Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

Academia.eduAcademia.edu

A elite cultural do folclore alemão "autêntico" no Brasil: Perfil social, mediação cultural e estratégias de legitimação / The cultural elite of "authentic" German folklore in Brazil: Social profile, cultural mediation and strategies of legitimation

2021, Revista TOMO

Resumo: No Brasil, um conjunto de agentes atua na definição, preservação e promoção do folclore alemão "autêntico" e legítimo. Este artigo tem por objetivo analisar as práticas e as estratégias de legitimação da elite cultural folclorista, isto é, do conjunto de agentes que ocupa as principais posições no espaço de práticas do folclore "alemão" no Brasil. Para tanto, são enfocadas três questões-chave: (1) as instâncias de recrutamento e de formação da elite cultural folclorista; (2) o trabalho de mediação cultural levado a cabo pelos especialistas em folclore, que consiste na decodificação de fontes históricas produzidas no contexto europeu e na prescrição de práticas e condutas no espaço do folclore brasileiro, procedimento basilar à legitimação e à garantia da "autenticidade" do folclore; e (3) os principais caracteres de origem social, trajetória, capitais e trunfos sociais disponíveis à elite cultural folclorista e/ou adquiridos por meio do seu investimento na esfera do folclore. / Abstract: In Brazil, a group of agents acts in the definition, preservation and promotion of German "authentic" and legitimate folklore. This article aims to analyze the practices and strategies of legitimation of the folkloristic cultural elite, that is, the set of agents that occupy the main positions in the space of practices of "German" folklore in Brazil. To do so, three key-issues are addressed: (1) the instances of recruitment and training of the folkloristic cultural elite; (2) the work of cultural mediation carried out by folklore experts, which consists in the decoding of historical sources produced in Europe, and in the prescription of practices and conducts in the Brazilian context, a basic procedure for legitimation and the guarantee of "authenticity" of folklore; and (3) the main characters of social origin, trajectory, capital and social assets available to the folkloristic cultural elite and/or acquired through their investment in the sphere of folklore.

A Elite Cultural do Folclore Alemão “Autêntico” no Brasil: Perfil Social, Mediação Cultural e Estratégias de Legitimação*1 Lucas Voigt**2 Resumo: No Brasil, um conjunto de agentes atua na definição, preservação e promoção do folclore alemão “autêntico” e legítimo. Este artigo tem por objetivo analisar as práticas e as estratégias de legitimação da elite cultural folclorista, isto é, do conjunto de agentes que ocupa as principais posições no espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil. Para tanto, são enfocadas três questões-chave: (1) as instâncias de recrutamento e de formação da elite cultural folclorista; (2) o trabalho de mediação cultural levado a cabo pelos especialistas em folclore, que consiste na decodificação de fontes históricas produzidas no contexto europeu e na prescrição de práticas e condutas no espaço do folclore brasileiro, procedimento basilar à legitimação e à garantia da “autenticidade” do folclore; e (3) os principais caracteres de origem social, trajetória, capitais e trunfos sociais disponíveis à elite cultural folclorista e/ou adquiridos por meio do seu investimento na esfera do folclore. Palavras-chave: Elites culturais. Folclore “alemão”. Estratégias de legitimação. Mediação cultural. Autenticidade. * O artigo apresenta alguns resultados da dissertação de mestrado realizada pelo autor (Voigt, 2018a). A pesquisa contou com o financiamento do CNPq, mediante a concessão de uma bolsa de mestrado. Uma versão preliminar do artigo foi apresentada no 42º Encontro Anual da ANPOCS, no Grupo de Trabalho “Elites e formas de dominação”. Gostaria de agradecer, de modo especial, a Ernesto Seidl pelas sugestões apresentadas ao longo do desenvolvimento da pesquisa e à preparação do manuscrito para publicação, bem como pelas indicações de bibliografia. ** Mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com período sanduíche junto à University of Illinois at Urbana-Champaign (UIUC). Bolsista CAPES. E-mail: lucas_3106@hotmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-9789-7851. TOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 256 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL The Cultural Elite of Authentic “German” Folklore in Brazil: Social Profile, Cultural Mediation and Strategies of Legitimation Abstract In Brazil, a group of agents acts in the definition, preservation and promotion of German “authentic” and legitimate folklore. This article aims to analyze the practices and strategies of legitimation of the folkloristic cultural elite, that is, the set of agents that occupy the main positions in the space of practices of “German” folklore in Brazil. To do so, three key-issues are addressed: (1) the instances of recruitment and training of the folkloristic cultural elite; (2) the work of cultural mediation carried out by folklore experts, which consists in the decoding of historical sources produced in Europe, and in the prescription of practices and conducts in the Brazilian context, a basic procedure for legitimation and the guarantee of “authenticity” of folklore; and (3) the main characters of social origin, trajectory, capital and social assets available to the folkloristic cultural elite and/or acquired through their investment in the sphere of folklore. Keywords: Cultural elites. “German” folklore. Strategies of legitimation. Cultural mediation. Authenticity. La Élite Cultural del Folklore “Alemán” Auténtico en Brasil: Perfil Social, Mediación Cultural y Estrategias de Legitimación Resumen En Brasil, un conjunto de agentes actúa en la definición, preservación y promoción del folklore alemán “auténtico” y legítimo. Este artículo tiene como objetivo analizar las prácticas y estrategias de legitimación de la élite cultural folklorista, es decir, el conjunto de agentes que ocupa las principales posiciones en el espacio del folklore “alemán” en Brasil. Para tanto, se abordan tres cuestiones clave: (1) las instancias de reclutamiento y formación de la élite cultural folklorista; (2) el traTOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 257 Lucas Voigt bajo de mediación cultural realizado por especialistas en folklore, que consiste en decodificar fuentes históricas producidas en el contexto europeo, y prescribir prácticas y conductas en el espacio del folklore brasileño, un procedimiento central para la legitimación y la garantía de la “autenticidad” del folklore; y (3) los principales caracteres de origen social, trayectoria, capitales y activos sociales disponibles para la élite cultural folklorista y/o adquiridos a través de su inversión en la esfera del folklore. Palabras clave: Élites culturales. Folklore “alemán”. Estrategias de legitimación. Mediación cultural. Autenticidad. Elites culturais: sobre o problema da legitimação e da “autenticidade” Podemos constatar o papel-chave das elites culturais na legitimação de padrões de “autenticidade” no contexto de uma vasta gama de práticas culturais e artísticas (Fernandes, 2010, 2012; Reis, 2010; Coradini, 2003). Consideremos, de modo exemplar, o trabalho de Fernandes (2010, 2012). Em seus estudos sobre a questão da “autenticidade” na música popular brasileira, o autor analisa o papel de intelectuais e de instituições para a definição de uma concepção específica da música brasileira, marcada pelos atributos da “autenticidade” e da “originalidade”. Tais intelectuais e instituições influenciaram o campo da música no Brasil, operando uma redefinição das posições ocupadas pelos gêneros musicais. Durante os anos de 1950-70, o samba e o choro – de matriz popular, oriundos dos morros cariocas – são elevados à categoria de música “autêntica”, “genuína” e “representativa” da cultura e da identidade brasileiras. Desse modo, a definição da música brasileira “autêntica” depende de um processo de delimitação formal, institucional e grupal (Fernandes, 2012). Ademais, o interesse “desinteressado” (cf. Bourdieu, 1996) de determinados agentes sociais na promoção e normatização da música popular brasileira possibilita a artiTOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 258 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL culação de um círculo de intelectuais e a formação de uma elite cultural, responsável pela institucionalização do discurso que define o samba e o choro como gêneros musicais representativos e legítimos da cultura e da musicalidade brasileiras. Em estudo sobre práticas, recursos e representações dos porta-vozes da “cultura” no Maranhão, Reis (2010) demonstra a centralidade do problema da legitimação de critérios de “autenticidade” nos estudos sobre elites culturais. A autora analisa as características sociais dos agentes que ocupam cargos políticos vinculados à gestão da cultura no Maranhão, as representações sociais que partilham e que edificam em suas lutas pelos sentidos da “cultura”. A legitimação da cultura maranhense está associada à valorização do patrimônio arquitetônico, processo que, segundo a autora, é resultado de um trabalho social de invenção (cf. Hobsbawm & Ranger, 1984). De acordo com Reis (2010), ao construírem versões do patrimônio comum e coletivo, os mediadores da cultura no Maranhão incrementam seus próprios patrimônios pessoais, beneficiando-se da autoridade legítima para sua definição. Nesse sentido, a autora argumenta que o uso da tradição serve à autoridade de quem a mobiliza. Ao legitimarem a cultura, as elites culturais legitimam sua posição no campo cultural, produzindo uma distinção em relação a posições concorrentes. Assim, não interessa apenas saber como os agentes legitimam uma prática cultural, mas como se legitimam a partir dessa legitimação. Com base em tal discussão introdutória, é possível esboçar algumas definições basilares para duas noções centrais a este estudo, a saber, legitimação e “autenticidade”. A noção de legitimação, com base em uma perspectiva bourdieusiana, se refere ao processo de definição de critérios socialmente aceitos e reconhecidos como válidos em determinado campo social; no caso da cultura, se refere ao poder simbólico (Bourdieu, 2010) para criar uma visão de autenticidade para determinada prática cultural. Quanto TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 259 Lucas Voigt à “autenticidade” – produto de uma estratégia de legitimação1 e, portanto, uma categoria não sociológica –, pode-se dizer que uma prática “autêntica” é aquela que expressaria a “realidade” e o “verdadeiro valor” da manifestação cultural em questão2, critério que é, via de regra, produzido e promovido por membros de determinada elite cultural. Assim, em tal perspectiva, coloca-se em evidência a preocupação com as lutas sociais em torno da definição das práticas culturais consideradas “mais legítimas”, isto é, as práticas dotadas de “autenticidade” e de “verdade”. O espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil Se podemos constatar o papel determinante de uma elite cultural e de um campo de legitimação no contexto da música brasileira “autêntica”, ou o papel-chave de mediadores culturais para a legitimação da cultura e do patrimônio no Maranhão, no caso da tradição e do folclore “alemão” verificamos igualmente a atuação “desinteressada” de agentes e de instituições para a delimitação formal, institucional e grupal dessas manifestações culturais e artísticas. Em outras palavras, constata-se a existência de um “espaço” que define, legitima e regulamenta o folclore alemão “autêntico” no Brasil (Voigt, 2018a). 