Ciências Sociais Unisinos
54(3):336-347, setembro/dezembro 2018
Unisinos - doi: 10.4013/csu.2018.54.3.06
Maquiavel e a Literatura Pop Management:
o mundo das incertezas e o convite às
fantasias organizacionais
Machiavelli and Pop Management Literature: The world of uncertainties
and invitation to organizational fantasies
Luis Fernando Tosta Barbato1
lfbarbato@gmail.com
Mateus Henriques Patrício2
mateushpatricio@gmail.com
Resumo
O presente artigo tem como objetivo trazer um estudo comparado das obras O Príncipe,
de Nicolau Maquiavel, e O Monge e o Executivo, de James C. Hunter, e entender como as
duas trabalham a questão da liderança. Pretendemos mostrar como a questão do trabalho
ocupa um lugar central nas discussões acerca da sociedade atual, além de mostrarmos
que, apesar de as duas obras em questão serem aparentemente tão antagônicas em suas
concepções de liderança, há uma série de objetivos e estratégias comuns, que nos auxiliam a compreendermos melhor o mundo corporativo. Por meio dessa análise, pudemos
concluir que a liderança exercida pelo líder servidor e benevolente de Hunter, apesar de
aparentemente tão distante do líder frio e racional de Maquiavel, paradoxalmente não
deixa de usar das estratégias mais adequadas para se manter no poder e ganhar a lealdade
de seus funcionários, o que acaba por mostrar que a concepção de liderança de Hunter
não deixa de contar com elementos característicos de Maquiavel.
Palavras-chave: liderança, pop management, Maquiavel, gestão de pessoas.
Abstract
This article aims at bringing a comparative study of the works The Prince, of Niccolo
Machiavelli, and The Servant, of James C. Hunter, and understand how the two books
work the issue of leadership. From the analysis of the two works, we intend to show how
the laboring subject occupies a central place in discussions of modern society, and to
show that, although the two works in question are apparently so antagonistic in their
leadership concepts, there is a series of common objectives and strategies that help us
better understand the corporate world. Through the analysis of these two works, we were
able to conclude that the leadership exercised by Hunter’s benevolent and servant leader,
despite seeming so far from Machiavelli’s cold and rational leader, paradoxically does not
avoid using the most appropriate strategies to maintain power and win the loyalty of his
employees, which shows that Hunter’s conception of leadership does not fail to rely on
elements characteristic of Machiavelli.
Keywords: leadership, pop management, Machiavelli, human resource management.
1
Instituto Federal do Triângulo Mineiro. Avenida
B, 155, 38700-000, Patos de Minas, MG, Brasil.
2
Universidade Federal de Uberlândia. Av. João
Naves de Ávila, 2121, 38400-902, Uberlândia,
MG, Brasil.
Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0), sendo permitidas reprodução, adaptação e distribuição desde
que o autor e a fonte originais sejam creditados.
Luis Fernando Tosta Barbato, Mateus Henriques Patrício
Introdução
A questão da liderança apresenta-se como elemento de
análise e debate desde tempos remotos na história humana, e
os exemplos são diversos nesse sentido, como a busca de Xenofonte, na antiga Grécia, pelo arquétipo de um líder ideal em sua
Ciropedia, ou a busca de Sun Tzu pelo grande general, capaz de
levar seus exércitos à glória, em seu A arte da Guerra, tratado
produzido na antiga China.
Se essa busca pelo ideal da liderança perfeita perpassa
praticamente toda nossa história, nos tempos atuais não é diferente, com o crescente desenvolvimento do capitalismo, que
tem em uma de suas bases justamente a questão da produtividade em escalas otimizadas e maximizadas, a questão da liderança também ocupa um papel de destaque dentro da literatura
contemporânea, sendo o fenômeno do management, surgido
principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos da década
de 1980, e que tem em seus objetivos a busca do gerencialismo,
do culto da excelência e da cultura do empreendedorismo, uma
das principais evidências da importância desse tema nos tempos
atuais (Wood Júnior e Paula, 2002).
Nesse sentido, o que buscamos aqui é trabalhar essa
questão por intermédio da análise de duas obras, que, em um
primeiro momento, podem parecer um tanto quanto antagônicas e contraditórias: O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, e O Monge e o Executivo (2004), de James C. Hunter. A primeira, um dos
mais célebres, polêmicos e estudados livros de todos os tempos,
o qual traz a questão da liderança voltada para os regimes de
governança, e o segundo, um dos maiores sucessos editoriais dos
últimos tempos, que traz a questão da liderança voltada para o
ambiente administrativo dos negócios.
Mutatis mutandis, as duas obras têm objetivos que caminham para um sentido comum, uma vez que, guardadas suas
especificidades e suas temporalidades históricas distintas, o que
redunda em universos políticos, sociais e econômicos um tanto
quanto diversos, buscam trabalhar a questão de regimes de liderança, sejam eles aplicados à política sejam à administração
de empresas. No entanto, as duas obras traçam o líder ideal de
maneiras bastante distintas, sendo o líder de Maquiavel marcado
pela dureza e racionalidade, em contraposição ao líder de James
C. Hunter, marcado pela postura humanizada e complacente.
Desta maneira, por meio deste artigo, buscaremos entender, por intermédio de uma análise comparativa3 das duas obras,
as concepções de liderança presentes nelas, observando os pontos nos quais os dois autores convergem e divergem em relação
ao assunto, buscando compreender como as concepções atuais
337
de liderança se comportam perante modelos aparentemente tão
distintos no enxergar a relação líder-liderado.
Vale ressaltar que há uma série de definições para o conceito de Liderança, que, em geral, apontam para alguns elementos convergentes, como nos mostra Cecília Bergamini, tais como
que a Liderança é um fenômeno grupal, ou seja, que se dá entre
duas ou mais pessoas, e também que se trata de um processo
intencional de influenciação exercido por um líder em relação a
seus seguidores (Bergamini, 1994, p. 103).
Nesse sentido, a definição de Hollander, segundo Bergamini, consegue abranger a maioria dos aspectos propostos sobre
o conceito com a seguinte definição:
O processo da liderança normalmente envolve um relacionamento de influência em duplo sentido, orientado principalmente para o atendimento de objetivos mútuos, tais como
aqueles de um grupo, organização ou sociedade. Portanto, a
liderança não é apenas o cargo do líder mas também requer
esforços de cooperação por parte de outras pessoas (Hollander
in Bergamini, 1994, p. 103).
Assim, pressupões-se que na Liderança é essencial a cooperação entre pessoas, notadamente entre líder e liderados, e
é nesse sentido que buscaremos entender como essas relações
de cooperação são forjadas pelos líderes propostos por Hunter e
Maquiavel, e quais são as estratégias que cada um desses modelos utiliza para atingir esse objetivo.
O trabalho e o mundo das incertezas
Segundo Zigmunt Bauman, vivemos um período marcado
pelo “mal-estar da pós-modernidade”, no qual paira a sensação
de um novo tipo de incerteza, que “provêm de uma espécie de
liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais” (1998, p. 10). Ou seja, nesse mundo pós-moderno descrito por Bauman, no qual o prazer e a liberdade
detêm domínio soberano, as pessoas têm a sensação de inúmeras
oportunidades, facilmente dispostas, fomentando assim a alusão
a grandes desejos.
Nesse sentido, enquanto no mundo pré-moderno as
identidades estavam relacionadas a fatores bastante estáveis,
como religião, parentesco ou comunidade, o mundo pós-moderno, capitalista por excelência, nos apresentou um ambiente
no qual as identidades pessoais estão cada vez mais atreladas às
relações de trabalho, que ao contrário das bases pré-modernas,
não têm estabilidade, o que redunda em uma série de sujeitos
3
Nesse sentido, segundo Scheider e Schimitt: “A comparação, enquanto momento da atividade cognitiva, pode ser considerada com o inerente ao
processo de construção do conhecimento nas ciências sociais. É lançando mão de um tipo de raciocínio comparativo que podemos descobrir regularidades, perceber deslocamentos e transformações, construir modelos e tipologias, identificando continuidades e descontinuidades, semelhanças
e diferenças, e explicitando as determinações mais gerais que regem os fenômenos sociais” (1998, p. 1). Desta maneira, buscamos, através da leitura
das duas e da comparação de como ambas trazem a questão da Liderança, entendermos como essa questão é trabalhada atualmente dentro de
uma literatura especializada e de cunho comercial, e o quão essa Liderança se distancia e se aproxima da Liderança presente na obra de Maquiavel.
