 2007. A partir da produção de Elizabeth Bishop é possível perceber como ela influenciou, foi referenciada e “apareceu” nos textos das duas outras autoras que sucederam a sua obra. Fenômeno que Roland Barthes indica e descreve em O Rumor da Língua: A leitura é condutora do Desejo de escrever (estamos certos agora de que há um gozo da escritura, se bem que ainda nos seja muito enigmático). Não é que desejemos escrever como o autor cuja leitura nos agrada; o que desejamos é apenas o desejo que o escritor teve de escrever, ou ainda: desejamos o desejo que o autor teve do leitor enquanto escrevia, desejamos o ame-me que está em toda escritura. (BARTHES, 2004, p. 39). O que torna-se impossível é uma dissociação da história de vida com a história literária de cada uma delas, para assim, linkar as suas vivências sociais e suas influências com os indícios de experiência que aparecem nas suas poesias. Como Leonor Arfuch traz nas suas reflexões sobre o espaço biográfico na literatura: Não há texto possível fora de um contexto, inclusive, é esse último que permite e autoriza a legibilidade, no sentido que refere Derrida; e também não há um contexto possível que sature o texto e clausure a sua potencialidade de deslizamento para outras instâncias da significação. (ARFUCH, 2010, p. 132). 153 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 2. Indícios de Bishop em Bishop Elizabeth Bishop (1911-1979) foi uma escritora americana que nasceu em WorcesterEUA. Estudou literatura inglesa em Vassar e viajou por vários países como Canadá, França, Inglaterra, Marrocos e Espanha. Recebeu diversos prêmios por sua produção poética, entre eles, o Poet Laureate of the United States (1949-1950), o Pulitzer (1956), o National Book (1970) e o Neustadt International Prize for Literature (1976). Lecionou em várias universidades americanas, como a Universidade de Washington, em Harvard, na Universidade de Nova York e no Instituto de Tecnologia de Massachussetts. Em 1951, empreendeu uma viagem pela América do Sul, com uma parada no Brasil, onde, por ironia do destino, permaneceu até 1966 (por conta de uma alergia a Cajus perdeu o embarque no navio em Santos). Passou a viver na Fazenda Samambaia, perto de Petrópolis, propriedade da arquiteta Lota de Macedo Soares, com quem foi casada durante o tempo que permaneceu no país. Nesse período, teve passagens esporádicas pelo Rio de Janeiro e Ouro Preto, e excursionou por outras regiões, tendo passado pela Amazônia e navegado o São Francisco. Tanto o Brasil, quanto a sua relação com Lota, estão presentes na sua vasta produção poética. É o que verifica Paulo Henriques Britto, principal tradutor de Bishop para o português e organizador do livro Poemas Escolhidos de Elizabeth Bishop: O que Bishop deixa claro, tanto nos poemas de amor como nas cartas escritas nos anos 1950, é que sua paixão pelo Brasil é sempre mediada pela paixão por Lota. Ou seja, é só na medida em que lhe é possível identificar a terra com a mulher amada que Bishop pode amar o Brasil. (BISHOP, 2012, p. 37). Suas principais referências literárias foram Marianne Moore - com quem se correspondia com frequência e que a ajudou a publicar seu primeiro livro, T. S. Eliot, Ezra Pound e Wallace Stevens. Foi também influenciada por poetas da América do Sul e Central, como o mexicano Octávio Paz, e os brasileiros João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, os quais traduziu para o inglês. Na sua produção poética destacam-se as seguintes publicações: North & South (1946), A Cold Spring (1955), Questions of Travel (1965), Uncollected Work (1969) e Geography III (1976)1. Nesse último, está presente um dos mais celebrados poemas de Bishop, One Art ou A Arte de Perder (tradução). O texto traz algumas referências autobiográficas e reflete sobre o sentido da arte, da vida e das perdas: 1 Norte & Sul (1946), Uma Primavera Fria (1955), Questões de Viagem (1965), Obras Dispersas (1969) e Geografia III (1979). 154 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 A arte de perder não é nenhum mistério; tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las, que perder não é nada sério. Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero, a chave perdida, a hora gasta bestamente. A arte de perder não é nenhum mistério. Depois perca mais rápido, com mais critério: lugares, nomes, a escala subsequente da viagem não feita. Nada disso é sério. Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero lembrar a perda de três casas excelentes. A arte de perder não é nenhum mistério. Perdi duas cidades lindas. E um império que era meu, dois rios, e mais um continente. tenho saudade deles. Mas não é nada sério. - Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada. Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (Escreve!) muito sério. (BISHOP, 2012, p. 363) Ao tratar com leveza as problemáticas encontradas nos interstícios da vida, e já dotada de uma maturidade de escrita e de reflexão, a poeta remete ao “continente” que perdeu, a América do Sul, aos “dois rios”, que remete ao Amazonas e ao São Francisco, pelos quais ela passou nos anos de Brasil, as “duas cidades lindas”, o Rio de Janeiro e Ouro Preto, e as “três casas excelentes” nas quais se dividia no Brasil (Rio de Janeiro, Ouro Preto e Petrópolis). 3. Ana Cristina Cesar e Bishop em Ana Cristina Cesar Ana Cristina Cesar (1953-1983) foi uma escritora nascida no Rio de Janeiro em uma família de classe média alta e envolvida com a área de literatura. Demonstrou, desde muito nova, habilidade com as palavras. Em depoimento para Carlos Alberto Messeder Pereira, em Retrato de Época: poesia marginal anos 70, lançado pela Funarte em 1981, ela fala um pouco desse background familiar: “eu fui uma ‘menina prodígio’. Esse gênero, assim, aos seis anos de idade faz um poema e papai e mamãe acham ótimo... na escola, as professoras achavam um sucesso. Então literatura assim pra mim começou... mamãe era professora de literatura, aqui (em casa) era sempre (local de) encontro de intelectuais, papai transava na Civilização Brasileira, não sei o que. Então tem esse lance assim de família de intelectual que você... estimulava e publicava nas revistinhas de igreja, ou alguém conhecia alguém na Tribuna da Imprensa... botava no mural da escola... Aí quando eu cresci, essa coisa me incomodou muito...” (PEREIRA, 1981, p.190-191) 155 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Quando cresceu, foi literalmente e na área literária. A menina que ditava poemas para a mãe, se transformou em uma jovem com agitada vida acadêmica, cursou Letras na PUC-RJ (19711975), obteve o título de mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com