1 A noção de estratégia, que na sociologia de Pierre Bourdieu está próxima de outras noções, como habitus, práticas e senso prático, pode ser compreendida como uma ação razoável que não compreende um cálculo consciente em sentido racionalista ou utilitarista, voltado à maximização do lucro econômico. A estratégia é, antes, um resultado da posição social, do habitus e dos agenciamentos do indivíduo em campos ao longo da sua trajetória. Assim, a estratégia refere-se a uma ação, com objetivos e expectativas futuras, produzida a partir do senso prático e do sentido do jogo captado pelos agentes. Para uma exposição de Bourdieu sobre o contexto de produção da noção de estratégia, bem como sobre distintas modalidades de estratégias, ver Bourdieu (2020). 2 Os critérios de autenticidade buscam ancoragem na história, na antiguidade, na ancestralidade e na “tradição”. Na definição sugerida por Nedel, em estudo sobre a elite intelectual do folclorismo gaúcho (Nedel, 2005, 2011), “[...] a autenticidade pode, a partir daí, ser definida como um princípio de inviolabilidade aplicado a certos parâmetros de conformação mítica do passado” (Nedel, 2005, p. 30). TOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 260 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL Tomo a noção de espaço de empréstimo de Saint Martin (2002), empregada pela autora em seus estudos sobre os descendentes da nobreza na França. A noção de espaço social opera como uma alternativa teórico-metodológica ao conceito de campo social. Ainda que “espaço” compreenda alguns dos elementos constitutivos e imprescindíveis do conceito de campo – a saber, o caráter relacional e posicional dos universos sociais, constituídos por agentes em concorrência –, a noção comporta algumas especificações analíticas importantes, que me parecem pertinentes para o enquadramento do folclore “alemão” praticado no Brasil. Nesse sentido, pode-se afirmar que um “espaço de práticas” pressupõe: uma baixa autonomia relativa do espaço, se comparada à dos campos sociais; a inexistência de instituições ou a existência de uma baixa institucionalidade, com poderes e capacidade de manutenção e de reprodução institucional limitados; uma profissionalização restrita dos agentes em atividades e postos internos ao próprio espaço de práticas, processo que não se verifica de modo costumaz; e, por consequência, uma diversificação dos investimentos dos agentes inseridos no espaço, investimentos direcionados a variados campos e esferas sociais, o que implica uma maior heterogeneidade em termos das práticas sociais desenvolvidas por tais agentes ao longo de suas trajetórias sociais. Como parece ser de comum acordo no campo da sociologia das elites, ou ao menos na sociologia das elites inspirada nos trabalhos de Pierre Bourdieu, partindo da constatação do processo de autonomização das esferas ou campos sociais, é plausível supormos a existência de uma vasta gama de elites e de distintos mecanismos de dominação. Essa proposição se opõe às suposições sobre a existência de uma única elite, integrada e coesa, que deteria o controle sobre as variadas esferas do mundo social. Assim, pressupondo que a questão da “elite” depende do espaço social referido, bem como de uma questão de escala e de recorte, pode-se aferir a existência de uma elite cultural que define, legitima e promove a tradição e as práticas do folclore alemão “autêntico” no Brasil. TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 261 Lucas Voigt Os agentes em posições destacadas no espaço do folclore “alemão” formam uma elite cultural capaz de definir e delimitar os critérios de “autenticidade” e legitimidade para as práticas culturais que compõem o folclore – notadamente a “dança folclórica”3 –, com base em um trabalho de decodificação de registros históricos folclóricos – no vocabulário dos folcloristas, as Tanzbeschreibungen, literalmente “descrições de dança” –, que se constituem como os elementos basilares à garantia da fidedignidade histórica do folclore. Essa elite, que ocupa as posições dominantes no espaço do folclore, exerce um poder simbólico que lhe permite estabelecer padrões e critérios de avaliação e de representação sobre o folclore alemão “autêntico”. No espaço do folclore “alemão” praticado no Brasil, a manifestação cultural mais importante é, indubitavelmente, a dança folclórica. Como suporte à prática da dança, está a utilização de indumentárias “típicas”, os “trajes folclóricos”; trajados, grupos de danças costumam apresentar-se em festividades locais ou cívicas de comunidades de descendentes de alemães. Para a execução de tais práticas culturais, os especialistas em folclore se baseiam em um universo amplo de referências e informações, sistematizado por meio de pesquisa em fontes como os registros históricos de danças e trajes. Sua prática se caracteriza pela reprodução de danças “autênticas”, isto é, aquelas que foram registradas por folcloristas em séculos anteriores; o cuidado em relação a essas referências é meticuloso e o volume de fontes históricas que orientam a prática desses folcloristas é vastíssimo. O espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil, assim como os demais microcosmos sociais que constituem a totalidade do espaço social, caracteriza-se como um universo estruturado e hierarquizado. Podemos apontar a Associação Cultural Gramado (ACG) – Casa 3 O termo em alemão para “danças folclóricas” é Volkstänze. A tradução exata seria “danças do povo” ou “danças populares”. O termo relacionado, Volkstanzgruppen, pode ser traduzido como “grupos de dança popular” ou de “dança folclórica”. TOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 262 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL da Juventude como a principal instituição de legitimação, promoção, formação e representação do folclore e de folcloristas em âmbito nacional. A entidade foi fundada em 1965, em Gramado (RS). Em âmbito regional, verificamos a existência das “regionais” ou “ligas de folclore”, entidades fundadas no início da década de 1990 como uma iniciativa de regionalização da ACG. Tais instituições promovem eventos e oferecem formação a folcloristas. Existem no país sete regionais, duas no Rio Grande do Sul e cinco em Santa Catarina – a principal delas é a Associação dos Grupos Folclóricos Germânicos do Médio Vale do Itajaí (AFG), de Blumenau (SC), que recentemente passou a ofertar de modo independente cursos de danças folclóricas. A existência de regionais apenas nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina se explica em função da maior intensidade de práticas folclóricas nesses estados, que concentram a maior parte dos grupos folclóricos. A maior incidência de regionais em Santa Catarina, por sua vez, é resultado da maior distância geográfica em relação à instituição central do espaço, a ACG. As regionais têm por função agremiar um conjunto determinado de “grupos de dança folclórica” – que, por sua vez, têm atuação nas esferas municipal ou local. Para empregarmos um vocábulo de uso corrente na análise política, podemos conceber os grupos de dança folclórica como as entidades “de base” do espaço do folclore “alemão” no Brasil. Existem no Brasil cerca de 200 grupos de danças folclóricas alemãs, que reúnem em média de 10 a 40 pares de dançarinos. As atividades desses grupos consistem na reprodução de danças folclóricas “alemãs”, de modo tanto mais fiel quanto possível aos registros de danças. Obviamente, esses grupos se concentram na região Sul do país – onde se verificou o fenômeno da imigração alemã em larga escala –, principalmente nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Não obstante, verifica-se a atuação de Volkstanzgruppen em ao menos outros cinco estados da federação: São Paulo, Paraná, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 263 Lucas Voigt Um grupo folclórico é uma agremiação de dançarinos. Tais entidades são compostas por um “coordenador” e por um conjunto mais amplo de dançarinos, os “integrantes” do grupo folclórico. O coordenador é responsável por instruir as danças e as coreografias ao restante dos folcloristas. Ademais, esses coordenadores realizam cursos de especialização junto às instituições de legitimação do folclore “alemão” no país, notadamente a Associação Cultural Gramado. Neste estudo, chamo de “folclorista” os agentes envolvidos com a prática do folclore “alemão”. O termo refere-se, principalmente, a dançarinos e coordenadores de grupos folclóricos. Para diferenciá-los dos agentes que ocupam posições nas principais instituições do espaço – isto é, em um nível hierárquico superior –, na definição de critérios de “autenticidade” e na mediação com as fontes do folclore provenientes da Alemanha e da Europa, defino estes últimos como “especialistas em folclore”, que constituem propriamente a elite cultural que legitima essa prática cultural. Como será demonstrado, a especialização depende de um conjunto de fatores, normalmente articulados, como uma longa formação em cursos de especialização, o domínio da língua alemã e a habilidade de leitura dos registros de danças. Ainda que este artigo pretenda apresentar uma análise essencialmente “sincrônica” ou estrutural do folclore “alemão”, é pertinente, não obstante, apresentarmos algumas considerações acerca da gênese sócio-histórica do folclore “alemão” no Brasil, para que seja possível compreender a particularidade e a especificidade dessa modalidade de folclore4. 4 Para uma análise detalhada que enfoca a dimensão “diacrônica” ou histórica do folclore “alemão” no Brasil, tratando da sua sociogênese, ver: Voigt (2018a, especialmente p. 49-144). TOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 264 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL Gráfico 1: Representação visual da estrutura do espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil. (Fonte: elaborado pelo autor). O folclore “alemão” possui um contexto de surgimento singular, ligado à própria experiência histórica da “germanidade” no Brasil. Os primeiros grupos folclóricos remontam às décadas de 1950 e 1960, originados a partir de entidades envolvidas no esforço de recomposição das elites do grupo étnico alemão no Brasil – os Centros Culturais 25 de Julho –, fundadas após as campanhas de nacionalização do Estado Novo (1937-1945). As campanhas de nacionalização – que envolveram medidas como a proibição do uso de línguas estrangeiras em território nacional, da imprensa e do ensino em língua estrangeira, bem como a supressão de práticas culturais de clubes e de associações fundadas ou dirigidas por alemães (ver, p. ex., Geraldo, 2009) – abalaram fortemente a etnicidade e a cultura alemã no Brasil, ferindo a autoimagem e os recursos de poder das elites do grupo étnico alemão. Assim, pode-se afirmar que a prática do folclore “alemão” era pouco expressiva antes do Estado Novo (cf. Seyferth, 2005). TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 265 Lucas Voigt As práticas do folclorismo “alemão”, iniciadas nas décadas de 1950 e 1960, serão sistematizadas e institucionalizadas – em um espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil –, nas décadas de 1980 e 1990, período em que ocorre a fundação do Departamento de Danças da ACG e em que se inicia a oferta de formação especializada em dança folclórica no país. A partir de meados da década de 1970, o sentimento de “constrangimento” em relação aos alemães – que atingiu seu ápice no Estado Novo – começa a arrefecer-se (cf. Gertz, 2013). Alguns anos mais tarde, verifica-se o surgimento de um conjunto articulado de práticas e de iniciativas voltadas à promoção da herança e da cultura “alemãs” no Brasil. Dentre elas, destaca-se a fundação disseminada e abrangente de grupos folclóricos, bem como o surgimento de festividades étnicas, de âmbito municipal e/ou comunitário, com destaque às Oktoberfesten – situadas no contexto do que se compreende como “cultura popular de massa”. Os anos de fundação dos primeiros grupos folclóricos alemães no Brasil coincidem com o período mais expressivo de atuação do Movimento Folclórico Brasileiro (1947-1964) (cf. Vilhena, 1997), embora tais processos apresentem escassas conexões. Pode-se argumentar que a gênese de um folclore “alemão” no Brasil está ligada às experiências