A Elite Cultural do Folclore Alemão
“Autêntico” no Brasil: Perfil Social,
Mediação Cultural e Estratégias de
Legitimação*1
Lucas Voigt**2
Resumo:
No Brasil, um conjunto de agentes atua na definição, preservação e
promoção do folclore alemão “autêntico” e legítimo. Este artigo tem
por objetivo analisar as práticas e as estratégias de legitimação da elite
cultural folclorista, isto é, do conjunto de agentes que ocupa as principais posições no espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil.
Para tanto, são enfocadas três questões-chave: (1) as instâncias de recrutamento e de formação da elite cultural folclorista; (2) o trabalho
de mediação cultural levado a cabo pelos especialistas em folclore, que
consiste na decodificação de fontes históricas produzidas no contexto
europeu e na prescrição de práticas e condutas no espaço do folclore
brasileiro, procedimento basilar à legitimação e à garantia da “autenticidade” do folclore; e (3) os principais caracteres de origem social, trajetória, capitais e trunfos sociais disponíveis à elite cultural folclorista
e/ou adquiridos por meio do seu investimento na esfera do folclore.
Palavras-chave: Elites culturais. Folclore “alemão”. Estratégias de legitimação. Mediação cultural. Autenticidade.
* O artigo apresenta alguns resultados da dissertação de mestrado realizada pelo autor
(Voigt, 2018a). A pesquisa contou com o financiamento do CNPq, mediante a concessão
de uma bolsa de mestrado. Uma versão preliminar do artigo foi apresentada no 42º Encontro Anual da ANPOCS, no Grupo de Trabalho “Elites e formas de dominação”. Gostaria
de agradecer, de modo especial, a Ernesto Seidl pelas sugestões apresentadas ao longo
do desenvolvimento da pesquisa e à preparação do manuscrito para publicação, bem
como pelas indicações de bibliografia.
** Mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com período sanduíche junto à University of Illinois at Urbana-Champaign (UIUC). Bolsista CAPES.
E-mail: lucas_3106@hotmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-9789-7851.
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A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL
The Cultural Elite of Authentic “German” Folklore
in Brazil: Social Profile, Cultural Mediation and
Strategies of Legitimation
Abstract
In Brazil, a group of agents acts in the definition, preservation and promotion of German “authentic” and legitimate folklore. This article aims
to analyze the practices and strategies of legitimation of the folkloristic
cultural elite, that is, the set of agents that occupy the main positions
in the space of practices of “German” folklore in Brazil. To do so, three
key-issues are addressed: (1) the instances of recruitment and training
of the folkloristic cultural elite; (2) the work of cultural mediation carried out by folklore experts, which consists in the decoding of historical sources produced in Europe, and in the prescription of practices
and conducts in the Brazilian context, a basic procedure for legitimation and the guarantee of “authenticity” of folklore; and (3) the main
characters of social origin, trajectory, capital and social assets available
to the folkloristic cultural elite and/or acquired through their investment in the sphere of folklore.
Keywords: Cultural elites. “German” folklore. Strategies of legitimation. Cultural mediation. Authenticity.
La Élite Cultural del Folklore “Alemán” Auténtico en
Brasil: Perfil Social, Mediación Cultural y Estrategias
de Legitimación
Resumen
En Brasil, un conjunto de agentes actúa en la definición, preservación
y promoción del folklore alemán “auténtico” y legítimo. Este artículo
tiene como objetivo analizar las prácticas y estrategias de legitimación de la élite cultural folklorista, es decir, el conjunto de agentes que
ocupa las principales posiciones en el espacio del folklore “alemán” en
Brasil. Para tanto, se abordan tres cuestiones clave: (1) las instancias
de reclutamiento y formación de la élite cultural folklorista; (2) el traTOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
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bajo de mediación cultural realizado por especialistas en folklore, que
consiste en decodificar fuentes históricas producidas en el contexto
europeo, y prescribir prácticas y conductas en el espacio del folklore
brasileño, un procedimiento central para la legitimación y la garantía
de la “autenticidad” del folklore; y (3) los principales caracteres de origen social, trayectoria, capitales y activos sociales disponibles para la
élite cultural folklorista y/o adquiridos a través de su inversión en la
esfera del folklore.
Palabras clave: Élites culturales. Folklore “alemán”. Estrategias de legitimación. Mediación cultural. Autenticidad.
Elites culturais: sobre o problema da legitimação e da
“autenticidade”
Podemos constatar o papel-chave das elites culturais na legitimação de padrões de “autenticidade” no contexto de uma vasta
gama de práticas culturais e artísticas (Fernandes, 2010, 2012;
Reis, 2010; Coradini, 2003). Consideremos, de modo exemplar,
o trabalho de Fernandes (2010, 2012). Em seus estudos sobre a
questão da “autenticidade” na música popular brasileira, o autor
analisa o papel de intelectuais e de instituições para a definição
de uma concepção específica da música brasileira, marcada pelos atributos da “autenticidade” e da “originalidade”. Tais intelectuais e instituições influenciaram o campo da música no Brasil,
operando uma redefinição das posições ocupadas pelos gêneros
musicais. Durante os anos de 1950-70, o samba e o choro – de
matriz popular, oriundos dos morros cariocas – são elevados à
categoria de música “autêntica”, “genuína” e “representativa” da
cultura e da identidade brasileiras.
Desse modo, a definição da música brasileira “autêntica” depende de um processo de delimitação formal, institucional e grupal
(Fernandes, 2012). Ademais, o interesse “desinteressado” (cf.
Bourdieu, 1996) de determinados agentes sociais na promoção
e normatização da música popular brasileira possibilita a artiTOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021
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A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL
culação de um círculo de intelectuais e a formação de uma elite
cultural, responsável pela institucionalização do discurso que
define o samba e o choro como gêneros musicais representativos e legítimos da cultura e da musicalidade brasileiras.
Em estudo sobre práticas, recursos e representações dos porta-vozes da “cultura” no Maranhão, Reis (2010) demonstra a centralidade do problema da legitimação de critérios de “autenticidade” nos estudos sobre elites culturais. A autora analisa as
características sociais dos agentes que ocupam cargos políticos
vinculados à gestão da cultura no Maranhão, as representações
sociais que partilham e que edificam em suas lutas pelos sentidos da “cultura”. A legitimação da cultura maranhense está associada à valorização do patrimônio arquitetônico, processo que,
segundo a autora, é resultado de um trabalho social de invenção
(cf. Hobsbawm & Ranger, 1984).
De acordo com Reis (2010), ao construírem versões do patrimônio comum e coletivo, os mediadores da cultura no Maranhão
incrementam seus próprios patrimônios pessoais, beneficiando-se da autoridade legítima para sua definição. Nesse sentido,
a autora argumenta que o uso da tradição serve à autoridade
de quem a mobiliza. Ao legitimarem a cultura, as elites culturais
legitimam sua posição no campo cultural, produzindo uma distinção em relação a posições concorrentes. Assim, não interessa
apenas saber como os agentes legitimam uma prática cultural,
mas como se legitimam a partir dessa legitimação.
Com base em tal discussão introdutória, é possível esboçar algumas definições basilares para duas noções centrais a este estudo, a saber, legitimação e “autenticidade”. A noção de legitimação,
com base em uma perspectiva bourdieusiana, se refere ao processo de definição de critérios socialmente aceitos e reconhecidos
como válidos em determinado campo social; no caso da cultura,
se refere ao poder simbólico (Bourdieu, 2010) para criar uma visão de autenticidade para determinada prática cultural. Quanto
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à “autenticidade” – produto de uma estratégia de legitimação1
e, portanto, uma categoria não sociológica –, pode-se dizer que
uma prática “autêntica” é aquela que expressaria a “realidade” e o
“verdadeiro valor” da manifestação cultural em questão2, critério
que é, via de regra, produzido e promovido por membros de determinada elite cultural. Assim, em tal perspectiva, coloca-se em
evidência a preocupação com as lutas sociais em torno da definição das práticas culturais consideradas “mais legítimas”, isto é, as
práticas dotadas de “autenticidade” e de “verdade”.
O espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil
Se podemos constatar o papel determinante de uma elite cultural e de um campo de legitimação no contexto da música brasileira “autêntica”, ou o papel-chave de mediadores culturais
para a legitimação da cultura e do patrimônio no Maranhão, no
caso da tradição e do folclore “alemão” verificamos igualmente
a atuação “desinteressada” de agentes e de instituições para a
delimitação formal, institucional e grupal dessas manifestações
culturais e artísticas. Em outras palavras, constata-se a existência de um “espaço” que define, legitima e regulamenta o folclore
alemão “autêntico” no Brasil (Voigt, 2018a).
1 A noção de estratégia, que na sociologia de Pierre Bourdieu está próxima de outras
noções, como habitus, práticas e senso prático, pode ser compreendida como uma ação
razoável que não compreende um cálculo consciente em sentido racionalista ou utilitarista, voltado à maximização do lucro econômico. A estratégia é, antes, um resultado da
posição social, do habitus e dos agenciamentos do indivíduo em campos ao longo da sua
trajetória. Assim, a estratégia refere-se a uma ação, com objetivos e expectativas futuras,
produzida a partir do senso prático e do sentido do jogo captado pelos agentes. Para uma
exposição de Bourdieu sobre o contexto de produção da noção de estratégia, bem como
sobre distintas modalidades de estratégias, ver Bourdieu (2020).
2 Os critérios de autenticidade buscam ancoragem na história, na antiguidade, na ancestralidade e na “tradição”. Na definição sugerida por Nedel, em estudo sobre a elite
intelectual do folclorismo gaúcho (Nedel, 2005, 2011), “[...] a autenticidade pode, a partir
daí, ser definida como um princípio de inviolabilidade aplicado a certos parâmetros de
conformação mítica do passado” (Nedel, 2005, p. 30).
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Tomo a noção de espaço de empréstimo de Saint Martin (2002),
empregada pela autora em seus estudos sobre os descendentes
da nobreza na França. A noção de espaço social opera como uma
alternativa teórico-metodológica ao conceito de campo social.