o estudo da representação da literatura no cinema - “Literatura não é documento” (19781979), financiado pela Funarte, e em Master of Arts pela Universidade de Essex (1979-1981), com uma tradução comentada do conto Bliss, de Katherine Mansfield. No que tange à produção literária, esteve fortemente envolvida na produção literária dos anos 70. Publicou três livros de forma alternativa: Cenas de Abril (1979), Correspondência Completa (1979) e Luvas de Pelica (1980). Eles, contudo, se diferenciavam um pouco do restante da produção marginal por alguns sinais de requinte e capricho, típicos da escritora, assim como pelos recursos de construção poética utilizados. Participou, ainda na década de 70, da coletânea 26 Poetas Hoje (1976) organizada por Heloísa Buarque de Holanda. Em 1982, publicou por uma editora comercial, a Brasiliense, o livro A teus pés, que incluiu os três livros anteriores, além do inédito A teus pés. A partir daí, apenas livros póstumos, a maioria organizada pela família Cesar e pelo escritor Armando Freitas Filho, a quem Ana Cristina deixou a responsabilidade de cuidar do seu material pós-morte: Inéditos e Dispersos (1985), Escritos na Inglaterra (1988), Escritos no Rio (1993) e Correspondência Incompleta (1999). Pelo Instituto Moreira Sales, Antigos e Soltos (2008), organizado por Viviana Bosi, uma das principais pesquisadoras de Ana Cristina Cesar no Brasil. Essa sobrevida da obra de Ana Cristina Cesar deve-se a inúmeros fatores, principalmente à originalidade, ao que ela traz de novo. Da mesma forma que produziu uma literatura de compreensão menos direta, e, consequentemente, mais difícil, ela traz textos com montagens de coisas reais, cotidianas, brinca com correspondências, biografias, diários e documentos. É uma literatura também marcada pela influência de outros autores. Somado ao trabalho de tradução de poetas como Sylvia Plath, Mariane Moore, Anthony Barnet, Emily Dickinson e William Carlos Williams, ela apresenta na sua produção poética um estilo que é próprio, mas também dos outros. No livro A teus pés apresenta, ao final, um Índice Onomástico, no qual traz 23 nomes, entre escritores consagrados ou amigos, que estão diretamente ligados à sua produção ou influenciaram a sua escrita2. Elizabeth Bishop está incluída entre esses nomes citados. Em uma das poesias presentes no livro aparece uma alusão e referencia direta a Bishop, no poema Travelling: Tarde da noite recoloco a casa toda em seu 2 Índice Onomástico de A teus pés: Francisco Alvim, Eudoro Augusto, Manuel Bandeira, Elizabeth Bishop, Heloísa Buarque, Angela Carneiro, Emily Dickinson, Grazyna Drabik, Carlos Drummond, Armando Freitas, Billie Holliday, James Joyce, Mary Kleinman, Katherine Mansfield, Cecília Meireles, Angela Melim, Murilo Mendes, Katia Muricy, Octávio Paz, Vera Pedrosa, Jean Rhys, Gertrude Stein, Walt Whitman. 156 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 lugar. Guardo os papéis todos que sobraram. Confirmo para mim a solidez dos cadeados. Nunca mais te disse uma palavra. Do alto da serra de Petrópolis, com um chapéu de ponta e um regador, Elizabeth reconfirma, “Perder É mais fácil que se pensa”. Rasgo os papéis todos que sobraram. [...] (CESAR, 1993, p. 44) Imerso no próprio limite de armadilhas intertextuais que Ana Cristina propõe, a poesia começa em um tom confessional, que se encontra a uma referência direta à vida de Elizabeth Bishop em Petrópolis, algo bem biográfico no trecho: “Do alto da serra de Petrópolis, com um chapéu de ponta e um regador, Elizabeth reconfirmava”. Em seguida, uma referência direta ao poema One Art, com o trecho “Perder é mais fácil que se pensa”, de encontro à tradução “A arte de perder não é nenhum mistério”. Maria Lúcia de Barros Camargo, na tese de doutorado sobre Ana Cristina Cesar, publicada no livro Atrás dos Olhos Pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar, diz que: É evidente que toda obra literária tem relação com a tradição que a antecede, seja por influências, seja por adesão, por mimese, por negação, por resistência, por releitura ou recuperação [...] Mas em Ana Cristina a relação com a tradição literária não vai se limitar a influências, nem será apenas prática epigonal da modernidade. É processo construtivo da obra, conscientemente planejado e elaborado: paródias, pastiches, apropriação de versos, alusões e referências diretas a autores amados, a amigos e outras artes. (CAMARGO, 2003, p. 119). Ana Cesar aprimorava, assim, seu método poético com a aproximação a outros autores, observando traços, esquemas da escrita e imagens presentes nos textos. 4. Angélica Freitas, liz e lota Angélica Freitas (1973-) é uma escritora em atividade que exerce o papel de poeta e tradutora, semelhante ao das já citadas autoras. Nasceu em Pelotas-RS, tendo cursado Comunicação Social da UFRGS e atuado como repórter dos jornais O Estado de São Paulo e Revista Informática Hoje. Já morou em países como Holanda, Bolívia e Argentina. Em 2007, publicou seu primeiro livro, Rilke Shake, já traduzido para inglês, francês, espanhol e alemão. Fez parte de outras coletâneas nacionais e internacionais, até lançar o seu segundo livro em 2012, chamado O Útero é do Tamanho de um Punho. 157 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 A escritora participa de uma geração que ainda não foi batizada pela crítica literária. Contudo, assim como Ana Cristina Cesar, mistura referências pop com nome de escritores consagrados. Em Rilke Shake referencia Gertrude Stein, Djuna Barnes, Mariane Moore, Ezra Pound, Rilke, Mallarmé, Shakespeare, John Keats, entre outros. Elizabeth Bishop aparece em Angélica Freitas no poema liz e lota, também presente em Rilke Shake: liz e lota imagino a bishop entre cajus toda inchada e jururu da janela o rio a seu lado a lota, com um conta-gotas. ‘but you must stay. forget that ship’, she said. ao que bishop riu, olho esquerdo sumiu, afundou na pálpebra. a americana dormiu em alfa. e no seu sono, tão geográfica sonhou com a carioca rica e com a vastidão da américa. (FREITAS, 2007, p. 29) Angélica Freitas traz referências à vida pessoal de Elizabeth Bishop, fazendo alusão a uma forte alergia que a manteve no Brasil e possibilitou a sua aproximação com Lota Macedo. Trata com humor a situação de liz e lota, o início da paixão e o sonho da escritora – uma tranquilidade financeira para escrever. Quando diz “em seu sonho tão geográfica”, Freitas remete ao livro Geografic III, e ao poema One Art, ao falar do continente no trecho “e com a vastidão da américa”. Segundo Hilary Kaplan, tradutora de Rilke Shake para o inglês, a poesia de Angélica Freitas: “apresenta um shake de linguagens e palavras com a tradição canônica e um toque de prazer, batidas no liquidificador irônico da pós-modernidade”3. Lota Macedo, volta a aparecer de forma en passant, em outra poesia de Angélica Freitas presente em Rilke Shake. Um pequeno trecho traz informações indiretas sobre o fato da frequente conduta da arquiteta de andar armada. [...] olhei praquele espelho o suficiente pra sem relógio caro fazer pose de lota 3 Tradução da autora: “poetry approached as a shake of languages, words, canonical tradition and a measure of delight, whirred in postmodernity’s ironic blender.” (KAPLAN, Hilary. Translating Poems. Em: <http://www.digitalartifactmagazine.com/issue2/Translating_Poems_from_Angelica_Freitas_Rilke_shake>. Acesso em 22 de agosto de 2013. 