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Maquiavel e a Literatura Pop Management: o mundo das incertezas e o convite às fantasias organizacionais
dispersos pela sociedade, que apesar de livres, buscam fixar suas
identidades, se deparando com as dificuldades de estabelecerem
esses vínculos em um mundo no qual tais vínculos são cada vez
mais escassos e efêmeros (Bauman, 1998, p. 92).
Nesse mundo de incertezas, marcado pelas rápidas mudanças e efemeridade das relações, a pessoa muitas vezes vê no
trabalho, e na identidade que ele lhe proporciona, um porto para
assentar suas aspirações identitárias, o que resulta em relações
bastante específicas nas relações de trabalho.
Com o avanço desse modelo social, estamos sempre sob
uma fina camada de estabilidade, e correndo sempre em busca
de uma espécie de “autossituação” nesse ambiente tão dinâmico e instável. Assim, buscas por formas de aperfeiçoamento em
um novo mundo global e competitivo, a eficiência e a eficácia,
o bom currículo e a noção de “vestir a camisa da empresa” se
mostram como formas de se situar nesse ambiente, depositando
no trabalho as esperanças de se achar um elemento de identificação que colocará fim a esse mal-estar que a pós-modernidade,
liberal, fluida e instável, trouxe.
Ademais, em meio a essa situação, na qual “falar de vida é
falar de trabalho” (Sá, 2013, p. 35), ou seja, na qual as identidades pessoais estão tão intrincadas à carreira profissional, como
nos traz Sá, é “impossível pensarmos e discutirmos o sujeito hoje
sem levarmos a dimensão do trabalho em consideração, pois,
participando ou não, direta e ativamente do processo produtivo, o trabalho perpassa o sujeito da forma de ser” (Sá, 2013,
p. 35). Consequentemente, o trabalho se torna para o indivíduo
uma aquisição pessoal que permite, talvez, estabilidade suficiente para a conquista da autorrealização, que vai muito além dos
simples ganhos econômicos que um emprego proporciona, mas
significa sua própria realização plena como sujeito.
Nesse sentido, as relações de liderança ganham importância,
pois é a partir delas que essa tão almejada estabilidade se operacionaliza. Liderar bem, ou ser um bom liderado, são questões primordiais para garantir que essa estabilidade momentânea, o que resulta
também em uma identidade momentânea, não seja quebrada, o
que significaria o retorno ao instável mundo das incertezas que é o
mundo alheio àquele ambiente empresarial.
E se ser um bom liderado garante estabilidade, e se torna
objeto de desejo, ser um líder é ainda mais almejado nesse ambiente do qual estamos tratando, pois, além da tal estabilidade a
que nos referimos, também está na base na construção pessoal
do sujeito, garantindo assim a impressão de um espaço mais sólido, delimitado e valorizado nesse mundo no qual as relações de
trabalho e sociais se interpenetram.
Partindo desse deslumbre existente pela posição de líder,
não é de se estranhar o grande fluxo de informação e consumo
de vários manuais voltados a levar a esse cidadão comum, ávido
por estabilidade e autorrealização, a arte de liderar. Nesse sentido, esse trabalhador/sujeito, competidor no mercado trabalho,
envolto em suas angústias devido às incertezas, e almejante de
posições de destaque e estabilidade, não exita em buscar várias
fontes, muitas vezes sem o rigor com o conteúdo, a fim de atender a seus anseios.
Portanto, esse trabalhador/sujeito consumirá desde palestras com teor discursivo motivacional, até livros que prometem um melhor conhecimento de si para uma melhora em sua
performance no trabalho. E nesse afã pela liderança, surge toda
uma literatura disposta a guiar os passos para a suposta realização plena que um cargo de liderança aparentemente pode
proporcionar.
Há, então, uma completa enxurrada de tudo o que se
propõe a maximizar o desempenho no trabalho. Estes livros,
vídeos, palestras e cursos, muitas vezes distantes da realidade
das relações de trabalho, procuram construir um melhor “eu”,
apelam para o emocional, transitando principalmente entre a
literatura de autoajuda, a técnica e as crenças esotéricas. Esse
filão literário, voltado a atender esse público, foi batizado de
pop management, e se caracteriza por transitar entre vários estilos literários, abrangendo um amplo leque de conhecimentos,
ao mesmo tempo em que não se configura como uma área de
conhecimentos bem demarcados, estando restritos à instância
teórica (Carvalho et al., 2010, p. 538).
Do mesmo modo, o pop management se concretizou
como um espaço que cultiva determinadas condutas ideais, impulsionadas pelo interesse de grupos da elite empresarial como
flexibilidade, transparência, companheirismo e uma visão do
mercado muitas vezes falsa e idealizada, no qual, na maior parte
dos casos, se promove uma ideia de querer é poder. Portanto,
essa literatura coloca o indivíduo no centro de seu próprio êxito,
em um ambiente marcado pela liberdade, e no qual as responsabilidades sobre seu sucesso ou fracasso recaem basicamente
sobre ele próprio.
Entre os conteúdos que se proliferam nestes livros e outros meios de comunicação, encontram-se resumos de abordagens teóricas da administração deturpadas a uma visão simples
e minimalista, retirando as dificuldades menos superficiais e
a necessidade do entendimento macroeconômico do mercado, estando, portanto, distantes do conhecimento científico e
acadêmico dedicado à administração e à gestão de pessoas. No
entanto, essas mesmas obras vendem a impressão de estarem
promovendo algum tipo de informação teórica e de cunho científico, quando na verdade, na maior parte dos livros enquadrados dentro dessa categoria, se reproduz um entendimento que
carece desses elementos acadêmicos, tanto que é voltado para
um público muitas vezes leigo, ou que pouco conhece das teorias e conhecimentos acadêmicos da área.
O consumo dessa literatura corporativa ganha também espaço nas universidades brasileiras, sendo inclusive, muitas vezes,
indicada aos alunos do curso de administração, como demonstrado
em pesquisa por José Luis Felicio Carvalho, Frederico Antonio Carvalho e Carol Bezerra (Carvalho et al., 2010), na qual se verificou a
ampla disseminação dessa literatura, indicada muitas vezes pelos
próprios docentes, entre os futuros administradores.
Nessa mesma pesquisa, um dado interessante veio à tona:
quando instruídos para classificarem certos trechos lidos entre
literatura esotérica, pop management ou autoajuda, os entrevistados na pesquisa na maior parte das vezes falharam em per-
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Luis Fernando Tosta Barbato, Mateus Henriques Patrício
ceber as claras características de cada texto mostrado, não conseguindo assim “que, do ponto de vista dos leitores, não existam
diferenças perceptuais significativas entre a literatura pop-management, os livros de autoajuda e os livros esotéricos” (Carvalho et al., 2010, p. 538), o que nos serve como mais um alerta do
impacto dessa profusão da literatura pop-management. Pelos
pontos anteriormente ressaltados, podemos perceber que essa
nova leitura da liderança aparece na realidade vivida como uma
grande disseminadora de conceitos carentes de fundamentos sólidos do ponto de vista acadêmico.
Desta maneira, podemos inferir que o mercado competitivo e o mundo de inseguranças e incertezas que caracterizam
esse momento atual atraem o leitor sedento pela estabilidade
que uma posição de liderança fornece. Nesse mar de incertezas e
infixidez que a liberdade pós-moderna trouxe consigo, discursos
suaves e positivos se tornam altamente consumíveis por toda
uma massa de trabalhadores/sujeitos em busca de estabilidade, se entregando assim a viver fantasias de poder, como se as
respostas para se posicionar frente aos desafios do mercado de
trabalho estivessem unicamente dentro de si.