Ainda que “espaço” compreenda alguns dos elementos constitutivos e imprescindíveis do conceito de campo – a saber, o caráter
relacional e posicional dos universos sociais, constituídos por
agentes em concorrência –, a noção comporta algumas especificações analíticas importantes, que me parecem pertinentes para
o enquadramento do folclore “alemão” praticado no Brasil. Nesse sentido, pode-se afirmar que um “espaço de práticas” pressupõe: uma baixa autonomia relativa do espaço, se comparada à
dos campos sociais; a inexistência de instituições ou a existência
de uma baixa institucionalidade, com poderes e capacidade de
manutenção e de reprodução institucional limitados; uma profissionalização restrita dos agentes em atividades e postos internos ao próprio espaço de práticas, processo que não se verifica
de modo costumaz; e, por consequência, uma diversificação dos
investimentos dos agentes inseridos no espaço, investimentos
direcionados a variados campos e esferas sociais, o que implica
uma maior heterogeneidade em termos das práticas sociais desenvolvidas por tais agentes ao longo de suas trajetórias sociais.
Como parece ser de comum acordo no campo da sociologia das
elites, ou ao menos na sociologia das elites inspirada nos trabalhos de Pierre Bourdieu, partindo da constatação do processo
de autonomização das esferas ou campos sociais, é plausível supormos a existência de uma vasta gama de elites e de distintos
mecanismos de dominação. Essa proposição se opõe às suposições sobre a existência de uma única elite, integrada e coesa,
que deteria o controle sobre as variadas esferas do mundo social. Assim, pressupondo que a questão da “elite” depende do
espaço social referido, bem como de uma questão de escala e
de recorte, pode-se aferir a existência de uma elite cultural que
define, legitima e promove a tradição e as práticas do folclore
alemão “autêntico” no Brasil.
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Os agentes em posições destacadas no espaço do folclore “alemão” formam uma elite cultural capaz de definir e delimitar
os critérios de “autenticidade” e legitimidade para as práticas culturais que compõem o folclore – notadamente a “dança
folclórica”3 –, com base em um trabalho de decodificação de registros históricos folclóricos – no vocabulário dos folcloristas, as
Tanzbeschreibungen, literalmente “descrições de dança” –, que
se constituem como os elementos basilares à garantia da fidedignidade histórica do folclore. Essa elite, que ocupa as posições
dominantes no espaço do folclore, exerce um poder simbólico
que lhe permite estabelecer padrões e critérios de avaliação e de
representação sobre o folclore alemão “autêntico”.
No espaço do folclore “alemão” praticado no Brasil, a manifestação cultural mais importante é, indubitavelmente, a dança
folclórica. Como suporte à prática da dança, está a utilização de
indumentárias “típicas”, os “trajes folclóricos”; trajados, grupos de
danças costumam apresentar-se em festividades locais ou cívicas
de comunidades de descendentes de alemães. Para a execução de
tais práticas culturais, os especialistas em folclore se baseiam em
um universo amplo de referências e informações, sistematizado
por meio de pesquisa em fontes como os registros históricos de
danças e trajes. Sua prática se caracteriza pela reprodução de
danças “autênticas”, isto é, aquelas que foram registradas por folcloristas em séculos anteriores; o cuidado em relação a essas referências é meticuloso e o volume de fontes históricas que orientam a prática desses folcloristas é vastíssimo.
O espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil, assim como os
demais microcosmos sociais que constituem a totalidade do espaço
social, caracteriza-se como um universo estruturado e hierarquizado. Podemos apontar a Associação Cultural Gramado (ACG) – Casa
3 O termo em alemão para “danças folclóricas” é Volkstänze. A tradução exata seria “danças do povo” ou “danças populares”. O termo relacionado, Volkstanzgruppen, pode ser
traduzido como “grupos de dança popular” ou de “dança folclórica”.
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A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL
da Juventude como a principal instituição de legitimação, promoção, formação e representação do folclore e de folcloristas em âmbito nacional. A entidade foi fundada em 1965, em Gramado (RS).
Em âmbito regional, verificamos a existência das “regionais” ou
“ligas de folclore”, entidades fundadas no início da década de
1990 como uma iniciativa de regionalização da ACG. Tais instituições promovem eventos e oferecem formação a folcloristas.
Existem no país sete regionais, duas no Rio Grande do Sul e cinco
em Santa Catarina – a principal delas é a Associação dos Grupos
Folclóricos Germânicos do Médio Vale do Itajaí (AFG), de Blumenau (SC), que recentemente passou a ofertar de modo independente cursos de danças folclóricas. A existência de regionais
apenas nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina se
explica em função da maior intensidade de práticas folclóricas
nesses estados, que concentram a maior parte dos grupos folclóricos. A maior incidência de regionais em Santa Catarina, por
sua vez, é resultado da maior distância geográfica em relação à
instituição central do espaço, a ACG.
As regionais têm por função agremiar um conjunto determinado
de “grupos de dança folclórica” – que, por sua vez, têm atuação
nas esferas municipal ou local. Para empregarmos um vocábulo
de uso corrente na análise política, podemos conceber os grupos
de dança folclórica como as entidades “de base” do espaço do folclore “alemão” no Brasil. Existem no Brasil cerca de 200 grupos
de danças folclóricas alemãs, que reúnem em média de 10 a 40
pares de dançarinos. As atividades desses grupos consistem na
reprodução de danças folclóricas “alemãs”, de modo tanto mais
fiel quanto possível aos registros de danças. Obviamente, esses
grupos se concentram na região Sul do país – onde se verificou o
fenômeno da imigração alemã em larga escala –, principalmente
nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Não obstante, verifica-se a atuação de Volkstanzgruppen em ao menos
outros cinco estados da federação: São Paulo, Paraná, Espírito
Santo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
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Um grupo folclórico é uma agremiação de dançarinos. Tais entidades são compostas por um “coordenador” e por um conjunto
mais amplo de dançarinos, os “integrantes” do grupo folclórico.
O coordenador é responsável por instruir as danças e as coreografias ao restante dos folcloristas. Ademais, esses coordenadores realizam cursos de especialização junto às instituições de
legitimação do folclore “alemão” no país, notadamente a Associação Cultural Gramado.
Neste estudo, chamo de “folclorista” os agentes envolvidos com
a prática do folclore “alemão”. O termo refere-se, principalmente, a dançarinos e coordenadores de grupos folclóricos. Para
diferenciá-los dos agentes que ocupam posições nas principais
instituições do espaço – isto é, em um nível hierárquico superior –, na definição de critérios de “autenticidade” e na mediação
com as fontes do folclore provenientes da Alemanha e da Europa, defino estes últimos como “especialistas em folclore”, que
constituem propriamente a elite cultural que legitima essa prática cultural. Como será demonstrado, a especialização depende
de um conjunto de fatores, normalmente articulados, como uma
longa formação em cursos de especialização, o domínio da língua alemã e a habilidade de leitura dos registros de danças.
Ainda que este artigo pretenda apresentar uma análise essencialmente “sincrônica” ou estrutural do folclore “alemão”, é pertinente, não obstante, apresentarmos algumas considerações
acerca da gênese sócio-histórica do folclore “alemão” no Brasil,
para que seja possível compreender a particularidade e a especificidade dessa modalidade de folclore4.
4 Para uma análise detalhada que enfoca a dimensão “diacrônica” ou histórica do folclore “alemão” no Brasil, tratando da sua sociogênese, ver: Voigt (2018a, especialmente p.
49-144).
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Gráfico 1: Representação visual da estrutura do espaço de práticas do folclore “alemão”
no Brasil.
(Fonte: elaborado pelo autor).
O folclore “alemão” possui um contexto de surgimento singular,
ligado à própria experiência histórica da “germanidade” no Brasil.
Os primeiros grupos folclóricos remontam às décadas de 1950 e
1960, originados a partir de entidades envolvidas no esforço de
recomposição das elites do grupo étnico alemão no Brasil – os
Centros Culturais 25 de Julho –, fundadas após as campanhas de
nacionalização do Estado Novo (1937-1945). As campanhas de
nacionalização – que envolveram medidas como a proibição do
uso de línguas estrangeiras em território nacional, da imprensa
e do ensino em língua estrangeira, bem como a supressão de práticas culturais de clubes e de associações fundadas ou dirigidas
por alemães (ver, p. ex., Geraldo, 2009) – abalaram fortemente a
etnicidade e a cultura alemã no Brasil, ferindo a autoimagem e os
recursos de poder das elites do grupo étnico alemão. Assim, pode-se afirmar que a prática do folclore “alemão” era pouco expressiva antes do Estado Novo (cf. Seyferth, 2005).
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As práticas do folclorismo “alemão”, iniciadas nas décadas de
1950 e 1960, serão sistematizadas e institucionalizadas – em
um espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil –, nas décadas de 1980 e 1990, período em que ocorre a fundação do
Departamento de Danças da ACG e em que se inicia a oferta de
formação especializada em dança folclórica no país. A partir de
meados da década de 1970, o sentimento de “constrangimento”
em relação aos alemães – que atingiu seu ápice no Estado Novo –
começa a arrefecer-se (cf. Gertz, 2013). Alguns anos mais tarde,
verifica-se o surgimento de um conjunto articulado de práticas e
de iniciativas voltadas à promoção da herança e da cultura “alemãs” no Brasil. Dentre elas, destaca-se a fundação disseminada e abrangente de grupos folclóricos, bem como o surgimento
de festividades étnicas, de âmbito municipal e/ou comunitário,
com destaque às Oktoberfesten – situadas no contexto do que se
compreende como “cultura popular de massa”.
Os anos de fundação dos primeiros grupos folclóricos alemães
no Brasil coincidem com o período mais expressivo de atuação
do Movimento Folclórico Brasileiro (1947-1964) (cf. Vilhena,
1997), embora tais processos apresentem escassas conexões.