próprias e sui generis do grupo étnico alemão, notadamente o esforço de rearticulação e de recomposição de elites do grupo étnico após as campanhas de nacionalização do Estado Novo. Dessa forma, o surgimento do folclore “alemão” é um processo que ocorre de modo paralelo aos desenvolvimentos do folclorismo brasileiro, tomando lugar no contexto interno e singular do grupo étnico teuto-brasileiro. Ao passo que o folclore brasileiro é fortemente marcado pela experiência do regionalismo, o folclore “alemão” – ainda que esteja regionalmente situado, nos estados do Sul e do Sudeste, em que se verificou a imigração alemã em escala expressiva – procura desvencilhar-se de demarcações regionais, afirmando a dimensão étnica, construída “nacionalmente”; dito de outro modo, o TOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 266 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL folclore “alemão” no Brasil seria característico e representativo de todos os “alemães” em território brasileiro, constituindo-se em termos “nacionais” – ainda que, paradoxalmente, esse nacional seja estrangeiro, não autóctone. Essa exposição extremamente sumária acerca do espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil serve-nos para a apresentação do objeto a ser analisado neste artigo. O presente trabalho, embasado no aporte teórico-metodológico dos campos da sociologia das elites (Saint Martin, 2002; Coradini, 2001, 1997; Seidl, 2013, 2009; Reis, 2010; Sapiro, 2012; Petrarca, 2008) e da sociologia da cultura (Bourdieu, 1996, 2007; Elias, 2001; Miceli, 2003; Fernandes, 2010, 2012), se propõe a analisar a elite cultural do folclore “alemão” no Brasil, responsável pela produção, legitimação e promoção dos critérios de “autenticidade”, fidedignidade histórica e valor simbólico para a prática de tal folclore no contexto brasileiro. O artigo, assim, tem por objetivo analisar as práticas e as estratégias de legitimação da elite cultural folclorista, isto é, do conjunto de agentes que ocupa as posições dominantes no espaço do folclore “alemão” no país. Para tanto, serão abordados três aspectos-chave para a compreensão dessa elite cultural: (1) as instâncias de recrutamento e de formação da elite cultural folclorista; (2) o trabalho de mediação cultural levado a cabo pelos especialistas em folclore, que consiste na decodificação de fontes históricas produzidas no contexto europeu e na prescrição de práticas e condutas no espaço do folclore brasileiro, procedimento basilar à legitimação e à garantia da “autenticidade” do folclore; e (3) os principais caracteres de origem social, trajetória, capitais e trunfos sociais disponíveis à elite cultural folclorista e/ou adquiridos por meio do seu investimento na esfera do folclore. TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 267 Lucas Voigt Breves apontamentos metodológicos A pesquisa que embasa este artigo foi realizada formalmente entre os anos de 2015 e 2017. Emprego o termo “formalmente” na medida em que o presente pesquisador possuía uma atuação e um envolvimento pessoal com o espaço do folclore, na qualidade de dançarino, ao longo de sua infância até o início da adolescência. Ademais, alguns membros do grupo familiar do pesquisador possuem (ou possuíam), igualmente, envolvimento com a prática do folclore, ocupando posições de dançarinos e/ou coordenadores de grupos folclóricos. Desse modo, tal inserção pessoal e familiar no espaço do folclore – reconhecida pelos demais agentes posicionados no espaço – compreende um conjunto de experiências amplas e de longa duração que, indubitavelmente, contribuiu como material de análise, além de ter facilitado o acesso ao campo de pesquisa e a identificação de informantes e entrevistados, bem como a compreensão das práticas, dinâmicas e categorias nativas do espaço. Tais experiências subjetivas foram – como se mostra indispensável a qualquer empreendimento sociológico – objetivadas a partir de seu enquadramento com base em teorias e métodos oriundos das ciências sociais. Conforme argumenta Bourdieu (2010), a objetivação da relação do sociólogo com o seu objeto é a condição da ruptura com a propensão em investir no objeto, que está na origem do interesse do pesquisador pelo objeto. Assim, este pesquisador procurou manter-se vigilante em relação aos interesses, às práticas e às concepções nativas da elite cultural folclorista. Com a realização de cada uma das entrevistas, foi possível identificar novos interlocutores, a partir da indicação dos próprios entrevistados. Realizei, no total, nove entrevistas; oito delas com folcloristas brasileiros que integram a elite cultural do folclore “alemão” no Brasil, e uma com um especialista suíço em folclore. As entrevistas, que envolviam, dentre outros temas, questões TOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 268 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL sobre a trajetória pessoal e institucional dos agentes, bem como suas concepções e práticas relacionadas com o folclore, tiveram por objetivo substanciar a execução de uma prosopografia da elite cultural folclorista5. Dentre as entrevistas realizadas, constam aquelas com agentes que ocupam posições centrais no espaço do folclore – na ACG e no universo de confecção de trajes folclóricos –, trajetórias indispensáveis para a compreensão do espaço. No mesmo sentido, foram realizadas também entrevistas com diretores (ou ex-diretores) de regionais de folclore, que são também, via de regra, coordenadores de grupos folclóricos. Foram entrevistados, especificamente, quatro agentes que ocupam (ou ocupavam) tais posições. Ainda que, por limitações de recursos, tenha se mostrado inviável entrevistar representantes das sete regionais e dos cerca de 200 grupos folclóricos, tendo em mente a similaridade das trajetórias de tais agentes no espaço do folclore e, ademais, considerando que as entrevistas realizadas permitiram identificar as práticas, as estruturas e os princípios dominantes no espaço – com base em considerações oriundas dos contextos “nacional”, “regional” e “local” em que o folclore é executado, bem como das intermediações entre tais níveis –, considero que o conjunto de entrevistas e a prosopografia permitiram um delineamento adequado e satisfatório do espaço do folclore e da elite cultural folclorista. Nesse sentido, embora fosse possível incluir e entrevistar outros agentes, sem considerar algumas das trajetórias e das posições representadas pelos agentes entrevistados, teria sido impossível reconstituir a estrutura do espaço do folclore, bem como identificar os principais caracteres sociais constitutivos da elite do folclore. Além das entrevistas, a pesquisa se baseou em material de cunho etnográfico, compreendendo a participação e o acom5 A prosopografia é apresentada e discutida em detalhes na última seção deste artigo. TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 269 Lucas Voigt panhamento de atividades realizadas pelos folcloristas, como ensaios, apresentações de danças e eventos folclóricos6. Além disso, o campo de pesquisa compreendeu a visita a instituições promotoras de folclore, como a ACG e a AFG, visando identificar os espaços institucionais e os acervos abrigados nas instituições. Como fontes de pesquisa, foram consideradas ainda as referências de leitura da elite cultural folclorista – literatura sobre danças e trajes folclóricos –, material que está na base do trabalho de mediação executado por tais agentes. A produção escrita da elite do folclore, versando sobre a história de instituições promotoras de folclore e/ou compreendendo discussões de cunho mais teórico sobre o que constitui o folclore – produção bastante restrita, deve-se pontuar – também foi considerada. Por fim, de modo complementar, foram analisados alguns documentos históricos que auxiliaram na reconstituição da história e da gênese do espaço do folclore, bem como materiais produzidos pelas instituições, tais como estatutos e folders de divulgação. Instâncias de recrutamento e de formação de especialistas em folclore As principais instâncias de formação de especialistas em folclore “alemão” no Brasil são os cursos de especialização em dança folclórica promovidos anualmente pela Associação Cultural Gramado (ACG) – Casa da Juventude. Tais cursos começaram a ser realizados a partir de 1983, tendo um papel central para a sistematização e a institucionalização da prática do folclore “alemão” no Brasil. A oferta sistemática de cursos de folclore realizada pela ACG representa a institucionalização de um conjunto de práticas que 6 Tanto as entrevistas como o campo de pesquisa de cunho etnográfico foram realizados em distintos municípios dos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, em que estão localizadas as principais instituições de folclore e onde residem os agentes vinculados a tais entidades. TOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 270 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL começaram a ser executadas no país a partir das décadas de 1950 e 1960 e, em maior intensidade, na década de 1980. Com base no campo de estudos conhecido por sociologia política das instituições (Seidl, 2016; Grill, 2012; Engelmann, 2017) – de inspiração francesa e com bastante proximidade teórico-metodológica e temática com o campo da sociologia das elites –, podemos conceber uma “instituição” como um conjunto de regras, valores e práticas objetivadas, isto é, como o social instituído. Segundo tal perspectiva, de natureza processual, construtivista e disposicional (Grill, 2012), o processo de objetivação de regras e de práticas em uma instituição – isto é, o processo de institucionalização – depende do investimento dos agentes sociais. Nesse sentido, é central reter que, a despeito da aparência de naturalidade, as instituições possuem uma história singular e são permanentemente construídas, num processo que compreende agenciamentos e lutas entre agentes. Por outro lado, a instituição possui também uma dimensão coercitiva em relação aos indivíduos. Para parafrasear Seidl (2016), convém lembrar que, ao passo que os agentes fazem as instituições, os agentes e suas práticas são simultaneamente constituídos por elas. Tal dimensão é especialmente importante no que tange aos cursos de folclore promovidos pela ACG, que servem à inculcação de regras e de práticas que constituiriam e garantiriam a “autenticidade” do folclore. Nesse sentido, o folclore “alemão” praticado no Brasil, em grande medida, pode ser considerado um folclore “institucionalizado”. A ACG pode ser compreendida como uma instituição de pesquisa, documentação, sistematização, promoção e ensino sobre a cultura popular germânica, com ênfase no fenômeno da dança popular. Com o intuito de possibilitar que um conjunto de fontes históricas documentadas e sistematizadas na instituição possa se transformar propriamente em uma prática cultural concreta, disseminada e representativa da cultura germânica no Brasil, isto é, visando à transfiguração de um registro histórico textual TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 271 Lucas Voigt de uma dança em uma práxis – isto é, em uma dança performada –, a ACG promove os cursos de especialização em danças, visando também à promoção de uma concepção específica e legitimada de folclore e de um modus operandi certificado institucionalmente, que garanta a “autenticidade” das danças performadas. Desse modo, a prática do folclore alemão “autêntico” depende de estratégias de formação de uma elite cultural e da inculcação de um modus operandi e de uma práxis específica. As lideranças do folclore formadas na ACG irão representar a entidade e a sua concepção específica de folclore produzida e definida institucionalmente – e transmitida nos cursos de especialização em danças – nos âmbitos regional (isto é, nas associações regionais) e municipal ou local (isto é, nos grupos de dança folclórica). Para a realização dos cursos, a ACG hospeda coordenadores de grupos de dança e dançarinos durante uma semana nas dependências da entidade. A