UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E EDUCAÇÃO – FAED
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
TESE DE DOUTORADO
UNIVERSIDADE E INTERCULTURALIDADE:
Ressignificações identitárias de estudantes da
Universidade Federal da Integração LatinoAmericana – UNILA (2008-2017)
THIAGO REISDORFER
FLORIANÓPOLIS
2018
THIAGO REISDORFER
UNIVERSIDADE E INTERCULTURALIDADE: RESSIGNIFICAÇÕES IDENTITÁRIAS
DE ESTUDANTES DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA INTEGRAÇÃO LATINOAMERICANA - UNILA (2008-2017)
Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em História do Centro de Ciências
Humanas e da Educação, da Universidade do
Estado de Santa Catarina, como requisito
parcial para obtenção do grau de Doutor em
História.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Felipe Falcão
FLORIANÓPOLIS
2018
Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema Universitário de Bibliotecas, com os dados fornecidos
pelo(a) autor(a).
Reisdorfer, Thiago Universidade e interculturalidade:
ressignificações identitárias de estudantes da Universidade Federal
da Integração Latino-Americana - UNILA (2008-2017) / Thiago
Reisdorfer. -- Florianópolis, 2018. 303 f. : il
Orientador: Luiz Felipe Falcão. Tese (Doutorado - Programa de
Pós-Graduação em História) -- Universidade Federal da Bahia, Centro
de Ciências Humanas e Educação, 2018.
1. América Latina. 2. Universidade. 3. Interculturalidade. 4. Ensino
Superior. I. Falcão, Luiz Felipe. II. Título.
CDD 900.034
RESUMO
Esta tese tem por objetivo problematizar significações e ressignificações identitárias de estudantes
da Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Criada em 2010, na cidade de Foz do
Iguaçu, Paraná, tem como proposta a atração de estudantes provenientes de toda a América Latina
e Caribe, com vistas a constituir um espaço multicultural que, por diferentes meios, promova e
desenvolva mecanismos de integração latino-americana. Inseriu-se numa cidade que seus meios
oficiais proclamam como sendo, ela mesma, multicultural. Neste ambiente, subjetividades
estudantis diversas se entrecruzam e tensionam sentidos e significados a respeito de identidades
universitárias pré-concebidas, o que produz novas formas de ser e estar na universidade e na
cidade. Isto se materializa numa identidade denominada “unileira”, constituída no
entrecruzamento de temporalidades diacrônicas e sincrônicas. A análise desse processo partiu da
compreensão de que as trajetórias dos estudantes nessas espacialidades se processaram ao ativar
espaços de experiências e horizontes de expectativas, tanto individuais quanto sociais e criaram
uma densidade temporal que tomamos, aqui, por objeto da História do Tempo Presente.
Palavras-chave: Identidade. Interculturalidade. Universidade.
ABSTRACT
The objective of this thesis is to problematize students’ identity significations and resignifications
from Latin American Integration Federal University. It was built in 2010, in Foz do Iguaçu city,
Paraná state, and its institutional proposal is to interest students from all Latin America and
Caribbean to constitute a multicultural space that promotes and develops devices for Latin
American integration by different ways. It is in a city where its official media claims itself as
multicultural. In this context, different student subjectivities intersected and tensed some senses
and significations about preconceived university identities which ones produced new ways of
being in university and city. It is materialized as an identity known as “unileira”, which one is
formed between diachronic and synchronic temporality crosses. Analysis of this process is based
on comprehension that students’ paths in these relational spatialities were processed when they
activated spaces of experiences and horizons of individual and social expectancies creating a
temporal density that we have, here, as an object of History of Present Time.
Key-words: Identity. Interculturality. University.
LISTA DE IMAGENS
Figura 1 - Mapa da Tríplice Fronteira – Paraguai, Brasil, Argentina ................................ 18
Figura 2 - Unila: o perigo mora ao lado ............................................................................. 216
Figura 3 - Imagem de crachá de identificação do PTI ....................................................... 237
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Número de estudantes matriculados por nacionalidade/ano (UNILA, 2016). .. 168
LISTA DE ABREVIATURAS
AI-5
Ato Institucional Nº 5.
CONAES
Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior
IMEA
Instituto Mercosul de Estudos Avançados
LDB
Lei de Diretrizes e Bases
PDI
Projeto de Desenvolvimento Institucional
PEC-G
Programa Estudante de Convênio Graduação
PEC-PG
Programa Estudante de Convênio Pós-Graduação
PUC
Pontifícia Universidade Católica.
REUNI
Reestruturação e Expansão das Universidades Federais
Sisu
Sistema de Seleção Unificado.
UDF
Universidade do Distrito Federal.
UDUAL
União de Universidades da América Latina
UEL
Universidade Estadual de Londrina
UEM
Universidade Estadual de Maringá
UFABC
Universidade Federal do ABC.
UFCA
Universidade Federal do Cariri
UFFS
Universidade Federal da Fronteira Sul.
UFGD
Universidade Federal da Grande Dourados.
UFMS
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul
UFPR
Universidade Federal do Paraná.
UFRGS
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
UFSB
Universidade Federal do Sul da Bahia
UNB
Universidade de Brasília.
UNE
União Nacional dos Estudantes.
Unila
Universidade Federal da Integração Latino-Americana
Unilab
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
Unioeste
Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Unisinos
Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
USP
Universidade de São Paulo.
UTFPR
Universidade Tecnológica Federal do Paraná
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 17
1 (DES)CAMINHOS PARA A UNILA ................................................................ 39
1.1 DO BAIRRO À UNIVERSIDADE ................................................................... 43
1.2 ENTRE MUITAS VIDAS ................................................................................. 58
1.3 DE FOZ DO IGUAÇU PARA A UNILA .......................................................... 75
1.4 (DES)CAMINHOS: TRAJETÓRIAS EM MOVIMENTO ............................... 91
2 NARRATIVAS DE HARMONIA MULTICULTURAL EM FOZ DO
IGUAÇU ................................................................................................................. 97
2.1 FOZ DO IGUAÇU: ENTRE A FRONTEIRA E A MULTICULTURALIDADE
.................................................................................................................................. 99
2.2 FOZ DO IGUAÇU COMO OBJETO DA HISTÓRIA .................................... 108
2.3 DISPUTAS PELA MEMÓRIA E INTERCULTURALIDADE ..................... 136
3 A UNILA EM CONSTRUÇÃO: UMA UNIVERSIDADE PARA A
INTEGRAÇÃO .................................................................................................... 145
3.1 UMA UNIVERSIDADE NOVA? A UNILA NO CONTEXTO DAS
UNIVERSIDADES BRASILEIRAS ..................................................................... 146
3.2 UMA UNIVERSIDADE BRASILEIRA COM VOCAÇÃO
LATINO-AMERICANA ....................................................................................... 156
3.3 UNILA: PARA ALÉM DA INTEGRAÇÃO? ................................................. 172
4.IDENTIDADES E DIFERENÇAS NA CIDADE ........................................... 181
4.1 CHEGANDO NA CIDADE ............................................................................ 185
4.2 UNILEIROS: CONSTRUINDO UMA IDENTIDADE .................................. 200
4.3 O “UNILEIRO” NA CIDADE ......................................................................... 207
4.4 MEMÓRIAS E PRECONCEITOS .................................................................. 224
5 UNILEIROS: CONSTITUIÇÃO E (RES)SIGNIFICAÇÃO
IDENTITÁRIA NA EXPERIÊNCIA ESTUDANTIL ...................................... 241
5.1 CHEGANDO NA UNIVERSIDADE .............................................................. 242
5.2 VIVÊNCIAS NA UNILA ................................................................................ 253
5.3 IDENTIDADES FRAGMENTADAS ............................................................. 263
5.4 IDENTIDADE E INTERCULTURALIDADE ............................................... 275
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 287
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 291
FONTES ................................................................................................................. 298
APÊNDICE I..........................................................................................................304
17
INTRODUÇÃO1
Ao descer na rodoviária/aeroporto de Foz do Iguaçu/PR, o/a estudante ou futuro/a
estudante da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), se insere em uma
cidade/universidade complexa e dinâmica. Atravessada e marcada por conceitos, pré-conceitos
e preconceitos, essa relação, junto com outras, produz um conjunto de historicidades
constitutivas de suas subjetividades. Em seu presente, espaços de experiências e horizontes de
expectativas múltiplos disputam sentidos, pertencimentos e vinculações subjetivas. Agregam a
essas relações a complexidade de suas próprias subjetividades. Oriundos de diferentes
dinâmicas culturais, complexificam, tensionam e dinamizam essas relações. Problematizar as
(res)significações identitárias, a partir das relações interculturais constituídas e constituintes da
trama cidade/universidade no tempo presente, é o objetivo desta tese.
A cidade de Foz do Iguaçu/PR é comumente lembrada pela combinação específica de
maravilhas da natureza e gigantescas intervenções humanas. A Usina Binacional de Itaipu,
construída ao longo das décadas de 1970 e 1980, pode ser vista como uma espécie de síntese
desse processo. A partir de uma conjuntura natural favorável, aplicou-se um grande esforço
humano, ao longo da ditadura militar, que visou à construção dessa importante obra, que une
fatores de infraestrutura, geopolítica, recursos naturais e resistência social. O mesmo acontece
com a Ponte da Amizade e a Ponte da Fraternidade, que unem o Brasil ao Paraguai e à
Argentina, respectivamente. Nessa cidade de fronteiras, a(s) ponte(s), ao mesmo tempo em que
unem, por meio da ligação física ou simbólica, separam, através da construção de barreiras e
fronteiras calcadas na sedimentação de preconceitos múltiplos que atravessam a relação entre
Brasil, Paraguai e Argentina, entre brasileiros e latino americanos.2 Sua localização geográfica
pode ser percebida na Figura 1:
1
Esta pesquisa contou com o apoio da Coordenaçãod e Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
através de bolsa de pesquisa por um período de 18 meses.
2
Sempre que nos referirmos à latino-americanos e brasileiros distintamente, o faremos com o objetivo de dar
praticidade e fluência à escrita do texto. Entendemos, junto com Canclini (2008), que os brasileiros, mesmo que
busquem se distanciar, estão inseridos no contexto latino-americano.
18
Figura 1 – Mapa da tríplice fronteira - Paraguai, Brasil, Argentina
Fonte: GEOGRAFIA UEL. Relatórios geo. Disponível em: <http://relatoriosgeo2013.blogspot.com/>
Acesso em: 13 mar. 2018.
Nessa relação entre pontes e muros, existem, em Foz do Iguaçu, duas universidades
públicas presenciais: a Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), e a Unila. A
Unioeste foi fundada em 1994, a partir da união de faculdades municipais independentes
existentes nas cidades paranaenses de Foz do Iguaçu, Cascavel, Toledo, Marechal Cândido
Rondon e Francisco Beltrão. Já a Unila, cujos estudantes e suas relações com a cidade são o
foco de nosso olhar, começa a ser estruturada em 2008 e entra em funcionamento em 2010.
Ambas as universidades atraem, intencionalmente ou não, um número significativo de
estudantes brasileiros e estrangeiros.
Para que seja possível entender as questões relacionadas à presença de estudantes e os
tensionamentos estabelecidos na cidade, é necessário pensar a constituição dessa espacialidade.
Foz do Iguaçu está localizada no extremo oeste do estado do Paraná. Faz fronteira com dois
países: através de Ciudad del Este se conecta com o Paraguai e por meio de Puerto Iguazú faz
divisa com a Argentina. Essa região é conhecida como uma das tríplices fronteiras que o Brasil
apresenta, uma alusão às divisas internacionais apontadas. Sua população total é marcadamente
19
variável, e tem acompanhado as transformações pelas quais passa a cidade. Em 1960, contava
com 28.080 habitantes; passou para 33.970 em 1970, e quadruplicou em uma década,
alcançando, em 1980, 136.320 habitantes. A partir dessa década, as mudanças populacionais
não são mais tão abruptas. Foz do Iguaçu passa a 190.123 habitantes em 1991; 258.543
habitantes, em 2000; chega, em 2010, a 256.088 habitantes e, para 2017, chega a uma estimativa
de população de 264.044 (IBGE, 2014; PREFEITURA MUNICIPAL DE FOZ DO IGUAÇU,
2015). Sua constituição produz historicidades que devem ser pensadas se quisermos entender
os problemas e as possibilidades enfrentadas por jovens estudantes ao dialogarem com as
desigualdades lá constituídas. Sem compreender a específica historicidade de Foz do Iguaçu,
torna-se limitada a compreensão do objeto de análise que propomos.
Quanto à Unila, ela se apresenta como uma universidade brasileira com vocação latinoamericana. Essa é uma das definições correntes que, em diferentes fórmulas, aparece em vários
documentos e falas que a visam definir. Pensada para uma cidade que, em seus espaços
institucionais, se afirma como “multicultural” e de fronteira, projetada como um espaço
intercultural de integração, a Unila se apresenta a partir de complexidades múltiplas que não
podem ser apreendidas apenas na sincronicidade da experiência social constituída no presente.
É na relação diacronia/sincronia do processo histórico que encontramos possibilidades de
elucidação e/ou análise das problemáticas levantadas por tal questão. A Unila foi fundada pela
lei nº 12.189, de 12 de janeiro de 2010, naquela cidade. Até 2016, teve 3.056 estudantes, em 29
cursos de diversas áreas do conhecimento, sendo 1.072 provenientes de 17 países da América
Latina e Caribe.
A universidade e a experiência universitária são entendidas para além das dimensões
formais de preparação acadêmica e profissional. Para que possamos compreender nosso objeto,
é preciso analisar essas espacialidades como historicidades em construção. Pensar experiências
e identidades dos estudantes só é possível quando percebemos as vivências na relação
cidade/universidade como um processo construído por sujeitos de carne e osso. Muito mais que
tijolos, livros, quadros e giz, uma universidade é um espaço de tensionamentos sociais,
entrelaçamentos e trocas subjetivas.
Com base nessa perspectiva, problematizamos a constituição histórica de sentidos de
estudantes a respeito da experiência universitária. Para tanto, dialogamos com uma série de
referenciais teóricos e metodológicos que pretendemos abordar e discutir ao longo do texto.
Um dos primeiros desafios enfrentados pela construção dessa discussão advém do seu
posicionamento dentro do campo da História.
20
Ele se inicia a partir do recorte de um tempo que se abre em 2008, com o início formal
do processo de constituição da Unila e que avançou de acordo com a coleta de entrevistas que
se encerraram no primeiro semestre de 2017. Temos o presente e sua densidade histórica que
emerge como temporalidade central de nossa análise historiográfica. Essa perspectiva torna
necessária uma reflexão sobre as estruturas teóricas e metodológicas que permitem levar adiante
o trabalho proposto.
A produção de uma História do presente ou sobre o presente, como aponta Reinhart
Koselleck, remonta a diversos momentos e formas distintas de se escrever História. Um dos
fenômenos centrais que emergiu como provocadores dessa preocupação foi a Segunda Guerra
Mundial. Na Alemanha, um importante esforço é produzido por historiadores que buscam
compreender a experiência da Guerra, suas causas, impactos e desdobramentos. O próprio
Koselleck se ocupa de pensar essa produção e suas contribuições para a chamada
Zeitgeschichte. Entretanto, no caso brasileiro, as influências iniciais e centrais ganharam
impulso a partir do diálogo com produções realizadas a partir da criação do Institut d'Histoire
du Temps Présent (IHTP), na França, na década de 1970. A partir dessas discussões, construiuse, no Brasil, uma vasta discussão que busca viabilizar e consolidar o presente enquanto objeto
da História.
O autor com quem temos dialogado centralmente para a construção de uma perspectiva
de História que dê conta das preocupações e dos problemas levantados em nossa pesquisa, é
Koselleck. Duas de suas obras são centrais na discussão: Futuro Passado (2006) e Estratos do
Tempo (2014). Os conceitos apresentados nesses textos permitem o enriquecimento da
discussão na busca da compreensão das identidades produzidas, a partir das experiências na
Unila.
Essa centralidade decorre do fato de que, assim como Koselleck (2006, 2014) e também
François Hartog (2013), entendemos que o presente se constitui no tensionamento entre o
espaço de experiência e o horizonte de expectativas. É nessa tensão que identificamos que se
constitui o presente que é transformado em objeto do historiador. A contribuição que as
pesquisas em História do Tempo Presente têm trazido para o campo historiográfico se situa na
transformação desse tempo, tradicionalmente área de sociólogos e antropólogos, em um tempo
historicizável. Isso ocorre por retomarmos a compreensão de que o objeto da História não é o
passado, por si mesmo, mas o homem no tempo (BLOCH, 2001). Nessa formulação, o objeto
da História deixa de ficar preso ao passado e movimenta-se, temporalmente, junto à experiência
humana.
21
Um dos problemas que essa concepção tem trazido ao historiador é a demarcação
temporal de seu objeto. Afinal, o que é o presente? Qual o momento definidor dessa
temporalidade? Há um marco que possibilita a identificação do início do presente? Essas
questões têm desafiado o trabalho no campo da História do Tempo Presente. A formulação
proposta para esse problema, ainda nos primórdios do IHTP, buscava estabelecer esse marco.
Ao surgir com a preocupação de estudar dimensões da Segunda Guerra Mundial, o conflito
parecia um momento quase que “natural” para demarcar o início desse tempo novo. Dessa
forma, o tempo, dentro do intervalo da Segunda Guerra e o momento das discussões que se
realizavam, ficava caracterizado como o presente.
Ao partir de diferentes historicidades, historiadores definem diferentes marcos para o
“início” do presente. Na América Latina, onde a memória da Segunda Guerra Mundial era
menos impactante, outras experiências marcavam esse tempo. Tradicionalmente, o ciclo de
golpes de Estado e implantação de governos ditatoriais, nas décadas de 1960 e 1970, foram
utilizados como definidores. Ambas as perspectivas, a francesa e a latino-americana,
dialogavam com uma perspectiva semelhante sobre o presente. Esta foi sistematizada e debatida
por Henry Rousso, em sua obra A Última Catástrofe (2016). Ali, o autor definiu o tempo
presente como demarcado pela “Última Catástrofe”. Esse tempo surgiria como um momento
bem definido, por um lado, e fluido, por outro. É um tempo móvel, pois catástrofes se sucedem.
Desse modo, a depender da perspectiva utilizada pelo pesquisador, ele poderia ter início em
1945, 1964, 1989, 2001, etc, isto é, mover o marco de acordo com as necessidades e
possibilidades heurísticas do objeto a ser analisado.
Se a formulação de Rousso permite certa mobilidade e flexibilidade ao trabalho do
historiador, ela também fixa o presente, afinal, estabelece que as experiências históricas dos
sujeitos de um determinado tempo seriam, inevitavelmente, demarcadas por essa “última
catástrofe”. O limite e, a nosso ver, a impossibilidade de trabalharmos com essa definição se
apresenta pela noção apriorística das temporalidades constituídas nas subjetividades dos
sujeitos históricos. Na proposta de Rousso, todos os sujeitos teriam, como dimensão definidora
de seu espaço de experiência e horizonte de expectativas, a “catástrofe”. Assim, outras
possibilidades de significação do tempo histórico são negadas aos sujeitos. Ao generalizar
apreensões temporais constituídas por experiências específicas, a perspectiva apresentada por
Rousso se torna insuficiente e limitadora da compreensão histórica.
Sem dúvida, eventos como guerras e violência em larga escala transformam e
(res)significam as experiências dos sujeitos que, independente do objeto, devem estar sob o
22
olhar do historiador. Entretanto, o tempo histórico não é apenas aquilo que os historiadores
definem, pois ele é também vivido e sentido pelos sujeitos que constituem e são construídos em
nossos objetos de análise. Sendo assim, a definição de tempo presente deve se constituir numa
perspectiva dialógica com os significados construídos pelos sujeitos sobre os quais nos
debruçamos. Em diferentes casos, como para as experiências de estudantes da Unila, o presente
é demarcado por outras fronteiras que não as tradicionais definidas pelo historiador. Sem esse
diálogo, o valor heurístico dessa definição fica comprometido pela unilateralidade da posição
do historiador que desconsidera, como historicamente relevantes, as apropriações temporais dos
sujeitos.
Não negamos a importância, a relevância e mesmo a validade da definição de grandes
eventos fulcrais para a compreensão do presente de uma sociedade. O que buscamos constituir
é a definição de tempo presente que leve em consideração as significações do tempo
constituídas pelos grupos sociais objetos da análise do historiador. Nessa perspectiva, buscamos
definir o tempo presente como o espaço de experiência do contemporâneo do historiador, ou
seja, o espaço de experiência do grupo ou fenômeno social sob análise é determinante para
entendê-lo como objeto da História do Tempo Presente. Assim, temos uma fronteira móvel para
o tempo presente e que não fixa seu início em determinado ponto, quer seja a Segunda Guerra,
uma Ditadura Militar, a Queda do Muro de Berlim, entre outros. Essa definição permite a
flexibilidade e a negociação na relação pesquisador-objeto, bem como amplia as possibilidades
heurísticas da História do Tempo Presente para a análise de diferentes processos históricos.
Pensamos que essa formulação permite agregar duas contribuições as nossas
preocupações. Em primeiro lugar, flexibiliza a fronteira da História do Tempo Presente e torna
móvel as definições desse campo que passa a ser definido não por marcos, mas pelas
interpretações constituídas a partir de pesquisas e formulações calcadas no diálogo com a
historicidade e com os sujeitos e experiências sob seu olhar. Uma segunda dimensão,
especialmente importante para nossa pesquisa, permite uma significação do presente a partir
das apropriações temporais dos sujeitos. Em nosso caso, fronteiras temporais como as ditaduras
e grandes acontecimentos políticos – guerras, revoluções, muros – não surgiram como
definidores do espaço de experiência e das identidades dos estudantes. Apesar de alguns de
nossos entrevistados dialogarem com esses momentos, a apropriação do tempo presente e a
constituição de uma relação passado/presente foi estabelecida através da experiência
universitária. Dessa forma, a definição do tempo presente como o espaço de experiências do
contemporâneo do historiador possui, em nossa visão, uma maior capacidade heurística na
23
complexificação das interpretações sobre as experiências estudantis não alcançado pela
formulação de Rousso e de outros historiadores.
É dentro dessa linha de discussão que podemos pensar as construções de memórias e
identidades constituídas na e a partir da Unila, como elementos que, em diferentes dimensões,
dialogam e/ou tensionam os espaços de experiências e os horizontes de expectativas dos
diferentes processos e sujeitos sociais que lá convergem. A universidade, a cidade e as pessoas
que as constituem estão envolvidas em situações históricas peculiares e intrincadas e sua
compreensão, ou pelo menos, a busca de sua compreensão, é elemento fundamental para
alcançarmos nosso objetivo.
Se tomamos o ano de 2008 como início formal do recorte histórico do nosso objeto, o
fazemos por entender que os processos sociais e históricos que emergem na construção das
narrativas das experiências dos estudantes ultrapassam o limite da construção da Unila em seus
horizontes de expectativas. A própria Unila se insere em dinâmicas que ultrapassam seu escopo.
No Braisl, projetos de universidade são pensados desde, pelo menos, o século XIX.
Propostas de integração latino-americana também emergem ao longo do século XIX e
continuam a ser pautados, com mais ou menos força, ao longo de todo o século XX. A ocupação
da região de fronteira e da atual cidade de Foz do Iguaçu, onde a universidade se insere, começa
a ser realizada pelo Estado brasileiro entre o fim do século XIX e o início do século XX. A
Itaipu, elemento central das disputas políticas e simbólicas na cidade, inicia sua construção
durante a ditadura militar, na década de 1970. O imaginário construído entre brasileiros e seus
vizinhos latino-americanos é disputado e tem se transformado há séculos. Enfim, processos de
maior ou menor duração emergem e contribuem para determinar a experiência estudantil na
Unila. Esses elementos, entre outros, constituem o que denominamos, em diálogo com as
contribuições de Koselleck, de “densidade temporal da experiência”. Os sujeitos inseridos nesse
processo, carregados de suas próprias subjetividades, forçam transformações, ressignificações
e inovações no tempo presente. Eles o fazem mergulhados em um chão de historicidades
específico que será ressignificado a partir da agência desses estudantes, professores e
funcionários.
Nessa perspectiva, não apenas rupturas definem a historicidade analisada, mas um jogo
complexo entre rupturas e continuidades. Sobre essa questão, Marshall Sahlins (1990) já
alertava os historiadores para o risco de observarem apenas as rupturas nos processos históricos.
Afirmava a necessidade de compreender o tempo histórico enquanto constante conjunto de
rupturas e continuidades. No campo da História e também entre os referenciais da História do
24
Tempo Presente, Koselleck (2014) aponta a coexistência, em um mesmo tempo, de diferentes
estratos temporais. Enquanto um estrato seria marcado pelos processos de rupturas e gerador
de novidades, outros seriam caracterizados justamente pela repetição de eventos e processos
históricos. Por fim, haveriam os estratos transcendentes, que seriam aquelas experiências
humanas que estão em processo na sociedade e ultrapassam as vidas dos indivíduos formadores
do processo estudado. Dessa forma, o tempo histórico é um processo dinâmico tecido nos
tensionamentos e diálogos entre os estratos de repetição e de singularidades imersos nos estratos
transcendentes.
Um dos objetos que tem sido privilegiados pelas análises da História e que possuem
grande potencial para a História do Tempo Presente, está a cidade, tomada como espaço
histórico. Se temos como preocupação central a compreensão de trocas interculturais que
(res)significam identidades de estudantes latino-americanos, tal processualidade ocorre numa
conjunção de espacialidades específicas, cidade/universidade, historicamente constituída. É na
dinâmica cidade/universidade que os diferentes espaços de experiência entram em contato,
realizam trocas, diálogos e constituem tensões. Mais que um simples espaço geográfico, a
cidade implica relações e conflitos diferentes dos constituídos em outras espacialidades. Assim,
faz-se necessário pensar aportes teóricos para analisar tal contexto. Néstor Canclini (2010), ao
discutir as teorias explicativas da cidade, aponta um quadro de profunda incerteza apresentado
pelos modelos explicativos que buscam dar conta de analisar as cidades e as experiências
urbanas. Para o autor,
Podríamos decir que, en certo modo, todas estas teorías – si estamos pediendo una
definición de lo urbano – son teorías falidas. No nos dan una respuesta satisfactoria,
dan múltiples aproximaciones de las cuales no podemos prescindir, que hoy coexisten
como partes de lo verosímil, de lo que nos parece que puede proporcionar cierto
sentido de la vida urbana. Pero, la suma de todas estas definiciones no se puede
articular fácilmente, no permite acceder a una definición unitaria, satisfactoria, más
o menos operacional, para seguir investigando las ciudades (CANCLINI, 2010,
p.74).