Pode-se argumentar que a gênese de um folclore “alemão” no
Brasil está ligada às experiências próprias e sui generis do grupo étnico alemão, notadamente o esforço de rearticulação e de
recomposição de elites do grupo étnico após as campanhas de
nacionalização do Estado Novo. Dessa forma, o surgimento do
folclore “alemão” é um processo que ocorre de modo paralelo
aos desenvolvimentos do folclorismo brasileiro, tomando lugar
no contexto interno e singular do grupo étnico teuto-brasileiro.
Ao passo que o folclore brasileiro é fortemente marcado pela experiência do regionalismo, o folclore “alemão” – ainda que esteja
regionalmente situado, nos estados do Sul e do Sudeste, em que
se verificou a imigração alemã em escala expressiva – procura
desvencilhar-se de demarcações regionais, afirmando a dimensão étnica, construída “nacionalmente”; dito de outro modo, o
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folclore “alemão” no Brasil seria característico e representativo
de todos os “alemães” em território brasileiro, constituindo-se
em termos “nacionais” – ainda que, paradoxalmente, esse nacional seja estrangeiro, não autóctone.
Essa exposição extremamente sumária acerca do espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil serve-nos para a apresentação do objeto a ser analisado neste artigo. O presente trabalho, embasado no aporte teórico-metodológico dos campos da
sociologia das elites (Saint Martin, 2002; Coradini, 2001, 1997;
Seidl, 2013, 2009; Reis, 2010; Sapiro, 2012; Petrarca, 2008) e da
sociologia da cultura (Bourdieu, 1996, 2007; Elias, 2001; Miceli,
2003; Fernandes, 2010, 2012), se propõe a analisar a elite cultural do folclore “alemão” no Brasil, responsável pela produção, legitimação e promoção dos critérios de “autenticidade”, fidedignidade histórica e valor simbólico para a prática de tal folclore
no contexto brasileiro. O artigo, assim, tem por objetivo analisar
as práticas e as estratégias de legitimação da elite cultural folclorista, isto é, do conjunto de agentes que ocupa as posições
dominantes no espaço do folclore “alemão” no país.
Para tanto, serão abordados três aspectos-chave para a compreensão dessa elite cultural: (1) as instâncias de recrutamento e
de formação da elite cultural folclorista; (2) o trabalho de mediação cultural levado a cabo pelos especialistas em folclore, que
consiste na decodificação de fontes históricas produzidas no
contexto europeu e na prescrição de práticas e condutas no espaço do folclore brasileiro, procedimento basilar à legitimação
e à garantia da “autenticidade” do folclore; e (3) os principais
caracteres de origem social, trajetória, capitais e trunfos sociais
disponíveis à elite cultural folclorista e/ou adquiridos por meio
do seu investimento na esfera do folclore.
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Breves apontamentos metodológicos
A pesquisa que embasa este artigo foi realizada formalmente entre os anos de 2015 e 2017. Emprego o termo “formalmente” na
medida em que o presente pesquisador possuía uma atuação e
um envolvimento pessoal com o espaço do folclore, na qualidade
de dançarino, ao longo de sua infância até o início da adolescência. Ademais, alguns membros do grupo familiar do pesquisador
possuem (ou possuíam), igualmente, envolvimento com a prática do folclore, ocupando posições de dançarinos e/ou coordenadores de grupos folclóricos. Desse modo, tal inserção pessoal e familiar no espaço do folclore – reconhecida pelos demais
agentes posicionados no espaço – compreende um conjunto de
experiências amplas e de longa duração que, indubitavelmente, contribuiu como material de análise, além de ter facilitado o
acesso ao campo de pesquisa e a identificação de informantes e
entrevistados, bem como a compreensão das práticas, dinâmicas e categorias nativas do espaço.
Tais experiências subjetivas foram – como se mostra indispensável a qualquer empreendimento sociológico – objetivadas a
partir de seu enquadramento com base em teorias e métodos
oriundos das ciências sociais. Conforme argumenta Bourdieu
(2010), a objetivação da relação do sociólogo com o seu objeto
é a condição da ruptura com a propensão em investir no objeto,
que está na origem do interesse do pesquisador pelo objeto. Assim, este pesquisador procurou manter-se vigilante em relação
aos interesses, às práticas e às concepções nativas da elite cultural folclorista.
Com a realização de cada uma das entrevistas, foi possível identificar novos interlocutores, a partir da indicação dos próprios
entrevistados. Realizei, no total, nove entrevistas; oito delas com
folcloristas brasileiros que integram a elite cultural do folclore
“alemão” no Brasil, e uma com um especialista suíço em folclore. As entrevistas, que envolviam, dentre outros temas, questões
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sobre a trajetória pessoal e institucional dos agentes, bem como
suas concepções e práticas relacionadas com o folclore, tiveram
por objetivo substanciar a execução de uma prosopografia da
elite cultural folclorista5.
Dentre as entrevistas realizadas, constam aquelas com agentes que ocupam posições centrais no espaço do folclore – na
ACG e no universo de confecção de trajes folclóricos –, trajetórias indispensáveis para a compreensão do espaço. No mesmo
sentido, foram realizadas também entrevistas com diretores
(ou ex-diretores) de regionais de folclore, que são também, via
de regra, coordenadores de grupos folclóricos. Foram entrevistados, especificamente, quatro agentes que ocupam (ou ocupavam) tais posições.
Ainda que, por limitações de recursos, tenha se mostrado inviável
entrevistar representantes das sete regionais e dos cerca de 200
grupos folclóricos, tendo em mente a similaridade das trajetórias
de tais agentes no espaço do folclore e, ademais, considerando
que as entrevistas realizadas permitiram identificar as práticas,
as estruturas e os princípios dominantes no espaço – com base
em considerações oriundas dos contextos “nacional”, “regional” e
“local” em que o folclore é executado, bem como das intermediações entre tais níveis –, considero que o conjunto de entrevistas e
a prosopografia permitiram um delineamento adequado e satisfatório do espaço do folclore e da elite cultural folclorista. Nesse
sentido, embora fosse possível incluir e entrevistar outros agentes, sem considerar algumas das trajetórias e das posições representadas pelos agentes entrevistados, teria sido impossível reconstituir a estrutura do espaço do folclore, bem como identificar
os principais caracteres sociais constitutivos da elite do folclore.
Além das entrevistas, a pesquisa se baseou em material de
cunho etnográfico, compreendendo a participação e o acom5 A prosopografia é apresentada e discutida em detalhes na última seção deste artigo.
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panhamento de atividades realizadas pelos folcloristas, como
ensaios, apresentações de danças e eventos folclóricos6. Além
disso, o campo de pesquisa compreendeu a visita a instituições
promotoras de folclore, como a ACG e a AFG, visando identificar
os espaços institucionais e os acervos abrigados nas instituições.
Como fontes de pesquisa, foram consideradas ainda as referências de leitura da elite cultural folclorista – literatura sobre danças e trajes folclóricos –, material que está na base do trabalho
de mediação executado por tais agentes. A produção escrita da
elite do folclore, versando sobre a história de instituições promotoras de folclore e/ou compreendendo discussões de cunho
mais teórico sobre o que constitui o folclore – produção bastante
restrita, deve-se pontuar – também foi considerada. Por fim, de
modo complementar, foram analisados alguns documentos históricos que auxiliaram na reconstituição da história e da gênese
do espaço do folclore, bem como materiais produzidos pelas instituições, tais como estatutos e folders de divulgação.
Instâncias de recrutamento e de formação de especialistas
em folclore
As principais instâncias de formação de especialistas em folclore
“alemão” no Brasil são os cursos de especialização em dança folclórica promovidos anualmente pela Associação Cultural Gramado
(ACG) – Casa da Juventude. Tais cursos começaram a ser realizados
a partir de 1983, tendo um papel central para a sistematização e a
institucionalização da prática do folclore “alemão” no Brasil.
A oferta sistemática de cursos de folclore realizada pela ACG representa a institucionalização de um conjunto de práticas que
6 Tanto as entrevistas como o campo de pesquisa de cunho etnográfico foram realizados
em distintos municípios dos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, em que
estão localizadas as principais instituições de folclore e onde residem os agentes vinculados a tais entidades.
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A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL
começaram a ser executadas no país a partir das décadas de
1950 e 1960 e, em maior intensidade, na década de 1980. Com
base no campo de estudos conhecido por sociologia política das
instituições (Seidl, 2016; Grill, 2012; Engelmann, 2017) – de inspiração francesa e com bastante proximidade teórico-metodológica e temática com o campo da sociologia das elites –, podemos
conceber uma “instituição” como um conjunto de regras, valores
e práticas objetivadas, isto é, como o social instituído.
Segundo tal perspectiva, de natureza processual, construtivista
e disposicional (Grill, 2012), o processo de objetivação de regras
e de práticas em uma instituição – isto é, o processo de institucionalização – depende do investimento dos agentes sociais.
Nesse sentido, é central reter que, a despeito da aparência de
naturalidade, as instituições possuem uma história singular e
são permanentemente construídas, num processo que compreende agenciamentos e lutas entre agentes. Por outro lado, a
instituição possui também uma dimensão coercitiva em relação
aos indivíduos. Para parafrasear Seidl (2016), convém lembrar
que, ao passo que os agentes fazem as instituições, os agentes
e suas práticas são simultaneamente constituídos por elas. Tal
dimensão é especialmente importante no que tange aos cursos
de folclore promovidos pela ACG, que servem à inculcação de
regras e de práticas que constituiriam e garantiriam a “autenticidade” do folclore. Nesse sentido, o folclore “alemão” praticado
no Brasil, em grande medida, pode ser considerado um folclore
“institucionalizado”.
A ACG pode ser compreendida como uma instituição de pesquisa, documentação, sistematização, promoção e ensino sobre a
cultura popular germânica, com ênfase no fenômeno da dança
popular. Com o intuito de possibilitar que um conjunto de fontes
históricas documentadas e sistematizadas na instituição possa
se transformar propriamente em uma prática cultural concreta, disseminada e representativa da cultura germânica no Brasil,
isto é, visando à transfiguração de um registro histórico textual
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271
Lucas Voigt
de uma dança em uma práxis – isto é, em uma dança performada
–, a ACG promove os cursos de especialização em danças, visando também à promoção de uma concepção específica e legitimada de folclore e de um modus operandi certificado institucionalmente, que garanta a “autenticidade” das danças performadas.
