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A Sigilografia na obra do Marquês de Abrantes Maria do Rosário Barbosa Morujão SEPARATA DE ARMAS E TROFÉUS REVISTA DE HISTÓRIA, HERÁLDICA, GENEALOGIA E ARTE IX SÉRIE TOMO 20 2018 A Sigilografia na obra do Marquês de Abrantes Maria do Rosário Barbosa Morujão* Foi com grande gosto que recebi – e aceitei – o convite do Doutor Miguel Metelo de Seixas para participar na sessão organizada pelo Instituto Português de Heráldica evocativa da grande figura desta e de outras ciências históricas que foi D. Luíz Gonzaga de Lancastre e Távora, Marquês de Abrantes. A minha intervenção foca-se na sua obra sigilográfica, dado que me tenho dedicado nos últimos anos à investigação em torno dos selos, e em especial a um projecto de constituição de um corpus sigilográfico português que tive já a oportunidade de apresentar a este Instituto1. * Doutora em História da Idade Média pela Universidade de Coimbra. Professora Auxiliar do Departamento de História, Estudos Europeus, Arqueologia e Artes da Faculdade de Letras dessa mesma Universidade. Investigadora integrada do Centro de História da Sociedade e da Cultura dessa Faculdade (CHSC-FLUC) e colaboradora do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa (CEHR-UCP). Sócia correspondente do Instituto Português de Heráldica. 1 MORUJÃO, Maria do Rosário Barbosa, “SIGILLVM PORTVGALIAE: o corpus dos selos portugueses a tomar forma”, Armas e Troféus. Revista de História, Heráldica, Genealogia e Arte, 9.ª série, 18 (2016) pp. 29-33. Sobre este projecto, ver também MORUJÃO, Maria do Rosário Barbosa, LIRA, Sérgio, SARAIVA, Anísio Miguel de Sousa, PINTO Pedro, “The Portuguese sigillographic heritage: SIGILLVM, a new research project on a remarkable and mostly neglected heritage”, in AMOÊDA, R., LIRA, S., PINHEIRO, C. (eds.), Heritage 2014 – Proceedings of the 4th International Conference on Heritage and Sustainable Development, Barcelos, Greenlines Institute for Sustainable Development, 2014, pp. 583-590 e MORUJÃO, Maria do Rosário Barbosa, “The SIGILLVM project – the Portuguese sigillographic heritage in the light of a project’s results”, in AMOÊDA, R., LIRA, S., PINHEIRO, C. (eds.), Heritage 2016 – Proceedings of the 5th International Conference on Heritage and Sustainable Development, vol. 1, Barcelos, Greenlines Institute for Sustainable Development, 2016, pp. 957-965. O projecto, patente no website 41 MARIA DO ROSÁRIO BARBOSA MORUJÃO Realçar os trabalhos de âmbito sigilográfico do Marquês de Abrantes é da mais inteira justiça, não fora ele, afinal, o autor da única obra de vulto sobre o assunto que existiu em Portugal de 1983 até ao final do século XX, aquela que mais se assemelha a um catálogo português de sigilografia, com que por vezes, aliás, é confundido, apesar de não o pretender ser. Refiro-me, naturalmente, ao seu clássico Estudo da sigilografia medieval portuguesa, dado à estampa em 1983 2, que, não sendo o seu único trabalho dedicado aos selos, é o de maior dimensão e o que maior projecção teve e tem, ainda hoje, 35 anos volvidos sobre a sua publicação. Na verdade, todo e qualquer investigador que se interesse pelos selos portugueses continua a ter de recorrer a este livro, o que é bem elucidativo da sua importância e do carácter pioneiro do imenso labor que esteve na sua base. Antes de me deter com algum pormenor nesta sua obra maior, convém referir outros trabalhos seus expressamente dedicados aos selos, fontes fundamentais para o conhecimento da heráldica medieval portuguesa. Destaco, em especial, o seu estudo sobre as enigmáticas armas de Coimbra, cuja evolução se pode acompanhar através dos sucessivos selos que o município coimbrão conheceu 3; e ainda um outro dedicado à devoção à Virgem Maria na sigilografia medieval portuguesa, em que analisa uma série de selos que têm Nossa Senhora como principal motivo iconográfico 4. Onze anos depois de, em 1972, ter dado à estampa uns Apontamentos de esfragística portuguesa 5, o Marquês de Abrantes publicou o Estudo da sigilografia medieval portuguesa. Trata-se de uma obra dividida em partes desiguais, a primeira das quais, intitulada “Panorama dos estudos sigilográficos no nosso país e normas para a sua sistematização” constitui uma introdução ao estudo dos selos; foi com ela que fiz a minha aprendizagem básica sobre a matéria, assim como acerca de alguns dos cuidados básicos e dos principais problemas que a sua conservação exige e coloca. Na segunda parte, “Esboço de um corpus esfragístico medieval 2 3 4 5 42 http://portugal-sigillvm.net [Consult. 