Segundo Maria Stella Bresciani (1994), também, existe a necessidade de pensar a cidade
não a partir de modelos explicativos fechados, mas a partir do entendimento das especificidades
presentes na cidade, aquela praticada e vivida. Mais que a busca de uma perspectiva
generalizante de compreensão do urbano, pretendemos construir uma problematização que
torna a cidade um espaço de constituição de historicidades. Assim, o espaço urbano aparece
como ambiente de possibilidades, trocas, tensões e diálogos identitários, de formação e/ou
25
dissolução de fronteiras simbólicas, espaço de constituição e transformação da memória e de
construção de vivências. Como escreve Antônio Arantes,
Os habitantes da cidade deslocam-se e situam-se no espaço urbano. Nesse espaço
comum, que é cotidianamente trilhado, vão sendo construídas coletivamente as
fronteiras simbólicas que separam, aproximam, nivelam, hierarquizam ou, numa
palavra, ordenam as categorias e os grupos sociais em suas mútuas relações. [...] Os
lugares sociais assim construídos não estão simplesmente justapostos uns aos outros,
como se formassem um gigantesco e harmonioso mosaico. A meu ver, eles se
superpõem e, entrecruzando-se de modo complexo, formam zonas simbólicas de
transição, onde atores e cenários desenvolvem atributos análogos aos que Victor
Turner conceituou como limiares. (...) Mais do que territórios complementares e bem
delimitados por fronteiras simbólicas de traçado inequívoco, essas configurações
podem ser entendidas como zonas de contato, onde se situa uma ordem moral
contraditória (ARANTES, 2000, p.106-107).
Para Arantes (2000), na cidade, os grupos sociais estão em constante relação. Deste
modo, ela aparece como espaço privilegiado para contatos sociais entre grupos diferentes e sua
conformação não apenas possibilita, como força contatos. O caminhar na cidade, como
analisado por Michel de Certeau (2014), é, ao mesmo tempo, narrativa de aproximações e de
distanciamentos. Tecer percursos é, simultaneamente, se aproximar e distanciar-se de grupos
sociais. O estudante perpassa zonas de conforto e de tensões, constitui e é constituído por
fronteiras identitárias e simbólicas. Aquele que inicia uma caminhada nunca é o mesmo que a
termina, sendo transformado no percurso. Assim como a narrativa constitui ressignificações
identitárias e de memórias, os usos da cidade transformam o citadino, ao mesmo tempo em que
a cidade é transformada pelos usos.
Para que possamos compreender relações entre diversas etnias e culturas, seja na
universidade, seja na cidade, lançamos mão do conceito de interculturalidade. Como citado,
Foz do Iguaçu é marcada e caracterizada, narrativamente, pela ideia de multiculturalidade, o
que ocorre também na Unila. Nessas duas espacialidades, coexistem uma multiplicidade de
grupos sociais com referenciais culturais diversos. Pensar essas temporalidades exige a
problematização e a opção por categorias e conceitos que possam, no contato com as fontes,
permitir a construção de análises que façam emergir a complexidade das relações entre esses
grupos.
A partir desse objeto, emerge a possibilidade de pensarmos o conceito de
multiculturalidade e de multiculturalismo. Ambas as noções são vastamente utilizadas em
estudos acadêmicos, nas narrativas urbanas e institucionais da cidade e da universidade, como
abordaremos ao longo de nosso texto. Estes conceitos têm sido desenvolvidos e amplamente
utilizados nas ciências sociais e humanas, principalmente a partir da emergência das
26
perspectivas comumente chamadas de pós-modernas e as pós-coloniais.3 As perspectivas pósmodernas emergem quando de uma percepção dos supostos limites das meta-narrativas
características da modernidade para a compreensão do social. Sua ascensão, nos meios
acadêmicos e políticos, em especial, a partir da década de 1960, gerou uma profunda disrupção
e fragmentação narrativa e social que partia de grandes grupos, como classe e nação, em direção
a identidades – o plural é significativo tanto da quantidade quanto de sua fluidez – cada vez
mais localizadas.
Em clave, por diversas vezes consideradas iguais, mas com distinções importantes,
emergiu as perspectivas pós-coloniais. Marcadas pela decadência do colonialismo na Ásia e
África, as chamadas “teorias pós-coloniais” calcam suas análises na percepção de que a
sociedade, da segunda metade do século XX, seria profundamente significada a partir de
experiências diaspóricas. Nessa vertente, autores como Stuart Hall (2003), Homi Bhabha
(2013), etc, têm construído contribuições fundamentais para pensar processos sociais e
históricos decorrentes da existência de uma pluralidade cada vez maior de etnias,
nacionalidades e culturas dentro das fronteiras do antes homogeneizado – ou ao menos
homogeneizador – Estado-nação. Assim, categorias como a multiculturalidade, fronteira e
entre-lugares têm sido fundantes nas análises desses autores.
Já de início, é preciso pensar as distinções entre multicultural e multiculturalismo.
Comumente trabalhados como sinônimos, designam, segundo Hall (2003), processos e
situações distintos:
Multicultural é um termo qualificativo. Descreve as características sociais e os
problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes
comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo
tempo em que retêm algo de sua identidade “original”. Em contrapartida, o termo
“multiculturalismo” é substantivo. Refere-se às estratégias e políticas adotadas para
governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas
sociedades multiculturais. É usualmente utilizado no singular, significando a filosofia
específica ou a doutrina que sustenta as estratégias multiculturais. “Multicultural”,
entretanto, é, por definição, plural (HALL, 2003, p. 52).
Claramente
interdependentes,
possuem
usos
e
significações
distintas.
A
multiculturalidade tem seu propósito privilegiado no âmbito do diagnóstico social, em que seu
uso, enquanto conceito, é amplamente realizado. Será, assim, utilizada em nosso trabalho ao
objetivar perceber espaços e tempos experimentados por diferentes grupos étnicos e/ou
culturais.
3
A respeito da intimidade entre a “questão multicultural e o fenômeno do pós-colonial”, ver: HALL, 2003, p. 56.
27
Assim como outros conceitos, o multiculturalismo possui uma gama de sentidos
distintos a depender do lugar social que o ativa. Sendo polissêmico, serve a distintos usos e
disputas políticas, inclusive a partir de antagonismos que vão da assimilação da diferença
através da aculturação até a solução do “problema multicultural” pelo mercado. Diferentes
concepções e formas de lidar com essa questão convivem na sociedade. Hall (2003) pontua que:
O multiculturalismo conservador segue Hume ao insistir na assimilação da diferença
às tradições e costumes da maioria. O multiculturalismo liberal busca integrar os
diferentes grupos culturais o mais rápido possível ao mainstream, ou sociedade
majoritária, baseado em uma cidadania individual universal, tolerando certas práticas
culturais particularistas apenas no domínio privado. O multiculturalismo pluralista,
por sua vez, avaliza diferenças grupais em termos culturais e concede direitos de grupo
distintos a diferentes comunidades dentro de uma ordem política comunitária ou mais
comunal. O multiculturalismo comercial pressupões que, se a diversidade dos
indivíduos de distintas comunidades formais forem publicamente reconhecida, então
os problemas de diferença cultural serão resolvidos (e dissolvidos) no consumo
privado, sem qualquer necessidade de redistribuição do poder e dos recursos. O
multiculturalismo corporativo (público ou privado) busca “administrar” as diferenças
culturais da minoria, visando os interesses do centro. O multiculturalismo crítico ou
“revolucionário” enfoca o poder, o privilégio a hierarquia de opressões e os
movimentos de resistência. E assim por diante (HALL, 2003, p. 53).
As diferentes e contraditórias formas de apropriação política do multiculturalismo, da
diversidade e da diferença, têm levado a inúmeras confusões conceituais e de proposições
políticas. Estas variam do simples reconhecimento da diferença até o estabelecimento de
relações de contato através de diferentes instâncias – o consumo, o Estado, a sociedade civil –
como forma de mitigação de conflitos e, em alguns casos, de aprendizado cultural. Essa
profusão de significados tem, na outra ponta, levado a importantes críticas ao conceito em
relação ao multiculturalismo que pode ou não ser parte da multiculturalidade. Afinal, enquanto
um está no âmbito do diagnóstico, o outro se localiza na atuação e agência políticas. Diversas
críticas são detectadas já por Hall (2003):
É contestado pela direita conservadora, em prol da pureza e integridade cultural da
nação. É contestado pelos liberais, que alegam que o “culto da etnicidade” e a busca
da diferença ameaçam o universalismo e a neutralidade do estado liberal,
comprometendo a autonomia pessoal, a liberdade individual e a igualdade formal. [...]
O multiculturalismo é também contestado por modernizadores de distintas convicções
políticas. Para estes, o triunfo do universalismo da civilização ocidental sobre o
particularismo de raiz étnica e racial, estabelecido no Iluminismo, marcou uma
transição decisiva e irreversível do Tradicionalismo para a Modernidade. Essa
mudança não deve jamais ser revertida. Algumas versões pós-modernas do
cosmopolitismo” que tratam o “sujeito” como algo inteiramente contingente e
desimpedido, se opõem radicalmente ao multiculturalismo, em que os sujeitos se
encontram mais localizados. Há ainda o desafio de várias posições na esquerda. Os
anti-racistas argumentam que, erroneamente, o multiculturalismo privilegia a cultura
e a identidade, em detrimento das questões econômicas e materiais. Os radicais crêem
que ele divide, em termos étnicos e racialmente particularistas, uma frente racial e de
28
classe unida contra a injustiça e a exploração. [...] Há também, aquilo que Sarat
Maharaj oportunamente denomina “gerencialismo multicultural”, o qual apresenta
“uma assombrosa semelhança com a lógica do apartheid” (HALL, 2003, p. 54).
A longa citação é necessária pela síntese de críticas recebidas pelo multiculturalismo
que ela apresenta. De conservadores aos liberais, de pós-modernos às posições mais à esquerda,
a crítica se situa na ênfase à diferença que cada uma dessas interpretações atribui ao
multiculturalismo. Muitas dessas posições foram (re)produzidas, no Brasil, ao longo das
discussões sobre cotas raciais nas universidades. Novamente emergem em 2017, nos discursos
conservadores de criminalização de movimentos quilombolas e indígenas por reconhecimento
cultural e garantias de sobrevivência material e cultural.
Seja por meio da da suposta dissolução da nação, da universalidade cultural ou da
guetificação social, a ênfase que o multiculturalismo tem, historicamente, atribuído a análises
e intervenções sobre as especificidades de grupos culturais que coexistem em determinados
espaços sociais, emerge nas posições identificados por Hall, como elemento fundante das
críticas. Não propomos um adensamento das defesas realizadas pelo autor dessa posição, na
qual relativiza, em alguma medida, a importância da diferença e valoriza trocas e diálogos,
dentro das perspectivas multiculturais. Essa profusão de posições que abordam a diferença se
constrói dentro de uma perspectiva política de busca de direitos. O multiculturalismo póscolonial, defendido por Hall (2003), tem na “igualdade” de acesso a direitos seu grande
objetivo.
Portanto, como poderão ser reconhecidos o particular e o universal ou as pretensões
da diferença e da igualdade? Este é o dilema, o enigma – a questão multicultural –
existente no centro do impacto transruptivo e reconfigurador do multicultural. Ele
exige que pensemos para além das fronteiras tradicionais dos discursos políticos
existentes e suas “soluções” (HALL, 2003, p. 86).
Ao reconfigurar o vocabulário, grupos e embates políticos, na segunda metade do século
XX, o multiculturalismo já é visto como uma das “fronteiras tradicionais do discurso”, sendo
percebido como limitado e viciado em diferentes pontos, por alguns autores. As críticas
apresentadas por Hall, construídas a partir da ideia de que as perspectivas multiculturais seriam
frágeis por causa da ênfase na diferença, têm sido comuns. Queremos avançar em uma direção
distinta e reconhecemos, tal como Canclini (2007), que
Sob concepções multiculturais, admite-se a diversidade de culturas, sublinhando sua
diferença e propondo políticas relativistas de respeito, que frequentemente reforçam
a segregação. Em contrapartida, a interculturalidade remete à confrontação e ao
entrelaçamento, àquilo que sucede quando os grupos entram em relações e trocas.
Ambos os termos implicam dois modos de produção do social: multiculturalidade
29
supõe aceitação do heterogêneo; interculturalidade implica que os diferentes são o
que são, em relações de negociação, conflito e empréstimos recíprocos (CANCLINI,
2007, p.17).
O autor, sem descartar, em nenhum momento, a importância da multiculturalidade,
pressupõe um avanço na compreensão de nossas sociedades heterogêneas, não apenas na
identificação, mapeamento e compreensão da diversidade, mas também no seu estudo a partir
das dimensões sociais e, acrescentamos, históricas de contatos.
As relações de trocas, diálogos, disputas e tensões culturais tem sido abordadas pelo
autor desde longa data. Seu já clássico livro Culturas Híbridas (1997) é parte essencial da
fundamentação de variadas discussões sobre hibridação cultural. Autor emergente em um
momento em que as discussões sobre a heterogeneidade étnica e cultural das nações estava em
ascensão e consolidação, ele próprio, um migrante em uma sociedade multicultural – um
argentino no México – constituiu um corpo de textos profundamente preocupado com as
relações entre diferentes culturas. Seja a partir do campo da arte, da televisão e meios de
comunicação de massa, seja a partir de discussões geracionais nas quais enfoca o papel e os
espaços dos jovens na sociedade contemporânea.
La complejidad de la convivencia intercultural ha llevado en varios países a
convertirla en asunto de la sociología política. Un diálogo creativo entre sociólogos,
políticos, antropólogos y movimientos sociales ha contribuido a que los modelos
homogeneizantes de la modernización, que ignoraban las diferencias culturales,
vayan admitiendo, dentro de la misma sociedad, los derechos de cada grupo. […] Los
países más innovadores no solo dan enseñanza multicultural; forman en y para la
interculturalidad. Sabemos que esta transformación no se produce sin conflictos: de
modos diversos en Guatemala y otros países donde los movimientos indígenas son
negados violentamente, o en Bolivia, el país donde el cambio de régimen político es
resistido por antiguas élites y un sector de las clases medias. Hay que decir que estos
avances están siendo erosionados no solo por las disputas internas en cada nación
sino por la descomposición económica regional y mundial (CANCLINI, 2012, p. 3).
Temos em mãos um diagnóstico social, proposições – através da citação de políticas que
considera produtivas – e um importante alerta aos estudos sobre interculturalidade. Ao enunciar
que os países que seriam mais inovadores, nesse âmbito, têm criado mecanismos educacionais
que promovam a interculturalidade, imediatamente aponta a existência de desafios e
dificuldades estabelecidas por grupos sociais que resistem a esse processo. Essa questão pode
ser percebida, ao longo da tese, no relacionamento de grupos sociais citadinos e representantes
políticos brasileiros com a Unila. Assim, torna-se problemática a afirmação de Isabel Gil
(2009), “se o século XX se revelou o século das identidades, o século XXI será necessariamente
o século das interculturalidade” (GIL, 2009, p.30). Tal afirmação categórica deve, desde já, ter
30
problematizado seus limites ao se deparar com a historicidade social. Esse processo não é, e
não pode ser lido, como algo dado. Afinal, como a própria autora afirma:
Neste contexto, a interculturalidade apresenta-se como estratégia plural, reflectindose nas práticas simbólicas, na interacção intermediática, nas formas de sociabilidade,
no exercício da cidadania, nos padrões de consumo, no acesso às tecnologias, nas
formas de cuidado e de acção ética. Trata-se, assim, de um processo multidireccional,
heterogéneo, de agenciamento diferenciado e que assume a pluralidade como gesto de
uma renovada hermenêutica cultural e política. Falamos então de interculturalidades,
que na prática ocorrem na comunicação e na interacção cultural, mas também nas
relações económicas, no entendimento e no conflito religioso, na convivência
intergeracional, na acção dos media, nas práticas de saúde. Mais do que uma moda
teórica ou ideológica, as práticas e o pensamento interculturais são uma constatação
necessária do presente e do futuro (GIL, 2009, p. 31).
É aqui que entra o trabalho do historiador. Enquanto sociólogos e antropólogos
trabalham, majoritariamente, com a interculturalidade a partir de diferentes dimensões – ou
conjunto de dimensões – no âmbito da sincronia, nós abordamos as interculturalidade
constituídas no imbricamento da diacronia e da sincronia no tempo presente. Na metáfora
escolhida por Canclini para exemplificar a interculturalidade, a partir do uso de repertórios
interculturais, temos o avanço trazido pela perspectiva do historiador: os repertórios são
construções históricas ativadas ou não pelos indivíduos através de opções dialéticas, com base
em seu lugar no espaço e no tempo.
No trabalho do historiador é imperativo atentar e cuidar com determinismos que podem
emergir pela euforia causada pelas perspectivas interculturais. A mesma não é inevitável. Em
espaços multiculturais pode ou não emergir relações interculturais. O surgimento dessas
relações é sempre um processo histórico e, como tal, indeterminado. Um exemplo é que às
perspectivas interculturais têm se oposto as guetificações étnica, religiosa, geracional, etc,
enquanto forma de politização. Nosso objeto tem sido profícuo em evidenciar os dois processos:
por um
lado, experiências universitárias
fundamentalmente inscritas
pela e na
interculturalidade; por outro, vivências citadinas marcadas por diferentes formas de preconceito
que demarcam as relações entre estudantes e a urbanidade na qual se inserem.
Uma das evidências mais fortes do caráter fundamentalmente histórico da
interculturalidade é a superação do suposto fim da História que glorificava o neoliberalismo
globalizado. Este tem sido golpeado pela reação daqueles que tão prodigamente – e
pejorativamente – os meios de comunicação brasileiros e internacionais têm chamado de “os
derrotados da globalização” (BBC, 2016; GLOBO, 2016) nos EUA com Trump, na GrãBretanha com o Brexit e por toda a Europa com a ascensão da direita e da rejeição aos
31
refugiados. Assim, do otimismo do “século das interculturalidade” (GIL, 2009), temos um
tempo histórico que disputa o sentido da coexistência cultural.
Com base nessas preocupações, precisamos apresentar como o conceito de identidade
será abordado em nosso texto. De imediato, faz-se necessário marcar a pluralidade de tal
conceito, não de uma identidade, mas identidades, a fim de discutir não apenas a possibilidade
de múltiplas identidades, mas também de jogos identitários, da constituição de táticas e
estratégias identitárias (CERTEAU, 1994) construídas na e através da experiência universitária.
Hall (1996) define identidades da seguinte forma:
A identidade não é tão transparente ou tão sem problemas como nós pensamos. Ao invés
de tomar a identidade por um fato que, uma vez consumado, passa, em seguida, a ser
representado pelas novas práticas culturais, deveríamos pensa-la, talvez, como uma “produção”
que nunca se completa, que está sempre em processo e é sempre constituída interna e não
externamente à representação. Esta visão problematiza a própria autoridade e a autenticidade
que a expressão “identidade cultural” reivindica como suas (HALL, 1996, p.68).Hall (2012)
demarca a identidade como intrinsecamente histórica. A compreensão das identidades,
enquanto processo de contínua reconstrução e ressignificação, só se faz possível a partir de uma
perspectiva que busque apreender o seu fazer-se. No caso específico que objetivamos estudar,
é necessário ler as narrativas dos estudantes à luz de suas historicidades próprias e de como a
universidade e a cidade que vivenciam produzem e são produzidas em relações móveis. É só
com uma análise que veja esses momentos e movimentos, enquanto instâncias relacionais de
produção identitária, que podemos atingir nossos objetivos.
É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso
que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e
institucionais específicas, por estratégias e iniciativas específicas. Além disso, elas
emergem no interior do jogo de modalidades específicas de poder e são, assim, mais
o produto da marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade
idêntica, naturalmente constituída, de uma “identidade” em seu significado tradicional
– isto é, uma mesmidade que tudo inclui, uma identidade sem costuras, inteiriça, sem
diferenciação interna (HALL, 2012, p. 109).
É como fenômeno histórico que identidades são problematizadas, ao longo desta tese.
Em especial, a constituição e (res)significação do “unileiro”, signo identitário elaborado entre
os estudantes, ainda nos primórdios da instituição, e que passa por significativas transformações
ao longo do tempo e das relações nas quais é inserido.
A problematização dessa identidade não ocorre em um vazio. O que buscamos constituir
foi a análise de fontes orais com base, como referencial teórico em discussões sobre um de seus
32
elementos constitutivos, a memória. Nas narrativas, a memória atua como elemento de
fundamentação e significação das identidades. Estas são históricas, transformam-se ao longo
do tempo e são ressignificadas nos trabalhos da memória durante a entrevista. Assim, a
problematização da identidade será realizada no diálogo com Michel Pollack (1992):
Podemos, portanto, dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de
identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator
extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma
pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (POLLACK, 1992, p.5) [grifos do
autor].
Para ele, processos de reconstrução e ressignificação de identidades e memórias, como
os que propomos estudar, não podem ser vistos separadamente. Somente a partir da
compreensão das memórias é que se torna possível interpretar elaborações identitárias de
pessoas e grupos sociais. Em complemento, Luisa Passerini (2011) elabora uma proposta de
compreensão da memória, a qual utilizamos:
Uma constante nesses percursos foi a consideração da memória como forma de
subjetividade – e este termo implica necessariamente a intersubjetividade, já que a
memória narrativa de que trato só se constitui como dialogo, como troca entre sujeitos
diferentes. Por consequência, a dimensão na qual essa memória se situa compreende
sempre dois polos: um individual e um coletivo, que interagem e se influenciam
mutuamente (PASSERINI, 2011, p.7).
Nessa perspectiva, a memória se constrói sempre em relações intersubjetivas que, em
nossa hipótese, se constituem também através da interculturalidade. Tanto no seu processo de
produção quanto no momento da narrativa, a memória, assim como as identidades, se constitui
dialogicamente em meio a trocas, conflitos e tensões. Assim, a intersubjetividade e
interculturalidade (re)constroem seus significados apreendidos nas narrativas dos estudantes.
Enquanto Pollack nos ajuda na compreensão da relação da memória e das identidades,
Alessandro Portelli (1996) é nossa referência central nos trabalhos com as entrevistas. Em suas
discussões, vemos diferentes dimensões e formas de experimentação e análise do social
agregadas e percebidas a partir das narrativas orais. Para ele, “o trabalho através do qual as
pessoas constroem e atribuem o significado à própria experiência e à própria identidade,
constitui por si mesmo o argumento, o fim mesmo do discurso” (PORTELLI, 1996, p. 60). Em
diálogo com esta perspectiva, constituímos narrativas orais como a fonte central para a
pesquisa. Sendo assim, é necessário esclarecer os modos de pensá-las.
São abordados os relatos de estudantes de diversas nacionalidades que residem ou
residiram em Foz do Iguaçu, no período que constitui o recorte temporal da pesquisa, ou seja,
33
de 2008 a 2017, que tenham vivenciado o processo de construção ou implementação da Unila.
A construção das entrevistas encontrou como primeiro desafio o acesso aos estudantes. Como
não tínhamos relações de sociabilidade com discentes da Unila, o primeiro acesso, ainda com
vistas à constituição de problemáticas de pesquisa, se deu através de um dos professores do
curso História da instituição. Este indicou, ainda em 2013, um grupo de estudantes, dentre os
quais, três entrevistas foram viabilizadas.4 Tuane,5 Valéria e Antonio formaram esse primeiro
grupo.
Um dos desafios para a continuidade da pesquisa, a partir desse primeiro contato, foi a
seleção de entrevistados. No diálogo com referenciais teóricos e metodológicos da História
Oral, em especial com as contribuições de Portelli, constituímos uma opção pela pesquisa
qualitativa e pela abordagem que privilegiasse subjetividades estudantis a partir das quais
pudéssemos acessar historicidades, vivências e experiências dos estudantes da Unila. Dessa
forma, optamos por constituir um corpo de entrevistas que partisse da vontade dos próprios
estudantes em participar. Com isto em mente e com informações adquiridas nas primeiras
entrevistas e também no aprofundamento da própria pesquisa, chegamos ao grupo “Unila”,6 no
Facebook.
Esse espaço se tornou um centro de convivência, informação e debates online dos
estudantes da universidade. Já no início de pesquisa, congregava grande parte dos discentes da
instituição. Com isto em vista, optamos por constituir um corpo de voluntários para nossas
entrevistas através deste grupo. Com esse objetivo, criamos postagens que solicitavam
voluntários. Essas postagens foram feitas em três momentos: agosto de 2015, agosto de 2016
e abril de 2017. Elas apresentavam uma prévia do objetivo da pesquisa e chamava, livremente,
voluntários. Entramos em contato com todos os que se disponibilizaram. Entre eles, 20
estudantes foram entrevistados efetivamente. Dificuldades com datas e horários, desistência ou
ausência de resposta dos estudantes ao nosso contato limitaram, em alguma medida, nossas
entrevistas. De qualquer forma, o corpo de entrevistados apresentou uma diversidade com
4
Informações biográficas de todos os entrevistados que tiveram suas falas analisadas estão presentes no apêndice
I.
5
Todos os nomes de estudantes utilizados são pseudônimos. Apesar de termos sido autorizados a utilizar seus
nomes reais, optamos, para preservar sua privacidade, pela criação de outras denominações.
6
Grupo no Facebook que agrega grande parte da comunidade universitária da Unila, bem como pessoas, externas
a
essa
comunidade
que
tenham
interesse
na
instituição.
Disponível
em:
<https://www.facebook.com/groups/194730953879663/> Acesso em: 9 ago. 2018. Esse grupo possui, em agosto
de 2018, 15 mil membros. Número este muito superior ao de estudantes, funcionários e professores da instituição.