158 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 e sem pistola automática pose do anjo do charlie então eu disse: “é, gata” rápida peguei as chaves saí num pulo, só fui rir no elevador.” (FREITAS, 2007, p. 58) Embora Angélica Freitas não cite Ana Cristina Cesar diretamente, ela também tem nessa poeta uma inspiração para a sua escrita, como colocou em uma recente entrevista concedida para a jornalista Raquel Cozer da Folha de São Paulo: Esse estilo inspirou mais de uma geração de poetas. Um dos nomes mais conhecidos no gênero hoje, a gaúcha Angélica Freitas, 40, credita a leitura de Ana C. seu interesse por escrever poesia: “eu a li aos 15 anos. Até então, tinha escrito uns versinhos. Os poemas me causaram grande estranhamento. Muita coisa ali era um mistério. Mas um mistério que mostrou que poesia também pode ser investigação, ela diz”. (COSER, 2013, online) 5. Aparições do outro no outro Mais que influência, Elizabeth Bishop foi, para as duas poetas que a sucederam, uma referência de escrita e de trabalho árduo com a linguagem. Em comum, as três trouxeram fragmentos e temáticas características de seus tempos. Romperam e impregnaram a sua escrita com o suor do outro, onde encontram Barthes: A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos, na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo. (BARTHES, 1981, p. 64). O que também aparece de similaridade entre as poetas é o desprendimento ao trazer temáticas como a sexualidade, tratando as relações humanas com naturalidade. Destemidas, mesclam vida e obra com o trabalho literário árduo e constante. Independente de serem mulheres, figuram – de forma consagrada ou não – entre os grandes escritores. Reconhecidas, reconhecem o poder e a delicadeza do poeta diante do desafio de tratar sobre temáticas universais. Poeta esse que estuda, cria, recria, se espelha e “não vê mistério na arte de perder”. Afinal de contas, “nada é sério”. Referências ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução: Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. ________. O rumor da língua. Tradução de Mario Laranjeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 159 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 BISHOP, Elisabeth. Poemas escolhidos. Seleção, tradução e textos introdutórios de Paulo Henriques Britto. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. CAMARGO, Maria Lucia de Barros. Atrás dos olhos pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar. Chapecó: Argos, 2003. CESAR, Ana Cristina. A teus pés. 8ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993. ________. Crítica e Tradução. 1ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1999. ________. [et al.]. Poesia Marginal. São Paulo: Ática, 2006. COSER, Raquel. Falso tom confessional de Ana Cristina Cesar influenciou gerações. São Paulo: Folha de São Paulo, 2013. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/08/1324204-falso-tom-confessional-de-ana-cristinacesar-influenciou-geracoes.shtml> . Acesso em: 17 de ago. 2013 ELIOT, Thomas Stearns, Tradição e Talento Individual. Em: Ensaios. Tradução e Introdução: Ivan Junqueira. São Paulo: Art Editora, 1989. FREITAS, Angélica. Rilke Shake. São Paulo: CosacNaify; Rio de Janeiro: 7 letras, 2007. HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). 26 Poetas Hoje. 6ª ed. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2007. HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de Viagem – CPC, Vanguarda e Desbunde: 19601970. São Paulo, Editora Brasiliense, 1980. HOLLANDA, Heloisa Buarque de; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Poesia Jovem – anos 70. São Paulo, Abril Educação, 1982. KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 1974. MORICONI, Italo. Ana Cristina Cesar: o sangue de uma poeta. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996. PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Retrato de Época: poesia marginal anos 70. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981. 160 ENTREVISTA QUESTÕES DE POESIA E DE CRÍTICA COM GILBERTO MENDONÇA TELES Rosemary Ferreira de Souza (PG - Unimontes) Professor Dr. Gilberto Mendonça Teles, muito boa tarde. É um prazer entrevistá-lo sobre tão relevante assunto: a Poesia e a Crítica literária. Rosemary - Tomando aqui as palavras do crítico Fábio Lucas, “a obra literária necessita de uma fala, de um eco que a julgue e a consagre”. (In: O poliedro da crítica, 2010). A seu ver, a Crítica literária tem o espaço que deveria ter? Qual o lugar da Crítica no espaço literário? GMT - Claro que sim, não só porque a divulga, como também porque a julga e critica (metalinguagem de metalinguagem), aprimorando-a para os leitores do criticado e para o próprio crítico, que a construiu. Quanto a seu espaço o mais comum é o do jornal (dos suplementos), de onde costuma sair para o livro, para a cátedra, e até para outras línguas. O certo, entretanto, é que o grande espaço da crítica nos rodapés foi aos poucos cedendo lugar a pequenas resenhas de 35 linhas e a pequenas notas que mal noticiam o aparecimento do livro. Por sua função cultural, e pela importância que o livro (de poemas, de ficção e da própria crítica) ainda tem na sociedade, era preciso que houvesse mais liberdade para o exercício da crítica na cultura brasileira. Mas o que assistimos é a contínua diminuição do lugar da crítica nos jornais e nos suplementos literários. Rosemary - Na apresentação de Contramargem II: estudos literários (2009), você fala da sua dupla atividade, a de poeta e a de crítico. Na poesia pensa na crítica, na crítica pensa na poesia. Na Trilogia Sintaxe invisível (1967), A raiz da fala (1972) e Arte de armar (1977), há a percepção de que a prática metalinguística é reveladora da consciência crítica do autor, que na poesia não se separa da crítica ou vice-versa. Sérgio Buarque de Holanda em seu texto “Poesia e crítica”, integrado em O