Desse modo, a prática do folclore alemão “autêntico” depende
de estratégias de formação de uma elite cultural e da inculcação
de um modus operandi e de uma práxis específica. As lideranças
do folclore formadas na ACG irão representar a entidade e a sua
concepção específica de folclore produzida e definida institucionalmente – e transmitida nos cursos de especialização em danças – nos âmbitos regional (isto é, nas associações regionais) e
municipal ou local (isto é, nos grupos de dança folclórica).
Para a realização dos cursos, a ACG hospeda coordenadores de
grupos de dança e dançarinos durante uma semana nas dependências da entidade. A linha mestra dos cursos é atualizar o repertório de danças dos grupos folclóricos, transmitindo as “novas” danças populares germânicas – isto é, danças históricas que
possuem registro e documentação, mas que ainda não haviam
sido identificadas, catalogadas, decodificadas ou sistematizadas
para a performance no contexto brasileiro.
O curso é ministrado por um professor estrangeiro, de nacionalidade alemã, austríaca ou suíça. Esse professor é o principal
responsável pela definição do repertório das “novas” danças
folclóricas germânicas a serem reproduzidas no contexto brasileiro. É de importância central para a formação de especialistas
em folclore no Brasil a atuação de experts oriundos do contexto
alemão e europeu, notadamente para a legitimidade dos folcloristas brasileiros, que passam a estar ligados a agentes e instituições europeias de legitimação do folclore.
Pode-se afirmar que os critérios de autenticidade para o folclore provêm da Europa, por meio de representantes enviados
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272
A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL
por instituições europeias de legitimação do folclore – como a
Deutsche Gesellschaft für Volkstanz (DGV), ou “Sociedade Alemã
para a Dança Popular”, e a Schweizerische Trachtenvereinigung
(STV), ou “Associação Suíça de Trajes” – e, especialmente, com
base na importação de subsídios e fontes históricas para a prática do folclore. No caso brasileiro, não se verifica propriamente
a importação de um “modelo” ou de “ideias” (cf. Dezalay & Madsen, 2013), mas antes de um modus operandi de praticar folclore
estabelecido na Europa.
Deve-se ressaltar que os cursos promovidos pela ACG são espaços de especialização em dança folclórica, e não propriamente cursos de formação. Dito de outro modo, trata-se de cursos
destinados a folcloristas que já possuem experiência na prática
da dança no contexto de grupos folclóricos e que, portanto, possuem conhecimento acerca dos “passos básicos” que compõem
o repertório da dança popular germânica, além de possuírem
familiaridade com as danças mais conhecidas e difundidas do
folclore germânico.
Assim, o público dos cursos da ACG se constitui basicamente de
coordenadores de grupos de dança folclórica, além de alguns
integrantes-dançarinos desses grupos. É bastante comum que
tais coordenadores já tenham participado de várias edições dos
cursos de especialização. Via de regra, um coordenador de grupos participa anualmente dos cursos. Nos primeiros cursos, o
coordenador incorpora o modus operandi de fazer folclore, assimilando as competências e os conhecimentos necessários à garantia da “autenticidade” e fidedignidade do folclore; a participação nos cursos seguintes visa, principalmente, à “atualização
do repertório” das danças populares germânicas.
A participação de novos dançarinos em tais cursos depende de
um processo de recrutamento e seleção. Via de regra, tal recrutamento é realizado pelos coordenadores de grupos folclóricos. Os
procedimentos de recrutamento e seleção de dançarinos para a
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Lucas Voigt
participação nos cursos da ACG levam em conta o desempenho
de um determinado dançarino-integrante no âmbito de atuação
dos grupos folclóricos, bem como o “interesse” manifesto por
tais dançarinos em relação à cultura alemã. O recrutamento de
dançarinos-integrantes para a realização de cursos tem como
objetivo a formação de quadros que possam auxiliar o coordenador na condução das atividades nos grupos folclóricos; com
a realização de cursos, esses dançarinos adquirem conhecimentos, competência e legitimidade para eventualmente formarem
e coordenarem novos grupos.
Em certa medida, pode-se compreender a participação contínua
do conjunto de especialistas brasileiros em folclore “alemão”
nos cursos da ACG como uma peregrinação cultural à cidade de
Gramado, realizada anualmente, visando obter formação e acesso a danças certificadas e autenticadas institucionalmente, que
legitimam a prática dos coordenadores no âmbito dos grupos
folclóricos. Ademais, os cursos de especialização são, em grande
medida, uma reunião anual da elite cultural do folclore “alemão”
no Brasil. Os coordenadores de grupos folclóricos estabelecem
redes de sociabilidade, de interconhecimento e de inter-reconhecimento – isto é, adquirem capital social (cf. Bourdieu, 1998)
– por meio da prática do folclore. Desse modo, os cursos anuais
servem como uma celebração da prática da dança folclórica, reforçando os laços de amizade entre os folcloristas e, concomitantemente, fortalecendo a concepção do folclore “alemão” que
orienta a atuação de tais agentes.
Durante os cursos, são distribuídas aos participantes um conjunto de Tanzbeschreibungen – isto é, registros históricos descritivos de danças, no idioma alemão, que eram performadas em
territórios germânicos no passado. A maior parte das danças que
compõe o repertório de um curso tem a coreografia repassada
e ensinada diretamente pelo professor estrangeiro convidado,
observando as indicações dos registros das danças. A outra parte do repertório de danças é decodificada pelos próprios folcloTOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021
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A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL
ristas. A partir da “leitura” das Tanzbeschreibungen, as danças
são “tiradas” – nos termos correntes no espaço –, procedimento
que possibilita sua performance e execução. Tal procedimento
tem como finalidade inculcar um modus operandi de praticar folclore; objetiva-se, assim, ensinar e transmitir não apenas a coreografia de um conjunto específico de danças, mas também os
procedimentos para leitura e decodificação de fontes históricas
que estruturam e embasam a execução coreográfica de todo o
repertório da dança popular germânica.
O ponto auge e culminante dos cursos de dança da ACG é a gravação de um registro em vídeo do repertório das danças trabalhadas. O registro em vídeo serve à consulta posterior por parte
dos folcloristas. Além disso, esse material é indispensável especialmente aos folcloristas que desconhecem o idioma alemão e,
portanto, não conseguem realizar a leitura das Tanzbeschreibungen. Nesse caso, o trabalho de instrução das danças aos grupos
folclóricos se baseará tão somente numa mimese do registro em
vídeo. O material didático é enviado a todos os grupos folclóricos afiliados à ACG; desse modo, o repertório mais recente de
danças populares germânicas circula amplamente no espaço do
folclore.
Os registros em imagem em movimento possuem uma função
extremamente didática, constituindo-se como o principal recurso e suporte para a difusão da prática do folclore alemão “autêntico” no espaço brasileiro. Entretanto, o registro em vídeo é
considerado por alguns especialistas em folclore como um “mal
necessário”. O objetivo dos cursos de dança da ACG é formar as
lideranças do espaço do folclore, inculcando um conjunto de
competências e habilidades constitutivas e necessárias a um especialista em folclore. Sobre essa questão, o ex-diretor do Departamento de Danças da ACG, Beno Heumann, afirmou: “[...] a
gente tem que criar, eu sou dessa opinião, nós temos que criar
lideranças, e não meramente passadores de material”. Nesse
sentido, o registro em vídeo das danças é visto com receio por
TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
275
Lucas Voigt
alguns especialistas em folclore na medida em que torna dispensável a consulta à fonte histórica original, a descrição da dança
(Tanzbeschreibung), tornando esse procedimento cada vez menos comum e habitual no espaço do folclore. Assim, os especialistas em folclore têm o receio de que a prática da dança folclórica possa acabar limitando-se a uma mimese dos movimentos
registrados em um vídeo, dispensando o trabalho especializado
de mediação cultural, que depende de um conjunto de competências e habilidades.
Outra instância importante de formação de especialistas em
folclore são – no vocabulário interno do espaço – os “repasses”.
Promovidos por regionais (ou ligas de folclore), tais eventos visam à multiplicação de espaços de formação e à disseminação
do conhecimento e das informações necessárias à sustentação
da prática do folclore “alemão” no Brasil. Um repasse é um encontro de coordenadores de grupos e alguns dançarinos mais
experientes, em que os folcloristas participantes da edição mais
recente do curso promovido pela ACG “repassam” conhecimentos e as danças sistematizadas no curso para os demais coordenadores de grupos de determinada região. Essa prática tem o
claro objetivo de garantir a “autenticidade” das danças performadas pelos grupos folclóricos, bem como reproduzir uma concepção e uma prática de folclore gestadas e produzidas institucionalmente, garantindo os critérios de fidedignidade histórica
certificados pela ACG.
No que tange aos grupos de dança folclórica – as entidades de
atuação municipal ou local –, as suas principais atividades constituem-se nos “ensaios” de dança e nas “apresentações” públicas
em eventos e festividades. Os ensaios – principal espaço de formação no contexto dos grupos folclóricos – constituem-se como
atividades internas do grupo, ocorrendo normalmente uma vez
por semana. Durante os ensaios, o coordenador transmite as
danças e as coreografias ao conjunto mais amplo de dançarinos-folcloristas, visando garantir a reprodução exata e fidedigna
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276
A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL
das performances, dos passos e das figuras da dança folclórica.
Trata-se de danças trabalhadas nos cursos da ACG, repassadas
eventualmente em âmbito regional pelas ligas de folclore e,
finalmente, trabalhadas e performadas pelos grupos de dança
em âmbito municipal e local.