Para compreender esta significativa correlação dos discursos pop management e o mundo empresarial que nos rodeia,
com as recentes motivações do trabalhador, dirigimos nosso estudo para uma análise comparativa de duas obras aparentemente antagônicas, que pretendem instruir aqueles que objetivam
serem líderes, ou que pretendem manter suas posições de liderança. Desta maneira, vamos analisar essa questão nas obras O
Príncipe, de Nicolau Maquiavel, uma antiga referência no tema,
e O Monge e o Executivo, de James. C. Hunter, fenômeno recente
da literatura pop management.
As duas obras abordam a liderança de formas diferentes,
e até mesmo antagônicas (em um primeiro momento), e é na
análise comparativa delas que iremos buscar nossas reflexões
sobre a figura do líder nos tempos atuais. A fim de cumprirmos
essa premissa, dividiremos nossa análise nas seguintes etapas:
os motivos do estudo comparativo das duas obras e por que o
estudo possibilitaria compreender as afirmativas anteriormente
abordadas; a análise comparativa de O Príncipe e de O Monge
e o Executivo e Maquiavel educador: o discurso maquiaveliano
oculto em O Monge e o Executivo.
A justificativa para uma análise
comparativa entre as duas obras
Partindo da compreensão da evolução da teoria administrativa empresarial e da maneira que as empresas divulgam a
sua imagem e cultivam a chamada cultura organizacional, que
pode ser entendida como o conjunto de crenças, valores, normas
e rituais adotados por uma determinada organização e compartilhados pelos seus membros, percebe-se haver uma tendência
atual voltada para um tratamento mais “humano” do funcionário, levando, inclusive, à extinção de alguns jargões usados nas
primeiras teorias da administração. Por exemplo, a afirmação de
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Jules Henri Fayol, um dos grandes nomes da teoria administrativa, de que “constitui a hierarquia a série dos chefes que vai da
autoridade superior aos agentes inferiores” (Fayol, 1990, p. 57),
que atualmente perde força, e cada vez soa mais inadequado.
Nos tempos de hoje, termos como “chefes” e “agentes
inferiores” estão carregados de um caráter semântico e social
pesado, ou seja, inadequado para a utilização nas empresas que
pretendem transmitir uma cultura organizacional mais adequada a esses novos tempos, nos quais se prega uma gestão de pessoas mais humanizada. Nesse novo contexto, “chefe” transmite a
impressão do autoritarismo e da pouca disposição às mudanças,
enquanto o termo “líder” sugere dinamismo e a capacidade de
realização pela influência, e não pela ordem ou simples posição
hierárquica superior. Do mesmo modo, o termo “agentes inferiores” cai em desuso e o termo “colaboradores” ganha espaço.
Essas mudanças na semântica para o tratamento desses
profissionais alocados em uma disposição hierárquica empresarial, que fazem alusão a esse novo tempo no qual a gestão de
pessoas deve ser pautada na humanização, podem nos servir de
base para uma série de reflexões e questionamentos: os novos
discursos visam dar uma roupagem humanizada ao cotidiano
empresarial. No entanto, mesmo essas mudanças nos suscitam
uma série de questionamentos, tais como: até onde a dimensão
da mudança semântica das palavras acompanhou a realidade?
Por mais que essas palavras sugiram mudança e humanização no
ambiente empresarial, será que as relações de dominação de fato
acompanharam essas mudanças? Chefes se tornaram mesmo líderes, e agentes inferiores se tornaram mesmo colaboradores, se
que é que de fato há distinções palpáveis entre os termos? No
decorrer do texto, utilizaremos a comparação entre as obras de
Maquiavel e Hunter para buscar respostas para essas indagações.
A tecnologização do discurso, ou seja, as substituições
de termos a fim de modificar a dimensão de dominação como,
chefe por líder, é aparente nos vários livros do acervo da literatura enquadrada no chamado pop-management. O Monge e o
Executivo, nosso grande exemplo, deixa clara a sua intenção de
separar visões sobre o “velho” e “novo paradigma”, como, aliás, é
praxe entre as obras desse gênero (Sá, 2013, p. 84).
Nesse sentido, da bipolarização de termos que ressaltam
essas distinções e separações reducionistas entre os supostos
“velho” e “novo” modelos de gestão de pessoas, como nos traz
Danielle Sá, são bastante trabalhadas em obras como O Monge
e o Executivo, ou mesmo em outras do gênero. A postura conflitiva e coletiva, e rechaçada em nome do “velho”, enquanto a
postura humanitária e individualista é defendida por aludir a
esses “novos” modelos:
O sistema de oposições define, por um lado, o certo e o bom
no campo do trabalho, e por outro, o polo da alteridade a ser
repudiado como ultrapassado, inadequado ou irracional. Entre
os “outros” rechaçados, distribuem-se, de forma mais ou menos visível no texto, o trabalhador que negocia coletivamente
com seu empregador (portanto, adotando postura conflitiva)
e o próprio sindicato, este retratado menos como legítima
instituição representativa da força de trabalho, e mais como
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Maquiavel e a Literatura Pop Management: o mundo das incertezas e o convite às fantasias organizacionais
estorvo para a negociação individualizada e “pacífica”. Excluídas dos textos estão as militâncias políticas no campo do trabalho, bem como os movimentos políticos de enfrentamento
violento; os movimentos realçados como modelo são aqueles
que se referem à luta anticolonialista (por exemplo, na menção
a Ghandi), racial (mencionando Martin Luther King) e outros
notoriamente de orientação pacifista como Madre Teresa de
Calcutá (Sá, 2013, p. 84-85).
Portanto, é notável que o modelo de líder defendido
e idealizado por Hunter é bastante distante do arquétipo associado ao velho modelo de liderança, então ultrapassado.
O paradigma destacado se polariza dicotomicamente em relação ao paradigma superado, marcado por um estilo mais
débil, menos produtivo e ineficiente de liderar. A questão
que fica é: será que esse modelo defendido por Hunter e por
tantos outros autores do pop-management, realmente marca
uma ruptura nos estilos de liderança, e nas relações entre os
detentores de cargos superiores na hierarquia empresarial e
seus subordinados? Será que essas relações, construídas e desenvolvidas dentro de um sistema notadamente hierárquico
estão agora, de fato, pautadas por uma tendência na qual os
líderes são servidores e humanizados?
A análise mais profunda e alheia às fantasias mercadológico-editoriais do pop management mostra que pelo menos devemos problematizar, e até mesmo duvidar, da veracidade desse
líder ideal vendido pela literatura pop voltada para os negócios,
como no caso de O Monge e o Executivo.
A percepção de um distanciamento forçado do passado,
a tecnologização do discurso, somadas à força ideológica que o
novo espírito do capitalismo necessita, entre outras formas duvidosas de juízos da realidade posteriormente investigadas, nos
levou a voltar nossos olhares para Maquiavel, pensador florentino da virada do século XV para o XVI, na busca pelas respostas para as questões que trouxemos há pouco. Pretendendo se
aproximar da política real, perseguir a verdade efetiva das coisas,
como bem expressa, Maquiavel rompe com um milenar olhar
baseado na ética e na moral cristãs para conceituar um líder,
e acaba traçando um perfil que em muito se distingue do líder
humanizado de Hunter, uma vez que, quando necessário, o líder
maquiaveliano usa de sua força e do temor que lhe é inerente
para garantir sua manutenção no poder.
Maquiavel ressalta buscar ser lúcido em seu entendimento humano, uma vez que compreende o próprio homem como
um ser que anseia por poder. Desta maneira, o líder maquiavélico, ou maquiaveliano, como a nova literatura prefere utilizar
(Bagno, 2008), nos servirá para compreender esses desejos humanos e a sua relação com o poder. E mesmo que exista um lado
cruel e frio nessas relações de liderança, que a obra de Maquiavel
deixa transparecer em algumas de suas observações, a obra se
mantém bastante atual, pois foi pensada e escrita com bases na
busca pelo entendimento da realidade humana, o que muitas
vezes escapa às idealizações e fantasias que o pop management
tanto prega, nos servindo como um contraponto bastante interessante para problematizarmos essa questão.