linha mestra dos cursos é atualizar o repertório de danças dos grupos folclóricos, transmitindo as “novas” danças populares germânicas – isto é, danças históricas que possuem registro e documentação, mas que ainda não haviam sido identificadas, catalogadas, decodificadas ou sistematizadas para a performance no contexto brasileiro. O curso é ministrado por um professor estrangeiro, de nacionalidade alemã, austríaca ou suíça. Esse professor é o principal responsável pela definição do repertório das “novas” danças folclóricas germânicas a serem reproduzidas no contexto brasileiro. É de importância central para a formação de especialistas em folclore no Brasil a atuação de experts oriundos do contexto alemão e europeu, notadamente para a legitimidade dos folcloristas brasileiros, que passam a estar ligados a agentes e instituições europeias de legitimação do folclore. Pode-se afirmar que os critérios de autenticidade para o folclore provêm da Europa, por meio de representantes enviados TOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 272 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL por instituições europeias de legitimação do folclore – como a Deutsche Gesellschaft für Volkstanz (DGV), ou “Sociedade Alemã para a Dança Popular”, e a Schweizerische Trachtenvereinigung (STV), ou “Associação Suíça de Trajes” – e, especialmente, com base na importação de subsídios e fontes históricas para a prática do folclore. No caso brasileiro, não se verifica propriamente a importação de um “modelo” ou de “ideias” (cf. Dezalay & Madsen, 2013), mas antes de um modus operandi de praticar folclore estabelecido na Europa. Deve-se ressaltar que os cursos promovidos pela ACG são espaços de especialização em dança folclórica, e não propriamente cursos de formação. Dito de outro modo, trata-se de cursos destinados a folcloristas que já possuem experiência na prática da dança no contexto de grupos folclóricos e que, portanto, possuem conhecimento acerca dos “passos básicos” que compõem o repertório da dança popular germânica, além de possuírem familiaridade com as danças mais conhecidas e difundidas do folclore germânico. Assim, o público dos cursos da ACG se constitui basicamente de coordenadores de grupos de dança folclórica, além de alguns integrantes-dançarinos desses grupos. É bastante comum que tais coordenadores já tenham participado de várias edições dos cursos de especialização. Via de regra, um coordenador de grupos participa anualmente dos cursos. Nos primeiros cursos, o coordenador incorpora o modus operandi de fazer folclore, assimilando as competências e os conhecimentos necessários à garantia da “autenticidade” e fidedignidade do folclore; a participação nos cursos seguintes visa, principalmente, à “atualização do repertório” das danças populares germânicas. A participação de novos dançarinos em tais cursos depende de um processo de recrutamento e seleção. Via de regra, tal recrutamento é realizado pelos coordenadores de grupos folclóricos. Os procedimentos de recrutamento e seleção de dançarinos para a TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 273 Lucas Voigt participação nos cursos da ACG levam em conta o desempenho de um determinado dançarino-integrante no âmbito de atuação dos grupos folclóricos, bem como o “interesse” manifesto por tais dançarinos em relação à cultura alemã. O recrutamento de dançarinos-integrantes para a realização de cursos tem como objetivo a formação de quadros que possam auxiliar o coordenador na condução das atividades nos grupos folclóricos; com a realização de cursos, esses dançarinos adquirem conhecimentos, competência e legitimidade para eventualmente formarem e coordenarem novos grupos. Em certa medida, pode-se compreender a participação contínua do conjunto de especialistas brasileiros em folclore “alemão” nos cursos da ACG como uma peregrinação cultural à cidade de Gramado, realizada anualmente, visando obter formação e acesso a danças certificadas e autenticadas institucionalmente, que legitimam a prática dos coordenadores no âmbito dos grupos folclóricos. Ademais, os cursos de especialização são, em grande medida, uma reunião anual da elite cultural do folclore “alemão” no Brasil. Os coordenadores de grupos folclóricos estabelecem redes de sociabilidade, de interconhecimento e de inter-reconhecimento – isto é, adquirem capital social (cf. Bourdieu, 1998) – por meio da prática do folclore. Desse modo, os cursos anuais servem como uma celebração da prática da dança folclórica, reforçando os laços de amizade entre os folcloristas e, concomitantemente, fortalecendo a concepção do folclore “alemão” que orienta a atuação de tais agentes. Durante os cursos, são distribuídas aos participantes um conjunto de Tanzbeschreibungen – isto é, registros históricos descritivos de danças, no idioma alemão, que eram performadas em territórios germânicos no passado. A maior parte das danças que compõe o repertório de um curso tem a coreografia repassada e ensinada diretamente pelo professor estrangeiro convidado, observando as indicações dos registros das danças. A outra parte do repertório de danças é decodificada pelos próprios folcloTOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 274 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL ristas. A partir da “leitura” das Tanzbeschreibungen, as danças são “tiradas” – nos termos correntes no espaço –, procedimento que possibilita sua performance e execução. Tal procedimento tem como finalidade inculcar um modus operandi de praticar folclore; objetiva-se, assim, ensinar e transmitir não apenas a coreografia de um conjunto específico de danças, mas também os procedimentos para leitura e decodificação de fontes históricas que estruturam e embasam a execução coreográfica de todo o repertório da dança popular germânica. O ponto auge e culminante dos cursos de dança da ACG é a gravação de um registro em vídeo do repertório das danças trabalhadas. O registro em vídeo serve à consulta posterior por parte dos folcloristas. Além disso, esse material é indispensável especialmente aos folcloristas que desconhecem o idioma alemão e, portanto, não conseguem realizar a leitura das Tanzbeschreibungen. Nesse caso, o trabalho de instrução das danças aos grupos folclóricos se baseará tão somente numa mimese do registro em vídeo. O material didático é enviado a todos os grupos folclóricos afiliados à ACG; desse modo, o repertório mais recente de danças populares germânicas circula amplamente no espaço do folclore. Os registros em imagem em movimento possuem uma função extremamente didática, constituindo-se como o principal recurso e suporte para a difusão da prática do folclore alemão “autêntico” no espaço brasileiro. Entretanto, o registro em vídeo é considerado por alguns especialistas em folclore como um “mal necessário”. O objetivo dos cursos de dança da ACG é formar as lideranças do espaço do folclore, inculcando um conjunto de competências e habilidades constitutivas e necessárias a um especialista em folclore. Sobre essa questão, o ex-diretor do Departamento de Danças da ACG, Beno Heumann, afirmou: “[...] a gente tem que criar, eu sou dessa opinião, nós temos que criar lideranças, e não meramente passadores de material”. Nesse sentido, o registro em vídeo das danças é visto com receio por TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 275 Lucas Voigt alguns especialistas em folclore na medida em que torna dispensável a consulta à fonte histórica original, a descrição da dança (Tanzbeschreibung), tornando esse procedimento cada vez menos comum e habitual no espaço do folclore. Assim, os especialistas em folclore têm o receio de que a prática da dança folclórica possa acabar limitando-se a uma mimese dos movimentos registrados em um vídeo, dispensando o trabalho especializado de mediação cultural, que depende de um conjunto de competências e habilidades. Outra instância importante de formação de especialistas em folclore são – no vocabulário interno do espaço – os “repasses”. Promovidos por regionais (ou ligas de folclore), tais eventos visam à multiplicação de espaços de formação e à disseminação do conhecimento e das informações necessárias à sustentação da prática do folclore “alemão” no Brasil. Um repasse é um encontro de coordenadores de grupos e alguns dançarinos mais experientes, em que os folcloristas participantes da edição mais recente do curso promovido pela ACG “repassam” conhecimentos e as danças sistematizadas no curso para os demais coordenadores de grupos de determinada região. Essa prática tem o claro objetivo de garantir a “autenticidade” das danças performadas pelos grupos folclóricos, bem como reproduzir uma concepção e uma prática de folclore gestadas e produzidas institucionalmente, garantindo os critérios de fidedignidade histórica certificados pela ACG. No que tange aos grupos de dança folclórica – as entidades de atuação municipal ou local –, as suas principais atividades constituem-se nos “ensaios” de dança e nas “apresentações” públicas em eventos e festividades. Os ensaios – principal espaço de formação no contexto dos grupos folclóricos – constituem-se como atividades internas do grupo, ocorrendo normalmente uma vez por semana. Durante os ensaios, o coordenador transmite as danças e as coreografias ao conjunto mais amplo de dançarinos-folcloristas, visando garantir a reprodução exata e fidedigna TOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 276 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL das performances, dos passos e das figuras da dança folclórica. Trata-se de danças trabalhadas nos cursos da ACG, repassadas eventualmente em âmbito regional pelas ligas de folclore e, finalmente, trabalhadas e performadas pelos grupos de dança em âmbito municipal e local. Se os cursos de especialização em danças – notadamente os da ACG – e os repasses são os principais espaços de formação dos especialistas em folclore (isto é, de “coordenadores”), os ensaios são os principais espaços de formação do conjunto mais amplo de dançarinos-folcloristas (isto é, os “integrantes”). Além disso, os ensaios, conjuntamente aos repasses e às apresentações, constituem-se como os principais espaços de recrutamento de folcloristas para a realização de cursos de especialização e, de modo correlato, para – eventualmente – comporem a elite cultural folclorista. Desse modo, os espaços de formação – ensaios, repasses e cursos – são simultaneamente espaços de recrutamento de dançarinos, que poderão ascender a posições dominantes em grupos folclóricos, associações culturais, ligas e/ou associações regionais e entidades de abrangência estadual e/ou nacional, trajetória que depende da incorporação e da reprodução do modus operandi de fazer folclore e da lógica dominante vigente no espaço do folclore por parte dos folcloristas. Dito de outro modo, as estratégias de formação – e a correlata incorporação do modus operandi de praticar folclore por parte de dançarinos – são condições necessárias à composição e à reprodução da elite cultural do folclore. Pode-se argumentar, por fim, que no tocante à transmissão cultural da dança no espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil, podemos constatar a existência de estratégias bem-sucedidas de formação de folcloristas e de reprodução de danças certificadas e autenticadas, processo que, em última instância, garante a realização das estratégias de legitimação e de simbolização da elite cultural folclorista. TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 277 Lucas Voigt Mediação cultural e legitimação no espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil As formulações clássicas sobre o problema da mediação desenvolveram-se no âmbito da antropologia política, em contexto anglófono, especialmente a partir das décadas de 1950 e 1960 (Silverman, 1967; Wolf, 1971 [1956]; Weingrod, 1968). Conforme argumenta Silverman (1967), com a reorientação da antropologia para o estudo das chamadas sociedades complexas, a mediação surge como um conceito essencial à