espírito e a letra (1996), vai dizer que “convém que em todo e verdadeiro poeta haja um crítico vigilante e enérgico”. Gilberto, fale-nos um pouco desse papel do poeta que compõe, que cria e do crítico que analisa, e recria. GMT- Quando digo (num dos meus livros de crítica) que o ato criador é duplo (intuição e reflexão, isto é, olhar sobre essa intuição) estou de certa forma ratificando o que você transcreveu acima: a intuição é o momento inicial da criação que só vai adiante, só se completa se for prolongada, se for mantida a consciência – a arte –, do processo criador. Assim, existe a “chama” e, em seguida, a continuidade do “fogo poético” que é alimentado pela retórica (pela arte), pelo domínio do “discurso verbal” para que ele deixe de ser puramente linguístico e se transforme em “discurso poético”. O poeta, o artista, deve vigiar a intuição para que ela não se torne bastarda, repetida, comum; REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 e deve, ao mesmo tempo, vigiar-se (e a sua consciência) numa permanente autocrítica criadora. Repito para você o pensamento de Baudelaire (num dos seus ensaios sobre música): “Tenho dó do poeta que não conhece sua arte: eu o creio incompleto”. Rosemary - Gilberto Mendonça Teles é considerado pela crítica (José Fernandes, por exemplo), um poeta/artista, com um processo de criação intenso, com uma adesão absoluta da criação. E com toda certeza o é. O que você pode dizer da escrita poética que transita entre a tradição e a modernidade? A poesia e o poeta têm necessariamente de estarem ligados à tradição? GMT- Por que não ver a coisa de outra maneira, sem a tensão tradição/ruptura? A pergunta parece insinuar, talvez, que a “tradição” (o tradicional) é o velho, o antigo, o ruim; e a “ruptura” a novidade, o novo, o melhor? Será que a Ilíada [VIII a.C.] é tradicional? E os poemas de Safo [VII-VI a.C.]? E os poemas de Catulo? [87 a.C.]? E os de Petrarca [1304 d.C.]? E os de Camões e os de tantos outros grandes poetas? São eles tradicionais ou modernos? Eles são. Existem. São lidos: foram lidos pelos leitores no “passado” e são lidos pelos do “presente”. As técnicas de sua produção assim como os seus temas pouco mudaram em três mil anos. A Metrificação, que professores e poetas “novíssimos” (que logo ficarão velhíssimos) não querem aprender existe desde a oralidade de Homero e desde a escrita lírica que chegou à Grécia entre os séculos VII e VI a.C. Assim, o melhor para quem estuda como você é não ver separação entre poesia da “tradição” e da “modernidade”: o melhor é ver a continuidade da poesia. A Poesia como um dó na sua totalidade abstrata. E ver a concretização dela nos poemas que ficaram (milhares desapareceram). Os que só querem ser novos (que só pensam em vanguarda) ficarão velhos mais depressa. Os índios yanomanis, no norte do Brasil, não fazem diferença entre índios selvagens e índios civilizados. Para eles “tudo é índio”. Volto agora ao final da sua pergunta, sobre a “escrita poética que transita entre a tradição e a modernidade”. Vou pensar a escrita poética (ou escritura poética) não na acepção de Jacques Derrida, mas como a queria Roland Barthes no Degré zéro de l’écriture: noção intermediária entre a língua (código interindividual) e o estilo (escolha subjetiva). Escolha de quê? das prescrições da linguagem impostas ao escritor pela época, pelo grupo social, pela ideologia e que marcam a obra como pertencente a um momento histórico. Para Barthes, a escrita não é simples representação da linguagem falada, mas “um além da linguagem”. Neste sentido, toda escrita poética transita entre a tradição e a modernidade. E volto também à última frase. A meu ver, a poesia sempre está ligada à tradição, no sentido de tradire (trazer): a poesia transita entre a tradição e a modernidade: traz a tradição para a modernidade. Mas o poema, não: há poemas marcados pelo tempo, que se contentam com o seu tempo e morrem por lá. Agora o poeta não tem, mas deve sempre estar ligado à tradição (como conhecimento), fazendo dela a sua matéria da modernidade. Atualizando-a (a tradição). 163 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Rosemary - Na abertura da segunda parte de Arte de armar (1977) há a epígrafe retirada do código Hammurabi “naquele dia os deuses pronunciaram meu nome”. Esta epígrafe sugere o poeta como escolhido, iluminado para criar. Em sua vasta obra, nota-se que há todo um cuidado com a criação poética. Você relata em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Filosofia, publicado como Sortilégios da criação (2005), que há um desejo de contemplar a poesia face a face. Neste sentido, a poesia é sagrada? GMT - É claro que essa imagem do “face a face” me faz uma alusão ao problema de Moisés perante o Senhor, no Sinai. Para mim, a Poesia tem muito de sagrado. Sobre isso, o melhor é ver o que escrevi para uma conferência na XVII Semana de Teologia do Instituto Teológico Arquidiocesano Santo Antônio, de Juiz de Fora, em 24.09.2004. Eis alguns parágrafos do tema ali desenvolvido, POESIA & RELIGIÃO. As melhores discussões sobre poesia nos passam de imediato a crença numa outra margem do real, numa terceira margem como no conto de Guimarães Rosa. Implica uma crença na revelação, se não religiosa, pelo menos na descoberta do que, por ser demasiado comum e humano, se torna invisível. A imagem poética lhe dá realce, tira-o do limbo, revela-o ao leitor. Neste sentido, o comum se torna incomum; o natural passa a ser visto como sobrenatural, e a percepção, mostrando o “invisível”, parece pôr à mostra um pouco de mistério, alguma coisa mística e sagrada, como o atesta uma antiga etimologia de Poesia: do fenício phonos = boca + ishi = sagrado (derivado de Ísis, a deusa egípcia que foi confundida com Nossa Senhora no início do Cristianismo). Como a Religião é a forma por excelência da revelação, do encontro do homem com o sobrenatural, com o que o rodeia e ele não tem olhos para ver, como se diz em várias passagens da Bíblia, a Poesia está por isso mesmo intimamente ligada à Religião, tal como este termo se liga ou se religa a uma tradição cultural. Existe, primeiro, o sentido de uma raiz obscura, que Cícero relacionou com relégere [relegĕre, de re + légere], isto é, re-colher, colher de novo o melhor, uma “flor” e, figuradamente, um “texto”, visto como uma “flor” (cf. florilégio, antologia). No fundo de légere está o termo grego léxis [λέξις], uma das designações da “palavra”. Isso explica o significado de “releitura” na origem do significado de Religião. Mas há também a etimologia mais divulgada, a de que o termo “religião” provém de religāre, ou seja, a presentificação e glorificação permanente