Assim, por mais que O Príncipe, e a obra maquiaveliana
de uma maneira geral, traga passagens polêmicas, uma vez que
não nega que um líder precisa ser duro e valer-se de seu poder e do temor que desperta em seus subalternos para garantir
suas vontades e manter sua posição, não há como negar que
se trata de uma obra essencial e útil àqueles que pretendem
entender melhor as relações de poder, e, principalmente, àqueles
que querem o poder e buscam sua manutenção, como o próprio
autor deixa claro: “Minha intenção é escrever coisa útil a quem
se interesse, pareceu-me mais conveniente pesquisar a verdade
efetiva das coisas do que aquilo que se imaginou sobre ela” (Maquiavel, 1999, p. 91).
A comparação de O Monge e o Executivo e O Príncipe
evidencia propostas distintas do modo de liderar, apesar de ambas convergirem para um mesmo ponto, pois a primeira é pautada no amor ágape, no qual a liderança “é um estilo copiado de
Jesus” (Hunter, 2004, p. 65), o que redunda ao líder servir seus
liderados e conhecer a suas necessidades. Já no clássico pensamento maquiaveliano de comandar, o líder deve saber utilizar-se
de ações que estão distantes dessa bondade cristã, e prova disso
é que o pensador florentino chega a afirmar que “é muito mais
seguro ser temido do que amado” (Maquiavel, 1999, p. 137).
Sob esta ótica comparativa de duas obras tão antagônicas no conceber o líder ideal, a leitura crítica delas nos possibilita questionar se a real influência da obra pop management,
e de seu conceito de liderança estão alicerçados na “verdade
efetiva das coisas”, ou seja, na real busca por um modelo de
gestão de pessoas que de fato seja aplicável e gere resultados
às organizações, ou se é somente um discurso de disciplinação e
massificação para aqueles que buscam cargos de influência no
mundo profissional.
Ademais, o resgate de um escrito de 1513, considerado
um dos grandes marcos da ciência política, posto frente a frente
com uma suposta nova maneira de liderar que conquistou grandes espaços no mercado editorial, organizacional e mesmo universitário, pode nos ajudar a entender melhor esse mundo pós-moderno e o lugar que o trabalho e o trabalhador ocupam nele.
O Príncipe, colocado em comparação à essa “liderança servidora”, nos pode ainda revelar no que o maquiavelismo perdurou,
no que foi superado e no que ainda instiga. Por meio da análise
comparativa, poderemos entender as duas formas de lideranças
propostas, suas convergências, divergências. No mais, o estudo
comparado desses dois universos poderá nos servir como ferramenta para entendermos o espaço laboral e pessoal nos quais os
indivíduos desse mundo pós-moderno, e carente de alicerces de
fixação identitária, vivem e alicerçam suas expectativas.
Análise comparativa de O Príncipe e
de O Monge e o Executivo
O Monge e o Executivo, lançado em 1998 pelo consultor
empresarial James C. Hunter, que tem como título completo O
Monge e o Executivo: uma história sobre a essência da lideran-
Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo, Vol. 54, N. 3, p. 336-347, set/dez 2018
Luis Fernando Tosta Barbato, Mateus Henriques Patrício
ça, é dividido em sete capítulos – sendo eles: As definições; O
velho Paradigma; O modelo; O verbo; O ambiente; A escolha; e A
recompensa; além do Prólogo e do Epílogo – que nos conduzem
pela história de John, um pai de família casado há 18 anos,
cético e orgulhoso por ter conquistado a gerência de uma importante “fábrica de vidro plano com mais de 500 funcionários
e mais de 100 milhões de dólares em vendas anuais” (Hunter,
2004 p. 11).
Ao iniciar a narrativa, esse, o personagem central da obra,
vem passando por momentos delicados em sua vida pessoal.
Logo no Prólogo da obra John afirma notar que sua família está
se desestruturando: seu filho manifestava rebeldia em relação
às ordens dos pais, a filha se encontrava cada vez mais distante
dele e a esposa, angustiada com a situação, estava insatisfeita.
Nesses momentos de dificuldades pessoais, surge ainda um movimento sindicalista na fábrica que o deixa a ponto de dizer:
“Meu trabalho, a única área de minha vida em que eu me sentia seguro e bem sucedido, também passava por uma mudança”
(Hunter, 2004, p.13, grifo nosso).
Todas essas dificuldades profissionais e pessoais acabam
por desenhar um personagem bastante palpável em nossos tempos: aquele que abdicou dos prazeres pessoais e dos cuidados
com a família em nome das obrigações profissionais, e que em
determinado momento se observa em uma situação de extrema
fragilidade, uma vez que se percebe como impotente em ambas as esferas. Nesse sentido, a persuasão do texto consiste em
mostrar a redenção desse personagem tão comum, por intermédio de uma jornada de crescimento espiritual, que acabará por
trazer consequências positivas também em seu desenvolvimento
pessoal, principalmente como líder, que era a função que lhe
cabia dentro desse universo corporativo do qual fazia parte.
Essa jornada do personagem principal conduzirá concomitantemente à “evolução” de três habilidades, que são a
capacidade de lidar consigo mesmo, a espiritualidade e a liderança. Desde as primeiras linhas do livro fica clara a existência de uma relação entre o autogoverno, as características
únicas diretamente ligadas ao desenvolvimento interpessoal
e a liderança, ressaltando que há um estreito convívio da realização do seu verdadeiro eu com um desempenho eficiente
nas organizações. Portanto, desde o início da obra, se confirma a noção de que o sujeito profissional e o sujeito pessoal
se misturam, corroborando a ideia de uma identidade pessoal
cada vez mais marcada pela identidade profissional, conforme tratamos anteriormente.
De fato, a busca de John não parece estar muito distante da busca do homem pós-moderno: o desconforto causado
pela insegurança do seu meio e o cargo de líder significando a
solução para os problemas individuais parecem assemelhar-se
com a generalização de sensações que o público-alvo (no caso,
pessoas ligadas ao mundo corporativo) é atingido diariamente.
A empatia com o personagem é fácil, talvez possamos dizer, até
instantânea, fazendo com que o leitor recepcione bem as ideias
que virão nos capítulos seguintes, uma vez que John surge como
arquétipo desse homem pós-moderno corporativo padrão, sendo
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observável, senão nas próprias vidas de seus leitores, nas vidas de
pessoas bastante próximas.
A linguagem simples e envolvente de Hunter conquista o
leitor e o apresenta, de um modo intensamente resumido, a uma
bipolarização, conforme já nos referimos, de um pensamento
velho e ultrapassado contraposto a um pensamento novo e funcional nessas relações de liderança, ignorando as dificuldades de
compreensão da era fordista e pós-fordista, e alimentando a difusão de certos ideais como a flexibilidade, compromisso com a
empresa e adaptação contínua, as quais, direta ou indiretamente, intervém no comportamento de quem adota esses elementos,
tornando-o mais suscetível à obediência e à manipulação. Nesse
sentido, conforme nos trouxe Danielle Sá, “o livro de Hunter é
assinalado como um desses artefatos produzidos pela atual cultura do gerencialismo, que divulga noções pasteurizadas sobre
métodos administrativos, em linguagem prescritiva e ideologizada” (Sá, 2013, p. 33).
Prosseguindo a narrativa, em sua jornada em busca de
paz e equilíbrio, John encontra o Monge Simeão, um antigo empresário de sucesso chamado Len Hoffman, cuja carreira é admirável pela sua habilidade de liderar, e que havia abandonado os
negócios para viver isolado em um monastério. Os ensinamentos
de Simeão são formulados no decorrer de diálogos com os interessados visitantes de seu calmo recanto espiritual, que ocorrem
em encontros sistemáticos, nos quais são abordados os temas
sobre o relacionamento com as pessoas, sendo que o produto
destes levam à formulação da ideia defendida pelo livro: a liderança servidora.
A proposta feita pelo monge é mudar a maneira clássica
de como ver as relações dentro das empresas, distanciando-se
assim de um chefe autoritário, de modo que se use a influência
(que acaba por ter um sentido de autoridade) como “habilidade
de levar as pessoas a fazerem de boa vontade o que você quer
por causa de sua influência pessoal” (Hunter, 2004, p. 29).