Dentre esses membros, grande parte dos estudantes da universidade estão ali presentes. Qualquer levantamento
sobre números precisos ou a porcentagem de estudantes é absolutamente inviável, seja pela fluidez da presença,
ou pela possibilidade de mudança de nomes e avatares, seja pelo próprio quantitativo a ser levantado.
34
estudantes provenientes de 10 países da América Latina, 5 estudantes brasileiros e 15
estrangeiros.
As entrevistas privilegiaram a narrativa de trajetórias de vida que envolveram diferentes
momentos, inclusive externas à experiência na Unila. A opção por esse formato advém da
compreensão de que a experiência universitária se constitui no diálogo com vivências que
extrapolam essa temporalidade e, sendo assim, podem estar presentes elementos importantes
para compreender os sentidos atribuídos para processos aqui problematizados. Dessa forma,
uma entrevista aberta que permita que os sujeitos organizem o tecido narrativo de suas
memórias, de acordo com suas subjetividades – sempre em diálogo com as condições de
produção da entrevista – pode possibilitar uma riqueza maior de elementos para análise.
Os depoimentos são um modo privilegiado de entrar em contato com a subjetividade
das pessoas, o que permite, no nosso caso, perceber (res)significações e disputas identitárias e
interculturais constituídas a partir de sua presença na cidade/universidade. Nessa linha, Yara
Khoury (2004) afirma que:
A interlocução com pessoas nos põe em contato mais direto com os trabalhos da
consciência e da memória de cada um, estimulando nossa própria consciência da
dimensão política desse diálogo intelectual. Isso requer mais do que um trato
meramente factual das narrativas e de coleta e sistematização das ricas informações
que trazem; demanda uma atenção especial à relação imbricada entre os fatos narrados
e significações construídas que vão muito além das próprias entrevistas. Eles se forjam
nas relações sociais vividas e também incidem sobre elas (KHOURY, 2004, p.122).
A construção de narrativas orais aparece como meio para pensar sentidos e significados
constituídos na memória. São permeados por relações de intersubjetividades e construídos na
complexa relação entrevistado/entrevistador que necessita, segundo Portelli (2007), de um
esforço de alteridade. Diferentemente de quaisquer outras, as fontes orais se produzem como
parte do trabalho do historiador. O próprio processo de construção dessas fontes (seleção dos
entrevistados, organização da entrevista, maneiras e critérios de sua utilização, etc) é pensado
e planejado tendo em vista o problema analisado, o qual traz consigo a marca indelével da
subjetividade do historiador. Mas, ao mesmo tempo, a fonte oral não é construída de maneira
unilateral pelo pesquisador, pois conta com a participação central do entrevistado, de tal modo
que ela surge enquanto um processo atravessado pelas subjetividades de ambos.
O reconhecimento da subjetividade como importante dimensão constitutiva da fonte
oral implica no desafio de como lidar com tal questão. Portelli, ao abordar essa fonte, afirma
que
35
Nossa tarefa não é, pois, a de exorcizá-la, mas (sobretudo quando constitui o
argumento e a própria substância de nossas fontes) a de distinguir as regras e os
procedimentos que nos permitam em alguma medida compreendê-la e utilizá-la. Se
formos capazes, a subjetividade se revelará mais do que uma interferência; será a
maior riqueza, a maior contribuição cognitiva que chega a nós das memórias e das
fontes orais (PORTELLI, 1996, p.3).
Assim, para Portelli, a grande contribuição da História Oral é, justamente, possibilitar
uma análise que parta da subjetividade. Desta forma, é o que a constituição das entrevistas nesta
pesquisa leva em conta e nossas análises buscam centralizar essa problemática. Focamos em
questionamentos abertos que estimulassem a narrativa de memórias para perceber formas
específicas de apropriação da experiência universitária a partir de relações interculturais que
constroem ou descontroem, historicamente, identidades. Assim, buscamos apreender a
subjetividade enquanto processo que transforma e é transformado pela historicidade dos
sujeitos.
Perceber e evidenciar esse nível subjetivo de construção de memórias e identidades foi
a forma encontrada para que possamos analisar as vivências dos estudantes na relação
cidade/universidade. De outra forma, incorreríamos no risco de tomarmos as trajetórias desses
sujeitos de maneira idealizada e essencialista de seus discursos. É justamente no imbricamento
das subjetividades dos entrevistados, ao perceber suas transformações identitárias, que é
possível perceber formas específicas de apropriações da universidade e da cidade a partir de
relações interculturais. Pensar a subjetividade, enquanto processo que transforma e é
transformado pela historicidade que é vivenciada pelos sujeitos, se torna o primeiro desafio
metodológico para a compreensão de nosso objeto.
Além das entrevistas com estudantes, utilizamos outros conjuntos de fontes ao longo do
texto. Em primeiro lugar, realizamos outras quatro entrevistas com sujeitos em posições chave
para a compreensão de nosso objeto: um membro da secretaria de comunicação social da Unila,
de 2016; o ex-reitor e presidente da comissão de implantação da Unila, Prof. Hélgio Trindade;
um membro da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da Unila e, por fim, uma das lideranças do
sindicato de professores da universidade. Estas entrevistas tiveram por objetivo a composição
de um quadro que nos permitisse uma visão mais abrangente do processo de construção da
Unila, das relações da universidade com a cidade e, também, de dinâmicas internas à instituição
que, em diferentes maneiras, são e foram inacessíveis aos estudantes. O terceiro capítulo, que
toma a constituição da Unila por objeto, por mais que conte com citações diretas apenas da
entrevista com o Prof. Hélgio Trindade, teve contribuições destas entrevistas no processo de
compreensão da historicidade ali trabalhada.
36
Outro conjunto de fontes, em especial, no segundo e terceiro capítulos, foram textos
produzidos pela Prefeitura Municipal de Foz do Iguaçu, através de seu site, e documentos
oficiais referentes a constituição, organização e funcionamento da Unila. Estes documentos
foram utilizados como forma de compreender o processo da sua construção, bem como, sua
estrutura interna, analisada no capítulo 3. Por fim, utilizamos, no capítulo 2, um conjunto de
fontes digitais, constituído por sites na internet que tinham, entre seus interesses, a história de
Foz do Iguaçu. Uma discussão mais pormenorizada da utilização dessas fontes é realizada ao
longo dos capítulos.
Tendo em vista a análise de nosso objeto, organizamos, portanto, esta tese em 5
capítulos. O primeiro tem como objetivo a análise das narrativas e das trajetórias de 3
estudantes: Tuane, Renato e Marcos. Abordamos, entre outras questões, caminhos percorridos
por eles até chegaram à Unila. Dimensões desse processo como a informação da existência da
universidade, viabilização da participação na seleção, possibilidade de migração (não
necessária no caso de Marcos, morador de Foz do Iguaçu), dificuldades iniciais de adaptação,
etc, são problematizados. Este capítulo busca tanto problematizar caminhos para a universidade,
ao evidenciar que esse processo não é, nem deve ser, naturalizado, quanto provocar no leitor a
compreensão da diversidade que compõe a universidade. Dessa forma, ele se depara com o
desafio de como narrar e problematizar essa diversidade. Partimos do pressuposto de que a
enunciação de dados e informações como o número de países, etnias, classes sociais, etc, que
compõem a Unila, não é suficiente para evidenciar esse problema. Assim, buscamos, através
da apresentação de três trajetórias distintas e singulares, apresentadas de maneira densa nas
entrevistas, construir, junto ao leitor, uma maior proximidade com a profundidade dessa
diversidade que a Unila apresenta. A complexidade de nosso objetivo ultrapassa dados
demográficos e estatísticos, apesar de também ser constituído por estes e avança para
apropriações subjetivas diversas. Nesse sentido, o primeiro capítulo tem o objetivo de enunciar
e não encerrar essa complexidade.
O segundo capítulo foi construído com a intenção de pensar a historicidade do espaço
urbano no qual se insere a Unila e seus estudantes. Para tanto, num momento inicial, foi
realizado um levantamento de fontes, mais precisamente sites e blogs, que abordassem a
história de Foz do Iguaçu. Nesses espaços, foi possível perceber um processo de tentativa de
construção de uma identidade multicultural de fronteira para a cidade. Ao se deslocarem para a
universidade, estudantes de diferentes origens étnicas, nacionais e culturais tensionam essa
suposta identidade citadina. Para compreendermos esse processo, abordamos a construção
dessa ideia em trabalhos historiográficos que tomaram a cidade, a fronteira ou a região como
37
objeto. Utilizamos textos de historiadores como fontes e problematizamos a forma como o
discurso de multiculturalidade e harmonia étnica/cultural, que emerge no presente, foi
constituído ao longo do tempo. Analisamos também objetivos dos diferentes autores e diversos
agentes sociais na elaboração dessa identidade citadina.
No terceiro capítulo, buscamos pensar a constituição da Unila. Abordamos sua inserção
no âmbito da história das universidades brasileiras e buscamos pensar dimensões de
continuidades e/ou rupturas, bem como de seu projeto em relação ao desenvolvimento do ensino
universitário do país. A ideia de uma instituição voltada para a integração latino-americana
assume centralidade ao longo desse momento do texto, no qual buscamos pensar a forma como
esse projeto político foi articulado no interior dessa instituição. Por fim, trabalhamos as
dimensões institucionais, através das quais a universidade se articula com vistas à produção de
um conhecimento e de uma experiência social interdisciplinar, intercultural e integracionista.
Após a constituição de uma compreensão da historicidade na qual se inserem e a partir
da qual se constituíram as subjetividades e experiências dos estudantes, problematizamos suas
ressignificações identitárias. Para tanto, dividimos essa tarefa em dois momentos. O quarto
capítulo aborda a trajetória estudantil, apresenta a constituição da identidade “unileira” e pensa
suas relações com a cidade. Mesmo com o argumento de que a migração e o objetivo dos
estudantes para virem para Foz do Iguaçu é a universidade e não a cidade, mostramos a
importância central dessa espacialidade para as ressignificações identitárias deles. Ancorado
nas discussões apresentadas, especialmente no capítulo 2, foi possível discutir a inserção de um
novo grupo social em uma cidade em que houve um esforço de constituição de uma identidade
multicultural. A problematização dessas relações que, adiantamos, são muito mais calcadas na
tensão que na troca multicultural, é o mote nesse momento do texto.
No quinto e último capítulo, problematizamos experiências e ressignificações
identitárias constituídas com base nas vivências na Unila. O “unileiro”, identidade constituída
na relação Foz do Iguaçu/Unila, aparece como elemento constitutivo de relações e significados
da experiência universitária, tanto internamente aos próprios “unileiros” quanto nas suas
relações com outros estudantes. As transformações subjetivas construídas nas vivências do
espaço intercultural da Unila, os sentidos atribuídos a essas experiências, bem como a
ressignificação da inserção desses estudantes no mundo que os cercam a partir da identidade
“unileira” finalizam nossa discussão e também esta tese.
38
39
1 (DES)CAMINHOS PARA A UNILA
Uma das ideias que moveram esta tese é a de que a universidade é composta por uma
multiplicidade de dimensões. Projeto pedagógico, político, social, cultural, econômico,
objetivo, individual, avanço do e no conhecimento, etc. Diferentes perspectivas poderiam ser
utilizadas para abordar essa diversidade. Optamos pelo trabalho com três dimensões que
entendemos ser centrais para a compreensão da universidade, da experiência estudantil
universitária e, em especial, da experiência na Unila. Os capítulos 2 e 3 abordam diferentes
dimensões de espacialidades, físicas e simbólicas, experimentadas por estudantes da Unila ao
longo de suas vivências como universitários. A universidade e a cidade, abordadas a partir de
narrativas e histórias construídas por grupos ou elementos institucionais serão, respectivamente,
objetos da nossa preocupação. Este capítulo tem por objetivo promover uma introdução, uma
aproximação e mesmo uma apresentação ao leitor, daqueles que são os sujeitos de nossa
narrativa: os estudantes.
Ao operacionalizar, narrativamente, a concepção de que o presente é carregado de uma
densidade temporal, buscamos pensar elementos constituintes dessa temporalidade na
experiência estudantil na Unila. Neste momento do texto, problematizamos elementos do que
apontamos como uma dimensão central nessa densidade temporal: experiências dos estudantes
vivenciadas anteriormente a sua chegada na Unila, abordadas a partir da problematização de
suas memórias narradas em entrevistas. Os estudantes não “nascem” na universidade. Assim,
pensamos não ser possível elaborar uma compreensão complexa do processo de construção
identitária dos universitários se constituirmos, narrativamente, uma ruptura entre presente –
momento da entrevista/presença na universidade – e passado – vivências anteriores à entrevista
e à universidade. Objetivamos perceber, justamente, como essa temporalidade será constituinte
da densidade histórica das (res)significações identitárias a partir das relações de
interculturalidade experimentadas na universidade/cidade. Isso sem perder de vista que outras
dimensões sociais e históricas interferem no processo. Etnia, geração e inúmeros fatores
específicos dos contextos dos estudantes entram em relação. Na impossibilidade de abordar a
“totalidade” da história, devido às limitações intrínsecas à produção do conhecimento, sempre
parcial, sempre localizado, optamos por abordar os elementos que aqui consideramos mais
significativos para adensar nossas análises desta problemática.
Realizamos exercício semelhante em nossa dissertação de mestrado (REISDORFER,
2011) quando buscamos compreender as apropriações e experiências citadinas nas narrativas
de universitários migrantes na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) campus
40
de Marechal Candido Rondon/PR. Daquele momento, trouxemos a convicção da importância
de abordar os estudantes de maneira qualitativa e histórica. Pesquisas quantitativas apresentam
importantes dados e conclusões a respeito do ingresso na universidade. A presença de um
grande volume de estudantes provenientes de classe média e alta, o ingresso maior de mulheres
no ambiente acadêmico, o aumento da presença de afrodescendentes e pobres a partir do
surgimento das cotas raciais e sociais, etc, foram explorados ao longo dos últimos anos através
de pesquisas com vasta quantidade de dados. Em que pese a importante contribuição desses
estudos, pesquisas qualitativas são necessárias como forma de “intermediação” entre, por
exemplo, políticas públicas que geram ou interferem nesses números e os sujeitos que
experimentam esses processos. Afinal, enquanto a universidade é vastamente pensada como
uma forma de ascensão social por meio de maiores ganhos financeiros, veremos como esta, mas
de forma significativa, outras aspirações, ou mesmo o “acaso” significa o ingresso na vida
acadêmica para diferentes estudantes.
A questão central a ser enfrentada por nossa proposta de análise, em que pensamos as
vivências anteriores à universidade como um componente da densidade histórica das
experiências estudantis, é sua absoluta diversidade. É inviável, e mesmo contraproducente,
pensar em generalizações quando abordamos as trajetórias desses estudantes.
Diversas questões se apresentam. Trabalhamos com universitários provenientes de
praticamente todos os países latino-americanos, do Brasil à Costa Rica, de Cuba ao Chile.
Países de economia de mercado desenvolvidas, Cuba socialista, Venezuela bolivariana, etc.
Inviável encontrar uma história genérica para todos esses países. A não ser que abordemos o
processo de formação dessas nações a partir da perspectiva do colonialismo europeu e dos
processos de independência do século XIX. Mesmo assim, esse passado é ativado de diferentes
maneiras no presente e na memória intersubjetiva dos seus nacionais. Homens, mulheres,
homossexuais, bissexuais, transexuais provenientes de sociedades mais ou menos liberais, de
cidades cosmopolitas – que nem por isso deixam de abrigar grupos preconceituosos – como
São Paulo, Buenos Aires, Santiago ou de pequenos povoados habitados por povos tradicionais
bolivianos, equatorianos, etc. Estudantes pobres, ricos, liberais, socialistas, negros, brancos,
indígenas, falantes de português, espanhol, francês, crioulo, guarani, aimará, quéchua, etc.
Enfim, diversidade impossível de totalizar.
Na tentativa de pensarmos esta questão, temos dialogado com a obra de Natalie Zemon
Davis (1997), Nas Margens. Ali, a autora constrói uma narrativa que nos serve de “inspiração”.
Davis (1997) discute a trajetória, as experiências e as significações de três mulheres do século
XVIII. Provenientes de diferentes países, classes sociais, referenciais culturais e sem nunca
41
terem se conhecido, as mulheres são tomadas como “exemplos”, como possibilidades de
experiências femininas naquele século. Não são vistas como exemplares. Ela também não busca
generalizar suas vivências para todo o século. O que a autora constrói é uma narrativa que pensa
suas “personagens” como possibilidades, como indivíduos de um tempo, espaço e referencial
cultural. Através dessa construção, permite entrever com maior eficiência a diversidade
constitutiva das experiências femininas no século XVIII. Essa diversidade até pode ser
capturada, de maneira limitada, em tentativas de explicações generalizantes, através do uso de
conceitos complexos, mas é quando somos confrontados pelas vidas das três mulheres que
percebemos com maior clareza que ela é, em última instância, irredutível. Pode ser explicada,
compreendida, mas só pode ser sentida quando evidenciada pela individualidade da
historicidade de cada sujeito.
Se há “vidas distintas”, estas “transcorreram num campo comum” (DAVIS, 1997, p.
189). Há elementos que atravessam as experiências individuais, sem que, por isso, apaguemnas. Há uma historicidade compartilhada. As duas situações nos acompanham e movem as
preocupações que organizam esse trabalho. Objetivamos compreender esse campo comum, no
qual sentidos e significados são constituídos, mas também gostaríamos de evidenciar a
importância de ter em mente a especificidade das trajetórias dos sujeitos que formam essa
universidade. Na impossibilidade de trabalhar todos, seguiremos um caminho semelhante ao de
Davis (1997), ao abandonar uma perspectiva onde poderíamos pensar as trajetórias dos
estudantes, para uma possibilidade qualitativa que nos leve a problematizar trajetórias
estudantis, ao deixar pelo caminho os artigos e a proposta totalizante que carregam. Nesse
sentido, buscamos abordar tanto aquilo que podemos identificar metodologicamente enquanto
subjetividade individual, quanto a intersubjetividade – sempre em reconhecimento de que essa
separação é metodológica sem aparecer dessa maneira dicotomizada nas narrativas e nas
experiências dos sujeitos. Esta perspectiva, ao dialogar com a proposta de Davis (1997), busca
convidar o leitor a compreender, pensar e também a sentir as individualidades, as diferenças
estudantis.
Para a realização desse intento, optamos por abordar as trajetórias de três estudantes da
Unila: Tuane, estudante de 21 anos, uruguaia, do curso de História da América Latina; Renato,
estudante de 21 anos, cubano, do curso de Ciências Econômicas e Matheus, de 24 anos,
brasileiro, de Foz do Iguaçu, do curso de Geografia. Não dialogaremos com os três pela
possibilidade de tomarmos suas experiências como exemplares. Há, sim, elementos em suas
narrativas que são comuns a outros estudantes e, sempre que possível, ao longo da análise e ao
42
final do capítulo, buscaremos apresentá-los. Mas, mais importante que isso, foram outras duas
dimensões que nos levaram a escolha desses três sujeitos. Primeiro, a densidade que a trajetória
anterior à universidade assumiu em suas narrativas. Se esse elemento é presente em todas as
entrevistas, foi nestes três casos que esta dimensão apareceu com maior força e destaque. Desta
forma, são estas as fontes mais ricas que temos para trabalhar trajetórias anteriores à
universidade. Some-se a isso, a especificidade de cada uma dessas trajetórias. Se queremos
permitir que o leitor se aproxime dos estudantes, abordar estas três trajetórias pareceu ideal,
inclusive no âmbito narrativo. A escolha de um cubano, uma jovem proveniente de bairros
operários de Montevidéu e um de classe média de Foz do Iguaçu permite evidenciar essa
diversidade de sujeitos que compõem a Unila.
Para a análise de suas trajetórias, utilizamos as entrevistas realizadas com esses
estudantes. Nelas, atentamos para algumas dimensões de suas narrativas. Em primeiro lugar,
perceber os caminhos percorridos por eles até à universidade e pensá-los a partir dos
significados construídos na memória desse processo. O desafio, nesse momento, é perceber
essas trajetórias fora de uma perspectiva teleológica que entende a universidade como um ponto
de chegada pré-definido, mas pensar a Unila como um momento de uma trajetória mais ampla
e não pré-determinada. Como foi possível perceber, nessa pesquisa e também em trabalhos
anteriores, a universidade nem sempre é o objetivo ou o desejo dos estudantes que nela se
encontram. Pressões familiares e sociais atuam sobre o horizonte de expectativas dos sujeitos e
tornam – ou não – a universidade uma possibilidade que, nos casos em questão, é praticada.7
Em seguida, pensar como esse caminho é significado pelos universitários em suas memórias.
Uma terceira dimensão são as ressignificações construídas para essas trajetórias
pensadas a partir do lugar de universitário. A experiência nos cursos acadêmicos constitui em
elemento formativo da narrativa sobre as suas vivências. Categorias de análise, metáforas,
dentre outros mecanismos de expressão, incorporam a experiência acadêmica e ressignificam a
memória a partir dessa temporalidade. Assim, ocorre, como veremos, um processo de releitura
da trajetória pessoal a partir das vivências universitárias. Ao mesmo tempo, de maneira
dialógica, diferentes momentos na cidade e na universidade são significados na comparação
entre as vivências anteriores a elas. Tendo essas questões em vista, convidamos o leitor a
7
O fato de trabalharmos com estudantes universitários acaba por invisibilizar trajetórias que, por diferentes
motivos, não chegam à universidade. Assim, pode-se ter a impressão de que o ensino universitário é um caminho
natural e lógico para crianças e adolescentes. Esta é uma perspectiva míope que não dá conta da multiplicidade de
experiências e trajetórias de vida que compõem a sociedade latino-americana, fortemente marcada por um índice
muito baixo de acesso ao ensino universitário.
43
navegar por essas trajetórias e, se possível, sentir, mesmo que de maneira limitada, um pouco
das experiências desses sujeitos.
1.1 DO BAIRRO À UNIVERSIDADE
O processo de fundação da Unila, com o início dos primeiros cursos de graduação,
ocorreu em 2010. Naquele ano, uma série de cursos foram ofertados para um número ainda
limitado de países. Com inscrições circunscritas à região do Mercosul, apenas em 2011 ocorreu
sua primeira expansão para fora do bloco regional, com o acréscimo de peruanos e bolivianos.
Em 2011, Tuane ingressou no curso de História – Direitos Humanos na América Latina,
nomenclatura adotada pelo curso no mesmo período e alterada já para o ingresso das turmas de
2012, algo que, como veremos, será ressaltado na sua narrativa. Proveniente do Uruguai, onde
viveu desde a infância em Montevidéu, sua trajetória será singularizada pela profunda relação
com seu bairro de origem, Villa del Cerro, local de partida e chegada na significação narrativa
de sua memória.
Com o objetivo de enriquecer as possibilidades narrativas e interpretativas, em todas as
entrevistas buscamos realizar a mesma pergunta ou provocação inicial. Os estudantes eram
sempre provocados a falar livremente. As perguntas giraram em torno de frases como “fale
sobre sua vida”. Desse modo, tentamos motivá-los a expor uma organização narrativa que
possibilitasse a maior liberdade possível, dentro dos condicionantes de uma entrevista e de
organização de suas experiências através da memória. Em diferentes casos essa tentativa foi
mais ou menos bem sucedida como, por exemplo, quando estudantes se limitavam a narração
de dados pessoais de maneira muito breve. No caso em tela, Tuane narra uma série de questões
que dão origem a uma entrevista bastante fluida, na qual ela produz respostas longas e
complexas para as questões apontadas pelo entrevistador.
Na provocação inicial, na qual é incitada a falar sobre sua vida, Tuane constrói uma
narrativa que busca englobar presente e passado, a partir da trajetória bairro de origem-Unila:
Eu sou de Montevidéu, capital do Uruguai, de um bairro de periferia da capital e eu
estudava antes de vir pra cá. Fiz um ano de universidade lá, estudava Ciência da
Comunicação. Só que eu tinha que trabalhar também e a universidade ficou um pouco
mais difícil porque eu estudava num curso terciário e o curso em conjunto com o
trabalho fica difícil. Aí eu meio que tava deixando a universidade e surgiu a proposta
de vir pra Unila. Aí eu já tinha saído de casa, independezada também e quando saiu a
oportunidade da Unila eu não pensei e me inscrevi... (TUANE, 2013).
44
Temos, logo no início da fala, alguns elementos-base da narrativa que foi construída por
Tuane. A localização geográfica, com a nomeação de sua cidade e país de origem marcam o
início. Combinado a isso, vemos a construção de um lugar social de partida que, quando
conjugado com os elementos anteriores, servem de ponto de apoio ao qual ela pode recorrer, ao
longo da narrativa, como lugar de partida da construção de sua experiência. Por fim, surge a
Unila, que completa um tripé associativo que busca explicar sua experiência: nascida em um
bairro da periferia de Montevidéu, estudante universitária e trabalhadora no Uruguai e,
novamente, estudante universitária, no Brasil. Ao mesmo tempo, essa memória se constituiu a
partir da exploração e superação de fronteiras nacionais e sociais. Brasil e Uruguai,
periferia/trabalhadora – universitária. A narrativa localiza sua trajetória na constituição de
entre-lugares (BHABHA, 2014), onde fronteiras são diluídas e transformadas quase que
simultaneamente em pontos de partida e de chegada. Para que possamos compreender esse
processo, faz-se necessário nos aprofundarmos na análise e compreensão de sua trajetória e
buscar entender o caminho que culminou em sua chegada a Unila, em Foz do Iguaçu.
As experiências estudantis não podem ser pensadas de maneira desvinculadas de seu
passado. A matrícula universitária não é uma certidão de nascimento que constitui, em si, uma
identidade, mas sim, se coloca em diálogo com o espaço de experiências dos sujeitos sendo
significado na relação presente/passado, sem deixar de dialogar com um conjunto de
expectativas de futuro que se transformam no tempo. Desse modo, a busca da compreensão das
narrativas desses sujeitos, através das quais pretendemos evidenciar a constituição de uma
diversidade de experiências conformadoras das dimensões formativas da experiência unileira,
exige um caminhar através da memória dos estudantes, abordando suas relações prévias à
universidade que, de diferentes formas, dialogam com o processo de opção pela Unila.