compreensão da relação entre as partes (sistemas locais) e o todo (sistema nacional). Em tal enfoque relacional, os mediadores (ou brokers) são compreendidos como indivíduos localizados em posições intermediárias e estratégicas, operando a interligação entre sistemas locais e sociedade englobante, isto é, entre comunidades orientadas ao local e instituições e códigos orientados à nação. As discussões clássicas sobre a mediação, que tomam por objeto empírico contextos nacionais de países do Mediterrâneo, como a Itália (Silverman, 1967), e da América Latina, como o México (Wolf, 1971), possuem afinidades temáticas com o estudo de comunidades rurais e do campesinato, na medida em que tais universos se configuram precisamente como os contextos e agentes que dependiam do trabalho de mediação para a sua interligação com os sistemas e códigos nacionais. Ademais, os estudos sobre mediação desdobraram-se em reflexões sobre o fenômeno da patronagem, forma clássica de mediação, constituída como uma relação assimétrica e personalista em que um “patrão” – inserido em redes de relações que extrapolam o contexto local – oferece favores e proteção a um “cliente” localmente orientado, em troca de lealdade (Weingrod, 1968; Silverman, 1967). É interessante pontuar que, em algumas das formulações clássicas sobre o problema da mediação, subjaz a suposição de que com o crescente processo de industrialização, modernização e integração social das comunidades locais à nação, o fenômeno TOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 278 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL da mediação e o papel do mediador paulatinamente tenderiam a desaparecer (Silverman, 1967, p. 292). Tal constatação não se comprovou historicamente, haja vista, por exemplo, o papel-chave de mediadores para a importação de modelos e códigos entre distintos contextos nacionais (Dezalay & Madsen, 2013), bem como a atuação de mediadores para o fluxo de recursos materiais e simbólicos entre as distintas esferas sociais cada vez mais autonomizadas. Em estudo histórico acerca das elites intelectuais de Cabo Verde – agentes posicionados também em postos burocráticos e políticos –, Anjos (2003) analisa o trabalho de mediação política e cultural executado por tais agentes. De acordo com o autor, antes da independência do país, em 1975, as elites intelectuais, que dominavam os códigos culturais e o saber ocidental, operavam uma mediação entre o poder colonial e a sociedade local. Após a independência, as elites intelectuais cabo-verdianas continuam a exercer um papel determinante de mediação, desta vez entre o sistema internacional e a sociedade nacional. Na visão das elites autóctones, Cabo Verde seria dependente do auxílio e de subsídios estrangeiros para a sua sobrevivência; é nesse espaço que se realiza a mediação, que depende do domínio dos códigos ocidentais (Anjos, 2003). No contexto brasileiro, além de ter sido amplamente utilizada para o estudo de elites políticas, isto é, para a análise dos mediadores (brokers) entre os recursos do Estado e as bases sociais e eleitorais – vide, por exemplo, os trabalhos clássicos de Coradini (2001) e Bezerra (1999) –, a noção de mediação tem servido também à análise de fenômenos da esfera da produção cultural. Em estudo sobre elites intelectuais eclesiásticas vinculadas à Igreja Católica do Rio Grande do Sul, Seidl (2007) analisa agentes especialistas na “cultura” e na “história” da imigração e colonização alemã, mediadores culturais inseridos em diversas esferas sociais – como a religiosa, a acadêmica e a intelectual. Segundo o TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 279 Lucas Voigt autor, de modo semelhante ao que ocorre na mediação política, a mediação cultural contribui para o fluxo de recursos materiais e simbólicos entre os diversos espaços sociais. O conceito de mediação possibilita a reflexão sobre a atuação e as relações estabelecidas entre os agentes do espaço do folclore. Os mediadores ocupam uma posição nevrálgica no espaço do folclore, atuando – para empregarmos as expressões de Wolf (1971, p. 65) –, como guardiões das “junções cruciais” e das “sinapses de relações” nesse espaço. Em certa medida, podemos conceber os especialistas em folclore formados pela ACG como brokers entre os recursos simbólicos provenientes da Europa e as “bases” compostas por folcloristas; além disso, tais agentes operam como mediadores culturais entre os grupos folclóricos e as instituições de legitimação do folclore “autêntico”. Do mesmo modo, instituições como a ACG realizam uma mediação cultural entre, de um lado, as fontes históricas para a prática do folclore e os especialistas provenientes da Europa e, de outro, os folcloristas brasileiros. Ao reconstituirmos a estrutura do espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil, constatamos a existência de variadas instâncias de mediação cultural, que têm como finalidade última realizar uma mediação entre as fontes históricas que sustentam a prática do folclore germânico e o conjunto de folcloristas e dançarinos brasileiros. Dito de outra forma, por meio do trabalho de mediação cultural realizado pelas mais variadas instituições e agentes, realiza-se principalmente uma mediação entre as fontes históricas que dão sustentação à prática da dança popular de origem germânica e o espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil. A ACG realiza um trabalho de mediação cultural entre, de um lado, especialistas europeus em folclore (que ministram os cursos promovidos pela entidade) e as fontes folclóricas históricas de origem germânica e, de outro, os coordenadores de grupos folclóricos no Brasil. Por meio da formação dos coordenadores dos grupos folclóricos, a ACG intermedeia as fontes que dão sustenTOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 280 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL tação à prática das danças populares germânicas e os grupos de dança folclórica “alemã” no Brasil. Os coordenadores, por sua vez, intermedeiam a relação entre o conjunto mais amplo de dançarinos e de grupos de dança e as instituições promotoras e legitimadoras do folclore, intermediando, ao mesmo tempo, o acesso às fontes históricas que garantem a “autenticidade” e a legitimidade do folclore. Entre os grupos de dança e a ACG, verificamos ainda a existência de outras instâncias de mediação, as associações regionais (ou ligas de folclore), que realizam um trabalho de mediação cultural entre, de um lado, os grupos folclóricos com escopo de atuação municipal e, de outro, a principal entidade promotora do folclore “alemão” no Brasil, garantindo igualmente o acesso às referências históricas que embasam a execução e a performance das danças populares germânicas no contexto brasileiro. Nesse sentido, podemos indicar um duplo caráter do fenômeno da mediação cultural, de natureza simbólica e política: a mediação cultural é o lugar político da dominação simbólica, isto é, o espaço da mediação é o lócus da dominação na esfera da cultura, em que se definem critérios de “autenticidade” e onde se inscrevem os atributos legítimos de determinada prática cultural. Em análise sobre a cultura e o patrimônio no Maranhão, Reis (2010) define a mediação cultural como o processo de produção de conhecimento e de produção de normas, isto é, de decodificação do mundo (descrição) e de recodificação (prescrição). Desse modo, os mediadores circunscrevem as fronteiras de um lugar singular de inscrição, contribuindo para a afirmação do que lhe é específico. Os mediadores definem aquilo que deve ser preservado, aquilo que é “autêntico”. No que tange à prática do folclore “alemão” no Brasil, podemos compreender a mediação cultural executada pela elite cultural folclorista como um trabalho que consiste na decodificação de fontes históricas sobre danças (Tanzbeschreibungen) e de registros visuais e iconográficos sobre trajes (Trachten) e, simultaneTOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 281 Lucas Voigt amente, na prescrição de códigos e condutas que visam garantir a “autenticidade” do folclore, por meio da reprodução de fontes históricas do modo mais fiel e fidedigno possível. De tal modo, no espaço do folclore “alemão”, a mediação cultural depende de um trabalho especializado de leitura e de pesquisa histórica acerca de danças e trajes folclóricos, destinado à garantia dos padrões de “autenticidade” e de fidedignidade das práticas, através da reprodução de fontes históricas, o que garante o aspecto de tradicionalidade e de invariabilidade das danças e dos trajes. Na concepção dóxica do espaço do folclore, uma dança folclórica alemã “autêntica” é aquela que reproduz, do modo mais fiel possível, uma Tanzbeschreibung. Uma Tanzbeschreibung, como o próprio termo sugere, é uma descrição textual que registra detalhadamente as “sequências” de uma dança (Tanzfolgen), bem como as “figuras” (Tanzfiguren) e os “passos” (Tanzschritten) que compõem uma dança popular de origem germânica. Com base nas Tanzbeschreibungen, que contêm descrições sistemáticas das figuras, dos movimentos e da execução das danças, os especialistas em folclore executam seu trabalho de mediação cultural, definindo e legitimando a “autenticidade” no folclore. As Tanzbeschreibungen foram produzidas, em sua maioria, no século XIX e início do século XX, tomando como referência um período histórico anterior, que compreende os séculos XVI a XVIII, período em que (cf. Burke, 2010) verificou-se a “descoberta do povo” e da cultura popular na Europa, no início da Idade Moderna. Apesar dos registros folclóricos remontarem a períodos historicamente longínquos, tais fontes estão compiladas em obras com datação relativamente recente, quase todas publicadas a partir da segunda metade do século XX. Tais livros compõem acervos e coleções pessoais e institucionais de bibliotecas de folclore – o maior deles localizado na ACG. Para os especialistas em folclore, tais livros – obras folclóricas, compêndios da cultura e do conhecimento “populares” – servem, em última instância, como repositórios para pesquisa. TOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 282 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL Nesse sentido, pode-se argumentar que a “autenticidade” se fundamenta na história, na antiguidade e na ancestralidade do folclore. Os registros de danças e trajes, levantados por meio de pesquisa histórica, constituem-se como as principais fontes de legitimidade para essa prática cultural. Desse modo, a legitimação do caráter tradicional do folclore se baseia na invariabilidade e na reprodução fidedigna de danças e de indumentárias, tomando a Alemanha e demais territórios germânicos como referências. Em outras palavras, a autenticidade do folclore se baseia em critérios simbólicos, de natureza eminentemente histórica. Em suma, com base na pesquisa em um conjunto de referências históricas que representa e constitui o folclore alemão “autêntico”, os especialistas em folclore exercem seu papel de mediação cultural, interpretando e decodificando tais fontes históricas, o que possibilita que um conjunto amplo de dançarinos e grupos folclóricos execute no presente performances que reconstituam as danças populares praticadas na Alemanha e demais territórios germânicos, em períodos históricos delimitados. Assim, tais fontes históricas são mobilizadas para legitimar a prática do folclore “alemão” no Brasil, legitimando também uma concepção específica de folclore promovida pela elite cultural folclorista, orientada segundo os princípios da “autenticidade”, da antiguidade e do valor histórico. Perfil, trajetórias e trunfos sociais da elite cultural do folclore “alemão” O quadro de caracteres pertinentes7 a um conjunto de membros da elite cultural folclorista “alemã” no Brasil, apresentado 7 Para apontamentos teórico-metodológicos sobre essa ferramenta de pesquisa, ver Bourdieu (2010, p. 23-34); para uma aplicação empírica, consultar Miceli (1977, p. 1819). A construção do quadro dependeu da realização de uma