Se os cursos de especialização em danças – notadamente os da
ACG – e os repasses são os principais espaços de formação dos
especialistas em folclore (isto é, de “coordenadores”), os ensaios
são os principais espaços de formação do conjunto mais amplo
de dançarinos-folcloristas (isto é, os “integrantes”). Além disso, os ensaios, conjuntamente aos repasses e às apresentações,
constituem-se como os principais espaços de recrutamento de
folcloristas para a realização de cursos de especialização e, de
modo correlato, para – eventualmente – comporem a elite cultural folclorista.
Desse modo, os espaços de formação – ensaios, repasses e cursos
– são simultaneamente espaços de recrutamento de dançarinos,
que poderão ascender a posições dominantes em grupos folclóricos, associações culturais, ligas e/ou associações regionais e
entidades de abrangência estadual e/ou nacional, trajetória que
depende da incorporação e da reprodução do modus operandi de
fazer folclore e da lógica dominante vigente no espaço do folclore por parte dos folcloristas. Dito de outro modo, as estratégias
de formação – e a correlata incorporação do modus operandi de
praticar folclore por parte de dançarinos – são condições necessárias à composição e à reprodução da elite cultural do folclore.
Pode-se argumentar, por fim, que no tocante à transmissão cultural da dança no espaço de práticas do folclore “alemão” no
Brasil, podemos constatar a existência de estratégias bem-sucedidas de formação de folcloristas e de reprodução de danças
certificadas e autenticadas, processo que, em última instância,
garante a realização das estratégias de legitimação e de simbolização da elite cultural folclorista.
TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
277
Lucas Voigt
Mediação cultural e legitimação no espaço de práticas do
folclore “alemão” no Brasil
As formulações clássicas sobre o problema da mediação desenvolveram-se no âmbito da antropologia política, em contexto anglófono, especialmente a partir das décadas de 1950 e 1960 (Silverman, 1967; Wolf, 1971 [1956]; Weingrod, 1968). Conforme
argumenta Silverman (1967), com a reorientação da antropologia para o estudo das chamadas sociedades complexas, a mediação surge como um conceito essencial à compreensão da relação
entre as partes (sistemas locais) e o todo (sistema nacional). Em
tal enfoque relacional, os mediadores (ou brokers) são compreendidos como indivíduos localizados em posições intermediárias e estratégicas, operando a interligação entre sistemas locais
e sociedade englobante, isto é, entre comunidades orientadas ao
local e instituições e códigos orientados à nação.
As discussões clássicas sobre a mediação, que tomam por objeto
empírico contextos nacionais de países do Mediterrâneo, como
a Itália (Silverman, 1967), e da América Latina, como o México
(Wolf, 1971), possuem afinidades temáticas com o estudo de comunidades rurais e do campesinato, na medida em que tais universos se configuram precisamente como os contextos e agentes
que dependiam do trabalho de mediação para a sua interligação
com os sistemas e códigos nacionais. Ademais, os estudos sobre
mediação desdobraram-se em reflexões sobre o fenômeno da
patronagem, forma clássica de mediação, constituída como uma
relação assimétrica e personalista em que um “patrão” – inserido em redes de relações que extrapolam o contexto local – oferece favores e proteção a um “cliente” localmente orientado, em
troca de lealdade (Weingrod, 1968; Silverman, 1967).
É interessante pontuar que, em algumas das formulações clássicas sobre o problema da mediação, subjaz a suposição de que
com o crescente processo de industrialização, modernização e
integração social das comunidades locais à nação, o fenômeno
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A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL
da mediação e o papel do mediador paulatinamente tenderiam
a desaparecer (Silverman, 1967, p. 292). Tal constatação não
se comprovou historicamente, haja vista, por exemplo, o papel-chave de mediadores para a importação de modelos e códigos
entre distintos contextos nacionais (Dezalay & Madsen, 2013),
bem como a atuação de mediadores para o fluxo de recursos materiais e simbólicos entre as distintas esferas sociais cada vez
mais autonomizadas.
Em estudo histórico acerca das elites intelectuais de Cabo Verde
– agentes posicionados também em postos burocráticos e políticos –, Anjos (2003) analisa o trabalho de mediação política e
cultural executado por tais agentes. De acordo com o autor, antes da independência do país, em 1975, as elites intelectuais, que
dominavam os códigos culturais e o saber ocidental, operavam
uma mediação entre o poder colonial e a sociedade local. Após a
independência, as elites intelectuais cabo-verdianas continuam
a exercer um papel determinante de mediação, desta vez entre o
sistema internacional e a sociedade nacional. Na visão das elites
autóctones, Cabo Verde seria dependente do auxílio e de subsídios estrangeiros para a sua sobrevivência; é nesse espaço que
se realiza a mediação, que depende do domínio dos códigos ocidentais (Anjos, 2003).
No contexto brasileiro, além de ter sido amplamente utilizada
para o estudo de elites políticas, isto é, para a análise dos mediadores (brokers) entre os recursos do Estado e as bases sociais e
eleitorais – vide, por exemplo, os trabalhos clássicos de Coradini (2001) e Bezerra (1999) –, a noção de mediação tem servido
também à análise de fenômenos da esfera da produção cultural.
Em estudo sobre elites intelectuais eclesiásticas vinculadas à
Igreja Católica do Rio Grande do Sul, Seidl (2007) analisa agentes
especialistas na “cultura” e na “história” da imigração e colonização alemã, mediadores culturais inseridos em diversas esferas
sociais – como a religiosa, a acadêmica e a intelectual. Segundo o
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Lucas Voigt
autor, de modo semelhante ao que ocorre na mediação política,
a mediação cultural contribui para o fluxo de recursos materiais
e simbólicos entre os diversos espaços sociais.
O conceito de mediação possibilita a reflexão sobre a atuação e as
relações estabelecidas entre os agentes do espaço do folclore. Os
mediadores ocupam uma posição nevrálgica no espaço do folclore, atuando – para empregarmos as expressões de Wolf (1971, p.
65) –, como guardiões das “junções cruciais” e das “sinapses de
relações” nesse espaço. Em certa medida, podemos conceber os
especialistas em folclore formados pela ACG como brokers entre
os recursos simbólicos provenientes da Europa e as “bases” compostas por folcloristas; além disso, tais agentes operam como mediadores culturais entre os grupos folclóricos e as instituições de
legitimação do folclore “autêntico”. Do mesmo modo, instituições
como a ACG realizam uma mediação cultural entre, de um lado, as
fontes históricas para a prática do folclore e os especialistas provenientes da Europa e, de outro, os folcloristas brasileiros.
Ao reconstituirmos a estrutura do espaço de práticas do folclore
“alemão” no Brasil, constatamos a existência de variadas instâncias de mediação cultural, que têm como finalidade última realizar
uma mediação entre as fontes históricas que sustentam a prática
do folclore germânico e o conjunto de folcloristas e dançarinos
brasileiros. Dito de outra forma, por meio do trabalho de mediação cultural realizado pelas mais variadas instituições e agentes,
realiza-se principalmente uma mediação entre as fontes históricas que dão sustentação à prática da dança popular de origem
germânica e o espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil.
A ACG realiza um trabalho de mediação cultural entre, de um
lado, especialistas europeus em folclore (que ministram os cursos promovidos pela entidade) e as fontes folclóricas históricas
de origem germânica e, de outro, os coordenadores de grupos folclóricos no Brasil. Por meio da formação dos coordenadores dos
grupos folclóricos, a ACG intermedeia as fontes que dão sustenTOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021
280
A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL
tação à prática das danças populares germânicas e os grupos de
dança folclórica “alemã” no Brasil. Os coordenadores, por sua vez,
intermedeiam a relação entre o conjunto mais amplo de dançarinos e de grupos de dança e as instituições promotoras e legitimadoras do folclore, intermediando, ao mesmo tempo, o acesso às
fontes históricas que garantem a “autenticidade” e a legitimidade
do folclore. Entre os grupos de dança e a ACG, verificamos ainda a
existência de outras instâncias de mediação, as associações regionais (ou ligas de folclore), que realizam um trabalho de mediação
cultural entre, de um lado, os grupos folclóricos com escopo de
atuação municipal e, de outro, a principal entidade promotora do
folclore “alemão” no Brasil, garantindo igualmente o acesso às referências históricas que embasam a execução e a performance das
danças populares germânicas no contexto brasileiro.
Nesse sentido, podemos indicar um duplo caráter do fenômeno
da mediação cultural, de natureza simbólica e política: a mediação cultural é o lugar político da dominação simbólica, isto é, o
espaço da mediação é o lócus da dominação na esfera da cultura,
em que se definem critérios de “autenticidade” e onde se inscrevem os atributos legítimos de determinada prática cultural.
Em análise sobre a cultura e o patrimônio no Maranhão, Reis
(2010) define a mediação cultural como o processo de produção
de conhecimento e de produção de normas, isto é, de decodificação do mundo (descrição) e de recodificação (prescrição). Desse
modo, os mediadores circunscrevem as fronteiras de um lugar
singular de inscrição, contribuindo para a afirmação do que lhe
é específico. Os mediadores definem aquilo que deve ser preservado, aquilo que é “autêntico”.
No que tange à prática do folclore “alemão” no Brasil, podemos
compreender a mediação cultural executada pela elite cultural
folclorista como um trabalho que consiste na decodificação de
fontes históricas sobre danças (Tanzbeschreibungen) e de registros visuais e iconográficos sobre trajes (Trachten) e, simultaneTOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
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Lucas Voigt
amente, na prescrição de códigos e condutas que visam garantir
a “autenticidade” do folclore, por meio da reprodução de fontes
históricas do modo mais fiel e fidedigno possível. De tal modo,
no espaço do folclore “alemão”, a mediação cultural depende
de um trabalho especializado de leitura e de pesquisa histórica
acerca de danças e trajes folclóricos, destinado à garantia dos
padrões de “autenticidade” e de fidedignidade das práticas, através da reprodução de fontes históricas, o que garante o aspecto
de tradicionalidade e de invariabilidade das danças e dos trajes.