25 Set. 2018], foi também noticiado em MORUJÃO, Maria do Rosário Barbosa, “SIGILLVM: corpus dos selos portugueses”, Invenire. Revista de Bens Culturais da Igreja, 11 (2015), pp. 72-73. TÁVORA, Luíz Gonzaga de Lancastre e, Marquês de Abrantes, Estudo da sigilografia medieval portuguesa, Lisboa, ICALP, 1983. Os índices desta obra foram publicados sete anos mais tarde, em O estudo da sigilografia medieval portuguesa – índices esfragísticos, Lisboa, IPH, 1990. “O selo medieval de Coimbra e o seu simbolismo esotérico”, Armas e Troféus, 5.ª série (1979), pp. 7-21. O culto mariano na sigilografia medieval portuguesa, sep. Actas – Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada, vol. 4, Guimarães, 1982. “Apontamentos de esfragística portuguesa (do século XVI ao XIX)”, Armas e Troféus, 3.ª série, t. 1, n.º 1 (Julho-Setembro 1972), pp. 108-132 e n.º 2 (Outubro-Dezembro 1982), pp. 219-238. SESSÃO EVOCATIVA DE DOM LUÍS GONZAGA DE LANCASTRE E TÁVORA... português”, são apresentadas as fichas de mais de 500 espécimes sigilográficos que o autor analisou, por via de regra, a partir dos originais, e que se encontram espalhados por diferentes arquivos, da Torre do Tombo (que, como principal repositório de fundos medievais portugueses, tem forçosamente a parte de leão) a arquivos locais e privados. Por decisão do autor, o livro não inclui selos régios, mas sim de instituições ou entidades eclesiásticas e laicas, como cabidos, mosteiros ou concelhos, e, sobretudo, de indivíduos de todas as condições, em especial membros do clero e da nobreza. De uma boa parte, mas infelizmente não de todos, inclui fotografias, e é pena que grande parte das imagens não tenha a qualidade necessária para documentar da melhor forma os selos que mostram. A minha atenção vai centrar-se, em especial, nas matrizes sigilares que a obra apresenta. Em trabalho recente, afirmam Mário Barroca e Alexandra Gradim que “Portugal não é particularmente rico no que respeita à preservação de matrizes sigilares medievais” 6. Eu matizaria esta afirmação: Portugal não conhece as matrizes sigilares que possui, perdidas em colecções de museus e espólios de escavações arqueológicas por identificar, ou nas mãos de privados que, as mais das vezes, não as dão a conhecer, em vários casos por as terem achado ao usarem detectores de metais, actividade que é proibida por lei. Num momento em que, em vários países, se faz um grande esforço por estudar as matrizes sigilares subsistentes 7, penso ser esta uma boa ocasião para chamar a atenção para estes objectos que também são designados por selos, a partir dos quais se faziam as impressões que, mais comummente, denominamos dessa forma. A obra do Marquês de Abrantes inclui as fichas relativas a 46 matrizes que ele próprio analisou, assim como a outras oito que não estudou directamente e que integrou no final do seu livro. 54 matrizes, pois, a larga maioria das quais desconhecida até então, e que datam de entre os séculos XII ou XIII e o século XVI. São matrizes de suspensão, ou seja, feitas de modo a poderem ser suspensas de um fio e usadas ao pescoço ou presas a um cinto, todas metálicas – em bronze, como era mais habitual, tendo algumas delas sido douradas. As matrizes têm diferentes formatos (ver gráfico 1), com o predomínio claro do circular, seguido, 6 7 BARROCA, Mário Jorge, GRADIM, Alexandra, “A matriz sigilar medieval de Martim Abarca (Tavira)”, Portvgalia, n.s., 37 (2016), pp. 55-67. Veja-se o caso de França, onde foi recentemente dada à estampa uma importante obra sobre as matrizes sigilares existentes na Biblioteca Nacional: VILAINE, Ambre, Matrices de sceaux du Moyen Âge. Département des Monnaies, Médailles et Antiques, Paris, BNF, 2014. Veja-se também o projecto “Portable Antiquities Scheme” que está a ser levado a cabo no Reino Unido, e que visa o registo de objectos arqueológicos, incluindo matrizes sigilares, encontrados por pessoas privadas em Inglaterra e Gales; esse registo, promovido pelo British Museum e pelo National Museum Wales, é consultável em https://finds.org.uk/ [Consult. 