Desta maneira, o monge do título da obra traz toda uma
nova forma de liderar que traz a autoridade como algo distinto
do antigo padrão, uma vez que esta era baseada no temor. Para
Simeão a autoridade deve ser exercida pela influência, que só é
atingida se o líder se acometer de preceitos e características que
colaborem para que essa relação se estabeleça, tais como a honestidade, a confiabilidade, o cuidado com os outros, o comprometimento, a capacidade de ouvir, a positividade... enfim, uma
série de características necessárias para que o líder, por intermédio da empatia exercida sobre seus subordinados, possa exercer
uma liderança eficiente, mesmo estando distante daquele antigo
modelo autoritário de chefe do passado.
Além disso, uma das premissas do pensamento servidor
é identificar as reais necessidades dos colaboradores, reconhecer o que é fundamental em seus anseios, para assim fornecer
instrumentos que conduzam ao seu bem-estar, posto que, isso
realizado, esses colaboradores se disponibilizarão com maior
afinco para para o trabalho coletivo, primordial para o regular funcionamento das organizações. A justificativa de Simeão
para essas atitudes, por parte desses líderes, é o estudo da hie-
Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo, Vol. 54, N. 3, p. 336-347, set/dez 2018
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Maquiavel e a Literatura Pop Management: o mundo das incertezas e o convite às fantasias organizacionais
rarquia das necessidades humanas (na qual se enquadra, por
consequência, as necessidades de todos os trabalhadores), e na
qual é apontada uma ordem que parte de necessidades fisiológicas, percorre a segurança, o amor, os relacionamentos (inclui
aqui o desejo de pertencimento, de amor, e de aceitação), a
estima, até chegar na autorrealização.
A liderança servidora, conforme é defendida por Simeão,
daria meios para percorrer o caminho da pirâmide desenvolvida
pelo psicólogo Abraham Maslow, que se finaliza na conquista
pessoal (Hunter, 2004). Desta maneira, aquele que sustenta estes
valores permitirá o incremento de seus seguidores nos aspectos
individuais juntamente com a melhoria na atuação profissional
em funções desempenhadas.
O sentimento-base que sustenta toda a ação do líder,
conforme o pensamento do autor, é o amor Ágape, o qual significa o amor universal: “Amor incondicional, baseado no comportamento com os outros, sem exigir nada em troca” (Hunter,
2004, p. 79). A persistência da ideia original para esse pensamento, dialogando sobre a questão do amor e da liderança,
abordadas no capítulo quatro, faz com que um dos participantes
reflita consigo mesmo: “Amor Ágape e liderança são sinônimos”
(Hunter, 2004, p. 81). O que ressalta as convicções de Hunter explicitadas em O Monge e o Executivo, que pregam um novo tipo
de liderança, baseada no amor e na humanização dos liderados.
Essa essência da liderança, promovida por Hunter, pretende resgatar o antigo pensamento de Jesus Cristo e suas pregações sobre o amor, inserido agora em um contexto de gestão
de pessoas. Nessa perspectiva, a relação entre o estilo de liderança defendido por Hunter, colocado em comparação com o
defendido por Maquiavel, torna a relação entre as premissas dos
dois autores ainda mais interessantes, e as comparações entre O
Príncipe e O Monge e o Executivo ainda mais conflituosas, e retomar a obra e a própria figura do intelectual florentino se torna
importante para que conduzamos nossa reflexão.
Durante o final do século XV e inícios do século XVI, época
em que Maquiavel viveu, Florença, um de vários pequenos principados localizados na península itálica, era detentora de uma economia
voltada a oficinas especializadas em lã e seda, o que favoreceu o desenvolvimento de um acúmulo de capital e que serviu de base para
a formação de um sistema bancário de negócios. Neste contexto,
marcado pelo movimento que ficou conhecido como Renascimento Cultural, a concepção teocêntrica medieval começa cada vez a
perder mais força entre os intelectuais, e a Antiguidade Clássica é
revalorada entre artistas e pensadores, que começam a debruçar-se
sobre esses modelos, o que nos ajuda a explicar certas posturas de
Maquiavel e sua disposição em escrever uma obra calcada no real,
no homem, como ele mesmo deixa claro.
Nesse sentido, sua Magnum Opus, O Príncipe, mantém
distância dos populares espelhos de príncipe4 da época, uma vez
que traz a originalidade do domínio da filosofia política em sua
elaboração, principalmente pela distância dos conselhos baseados na boa conduta da época, baseados principalmente em uma
postura religiosa, de cunho cristão.
Suas palavras deixam claro o sentido pragmático de sua
intenção, uma vez que se propõe a “escrever coisa útil para quem
a entenda”, o que redunda no distanciamento de ideias utópicas de bases religiosas, como fica claro o criticar os espelhos de
príncipe da época, nos quais “muitos imaginaram repúblicas e
principados que jamais foram vistos” (Maquiavel, 1999, p. 91).
Valendo-se dessa retórica, e sustentando em um ideal pretensamente real e pragmático, Maquiavel usufrui de alguns métodos argumentativos para sustentar os ensinamentos
que pretende passar, pois, como nos traz Cortina, “o texto maquiavélico pretende convencer seu destinatário de que lhe está
apresentando a melhor maneira de conquistar e manter o poder
político de um Estado” (Cortina, 1995, p. 94).
Entre esses argumentos, levantaremos brevemente três
deles, sendo o primeiro as ilustrações históricas, seguido de o
modelo e por último a analogia. Sobre o primeiro, há uma série
de comparações entre as ações da Antiguidade Clássicas com a
sua época, como o trecho a seguir, de Cortina, nos ajuda a entender melhor: “Inicialmente uma afirmação é feita e, em seguida, o enunciador apresenta um fato ocorrido durante o período
da Antiguidade Clássica e outro durante sua época, que servem
para confirmar o conteúdo de verdade da regra por ele enunciada” (Cortina, 1995, p. 101).
A respeito do segundo, se trata do estabelecimento de
um modelo de atitudes a ser seguido, o que ressalta esse caráter
de manual de governança presente nos espelhos de príncipe, o
que é encontrado notoriamente no capítulo VII de O Príncipe.
Nesse sentido, mais uma vez as palavras de Cortina nos ajudam a
compreender melhor a questão: “O enunciador vale-se da figura
de César Bórgia [...] para construir o modelo de príncipe ideal,
capaz de cumprir com maior eficácia seu propósito de conquista
e manutenção do poder em um Estado” (Cortina, 1995 p. 102).
No que diz respeito ao terceiro aspecto retórico, é notório
o uso de analogias no texto do escritor que, “além de permitir a
veiculação de um pensamento, chama a atenção para a expressão linguística por meio da qual ele é manifestado” (Cortina,
1995 p. 104).
Outro ponto a se destacar, adentrando um pouco mais
nas concepções filosóficas de Maquiavel, é sobre os conceitos
de Virtú e Fortuna, bastantes presentes em O Príncipe. A Virtú
é a qualidade primordial do príncipe, é capacidade de decisão
no curso da ação, semelhante ao conceito grego de phronesis
(sapiência). Já a Fortuna é o incontrolável, próximo de sorte e da
adversidade causal, e que demanda uma Virtú exacerbada por
parte dos governantes para ser contornada.
4
Os espelhos de príncipes foram um gênero literário muito comum na Europa Medieval e no início da Europa Moderna, e tinham como proposta servir
como um manual para a boa-governança, uma vez que traziam as práticas e ações que levariam os reis, príncipes e quaisquer outros governantes
a se tornarem os governantes perfeitos, principalmente aos olhos de Deus (Hahn, 2008).