Uma dimensão primária na vida e na narrativa da trajetória de Tuane é como sua
estrutura e experiência familiar se entrelaçam com a história do bairro El Cerro. Ela e sua irmã,
cinco anos mais velha, foram criadas apenas pela mãe, desde os dois anos de idade, momento
em que seu pai abandona a família. Sua narrativa, que começa pela família, logo se desloca para
aquele que será constituído como elemento central de sua memória, o bairro onde cresceu:
Quando eu nasci eu morava num bairro que era de periferia também, mas na outra
ponta da cidade [risos]. Quando eu tinha 3 anos eu fui para o bairro que eu sou agora,
que é El Cerro que é o único morro que tem em Montevidéu, então vai ser fácil
procurar [risos]. E tios, minha avó, quase toda a minha família já morava nesse bairro.
Então eu sempre tive a possibilidade de por sorte brincar na rua de ter uma relação
com vizinhos, de amizade. Fui criada nessa velha escola que se fala de bairro, sabe?
Que se fala de criança na rua? E, foi muito legal. Ah, o meu bairro é um bairro que
tem uma tradição obrera foi o lugar onde se colocaram os primeiros frigoríficos no
45
Uruguai, frigoríficos de carne de gado. As primeiras populações que chegaram na ilha
foram descendentes de europeus: italianos, armênios, muito armênios, russos também,
que iam pra trabalhar nesses primeiros frigoríficos e foram povoando essa área do
bairro. E então também tem a questão de que os primeiros anarquistas, os primeiros
comunistas que vinham no começo do século XX foram se situando ali. Então esse
bairro tem uma politização muito forte, é um bairro que tem essa noção do coletivo,
sabe? Do vizinho, de que o filho do vizinho é meu filho, essa questão de comuna
mesmo, é bem legal (TUANE, 2013).
A história do bairro se imiscuiu em sua narrativa e construiu uma experiência de
continuidade temporal incorporada na sua subjetividade. Nessa construção, a solidariedade
social é fruto de uma tradição de politização que remonta ao início do século XX, com a chegada
de imigrantes europeus na localidade. A própria categoria que é utilizada para localizar sua
mudança de moradia - “Quando eu tinha 3 anos eu fui para o bairro que eu sou agora” (TUANE,
2013) - implica uma noção de pertencimento e de apropriação da historicidade daquele espaço
para a sua subjetividade. Isso se aprofunda, na sequência, quando essa apropriação se torna
ainda mais evidente “meu bairro é um bairro que tem uma tradição obrera”. O expresso
pertencimento é colocado em evidência ao constituir uma continuidade entre as experiências
operárias e as vivências calcadas em solidariedade social.
O bairro como local de partida, realização e significação de suas experiências possibilita
entender, como veremos, não apenas sua ida à universidade e depois à Unila, mas também como
constituiu sua inserção nesses espaços. Essa possibilidade começa a ser construída já na fala
abaixo, onde a vinculação entre educação e bairro se conectam:
Depois eu fiz a escola, eu sempre morei no mesmo bairro, troquei de casa, mas sempre
no mesmo bairro. Fiz o ensino fundamental, a escola ali. O liceu, que seria o ensino
médio, também e foi muito complexo. Foi um local que minha experiência pessoal
teve muito a ver com isso porque eu sou militante de movimento social e tal, e
movimento estudantil também. E aí os primeiros contatos com a política, ou com a
militância política foi dentro do meu bairro, dentro do posto, do grêmio do liceu,
grêmio dos secundaristas. (...). Eu aprendi muita coisa assim, o intercâmbio das
pessoas também, e isso gerou nossos grupos (TUANE, 2013).
Novamente, o sentimento de pertencimento e de continuidade presente/passado aparece.
Sua narrativa evidencia aquilo que apontávamos na introdução deste capítulo: o ingresso na
universidade não é um momento de nascimento ou de ruptura na trajetória do estudante, mas
uma experiência que é significada e localizada temporalmente de diferentes formas. Seu
pertencimento ao movimento estudantil universitário é identificado e interpretado em sua
memória como um processo que advém de aprendizados políticos provenientes de seu bairro,
de suas vivências no grêmio estudantil.
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Dessa forma, desconectar seu passado, que não passou, de suas vivências na Unila, seria
amputar a compreensão de seu presente. Coloca-se, então, aquilo que viemos a defender como
possibilidade enriquecedora e característica fundamental da História do Tempo Presente. É a
historicidade dos sujeitos que permite compreender as apropriações e significações dos
estudantes, no presente. O passado, não como ruptura, mas como significante constante do
presente que constitui as bases de nossa compreensão histórica e o foco de nossa análise.
As continuidades apontadas pela estudante podem se dar de maneira mais indireta, como
pelo sentimento de pertencimento, ou explicitamente, como na explicação da opção pelo ensino
universitário. Essa opção nunca é natural.
No caso brasileiro, temos, grosso modo, três grupos sociais principais na relação com
essa opção. O primeiro é formado por aqueles que acessam a universidade em diferentes
momentos de suas vidas, sua opção será explicada por um conjunto de fatores sociais, culturais,
econômicos e subjetivos. Um segundo grupo é formado por uma grande massa de aspirantes ao
ensino universitário que tem seu acesso negado por diversos fatores: falta de vagas, dificuldade
de acesso ao curso pretendido, incompatibilidade de tempo, etc. E, por fim, um grupo formado
pela imensa maioria dos jovens e adultos8 brasileiros, aqueles que não tem, ou não imaginam,
por motivos que não nos cabe abordar aqui, o acesso à universidade como parte de sua
experiência de vida.
O caso uruguaio, assim como de outros países latino-americanos, como a Argentina e
Cuba, é diferente. Nesses países, o acesso às universidades públicas é universal, bastando a
comprovação da conclusão dos graus de ensino anteriores. Nesses casos, fica ainda mais
evidente a necessidade de compreendermos o que leva, ou não, os jovens a buscarem o ensino
universitário. Pistas para isso surgem quando elencamos questões que tinham por objetivo
compreender o horizonte de expectativas de Tuane antes do ingresso na universidade. O bairro
e as dinâmicas constituídas ou impossibilitadas, a partir desse lugar social, aparece como
elemento explicativo na elaboração da resposta a essa pergunta:
Eu queria estudar, era o principal... Eu nunca fui muito interessada nessa questão dos
títulos, mas no Uruguai o jornalismo é difícil pra caralho por causa de que é um lugar
muito acomodado, só entra filhos de padrinho... De primos de não sei quem... E aí
você estudante público e tal que não tem grana e que não é filho de ninguém [risos]
não é de grana é sempre muito difícil. A minha ideia, minhas expectativas sempre
foram dar aula e tentar fazer jornalismo de investigação que fosse também relacionado
ao que eu também já trabalhava, né? Pra tentar ajudar, principalmente dessa região de
8
Pesquisa da OCDE divulgada pela Folha de São Paulo, em 2016, apontou que, no Brasil, apenas 14% dos adultos
chegaram ao ensino universitário, número baixo quando comparado à média da organização, onde o volume de
graduados chega a 35%. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/09/1813715-so-14-dosadultos-brasileiros-tem-ensino-superior-diz-relatorio-da-ocde.shtml> Acesso em: 7 jun. 2016.
47
onde eu venho, sempre quis dar aula no meu bairro e eu vou dar aula no meu bairro e
tentar fomentar essas coisas assim. Ao mesmo tempo eu fazia militância política no
movimento estudantil geral e a minha ideia sempre foi trabalhar num lugar assim de
trabalho comunitário, trabalhei num local que era pra crianças da rua, não sei... Se já
tinham idade... Eu não tinha muito expectativa, muita coisa... Queria estudar, queria
trabalhar no que eu queria fazer e queria tentar colaborar com alguma coisa e mudar
essa sociedade, essa era minha expectativa principal... (TUANE, 2013).
A vontade de estudar aparece em sua memória como central em seu horizonte de
expectativas. Tal como abordado por Koselleck (2006), suas perspectivas de futuro não nascem
por “geração espontânea”, mas calcadas em uma leitura de suas possibilidades de atuação no
mundo que a cerca. Assim, diante da percepção de que a carreira jornalística demandava
apadrinhamento ou titulação, adaptou suas perspectivas de vida a essas necessidades.
Proveniente de família pobre e de um bairro periférico, a universidade surgiu como
consequência, não a causa, da opção por um trabalho, o jornalismo investigativo ou o
professorado. Observamos, primeiro, as condições sociais disponíveis e aquelas que se faz
necessário atingir para a realização de sua ambição: a partir daí a universidade entra em cena.
Além disso, a própria escolha da profissão se fez calcada em sua leitura do lugar social do bairro
e em formas de concretizar seu desejo de “colaborar com alguma coisa e mudar essa sociedade”
(TUANE, 2013) – que esteve baseada na leitura social constituída no diálogo com as
experiências anarquistas, comunistas e de atuação políticas. Tanto o professorado, a posteriori
definido na área da História, quanto o jornalismo investigativo seriam profissões que
permitiriam, de diferentes formas, cumprir esse desejo.
Interessante apontar, em relação à essa opção central pelo estudo, é a sua própria
possibilidade. Lembremos que, como colocamos algumas linhas atrás, o Uruguai permite
acesso universal ao ensino universitário. Essa possibilidade é histórica e tem de ser ponderada
quando vemos a “naturalidade” com a qual Tuane narrou seu propósito de estudar. Em um país
onde esse objetivo é, ao menos em tese, acessível a todos os cidadãos, a universidade pode, ou
não, ser incorporada de maneira “mais tranquila” ao horizonte de expectativas dos jovens. O
mesmo não pode ser esperado em sociedades, como a brasileira, onde o ensino universitário é
profundamente excludente e as principais universidades públicas, mesmo com as cotas sociais
e raciais, são fortemente ocupadas por estudantes brancos e de classes altas.
Mesmo com a “normalização” narrativa da opção universitária, o horizonte de
expectativas se transforma no contato com contextos previstos ou não. Determinadas dimensões
podem e foram adaptadas de acordo com as possibilidades e necessidades como, por exemplo,
ter de realizar um curso universitário e outras se mantêm, como a reafirmação do desejo de
ministrar aulas em seu bairro. O espaço que foi usado para narrar e dar sentido ao seu passado
48
foi, também, utilizado para projetar o futuro. Essas transformações construídas nos
tensionamentos entre expectativas e as condições de realização da experiência podem ser
percebidas quando Tuane fala sobre o processo de opção pela universidade, tanto no Uruguai,
quanto em relação a Unila:
E quando eu finalizei o ensino médio eu tinha que decidir se eu ia seguir História ou
Comunicação. Só que aí como eu sempre penso comunicação/jornalismo, falei: “Não,
agora que eu estou tendo a possibilidade de estudar...”. Porque eu não sei o que vai
acontecer. Aí eu escolhi jornalismo. Eu entrei, fiz isso que eu te contei e aí vi quando
surgiu a possibilidade de vir estudar aqui. Vi que tinha História e não tinha Jornalismo
e falei: “Não, eu vou fazer História da América Latina”. Aí eu vim pra cá. E é
engraçado, porque o curso quando eu vim pra cá, o nome do curso era “História e
Direitos Humanos na América Latina”. Ele depois mudou para “História com ênfase
na América Latina”, tirou a parte dos direitos humanos. Só que eu tinha vindo
pontualmente pela questão dos direitos humanos, que era a área de pesquisa do campo
que eu queria fazer, era o meu tema específico como sempre foi: ditadura, transição
democrática, questão dos desaparecidos, questão dos direitos humanos, sempre foi
isso, bem amplo (TUANE, 2013).
Aqui a relação entre transformações e continuidades nas expectativas construídas pela
estudante fica evidente. Optou pela realização de um curso que, entre outros atrativos, que
abordaremos adiante, tinha na ênfase nos Direitos Humanos o foco do olhar de Tuane. A
mudança na nomenclatura a decepcionou, especialmente por sua área de estudo preferencial
estar diretamente ligada às perspectivas de direitos humanos.9 Novamente, essa ênfase foi
ligada à história do bairro e à forma como sua experiência se conecta com essa historicidade:
“Porque esse bairro foi muito reprimido durante a ditadura, então sempre ficou essa questão de
tentar se cuidar um do outro, entendeu?” (TUANE, 2013). O espaço de experiência do bairro é
incorporado ao seu, o que constitui determinações no seu horizonte de expectativas e tensiona
as perspectivas e alternativas que seu presente possibilita ao longo de sua própria experiência.
A subjetividade individual, expressa no horizonte de expectativas, encontra limitações
no contexto que lhe é apresentado e tensiona as possibilidades. O processo de negociação entre
as expectativas e a materialidade da experiência é constante. Interessante abordar ainda a
respeito da escolha do curso e a proximidade da produção intelectual que ela vê em ambos.
Tanto História quanto Comunicação permitem, segundo ela, o trabalho para “mudar essa
sociedade”, através de processos semelhantes. Os dois campos permitem efetivar o desejo
investigativo de Tuane como ferramenta de trabalho. Não estão colocados em campos distantes
que pudessem exigir conhecimentos e desejos opostos, mas em campos semelhantes, com
9
Seu trabalho de conclusão de curso, apresentando em 2014, cerca de 18 meses após a entrevista, continua nessa
perspectiva ao abordar o presídio do Carandiru e a transição democrática brasileira. A referência do trabalho não
será mencionada para preservar a identidade da entrevistada.
49
problemas – como no caso da escolha de seu objeto – que em diferentes dimensões lidam com
as mesmas questões e formas de abordagem.
Aqui podemos abrir margem para outra questão importante que tangenciamos
anteriormente. Se já abordamos a forma como a universidade foi incorporada ao horizonte de
expectativas de Tuane, bem como a forma como os cursos que ela deseja se inseriram nesse
contexto, precisamos trazer à tona como a Unila foi colocada em todo esse processo. Afinal,
estamos a falar de uma universidade em outro país, uma instituição extremamente jovem – tinha
apenas dois anos quando da vinda de Tuane – e com uma proposta institucional bastante distinta
das tradicionais universidades latino-americanas.
A forma como Tuane tomou contato com a Unila é uma forma muito presente nas
narrativas dos estudantes dessa universidade. Este talvez seja um dos elementos mais
recorrentes nesses sujeitos:
A Unila Surgiu num dia muito engraçado... Fevereiro, começo de fevereiro de 2011,
eu tava procurando na página da minha universidade do Uruguai quando eram as
inscrições pras disciplinas, pra cursar, a matrícula do segundo ano.. Aí eu tava
procurando e não estava encontrando nada... Aí eu vejo um cartaz assim, forte pra
caramba que falava: “Universidade Brasileira entrega becas10 aos estudantes”. Aí eu
entrei(...)E quando eu vi esse cartaz eu entrei e vi que tava dando bolsas li que a
universidade era de integração latino-americana e que ia ter pessoal de diferentes
nações, e eu pensei: “Tá [risos] o que eu estou fazendo aqui?”. Tipo, eu com toda
essa missão da América Latina, de querer conhecer mais, da questão da integração, da
questão de conhecer outras culturas, outras sociedades e tal, a proposta política da
universidade junto com a oportunidade de vida e pessoal e profissional, juntou tudo e
eu falei: “Não tem como”. Aí eles pediram, e faltava dois dias pra finalizar a inscrição,
e eu tinha que fazer uma carta: “Porquê eu queria vir pra cá?”, e fazer minha inscrição
(TUANE, 2013).
Um elemento bastante comum nas falas sobre o momento da descoberta da Unila,
enquanto uma possibilidade de estudo, é o acaso- que buscamos apreender já no título deste
capítulo através da noção de descaminhos. A ideia de acaso é interessante neste processo, pois
evidencia uma possibilidade inesperada dentro de um horizonte de expectativas. Enquanto a
proposta institucional promove uma narrativa de integração latino-americana e busca alcançar
estudantes a partir daí, vemos, como no caso de Tuane, outras formas de aceder a informações
sobre a universidade e o projeto da instituição. Poderemos ver esta questão reforçada em
algumas narrativas a seguir. O caso de Tuane é significativo por trazer algumas linhas gerais
desse processo.
10
Becas: bolsas de estudo.
50
Antes de mais nada é preciso pensar a conjuntura na qual essas “descobertas” se
inserem. A Unila é, e era ainda mais no momento da inscrição de Tuane, uma instituição
extremamente jovem. Isso fica evidente se observarmos o contexto latino-americano, no qual
temos instituições centenárias e, mesmo no Brasil que, como vimos, tem universidades “jovens”
na comparação com os demais países do subcontinente, a Unila era apenas uma “recémnascida”. Assim, seu conhecimento, para além dos círculos acadêmicos nacionais, bem como
para além de sua região de instalação, era bastante precário. Como forma de sanar esse
problema, diferentes estratégias de comunicação e divulgação são adotadas com o passar do
tempo.11 A que se mostrou mais eficiente, pelo menos a que foi possível perceber através das
narrativas, foi a divulgação através de aparelhos educacionais dos diferentes países, em especial
em suas páginas online. Assim, sites de ministérios, secretarias e departamentos de educação,
bem como das universidades nas quais esses jovens estudavam ou pretendiam estudar, serviam
como difusores dessa informação.12 Dessa maneira, o acesso à universidade pode ter ficado
limitado a elementos relativamente fora do controle dos estudantes e da própria instituição, o
que limitou suas capacidades de atuação, definição e público alvo ao tensionar o objetivo
institucional constituído e ampliar a apropriação individual de suas possibilidades. Os casos em
análise devem ser lidos com o constante lembrete de que esses foram os estudantes que
conseguiram. Não são, de maneira alguma, “representativos” de uma suposta “juventude latinoamericana”, mas casos de “sucesso” em uma empreitada que não necessariamente é
voluntariosa ou mesmo buscada e que emerge na trajetória desses sujeitos de maneiras distintas
e impossíveis de generalizações.
Se o caso de Tuane permite perceber essa conjuntura de limitação no acesso às
informações da Unila, também permite a problematização de formas como suas experiências
pessoais e seu desejo pela universidade se articulam. Dois elementos se destacam em sua fala:
a proposta institucional de integração latino-americana e a possibilidade de bolsa de estudos. A
possibilidade de se inserir em um projeto político que dialogaria diretamente com pressupostos
sociais construídos por seu círculo familiar e social, o que remete novamente às experiências
no bairro, aparece como elemento privilegiado enquanto provocador de seu desejo de ida para
a Unila. Mais adiante, ela afirma: “A questão do projeto político da universidade que eu achava
legal, que eu queria ver a experiência que tinha sido o sonho de muitas pessoas da minha família
que lutaram por outra sociedade” (TUANE, 2013).
11
Algumas dessas estratégias de comunicação serão apresentadas no capítulo 3.
O ingresso no “Grupo de Montevideo”, associação de universidades latino-americanas, já durante seu processo
de fundação, pode ter servido para criar e fortalecer esses laços de divulgação.
12
51
Ao responder sobre suas motivações, incorpora em sua subjetividade essas lutas
familiares e coloca-se numa posição de continuidade em relação às experiências passadas de
seu círculo de sociabilidades. Em termos teóricos, temos aqui um exemplo do horizonte de
expectativas incorporado ao espaço de experiência do sujeito. Mas não apenas isso:
individualizar a questão seria amputá-la de suas possibilidades históricas. Esse não é um
simples processo de escolha individual, mas de ampliação e de apropriação de um espaço de
experiência social, demarcado pelas historicidades familiar e de El Cerro, que expandem o
presente de Tuane para além dos limites de sua experiência individual. Se temos defendido
como recorte histórico da História do Tempo Presente o espaço de experiência do
contemporâneo do historiador, temos um exemplo privilegiado da necessidade e validade dessa
formulação. Se problematizássemos o presente do sujeito que remete a recortes
tradicionalmente utilizados pelos historiadores da História do Tempo Presente, teríamos um
trecho onde “a última catástrofe” (ROUSSO, 2016; FICO, 2012), no caso em questão,
poderíamos elencar a ditadura uruguaia, entraria em ação como elemento limítrofe e definidor
desse presente. Entretanto, as temporalidades de grupos sociais não necessariamente são
demarcadas apenas por essas experiências.
Sem retirar a importância que momentos traumáticos da política latino-americana
podem ter – vimos como os abusos contra direitos humanos são importantes no projeto
acadêmico e político de trabalho da estudante – elementos mais ou menos amplos podem surgir
como demarcadores temporais dessas historicidades. Nesse caso, temos uma história que
remete, nas próprias palavras de Tuane, à chegada e à construção da politização anarquista e
comunista no Uruguai, mais especificamente para ela, em seu bairro. Amplia sua significação
do presente para momentos que extrapolam seu tempo de vida, gera uma incorporação da
memória local e cria um espaço de determinações dessas dimensões em seu horizonte de
expectativas. Temos, assim, a necessidade de observar esses processos como incorporados no
seu presente e que gera um tempo expandido na constituição de seu espaço de experiências.
Esse recuo temporal não é, nem pode ser indefinido. É preciso estarmos atentos para não
incorrermos no equívoco do que Marc Bloch, já na década de 1930, chamava de “mito das
origens”.
Nem toda dimensão social e histórica narrada é constitutiva do tempo presente e,
consequentemente, do espaço de experiências do sujeito. Cabe ao historiador, através da análise
cuidadosa dessas memórias a identificação e problematização da densidade que essas
dimensões possuem na subjetividade desses sujeitos e, a partir daí, construir a análise que toma
52
ou descarta aquelas que constituem o presente, as identidades e a historicidade desses sujeitos.
Dessa forma, mais que reivindicar a necessidade de expansão do tempo presente, o que
pretendemos é propor uma problematização de elementos fixos para a sua definição e expor
limites de marcos temporais generalizantes na constituição do tempo presente dos sujeitos.
O segundo elemento ativado pela estudante para explicar sua opção pela Unila também
está articulado com sua experiência social. A possibilidade de realizar uma graduação que, além
da proposta de integração, pode contar com bolsas de estudos, a atraiu. Para entender isso, é
necessário, novamente, retornarmos ao seu lugar social. Estamos a falar de uma jovem que tinha
19 anos – 21 no momento da entrevista -, trabalhava com telemarketing ao longo do dia e à
noite estudava Ciências da Computação. Sua instabilidade financeira a tinha forçado se mudar
de Villa del Cerro em direção ao centro da cidade, o que gerou uma marca forte em sua
memória:
Entrevistador: Você fala bastante do seu bairro. No entanto, você saiu para outra
cidade, para outro país. Então como é essa relação? Porque você foi uma das que não
ficou...
Tuane: Eu fui uma das que fugiu. Na verdade, eu antes de vir para o Brasil já tinha
saído do bairro para o centro de Montevidéu. Eu queria sair de casa, queria me
indepedenzar e procurei lugar para morar ali no meu bairro. Mas tudo mais caro dentro
das minhas possibilidades de contas. Aí eu tive que ir para o centro de Montevidéu
pra morar numa pensão que tinha outros estudantes. Aí eu fiquei morando ali... E,
sinceramente, o dia que eu saí, que eu fui embora, eu saí chorando, porque eu não
queria ir embora, porque tinha meus amigos, tinha minha família, tinha todo mundo
ali... E aí essa relação ficou um pouco mais forte, porque o fato de eu ficar distanciada
eu queria curtir as coisas que me faziam bem dentro do bairro, ver as pessoas, ir nos
lugares onde eu podia tomar um mate, ficar olhando o mar, essas coisas... (TUANE,
2013).
Seu desejo de se tornar independente está relacionado à família, mas é a necessidade
financeira que a levou a sair de seu lugar de pertencimento. Apesar disso, o termo utilizado para
marcar a saída é interessante. Enquanto a pergunta se refere a “uma das que não ficou”, a
resposta foi calcada na fuga. Aqui um adendo importante. A construção narrativa da
entrevistada indica que a “fuga” está relacionada a vinda para o Brasil, pois, logo em seguida,
divide a trajetória de migração em dois: a vinda para o Brasil precedida da saída do bairro.
Assim, indica que a “fuga” está relacionada ao processo de vinda para o Brasil, o que explicaria
a necessidade da demarcação da diferença logo após a expressão.
Para além desse movimento narrativo de significação da experiência migratória, temos
a necessidade financeira como a motivação primeira da saída do bairro. Novamente, essa
explicação será utilizada na hora de optar pela Unila. Tuane recebia, à época da entrevista, um
conjunto de benefícios da universidade: 300 reais de auxílio moradia, 300 reais de auxílio
53
alimentação e o valor de duas passagens de ônibus urbano para cada dia letivo, incluindo
sábados. Estes benefícios eram distribuídos através de seleção em edital 13 próprio que visa a
manutenção dos estudantes na instituição, com foco especial naqueles carentes de recursos
financeiros. Essa possibilidade abre a expectativa da realização de um curso universitário sem
as incertezas de trabalhos fragilizados, como o caso do telemarketing, bem como de dedicação
integral aos estudos. Sem essas condições no Uruguai, que mesmo com educação gratuita não
proporcionava esta segurança, a opção pela Unila se torna mais forte. Assim, une-se o desejo
de pensar e melhorar a sociedade latino-americana, fruto da incorporação de valores e da
memória social de Villa del Cerro com as possibilidades financeiras e acadêmicas da
instituição, o que gera a possibilidade de constituição de um novo caminho. Essa dupla
disposição origina uma narrativa de convicção quase que absoluta a respeito do momento da
escolha:
E em nenhum momento eu duvidei de não vir, foi tipo, saiu... eu nem sabia que ia
sair.... Eu estou sendo explorada no trabalho que não dá nem pra chegar... Não estou
conseguindo fazer a universidade direito como eu queria fazer... Então... Tenho a
possibilidade de estudar em um lugar vou ter a possibilidade de me alimentar e ficar
tranquila que vou ter alimentação. [Risos]. Ficar tranquila de que eu vou poder
estudar, que eu vou poder fazer outras atividades que eu quero fazer que me
complementam e que vão complementar meu estudo e ainda tem uma questão da
integração latino-americana, que tem o fundo ideológico, social e que tem a ver com
as coisas que eu penso... Era o lugar ideal [risos] e aí surgiu assim... (TUANE, 2013).