prosopografia (ou biografia coletiva). Para apontamentos sobre tal abordagem, ver Stone (2011); para estudos que empregam a prosopografia ver, p.ex., Love & Barickman (2006) e Canêdo (2013). TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 283 Lucas Voigt a seguir, congrega um conjunto de informações acerca do perfil social de alguns dos especialistas em folclore que entrevistei, tendo efeito demonstrativo da morfologia e da lógica do espaço do folclore, bem como dos principais caracteres de origem social, trajetória (cf. Bourdieu, 2006), trunfos sociais e posição ocupada no espaço por tais folcloristas, caracteres constitutivos e necessários à composição da elite cultural do folclore “alemão” no Brasil. Tal quadro serve à análise e à explicitação das principais constatações sociológicas acerca das estruturas sociais que constituem o espaço de práticas do folclore “alemão”, especialmente no que tange à trajetória social e aos recursos e capitais disponíveis e constitutivos dos agentes sociais que integram a elite do folclore. Enquanto um agrupamento de agentes responsável pela execução de um trabalho cultural especializado, a elite cultural do folclore constitui-se como um corpo de especialistas dotado de trunfos sociais, de saberes e de uma expertise singulares, específicos e diferenciais, necessários ao seu trabalho de mediação cultural. Em outras palavras, os especialistas em folclore constituem-se como um grupo de agentes possuidor de um volume de capitais que possibilita a tomada de posições destacadas no espaço do folclore e, por consequência, a formação e a composição de uma elite cultural. Tendo por base o quadro de caracteres sociais pertinentes a um conjunto de membros da elite cultural folclorista, procedo a uma análise e síntese dos principais caracteres sociais relacionados aos especialistas em folclore, sua biografia social e os capitais disponíveis e adquiridos com a prática do folclore. Os membros da elite cultural folclorista, via de regra, nasceram e têm uma biografia social desenvolvida em municípios da região Sul do Brasil, caracterizados pelo processo de colonização alemã ou de origem germânica. Ainda que as localidades de residência e de atuação cotidiana dos especialistas em folclore sejam bastante heterogêneas – considere-se, por exemplo, as diTOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 284 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL Quadro 1: Caracteres pertinentes a um conjunto de membros da elite cultural do folclore “alemão” no Brasil. (3) 21/ 09/ 1971 Goiás (GO) Blumenau (SC) (5) Superior (turismo e lazer) Pai marce- Ensino neiro, mãe médio. do lar. Mãe Diploma possuía profisenvolvisional mento em (eduatividades cação da Igreja física) Luterana (IECLB) Avós e tios imigrantes 31 /05 /1961 Trombudo Central (SC) Trombudo Central (SC) Profissão dos pais (3) Antepassados (2) Nascimento (1) Böelling, Ingrid Sim Escola- Domíridade nio da língua alemã SupeNão. rior Do(artes, mina bacha- parte rel em do voteatro) cabulário alemão utilizado no folclore Pai missionário da IECLB, músico e promotor de atividades ligadas à cultura e folclore “alemão” Superior (educação artística, ênfase em música) Pai alemão 13/ 05/ 1944 Erechim (RS) Nova Petrópolis (RS) (6) Sim Pais comerciantes. Sem envolvimento com cultura ou folclore “alemão” Tataravós imigrantes 06/ 08/ 1980 Jaraguá do Sul (SC) Joinville (SC) Folclorista* Correia, Cassio Heumann, Beno (4) Pai operário. Mãe possuía envolvimento em atividades de música na igreja Heptavô alemão (2) Batista, Ernandes (1)* Sim (7) (8) (9) Morou na Participou Coordenador Alemanha de vários de grupo; por dois cursos presidente da anos, a da ACG. Associação dos trabalho Passou Grupos Folclórirecentecos do Médio mente a Vale do Itajaí organizar e (AFG) (SC) coordenar cursos Não Participou Coordenadora de vários de grupos; excursos -presidente da da ACG. Liga do Folclore Organizou do Alto Vale repasses de do Itajaí (SC); danças ex-membra da diretoria da ACG Viagens (4) Não (10) (11) Analista de Não comércio exterior. Sem relação com o folclore Funcionária pública municipal, com cargo de instrutora de dança (foco em folclore “alemão”) Não Partici- Coordenação de Profissão / (7) pação / grupos folclóricoordenacos (6) ção (5) Produção escrita (8) Não Participou de vários cursos da ACG. Ministrou oficinas sobre teatro em cursos da ACG Ex-coordenador de grupos; ex-presidente da Liga de Grupos Folclóricos do Vale do Itapocu (SC) Várias es- Realizou Organizador tadas no curso de / fundador exterior. “folclode grupos; Morou na re” na fundador e exAlema- Alemanha. -diretor do Denha, para Organiza- partamento de realiza- dor e coor- Danças da ACG; ção de denador de ex-diretor-geral curso de cursos da ACG, por um formação breve período relaciode tempo nado à cultura alemã Produtor cultural e ator. Atuação na esfera do teatro (presidente de entidades da classe artística). Atuação como professor de artes do Colégio Evangélico Jaraguá (SC), onde trabalhava com dança folclórica. Atualmente possui pouco envolvimento com grupos folclóricos Aposentado. Sim Foi funcionário contratado da ACG (direção do Departamento de Danças) (1) Folclorista (2) Nascimento / naturalidade / residência (3) Antepassados de origem germânica (4) Profissão dos pais/ Envolvimento da família com cultura ou folclore “alemão” (5) Escolaridade (6) Domínio da língua alemã (7) Viagens ou estadas na Alemanha / Europa (8) Participação / coordenação em cursos de especialização em folclore(9) Coordenação de grupos folclóricos/ Membro de instituição de folclore (presidência, diretoria) (10) Profissão /Profissionalização relacionada ao folclore (11) Produção escrita sobre folclore “alemão” *Todos os sujeitos de pesquisa autorizaram a identificação dos seus nomes próprios. (Fonte: entrevistas). TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 285 Lucas Voigt Quadro 1: Caracteres pertinentes a um conjunto de membros da elite cultural do folclore “alemão” no Brasil. Continua (2) (3) (5) Ensino médio (6) Sim Avô presidente da Federação 25 de Julho, fundador da ACG, professor ligado à IECLB. Pai diretor da ACG, professor ligado à IECLB. Mãe professora Pai presidente da Federação 25 de Julho, fundador da ACG, professor ligado à IECLB. Mãe do lar, “secretária” do marido Pai e mãe comerciantes. Sócios do Centro Cultural 25 de Julho de Porto Alegre Ensino médio Sim Ensino normal (habilitação como professor catequista) Sim Superior (bacharel em publicidade, licenciado em história). Pós-graduação (mestre em comunicação) Sim 18/04/1981 Porto Alegre (RS) Porto Alegre (RS) Bisavós imigrantes Não se aplica 13/03/1942 Alemanha Gramado (RS) Pai alemão 22/12/1975 Gramado (RS) Gramado (RS) Kleine, Dieter Kleine, Gerhard Simões, Denis (4) Pai artesão e dono de funerária. Mãe do lar. Pai foi presidente de comunidade luterana Avô imigrante 24 /04 /1948 Giruá (RS) Nova Petrópolis (RS) Heumann, Eredi (Frau) (1)* (7) Várias estadas no exterior. Viagens relacionadas à sua atuação com folclore (ênfase em trajes folclóricos) Estadas para formação relacionada à atuação com folclore (8) Atuação em cursos da ACG, com atividades voltadas à questão dos trajes folclóricos Não se aplica Organizador de cursos (9) Atuação conjuntamente a seu marido na direção-geral da ACG, por um breve período de tempo (10) (11) Proprietária Não e diretora de “Pesquisa e Desenvolvimento” do maior ateliê de confecção de trajes folclóricos no Brasil (Trachtenhaus) Organiza- Ex-coordenador Diretor-geral dor e coorde grupos; da ACG denador de diretor do Decursos partamento de Danças da ACG; diretor-geral da ACG Não Ex-diretor-geral Aposentado. Sim da ACG, durante Foi diretortrês décadas -geral da ACG e professor Viagens Participou Coordenador de e estadas de vários grupo; membro relaciona- cursos da da diretoria da das à sua ACG ACG; presidente atuação do Centro com Cultural 25 de folclore Julho de Porto Alegre Professor Sim universitário. Atuação profissional sem relação com o folclore (1) Folclorista (2) Nascimento / naturalidade / residência (3) Antepassados de origem germânica (4) Profissão dos pais/ Envolvimento da família com cultura ou folclore “alemão” (5) Escolaridade (6) Domínio da língua alemã (7) Viagens ou estadas na Alemanha / Europa (8) Participação / coordenação em cursos de especialização em folclore(9)Coordenação de grupos folclóricos/ Membro de instituição de folclore (presidência, diretoria) (10) Profissão /Profissionalização relacionada ao folclore (11) Produção escrita sobre folclore “alemão” *Todos os sujeitos de pesquisa autorizaram a identificação dos seus nomes próprios. (Fonte: entrevistas). TOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 286 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL ferenças evidentes de porte e em termos de intensidade de atividades culturais entre, de um lado, municípios extremamente pequenos, como Trombudo Central e Giruá e, de outro, grandes cidades como Joinville e Porto Alegre –, a inserção e as tomadas de posição no espaço do folclore constituem-se, de certo modo, como “caminhos que levam” a Gramado, local que opera como uma espécie de centro de poder do espaço do folclore, isto é, os especialistas em folclore dirigem-se até a cidade de Gramado para a realização de cursos de especialização, normalmente uma vez ao ano, acessando o repertório mais recente de danças folclóricas certificadas e autenticadas institucionalmente. Posteriormente, tais danças são repassadas pelos mediadores aos níveis regional (ligas de folclore) e local (grupos folclóricos), sendo performadas também em eventos cívicos e comunitários no próprio município de atuação do grupo folclórico, bem como em eventos folclóricos que reúnem grupos de diferentes cidades e regiões. Com a antiguidade no espaço do folclore e a aquisição de capital de relações sociais, coordenadores eventualmente ascendem a posições de diretoria de regionais de folclore – compreendidas como braços regionais da ACG – e até mesmo à diretoria colegiada da Casa da Juventude. Nesse processo, realizam-se as intermediações e a garantia de “autenticidade” das danças no espaço de relações do folclore “alemão” no Brasil. Os especialistas em folclore possuem, geralmente, ascendência alemã – seja bastante próxima (uma ou duas gerações), seja mais longínqua (mais de quatro gerações). No que tange à origem familiar, a maior parte dos especialistas herdou uma experiência e familiaridade com práticas culturais desenvolvidas no contexto familiar – seja propriamente “folclóricas”, seja atividades culturais mais genéricas, notadamente aquelas desenvolvidas na esfera religiosa. O capital familiar mostra-se um recurso importante no espaço do folclore, especialmente se levarmos em conta a realidade constatada na principal instituição do espaço: a ACG, desde sua fundação, foi dirigida por três gerações da mesma família. Ademais, o capital de relações TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 287 Lucas Voigt familiares mostra-se importante para a inserção e a atuação no espaço do folclore. Os especialistas em folclore, via de regra, possuem domínio do idioma alemão. A aprendizagem da língua alemã se deu, principalmente, no meio familiar, sendo incorporada normalmente durante a infância – constituindo-se como mais um dos trunfos sociais herdados por tais agentes. Outro elemento, relacionado ao capital linguístico, é a circulação internacional desses agentes – muitas vezes com relação direta à atuação no folclore –, direcionada especialmente a países de língua alemã. O capital linguístico é um recurso central à prática do folclore, necessário e indispensável à leitura em primeira mão das fontes históricas que dão sustentação ao folclore, produzidas e registradas no idioma alemão. Muito embora, como foi argumentado, seja possível executar o folclore “alemão” com base em uma mimese de registros produzidos em imagem em movimento – o que dispensa o domínio linguístico –, os especialistas em folclore – isto é, os agentes que ocupam as principais