Na concepção dóxica do espaço do folclore, uma dança folclórica alemã “autêntica” é aquela que reproduz, do modo mais fiel
possível, uma Tanzbeschreibung. Uma Tanzbeschreibung, como o
próprio termo sugere, é uma descrição textual que registra detalhadamente as “sequências” de uma dança (Tanzfolgen), bem
como as “figuras” (Tanzfiguren) e os “passos” (Tanzschritten)
que compõem uma dança popular de origem germânica. Com
base nas Tanzbeschreibungen, que contêm descrições sistemáticas das figuras, dos movimentos e da execução das danças, os
especialistas em folclore executam seu trabalho de mediação
cultural, definindo e legitimando a “autenticidade” no folclore.
As Tanzbeschreibungen foram produzidas, em sua maioria,
no século XIX e início do século XX, tomando como referência
um período histórico anterior, que compreende os séculos XVI
a XVIII, período em que (cf. Burke, 2010) verificou-se a “descoberta do povo” e da cultura popular na Europa, no início da
Idade Moderna. Apesar dos registros folclóricos remontarem a
períodos historicamente longínquos, tais fontes estão compiladas em obras com datação relativamente recente, quase todas
publicadas a partir da segunda metade do século XX. Tais livros
compõem acervos e coleções pessoais e institucionais de bibliotecas de folclore – o maior deles localizado na ACG. Para os especialistas em folclore, tais livros – obras folclóricas, compêndios
da cultura e do conhecimento “populares” – servem, em última
instância, como repositórios para pesquisa.
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282
A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL
Nesse sentido, pode-se argumentar que a “autenticidade” se
fundamenta na história, na antiguidade e na ancestralidade do
folclore. Os registros de danças e trajes, levantados por meio de
pesquisa histórica, constituem-se como as principais fontes de legitimidade para essa prática cultural. Desse modo, a legitimação
do caráter tradicional do folclore se baseia na invariabilidade e na
reprodução fidedigna de danças e de indumentárias, tomando a
Alemanha e demais territórios germânicos como referências. Em
outras palavras, a autenticidade do folclore se baseia em critérios
simbólicos, de natureza eminentemente histórica.
Em suma, com base na pesquisa em um conjunto de referências
históricas que representa e constitui o folclore alemão “autêntico”, os especialistas em folclore exercem seu papel de mediação
cultural, interpretando e decodificando tais fontes históricas, o
que possibilita que um conjunto amplo de dançarinos e grupos
folclóricos execute no presente performances que reconstituam
as danças populares praticadas na Alemanha e demais territórios germânicos, em períodos históricos delimitados. Assim, tais
fontes históricas são mobilizadas para legitimar a prática do folclore “alemão” no Brasil, legitimando também uma concepção
específica de folclore promovida pela elite cultural folclorista,
orientada segundo os princípios da “autenticidade”, da antiguidade e do valor histórico.
Perfil, trajetórias e trunfos sociais da elite cultural do
folclore “alemão”
O quadro de caracteres pertinentes7 a um conjunto de membros da elite cultural folclorista “alemã” no Brasil, apresentado
7 Para apontamentos teórico-metodológicos sobre essa ferramenta de pesquisa, ver
Bourdieu (2010, p. 23-34); para uma aplicação empírica, consultar Miceli (1977, p. 1819). A construção do quadro dependeu da realização de uma prosopografia (ou biografia
coletiva). Para apontamentos sobre tal abordagem, ver Stone (2011); para estudos que
empregam a prosopografia ver, p.ex., Love & Barickman (2006) e Canêdo (2013).
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Lucas Voigt
a seguir, congrega um conjunto de informações acerca do perfil
social de alguns dos especialistas em folclore que entrevistei,
tendo efeito demonstrativo da morfologia e da lógica do espaço do folclore, bem como dos principais caracteres de origem
social, trajetória (cf. Bourdieu, 2006), trunfos sociais e posição
ocupada no espaço por tais folcloristas, caracteres constitutivos
e necessários à composição da elite cultural do folclore “alemão”
no Brasil. Tal quadro serve à análise e à explicitação das principais constatações sociológicas acerca das estruturas sociais que
constituem o espaço de práticas do folclore “alemão”, especialmente no que tange à trajetória social e aos recursos e capitais
disponíveis e constitutivos dos agentes sociais que integram a
elite do folclore.
Enquanto um agrupamento de agentes responsável pela execução de um trabalho cultural especializado, a elite cultural do
folclore constitui-se como um corpo de especialistas dotado de
trunfos sociais, de saberes e de uma expertise singulares, específicos e diferenciais, necessários ao seu trabalho de mediação
cultural. Em outras palavras, os especialistas em folclore constituem-se como um grupo de agentes possuidor de um volume
de capitais que possibilita a tomada de posições destacadas no
espaço do folclore e, por consequência, a formação e a composição de uma elite cultural. Tendo por base o quadro de caracteres
sociais pertinentes a um conjunto de membros da elite cultural
folclorista, procedo a uma análise e síntese dos principais caracteres sociais relacionados aos especialistas em folclore, sua biografia social e os capitais disponíveis e adquiridos com a prática
do folclore.
Os membros da elite cultural folclorista, via de regra, nasceram
e têm uma biografia social desenvolvida em municípios da região Sul do Brasil, caracterizados pelo processo de colonização
alemã ou de origem germânica. Ainda que as localidades de
residência e de atuação cotidiana dos especialistas em folclore
sejam bastante heterogêneas – considere-se, por exemplo, as diTOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021
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A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL
Quadro 1: Caracteres pertinentes a um conjunto de membros da elite cultural do folclore “alemão” no Brasil.
(3)
21/ 09/ 1971
Goiás (GO)
Blumenau (SC)
(5)
Superior
(turismo e
lazer)
Pai marce- Ensino
neiro, mãe médio.
do lar. Mãe Diploma
possuía
profisenvolvisional
mento em
(eduatividades cação
da Igreja
física)
Luterana
(IECLB)
Avós e tios imigrantes
31 /05 /1961
Trombudo Central (SC)
Trombudo Central (SC)
Profissão
dos pais
(3)
Antepassados (2)
Nascimento
(1)
Böelling, Ingrid
Sim
Escola- Domíridade nio da
língua
alemã
SupeNão.
rior
Do(artes, mina
bacha- parte
rel em do voteatro) cabulário
alemão
utilizado
no
folclore
Pai
missionário
da IECLB,
músico e
promotor
de atividades ligadas
à cultura
e folclore
“alemão”
Superior
(educação artística,
ênfase
em música)
Pai alemão
13/ 05/ 1944
Erechim (RS)
Nova Petrópolis (RS)
(6)
Sim
Pais comerciantes.
Sem envolvimento
com cultura
ou folclore
“alemão”
Tataravós imigrantes
06/ 08/ 1980
Jaraguá do Sul (SC)
Joinville (SC)
Folclorista*
Correia, Cassio
Heumann, Beno
(4)
Pai operário. Mãe
possuía
envolvimento em
atividades
de música
na igreja
Heptavô alemão
(2)
Batista, Ernandes
(1)*
Sim
(7)
(8)
(9)
Morou na Participou Coordenador
Alemanha de vários
de grupo;
por dois
cursos
presidente da
anos, a
da ACG.
Associação dos
trabalho
Passou
Grupos Folclórirecentecos do Médio
mente a
Vale do Itajaí
organizar e
(AFG) (SC)
coordenar
cursos
Não
Participou Coordenadora
de vários
de grupos; excursos
-presidente da
da ACG. Liga do Folclore
Organizou
do Alto Vale
repasses de do Itajaí (SC);
danças
ex-membra da
diretoria da
ACG
Viagens
(4)
Não
(10)
(11)
Analista de Não
comércio
exterior. Sem
relação com o
folclore
Funcionária
pública
municipal,
com cargo de
instrutora de
dança (foco
em folclore
“alemão”)
Não
Partici- Coordenação de Profissão / (7)
pação /
grupos folclóricoordenacos (6)
ção (5)
Produção
escrita
(8)
Não
Participou
de vários
cursos
da ACG.
Ministrou
oficinas sobre teatro
em cursos
da ACG
Ex-coordenador
de grupos; ex-presidente da
Liga de Grupos
Folclóricos do
Vale do Itapocu
(SC)
Várias es- Realizou
Organizador
tadas no
curso de
/ fundador
exterior.
“folclode grupos;
Morou na
re” na
fundador e exAlema- Alemanha. -diretor do Denha, para Organiza- partamento de
realiza- dor e coor- Danças da ACG;
ção de denador de ex-diretor-geral
curso de
cursos
da ACG, por um
formação
breve período
relaciode tempo
nado à
cultura
alemã
Produtor
cultural e ator.
Atuação na esfera do teatro
(presidente
de entidades
da classe
artística).
Atuação como
professor de
artes do Colégio Evangélico
Jaraguá (SC),
onde trabalhava com dança
folclórica.
Atualmente
possui pouco
envolvimento
com grupos
folclóricos
Aposentado. Sim
Foi funcionário contratado
da ACG
(direção do
Departamento
de Danças)
(1) Folclorista (2) Nascimento / naturalidade / residência (3) Antepassados de origem germânica (4) Profissão dos
pais/ Envolvimento da família com cultura ou folclore “alemão” (5) Escolaridade (6) Domínio da língua alemã (7)
Viagens ou estadas na Alemanha / Europa (8) Participação / coordenação em cursos de especialização em folclore(9)
Coordenação de grupos folclóricos/ Membro de instituição de folclore (presidência, diretoria) (10) Profissão /Profissionalização relacionada ao folclore (11) Produção escrita sobre folclore “alemão”
*Todos os sujeitos de pesquisa autorizaram a identificação dos seus nomes próprios.
(Fonte: entrevistas).
TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
285
Lucas Voigt
Quadro 1: Caracteres pertinentes a um conjunto de membros da elite cultural do folclore “alemão” no Brasil.