É difícil, a partir dos elementos à disposição, avaliar até que ponto essa “certeza” pode
ter sido construída a posteriori. No campo da especulação, que pode nos servir como
provocação e levantamento de possibilidades, é possível imaginar que um processo de
imigração deveria levantar dúvidas a respeito de sua viabilidade econômica – resolvida pela
estrutura de auxílios da universidade – e subjetiva. Já nas possibilidades historiográficas, temos
acesso à narrativa. Não está nas nossas condições, enquanto historiadores, a capacidade de
apontar o “verdadeiro” significado de um determinado evento, mas as interpretações e os
significados construídos para a partir da memória narrada (PORTELLI, 1996). Sendo assim, o
que vemos é esta afirmativa de segurança a respeito da decisão. Cabe a nós tentar entender essa
possibilidade a partir dos elementos presentes. Como já abordado, duas razões apareceram até
agora, a incorporação do ideal de integração latino-americana como uma expansão dos ideais
13
O edital referente à assistência estudantil mais antigo a que tivemos acesso é de 2013 e está disponível no site
da
Unila:
<https://unila.edu.br/sites/default/files/files/2013/Proaec/EDITAL%20N_04%20INSCRICAO_REINSERCAO.p
df > Acesso em: 12 jun. 2017.
54
de transformação da sociedade presentes nas lutas sociais de El Cerro e a relativa estabilidade
econômica trazida pela assistência estudantil da universidade. Resta ainda um outro elemento
presente em sua fala que pode nos ajudar a compreender a sua disposição em migrar sem ser
assombrada por dúvidas:
E quando eu vim pra cá foi um pouco até engraçado, porque a própria história do
bairro é uma história de imigrantes. A gente ta acostumado quando escuta essa história
dos que foram e dos que voltam [riso]. E sempre que eu volto minha mãe continua
morando ali. Então sempre que eu volto pro Uruguai eu volto pro bairro e aí eu me
insiro cotidianamente na vida dos outros: eu vou ver meu tio antes de chegar do
trabalho, vou ver minha amiga antes de estudar e fico fazendo a mesma rotina como
se eu estivesse ali. (...) Aí sempre que eu vou lá sempre tento saber se ta tendo alguma
organização política, se ta tendo algum negócio, a organização política dos últimos
tempos e tal... A última vez que eu fui a galera velha do bairro ta construindo uma
rampa pra que as pessoas de cadeira de rodas pudessem descer pra praia, porque tinha
se pedido pra prefeitura faz um ano e meio e eles não fizeram nada então a galera tava
fazendo. Aí eu fui e participei das atividades, ajudar a construir e tal... (TUANE,
2013).
A experiência migratória do bairro é incorporada como um facilitador em sua própria
trajetória imigrante. Não apenas a partida, a saída de pessoas para outros lugares, mas também,
e pensamos que, principalmente, o retorno é importante para Tuane. A construção de seu relato
nos permite inferir essa questão. Ela inicia com o fato de estarem “acostumados” a ver pessoas
partirem em migração e é a experiência de retorno que tomou conta de sua fala. O fato de sua
mãe continuar no bairro serve de âncora subjetiva que a conecta com seu lugar de
pertencimento, como expressa logo a seguir: “E aí tá, eu sei que mesmo que eu saia de lá o
sentimento de pertencimento ainda fica” (TUANE, 2013). Desse modo, sua experiência
universitária se constitui enquanto é assegurada por uma ponte identitária com seu lugar de
pertencimento. Suas possibilidades dentro da universidade podem ser realizadas tendo por
garantia a continuidade dessa pertença que poderia, pelo menos é sua expectativa, ser ativada a
partir do retorno a El Cerro.
Sua migração não constituiu uma desterritorialização, mas um rearranjo identitário
elaborado a partir de continuidades ou, pelo menos, expectativas de continuidades subjetivas.
A história do bairro permite a construção de uma ponte identitária que a aproxima e possibilitou
que construísse um sentimento de pertencimento e de casa na experiência de migração. O fato
de o bairro ser formado por imigrantes aproxima subjetivamente sua experiência, permite que
se sinta em casa através, justamente, da imigração e da saída. Sua experiência de deslocamento
migratório é transformada em um espaço de pertencimento, em um lar compartilhado com o
bairro, mesmo que isso só ocorra após algum tempo. Afinal, ela, os moradores do bairro e seus
antepassados, teriam na imigração uma instância de pertencimento.
55
Essa forte incorporação subjetiva do espaço de experiências que ela identifica com o
bairro não teve consequências apenas no processo de escolha e decisão da universidade. A
própria adaptação à vida universitária na Unila e em Foz do Iguaçu dialogou com essa questão.
Se até agora temos visto como este processo se dá a partir de uma perspectiva de continuidade
da experiência identificada com a de El Cerro, isso não ocorre sem contradições. Uma memória
narrada raramente escapa da construção de contradições e negociações entre situações e
significados mais ou menos conflitantes. É nesse sentido que poderá ser entendida a fala a
seguir. Apesar de toda a narrativa ser constituída através de continuidades, é possível perceber
dificuldades que emergem em todo esse processo:
Óbvio que eu pensei que eu queria vir e eu nunca duvidei de não vir.. As únicas
dúvidas que começaram a surgir foram três meses depois de eu já estar aqui... Tipo
junho... Que já tava fazia três meses que eu não tava vendo a minha família, que eu
não via nem pela câmera porque eu não tinha computador. Então fazia três meses que
eu não conseguia ver eles e isso tava me, sabe... você precisa olhar pra essa... Ai foi o
momento que foi forte, que teve crise e tal [...]) E quando eu voltei dessa vez foi: “Tá,
eu volto pra fazer a minha vida aqui” e quando eu cheguei eu lembro que até esse
momento que eu fui eu não tinha arrumado o quarto, sabe? Dar um toque pessoal ao
quarto. Porque a gente tava morando num hotel, que era a moradia no centro. No
Cacique Salvatti que fica perto do Muffato... Aí eu não tinha botado nada, nem uma
foto, nem um cartaz, nada, era quarto de hotel branco e as minhas coisas... Aí quando
eu voltei dessas férias eu arrumei o quarto, eu fiz o quarto meu e consegui meio que
ficar no lugar que tava tendo dificuldade... Aí eu continuei aqui até o final (TUANE,
2013).
A reafirmação da ausência de dúvidas é acompanhada na sequência pelas dificuldades
que a distância trouxe após seu estabelecimento em Foz do Iguaçu. A dificuldade de adaptação
motivada por saudades da família é uma constante nas narrativas de universitários, tanto da
Unila quanto em outros estudos que abordem experiências estudantis (REISDORFER, 2011;
SUBUHANA, 2005). É esse problema que gera possíveis dúvidas com relação à permanência
na Universidade. O que gostaríamos de destacar é a especificidade do momento da chegada de
Tuane. Sua vinda para Foz do Iguaçu para a matrícula e a realização do curso ocorre da mesma
forma como os demais estudantes. É sua significação desse processo que nos chama a atenção.
Ela reside na moradia estudantil desde março de 2012 é só após as férias de meio de ano que
ela finalmente “chegou” em Foz do Iguaçu. Afinal, é nesse momento que ela transforma o que
antes era um “quarto de hotel branco” em “o quarto meu”.
Esse deslocamento no significado do espaço é importante por simbolizar um
deslocamento de uma perspectiva de dúvidas construídas a partir da chegada para um momento
de definição e transformação do espaço migrante em “casa”. É a partir desse evento, 5 meses
após sua chegada, que ela passa a significar esse novo espaço como sua casa. O processo de
56
desterritorialização subjetiva só é superado quando o quarto é definido como seu, apropriado
esse espaço enquanto território subjetivo. Esse é o momento de chegada definitiva. Isso
evidencia que a experiência de chegada não necessariamente se dá quando se pisa na pista de
pouso, mas sim quando a subjetividade se acomoda a partir de negociações e incorpora essa
nova espacialidade.
No caso de Tuane, a incorporação do espaço de experiências de Villa del Cerro a sua
subjetividade é uma característica marcante e que buscamos evidenciar. A partir disso, pode-se
perceber a forma como a estudante lidou com um dos problemas centrais para a análise das
experiências estudantis na Unila: a migração. O rompimento ou afastamento de laços familiares
sociais e culturais é questão significativa em todos os três entrevistados. Afinal, estamos a lidar
com uma situação de migração que, em boa parte dos casos, implica a ida para outro país, com
outra língua, costumes e cultura. Some-se isso ao fato de que a vivência universitária é distinta
das anteriores. A demanda de trabalho, aliada à de independência, pelo menos relativa, tanto
subjetiva quanto acadêmica, pode ser um elemento de mudança mais ou menos relevante a
depender do caso. Tuane demonstra isso na dificuldade de se sentir “em casa” ao chegar à Foz
do Iguaçu, mesmo que tenha tido certeza de que a migração e o ingresso na universidade fossem
a coisa certa. Ela só se sentirá “em casa” a partir do momento em que viaja de férias para Villa
del Cerro e, quando, ao retornar, consegue construir uma relação de segurança pelo fato de que
imagina que as sociabilidades anteriores continuam a sua espera. É a partir daí que a ancoragem
na experiência do bairro tornou possível se sentir em casa no compartilhamento da experiência
migratória. O próprio reconhecimento como migrante não é automático, pois ele é construído
no contato com esta e outras experiências:
Engraçado porque em 2001 teve uma crise econômica no Uruguai e a metade da minha
família foi embora, voltaram pros EUA e outros foram embora... Então até hoje eu
tenho família na Itália, na Espanha e na Alemanha. E a gente sempre fala “agora eu to
aqui” porque é a minha vida e sabe quando você olha de você pra fora, antes não
conseguia ver, eu só consegui entender que eu também tava morando no exterior o
ano passado [riso] quando eu tava trocando ideia com uma tia que ta na Alemanha e
ela “a gente ta morando no estrangeiro” e eu falei “putz [risos] é verdade eu também
estou. Eu também sou imigrante”. E a gente sempre fala que a nossa família é muito
transeunte, um vai e depois volta. Feito de imigração... (TUANE, 2013).
O momento em que ela transforma o quarto e incorpora decorações que tornariam aquele
espaço algo mais pessoalizado está próximo daquele em que ela consegue se reconhecer como
uma imigrante. Sintomaticamente, esse reconhecimento se dá a partir de uma conversa com
uma tia que mora na Alemanha. Tal fato evidencia a incorporação da experiência migratória
como sua a partir de dinâmicas intersubjetivas. Esse reconhecimento não acontece apenas a
57
partir da vontade da estudante, mas sim no diálogo com outra pessoa, entendida como igual
devido a sua própria migração.
Para além do se assumir imigrante, temos a forma como isso ocorre. O “sou imigrante”
é uma incorporação identitária mais densa, pois transforma o que se é, da experiência
migratória, e contrasta com a fluidez do “agora eu to aqui”. A casualidade e transitoriedade
expressa nesta sentença inscreve na narrativa parte da força que a experiência migratória tem
para ela. Até a informalidade do “to” ao invés da formalidade do “estou” dá velocidade e
dinamicidade à expressão e evidencia a fugacidade identitária da localização geográfica. O
deslocamento, a imigração é a categoria identitária central e não a localização.
A trajetória de uma estudante ou mesmo dos três que analisamos, nesse capítulo,
certamente não são suficientes para fazermos generalizações que pudessem englobar o universo
“unileiro” – termo a ser utilizado com muita cautela ao longo do texto. Entretanto, estas
trajetórias podem apontar alguns elementos que sirvam de alerta e direção para as nossas
análises. O aspecto central do alerta é a diversidade de experiências que um universo de 3 mil
estudantes provenientes de praticamente todos os países da América Latina e Caribe podem
apresentar. Já quando pensamos em interpretações que essas trajetórias trazem, é preciso que
atentemos a alguns elementos das memórias desses estudantes para que possamos compreender
suas experiências na Unila, em Foz do Iguaçu.
No caso de Tuane, como já afirmamos, ficam em evidência a migração e a incorporação
do espaço de experiência de Villa del Cerro para sua subjetividade. A partir daí, vemos uma
memória construída intersubjetivamente a partir da inscrição de elementos da historicidade de
suas sociabilidades em sua subjetividade. Essa forma de organização de sua trajetória é
específica, apesar de, no mínimo potencialmente, compartilhar de alguns elementos com outros
estudantes. Para que possamos ter mais clareza em relação a limites e possibilidades dessas
comparações, diálogos e tensões, é preciso abordar os casos de outros estudantes. Sigamos com
Renato.
58
1.2 ENTRE MUITAS VIDAS
Estudante do curso de Ciências Econômicas, Renato foi entrevistado via Skype em
março de 2017, quando estava em seu segundo ano na Unila. Cubano de 21 anos, ingressou na
universidade em 2016, três anos após a entrevista realizada com Tuane. Sua chegada ocorre
juntamente com outros 3 cubanos que formam o primeiro grupo de estudantes provenientes
desse país, na instituição. É, assim como Tuane, um estudante de “primeira geração”, ou seja,
um jovem que migra para a universidade sem contatos sociais anteriores com a instituição ou
colegas, amigos, familiares e mesmo conhecidos que tivessem trilhado esse caminho para a
Unila. Os desafios que essa especificidade traz para as formas como os estudantes vivenciam a
universidade e a cidade poderão ser explorados tanto a partir de sua memória narrativa quanto
na comparação e diálogo com Tuane.
O momento da entrevista é significativo para que possamos pensar suas possibilidades
de análise. Enquanto Tuane é entrevistada em um momento em que a universidade ainda estava
em processo mais inicial de construção, Renato encontra uma instituição em um momento mais
avançado, embora ainda não concluído, de consolidação. Como veremos, quando
historicizarmos a construção da Unila, no ano de 2013, importantes debates e documentos
foram elaborados na instituição. O estatuto e regimento interno, bem como o PDI e diversos
PPCs são publicados nesse ano. O próprio projeto político pedagógico do curso de Renato é
construído14. Enfim, são momentos que guardam especificidades, as quais o pesquisador que
busca se utilizar do arcabouço teórico metodológico da História Oral na História do Tempo
Presente deve estar atento. Períodos que, à primeira vista, parecem breves, podem conter
significativos impactos e transformações nas narrativas que devem ser pensadas à luz dessas
questões.
Assim como os demais, Renato foi incitado a discorrer livremente sobre sua vida para
liberá-lo, dessa forma, a elaborar uma organização narrativa de sua memória da forma mais
livre possível. De maneira bastante interessante, ao responder essa questão, o entrevistado busca
construir um processo de compartimentalização de suas experiências, ao expressar e reforçar
possíveis momentos de rupturas em detrimento de possibilidade de continuidades. Através da
narração de suas memórias, ele expressa uma ideia de existência de diversas “vidas”:
14
Disponível
em:
<https://www.unila.edu.br/sites/default/files/files/2_PPC%20%20Ci%C3%AAncias%20Econ%C3%B4micas,%20Integra%C3%A7%C3%A3o%20e%20Desenvolvimento.pd
f> Acesso em: 21 ago. 2017.
59
Bem, acho que eu vou falar sobre a minha vida mais recente, antes da universidade.
Porque acho que todo mundo tem muitas vidas. [risos] Bem, a última das minhas vidas
[risos] foi bastante uniforme, tranquila, diferentemente da minha vida anterior, a vida
anterior da universidade. [risos] Estudava Engenharia Elétrica, na Polytechnic José
Antonio Echeverría que é uma universidade de engenharia em Cuba. Acho que é
provavelmente a mais prestigiosa onde se estuda Engenharia em Cuba (RENATO,
2017).
Algumas questões se destacam. Primeiro, a construção de uma lógica narrativa que
divide sua experiência em diferentes “vidas”, demarcadas por momentos relacionados a suas
vivências enquanto jovem e estudante. É a universidade que emerge como ponto de ruptura e
diferenciação entre uma “vida tranquila” e uma “vida anterior” que seria, por oposição
narrativa, “intranquila”. A criação de momentos de rupturas, de descontinuidades, é uma
constante ao longo de sua fala, como poderemos perceber adiante, em momentos que
retomarmos esta questão. Outro elemento que chama a atenção é a busca pela localização da
universidade em que estudava numa relação com as outras instituições, na qual esta teria uma
posição de prestígio. Essa construção permite uma representação de um lugar privilegiado para
si que incorpora esse prestígio a sua própria trajetória e subjetividade que poderia ser lida numa
clave de sucesso. Por fim, como falamos anteriormente, Renato estuda Ciências Econômicas
na Unila, mas, em Cuba, seu curso era Engenharia Elétrica. De uma inserção no campo das
engenharias e das exatas, há uma mudança substancial em direção às ciências sociais.
A opção por narrar sua “vida mais recente” fará com que elementos de sua infância e
adolescência sejam silenciados ou esquecidos, num processo de ênfase no momento da inserção
universitária, primeiro em Cuba e, a seguir, no Brasil. Assim, para abordar relações de
sociabilidade, trabalho e identidade, é a experiência estudantil que emerge como ponto de
partida. O estudante movimenta sua relação passado/presente de acordo com necessidades
subjetivas. A construção de divisões permite pontos de ruptura e de renovação de expectativas
e determinações, mesmo que só narrativamente. Ao ter e afirmar, de maneira generalizante, que
todos possuiriam várias vidas – que existiriam diacronicamente, não apenas sincronicamente,
estabelece-se um presente e vários passados compartimentalizados por eventos chaves que
servem de marcos. Mudanças de escolas, graus de instrução, saída de casa; enfim, uma miríade
de momentos possíveis pode ser elencada para a constituição desses marcos.
A apropriação do tempo de maneira fragmentada desafia o historiador do tempo
presente, em especial a partir de nossa argumentação na delimitação do objeto deste campo.
Afinal, as supostas “vidas anteriores” constituem o espaço de experiência do sujeito? Até que
ponto experiências prévias às rupturas traumáticas ou, como no nosso caso, positivadas, podem
60
ser lidas enquanto formadoras deste espaço de experiências, bem como do horizonte de
expectativas destes sujeitos se os mesmos negam ou relativizam essa possibilidade? É na
própria construção da narrativa que podemos buscar possibilidades de respostas ou, ao menos,
caminhos para pensarmos estas questões.
Os silenciamentos sobre momentos anteriores à universidade só é quebrado ao ser
questionado diretamente sobre momentos ou dimensões de sua experiência que estejam, de
alguma forma, fora da sua delimitação temporal de presente. Assim, ao ser questionado se era
estimulado por professores ou pela sua família a ir para a universidade, responde:
Na verdade, não. Bom, a gente pode falar que professores em parte, porque eu tive a
oportunidade de conhecer pessoas muito importantes, eu poderia falar que eles foram
os meus professores. Como o meu maestro de artes marciais, o meu maestro de violão
que eram pessoas muito sábias e que me ajudaram muito. Que eram muito loucas,
eram malucos todos, mas em seu momento eles foram perfeitos para mim. [...] O meu
professor de teatro também, os meus amigos com suas perguntas, a minha mãe com
sua loucura, porque minha mãe sempre acreditou muito em mim. Ela não exigia muito,
ela não demandava coisas, ela somente tinha confiança. Então essas coisas acho que
conspiraram de alguma forma, posso falar assim, para que eu me movesse para este
caminho da universidade, do mundo acadêmico, da leitura, da [inaudível] da vida.
Acho que de forma muito radical, porque se só tivesse sido uma sugestão essas coisas
que eles deram para mim, eu teria ficado na engenharia, eu acho. Mas a influência
destes aspectos na minha vida foi tão forte que eu não consigo viver sem questionar
as coisas. Sem me questionar os conceitos, tudo, o valor... Então, eu estou na
economia procurando o que é a liberdade, o que é o valor [risos] (RENATO, 2017).
O mundo escolar é identificado a partir de uma ideia de falta de diálogo, dificuldade de
comunicação, ocasionado por diferenças de pensamento que não são especificadas. Assim, um
dos caminhos tradicionais do processo de incentivo ao ingresso na universidade, as vivências
escolares, não aparecem de modo significativo em sua narrativa. É no universo das
sociabilidades familiares e comunitárias que se estabelece o impulso necessário para o ingresso
na universidade. Mesmo em países como Cuba, onde o ensino universitário é aberto à população
sem a existência e necessidade de realização de vestibulares, o movimento de ingresso na
universidade não pode ser naturalizado. Fatores múltiplos interferem nessa opção social. Para
Renato, esse impulso, se constituiria a partir das relações de incentivo de um professor, o de
teatro, seus amigos e familiares, especificamente sua mãe. De maneira interessante, mesmo com
a universalidade do ensino universitário, ele não elenca o exemplo de alguém que tivesse
percorrido esse caminho como inspirador de seu próprio projeto pessoal e acadêmico. Mesmo
o professor de teatro, que aparece em sua narrativa, emerge em meio a relações pessoais e não
por sua formação profissional, a qual não é nem mesmo elencada na fala.
Ao mesmo tempo em que situa as motivações para o ingresso no curso de Engenharia,
pensa o mesmo a partir de uma noção que, vista superficialmente, poderia passar por uma
61
relativização de sua própria condição como sujeito: “acho que conspiraram de alguma forma,
posso falar assim, para que eu me movesse para este caminho da universidade” (RENATO,
2017).
A perspectiva de conspiração permitiria entrever, em suas palavras, uma possibilidade
de atribuição de agência ao seu entorno social, muito mais do que a si mesmo. Entretanto, logo,
na sequência, podemos perceber como essa formulação narrativa serve muito mais para
evidenciar a importância desses círculos de sociabilidade em sua própria experiência. Afinal,
“a influência destes aspectos na minha vida foi tão forte que eu não consigo viver sem
questionar as coisas” (RENATO, 2017). A contribuição dessa “conspiração” é justamente o
reforço da possibilidade questionadora do sujeito. A força dos estranhamentos é constituída
justamente a partir dessas possibilidades sociais que foram formadas na relação com seu
entorno. Não se lê apenas a partir de uma perspectiva que veja o indivíduo como responsável e
sujeito único de um processo decisório.
Nessa possibilidade de incentivos de seus círculos sociais para o ingresso na
universidade, podemos perceber como as constantes rupturas em sua fala são muito mais uma
estratégia narrativa do que a forma como sua experiência é significada em sua memória. Para a
transformação do presente em algo “ensimesmado”, rompido com o passado, seria necessária
uma fala que deslocasse ou, pelo menos, diminuísse a importância das influências desse passado
na constituição do presente. É o contrário que percebemos aqui.
A construção de rupturas é logo seguida da constituição de laços entre o ontem e o hoje.
Os motivos para essa estratégia só podem ser percebidos, especulativamente. Nesse universo,
podemos pensar em uma possível dificuldade em lidar com a distância física e social desse
passado que seria dirimida ao transformá-lo em rupturas. Diferentemente de outros estudantes
que podem manter contatos constantes, através da internet, em especial do WhatsApp, com seus
familiares e amigos de seu país de origem, Renato tem esse caminho impossibilitado pela
condição restrita de acesso à internet em Cuba. Assim, a “ruptura” narrada pode ser uma
estratégia subjetiva de lidar com esse distanciamento. Mas, como falamos, estamos no campo
da especulação fundamentada, a qual é aberta a diferentes interpretações.
Até que ponto o contexto cultural, social e econômico, ou seja, seu espaço de
experiências enquanto jovem estudante cubano interfere nessa construção narrativa é algo
aberto a questionamento? Tanto a universidade quanto o caminho entendido como
“questionador” do curso de Economia são narrados em ligação com seu círculo de relações
pessoais. Pensar este contexto de sociabilidades, mas também o contexto cubano é fundamental.
62
Em um país com acesso universal ao ensino universitário, problemáticas diferentes das que
encontramos em outros, por exemplo, no Brasil, podem ser identificadas no processo decisório.
Para compreendermos isso, uma longa citação de sua fala é necessária:
Bom, é assim... Eu acho que para responder isso, ao menos de forma não tão
superficial, eu tenho que falar para você que em meu país a universidade é universal.
Todo mundo pode ir à universidade, de alguma ou outra forma pode. Umas mais
demandadas para ir, outras pouco demandadas, mas todo mundo pode conhecer a
universidade, mas nem todo mundo vai à universidade. E as pessoas de fato, a minha
geração, tem uma espécie de propensão a não ir para a universidade. Não quer ir à
universidade. Porque não quer ir pra universidade? É fácil. Porque quando você se
gradua na universidade, por exemplo, você estuda sociologia, né?
Entrevistador: História
Renato: História. Você estuda história. Se você se graduar no meu país você vai
ganhar aproximadamente 30 dólares, ao mês.
Entrevistador: Quanto?
Renato: Uns 30 dólares ao mês.
Entrevistador: 30?
Renato: 30 dólares. Mas se você não estuda história, se você gosta mais de fazer
refrigerante, e você sabe fazer refrigerante e abre na sua casa abre um posto assim,
você vai ganhar os mesmos 30 dólares, ou mais. Entendeu?
Entrevistador: Uhum.
Renato: Se você é taxista, você provavelmente ganhe os 30 dólares ao dia, entendeu?
Então, os nossos jovens, os meus companheiros, não tem interesse de ir à
universidade. Ao menos boa parte deles. E eu escolhi a universidade, primeiramente,
pelas pessoas que eu tinha perto de mim. Que eu tive a sorte de conhecer gente muito
boa e gente que me fez ser quem eu sou. Mas acho que porque eu percebi que a
universidade era a única forma de adiantar, de subir um passo a mais na escada da
ascensão social no aspecto da, a gente poderia da máxima representação do ser. Acho
que isso só é acessivelmente a liberdade do pensamento e eu associo sempre com o
que a gente chama de cultura. Tem uma frase de um escritor cubano que é muito
conhecido na Unila que é o José Martí - você é historiador, deve conhecer muito bem
– é: “Ser culto é o único modo de ser livre”. Então a liberdade é uma coisa que eu
sempre procurei entender, e a cultura acho que é um pouco mais fácil de entender, né.
Então se esse escritor que eu gosto tanto que é o José Martin falava isso, então eu falei
nossa! Então a cultura de uma forma ou de outra irá me ajudar a perceber o que é
liberdade. Todo mundo fala de liberdade, todos os turistas que vão a Cuba falam de
liberdade: “Cuba é bom porque tem muita coisa, tem saúde gratuita, tem universidade
gratuita, o problema é ter liberdade. O problema é ter liberdade”. Eu sempre falei isso
para mim: “O problema é de liberdade. A gente não tem liberdade”. Eu não sabia, eu
não sentia o que era isso de liberdade. Por que? Eu não me sinto uma pessoa presa a
nada, mas o problema é de liberdade. Todo mundo falava isso, era um consenso entre
grandes partes dos turistas. Então, essa pergunta acho que poderia ser respondida com
alto nível de cultura. Com maior conteúdo nas formas de representação das relações
sociais. E eu busquei para isso, procurei isso, na universidade, nas pessoas, na rua,
isso que me fez chegar até aqui, em partes (RENATO, 2017).