dos deuses e dos santos na cerimônia do culto religioso. Tanto a Poesia como a Religião estão fundadas numa linguagem: a Religião, parte do símbolo, quer dizer, de uma linguagem absoluta e vertical, de cima para baixo, impositiva; a Poesia parte do signo, que é horizontal e lógico como o discurso e se abre para o imaginário de cada um. Para Octavio Paz (El Arco y la Lira), a Religião acena ao homem com a vida eterna, mas a noção de eternidade aí é para depois da vida, é para o fim dos tempos. A Poesia, ao contrário, é uma forma de revelação, mas a partir da linguagem de cada 164 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 cultura: ela “nos abre  diz o poeta mexicano  uma possibilidade que não é a vida eterna das religiões nem a morte eterna das filosofias, mas um viver que envolve e contém o morrer”. A Poesia é assim o exercício maior da nossa liberdade de ser: através dela tomamos contato com uma categoria de “sagrado” que não é bem o sobrenatural, mas uma saída do comum, da linguagem comum que nos achata, que nos faz igual a todo mundo, que escamoteia a nossa individualidade. A liberdade de que falamos está na possibilidade de escolhermos as nossas palavras e de organizá-las segundo o nosso gosto, de investir nelas as significações mais caras ao nosso imaginário e às nossas emoções. Aí está a criação na poesia: o poeta foge da linguagem de todo mundo, ordenando-a de outra maneira, construindo dentro dela o seu cosmo particular, que é o poema, objeto verbal artisticamente estruturado. Nisso ele procede como Deus: parte do caos da criação para o cosmo do poema e da poesia. O paralelismo entre as experiências mística e poética nada tem a ver com as tentativas de automatismo psíquico ou com as experiências (frustradas) da escrita automática dos surrealistas. Mas está com certeza relacionado com as práticas esotéricas e gnósticas, com o orfismo e até com o hermetismo de certas linguagens encantatórias, inclusive surrealista, no que este movimento possa ter sido contaminado pela concepção da “poesia pura” e do sortilégio do verbo, da década de 20. Um dos recursos para atingir a “poesia pura” é o de transformar a linguagem em magia musical, em litania, em enunciá-la bem, em pronunciá-la conforme o ouvido dos deuses, como queria Pânini com os velhos textos védicos. Essa melopeia encantatória vem dos mais remotos tempos e atinge, com Mallarmé, a mais alta concepção, como se depreende da leitura de La Musique et les Lettres, de 1895. É daí que vem a teoria do abade Henri Brémond, para quem dentro da poesia há uma realidade misteriosa e a linguagem poética deve ser esse encantamento obscuro, que não depende do sentido e sim da musicalidade do verso. O poema é assim uma expressão que transcende as formas do discurso e não se deixa reduzir ao conhecimento puramente racional. Ele provém de um ritmo que passa pelo mais íntimo do poeta, repercute no cosmo cultural e toca, em última instância, o Lógos do Criador. Um ritmo que se faz musicalidade para revelar os estados inconscientes ainda não tocados pelo sentimento ou pela razão, um ritmo mágico e, por isso mesmo, de prece. Rosemary -. Considerando os seus mais de 50 anos de produção poética, o que o poeta tem a dizer do seu próprio processo criativo? GMT- De certa maneira a resposta já está em fragmento nas perguntas anteriores. Mas um dos meus processos de criação poética é forçar uma escrita: preciso escrever um poema, a pedido. Preciso escrever um poema para uma pessoa que me tocou, por simpatia, por interesse pessoal. Preciso escrever um poema sobre um tema que me apareceu de repente. Enfim, são várias maneiras de precisão (de necessidade íntima). Então começo a escrever: é como se um impulso me arrastasse, 165 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 mas eu o controlo. Ele vai adiante sob meu controle. Foi o que chamei de arte mais acima. (Entrevista concedida à Rosemary Ferreira de Sousa em 10 de Dezembro de 2012). 166 RESENHAS A AURORA DAS DOBRAS: INTRODUÇÃO À BARROQUIDADE POÉTICA DE AFFONSO ÁVILA Rosane Ferreira de Sousa (PG - UNIMONTES) Neste momento, no frescor da hora, setembro de 2013, acaba de ser publicada A aurora das dobras: introdução à barroquidade poética de Affonso Ávila, do mineiro Anelito de Oliveira, para a alegria do autor, que esperou por 15 anos a realização deste sonho, e para o enriquecimento da crítica literária brasileira, pois, é presenteada com um trabalho ousado e de qualidade. Anelito de Oliveira é poeta, ficcionista, crítico, editor, professor e pesquisador. É Doutor em Literatura Brasileira pela USP, Professor no Centro de Ciências Humanas da Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes e, atualmente, Pesquisador de Pós-Doutorado na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. No final dos anos 80 tem início a sua trajetória jornalística como repórter em jornais impressos. Mas é nos anos 90 que começa o exercício regular da crítica literária no jornal Estado de Minas. Atuante nos meios midiáticos criou e editou o jornal alternativo Não e a revista Orobó. Entre 1999 e 2003, atuou como editor do Suplemento Literário de Minas Gerais. Publicou os livros Lama (2000), Três festas a love song as Monk (2004) e lançou, simultaneamente, Transtorno, Mais que o fogo e A ocorrência em (2013), todos de poesia. Oliveira também participou de antologias da poesia contemporânea como Na virada do século (2001), organizou Fenda 16 poetas vivos (2001) e participou de coletâneas de ensaios como O defunto e a escrita (1999), Falas do outro (2010) e A escritura no feminino (2011), entre outros. Deste modo, por exercer intensa atividade, tem sido considerado um dos nomes mais expressivos na cena literária, cultural e acadêmica brasileira, com destaque para os trabalhos críticos sobre o poeta Cruz e Sousa como O Clamor da Letra: Elementos de Ontologia, Mística e Alteridade na obra de Cruz e Sousa, tese defendida com distinção e louvor em 2006 na USP. Agora, Anelito de Oliveira presenteia o público leitor com A aurora das dobras: introdução à barroquidade poética de Affonso Ávila. Fruto da pesquisa acadêmica do Mestrado realizado entre 1996 a1998 na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o estudo é lançado em livro pela Inmensa Editorial com o apoio da FAPEMIG. Num total de 179 páginas, o trabalho chama a atenção por sua originalidade e se desdobra em cinco capítulos. Nestes, Oliveira extrapola a reflexão buscando conhecer a fundo a obra de Affonso Ávila poeta, ensaísta e pesquisador mineiro que faleceu aos 84 anos, no dia 26 de setembro do ano passado. Deste modo, o estudo de Oliveira mantém viva a memória do poeta Affonso