posições no espaço e que compõem a elite cultural folclorista – têm domínio do idioma alemão, possuindo competência para a decodificação de registros históricos folclóricos em primeira mão, trabalho de mediação cultural que, ademais, está na base do procedimento de produção de registros em vídeo das danças. Destaca-se, em termos de origem social e trajetória, o fato dos agentes que constituíram e estruturaram o espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil possuírem relações estreitas com a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Os principais agentes fundadores de instituições do folclore provêm do contexto religioso; ademais, boa parte dos agentes recrutados para atuação em tais entidades possuía vínculos com a religião de confissão luterana (cf. Voigt, 2019). Alguns agentes obtiveram inclusive possibilidades de formação escolar e circuTOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 288 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL lação internacional proporcionadas por entidades vinculadas à Igreja Luterana. Nos dias atuais, com a perda da centralidade e quase exclusividade das instituições religiosas na promoção das atividades de cunho simbólico e cultural no contexto das comunidades de origem alemã no Sul do Brasil, verifica-se um processo de recrutamento em marcos “seculares”, isto é, atualmente as ligações com a Igreja Luterana têm menor importância para o recrutamento de agentes para o espaço do folclore. Ademais, apesar de algumas entidades vinculadas à Igreja Luterana – tais como escolas e comunidades evangélicas municipais – manterem o investimento na promoção e no fomento da prática do folclore, pode-se afirmar que atualmente o folclore “alemão” no Brasil está relativamente autonomizado em relação à esfera religiosa, que perde centralidade no que tange à estruturação das práticas culturais – e dos valores subjacentes a tais práticas – desenvolvidas no espaço do folclore. No que tange à formação escolar, os agentes usualmente possuem diploma superior – nas mais diversas áreas, seja nas “humanidades” e nas “artes”, seja em áreas de formação sem relação mais próxima com o universo da cultura –, alguns chegando à pós-graduação. Do quadro apresentado – que toma por base alguns dos especialistas em folclore –, depreende-se que o ensino médio predomina entre as mulheres, realidade que não se verifica na totalidade do espaço, na medida em que há predominância do ensino superior entre os especialistas em folclore – especialmente se considerarmos as gerações mais jovens –, não havendo diferenças significativas entre homens e mulheres. É nos agentes com diploma superior que predomina a produção escrita relacionada ao folclore, especialmente entre aqueles com diploma em história. Todavia, a produção escrita no espaço do folclore “alemão” no Brasil é, de modo geral, bastante restrita, assertiva que pode ser demonstrada no fato da produção escrita TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 289 Lucas Voigt sobre folclore “alemão” – tomando como referência os membros da elite cultural folclorista, isto é, os agentes com maior investimento em especialização e que ocupam posições diretivas no espaço –, não se configurar como uma prática difundida e predominante. Deve-se ressaltar que os agentes com investimento no espaço do folclore se conhecem e inter-reconhecem, sendo o capital de relações sociais um elemento importante para o recrutamento e a participação em cursos de especialização – isto é, para a entrada no meio dos especialistas em folclore –, para o recebimento de convites para apresentações e encontros folclóricos, bem como para a inserção e ascensão na hierarquia das instituições promotoras de folclore. Assim, pode-se afirmar que os agentes que compõem a elite cultural do folclore “alemão” possuem boas redes de relações sociais, formadas no trabalho com o folclore e que amplificam as possibilidades e modalidades de atuação no espaço. São elementos característicos das tomadas de posição de agentes que integram a elite cultural folclorista: a participação em cursos de especialização, a coordenação de grupos e a participação diretiva em instituições legitimadoras do folclore – de âmbito regional e nacional. Um especialista em folclore, via de regra, participou de vários cursos de especialização em danças folclóricas ou atuou na organização de tais cursos; tal formação possibilita a ascensão à posição de coordenador de grupos e, posteriormente, a participação na direção ou a própria presidência de instituições legitimadoras do folclore – como as associações regionais de folclore e a Casa da Juventude. Nesse sentido, integrar a elite cultural do folclore é um processo que demanda anos de investimento – normalmente décadas –, processo por meio do qual o agente passa a ser conhecido e reconhecido pelos pares, incorpora o modus operandi do folclore “alemão” no Brasil, amplia o conhecimento no que tange ao repertório de danças folclóricas e adquire experiência na prática folclórica. TOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 290 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL É válido ponderarmos sobre o peso relativo dos distintos capitais, recursos e trunfos sociais para o acesso ao meio do folclore e para a composição da elite cultural folclorista. O sociólogo das elites deve estar atento às eventuais – e frequentes – relações entre grupos familiares, instituições e carreiras. No espaço do folclore, os laços familiares parecem constituir um recurso de primeira ordem para a gestação de disposições culturais nos agentes, para a ascensão a instituições e posições destacadas no espaço, bem como para o reconhecimento pelos pares. Tal assertiva se comprova no fato de três gerações da mesma família atuarem na direção da principal instituição do espaço e, igualmente, na constatação de que outro grupo familiar ocupa a principal posição na atividade de confecção de trajes folclóricos8. Outros dois recursos da maior importância, que se configuram de modo inter-relacionado, são a antiguidade no folclore e o capital social, isto é, o capital social é um recurso crucial para as trajetórias dos agentes no espaço, sendo tanto maior quanto mais antiga é a inserção do agente no espaço, com a participação em cursos de formação, a coordenação de grupos folclóricos e a participação em eventos folclóricos. O capital linguístico se afigura como outro trunfo essencial, na medida em que é indispensável ao trabalho de decodificação em primeira mão dos registros históricos. Ademais, os folcloristas com domínio do alemão são chamados a auxiliarem o professor estrangeiro no repasse das danças durante os cursos; isso possibilita reconhecimento, além da aproximação e da possibilidade de diálogo direto e frequente com o professor, o que leva, em alguns casos, até mesmo à execução de uma função de mediação entre o professor estrangeiro convidado e os demais participantes de um curso. A circulação internacional, por outro lado, pode ser compreendida mais como uma consequência ou fator relacionado à atua- 8 Para uma análise detalhada das relações entre grupos familiares e a prática do folclore “alemão” no Brasil, ver Voigt (2020). TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 291 Lucas Voigt ção com folclore do que como um trunfo de primeira ordem na composição da elite folclorista, isto é, mesmo nos casos em que a circulação internacional se direciona à realização de cursos em folclore – e não ao turismo ou aquisição de experiências culturais genéricas –, os cursos no exterior não diferem do formato adotado pelos cursos realizados no Brasil – a saber, reunião de dançarinos e repasse de danças com bases em registros textuais. Por fim, no que tange ao fenômeno da profissionalização, deve-se salientar que se trata de uma possibilidade bastante restrita no espaço do folclore “alemão” no Brasil. Tem efeito comprobatório de tal assertiva o fato de, dentre os oito agentes elencados no quadro de membros da elite cultural folclorista, apenas cinco terem se profissionalizado em atividades ligadas à prática do folclore. Na medida em que os agentes elencados ocupam algumas das principais posições na hierarquia do espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil e, constatando que nem todos se profissionalizaram através do folclore, podemos vislumbrar as oportunidades limitadas de profissionalização para o conjunto mais amplo de agentes que integram o espaço do folclore “alemão” no Brasil9. A única atividade em que a profissionalização se apresenta como regra diz respeito à confecção de trajes folclóricos, embora os agentes que investem em tal prática representem um contingente pouco expressivo, se considerarmos a totalidade de agentes que integram o espaço do folclore – foi possível obter menções a apenas cinco ateliês de confecção de trajes folclóricos no país. Desse modo, o folclore se constitui como uma atividade ocupacional paralela às ocupações profissionais dos agentes – sendo realizado no tempo vago, durante fins de semana ou em horários de folga. Na visão e no vocabulário internos do espaço, os agen- 9 Sugestivo, nesse contexto, é o caso de um entrevistado que acabou desengajando-se com o folclore, realizando a sua profissionalização na esfera da cultura através do engajamento com a prática do teatro. TOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 292 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL tes justificam o investimento no folclore salientando o “amor” e a “paixão” pela cultura alemã, além de apontarem a importância do trabalho cultural realizado em termos de oferta cultural destinada a comunidades de descendentes de alemães, com ênfase à juventude. Por esse caminho, em termos de retribuição ou gratificação à prática do folclore, podemos constatar um peso pouco importante à retribuição profissional e econômica – que se estende a um número limitado de agentes –, e um peso enorme em termos de retribuição simbólica – os especialistas em folclore seriam reconhecidos como representantes de uma etnicidade e constituiriam a autoridade de uma prática cultural, adquirindo visibilidade em suas respectivas comunidades por meio desse trabalho cultural – e de retribuição psicológica – considerando o papel do folclore para a construção da autoimagem identitária teuto-brasileira (cf. Voigt, 2008) por parte dos folcloristas. O capital de relações sociais adquirido com o investimento no folclore, bem como as viagens, os eventos e os espaços de sociabilidade e de lazer acessados por meio de folclore parecem, no mesmo sentido, retribuições não desprezíveis para o engajamento dos folcloristas. Considerações finais: as estratégias de simbolização da elite folclorista Deve-se salientar que o conjunto de especialistas em folclore pode ser caracterizado enquanto uma elite, quando consideramos a estrutura e a hierarquia interna do espaço do folclore – isto é, tais agentes ocupam uma posição estruturalmente dominante em tal microcosmo social. Desse modo, “elite folclorista” não pode ser compreendida no sentido de uma posição de classe. A confusão entre tais definições é o principal fator explicativo para a estranheza e a rejeição à própria noção de elite cultural no espaço do folclore – isto é, para o fato dos especialistas em TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 293 Lucas Voigt folclore não se conceberem enquanto uma “elite” ou “grupo dominante” (cf. Voigt, 2021). O termo elite, no sentido empregado nesta pesquisa, não denota uma posição definida em função do volume de capital econômico disponível aos especialistas em folclore, mas define a posição estrutural ocupada por tais agentes no espaço do folclore: os especialistas em folclore ocupam as principais posições em entidades legitimadoras do folclore, possuem um conjunto de habilidades e competências culturais especializadas e diferenciais e realizam – por meio da tomada de posições estruturalmente definidas e dominantes – o trabalho de mediação cultural – e, simultaneamente, de dominação