De início, é preciso apontar que se o acesso à universidade é potencialmente universal,
algo que ocorre em outros países latino-americanos, como Uruguai, Argentina, etc, o interesse
em ingressar em qualquer um desses espaços é histórico. É construído numa rede de interesses
pessoais e sociais constituídos e ressignificados em diferentes momentos. Os motivos que
levam jovens a ingressar nessas instituições não são estáticos no tempo, a educação universitária
63
não é um valor atemporal e está calcada nas possibilidades e desafios da experiência de cada
geração e, dentro delas, de cada grupo social que encara essa opção.
Em busca de explicar sua opção pessoal – sem deixar de ambicionar uma
problematização geracional desta – pelo ensino universitário, Renato une duas dimensões: sua
percepção sobre o país e sua percepção a respeito das representações que os turistas, com quem
convive devido ao seu trabalho noturno, constroem a respeito de sua sociedade. Assim,
identifica, primeiramente, uma propensão de sua geração de não ir para a universidade. Para
tanto, dialoga com a formação e o horizonte de expectativas que presume ser adotado pelo
entrevistador. Ao narrar o que seriam salários “baixos”, de apenas 30 dólares, para profissionais
com alto grau de especialização, busca contrastar com o que seriam “altos salários” recebidos
por seus pares, no Brasil. Ao usar as respostas e a reação do entrevistador, consegue dar o
sentido desejado para sua narrativa: os baixos salários em Cuba fariam com que “poucos”15
jovens busquem a universidade. Mesmo tendo uma taxa de estudantes proporcionalmente maior
do que a brasileira, Renato identifica em fatores sociais um motivo de desinteresse pela
universidade.
É na tentativa de explicar como sua trajetória “destoaria” das pretensões de sua geração
que insere a outra dimensão de seu discurso: a forma como os turistas representariam as
condições sociais e políticas em seu país. Para além da possibilidade econômica que o trabalho
no turismo lhe permitiria, o desafio de encontrar constantemente uma contestação à organização
social cubana o faz refletir e se posicionar em relação aquele que seria o maior limite desse
sistema: a ausência de liberdade. Enquanto narra que turistas elogiariam a educação e a saúde
pública cubana, o contraponto sempre percebido é a suposta falta de liberdade. Falta esta que o
mesmo não consegue perceber, por não se ver limitado em suas possibilidades de pensamento
e de sociabilidades. Mas tendo lidado constantemente com essa afirmativa, passou a pensar na
possibilidade de não ter as ferramentas intelectuais necessárias para uma significação mais
complexa do que seria “liberdade”. É na busca por essas ferramentas que o ingresso na
universidade se torna atraente, pois: “Então a cultura de uma forma ou de outra irá me ajudar a
perceber o que é liberdade” (RENATO, 2017). A identificação do caminho universitário com
15
Dados apontam que, em 2006, cerca de 500 mil estudantes estavam matriculados nas universidades cubanas.
Tendo uma população por volta de 11 milhões de habitantes significa que 4,54% da população está matriculada
em alguma forma de educação universitária. No Brasil, segundo o Censo da Educação Superior de 2015, mesmo
com a existência de vestibulares, a população universitária era de cerca de 8 milhões de estudantes ou 3,85% da
população
total.
Sobre
o
Censo,
ver
<http://portal.inep.gov.br/artigo//asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/mec-e-inep-divulgam-dados-do-censo-da-educacao-superior2016/21206> Acesso em: 27 ago. 2018.
64
uma forma mais rica de “cultura” e, portanto, uma maior complexificação na capacidade de
compreender o que seria liberdade formam um caminho para a constituição da historicidade na
qual se movimenta em direção à universidade.
Esta perspectiva não estará isolada em sua fala. As condições sociais nas quais vive
incentivam essas possibilidades de apoio em relações sociais:
Trabalhava todas as noites tocando violão, fazia teatro às vezes também. Não cheguei
a ficar muito tempo na universidade porque eu havia saído fazia pouco tempo do
exército. E também acho que estava começando o segundo semestre de engenharia.
Gostava muito, realmente. Era difícil estudar, ocupa muito a mente... A educação em
Cuba é um pouco clichê entre os nossos companheiros aqui da Unila. Mas não é tão
fácil assim, obviamente é universal, a acessibilidade é fácil, mas é difícil se manter,
muito difícil. Você tem que se dedicar o tempo todo a isso, obviamente, com esforço
todo mundo pode. Eu tinha conseguido perfeitamente me estabelecer algum tempo lá
e tinha planejado terminar o curso sem nenhum problema, mas apareceu a Unila com
muitas propostas interessantes (RENATO, 2017).
A questão inicial a ser percebida aqui, antes de adentrarmos na problemática que
estamos a desenvolver, é o lugar social de onde se constitui a memória e parte a narrativa. Sua
experiência é narrada a partir das percepções sentidas no Brasil. Dialoga com a forma como as
pessoas na Unila representariam a sua trajetória, ao desconstruir e, em alguns aspectos,
concordar com essas representações. Assim, é a visão que percebe em suas vivências na
universidade e na cidade que demarcará a necessidade de explicar que, apesar das aparências,
a educação universitária em Cuba impõe dificuldades aos estudantes. A passagem pelo exército
atrasa seu ingresso em Engenharia. Isso, somado ao fato de sua vinda para a Unila, faz com que
sua passagem por esse curso e, portanto, pelas universidades cubanas, dure apenas 2 semestres.
Mesmo breves, essas vivências serão importantes, tanto que, como vimos, foram colocadas
como inauguradoras de sua “vida atual”. O ingresso na universidade cubana e não na Unila é
que inaugurou esse momento mais imediato de sua vida. É a partir dali que relações de antes e
depois são estabelecidas.
Também é a partir desse momento, dessas vivências, que ele dialogou com a forma
como seus colegas em Foz do Iguaçu compreendem a experiência cubana. Se eles construiriam
uma percepção “clichê” sobre a educação em Cuba, ele relata elementos que diferenciariam sua
experiência pessoal, bem como sua percepção sobre o que seria a “realidade” desse sistema
educacional daquela elaborada de forma clichê, no Brasil. Assim, narra, nesse momento, sua
dupla jornada de trabalho: estudante de Engenharia em tempo integral e apresentações musicais
de violão à noite para turistas para conseguir dinheiro. É da junção das três partes de sua
65
narrativa, quais sejam, as relações sociais, a faculdade de Engenharia e o contato com turistas,
que ele justificará sua opção pela Unila e pela vinda ao Brasil:
E neste momento em que a Unila apareceu. Eu tinha uma reflexão existencial muito
grande, acho que o meu país estava ficando muito pequeno para o que eu estava
pensando, nesses momentos, ficando um pouco atravancado, as pessoas assim pela
forma de pensar. E também trabalhava no turismo. Todos os dias depois da aula eu
saia e ia para um lugar que se chama Malecón em Havana, então eu conhecia muitos
turistas lá e pessoas muito interessantes, alguns muito críticos, alguns muito
favoráveis ao nosso sistema político. Então, acho que isso foi muito favorável para
mim. E a carência deste tipo de pessoas entre os meus companheiros cubanos, no meu
ambiente, no espaço onde eu me envolvia, na engenharia, acho que foi uma das causas
pelas quais eu levei muito a sério esta proposta da Unila. Sinceramente pela razão de
nossa, a enorme gama de estudantes de todos os lados então isso foi realmente, acho
que uma coisa um pouco inimaginada. Então eu recebi com muita vontade de vir pra
cá na Unila (RENATO, 2017).
As redes de sociabilidades estabelecidas em Cuba, seja através da família, da
universidade e do próprio turismo proporcionaram, como Renato já havia afirmado, uma
formação crítica. Essas mesmas redes acabaram por se tornar limitadoras para o próprio
desenvolvimento dessa curiosidade que a criticidade causou. O contato relativamente limitado
pelas condições políticas, sociais e econômicas cubanas, como, por exemplo, a dificuldade no
acesso à internet, transformou o espaço de desenvolvimento de questionamento social na
dinâmica da relação com turistas que conheceu a partir de seu trabalho. A possibilidade de
contato com pessoas em diferentes posições a respeito do regime político e das consequentes
relações sociais que se estabelecem na sociedade, bem como com as representações sobre Cuba
que existem em outros países, foi lida de forma positivada pelo estudante. Elas permitiriam
aprofundar sua capacidade crítica a respeito de sua sociedade e de outras questões, em geral.
Ao mesmo tempo “o meu país estava ficando muito pequeno para o que eu estava pensando”
(RENATO, 2017). Importa destacar que essa posição não implica contrariedade explícita ao
regime político, mas uma necessidade sentida de contato com outras possibilidades políticas e
culturais. O mesmo movimento que, em sua narrativa, o transforma em um sujeito crítico, faz
com que ele sinta necessidade de se inserir em outras relações sociais que permitam exercer e
ampliar com maior eficiência essa característica.
Nesse sentido, o deslocamento para a Unila surgiu como possibilidade. O país ficou
pequeno. Contraditoriamente, vai para uma pequena e até então desconhecida, pelo menos para
ele, universidade no interior do Brasil. Aqui o jogo de pequeno/grande se dá pelas
possibilidades de ganhos de conhecimento apresentadas pela Unila. Uma possibilidade que se
constituiu calcada na historicidade de sua experiência individual e intersubjetiva, em diálogo
66
com sua inserção social em um contexto político muito específico da América Latina e que,
como veremos adiante, é bastante significativo para a forma como viveu a cidade e a
universidade.
A historicidade está tanto no ponto de partida da migração, no deslocamento, como no
ponto de chegada. Não foi qualquer universidade escolhida como destino da migração, mas a
Unila. A carência sentida a partir de uma forma específica de inserção na relação
universidade/sociedade que se dava a partir de uma lógica de dupla jornada de trabalho – curso
de Engenharia em tempo integral e trabalho musical com turistas à noite – pode ou não ser
suprida. É o contato posterior com a Unila que faz com que esse problema seja resolvido da
maneira como narrou. Assim, o que temos é uma específica conjunção de elementos históricos
com posições pessoais que provocam o sujeito a seguir determinado caminho.
A historicidade da atuação social dos sujeitos não é nenhuma novidade. Faz-se
interessante evidenciar aquele que tem sido um dos argumentos centrais desta tese e, em
especial, deste momento. As vivências dos sujeitos no presente são construídas através da
ativação de elementos de seu espaço de experiência e de seus horizontes de expectativas, o que
gera, dessa forma, uma densidade temporal que possibilita ao historiador do tempo presente sua
problematização. Essa teorização das possibilidades narrativas do estudante é possibilitada
pelos argumentos que temos trazido. A articulação passado/presente – mesmo que o estudante
a tente narrar a partir de ruptura – é o contexto no qual se exprime e são significadas as vivências
intersubjetivas na entrevista.
Uma das questões importantes a ser pensada, à luz dessa perspectiva, é como a Unila
passa a fazer parte do horizonte de expectativas constituído a partir desse específico espaço de
experiências. A grande dificuldade para possíveis estudantes cubanos está na limitação do
acesso à internet e outros meios de comunicação que poderiam possibilitar o alcance a
informações sobre a universidade. No caso de Renato, o conhecimento acerca da Unila partiu
de suas redes de sociabilidades, através de amigos e parentes de amigos. Fica, portanto,
indefinido de onde provém a informação original. Vejamos:
Ah, eu conheci a Unila. O que aconteceu é que um amigo do Álvarez falou para ele e
depois o tio dele falou, sobre a Unila, comentaram e tal. E o Álvarez comentou comigo
assim, “-Ah cara, falaram sobre uma universidade assim e tal, que tem essas
características...” e eu falei, “Nossa cara. Mas isso é estranho, né...” [risos] “Isso não
é uma coisa normal, né... Assim, no Brasil... Vamos investigar, vamos fazer uma
pesquisa sobre isso”. E então começamos a investigar, fazer pesquisas, procurar
informação assim e ficamos emocionados com isso. “Não, uma universidade com
essas características parece perfeita para nós”. [risos] É o que a gente está procurando
faz anos, mas... ta aí, né (RENATO, 2017).
67
Uma rede de sociabilidade foi ativada enquanto cadeia de informações. É o tio de seu
amigo que repassou a informação sobre a universidade e, desse modo, chegou ao seu
conhecimento. O estranhamento causado pelas características específicas da Unila os motivou
a levantar informações sobre a mesma. Nesse sentido, é importante destacar que a instituição
ainda não possuía atuação em Cuba quando da seleção que os mesmos realizam. É apenas em
2016, justamente com Renato e seus companheiros, que estudantes cubanos passaram a integrar
o corpo discente da instituição. Assim, informações sobre a mesma foram conseguidas através
de canais não formais e de forma difícil de detectar e mapear, não sendo de conhecimento do
próprio Renato a forma como o tio de seu colega conseguiu essa informação.
A busca por maior conhecimento sobre a instituição teria sido motivada pelo
estranhamento em relação a sua organização. Foram essas características diferenciadoras que
os trouxeram para a Unila, afinal “uma universidade com essas características, parece perfeita
para nós” (RENATO, 2017). Assim, conjugaram-se, nesse momento de decisão, uma gama de
fatores que a provocaram. Não foi uma escolha deslocada da experiência histórica do sujeito,
mas calcada nessa historicidade e nela suas possibilidades movedoras. Também não foi um
espaço “aleatório” o de destino. Há dezenas de universidades no Brasil, inúmeras mais
consolidadas, famosas e reconhecidas academicamente. Entretanto, a escolha se deu pela Unila
e não apenas por “qualquer” universidade. Foi o projeto de integração latino-americano a partir
da convivência de estudantes de diversos países que atraiu os jovens.
Além da escolha pela instituição foi preciso constituir uma opção por um curso. Renato
estudava Engenharia Elétrica em Cuba. A Unila não possui esse curso, mas conta com a oferta
de outras graduações em áreas próximas. Já em 2010, no segundo semestre, iniciou a oferta de
Engenharia Civil de Infraestrutura e Engenharia de Energias Renováveis. No primeiro semestre
de 2015, foram ofertados três novos cursos nas áreas de engenharia: Engenharia de Materiais,
Engenharia Física e Engenharia Química. Todos eles são oferecidos em período integral.
Mesmo tendo essas opções de continuar em áreas mais ou menos próximas dentro das
engenharias, a opção feita por ele é por uma mudança de área e o ingresso no curso de Ciências
Econômicas. Ao ser questionado a respeito do curso que escolheu, para vir para a Unila,
responde:
Já vim para fazer ciências econômicas. Eu adoro matemática, adoro matemática e
adoro engenharia, mas... Nossa, faltava... Eu tinha uma carência de perguntas
filosóficas na minha vida, de um pouco mais de reflexão, de problematização das
coisas, dos conceitos estabelecidos a priori, acho que isso fazia muita falta na minha
vida. Eu sempre gostei muito de ler literatura, de ler filosofia e, nossa, engenharia
realmente não... É, Engenharia você está todo tempo naquela, né. Então você sai uma
68
pessoa bem preparada – e principalmente no meu país, nós temos uma preparação
muito integral – mas sentia falta de muita coisa e então pensei, Economia! Tem
matemática, você sai um cientista técnico, mas em grande parte você também sai
dentro de toda uma dinâmica de contestação, de luta de perspectivas teóricas e
metodológicas, que eu realmente acho muito interessante e muito importante no
mundo atual. Essa reflexão da ética... E eu sentia muita falta disso e na Unila é todo
tempo isso... [risos] (RENATO, 2017).
A decisão de fazer Ciências Econômicas teria sido tomada já de início. Essa opção não
se deu por um descontentamento a priori com Engenharia Elétrica. É no diálogo entre as
possibilidades dessa graduação, com as perspectivas sociais de debates de ideias almejadas por
Renato, que se construiu essa opção. Uma dimensão interessante dessa problemática é que a
decisão pela vinda a Unila precedeu o curso escolhido. É só após narrar o caminho que o traz
até Foz do Iguaçu que ele passa a falar sobre o processo de escolha pelo curso. E, nesta vinda,
a percepção de carência de dimensões filosóficas e de humanidades em seu curso, em Cuba, fez
com que se deparasse com o leque de possibilidades oferecidos pela Unila. Mesmo ao destacar
as possibilidades formativas que se dariam de maneira “muito integral”, ou seja, suas
capacidades técnicas seriam desenvolvidas em conjunto com a preparação para outras
dimensões da experiência social. Foi na ótica da “falta” que significa o que entende por
fragilidades de seu curso.
A construção de Ciências Econômicas como possibilidade alternativa às Engenharias
passou também pela chance de continuar com uma área que atrai seu gosto, a matemática.
Assim, encontra ali aquelas que podem ser consideradas, para ele, as condições de formação
ideal: existência de sua área favorita, a matemática; possibilidade de debates teóricos,
metodológicos e sociais aprofundados e diferentes visões de mundo em diálogo interpretativo.
À exceção do primeiro elemento, que não é possível localizar em sua narrativa o momento de
sua emergência como dimensão importante para sua experiência acadêmica, as demais questões
dialogam com sua experiência social formativa, como tem sido possível perceber também em
outros momentos já trabalhados.
O curso de Ciências Econômicas, quando pensado junto da vinda à Unila, permite ao
estudante articular a problematização de questões que traz consigo a partir de sua experiência
histórica: “Mas eu realmente tinha muita vontade de conhecer os males do capitalismo que no
meu país estão ensinando para nós. (...) Os males e os bens também, né...” (RENATO, 2017).
Assim, através da Unila, poderia perceber “os males do capitalismo” no campo das vivências
sociais e acadêmicas, afinal está em um país capitalista. Quanto no âmbito teórico, através do
curso e dos debates sobre o modelo capitalista de produção em seu curso de graduação.
69
A narrativa sobre o processo de escolha de universidade e de curso se constitui a partir
da memória. Portanto, precisamos compreender como esse processo é significado mas, também,
como é construído através da memória. Assim, torna-se interessante pensar como as
experiências posteriores aos momentos de escolha constituem elementos de determinações para
a narrativa desses eventos. Nesse sentido, vejamos:
Na economia é interessante porque tem uma coisa que chama-se troca. É uma coisa
que todo mundo conhece, mas que não conhece tanto assim. E, na troca você tem que
perder alguma coisa. Se você vai trocar uma mercadoria por outra, você,
definitivamente, tem que perder uma, a que você tem para conseguir a outra. Assim
seria a mercadoria de nível. Por outra mercadoria. Mas quando é com ideias, ninguém
perde nada. Todo mundo ganha. Você não tem que renunciar a sua ideia, você só
aumenta. Então o que melhor podemos comercializar são ideias, né. Então, acho que
faltam estes espaços, na Unila falta muito, também. Porque, a gente normalmente tem
uma perspectiva crítica, mas eu acho que o debate com outros olhares, com outras
teorias, acho que é carente. E faz muita falta, realmente, às vezes (RENATO, 2017).
Aqui vemos um processo de significação do passado a partir de experiências posteriores.
Essa possibilidade não é nova. Em especial, os trabalhos de Portelli (1996), mas também os de
Pollack (1989;1992) e Paul Ricoeur (2018), entre outros, tem evidenciado seu contínuo
processo de reconstrução. Não apenas significados, mas mesmo eventos e sequências de
acontecimentos são reorganizados na memória e também no momento da sua emissão, ou seja,
na narrativa.
Esse fenômeno acontece também entre estudantes, mesmo quando a memória está a se
formar simultaneamente à experiência que a constitui. Assim, ao narrarem a universidade, ainda
dentro desse universo, os significados se movem, tanto em relação ao presente quanto em
relação ao passado. No caso em questão, isso se torna bastante evidente. Categorias que, se não
são exclusivas a um curso de Ciências Econômicas, não são costumeiramente articuladas de tal
forma, emergem como a maneira de significar um processo. Valor, troca, mercadoria se
entrecruzam em seu discurso como forma de proporcionar ao ouvinte, ou leitor, uma melhor
compreensão da importância subjetiva que o debate e o embate de ideias possuem para ele.
Como temos afirmado, essa não é uma perspectiva descolada, mas calcada profundamente na
especificidade da experiência histórica de Renato que temos tentado apresentar.
O objetivo de compreender melhor a ideia de liberdade, tão propalada a ele por turistas,
teria levado Renato à universidade, em Cuba. A possibilidade de troca de ideias, algo sem
perdas para os lados em negociação, apenas ganhos, mobilizou a ressignificação da memória a
respeito do processo de vinda para a Unila. Há ainda uma dimensão que aparece apenas em sua
narrativa. Sendo o único de nossos entrevistados originário de um país socialista, a relação
70
socialismo/capitalismo emergiu em alguns momentos como significante de suas escolhas,
posições e vivências. No processo de decisão para vir para a Unila e, consequentemente, para
o Brasil, essa dimensão se faz significativa:
Entrevistador: Que tipo de imagem você fazia do Brasil em Cuba, antes de chegar pra
cá, né. Que tipo de imagem você fazia do exterior e tal...?
Renato: Realmente eu estava muito animado com essa ideia né, para mim era um
pouco difícil ter preconceito pelo mesmo motivo de que eu conhecia muitas pessoas
de outros países, e eu sei, obviamente, preconceito sempre tem né, positivo ou
negativo, mas eu tinha muita vontade de escutar outros pontos de vista.... Obviamente,
eu nunca imaginei bem certinho o que eu iria encontrar aqui. [...] Mas eu realmente
tinha muita vontade de conhecer os males do capitalismo que no meu país estão
ensinando para nós dizermos [risos], que a gente é muito pequeno né... Os males e os
bens também, né... (RENATO, 2017).
A pergunta buscava destacar que tipo de imagem prévia ele possuía a respeito do Brasil.
O destaque de sua resposta esteve na perspectiva de ausência de preconceitos. Esse fenômeno
se daria, segundo ele, pois “conhecia muitas pessoas de outros países” (RENATO, 2017). Teria
sido na convivência intercultural que desconstruiu imagens preconceituosas ou mesmo préconceitos a respeito de povos e culturas.
É importante lembrar que essa convivência com pessoas provenientes de outros países
e culturas não é passiva, mas constantemente ativada através da produção de diálogos
constituídos a partir de sua específica posição na sociedade cubana: estudante durante o dia,
trabalhador do turismo à noite. É desse lugar social, ao mesmo tempo observado e observador,
que ele constituiu relações de trocas que permitiram a desconstrução de preconceitos. Esse é
um dos elementos que poderemos utilizar para pensar uma das argumentações nos próximos
momentos: a convivência de diferentes grupos sociais em um mesmo espaço, quando
estimulados ou passíveis de desenvolver relações interculturais, permite constituir
ressignificações identitárias que, entre outras possibilidades, desconstroem preconceitos.
Outro elemento de sua resposta apresenta novamente a curiosidade como expectativa
para a imigração. Novamente ela está calcada em sua experiência social, ainda enquanto
sociedade socialista. A possibilidade de conhecer um país capitalista ingressou no rol de
expectativas articuladas por Renato ao construir sua narrativa sobre o processo de vinda para a
Unila. Poder estabelecer uma leitura dessa sociedade que se organizou de maneira distinta, a
partir de padrões econômicos capitalistas, e pensá-la a partir das suas possibilidades e limites,
apareceu como elemento estimulador.
Para finalizar esta questão, antes de adentrarmos, mais especificamente, no movimento
de vinda para a Unila, cabe uma última passagem de sua fala que nos permite perceber como
71
essa possibilidade estava articulada com um elemento que apresentamos já no início. Renato,
ao ser incentivado a falar sobre sua vida, a organizou a partir da perspectiva de que cada sujeito
possui muitas vidas. O ingresso na universidade cubana é narrado como o iniciar de sua última
vida. Em outro momento de sua fala, ainda sobre as expectativas que ele e seus colegas tinham
ao vir para a Unila, ele coloca:
Expectativa... é, a gente, o pessoal cubano vinha a dar tudo por aqui. A gente não sabia
exatamente o que encontraríamos aqui, tínhamos muitas ideias, muitas hipóteses, né.
Mas independentemente do que fosse, nós tínhamos vontade de dar tudo de nós. E de
fato, não tínhamos muita opção. É como que esta frase de “Queimar as naves”, não
sei se você já escutou... me compreende... Quando você desembarca, se você não quer
ficar olhando para trás todo o tempo, tem que queimar as naves? Então, a gente não
fez por vontade própria, porque definitivamente a gente não podia voltar, a passagem
é muito cara para nós [risos] e o salário é muito baixo. Então nós tínhamos que
caminhar para frente, definitivamente, em todo tempo aí (RENATO, 2017).
Mesmo não sendo uma ruptura com um universo de significações constituído a partir
da ideia de curiosidade, há uma necessidade de afastamento, uma necessidade de “queimar as
naves”. Os baixos salários impedem que seja possível viagens constantes de visita à Cuba. Os
auxílios fornecidos pela universidade – 300 reais para alimentação, 300 reais para moradia e 2
vales transporte por dia letivo – devem ser utilizados para a sobrevivência diária. Assim, as
possibilidades de sobrevivência econômica constituídas na universidade não desconstroem essa
necessidade de afastamento e ruptura. As condições econômicas de baixo acesso à remuneração
financeira existentes em Cuba dificultam as chances de visitas que precisam ser elaboradas a
partir das realidades de uma sociedade capitalista – brasileira - de consumo. A experiência
socialista cubana é novamente colocada como um elemento importante nas determinações de
limites e possibilidades para suas vivências e expectativas como estudante.