Ávila, considerado pela crítica como um dos mais legítimos defensores do patrimônio cultural brasileiro, prin- REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 cipalmente, no que se refere ao Barroco Mineiro. Por isso, manifesta-lhe, sobretudo, o merecido reconhecimento pelo excepcional dinamismo em sua atividade poética que conjuga de modo lúcido literatura, jornalismo, cultura e política. Sobre o poeta, Anelito de Oliveira faz a seguinte assertiva: “Affonso Ávila foi – e continuará sendo por muito tempo – o poeta mais autêntico das Minas – não digo dos Gerais, outro mundo num mesmo Estado –, mais complexo, por isso mesmo, depois de Drummond”. Com este entendimento, o autor constrói seu texto sempre por meio de um viés problematizado sobre o que Deleuze diz sobre Le pli e o seu relacionamento com a alma, o corpo e o Barroco. A partir destas questões Anelito de oliveira perscruta a palavra poética de Affonso Ávila situando-a “num mais além trans-histórico”. Com foco nas duas primeiras coletâneas de poemas O Açude e Sonetos da Descoberta, publicadas em 1953, o autor procura pensar a poesia “como lugar de um saber que se denuncia como realização de um sujeito que não pertence exclusivamente ao seu tempo”. Segundo o crítico, o trabalho privilegia o poeta, e, por conseguinte, a palavra do poeta, com a pretensão de “ver a gênese dessa palavra, como ela acontece, o que ocorre durante esse acontecimento, enfim, o processo de nascer.” Encontrar “o lugar da voz” poética de Affonso Ávila, “dar corpo a essa letra órfã” e, por conseguinte, “iluminar sua barroquidade” é o intento do pesquisador. Para tanto, no primeiro capítulo, Oliveira situa Affonso Ávila no cenário poético brasileiro e mostra o impasse que a poesia concreta trouxe para o cenário literário. Em seguida postula que o trabalho de pesquisa e reflexão sobre o Barroco, feito por poetas como Affonso Ávila e Haroldo de Campos, revelou-se como fértil horizonte criativo. Destaca que para Affonso Ávila, esta crítica reflexiva contribuiu para denunciar a barroquidade de sua poesia e consolidá-lo como poeta – crítico, inscrevendo-o, desta forma, numa linha específica da Modernidade. No segundo capítulo, aponta o viés barroco como saída tanto para Affonso Ávila continuar criando quanto para avançar em sua reconceituação do Barroco. Neste capítulo, a partir do livro de Gilles Deleuze (1988) Le pli: Leibniz et le baroque, Oliveira problematiza a reconceituação sobre o Barroco e localiza no filósofo o conceito de dobras. Conforme Oliveira, a dobra permite o “poema ultrapassar os limites da poesia, dobra o histórico e desdobra a história, dobra o político e desdobra a política, numa operação infinita de dobragem, desdobragem, redobragem”. No terceiro capítulo, partindo deste “argumento tão sedutor e complexo” da dobra, Oliveira adentra no território poético do primeiro Affonso Ávila com o intento de iluminar as tensões do texto ali tomadas como índice de dobramentos do poético e para dizer que o poeta está nascendo. No quarto capítulo radicaliza o pressuposto no terceiro ao tratar da melancolia do sujeito barroco que marca O açude. Oliveira confronta seu pensamento com algumas críticas já existen169 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 tes sobre o assunto pontuando a sua discordância em relação a elas e apresenta ancorado em Walter Benjamim e Harold Bloom outra visão sobre o mesmo. No quinto capítulo detendo-se nos Sonetos da descoberta, o crítico faz especulações sobre o que considera a “verdadeira” descoberta do poeta. Descoberta que decorre de outra verdade não mais da pureza da alma no sentido platônico, mas da pureza do corpo. Esse corpo é o “da mulher, da mulher gestante, do corpo da mãe, do corpo-caverna, buraco onde se encontra outro corpo, que vai... num processo infinito, o que nos autoriza a pensar no corpo como alegoria da dobra”, assinala o crítico. Por fim, Oliveira realiza uma espécie de conclusão sobre o tema da pesquisa em questão. O que também merece destaque em A aurora das dobras é a inserção, logo após os agradecimentos do autor, da cópia de uma carta do professor Antônio Sérgio Bueno a Anelito de Oliveira, datada em janeiro de 1999, justificando-se da ausência na defesa da dissertação. Na carta, o professor tece comentários e reconhece a relevante pesquisa realizada por Oliveira. O professor afirma que sua impressão imediata, após a leitura da obra, é de um monumento e destaca as “análises densas”, “minuciosas”, “microscópicas e macroscópicas” elaboradas pelo pesquisador durante o seu processo de estudo. Devido aos “voos e (mergulhos) teóricos”, feitos por Anelito de Oliveira, considera o trabalho mais que uma dissertação. Para Antônio Sérgio Bueno, a obra trata-se de “uma tese” cuja escrita é de “alto teor poético” e ressalta que “só a pesquisa gigantesca” realizada por Anelito, “já merece o respeito de todo leitor com um mínimo de sensibilidade”. Ao preparar o texto para a publicação, Anelito de Oliveira é fiel às suas convicções e preocupa-se em preservar-lhe a “aura”, aspecto que segundo ele, “reluz sua verdade - romântica ou barroca”. Embora, julgada digna de publicação no momento de sua defesa em fins dos anos 90 e por motivos explicitados pelo autor, em nota explicativa, a pesquisa só é publicada em 2013. No entanto, verificamos que este trabalho chega ao público leitor em um momento importante para a Crítica Literária Brasileira, já que o estudo não deixa cair no esquecimento o poeta Affonso Ávila, que completa um ano de falecimento. O teor das reflexões abordadas nesta obra não perde em qualidade para as produções posteriores do autor, pelo contrário, era uma profecia sobre a consolidação de Anelito de Oliveira como um grande poeta e crítico literário. É, certamente, mais uma preciosidade que sai do baú de bons autores para o conhecimento do público leitor. Ganho para nós, não só estudiosos e críticos da poesia, mas também para o leitor comum que está em formação, pois a sua linguagem crítica é dinâmica e acessível possibilitando a compreensão do universo poético de Affonso Ávila. Deste modo, a obra como afirmou o pesquisador Wagner Veloso Rocha, em seu lançamento em 19/09/13, é 170 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 “realmente autêntica no sentido heideggeriano” e chega às nossas mesas mentais para nos banquetearmos com alimento de alta qualidade. Neste sentido, a pesquisa configura-se como uma reflexão crítico-teórica perpassada pela sensibilidade do poeta e a densidade do crítico Oliveira, que busca a renovação ao demarcar “a palavra poética como “protagonista” da trama que envolve poesia, história e política; palavra em dobra, a