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Luis Fernando Tosta Barbato, Mateus Henriques Patrício
Assim, abre-se espaço para falar diretamente do “líder”
maquiavélico, que, conforme afirma e pretendia, seria capaz
de unificar a Itália. Para o maquiavelismo, o príncipe (podemos
aqui fazer o paralelo por líder, o que facilita nossa análise)
deve se atentar à história e tirar dela o sustento de suas decisões5, como fica claro nos trechos a seguir: “Se é verdade que
a história é mestra de nossos atos, não seria mau para os que
deviam punir e julgar [...] tomar como modelo e imitar os que
foram donos do mundo” porque “o mundo sempre foi, de certa
forma, habitado por homens que sempre tem paixões iguais”
(Maquiavel, 1999, p. 165).
Notório em seus ensinamentos sobre governança e sobre
liderança (o que torna possível sua aproximação com a gestão),
o que sucedeu foi a banalização da expressão “maquiavélico”,
atribuindo a Maquiavel uma espécie de “virtualização” do mal,
posturas essas, na maior parte das vezes, infundadas. Diversos
são os trechos que giram em torno do mal para Maquiavel e
que explicam a razão de saber agir com maldade, no caso do
príncipe. No capítulo VIII, por exemplo, o escritor florentino argumenta a favor da crueldade bem empregada e adverte sobre
a mal-empregada, e afirma que o modo como os atos de crueldade são (bem ou mal) empregados têm relação direta com o
sucesso de se conservar no poder.
Nesse sentido, Maquiavel ao escrever “assim, é preciso
que, para se conservar, um príncipe aprenda a ser mau, e que
se sirva ou não disso de acordo com a necessidade” (Maquiavel,
1999, p. 99) traz que o valor das ações repousa no quão oportuno é ser mau para o príncipe6, sendo portanto, essa atitude
aceitável, quando se trata de se manter no poder, o que marca
a ruptura com uma antiga estrutura de conselhos para o governante, que os instruíam caminhos para se alcançar a posição de
sabedoria efetiva, nas circunstâncias em que a escolha se via
próxima. Dentro desse contexto cristão no qual os antigos espelhos de príncipe estavam envoltos, ser mal como necessário para
se manter no poder se torna uma virtude que até hoje desperta
polêmicas, daí grande parte das pessoas associarem o autor a
algo negativo.
Esta proposição maquiaveliana, ao contrário do que se
possa induzir precipitadamente, não prega a ação contínua do
mal. Uma vez que, segundo Maquiavel, a maldade é indispensável em situações na quais há jogos de poder, como meio político,
nesse caso. Desta maneira, para aquele que pretende executar
os feitos de um virtuoso líder, deverá se concientizar em relação à maldade, sabendo que seu uso é inevitável, desta maneira,
343
irá transitar entre o “ser glorioso” e o “ser mau” conforme a
situação em que o regente se encontra. Assim, maquiavélico
é saber que “mesmo que não seja possível dar o título de ato
valoroso à matança de concidadãos, à traição aos amigos, ou à
falta de fé, piedade e religião, com tudo isso conquista-se o poder” (Maquiavel, 1999, p. 68, grifo nosso), e assim, a partir dessa
afirmativa, podemos notar que segundo Maquiavel, a utilização
desses meios calcados no que poderia ser considerado maldade,
ou pelo menos naquilo que foge dos padrões da ética cristã,
pode ser bastante sábio da parte daquele que quer se manter no
poder. Porém, o pensador florentino adverte em seguida, “embora o crime possa conquistar um império, não conquista a glória”
(Maquiavel, 1999, p. 68), deixando claro que a maldade não deve
ser o caminho a ser seguido, e deve ser usada com parcimônia
e sabedoria.
O líder, inserido na perspectiva empresarial, e guiado por
valores como os que James C. Hunter prega, tem uma característica específica que muito se comunica com uma das bases do
conjunto de imperativos presentes no príncipe maquiaveliano, e
que repousa na intenção de adentrarmos no conteúdo sobre o
simbolismo. Desta maneira, o Capítulo XVIII expressa, de maneira bastante clara, a posição do príncipe em saber usufruir dos
meios a seu dispor como bem forem proveitosos, e assim, analogamente, um de seus recursos retóricos, explana-se em dois
arquétipos animais: “Ser raposa para conhecer as armadilhas, e
leão para atemorizar os lobos” (Maquiavel, 1999, p. 110).
Expõem-se, assim, duas forças úteis para o arsenal de um
líder perspicaz: a inteligência e a rapacidade simbolizada na raposa, e as forças de ação mais diretas e violentas, encontradas na
figura do leão. Assim, o líder maquiaveliano, para conquistar a
confiança daqueles que são governados, necessita que seja visto
pelo povo como uma imagem merecedora de confiança, e é nesse aspecto que a figura de raposa surge como apropriada para
ser copiada.
Maquiavel se desvia de instruir a busca pelas virtudes,
no entanto, para ele é certo que “não é preciso que o príncipe tenha todas as qualidades mencionadas; basta que aparente
possuí-las” (Maquiavel, 1999 p. 111). Como o próprio autor nos
diz, “os homens costumam julgar mais pelos olhos do que pelas
mãos”, logo “deve ele (o príncipe) fazer com que de seus atos se
reconheça a grandeza” (Maquiavel, 1999, p. 113).
Fica esclarecida a preocupação com o pensamento rapaz
da raposa, no sentido de o governante se utilizar da própria esperteza para moldar sua imagem perante seus governados, sen-
5
Como nos salienta Marcos Antonio Lopes, os espelhos de príncipes podem ser enquadrados dentro da perspectiva da Historia Magistra Vitae (História
Mestra da Vida), em uma escala menor e mais objetiva (Lopes, 2004, p. 67).
6
Na obra de Maquiavel, como bem se sabe, o que vale é o pragmatismo, desta maneira, quando afirmamos que Maquiavel defende o “quão oportuno
ser” queremos dizer que para Maquiavel é mais importante parecer ser do que de fato ser, pois, essencialmente, o príncipe deve se aproveitar das
condições das situações que enfrente. Assim, se naquela determinada situação, o mais inteligente a se fazer for “ser” bom, o príncipe o deverá “ser”;
quando for sensato agir como religioso, o deverá “ser”, bem como quando a necessidade diz que ele deve “ser” mau. Logo, o valor das ações não só
se baseia somente no quão oportuno é ser mau, mas no quão oportuno é se adaptar a cada uma das situações e desafios que se apresentam, seja lá
quais sejam, e moldar-se de acordo com o que for mais conveniente àquela situação, não sendo necessariamente mau.
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Maquiavel e a Literatura Pop Management: o mundo das incertezas e o convite às fantasias organizacionais
do necessário que se saiba os melhores caminhos a se percorrer,
as melhores formas para se aparentar. Desta maneira, dentro
da concepção de Maquiavel, um líder deve estar atento ao seu
meio, para suprir certos desejos de quem o vê: ora ostentando a
bondade, ora a religiosidade, ora o cuidado, ora a cegueira, ou
em outro caso, um líder como o que John se torna ao final de
sua experiência, afinal, era aquele o líder que os subordinados
desejavam ver.
Uma última reflexão pode ser feita na maneira como o
príncipe se relaciona, mais precisamente, enxerga os seus súditos7. Nesse sentindo, algumas perguntas cabem a O Príncipe, a
partir da leitura da obra: deve-se dar atenção ao povo?
Importante ter em mente, já posto a busca pela análise
crítica, e não a de deturpar o autor, que Maquiavel pauta suas
escolhas na conveniência e nas vantagens situacionais do príncipe, e assim, ele conclui que a população merece atenção. A
seguir explica-se o porquê, em três diferentes razões.
Logicamente, se anteriormente foi mostrado o fator simbólico necessário para um déspota se sustentar, é importante
também ressaltar a importância do povo dentro desse jogo de
poder, como um dos pontos para se investigar sobre as construções simbólicas. Ou seja, para simbolizar algo, é preciso saber o
que merece ser simbolizado, e é nos súditos em que encontramos
parte da resposta.