A organização política do país, seu relativo isolamento imposto pelos diferentes
embargos colocados, em especial por força de pressões estadunidenses no contexto da Guerra
Fria, mas também a estrutura burocrático-repressiva do estado cubano, são condicionantes da
relação desses estudantes com a universidade. Isso aparece não apenas na expectativa, mas
também na materialidade de necessidades burocráticas para o ingresso na Unila:
O processo de vir eu acho que foi o mais complexo de tudo. Foi muito difícil. Bom,
primeiramente temos de encarar o processo burocrático para sair de Cuba que é muito,
muito lento e bastante complexo. Então, a gente quase que não vem, por todas as
problemáticas. Tivemos de falar com muita gente, brigar com muita gente, tivemos
de ir a muitos e muitos lugares, porque lá não é on line, não da para fazer as coisas on
line, é tudo ir lá, ir lá e ir lá.... e foi uma loucura isso. Tivemos que, por sorte a
embaixada e o departamento de cultura da embaixada, nos ajudaram muito, fizeram
cartas de recomendação, as instituições cubanas aceleraram o processo e foi assim que
72
a gente conseguiu. Mas, eu me lembro que conseguimos o último papel que
precisávamos, um dia antes de pegar o voo, o voo para cá (RENATO, 2017).
A estruturação burocrática cubana dificultou o processo de vinda para a Unila. Mesmo
com a vaga, foi necessário um périplo por instituições para autorizações de saída do país. Ao
narrar esse processo, ele ressignificou na comparação com a estrutura burocrática brasileira e,
possivelmente, da Unila. As possibilidades de informatização da estrutura estatal têm se
aprofundado conjuntamente com avanços na tecnologia. Assim, universidades como a Unila,
possuem sistemas informatizados que, em parte, dispensam a necessidade de ida a
departamentos e “repartições” para a organização de questões básicas. Nesse sentido, notas e
faltas em sala de aula podem e são disponibilizadas online, situação presente em muitas
universidades do país. Mesmo documentações institucionais como certificados de participação
em eventos e afins tem migrado para a disponibilização online.
Textos, artigos e livros são pirateados e compartilhados em mídias digitais, o que torna
a experiência universitária cada vez mais integrada com a internet. Isso sem levar em conta as
cada vez mais onipresentes modalidades de Ensino a Distância (EAD).. Essas possibilidades se
chocam com as “limitações” relativas vivenciadas pela estruturação cubana. A limitação do
acesso às tecnologias digitais, fruto do embargo econômico e tecnológico promovido contra a
ilha, mas também da forma centralizadora de administração e estruturação do sistema político
cubano, são avaliadas e ressignificadas à luz da experiência digital vivenciada no Brasil e na
Unila.
A própria forma de articulação para a agilização do processo de vinda para a Unila
implicou lidar com relações pessoais, ou pessoalizadas, de poder. Foram as cartas de
recomendação de burocratas da embaixada brasileira que permitiram acelerar o processo que,
mesmo assim, só foi concluído um dia antes da viagem. Note-se que essa não é uma
especificidade da experiência de estudantes cubanos. Vários outros universitários narraram
dificuldades na organização burocrática de sua vinda para a Unila. No caso de Tuane, ela deixa
o emprego a partir do momento da notícia e passa a providenciar sua documentação. A
inexperiência em viagens internacionais gera inúmeras dessas dificuldades. Ilustrativo, nesse
sentido, são as inúmeras postagens todo começo de ano letivo no grupo de Facebook Unila,
com solicitação de informações sobre a universidade e sua burocracia, mas também sobre a
alfandega brasileira, documentação e vistos. Esse conjunto de necessidades de informação é
aprofundado no caso cubano pela desconexão entre o governo do país e da Unila:
73
Não, não. De fato, o nosso país não tem nenhum tipo de segmento ou de relação com
este processo de seleção da Unila. Eles não fazem nada. De fato, nós fomos os
primeiros a vir para cá, então a gente foi até o Ministério de Educação, a gente foi a
muitos lugares, mas ninguém sabia de nada, tudo foi por nossa conta. Eu conversei,
inclusive, com o decano da minha faculdade, conversei com muita gente lá. Mas
ninguém sabia de nada, ninguém sabia como era isso, de fato, isso era uma coisa muito
nova. Porque antes isso não acontecia em Cuba. Aliás acontecia, mas só guiado pelo
governo (RENATO, 2017).
Se, em especial ao longo do período da Guerra Fria, Cuba enviava estudantes para as
universidades soviéticas, principalmente para a Patrice Lumumba,16 citada anteriormente, o
relativo isolamento político do país fragiliza esses laços e dificulta os processos de saída. Assim,
mesmo com a Unila tendo por objetivo atrair estudantes de toda a América Latina e Caribe, os
cubanos possuem pouca ou nenhuma informação a esse respeito. Por fim, as diferentes
dificuldades burocráticas se somam às dificuldades financeiras de deslocamento. Como já
abordamos, a especificidade cubana, enquanto sociedade socialista, coloca limitações
financeiras para esses jovens, seja no campo das expectativas – como quando abordamos o
processo de decisão pela universidade – seja na prática, por exemplo, na compra de passagens
internacionais:
E outro problema também foi o dinheiro, porque a passagem é realmente cara, de
Cuba. Então a gente gastou entre todas as coisas, mais de 1.000 dólares, facilmente.
Mil e tantos dólares, 1.300, 1.400.... Não sei, sei lá. E como você deve saber e todo
mundo sabe o salário mínimo em Cuba é muito baixo, deve estar entre mais ou menos
uns 48 dólares. E isso foi realmente muito difícil, minha família inteira teve que se
reunir, todo mundo ajudou com um pouco, quem tinha porcos vendeu os porcos, quem
tinha... vendeu, então foi uma loucura. [risos] Então toda minha família, todo mundo,
inclusive as pessoas que não eram muito cercadas a mim, que não tinham uma relação,
digamos, ótima comigo, todo mundo deu alguma coisa, e meus amigos... E foi difícil,
receber tudo isso, eu fiquei com uma responsabilidade inexplicável, que seria
impossível explicar, né. E acho que isso é parte da razão das minhas notas, eu não
consigo ter uma nota abaixo de 9.0 sem ficar chateado, eu fico muito mal. [risos]
porque eu estou respondendo todos os dias a essa galera que está/ficou lá e eles não
fazem nenhum tipo de reclamação para mim, mas é como se fizessem, eu tenho que
ter isso bem claro aqui em minha cabeça. De todo o sacrifício que fizeram para que
eu conseguisse vir para a Unila (RENATO, 2017).
A desconexão de suas várias vidas se dissolve sob o peso subjetivo da responsabilidade
que atribui a si pela ajuda para conseguir vir ao Brasil. Um conjunto histórico de dificuldades
se colocam como entraves de sua imigração para a realização do curso universitário na Unila.
A superação desse conjunto de dificuldades se deu a partir de relações de solidariedade
16
A Universidade Russa da Amizade dos Povos foi fundada em 1960 e, em 1961, após o assassinato do exguerrilheiro e Primeiro Ministro do Congo Patrice Lumumba foi renomeada em sua homenagem. Tinha por
objetivo a atração de estudantes de países alinhados com o sistema socialista soviético. Ela será retomada no
capítulo 3 ao discutirmos instituições com propostas de atração de estudantes estrangeiros.
74
estabelecidas em seu círculo de sociabilidades. O “passado”, aquele significado através de
ruptura, emerge colocando ao “presente” obrigações de desempenho como resposta à
solidariedade que permitiu sua vinda. Entretanto, como já argumentávamos no início da análise
de sua trajetória, e os elementos trazidos por esse último excerto de sua narrativa evidenciam,
a construção de um significado de ruptura está calcada muito mais numa necessidade
psicológica que numa forma de constituição histórica desse sujeito.
A fala de Renato nos coloca duas questões de fundo importantes. No plano
metodológico evidencia a importância de uma análise que aborde as dimensões da entrevista
de maneira relacional. Da busca por estabelecer uma relação de igualdade com o entrevistador,
como no momento em que utiliza a formação deste para constituir sua argumentação, ao olhar
atento para contradições que emergem nas falas. Muito distante da ideia de mentira, inverdades
ou invenções do narrador,17 as contradições que surgem a partir da análise da fala de Renato
expressam formas subjetivas de se colocar em relação a sua historicidade. Assim, a elaboração
de uma interpretação calcada em rupturas cumpre funções subjetivas na narrativa da memória.
Ao invés de “silenciar” ou “turvar” os significados, essa “contradição”, com as continuidades
que são narradas em seguida, deve servir para aprofundar a interpretação de sua historicidade.
No plano teórico, vemos reforçada a hipótese que temos abordado de uma densidade
temporal da experiência. O presente de Renato é constituído numa intrincada relação entre suas
redes de sociabilidades – familiares e amigos -, a especificidade política, econômica e social
cubana e sua própria constituição subjetiva nessas relações. Assim, entender as vivências,
significações e relações sociais na Unila e em Foz do Iguaçu só é possível a partir do
alargamento de uma dimensão sincrônica de presente, ao incorporar sua trajetória na diacronia
da densidade temporal de sua historicidade. Todo esse processo, como já vimos com Tuane e
continuaremos a perceber com Marcos, é calcado no tensionamento já teorizado por Koselleck
entre o espaço de experiências e o horizonte de expectativas dos sujeitos.
Tuane e Renato estão localizados dentro de um grupo de estudantes que constituem
aquela que é, talvez, a grande especificidade da instituição: universitários estrangeiros
provenientes de toda a América Latina. Como já apontado em momentos anteriores do texto,
esta especificidade constitui elemento significativo, tanto na problematização da instituição
quanto, como ainda veremos de maneira mais aprofundada, nas possibilidades interculturais
estabelecidas na universidade e na cidade. Longe de serem representativos, ou de os pensarmos
dessa forma, suas trajetórias dialogam com nosso intuito de apontar a diversidade de trajetórias
Uma discussão interessante a esse respeito é feita no já clássico texto de Janaina Amado “O grande mentiroso”
(1995).
17
75
e experiências que, por diferentes caminhos e descaminhos, fazem com que esses jovens tenham
chegado até a Unila e se tornado parte dessa instituição.
1.3 DE FOZ DO IGUAÇU PARA A UNILA
O caso que analisaremos a seguir, a trajetória de Marcos, parte de um lugar social
diferente. Enquanto a universidade se constituiu com fins de inserção na América Latina e
utilizou a cidade de Foz do Iguaçu como justificativa para elaborar discursos de legitimidade,
a presença da mesma nessa localidade pode servir e, como veremos, serviu para criar novas
possibilidades no horizonte de expectativas. Afinal, até 2010, a única universidade pública
presencial, nessa cidade, era a Unioeste – a Universidade Aberta do Brasil (UAB) passa a ofertar
cursos de graduação e pós-graduação a distância, em 2007.18 A presença da Unila permite uma
nova possibilidade para esses jovens. O caso de Marcos será bastante elucidativo, tanto da
historicidade dessa presença e da forma como a instituição era percebida pelos citadinos, quanto
por diferentes caminhos que levam esses jovens a se tornarem estudantes da mesma.19 Marcos
é um dos estudantes da Unila provenientes da própria cidade de Foz do Iguaçu. Assim, sua
trajetória não se estrutura a partir de processos migratórios, mas através de caminhos a partir de
sua específica apropriação de um pertencimento a essa cidade. Desta forma, outras serão as
problemáticas com as quais esse jovem terá de lidar ao optar pela realização de um curso
universitário na Unila.
Assim como os demais estudantes, Marcos foi, logo de início, provocado a falar sobre
sua vida: “Eu curso Geografia Bacharelado na Unila. Sou daqui da cidade mesmo, de Foz do
Iguaçu, tanto que eu sou... Eu tô... Pessoas aqui de Foz estão em poucos, né, dentro da Unila, a
maioria é galera de São Paulo, de outros lugares” (MARCOS, 2017). A estruturação de sua
narrativa vai ao encontro de diversas outras. Informados previamente sobre o objeto da pesquisa
da qual farão parte, vários estudantes organizam sua fala em direção ao seu pertencimento
universitário. Essa organização evidencia a dinâmica relacional que é parte fundamental na
análise de fontes orais. Uma das dimensões dessas fontes é justamente a estruturação de uma
18
Informação presente no setor de comunicações institucionais da Itaipu Binacional. Disponível em:
<https://www.itaipu.gov.br/sala-de-imprensa/noticia/foz-ganha-cursos-de-graduacao-e-pos-graduacao-da-uab>
Acesso em: 28 ago. 2017.
19
Até o ano de 2010, antes da criação e popularização do SISU, as possibilidades de escolhas para os candidatos
eram limitadas geograficamente ou, no caso da existência de recursos financeiros para viagens e provas em
diferentes instituições, temporalmente – vestibulares podiam coincidir em data. A possibilidade de inscrições
múltiplas realizadas digitalmente flexibiliza as oportunidades de mobilidade. Questões diversas, mas conectadas,
como a possibilidade de migração e sobrevivência em outras cidades continuam a se fazer presentes.
76
narrativa que, aos olhos do entrevistado, atenda a expectativas que ele e o pesquisador possuem
sobre aquele momento. Nem por isso essa forma de organização deixa de possibilitar a
percepção de elementos de pertencimento importantes. Estruturações de pertencimento e
narrativas identitárias públicas não emergem apenas na relação com a situação construída na
entrevista. Afinal, a escolha em dialogar com o pesquisador, dessa forma específica, pode nos
falar das subjetividades que esse entrevistado articula.
Ao iniciar, Marcos constituiu dois lugares de pertencimento: a cidade e a universidade.
De maneira interessante, que pode ser pensada a partir do que falamos sobre o conjunto de
expectativas para uma entrevista, a universidade é colocada primeiro em sua narrativa, mesmo
que o pertencimento à cidade – onde nasceu – seja temporalmente anterior. Essa estruturação
também pode ser vista como evidência de que o sentimento de identificação com a universidade
se sobrepõe ao de pertencimento à cidade. Outro elemento importante em sua fala é a
localização da origem dos colegas universitários. Os mesmos são percebidos como migrantes,
sendo apenas “poucos” aqueles de Foz do Iguaçu. Assim, viriam de São Paulo e “outros
lugares”. Dessa forma, seu processo de construção de um lugar social de pertencimento de onde
parte sua fala se deu justamente na intersecção entre uma cidade e uma universidade formada,
majoritariamente, por estudantes migrantes. Outras dimensões de sua localização temporal da
experiência aparecerão apenas a partir de um segundo momento:
Vou falar então um pouco de como eu cheguei na Universidade. Eu me formei no
Ensino Médio, em 2009, desde. Só que eu só fui voltar a ter contato com os estudos
em 2013, que foi quando eu descobri o cursinho, porque a Unila ela tem né, o cursinho
pré-vestibular. Eu descobri esse cursinho e antes disso eu trabalhava, me dedicava à
música. Aí eu fiz esse cursinho da Unila em 2013 e foi então que eu descobri que eu
queria cursar, na verdade, cinema. Só que daí eu não consegui entrar em cinema e eu
fiz o cursinho novamente em 2014. E aí eu acabei chegando no curso de Geografia
né, na Unila. Porque na verdade minha intenção era mudar, né, eu queria entrar por
qualquer outro curso e depois fazer a reopção para mudar pra cinema. Só que eu fiquei
um semestre no curso de geografia e me apaixonei assim, gostei... (MARCOS, 2017).
A universidade surge como significante narrativo e ponto de destino da trajetória. As
vivências anteriores apareceram sob seu signo e reforçam sua localização enquanto espaço de
pertencimento identitário, ao menos no esforço narrativo produzido naquele momento. A
memória de Marcos relê seu passado, tendo como ponto de partida e chegada momentos de
importância para sua trajetória acadêmica: conclusão do ensino médio - cursinho preparatório
Ingressa - opção pelo curso de Cinema - ingresso em Geografia - identificação com o curso.
Cada uma dessas “etapas” – pelo menos é assim que Marcos vê esses eventos – são apenas
momentos de passagem em direção à universidade. Não possuem densidade próprias, mas
77
formam aquela que seria sua experiência social privilegiada narrativamente, a de universitário.
O relativamente longo período entre 2009, momento do fim do ensino médio, e 2015, momento
do ingresso na universidade, surge apenas como um tempo transitório em sua vida de estudante.
A única tentativa de narrar esse período como um tempo relevante em si mesmo foi a breve
referência a seu trabalho como músico – algo que mantém até o momento da entrevista. Apenas
ali, uma dimensão de sua vida fora da “escola” emergiu nesse primeiro momento e, mesmo
assim, condicionada a um “antes”: “antes disso eu trabalhava, me dedicava à música”
(MARCOS, 2017). Os 4 anos entre a escola e o início de seus estudos no cursinho foram
resumidos nesta frase. A omissão desse período permite um reforço na construção de uma
narrativa que remeta seu pertencimento à universidade. É essa experiência que estrutura um
conjunto de significados valorizados em sua memória.
Outros dois elementos de sua fala permitem que avancemos na percepção de como a
subjetividade e as experiências individuais se constituem no diálogo com a sociedade e as
historicidades que a cercam. Essa característica permite a percepção daquilo que temos
construído, a problematização da densidade temporal que forma o tempo presente, deslocandoo da sincronicidade para uma perspectiva relacional com a diacronia. A utilização de
mecanismos da própria universidade para entrar nela, o cursinho pré-vestibular Ingressa20 e a
estratégia – no sentido “certoniano” – para conseguir o curso almejado após o vestibular. Ambas
são possibilidades constituídas a partir de uma historicidade muito específica, elaboradas em
meio a um entrecruzamento entre políticas nacionais de reaproveitamento de vagas em
universidade públicas e leituras locais de políticas nacionais de extensão universitária.
A possibilidade de mudança de curso dentro da instituição foi relatada por outros
estudantes brasileiros. Essa oportunidade tem se popularizado, institucionalmente, a partir da
necessidade de preenchimento de vagas ociosas provocadas pela evasão ou pela insuficiência
de candidatos no vestibular. Assim, se constitui como um mecanismo legal de ocupação de
capacidade ociosa em diferentes cursos universitários. No caso da Unila, existe inclusive
“propaganda” institucional dessas possibilidades.21 Assim, estudantes de universidades
20
O cursinho Ingressa teve suas atividades iniciadas em 2011. É um projeto de extensão onde estudantes de
diferentes cursos da Unila oferecem aulas de preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM, cuja
nota é critério de classificação no Sisu, porta de entrada dos estudantes brasileiros na instituição. Mais informações
disponíveis em: <http://cingressa.blogspot.com.br/> Acesso em: 4 set. 2017.
21
Disponível em: <https://www.unila.edu.br/ingresso-extravestibular> Acesso em: 4 set. 2017.
78
brasileiras e estrangeiras podem optar por formas de mobilidade dentro de suas próprias
universidades – cada uma com regras próprias – e entre instituições.22
No caso de Marcos, uma mudança futura para o curso de Cinema, para o qual não
possuía nota suficiente para o ingresso, surgiu como condição para seu ingresso no curso de
Geografia. Dessa forma, Geografia é constituído como possibilidade transitória em seu projeto
universitário. Destaque-se, novamente, a legalidade dessa possibilidade. O que vemos é uma
utilização política das estruturas de ingresso e mobilidade estudantil. Os sujeitos, vendo-se
limitados no acesso à universidade pela inexistência de qualquer possibilidade de
universalidade de vagas no Brasil, algo que, como já falamos, existe em diferentes países da
América Latina, e confrontado com a barreira da nota de corte 23 no Sisu, utilizam-se de
estratégias como forma de acesso ao curso/universidade desejada.
O que vemos constituído é uma trajetória que percorreu aquilo que temos denominado
de “descaminhos”: um processo cujo horizonte de expectativas do sujeito é reelaborado a partir
do espaço de experiências constituído no caminho que, anteriormente, o levaria em direção a
outro horizonte de expectativas. O caso de Marcos é elucidativo dessa questão teórica. Como
ele não possuía a nota necessária para ingressar em Cinema, organiza uma estratégia de
aproveitamento de uma política da universidade: a troca entre cursos após o vestibular como
possibilidade de alcançar o curso desejado. Entretanto, ao longo do processo, ele se “apaixona”
pelo curso de Geografia e passa a ressignificá-lo de um lugar de passagem para o lugar
constitutivo de seu novo horizonte de expectativas. Isto fica ainda mais claro quando, em um
momento posterior da entrevista, ele afirma “Acho que meu objetivo, a priori, é fazer um
mestrado, fazer um doutorado, e eu quero ser professor pesquisador. Em alguma área dentro do
meu curso” (MARCOS, 2017).
O curso pré-vestibular Ingressa surge, nesse contexto de limite de vagas mesmo que
flexibilizadas pelo Sisu, como forma de capacitação para o vestibular de pessoas com menor
poder aquisitivo e que, portanto, não conseguiriam pagar um “cursinho” particular. Essa
22
Outro de nossos entrevistados, Claudio, migrou de curso de História na UFRN, para o curso de História da Unila.
Sua justificativa foi a atração pelo projeto da instituição que, em sua leitura, seria voltada para a integração latinoamericana e direitos humanos.
23
“Nota de Corte” é a nota mínima necessária para ingressar em um curso. Leva em consideração a nota do último
candidato aprovado para o número de vagas previstas e disponibilizadas em cada modalidade de acesso. Essa nota
é constituída pelo resultado do estudante no ENEM. Em 2016, a nota de corte em ampla concorrência em Cinema
e Audiovisual da Unila foi de 695,36 a de Geografia foi de 618,9. Cinema e Audiovisual foi a 4ª nota de corte mais
alta, perdendo para Medicina, Arquitetura e Urbanismo e Engenharia Química. Disponível em:
<https://www.unila.edu.br/sites/default/files/files/NOTAS%20DE%20CORTE%20%20CHAMADA%20REGULAR%20-%20SISU%202016.pdf> Acesso em: 4 set. 2017. Para efeitos de
comparação, o governo federal exige 450 pontos em uma das áreas do ENEM como forma de concessão de
certificado de conclusão do Ensino Médio.
79
experiência teve forte repercussão na narrativa de Marcos. Tanto pelo seu constante uso desse
momento enquanto transitório para sua chegada à universidade quanto pelo interesse do
entrevistador nessa experiência:
Entrevistador: Como é que você chegou a esse cursinho?
Matheus: Como que eu descobri e tal?
Entrevistador: Como que você descobriu isso, exatamente.
Matheus: Então, aí é por uma questão bem pessoal, digamos assim. Porque, no final
de 2012, eu tava trabalhando numa faculdade, inclusive, uma faculdade que meu pai
dava aula. (...) E em outubro de 2012, eu comecei a namorar uma moça, que ela
estudava em um colégio público aqui na cidade. E o pessoal do cursinho, eles fizeram
essa ação né, de ir nos colégios pra divulgar o cursinho e nisso acabaram indo no
colégio que ela estudava. E como a gente ainda estava se conhecendo, eu já tinha
comentado pra ela basicamente isso que eu falei pra você agora, sobre minha trajetória
assim, que eu fazia muito tempo que eu não estudava e ela me falou do cursinho... Ela
disse: “Oh, o pessoal da UNILA foram lá no colégio e eles falaram do cursinho. Por
que que você não tenta fazer?” Foi assim que eu descobri... Daí teve uma prova, uma
seleção que você tem que fazer e eu passei assim na primeira e comecei. Comecei
acho que foi em março de 2013. E daí eu fiz em 2014 de novo e acho que o resto daí
eu já falei (MARCOS, 2017).
Marcos parte de um lugar distinto dos contextos de Tuane e Renato. As trajetórias deles
foram abordadas como de estudantes de “primeira geração”, ou seja, de estudantes que
ingressam na Unila a partir de relações constituídas independentes da universidade. Ao irem
para Foz do Iguaçu, não possuíam laços de sociabilidade com a universidade ou com a cidade
de destino. Não possuíam redes de sociabilidades constituídas nessa espacialidade. Já Marcos
narrou seu ingresso na Unila como uma possibilidade que foi constituída a partir de um diálogo
com a própria instituição e sua comunidade acadêmica. Foi através do cursinho Ingressa,
realizado pela instituição e ministrado por estudantes dos cursos de graduação da Unila, que ele
construiu essa instituição e a própria ideia de ingresso em uma universidade federal como
horizonte de expectativas. Até então, essa possibilidade não estaria colocada. É através de
informação compartilhada por sua namorada que passou a construir sua estratégia de ingresso
no curso desejado – que depois foi transformada a partir do contato com o curso de Geografia.
Um segundo elemento interessante nessa fala de Marcos é o que ele narra como “uma
questão bem pessoal” (MARCOS, 2017). Em que pese a situação específica dessa relação de
sociabilidade, o que podemos extrair dessa situação, enquanto historiador, é justamente a
formação de uma trama que permite entrever a especificidade da historicidade constituinte de
sua experiência como estudante. À parte sua relação amorosa com a estudante secundarista marcada por historicidades que fogem às possibilidades de análise e ao escopo da nossa
problematização – a situação narrada se constituiu a partir de uma densidade temporal que
80
culminou na informação sobre a Unila que é passada pela sua namorada a ele. Este caminho
está firmemente ancorado na historicidade constituída de maneira dialógica entre a forma de
inserção da universidade na comunidade em que, através de projetos de extensão, aprofunda e
constitui legitimidade para sua presença e nas possibilidades sociais do estudante. Um dos
limitadores de sua trajetória de estudos que o teria feito ficar fora do ensino universitário por
alguns anos seria a ausência de condições financeiras para arcar com um curso em faculdades
particulares ou para pagar um curso pré-vestibular particular e, dessa forma, se preparar para as
seleções de universidades públicas:
Eu demorei também, na verdade, pra entrar numa universidade porque, assim, eu saí
do ensino médio só que meus pais não tinham assim condições de bancar uma
faculdade particular pra mim, porque são valores muito caros. Aqui em Foz, pelo
menos, as faculdades particulares são bem caras. E... tanto que esse cursinho da
UNILA ele é gratuito, por causa disso eu consegui fazer, porque se fosse depender de
questões financeiras, eu não sei onde eu estaria hoje, sabe. Eu tenho a sorte de ter tido
esse cursinho, ter tido essa oportunidade, que é por causa disso que eu tô na
universidade agora. Tanto que eu já, por ter feito o cursinho e por ter passado por essa
questão de não ter tido acesso ao ensino por questões financeiras, eu ia no cursinho
outros anos, tanto que, nos cursinhos de 2015 e 2016 eu dei aula de geografia para o
pessoal, achei bem interessante. E conversei também com a galera, descobri que tem
também várias pessoas que também passam por esse tipo se situação, de não
conseguir, de às vezes estar afastado dos estudos por conta de questões financeiras,
né. E agora to aí.. to no quinto semestre do curso de geografia, né (MARCOS, 2017).