dobra que “precisa dobrar-se para depois ir ao infinito no universo barroco”. E denota o desejo de criar, que leva a experimentar e romper, investigar, buscar e fruir o mundo a partir de dados reais e simbólicos convulsionados no ser de Anelito de Oliveira, como bem ressaltou o escritor e curador de arte Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, na orelha do livro. Portanto, A aurora das dobras: introdução à barroquidade poética de Affonso Ávila não se trata da publicação de um simples resultado de pesquisa, pois, o próprio Oliveira afirma que ele não escreve o seu “texto como uma mera ação acadêmica, apenas para obtenção de um título. Escrevi-o, antes de mais nada, como parte de um processo de autocompreensão, que implica, óbvio, a compreensão do mundo a partir dos seus dados reais e simbólicos”. Trata se, assim, de um livro que apresenta os fundamentos de um enfrentamento crítico, sensível e sério tão necessários para a compreensão, análise e produção do conhecimento sobre uma obra literária. Isto posto, conclui-se que A aurora das dobras apresenta uma crítica consistente e bem construída sobre a poesia de Affonso Ávila. Crítica feita por um olhar perquiridor que “procura a inteligibilidade da obra”, como postula Fábio Lucas, cuja dicção é atravessada pelo amálgama da sensibilidade do poeta, pela percepção do intérprete e julgamento do crítico Anelito de Oliveira. Neste caso, em especial, A aurora das dobras, ao tratar do início, da revelação de um processo que se dá em infinitas dobras, “o processo de nascer” da poesia e do poeta, é também o registro do “processo de nascer” de Anelito de Oliveira como crítico e pesquisador literário. Sendo assim, por intermédio desta obra, Anelito de Oliveira ensina ao jovem pesquisador, que busca conhecer e entender a obra literária e o seu processo produção, que o trabalho de pesquisa exige um enfrentamento crítico do seu objeto. Ato que se dá em um processo de análise austero, mas se o pesquisador o realizar como uma forma, sobretudo, apaixonada de ler, e saber ler o texto literário, ele não se cansará. Portanto, a obra denota-se como relevante contribuição não só para aqueles que já desenvolvem trabalhos acadêmicos em Letras/ Estudos literários ou que estão entrando efetivamente na pesquisa acadêmica, mas também, àqueles vinculados a outros territórios como o jornalístico, o cultural, o político e demais interessados. OLIVEIRA, Anelito de. A aurora das dobras: introdução à barroquidade poética de Affonso Ávila. Montes Claros: Inmensa, 2013. 179 p. 171 SELVA TRÁGICA REVISITADA Elanir França Carvalho (UFMS) O romance Selva trágica (1959), de Hernâni Donato (1922-2012), é emblemático do quadro da literatura brasileira de proposição social. Lastreada e herdeira da mesma vertente que foi paradigma da década de 1930, a obra marca a entrada da segunda metade do século XX. A narrativa toma como recorte o período denominado Ciclo da Erva-mate e ficcionaliza a condição da vida e do trabalho de homens envolvidos na extração da planta. Regionalista, situa seu enredo em território que hoje é espaço geográfico do Estado de Mato Grosso do Sul, fronteiriço ao Paraguai. É de cunho fortemente sócio-humano, destacando-se pelo tom denunciativo e documental de uma época. Com foco e perspectiva dos trabalhadores, Donato dá voz e visibilidade a um contingente que resta à margem da sociedade. Expõe-se uma particular situação de aviltante exploração capitalista no campo. Com mais de cinco décadas do surgimento e mais de trinta anos de tiragem esgotada, o livro ganhou nova edição em 2011. O projeto editorial ficou aos cuidados da Associação Cultural LetraSelvagem e compõe a Coleção Gente Pobre, organizada por Nicodemos Sena. Visto de hoje, o relançamento da obra, em 17 de novembro de 2011, na sede da Academia Paulista de Letras, na qual Donato ocupava a cadeira 20, pontua quase precisamente um ano antes da morte do escritor, ocorrida em 22 de novembro de 2012, pouco mais de um mês de ele ter completado 90 anos de idade. As datas guardam nota significativa. Antes de deixar a cena de sua existência, Donato alcançou realizar esse novo ressurgimento de Selva trágica, obstinando o livro ao cenário literário brasileiro. Embora de forma tímida, com apenas mil exemplares, o romance reaparece como forma de resistência. E conta novamente com a boa avaliação do crítico Fábio Lucas, que já havia em outros momentos dedicado atenção à obra, além de Nelly Novaes Coelho. Em contraste à discreta reaparição, à época do primeiro lançamento, em 1959, Selva trágica alcançara enorme sucesso de público, com edição de 50 mil exemplares. Publicado pelo grupo editorial Autores Reunidos, compunha o terceiro volume da Coleção Romances de Agora. Também foi publicado por outras casas editoriais, em projetos diversos, como formato de bolso e de composição gráfica de apelo mais popular. José C. Vieira Pontes, em História da literatura sulmato-grossense, destacou o significado extraordinário desses números, “num país em que as tiragens de livros de ficção raramente ultrapassavam a casa dos dez mil”. A crítica recebeu a obra com entusiasmo. No ano seguinte ao lançamento, Artur Neves dedica resenha elogiosa na revista Anhembi. Do êxito editorial, esgotando sucessivas reedições, a narrativa extrapola os círculos lite- REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 rários e ganha interesse da sétima arte. A história chega às telas do cinema, em adaptação de título homônimo, dirigido por Roberto Farias, tendo no elenco o irmão do diretor, Reginaldo Faria, e a atriz Rejane Medeiros, que protagonizam o casal central do romance, com destaque ainda à atuação de Joffre Soares e Maurício do Valle. Em preto e branco, o drama é ainda mais contundente à batida triste do som da harpa paraguaia das músicas de Luis Bordon que integram a trilha sonora. Glauber Rocha teria dito ser um “filme forte e triste”. O filme, que em 2013 completou 50 anos de existência, é considerado pelo crítico Luiz Carlos Merten como um grande momento da cinematografia brasileira e do diretor. Para Merten, [...] é uma das obras mais importantes da história do cinema brasileiro. As pessoas normalmente esquecem desse grande filme, foi um filme produzido à margem do Cinema Novo. Na realidade, Roberto Farias era um diretor à margem do Cinema Novo, ele foi integrado ao movimento pelo sucesso do Assalto ao trem pagador, não se pode dizer que ele fosse um diretor cinemanovista1. O crítico avalia o mal desempenho de bilheteria à época devido à estética triste e clássica, colocando à prova públicos diversos. De um lado, para o grande público, o filme soaria “deprê”; de outro, os de