No capítulo IX, em meio a uma reflexão sobre o principado, defende-se que este é instituído ou com o suporte do povo
ou pelos grandes, sendo que aqueles não desejam ser oprimidos,
enquanto os últimos anseiam por oprimir, por isso, agradar o
povo é mais fácil, já que ele tem um objetivo mais honesto, sendo mais fácil atender seus desejos, uma vez que esses desejos se
assentam apenas no não ser oprimido. Ademais, diz não haver
segurança para o líder que não agrade a maioria, e após analisar
as circunstâncias de quais apoios são mais valiosos, levanta duas
observações preciosas. Desta maneira, Maquiavel conclui:
Aquele que se faz príncipe pelo favor do povo deve permanecer amigo dele, o que não oferece dificuldades, pois este quer
simplesmente não receber opressão. Mas o que ascender ao
principado contra a vontade do povo, por favor dos poderosos, deve, em primeiro lugar, conquistar o povo (Maquiavel,
1999 p. 75).
Em seguida, Maquiavel continua dando mostras de como
considera importante que um governante se atente aos anseios
do povo, mostrando que, apesar de Maquiavel figurar no senso
comum principalmente como um autor que despreza as vontades dos subordinados, na verdade ele traz essa boa relação entre
governante e governados como uma das chaves para o sucesso
do príncipe, como fica claro no excerto a seguir: “Apenas que, a
um príncipe, é necessário que o povo devote amizade; senão, irá
fracassar nas adversidades” (Maquiavel, 1999 p. 75).
7
Além do mais, no capítulo XIX, reservado para abordar as
maneiras de como evitar ser desprezado e odiado, justamente
pelos seus subordinados, Maquiavel diz ser fundamental para o
líder distanciar-se de ser visto como leviano e covarde, tal qual
o navegador se esquiva de rochedos. Portando-se do jeito expresso, não há motivos de ter receio de conspirações se tiver
um povo amigo, pois, já que as ameaças podem vir somente
internamente ou externamente, boas armas te protegerão do estrangeiro, enquanto as boas relações com os subordinados protegem os líderes do perigo interno: “Assim, concluo afirmando
que a um príncipe pouco devem importar as conspirações, se for
amado pelo povo; quando, porém, este é o seu inimigo e o odeia,
deve temer tudo e a todos” (Maquiavel, 1999 p. 115).
Desse modo, tendo abordado sobre o papel dos liderados
nos trechos acima, não resta dúvida de que o povo e suas necessidades são de suma importancia na concepção de Maquiavel, o
que evidencia que suas percepções de liderança não são assim
tão distantes daquelas pregadas por Hunter. Em ambas o liderado se mostra como importante, e conquistá-lo é fundamental, o
que muda é o modo de agir em certas ocasiões.
Ainda no mesmo capítulo, o pensador florentino escreve
esta frase para resumir bem o que discorreu, até então, durante
o texto, e resumir também a identificação da relação entre líder
e liderado possível em toda a obra: “Os Estados bem organizados
e os príncipes prudentes sempre se preocuparam em não reduzir
os grandes ao desespero e satisfazer o povo, porque essa é uma
das coisas mais importantes que um príncipe deve ter em mente”
(Maquiavel, 1999, p. 115-116).
Maquiavel educador: O Monge e o
Executivo travestindo o discurso
maquiavélico
Podemos entender O Monge e Executivo como uma das
várias obras preciosas para o sistema produtivo atual, já que traz
a ideia de que “um novo contrato social, baseado no comprometimento e na participação, foi estabelecido entre o corpo gerencial e os funcionários” (Wood Júnior e Paula, 2002, p.44), além
do que a existência desse tipo de literatura reúne normas, rituais
e padrões que muitas vezes recorrem ao universo simbólico e
que ajudam a exercer o controle comportamental e as normas
de conduta dos funcionários (Wood Júnior e Paula, 2002, p.44).
Além do mais, o modo como esses escritos se apresentam,
além do conteúdo que divulgam, convidam o funcionário a uma
fantasia de busca à liderança e ao autoaperfeiçoamento. O abandono da visão administrativa clássica, referindo-se a ela como
obtusa e ruim, generalizou e intensificou a busca pessoal pelo
destaque de ser líder, mas “as posições gerenciais continuaram indisponíveis para a maioria, mas a opressão explícita perdeu espaço
Em uma analogia na qual, como já afirmamos anteriormente, o príncipe pode ser entendido como o líder e os súditos como os liderados.
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Luis Fernando Tosta Barbato, Mateus Henriques Patrício
e os funcionários foram convidados a participar das fantasias de
poder da gerência” (Wood Júnior e Paula, 2002, p. 44).
Desta maneira, a fantasia vendida por essas obras do chamado pop management, e consumida com afinco por aqueles
participantes das hierarquias corporativas, repousa no pensar
que a falha empresarial está mais ligada a como você se entende
do que como o mercado se articula, transformando em “termos
micros os conflitos macroestruturais entre capital e trabalho”
(Sá, 2013, p. 90), do qual a obra de Hunter não se abstém, e pode
ser conferido, por exemplo, no trecho a seguir: “Famílias saudáveis, equipes saudáveis, igrejas saudáveis, negócios saudáveis e
até vidas saudáveis falam de relacionamentos saudáveis. Os líderes verdadeiramente grandes têm essa capacidade de construir
relacionamentos saudáveis” (Hunter, 2004, p. 38).
Nesse sentido, a obra de Hunter ajuda a trazer um universo que pode ser considerado imerso nesse mundo fantasioso do
qual estamos tratando, no qual os sucessos e fracassos parecem
depender unicamente da própria pessoa e de seus modos de agir,
esquecendo que há toda uma rede externa de elementos que
estão intimamente ligados a essas questões. Hunter se esquece,
ou pelo menos minimiza, do que Maquiavel chamou de fortuna,
e que juntamente com as virtudes do líder, estão nas bases das
relações de liderança. Nesse sentido, nossas ideias convergem
com aquelas presentes no trecho a seguir, de Danielle Sá:
O texto de Hunter suprime efetivamente a dinâmica do poder,
isto é, oculta o fato de que o exercício das atividades profissionais, seja em posições de mando ou subalternas, envolvem a
dependência de recursos e facilidades que estão desigualmente distribuídos entre os atores sociais. O discurso da liderança
servidora reduz tal desigualdade entre os atores sociais por
meio de vários mecanismos (Sá, 2013, p. 90).
A criação de um plano empresarial de um mundo melhor,
até lúdico, estimula os indivíduos a projetarem a suas fantasias
de poder na organização (Wood Júnior e Paula, 2002, p. 44).
Nesse sentido, como temos demonstrado, o mundo projetado
por James C. Hunter é dificilmente visualizado no mundo real,
mas mesmo assim não pode ser eximido de estar a ele ligado,
uma vez que atende a toda uma lógica produtiva que incrementa a produtividade dos funcionários e por consequência, os
ganhos das corporações, o que ressalta que, mesmo partindo de
premissas essencialmente fantasiosas, O Monge e o Executivo e a
leitura pop management, de uma maneira geral, não podem ser
ignorados como mera literatura a ser descartada.
Desta maneira, a partir dessa ótica implícita nesse ideal presente em O Monge e o Executivo, e em outras obras de
seu universo editorial, conhecer os desejos do funcionário e
revestir a empresa de sentimentos pode ser entendido como
uma estratégia de maximização dos lucros, uma vez que a visão
de Hunter traz um modo de ver a empresa como espaço para
autorrealização pessoal de seus funcionários, e não somente
profissional. Assim, uma vez que a satisfação pessoal se mostra
como intimamente ligada à realização profissional, nesse uni-
345
verso de Hunter presente em O Monge e o Executivo, a realização pessoal, para ser bem-sucedida, deve vir acompanhada
da realização profissional, o que vai ao encontro dos interesses
produtivos das empresas.
Cabe aqui recorrermos novamente a Maquiavel, uma vez
que, ao buscar esse liderado benevolente e feliz, e, principalmente, produtivo, não podemos ignorar também que, mesmo
dentro dessa ótica do “líder servidor” de Hunter, há ainda um
fundo de exploração e manipulação dos liderados, a fim de atingir objetivos específicos, que no caso, seriam o bom andamento
de uma empresa e, portanto, o crescimento de seus lucros.