29 Set. 2018]. 43 MARIA DO ROSÁRIO BARBOSA MORUJÃO a larga distância, pela dupla ogiva, o quadrado lobado e o escudo peninsular, o que corresponde em parte ao que encontramos na documentação, porque, na Idade Média, a dupla ogiva tem um peso muito mais forte do que a amostra aqui considerada apresenta 8. gráfico 1. Formato das matrizes. A origem da maioria destas matrizes a origem é desconhecida; e isto tanto acontece com as que provêm de colecções privadas (cerca de uma dezena), às vezes compradas em feiras 9, como com as que fazem parte do espólio conservado em museus, que não sabemos como ali chegaram 10. Daquelas cujas origens se conhecem, algumas foram encontradas em escavações arqueológicas, nomeadamente dentro de sepulturas 11, outras ao proceder-se a trabalhos que implicavam o revolvimento de solos, como obras em estradas 12. 22 das matrizes que a obra apresenta integram as colecções de museus: doze são do Museu Nacional de Arqueologia 13, seis pertencem ao Museu Nacional de Arte Antiga 14; três estavam, à época, no Arquivo Distrital de Évora e passaram, 8 9 10 11 12 13 14 44 Efectivamente, este é o formato preferido por todos os dignitários eclesiásticos (bispos e arcebispos, priores e abades, prioresas e abadessas) até ao século XV. As matrizes adquiridas em feiras catalogadas na obra Estudo da sigilografia medieval portuguesa…, doravante referenciada apenas como MA, têm a seguinte numeração: MA 1, 2, 53, 487. MA 29-31, 33-36, 41-45. MA 8, 16-19, 21-22, 48, 485, 489. Caso de MA 490. MA 22, 29-31, 33-36, 41-45. MA 48-53. SESSÃO EVOCATIVA DE DOM LUÍS GONZAGA DE LANCASTRE E TÁVORA... entretanto, para o Museu dessa mesma cidade 15; uma, finalmente, encontrava-se no Museu Municipal de Vila Nova de Gaia 16. As matrizes que integram colecções de museus são as que mais facilmente se encontram: foi possível identificar algumas delas na base “Matriznet” 17. Mas, e as outras, as que pertencem a privados cuja identidade, de um modo geral, o Marquês de Abrantes não indicou 18? Como encontrá-las para poderem ser analisadas de novo, devidamente fotografadas, com as suas legendas lidas (o que D. Luiz de Távora nem sempre conseguiu fazer), reproduzidas em impressões que garantam a possibilidade de serem estudadas e de integrar um catálogo? Apelo a quem seja proprietário de alguma delas, ou conheça o seu paradeiro, para diligenciar no sentido de as tornar acessíveis aos investiga- fig. 1. Sessão evocativa de 21/II/2018: aspecto da assistência; mesa composta pelo presidente, chanceler e tesoureiro do Instituto; orador, D. João de Lancastre e Távora, filho do homenageado. dores. Porque são importantes, cada uma à sua maneira, todas como objectos 15 16 17 18 MA 56-58. MA 488. Esta base de dados, da responsabilidade da Direcção-Geral do Património Cultural, pode ser consultada em http://www.matriznet.dgpc.pt [Consul. 29 Set. 2018]. Assim sucede com MA 3-6, 16-19, 21, 22 e 54. 45 MARIA DO ROSÁRIO BARBOSA MORUJÃO únicos de que, na maioria dos casos, não existe qualquer outro testemunho. Porque na maioria das vezes não se conhecem impressões das matrizes sobreviventes, e essa parece ser a realidade também da maior parte daquelas que o Marquês elencou. A magnífica matriz que terá pertencido a D. Fernando de Meneses, conde e marquês de Vila Real, conde de Alcoutim e Valença, capitão-mor e governador de Ceuta entre 1491 e 1509, é um dos raros casos em que se sabe, com certeza, quem a possuiu 19. Uma outra, em dupla ogiva, de meados do século XIII, de acordo com o Marquês de Abrantes, mas que me parece mais provável ser da segunda metade desse século ou já mesmo do seguinte, por comparação com outros selos do mesmo género, pertenceu a uma monja chamada Elvira Martins (ignoramos de que mosteiro) 20. A freira fez-se representar no plano inferior do selo, sob a Virgem com o Menino