simbólica – responsável pela legitimação de um folclore “alemão” no Brasil, garantindo sua “autenticidade” e fidedignidade histórica. Na qualidade de uma elite cultural, isto é, enquanto um conjunto de agentes que ocupa uma posição estruturalmente dominante em um microcosmo social e que executa um trabalho de mediação cultural – que define o espaço da dominação no âmbito da cultura, isto é, que representa o lócus político da dominação simbólica –, os especialistas em folclore desenvolvem estratégias de simbolização para as suas práticas culturais, que são definidas estruturalmente. No espaço de práticas do folclore “alemão” no Brasil, a simbolização levada a cabo pelos folcloristas pode ser descrita nos seguintes termos: (1) a execução de um folclore orientado segundo critérios de “autenticidade” e fidedignidade histórica depende da reprodução tanto mais fiel quanto possível de registros textuais e iconográficos de práticas da cultura germânica do passado; (2) desse modo, a prática da dança e a utilização de indumentárias típicas, historicamente embasadas, têm por objetivo a reprodução de práticas do passado; (3) tais práticas têm por finalidade última o estabelecimento de laços e vínculos entre grupos folclóricos brasileiros e a Alemanha, através da associação entre uma heranTOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 294 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL ça dos antepassados imigrantes, resgatada e cultivada, e as práticas folclóricas germânicas, retomadas e executadas no presente; (4) tal esforço de identificação e de construção de laços com a Alemanha depende de um trabalho especializado de pesquisa em fontes produzidas no contexto alemão e europeu, ainda que a narrativa dominante no espaço aponte que a prática do folclore esteja embasada em um trabalho de “resgate” cultural da herança dos antepassados imigrantes – a quem as práticas folclóricas só podem ser vinculadas ex post facto, se considerarmos que o folclore como é concebido atualmente não é uma herança direta do processo de imigração e de colonização; (5) tal constatação implica, inequivocamente, que a estratégia de simbolização do folclore é um processo permeado pelo que se compreende como “invenção das tradições”; (6) o trabalho cultural do folclore produz, em última instância, uma identificação e um esforço contemporâneo de inserção na cultura germânica e na história comum da Alemanha, estando as estratégias de simbolização diretamente imbricadas na construção da autoimagem e dos sentidos identitários10 dos descendentes de alemães folcloristas no Brasil (cf. Voigt, 2018b). Assim, a estratégia de simbolização vigente e dominante no espaço do folclore encara as danças e os trajes folclóricos como símbolos da história do processo de imigração e de colonização alemã no Brasil, e como símbolos de pertencimento cultural e étnico à “germanidade”, experiência desenvolvida pelos grupos folclóricos nos marcos do que se convencionou chamar de teuto-brasilidade. 10 Para uma análise da construção da autoimagem identitária de descendentes de alemães, a partir da chave da memória, ver Voigt (2017). TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 295 Lucas Voigt Referências Anjos, José Carlos G. Elites intelectuais e a conformação da identidade nacional em Cabo Verde. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, a. 25, n. 3, 2003, p. 579-606. Bezerra, Marcos O. Em nome das “bases”: política, favor e dependência pessoal. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. Bourdieu, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007. Bourdieu, Pierre. A ilusão biográfica. In: Ferreira, Marieta M.; Amado, Janaina (Orgs.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 183-191. Bourdieu, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Bourdieu, Pierre. Estratégias de reprodução e modos de dominação. Repocs, São Luís, v. 17, n. 33, jan./jul. 2020, p. 21-35. Bourdieu, Pierre. O capital social – notas provisórias. In: Nogueira, Maria A.; Catani, Afrânio (Orgs.). Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 6569. Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. Burke, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Canêdo, Letícia B. Herdeiros, militantes, cientistas políticos: socialização e politização dos grupos dirigentes no Brasil (1964-2010). In: Canêdo, Letícia B.; Tomizaki, Kimi; Garcia Jr., Afrânio R. (Orgs.). Estratégias educativas das elites brasileiras na era da globalização. São Paulo: Hucitec, 2013. p. 53-90. Coradini, Odaci L. As missões da “cultura” e da “política”: confrontos e reconversões de elites culturais e políticas no Rio Grande do Sul (1920-1960). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 32, p. 125-144, 2003. Coradini, Odaci L. Em nome de quem? Recursos sociais no recrutamento de elites políticas. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001. Coradini, Odaci L. Grandes famílias e elite “profissional” na medicina no Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 3, n. 3, p. 425-466, nov. 1996 / fev. 1997. Dezalay, Yves; Madsen, Mikael R. Espaços de poderes nacionais, espaços de poderes internacionais: estratégias cosmopolitas e reprodução das hierarquias TOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 296 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL sociais. In: Canêdo, Letícia B.; Tomizaki, Kimi; Garcia Jr., Afrânio R. (Orgs.). Estratégias educativas das elites brasileiras na era da globalização. São Paulo: Hucitec, 2013. p. 23-52. Elias, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2001. Engelmann, Fabiano. Para uma sociologia política das instituições judiciais. In: Engelmann, Fabiano (Org). Sociologia política das instituições judiciais. Porto Alegre: Editora da UFRGS/CEGOV, 2017. p. 17-38. Fernandes, Dmitri C. A inteligência da música popular: a “autenticidade” no samba e no choro. 2010. 414 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. Fernandes, Dmitri C. Anatomia do gosto da música popular brasileira. In: Anais do 36º Encontro Anual da Anpocs. Águas de Lindóia: Anpocs, 2012. Geraldo, Endrica. O combate contra os “quistos étnicos”: identidade, assimilação e política imigratória no Estado Novo. Locus: revista de história, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 171-187, 2009. Gertz, René E. A guerra que ainda não terminou: a população de origem alemã no Rio Grande do Sul após a Segunda Guerra Mundial. In: Anais Eletrônicos do II Congresso Internacional de História Regional. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2013. Grill, Igor G. Por uma sociologia da institucionalização. Sociologias, Porto Alegre, a. 14, n. 31, p. 300-308, set./dez. 2012. Hobsbawm, Eric; Ranger, Terence. O. (Orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. Love, Joseph L.; Barickman, Bert J. Elites regionais. In: Heinz, Flávio M. (Org.). Por outra história das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 77-97. Miceli, Sérgio. Bourdieu e a renovação da sociologia contemporânea da cultura. Tempo Social, São Paulo, v. 15, n. 1, p. 63-79, abr. 2003. Miceli, Sérgio. Poder, sexo e letras na República Velha: estudo clínico dos anatolianos. São Paulo: Perspectiva, 1977. Nedel, Letícia B. Entre a beleza do morto e os excessos dos vivos: folclore e tradicionalismo no Brasil meridional. Revista Brasileira de História, Rio de Janeiro, v. 31, n. 62, p. 193-215, dez. 2011. Nedel, Letícia. B. Um passado novo para uma história em crise: regionalismo e folcloristas no Rio Grande do Sul (1948-1965). 2005. 560 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília, Brasília. TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021 297 Lucas Voigt Petrarca, Fernanda R. Elites jornalísticas, recursos políticos e atuação profissional no Rio Grande do Sul. Tomo, São Cristóvão, n. 13, p. 169-200, jul./dez. 2008. Reis, Eliana T. Em nome da “cultura”: porta-vozes, mediação e referenciais de políticas públicas no Maranhão. Sociedade e Estado, Brasília, v. 25, n. 3, p. 499-523, set./dez. 2010. Saint Martin, Monique de. Coesão e diversificação: os descendentes da nobreza na França, no final do século XX. Mana, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 127-149, 2002. Sapiro, Gisèle. Modelos de intervenção política dos intelectuais: o caso francês. Repocs, São Luís, v. 9, n. 17, p. 19-50, jan./jul. 2012. Seidl, Ernesto. “Intérpretes da história e da cultura”: carreiras religiosas e mediação cultural no Rio Grande do Sul. Anos 90, Porto Alegre, v. 14, n. 26, p. 77-110, dez. 2007. Seidl, Ernesto. Caminhos que levam a Roma: recursos culturais e redefinições da excelência religiosa. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 15, n. 31, p. 263-290, jan./jun. 2009. Seidl, Ernesto. Elites e instituições: pistas para investigação. In: Grill, Igor G.; Reis, Eliana T. (Orgs.). Estudos sobre elites políticas e culturais: reflexões e aplicações não canônicas. São Luís: EDUFMA, 2016. p. 97-125. Seidl, Ernesto. Estudar os poderosos: a sociologia do poder e das elites. In: Seidl, Ernesto; Grill, Igor G. (Orgs.). As ciências sociais e os espaços da política no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013. p. 179-226. Seyferth, Giralda. Imigração e Etnicidade no Vale do Itajaí (SC). In: Anais Eletrônicos do X Encontro de Geógrafos da América Latina. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2005. p. 14.043-14.058. Silverman, Sydell F. The community-nation mediator in traditional Central-Italy. In: Potter, Jack M.; Diaz, May N.; Foster, George M. (Orgs.). Peasant society: a reader. Boston: Little, Brown and Company, 1967. p. 279-293. Stone, Lawrence. Prosopografia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 19, n. 39, p. 115-137, jun. 2011. Vilhena, Luís R. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro (19471964). Rio de Janeiro: Funarte / Fundação Getúlio Vargas, 1997. Voigt, André F. A invenção do teuto-brasileiro. 2008. 204 f. Tese (Doutorado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. TOMO. N. 9 JUL./DEZ. | 2021 298 A ELITE CULTURAL DO FOLCLORE ALEMÃO “AUTÊNTICO” NO BRASIL Voigt, Lucas. Entre o “povo” e a “elite”: cultura popular e apropriação diferencial à luz da prática do folclore “alemão” no Brasil. Repocs, São Luís, v. 18, n. 1, p. 131-154, jan./abr. 2021. Voigt, Lucas. Etnografando “casas” de folclore: relações entre configurações do espaço e os sentidos da prática do folclore “alemão” no Brasil. Revista Brasileira de Sociologia, v. 8, n. 20, p. 224-247, set./dez. 2020. Voigt, Lucas. O devir e os sentidos das memórias de descendentes de alemães em Santa Catarina: Um esboço de sociologia da memória. Porto Alegre: Multifoco / Luminária Academia, 2017. Voigt, Lucas. O espaço de práticas do folclore “alemão” autêntico no Brasil: Um estudo de sociologia da cultura e das elites. 2018a. 376 p. Dissertação (Mestrado em Sociologia Política) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Voigt, Lucas. O folclore “alemão” como prática identitária: O papel das danças e dos trajes folclóricos na construção de laços culturais e históricos com a Alemanha. In: Arendt, Isabel C.; Cunha, Jorge L.; Santos, Rodrigo L. (Orgs.). Migrações: perspectivas e avanços teórico-metodológicos. São Leopoldo: Oikos, 2018b. p. 924-940. Voigt, Lucas. Trajetórias, modalidades de inserção religiosa e carreiras culturais: as imbricações entre o luteranismo e a prática do folclore “alemão” no Brasil. In: Rahmeier, Andrea H. P. et al. (Orgs.). Migrações, educação e desenvolvimento: Convergências e reflexões. Vol. 3. Porto Alegre: Editora Fi, 2019. p. 171-191. Weingrod, Alex. Patrons, patronage, and political parties. Comparative Studies in Society and History, v. 10, n. 4, p. 377-400, jul. 1968. Wolf, Eric R. Aspects of group relations in a complex society: Mexico. In: Shanin, Teodor (Org). Peasants and peasant societies: selected readings. Harmondsworth: Penguin Books, 1971. p. 50-68. Recebido em 21/05/2020 Aceito em 30/04/2021 TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021