gosto mais restrito o desaprovariam pelo tom “demasiado clássico”, “viscontiano”, para quem já apreciava as inovações do Cinema Novo, é o que pondera Merten. Muito embora, vêse que o projeto de Farias para Selva trágica se paute dentro de preocupações que são bem próprias da estética do neorrealismo, com destaque para as preocupações sociais e econômicas do Brasil. Além disso, com as filmagens externas, buscaram-se cenários naturais de contexto da realidade tratada. Ao mesmo tempo em que a atual reedição do livro reaviva velhas chagas da história nacional do país e de regiões, o material fílmico passa por um processo de recuperação. Neste momento de intenso desenvolvimento tecnológico, de circulação e facilidade de informação, a raríssima película que se encontrava em posse da Cinemateca Brasileira ganha tratamento de restauro e pode ser, agora, assistida mais facilmente. E já conta com postagem há pouco mais de um mês na internet, podendo ser acessada pelo dispositivo do YouTube2. Agora, com o filme mais acessível, surge a oportunidade de mais pesquisas, podendo ser mais e melhor avaliado, reavaliado. Luiz Carlos Merten considera o filme como a obra-prima da filmografia de Roberto Farias. Em inúmeras oportunidades, Merten o lembra como uma das melhores produções brasileiras, comparando-o a Rocco e seus irmãos (1960), de Luchino Visconti. O crítico já vinha requerendo a 1 Disponível em: http://www.mulheresdocinemabrasileiro.com/site/entrevistas_depoimentos/visualiza/122/Luiz-CarlosMerten-Rejane-Medeiros. 2 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=NrPZO-c_tAU. 173 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 reabilitação do filme, em DVD ou com reparo, que apenas de tempos em tempos era oferecido ao público em canais públicos de televisão. A cópia restaurada de Selva trágica derivou de um amplo projeto e pesquisa acerca da obra filmográfica do diretor Roberto Farias, desenvolvido em conjunto entre o Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Cinemateca Brasileira. O material bibliográfico completo, em que a crítica sobre Selva trágica é incluída, foi reunido e publicado sob organização de Hadija Chalupe da Silva e de Simplício Neto, com o título Os múltiplos lugares de Roberto Farias (2012). No âmbito bibliográfico, a nova edição de Selva trágica, além de contar com textos da escritora Nelly Novaes Coelho, nas “orelhas” do livro, e de Fábio Lucas, com o prefácio “Na selva selvaggia da criação”, o projeto gráfico da obra recupera na imagem da capa detalhe da montagem de fotograma do filme de Farias vazado na imagem da folha da erva-mate. O entrelaçamento de figura humana e planta traduz, explora na composição imagética o drama humano e o meio, na figura de uma planta, que lhe brutaliza. A fala de uma personagem é reveladora dessa dependência: “De erva-mate. Disso é que sou feito. [...] Não sou branco, nem preto, nem bugre. Minha pele é cor de erva cancheada [...] Se a erva acabasse, eu teria que morrer”. Além dos aspectos externos mencionados, o que se mantém do original são dois textos preliminares. No primeiro, uma espécie de epígrafe ou declaração sem referência de autoria, mas infere-se ser o próprio autor da obra, se evoca São Bernardo: “Mais vale escandalizar do que sonegar a verdade”. Segue-se trecho com alguns depoimentos, como que a documentar a narrativa, atestando em cabeçalho os dizeres: “a selva de que tratamos neste livro era de fato trágica”. O enredo ainda conta com o mesmo glossário original, que vinha arrolado ao fim da narrativa. Na atual edição ele foi deslocado para nota em pé de página, o que deu mais agilidade à leitura. Entretanto, a obra surge com pequena alteração no teor de seu conteúdo. Originalmente, o título Selva trágica fazia-se acompanhar do subtítulo “a gesta ervateira no sulestematogrossense”, que agora se suprimiu. Essa alteração rompe certa nota irônica que permeia a narrativa. O subtítulo compunha, juntamente com outros elementos da narrativa, sugestão que resgatava para o enredo outras conjunturas históricas, sociais e artísticas, dando realce irônico de impossibilidade de realização na atualidade da representação de Selva trágica. Nessa acepção, era um ganho para o romance. Hernâni Donato é herdeiro de uma literatura com claros propósitos e interesses sociais. Além da corrente nacional, segue na esteira de um realismo socialista, com tonalidades de um Máximo Gorki e de autores como John Steinbeck. Selva trágica, na consideração do escritor e crítico literário Fábio Lucas, “constitui um dos mais altos momentos da novelística de conteúdo social no Brasil”. Um dos aspectos criativos do de Donato era a relação com a matéria abordada. Segundo ele 174 REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 4, v.2, Número 7 – TEMÁTICO “Literatura e Marginalidade: Reflexões sobre o cânone e a crítica literária” ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 próprio, desejava “me enfronhar, respirar o ar, beber a água”. Com isso, Donato estabeleceu intensa relação com Mato Grosso do Sul. Acabou entrando para a Academia Sul-Mato-Grossense de Letras. A despeito de edições durante anos fora de circulação e de certo esquecimento, sempre houve interesse no âmbito acadêmico por sua obra, em especial, Selva trágica. Um interesse parcimonioso, é bem verdade, mas contínuo, que persiste ainda atualmente e agrega áreas diversas das ciências humanas. Essa conjuntura de reedição do livro e restauro do filme talvez seja o momento premente para se recuperar para a historiografia literária e cinematográfica brasileiras uma produção bastante significativa. Esses materiais deveriam ser básicos na composição de acervos do estado, como bibliotecas e outros espaços de preservação cultural, à disposição do público. Pois, além de se constituir em assunto de extrema relevância social e humana, que compõe a história da região e do Brasil, as obras são de inestimáveis valores artísticos. Para finalizar, vale a observação do crítico Alfredo Bosi, tratando de outra obra, Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, mas semelhante à Selva trágica de Donato, por tratar de miséria e de violações à condição humana: Sem dúvida, o capital não tem pátria, e é esta uma das suas vantagens universais que o fazem tão ativo e irradiante. Mas o trabalho que ele explora tem mãe, tem pai, tem mulher e filhos, tem língua e costumes, tem música e religião. Tem uma fisionomia humana que dura enquanto pode. E como pode, já que a sua situação de raiz é sempre a de falta e dependência (Novos Estudos Cebrap, 1982,vol. 1, n. 2, p. 42-43). DONATO, Hernâni. Selva trágica. São Paulo: LetraSelvagem, 2011. 288 p. 175