Nesse sentido, o líder de Hunter não está muito distante
do líder de Maquiavel, uma vez que ambos usam de estratégias
(e manipulação) para manterem-se em posição de destaque. Seja
o líder amoroso de Hunter, ou o líder frio e racional de Maquiavel, ambos têm objetivos muito semelhantes, e não se abstêm
de utilizar seus liderados para alcançá-los. O trecho a seguir, de
Maquiavel, nos ajuda a compreender melhor essa questão: “Assim, concluo, afirmando que a um príncipe pouco deve importar
as conspirações, se for amado pelo povo [...]. Os estados bem
organizados e os príncipes prudentes sempre se preocuparam em
não reduzir os grandes ao desespero e satisfazer o povo, porque
essa é uma das coisas mais importantes que um príncipe deve ter
em mente” (Maquiavel, 1999, p. 115-116).
Ao pensarmos em uma empresa que adota a filosofia de
amar os seus funcionários, podemos, depois de uma análise mais
profunda, perceber que no fim, isso pouco importa. Na verdade,
o que ela busca são funcionários mais produtivos. O discurso
do amor é a chave para isso, que seja utilizado. Nesse sentido, o amor, pelo menos dentro desse ramo corporativo, pode ser
entendido muito mais como uma estratégia de manutenção de
uma ordem do que altruísmo e benevolência. A partir dessas relações, podemos perceber que os líderes idealizados por Hunter e
Maquiavel, tão distantes no tempo e em suas representações, no
fundo não são líderes tão distantes assim um do outro em suas
concepções, pois ambos buscam se manter no poder, cada um
por intermédio das armas que achar mais adequadas, cada um
de acordo com as demandas de seu tempo.
O Monge e o Executivo permite a inserção dos liderados
em uma relação fictícia, na qual o líder se torna um símbolo romantizado, representando a vontade dos funcionários de alcançarem no trabalho o seu bem-estar pessoal e, simultaneamente,
o profissional. Como nos traz Maquiavel, “não é preciso que o
príncipe tenha todas as qualidades mencionadas; basta que aparente possuí-las” (Maquiavel, 1999, p. 111), esta aí a essência do
líder servidor, utilizando-se de jargões, e agindo de modo que a
empresa se revista de qualidades almejáveis, hiperbolizando as
relações de afeto humano, mas também ocultando a constante
divisão de poder entre empresa-funcionário, que impossibilita
um genuíno modo de gestão baseado no amor Ágape, pelo menos em sua essência.
Forja-se então uma profunda ligação entre funcionário e
empresa, que transforma a organização em um ente no qual o
empregado devota sua potência de agir, e que consagra essa em-
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Maquiavel e a Literatura Pop Management: o mundo das incertezas e o convite às fantasias organizacionais
presa como uma parte de si, como parte essencial de sua própria
essência como sujeito. Neste universo, portanto, a empresa, por
intermédio de um discurso baseado no amor e na generosidade
com seus funcionários, e encabeçada por um líder que simboliza
isso e que manipula esses funcionários a um fim bastante mundano baseado no poder e no lucro, torna-se o centro de uma
gama de desejos, aspirações e interesses.
Portanto, a empresa se faz necessária, e o discurso de
Hunter ajuda a evidenciar isso, o que mostra que ele não está
muito distante daquilo que o manual de Maquiavel defende:
“Conclui-se, então, que um príncipe prudente deve pensar nos
modos de ser necessário aos súditos, sempre, e de estes necessitarem do Estado; depois, ser-lhe-ão sempre leais” (Maquiavel,
1999, p. 76).
A partir do momento em que o funcionário enxerga a
sua vida pessoal como intrincada à empresa em que trabalha,
cujos desejos pessoais e vida social se equivalem ao mundo profissional vivido, não só o funcionário sente amor, mas também
sente o temor, pois seu emprego já se tornara um bem precioso e
essencial demais para ser perdido, portanto, mesmo dentro desse
discurso baseado no bem-estar ao funcionários, há toda uma
estratégia de poder oculta, uma vez que torna esse funcionário
bastante dependente dessas organizações, temente em dela ser
alijado, o que justifica condutas, além de produtivas, leais.
Perder o emprego, nesse sentido, significa perder muito
mais que uma fonte de renda, mas sim perder toda uma identidade e uma estabilidade nesse fluido e intenso mundo pós-moderno,
portanto, o emprego se torna um bem valioso demais para ser colocado em risco, e adequar-se às condutas acaba sendo necessário
para garantir essa almejada estabilidade social e identitária.
O questionamento próprio do maquiavelismo, “é melhor
ser amado do que ser temido?”, desta maneira, pode mais uma
ver ser relacionado com esse distante (mas paradoxalmente muito real) mundo proposto por Hunter, uma vez que, por mais que
o discurso seja do amor, não está ausente o temor, uma das bases
necessárias, segundo Maquiavel, para o poder de um príncipe.
“Responder-se-á que se preferiria ser uma e outra coisa; porém,
como é difícil unir, a um só tempo, as qualidades que promovem aqueles resultados, é muito mais seguro ser temido do que
amado” (Maquiavel, 1999, p. 106). Além disso, como nos traz
o próprio Maquiavel, “um príncipe sábio, amando os homens
como desejam eles ser amados, e sendo temido pelos homens
como deseja ele ser temido, deve ter como base aquilo que é seu,
não dos outros. Enfim, deve somente procurar evitar ser odiado”
(Maquiavel, 1999, p. 108).
As palavras que saem da boca do personagem Simeão
parecem reformular a premissa típica do maquiavelismo, por dar
extrema importância em se fazer amado pelo “povo” (aqui em
uma alusão aos funcionários subordinados) e ocultar o temor
consequente e inerente às organizações que adotam a cultura
organizacional e o modelo de liderança sugerido.
Obtém-se, desta maneira, do que foi exposto, a seguinte
lógica: o líder de Hunter centraliza em si todas as visões positivas
e desejos fantasiosos do funcionário; os males e a possibilida-
de de sofrê-los que surgem na vida do colaborador, de maneira
oposta, são ocultados, ou mesmo a causa se desvirtua ao recair
sobre as exigências do mercado, ou ainda, principalmente, pelos
próprios erros do liderado, que se torna o principal culpado por
seus fracassos, como se os agentes externos devessem ser excluídos ou minimizados.
Assim, partindo da perspectiva daquele que ocupa uma
função subordinada, por exemplo, as conquistas profissionais, o
alcance de uma posição mais elevada na hierarquia organizacional, ou um aumento de salário são recebidos como resultados do
bom rendimento recompensado pela empresa. Portanto, mesmo
que essas promoções apresentem vantagens, elas também refletem essa ótica oculta presente em O Monge e o Executivo da
qual temos falado, que prende o trabalhador à empresa, justamente porque ela se mostra como benevolente para com seus
funcionários, a ponto de se tornar um bem precioso demais para
ser colocado em risco.
Conclusão
Conclui-se, portanto, que as ideias do livro O Monge e
Executivo, que prega uma modelo de liderança baseado no amor,
não são assim tão distintas das ideias propostas pelo aparentemente antagônico O Príncipe, que defende um modelo de liderança baseado na razão e na frieza, pois ambas servem como
guia de como líderes de empresas ou de Estados, e de como
devem se portar para se manterem no poder e controlar seus
liderados, extraindo deles todo o apoio que justifica sua legitimação no poder, ao mesmo tempo em que defendem o uso de
estratégias para isso, sejam elas baseadas no amor ou no medo,
mas pensadas para se atingir esse objetivo comum.
No entanto, as distâncias no tempo e no espaço entre os
dois autores ajudaram a ofuscar essas semelhanças, que, no fundo, depois de passarem por uma análise mais profunda e apurada, se mostram bastantes convergentes nos objetivos, mudando
apenas as estratégias utilizadas para atingi-los. Se o mundo de
hoje prega que, sendo um líder carismático, benevolente e servidor, esse líder obterá um maior controle sobre seus funcionários, e os conduzirá à maximização dos lucros de sua corporação,
além de melhor garantir sua própria manutenção no poder, que
assim o faça, provavelmente diria Maquiavel.
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Submetido: 16/04/2018
Aceito: 07/11/2018