Continua
(2)
(3)
(5)
Ensino
médio
(6)
Sim
Avô presidente da
Federação
25 de Julho,
fundador
da ACG,
professor
ligado à
IECLB. Pai
diretor
da ACG,
professor
ligado à
IECLB. Mãe
professora
Pai presidente da
Federação
25 de Julho,
fundador
da ACG,
professor
ligado à
IECLB.
Mãe do lar,
“secretária”
do marido
Pai e mãe
comerciantes. Sócios
do Centro
Cultural 25
de Julho
de Porto
Alegre
Ensino
médio
Sim
Ensino
normal
(habilitação
como
professor
catequista)
Sim
Superior
(bacharel em
publicidade,
licenciado em
história).
Pós-graduação
(mestre
em
comunicação)
Sim
18/04/1981
Porto Alegre (RS)
Porto Alegre (RS)
Bisavós imigrantes
Não se aplica
13/03/1942
Alemanha
Gramado (RS)
Pai alemão
22/12/1975
Gramado (RS)
Gramado (RS)
Kleine, Dieter
Kleine, Gerhard
Simões, Denis
(4)
Pai artesão
e dono de
funerária.
Mãe do
lar. Pai foi
presidente
de comunidade
luterana
Avô imigrante
24 /04 /1948
Giruá (RS)
Nova Petrópolis (RS)
Heumann, Eredi (Frau)
(1)*
(7)
Várias estadas no
exterior.
Viagens
relacionadas à sua
atuação
com
folclore
(ênfase
em trajes
folclóricos)
Estadas
para
formação
relacionada à atuação com
folclore
(8)
Atuação em
cursos da
ACG, com
atividades
voltadas
à questão
dos trajes
folclóricos
Não se
aplica
Organizador de
cursos
(9)
Atuação
conjuntamente
a seu marido na
direção-geral
da ACG, por um
breve período
de tempo
(10)
(11)
Proprietária Não
e diretora de
“Pesquisa e
Desenvolvimento” do
maior ateliê
de confecção
de trajes
folclóricos no
Brasil
(Trachtenhaus)
Organiza- Ex-coordenador Diretor-geral
dor e coorde grupos;
da ACG
denador de diretor do Decursos
partamento de
Danças da ACG;
diretor-geral
da ACG
Não
Ex-diretor-geral Aposentado. Sim
da ACG, durante Foi diretortrês décadas -geral da ACG e
professor
Viagens Participou Coordenador de
e estadas de vários grupo; membro
relaciona- cursos da da diretoria da
das à sua
ACG
ACG; presidente
atuação
do Centro
com
Cultural 25 de
folclore
Julho de Porto
Alegre
Professor
Sim
universitário.
Atuação profissional sem
relação com o
folclore
(1) Folclorista (2) Nascimento / naturalidade / residência (3) Antepassados de origem germânica (4) Profissão dos
pais/ Envolvimento da família com cultura ou folclore “alemão” (5) Escolaridade (6) Domínio da língua alemã (7)
Viagens ou estadas na Alemanha / Europa (8) Participação / coordenação em cursos de especialização em folclore(9)Coordenação de grupos folclóricos/ Membro de instituição de folclore (presidência, diretoria) (10) Profissão
/Profissionalização relacionada ao folclore (11) Produção escrita sobre folclore “alemão”
*Todos os sujeitos de pesquisa autorizaram a identificação dos seus nomes próprios.
(Fonte: entrevistas).
TOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021
286
A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL
ferenças evidentes de porte e em termos de intensidade de atividades culturais entre, de um lado, municípios extremamente
pequenos, como Trombudo Central e Giruá e, de outro, grandes
cidades como Joinville e Porto Alegre –, a inserção e as tomadas
de posição no espaço do folclore constituem-se, de certo modo,
como “caminhos que levam” a Gramado, local que opera como
uma espécie de centro de poder do espaço do folclore, isto é,
os especialistas em folclore dirigem-se até a cidade de Gramado para a realização de cursos de especialização, normalmente
uma vez ao ano, acessando o repertório mais recente de danças
folclóricas certificadas e autenticadas institucionalmente. Posteriormente, tais danças são repassadas pelos mediadores aos
níveis regional (ligas de folclore) e local (grupos folclóricos),
sendo performadas também em eventos cívicos e comunitários
no próprio município de atuação do grupo folclórico, bem como
em eventos folclóricos que reúnem grupos de diferentes cidades
e regiões. Com a antiguidade no espaço do folclore e a aquisição
de capital de relações sociais, coordenadores eventualmente
ascendem a posições de diretoria de regionais de folclore –
compreendidas como braços regionais da ACG – e até mesmo à
diretoria colegiada da Casa da Juventude. Nesse processo, realizam-se as intermediações e a garantia de “autenticidade” das
danças no espaço de relações do folclore “alemão” no Brasil.
Os especialistas em folclore possuem, geralmente, ascendência alemã – seja bastante próxima (uma ou duas gerações),
seja mais longínqua (mais de quatro gerações). No que tange
à origem familiar, a maior parte dos especialistas herdou uma
experiência e familiaridade com práticas culturais desenvolvidas no contexto familiar – seja propriamente “folclóricas”,
seja atividades culturais mais genéricas, notadamente aquelas
desenvolvidas na esfera religiosa. O capital familiar mostra-se
um recurso importante no espaço do folclore, especialmente
se levarmos em conta a realidade constatada na principal instituição do espaço: a ACG, desde sua fundação, foi dirigida por
três gerações da mesma família. Ademais, o capital de relações
TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
287
Lucas Voigt
familiares mostra-se importante para a inserção e a atuação no
espaço do folclore.
Os especialistas em folclore, via de regra, possuem domínio do
idioma alemão. A aprendizagem da língua alemã se deu, principalmente, no meio familiar, sendo incorporada normalmente
durante a infância – constituindo-se como mais um dos trunfos
sociais herdados por tais agentes. Outro elemento, relacionado
ao capital linguístico, é a circulação internacional desses agentes – muitas vezes com relação direta à atuação no folclore –,
direcionada especialmente a países de língua alemã. O capital
linguístico é um recurso central à prática do folclore, necessário
e indispensável à leitura em primeira mão das fontes históricas
que dão sustentação ao folclore, produzidas e registradas no
idioma alemão.
Muito embora, como foi argumentado, seja possível executar o
folclore “alemão” com base em uma mimese de registros produzidos em imagem em movimento – o que dispensa o domínio linguístico –, os especialistas em folclore – isto é, os agentes
que ocupam as principais posições no espaço e que compõem a
elite cultural folclorista – têm domínio do idioma alemão, possuindo competência para a decodificação de registros históricos
folclóricos em primeira mão, trabalho de mediação cultural que,
ademais, está na base do procedimento de produção de registros
em vídeo das danças.
Destaca-se, em termos de origem social e trajetória, o fato dos
agentes que constituíram e estruturaram o espaço de práticas
do folclore “alemão” no Brasil possuírem relações estreitas com
a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Os
principais agentes fundadores de instituições do folclore provêm do contexto religioso; ademais, boa parte dos agentes recrutados para atuação em tais entidades possuía vínculos com
a religião de confissão luterana (cf. Voigt, 2019). Alguns agentes
obtiveram inclusive possibilidades de formação escolar e circuTOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021
288
A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL
lação internacional proporcionadas por entidades vinculadas à
Igreja Luterana.
Nos dias atuais, com a perda da centralidade e quase exclusividade das instituições religiosas na promoção das atividades de
cunho simbólico e cultural no contexto das comunidades de origem alemã no Sul do Brasil, verifica-se um processo de recrutamento em marcos “seculares”, isto é, atualmente as ligações com
a Igreja Luterana têm menor importância para o recrutamento
de agentes para o espaço do folclore. Ademais, apesar de algumas entidades vinculadas à Igreja Luterana – tais como escolas
e comunidades evangélicas municipais – manterem o investimento na promoção e no fomento da prática do folclore, pode-se
afirmar que atualmente o folclore “alemão” no Brasil está relativamente autonomizado em relação à esfera religiosa, que perde
centralidade no que tange à estruturação das práticas culturais
– e dos valores subjacentes a tais práticas – desenvolvidas no
espaço do folclore.
No que tange à formação escolar, os agentes usualmente possuem diploma superior – nas mais diversas áreas, seja nas “humanidades” e nas “artes”, seja em áreas de formação sem relação
mais próxima com o universo da cultura –, alguns chegando à
pós-graduação. Do quadro apresentado – que toma por base alguns dos especialistas em folclore –, depreende-se que o ensino
médio predomina entre as mulheres, realidade que não se verifica na totalidade do espaço, na medida em que há predominância
do ensino superior entre os especialistas em folclore – especialmente se considerarmos as gerações mais jovens –, não havendo
diferenças significativas entre homens e mulheres.
É nos agentes com diploma superior que predomina a produção
escrita relacionada ao folclore, especialmente entre aqueles
com diploma em história. Todavia, a produção escrita no espaço
do folclore “alemão” no Brasil é, de modo geral, bastante restrita,
assertiva que pode ser demonstrada no fato da produção escrita
TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
289
Lucas Voigt
sobre folclore “alemão” – tomando como referência os membros
da elite cultural folclorista, isto é, os agentes com maior investimento em especialização e que ocupam posições diretivas
no espaço –, não se configurar como uma prática difundida e
predominante.
Deve-se ressaltar que os agentes com investimento no espaço
do folclore se conhecem e inter-reconhecem, sendo o capital de
relações sociais um elemento importante para o recrutamento
e a participação em cursos de especialização – isto é, para a entrada no meio dos especialistas em folclore –, para o recebimento de convites para apresentações e encontros folclóricos, bem
como para a inserção e ascensão na hierarquia das instituições
promotoras de folclore. Assim, pode-se afirmar que os agentes
que compõem a elite cultural do folclore “alemão” possuem boas
redes de relações sociais, formadas no trabalho com o folclore e
que amplificam as possibilidades e modalidades de atuação no
espaço.