que ocupa a parte superior do campo, um tipo de composição iconográfica muito comum entre os membros do clero secular precisamente a partir da segunda metade de Duzentos, o que justifica a minha proposta de data 21. Outro exemplo de selo feminino, de tipo heráldico, é o de Inês Fernandes, cuja matriz, em quadrado lobado, datará do último quartel do século XIII ou da centúria seguinte 22. Apresenta um escudo de tipo peninsular posto a direito com três faixas, cada qual carregada com três estrelas de seis raios; os lóbulos, semicirculares, contêm um leão rompante, estando os laterais afrontados. Quem seria esta Inês? Faria parte da família dos Avelares, como aventa o Marquês de Abrantes? Dificilmente saberemos ao certo, dado que estas matrizes, fora do contexto, sem correspondência com impressões sigilares apostas a documentos, são muito difíceis de atribuir a alguém concreto, mesmo quando o nome do proprietário está legível na legenda. Assim se passa, também, no caso de uma outra matriz que D. Luíz de Lancastre e Távora sugere ser de tipo falante: circular, ostenta uma besta posta em pala acompanhada, no pé, por uma flor de lis à dextra e uma estrela de sete raios à sinistra 23. A legenda diz-nos que se trata do selo de Martim R… Balestarii – Besteiro, Balestro? Sabemos que existiram famílias com esse apelido, provavel19 20 21 22 23 46 MA 20. MA 3. Cf. MORUJÃO, Maria do Rosário Barbosa; SARAIVA, Anísio Miguel de Sousa, “O selo como símbolo e representação do poder no mundo das catedrais”, in SARAIVA, Anísio Miguel de Sousa, MORUJÃO, Maria do Rosário Barbosa (eds.), O clero secular medieval e as suas catedrais: novas perspectivas e abordagens, Lisboa, CEHR-UCP, 2014, pp. 224-228. MA 5. MA 15. SESSÃO EVOCATIVA DE DOM LUÍS GONZAGA DE LANCASTRE E TÁVORA... mente derivado da profissão exercida. O Marquês de Abrantes indica que, em meados do século XIII – o que corresponde à cronologia possível desta matriz – um certo Martim Rodrigues Balestro comprou casas em Lisboa. Seria ele o proprietário do selo? Por vezes, as legendas omitem o nome do sigilante, contendo antes uma oração ou uma divisa. É o caso do selo decerto coevo do anterior, também de proveniência e paradeiro desconhecidos, que apresenta um calvário, com a cruz ladeada por uma estrela e um crescente. Abaixo, sob o pé da cruz, separado do plano superior por um arco trilobado, vê-se uma figura de eclesiástico orante, a legenda rogando Ih(es)V FILII DEI MISSERERE MEI TE. Quem pediria a Cristo misericórdia? Outras matrizes apresentadas na obra do Marquês de Abrantes são, simplesmente, anepígrafas, ou seja, não possuem legenda. Isoladas do seu contexto, torna-se quase impossível saber a quem tinham pertencido. Uma delas, redonda, do século XV, apresenta flagrantes afinidades com uma das moedas mais conhecidas de D. João I, o real de dez soldos de prata, ou com o vintém de D. João II 24. Terá pertencido, porventura, ao rei de Boa Memória, como aventa o Marquês de Abrantes 25; ou, pelo menos, como propõe Saul Gomes, estaria associada a uma oficina documental régia 26. Termino com a referência a duas matrizes monásticas quatrocentistas, ambas de devoção mariana e resultantes de um delicado trabalho de gravação. A primeira corresponde ao selo grande do convento do mosteiro de Lorvão 27, com uma iconografia, a lactação de S. Bernardo, que remete para o hagiológio de Cister. A segunda apresenta a Virgem com o Menino, sentada em sumptuoso cadeiral gótico coberto por um baldaquino, e pertencia ao convento da Conceição de Beja 28. Muitos outros exemplos poderia apresentar, mas penso que aqueles que mostrei demonstram à saciedade a importância da obra sigilográfica do Marquês de Abrantes e da valiosa colecção de selos que apresenta e cataloga, e como essa obra merece ser reconhecida e continuada. A essa tarefa irei continuar a dedicar uma larga parte das minhas investigações. 24 25 26 27 28 Cf. GOMES. Saul António, “A littera pythagorae e a sua simbologia cristológica na Idade Média portuguesa”, Humanitas, 60 (2008), pp. 191-192. MA 29. Ver supra, nota 24. MA 49; a fotografia que acompanha a ficha indica, por engano, o n.º 48. MA 50. 47