São elementos característicos das tomadas de posição de agentes que integram a elite cultural folclorista: a participação em
cursos de especialização, a coordenação de grupos e a participação diretiva em instituições legitimadoras do folclore – de âmbito regional e nacional. Um especialista em folclore, via de regra,
participou de vários cursos de especialização em danças folclóricas ou atuou na organização de tais cursos; tal formação possibilita a ascensão à posição de coordenador de grupos e, posteriormente, a participação na direção ou a própria presidência
de instituições legitimadoras do folclore – como as associações
regionais de folclore e a Casa da Juventude. Nesse sentido, integrar a elite cultural do folclore é um processo que demanda anos
de investimento – normalmente décadas –, processo por meio
do qual o agente passa a ser conhecido e reconhecido pelos pares, incorpora o modus operandi do folclore “alemão” no Brasil,
amplia o conhecimento no que tange ao repertório de danças
folclóricas e adquire experiência na prática folclórica.
TOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021
290
A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL
É válido ponderarmos sobre o peso relativo dos distintos
capitais, recursos e trunfos sociais para o acesso ao meio do
folclore e para a composição da elite cultural folclorista. O sociólogo das elites deve estar atento às eventuais – e frequentes – relações entre grupos familiares, instituições e carreiras. No espaço do folclore, os laços familiares parecem constituir um recurso
de primeira ordem para a gestação de disposições culturais nos
agentes, para a ascensão a instituições e posições destacadas no
espaço, bem como para o reconhecimento pelos pares. Tal assertiva se comprova no fato de três gerações da mesma família atuarem na direção da principal instituição do espaço e, igualmente, na constatação de que outro grupo familiar ocupa a principal
posição na atividade de confecção de trajes folclóricos8.
Outros dois recursos da maior importância, que se configuram
de modo inter-relacionado, são a antiguidade no folclore e o
capital social, isto é, o capital social é um recurso crucial para
as trajetórias dos agentes no espaço, sendo tanto maior quanto
mais antiga é a inserção do agente no espaço, com a participação
em cursos de formação, a coordenação de grupos folclóricos e a
participação em eventos folclóricos. O capital linguístico se afigura como outro trunfo essencial, na medida em que é indispensável ao trabalho de decodificação em primeira mão dos registros históricos. Ademais, os folcloristas com domínio do alemão
são chamados a auxiliarem o professor estrangeiro no repasse
das danças durante os cursos; isso possibilita reconhecimento,
além da aproximação e da possibilidade de diálogo direto e frequente com o professor, o que leva, em alguns casos, até mesmo
à execução de uma função de mediação entre o professor estrangeiro convidado e os demais participantes de um curso.
A circulação internacional, por outro lado, pode ser compreendida mais como uma consequência ou fator relacionado à atua-
8 Para uma análise detalhada das relações entre grupos familiares e a prática do folclore
“alemão” no Brasil, ver Voigt (2020).
TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
291
Lucas Voigt
ção com folclore do que como um trunfo de primeira ordem na
composição da elite folclorista, isto é, mesmo nos casos em que
a circulação internacional se direciona à realização de cursos em
folclore – e não ao turismo ou aquisição de experiências culturais genéricas –, os cursos no exterior não diferem do formato
adotado pelos cursos realizados no Brasil – a saber, reunião de
dançarinos e repasse de danças com bases em registros textuais.
Por fim, no que tange ao fenômeno da profissionalização, deve-se salientar que se trata de uma possibilidade bastante restrita
no espaço do folclore “alemão” no Brasil. Tem efeito comprobatório de tal assertiva o fato de, dentre os oito agentes elencados
no quadro de membros da elite cultural folclorista, apenas cinco terem se profissionalizado em atividades ligadas à prática do
folclore. Na medida em que os agentes elencados ocupam algumas das principais posições na hierarquia do espaço de práticas
do folclore “alemão” no Brasil e, constatando que nem todos se
profissionalizaram através do folclore, podemos vislumbrar as
oportunidades limitadas de profissionalização para o conjunto
mais amplo de agentes que integram o espaço do folclore “alemão” no Brasil9.
A única atividade em que a profissionalização se apresenta como
regra diz respeito à confecção de trajes folclóricos, embora os
agentes que investem em tal prática representem um contingente pouco expressivo, se considerarmos a totalidade de agentes
que integram o espaço do folclore – foi possível obter menções
a apenas cinco ateliês de confecção de trajes folclóricos no país.
Desse modo, o folclore se constitui como uma atividade ocupacional paralela às ocupações profissionais dos agentes – sendo
realizado no tempo vago, durante fins de semana ou em horários
de folga. Na visão e no vocabulário internos do espaço, os agen-
9 Sugestivo, nesse contexto, é o caso de um entrevistado que acabou desengajando-se
com o folclore, realizando a sua profissionalização na esfera da cultura através do engajamento com a prática do teatro.
TOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021
292
A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL
tes justificam o investimento no folclore salientando o “amor” e
a “paixão” pela cultura alemã, além de apontarem a importância
do trabalho cultural realizado em termos de oferta cultural destinada a comunidades de descendentes de alemães, com ênfase
à juventude.
Por esse caminho, em termos de retribuição ou gratificação à
prática do folclore, podemos constatar um peso pouco importante à retribuição profissional e econômica – que se estende a
um número limitado de agentes –, e um peso enorme em termos
de retribuição simbólica – os especialistas em folclore seriam reconhecidos como representantes de uma etnicidade e constituiriam a autoridade de uma prática cultural, adquirindo visibilidade em suas respectivas comunidades por meio desse trabalho
cultural – e de retribuição psicológica – considerando o papel
do folclore para a construção da autoimagem identitária teuto-brasileira (cf. Voigt, 2008) por parte dos folcloristas. O capital
de relações sociais adquirido com o investimento no folclore,
bem como as viagens, os eventos e os espaços de sociabilidade
e de lazer acessados por meio de folclore parecem, no mesmo
sentido, retribuições não desprezíveis para o engajamento dos
folcloristas.
Considerações finais: as estratégias de simbolização da
elite folclorista
Deve-se salientar que o conjunto de especialistas em folclore
pode ser caracterizado enquanto uma elite, quando consideramos a estrutura e a hierarquia interna do espaço do folclore –
isto é, tais agentes ocupam uma posição estruturalmente dominante em tal microcosmo social. Desse modo, “elite folclorista”
não pode ser compreendida no sentido de uma posição de classe. A confusão entre tais definições é o principal fator explicativo
para a estranheza e a rejeição à própria noção de elite cultural
no espaço do folclore – isto é, para o fato dos especialistas em
TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
293
Lucas Voigt
folclore não se conceberem enquanto uma “elite” ou “grupo dominante” (cf. Voigt, 2021).
O termo elite, no sentido empregado nesta pesquisa, não denota
uma posição definida em função do volume de capital econômico
disponível aos especialistas em folclore, mas define a posição
estrutural ocupada por tais agentes no espaço do folclore: os
especialistas em folclore ocupam as principais posições em
entidades legitimadoras do folclore, possuem um conjunto de
habilidades e competências culturais especializadas e diferenciais e realizam – por meio da tomada de posições estruturalmente definidas e dominantes – o trabalho de mediação cultural – e, simultaneamente, de dominação simbólica – responsável
pela legitimação de um folclore “alemão” no Brasil, garantindo
sua “autenticidade” e fidedignidade histórica.
Na qualidade de uma elite cultural, isto é, enquanto um conjunto
de agentes que ocupa uma posição estruturalmente dominante
em um microcosmo social e que executa um trabalho de mediação cultural – que define o espaço da dominação no âmbito da
cultura, isto é, que representa o lócus político da dominação simbólica –, os especialistas em folclore desenvolvem estratégias de
simbolização para as suas práticas culturais, que são definidas
estruturalmente.
No espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil, a simbolização levada a cabo pelos folcloristas pode ser descrita nos seguintes termos: (1) a execução de um folclore orientado segundo
critérios de “autenticidade” e fidedignidade histórica depende da
reprodução tanto mais fiel quanto possível de registros textuais
e iconográficos de práticas da cultura germânica do passado; (2)
desse modo, a prática da dança e a utilização de indumentárias
típicas, historicamente embasadas, têm por objetivo a reprodução
de práticas do passado; (3) tais práticas têm por finalidade última o estabelecimento de laços e vínculos entre grupos folclóricos
brasileiros e a Alemanha, através da associação entre uma heranTOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021
294
A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL
ça dos antepassados imigrantes, resgatada e cultivada, e as práticas folclóricas germânicas, retomadas e executadas no presente; (4) tal esforço de identificação e de construção de laços com
a Alemanha depende de um trabalho especializado de pesquisa
em fontes produzidas no contexto alemão e europeu, ainda que
a narrativa dominante no espaço aponte que a prática do folclore
esteja embasada em um trabalho de “resgate” cultural da herança
dos antepassados imigrantes – a quem as práticas folclóricas só
podem ser vinculadas ex post facto, se considerarmos que o folclore como é concebido atualmente não é uma herança direta do processo de imigração e de colonização; (5) tal constatação implica,
inequivocamente, que a estratégia de simbolização do folclore é
um processo permeado pelo que se compreende como “invenção
das tradições”; (6) o trabalho cultural do folclore produz, em última instância, uma identificação e um esforço contemporâneo de
inserção na cultura germânica e na história comum da Alemanha,
estando as estratégias de simbolização diretamente imbricadas
na construção da autoimagem e dos sentidos identitários10 dos
descendentes de alemães folcloristas no Brasil (cf. Voigt, 2018b).
Assim, a estratégia de simbolização vigente e dominante no espaço do folclore encara as danças e os trajes folclóricos como
símbolos da história do processo de imigração e de colonização
alemã no Brasil, e como símbolos de pertencimento cultural e
étnico à “germanidade”, experiência desenvolvida pelos grupos
folclóricos nos marcos do que se convencionou chamar de teuto-brasilidade.
10 Para uma análise da construção da autoimagem identitária de descendentes de alemães, a partir da chave da memória, ver Voigt (2017).
TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
295
Lucas Voigt
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Recebido em 21/05/2020
Aceito em 30/04/2021
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