Antes de aprofundarmos a discussão de sua fala, atentemos ao fato de que a cidade de
Foz do Iguaçu não oferecia um curso de Cinema até a chegada da Unila. Nem a Unioeste, nem
as faculdades particulares da cidade o ofereciam. Assim, é só a partir da chegada dessa
instituição que esse caminho pode ser constituído como desejado.
Em um primeiro momento, Marcos narrou a dificuldade de ingressar em uma
universidade logo após o ensino médio. Tendo concluído esse nível de ensino já em 2009,
ingressa na universidade apenas em 2015. Esse período é explicado pela já citada ausência de
recursos financeiros para pagar um cursinho ou as mensalidades de uma faculdade particular.
Entretanto, outro fato nos chama atenção: a naturalização de que o momento de ingressar na
universidade é logo após o ensino médio. Já vimos em outro lugar (REISDORFER, 2011) como
esse processo de caminho direto para o ensino universitário tem se constituído como o horizonte
de expectativas de estudantes secundaristas.
Aqui podemos perceber essa questão que emerge na trajetória de Marcos. Sua fala
construiu a narrativa desse momento como uma “impossibilidade”, ou seja, o estudante não
escolheu ficar algum tempo sem estudar e realizar outros objetivos, mas foi levado a esta
situação por não possuir as condições financeiras necessárias para ingressar na universidade.
81
Estudos mais aprofundados sobre esse processo de incorporação e naturalização da
universidade no horizonte de expectativas dos jovens ainda precisam ser feitos. O que podemos
inferir do conjunto de pesquisas que temos realizado é que a expansão dessa categoria de ensino
através da oferta de um maior número de vagas, bem como o constante discurso de diferentes
meios de comunicação que colocam o ensino universitário como caminho idealizado para os
jovens, tem reverberado socialmente e gerado essa construção de uma “ligação direta” ensino
médio/universidade. Assim, o significado atribuído por Marcos para esse momento está em
diálogo com as dimensões interpretativas de tal processo constituídas na sociedade brasileira
da primeira década dos anos 2000.
Um segundo elemento são as possibilidades que sua historicidade interdita ou apresenta.
Com dificuldade em pagar uma faculdade particular, pois seus pais não teriam dinheiro para
tanto, restaria a possibilidade de um curso público. Mas essa limitação é demarcada
geograficamente, afinal, “aqui em Foz, pelo menos [...]” (MARCOS, 2017) os cursos
particulares seriam caros. Difícil demarcar com o que ele compara os preços. Localizada em
uma região de fronteira, em divisa com duas outras cidades de países vizinhos – Puerto Iguazú
e Ciudade del Leste – a comparação pode ter sido realizada em relação a essas espacialidades.
Ou também em relação a informações que chegam através de diferentes meios sobre preços e
condições de universidades, faculdades e centros de ensino universitários particulares existentes
em diferentes partes do país. Em que pese essa impossibilidade de demarcar exatamente o
espaço de diálogo, é possível perceber a leitura, análise e atuação em relação ao contexto
histórico no qual se insere. Dessa forma, vendo interditado aquele que seria o “caminho
automático” após o ensino médio, construiu, como alternativa, o supracitado trabalho com
música. Quando surgiu a possibilidade do cursinho Ingressa, participou do mesmo por dois anos
até conseguir sua aprovação no curso de Geografia que, em tese, abriria a possibilidade para a
transferência, como já abordamos. Para além disso, ao construir sua experiência universitária,
atribuiu parte do sucesso ao cursinho Ingressa e retornou ao mesmo na condição de tutor em
Geografia.
Essas dimensões sociais e pessoais que permitiram a construção do caminho à
universidade devem ser pensadas também em conjunto com outras experiências que podem ter
promovido em Marcos essa nova possibilidade de horizonte de expectativas. Nesse sentido,
durante a entrevista, ele foi questionado sobre o papel da formação acadêmica dos pais em sua
opção:
82
Entrevistador: O fato de eles terem universidade teve influência no seu desejo de
cursar o ensino superior?
Marcos: Olha... Sim, posso dizer que sim. Porque, em conversas assim, quando eu
vejo a carga de conhecimento que eles trazem – apesar de ser uma área totalmente
diferente da minha - uma coisa que sempre me fascinou, sabe. E essa área da educação,
de ser professor também, é algo que me despertou interesse sabe, que me chamou
atenção. Então eu acho que eu posso dizer que sim, que teve influência (MARCOS,
2017).
Apesar de Marcos não afirmar com veemência uma influência direta entre a formação
universitária de seus pais e sua opção por uma trajetória acadêmica, a mesma é confirmada em
sua narrativa. O que podemos problematizar é a dimensão dessa questão. Se não foi incisiva, a
fala de Marcos apresenta, não necessariamente a carreira, mas a carga de conhecimento que
seria proveniente da experiência universitária como motivador de um caminho que pudesse ser
semelhante. De qualquer forma, já vimos como as condições econômicas familiares são uma
das interdições presentes na historicidade desse sujeito. A inserção de seus pais como
professores, em determinados momentos como professores universitários em faculdades
particulares de Foz do Iguaçu, não lhe permitiu almejar pagar os custos de uma graduação
particular, o que limitou, dessa forma, as possibilidades presentes em sua temporalidade.
Temos abordado e constantemente recolocado a problemática da inserção da
universidade no horizonte de expectativas dos sujeitos. Tal proposta não se dá gratuitamente.
Objetivamos, com essa constante evidenciação, demarcar a interpretação de que o ensino
acadêmico se constituiu enquanto uma possibilidade na trajetória desses estudantes a partir de
historicidades específicas. Abordar essa questão contribui para nosso objetivo maior, qual seja,
constituir as dimensões centrais para a densidade temporal observada a partir do espaço de
experiências dos estudantes da Unila na relação cidade/universidade. Somente a partir dessa
constituição podemos pensar as relações intersubjetivas e interculturais. Afinal, as mesmas se
dão nessa densidade temporal constituinte de seu presente.
Um dos elementos que nos motivou a abordar a trajetória de Marcos foi o fato de que
este estudante é e era morador da cidade de Foz do Iguaçu. Isso traz uma série de especificidades
para sua experiência. Afinal, suas vivências citadinas o colocaram em contato com um conjunto
de questões que são ou foram distantes daqueles que vem para a Unila de outros países, em
especial, aqueles que denominamos de “estudantes de primeira geração”. Marcos teve contatos
anteriores ao ingresso na universidade com representações constituídas na cidade sobre essa
instituição e seus membros. Como veremos em outros momentos, grupos sociais citadinos
colocaram diferentes resistências, mas também possibilidades à inserção da Unila na cidade.
Desta forma, se torna deveras pertinente perceber com quais representações Marcos toma
83
contato, bem como a forma como as interpretou e relacionou-se ao longo de sua trajetória e
memória narrativa com essas questões.
A informação da existência dessa universidade chega aos estudantes estrangeiros
principalmente através da Internet. Tuane, assim como outros estudantes, descobriu ao navegar
pelo site da universidade, a qual estava vinculada. Renato, talvez a trajetória mais distanciada
da internet, através de uma rede de sociabilidades e familiar. Marcos toma contato com essa
instituição a partir de suas experiências e vivências citadinas:
Entrevistador: E... antes de você saber do cursinho pela sua namorada, você conhecia
a UNILA, tinha alguma... relação? Marcos: Então... eu tinha... assim, eu conhecia, eu
sabia da existência né, da Unila assim, mas bem por cima. Tanto que eu conheci a
Unila porque amigos, família, falavam bastante do curso de música, né. Tipo, “Ah,
você é músico, por que que você não tenta..?”. Só que assim, pra entrar no curso de
música em qualquer universidade é bem complicado, porque você já tem que saber
muito assim de música, né. Coisas que na época eu não sabia, se não me engano os
cursos de arquitetura eles também tem isso, você tem que fazer uma prova né, uma
seleção antes... Então eu achei assim, já descartei a possibilidade, mas... (MARCOS,
2017).
A localização da informação original sobre a existência da Unila foi feita a partir da
sugestão de familiares e amigos que colocavam o curso de Música, fundado em 2012, como
uma possibilidade de graduação para Marcos. Assim, tendo se formado no ensino médio, já em
2009, e a Unila tendo iniciado suas atividades de graduação em 2010, portanto, em tese, Marcos
poderia ter entrado em outros cursos já nas primeiras turmas. O curso de Geografia ao qual ele
está vinculado é iniciado em 2011. Mesmo com essa conjuntura que, novamente em tese,
poderia ter levado à busca de informações sobre instituições universitárias e ao conhecimento
sobre a Unila, foi o incentivo ao curso de Música, através de suas relações de sociabilidade, que
demarcou narrativamente o contato com a universidade. Essa estruturação coloca em “xeque”
a eficiência dos mecanismos de promoção da instituição na cidade. Mesmo que a universidade
possa ser, relativamente, eficiente na divulgação de sua existência, com reportagens/anúncios
em jornais, rádios, televisão e afins, a incorporação ao espaço de experiências dos sujeitos não
é mecânica. É a partir do momento em que aquela informação passa a ter significado ao sujeito
que, veremos, pelo menos no caso de Marcos, a transformação da informação em experiência
e, mais do que isso, em horizonte de expectativas.
A narrativa da incorporação do curso de Música e da Unila ao seu espaço de
experiências é acompanhada pela narrativa da interdição desse curso em específico enquanto
horizonte de expectativas. Diferentemente de outras graduações onde o ingresso se dá a partir
de conhecimentos adquiridos ao longo do sistema de ensino tradicional, neste caso,
84
conhecimentos e habilidades específicos são necessários. Assim, além do processo seletivo
tradicional, que no caso da Unila é articulado a mecanismos de seleção nacional e internacional,
o curso em questão exige uma fase extra constituída por uma prova prática. Mesmo sendo
músico e trabalhado nesse ramo ao longo do tempo, inclusive com lançamento de músicas em
um período próximo ao momento da entrevista, Marcos não colocou a possibilidade de ser
aprovado na seleção do curso como algo possível. Dessa forma, mesmo ao ingressar no espaço
de experiências do sujeito, sua inserção no horizonte de expectativas foi interditada pela
dinâmica de seleção constituída nessa historicidade.
Outro elemento importante de sua narrativa é a relativa dificuldade em tomar
conhecimento da universidade, mesmo morando na cidade: “Na época eu conhecia bem pouco
assim, não sabia nem onde era aqui na cidade, porque pelo que eu sabia na época a UNILA nem
tinha uma estrutura física assim, tanto que até hoje ela tá dentro do, dentro da Itaipu né, lá no
PTI (Parque Tecnológico Itaipu)” (MARCOS, 2017). Um dos desafios enfrentados pela
instituição, a ser melhor trabalhado adiante, foi a ausência de um espaço físico próprio. Mesmo
com seu campus tendo sua construção iniciada em 2011, a obra continua parada no momento
em que escrevo – 2018 – sem previsão realista de entrega. Com isso em vista, a universidade
constituiu outros espaços de uso. Um deles, em utilização até o momento é, como já falado
dentro do PTI, outro no centro da cidade – fechado em 2016 - e outro no espaço alugado de
maneira compartilhada com a Uniamérica, desde 2014, e a partir de 2016 ocupado em sua
totalidade pela Unila. Desse modo, os lugares físicos identificados com a universidade
acabaram subsumidos a partir de outras representações em que a Unila se localiza “dentro” de
outras instituições e, com isto, dificulta, como afirmado por Marcos, uma identificação própria
na cidade.
Essa problemática será aprofundada na fala dele, ao ser questionado sobre outro
elemento: as representações negativas construídas sobre a universidade em alguns espaços de
comunicação citadina.
Marcos: Acho que sei... porque não tenho muito contato com jornais, sabe.
Entrevistador: Uhum, é que ele lançou algumas reportagens, algumas colunas na
verdade né, falando justamente sobre isso, sobre tipo.. Ah, Unileiro é usuário de crack,
é comunista. [Matheus fala ao fundo afirmando dizendo “isso...”] E isso teve bastante
repercussão aí.
Marcos: Então, isso que você falou agora eu lembrei, justo no ano que eu entrei na
Unila pra fazer o cursinho, em 2013, teve um caso que repercutiu bastante aqui na
cidade, que foi o jornalista acho que inclusive do Primeira Linha, que ele fez uma,
85
escreveu né uma matéria pro jornal, falando basicamente que a Unila, ela é inútil.
Porque ele escrevia coisas do tipo: “Por que que eles acham que curso de música é
mais importante que curso de direito? Por que que eles acham que curso de história é
mais importante que administração?” tipo assim, falando que basicamente que a Unila
é inútil, que não tem nenhum curso que presta e falou um pouco também sobre essa
questão do perfil né, do Unileiro que eu já falei pra você, e nada de novidade assim...
tanto que teve bastante repercussão, acho que a comunidade da Unila tentou fazer
alguma mobilização, alguma coisa pra tentar fazer o cara se retratar né, mas... como
faz tempo eu não lembro o que isso sucedeu, mas lembro que teve bastante
repercussão essa reportagem negativa que o jornalista colocou na matéria (MARCOS,
2017).
Para entendermos essa fala, é preciso localizá-la dentro da entrevista. Marcos falava
sobre um caso onde, após ingressar na universidade, foi confrontado por colegas de um amigo
seu com estereótipos negativos construídos sobre os estudantes da Unila – essa questão será
abordada com maior profundidade no próximo capítulo. Após sua fala, foi questionado a
respeito das matérias do EmpresariALL (EMPRESARIALL, 2017), que construíam uma
imagem preconceituosa e generalizadora a respeito desses estudantes. Destaque-se ainda a fala
dele ao apontar que tem pouco contato com jornais, mas ao ser questionado pelo entrevistador
a respeito de uma reportagem específica, acabou por lembrar-se. Não é possível apontar o
momento em que Marcos toma contato com essa publicação. Pode ter sido quando foi lançada,
através de outras relações a partir do cursinho preparatório Ingressa ou já como estudante de
graduação da Unila. De todo modo, ela é localizada na memória narrativa do estudante, já em
2013.
Mesmo que esta memória possa ser temporalmente imprecisa, ela serve, no mínimo,
para termos trato com representações citadinas sobre a universidade com as quais ele entrou em
contato. Mas, mesmo assim, vemos algo bastante notável que evidencia o contato, em algum
momento, com as discussões presentes naquele artigo. A citação de Marcos se aproxima muito
do que o artigo traz: “Alguém imagina que Saúde Coletiva é mais importante que Medicina?
Que ensinar Música é mais relevante que Administração? Ou que Ciências da Natureza sejam
mais valiosas que Turismo para nossa região? Foz do Iguaçu merece muito mais”
(EMPRESARIALL, 2013). Essa proximidade nas expressões evidencia o contato com o
periódico ou, pelo menos, com excertos, comentários ou respostas posteriores ao mesmo.
Em que pese as considerações a respeito da forma como essa memória se constituiu no
tempo e na narrativa, o que nos interessa, mais propriamente, é que, ao ser narrada, constituiu
e representou sentidos na subjetividade do estudante. O ano de 2013 é caracterizado por
momentos importantes, tanto para a instituição quanto para Marcos. A greve de professores e
técnicos administrativos de universidades federais de 2012 gerou o cancelamento dos processos
86
de seleção de estudantes, em 2013. Já para Marcos, esse é o momento em que começa a
frequentar o cursinho Ingressa, com o objetivo de melhorar seu desempenho no Enem e,
consequentemente, ter maiores chances de entrar em um curso universitário. Assim, tanto a
reportagem quanto a recepção dela, por parte dele, são mediadas por essa temporalidade
específica.
A leitura de Marcos se deu a partir do momento em que o ingresso no ensino superior
já estava mais consolidado enquanto dimensão de seu horizonte de expectativas. A própria
proximidade com a comunidade universitária, alvo da fala do periódico, apareceu como lugar
social específico a partir do qual ele lê a reportagem. Assim, é capaz de narrar, por exemplo, a
dimensão da repercussão do evento dentro do que denomina como “comunidade da Unila”.
Essa percepção de uma representação negativa sobre essa “comunidade” foi aprofundada ao
Marcos falar sobre suas vivências já como estudante da universidade. Logo na sequência, ele é
provocado a falar a respeito de como as pessoas com quem mantinha relações mais próximas
pensavam a Unila:
Entrevistador: É, como as pessoas recebiam isso?
Marcos: Então, por parte dos meus amigos não tive nenhum problema. Tanto que, sei
lá, meus amigos não diziam nada. Aliás, eles achavam super legal a ideia de tipo, eu
vou entrar numa universidade. Porque assim, meus amigos conheciam a minha
história, sabiam que era difícil, tava complicado a situação pra mim, que eu queria
estudar. Então eles nem se importavam assim com o fato de que, “Ah, é na UNILA
sabe”, tipo, eles ficavam felizes de mim, tipo cara... “Que massa. Você quer entrar
numa universidade federal...”. E engraçado que dos meus amigos, eles não tinham
essa visão negativa. Eles consideravam, já tinham essa consideração pela UNILA de
que tipo, “Ah, é uma federal, é boa e tal”. Da minha família também não tive problema
nenhum. Então eu acho que em relação as pessoas próximas ao meu círculo assim de
convivência, família e amigos, não tive problema, sei lá, com comentários maldosos...
Quer dizer, acho que também depende do ponto de vista, porque se for considerar, por
exemplo, aquelas piadinhas que fazem... Porque eu já escutei também amigo meu
falando assim, “ Nossa o Marcos quando entrar na UNILA, quer apostar só, ele vai
parar de tomar banho, ele vai colocar dread, ele vai começar fumar maconha e ouvir
reggae, quer apostar quanto?!” Tipo assim, eu levo numa boa, esse tipo de brincadeira.
Mas, aí hoje em dia talvez eu não aceitasse, não me sentiria tão bem ouvindo esse tipo
de comentário, sabe. Mas, no mais era isso que, só esse tipo de piada assim que rolava
(MARCOS, 2017).
Significativo da interpretação social sobre a universidade na qual Marcos se insere é a
forma como leu a relação que amigos e familiares constituíram com sua perspectiva de ingressar
na Unila. A ideia de “problema” é recorrente. Assim, ele não teria tido “problemas” com a
forma como a família e amigos lidaram com essa possibilidade. Essa é uma questão relevante,
pois a enunciação da ideia de que não teve problemas traz imediatamente à tona, tanto na própria
carga da sentença quanto na sequência da narrativa, o fato de que a Unila é entendida de maneira
87
específica em suas relações de sociabilidade. Essa instituição não seria percebida como uma
universidade “normal”, o que gera a expectativa, frustrada, de que os amigos poderiam ter
“problemas” com sua ideia de ingressar nela. Essa questão foi superada pela incorporação nessa
instituição do capital simbólico de outras universidades federais. A carga positiva atribuída a
essas instituições pelos amigos de Marcos, quando incorporada a Unila, fez com que a
pensassem a partir dessa característica e não, pelo menos é o que a narrativa apresenta, a partir
da representação mais rasteira da mesma que é apresentada na sequência.
O narrar de uma representação positivada não apaga significações negativas a respeito
dessa instituição que disputam sentidos em dimensões da urbe frequentadas por Marcos. Como
veremos, houve ao longo do tempo a construção de um estereótipo sobre os estudantes da Unila,
bem como sobre a própria instituição na cidade de Foz do Iguaçu. A especificidade de nossa
pesquisa, que lança um olhar sobre essa questão a partir dos estudantes, não nos permite
delimitar o alcance citadino dessa representação, a não ser a partir das relações e vivências
desses sujeitos. Mesmo assim, a fala de Marcos permite perceber sua existência e difusão, pois
esse estereótipo negativo é transformado em “piada/brincadeira” ao ingressar em dimensões
cotidianas das relações de sociabilidades de estudantes ou, no caso em questão, candidatos a
tal. Dessa forma, incorpora-se ao seu espaço de experiências e aparece na narrativa como algo
“sem maldade”, uma brincadeira. Entretanto, se ele não identifica um desconforto à época a
respeito dessa questão, demarca seu descontentamento presente. A experiência estudantil na
universidade ressignificou a relação com essa representação.
Como já havíamos demarcado, um dos motivos que nos levou a entrevistar e, nesse
momento, a problematizar a experiência de Marcos foi o fato de ser morador de Foz do Iguaçu
desde o seu nascimento. Acreditávamos e, vemos confirmado, que sua narrativa poderia trazer
elementos importantes para complexificarmos e adensarmos as análises sobre as trajetórias
estudantis. Em especial, a respeito de um conjunto de experiências nas quais Tuane e Renato
não estavam inseridos. Afinal, a maioria desses estudantes afirmam que desconheciam quase
por completo a cidade e suas dinâmicas sociais e culturais. As exceções são informações a
respeito das Cataratas e de Itaipu. Assim, pensar a narrativa de Marcos enriquece a questão,
pois permite visibilizar dimensões experimentadas por um conjunto cada vez maior de
estudantes da Unila.
O processo de escolha da universidade e da transformação da Unila em horizonte de
expectativas dialoga com essas dimensões. Enquanto estudantes estrangeiros – com exceção
daqueles moradores de regiões vizinhas a Foz do Iguaçu, como Ciudad del Este ou Puerto
88
Iguazú – têm de lidar com questões relacionadas à imigração, os jovens de Foz dialogam com
outras, mas não mais simples questões. Assim, essas representações negativas a respeito da
instituição e dos estudantes – falta de banho, uso de drogas e de maneira racista, o dread e o
reggae – se colocam a esses jovens da cidade e região. No caso de Marcos, a forma de
ultrapassar esse problema foi pela ressignificação da instituição a partir da apropriação de sua
característica de Universidade Federal. A positivação dessa característica estava presente em
seu círculo social. Foi essa dimensão que, segundo ele, determinou ou, pelo menos, facilitou a
escolha:
Olha, eu sei que o certo seria, a questão mais importante ser a questão de você ver
tipo: “Ah, é uma universidade latino-americana, com um projeto legal...”. Tipo hoje
em dia eu considero muito, sabe, eu acho muito legal essa experiência porque, ainda
mais o meu curso que é geografia, às vezes por você ter pessoas de diferentes países
muda totalmente a dinâmica da aula, mas a priori, quando eu estava buscando
ingressar na universidade, eu não pensava nisso. Meu pensamento era, meu, é uma
universidade federal, é gratuita, é boa... eu sei que ela é boa. E é minha única opção.
Se eu não conseguir entrar ali eu não sei o que eu vou fazer, tipo, com relação ao meu
estudo. Mas aí depois que eu entrei, que eu me estabilizei, aí sim eu comecei a
enxergar pra outras questões dentro da universidade. Mas antes disso, tipo assim, eu
queria entrar. Era isso (MARCOS, 2017).
Era uma universidade federal, gratuita e “boa”. Essas são as características que foram
constituídas na memória narrativa do sujeito e que fizeram com que a Unila se tornasse uma
possibilidade e um desejo para Marcos. O projeto institucional de integração e convivência
intercultural, que é propagado, não repercute em sua opção. Essa dimensão da universidade se
torna importante após o ingresso e a estabilização da condição de universitário.
O fato de a universidade ser pública lhe possibilita imaginá-la, pois não teria
dificuldades financeiras decorrentes da necessidade de pagar mensalidades. As condições de
ser uma instituição Federal – por consequência gratuita – e a ideia de qualidade expressa em
“boa” constituem os elementos restantes da ressignificação da universidade enquanto uma
possibilidade e coloca-a para além da significação negativa apresentada pelas brincadeiras de
seus amigos. Assim, um descaminho se consolida. O caminho imaginado, contato com o
projeto, interesse em participar e ingresso na instituição é ressignificado a partir de estratégias
estabelecidas pelo estudante para conseguir seu objetivo, cursar uma universidade pública.
Por fim, faz-se importante destacar, assim como fizemos com a narrativa de Tuane, a
forma específica como Marcos interpreta o momento de compreensão de pertencimento à
instituição. Vimos, como no caso de Tuane, que esse reconhecimento do pertencimento ocorre
apenas no segundo semestre da sua presença na Unila. No caso de Marcos, temos um processo
contrário, onde o pertencimento ocorre antes do ingresso:
89
Entrevistador: Como é que foi entrar na Unila, como é que foi assim, chegar lá? Eu
digo assim, nos primeiros dias de aula e tal, como é que foi assim para você?
Marcos: Então, acho que, a diferença assim... Porque eu conheci a Unila, na verdade
em 2013 né. Que nem eu falei pra você. E... desde o cursinho, eu já fui fazendo
amizade assim com os professores - que na verdade eram acadêmicos, né - cada um
da sua área que davam aula. E desde 2013 então, já tendo esse contato. Quando eu
comecei o curso de graduação, pra mim não teve tanto choque assim, sabe, com
relação ao fato de estar na universidade. Porque eu já a Unila fazia dois anos, sabe, eu
já tava meio que por dentro, entre aspas, em como que é estar na universidade. Meu
maior choque de realidade que eu tive foi com relação ao conteúdo, propriamente
dito, da graduação assim, uma coisa bem diferente do que eu tava acostumado. Mas...
e sei lá, aí quando eu entrei, que daí eu tive mais contato com pessoas da universidade
em si, que daí na minha cabeça, vinha aquele processo de entender que ok! Agora eu
não sou mais aluno de cursinho, agora eu sou aluno universitário, então eu estou aqui
no meio dessa gente toda aqui, e... vai ser uma loucura. Então, acho que é isso assim.
Pra mim, quando eu entrei em si na Unila assim não teve tanta... não teve tanta... como
é que eu posso dizer.. surpresa. Digamos assim (MARCOS, 2017).
A experiência do ingresso na universidade é dividida por Marcos em duas dimensões
distintas, mas dialógicas: a sociabilidade e a acadêmica. No âmbito das sociabilidades, Marcos
narra que seu ingresso, nessa primeira dimensão da experiência universitária, teria se construído
antes da sua entrada oficial como estudante da Unila. Já durante o período do cursinho prévestibular, a convivência com estudantes da instituição que faziam, às vezes, de professores do
curso preparatório, permitiu a incorporação desse grupo social em sua rede de sociabilidades.
Assim, o ingresso na universidade não se deu através de qualquer ruptura nesta dimensão, mas
foi significado como um momento de continuidade. Essa questão é especialmente pertinente
quando percebemos que diversos estudantes narraram a chegada a Foz do Iguçau e à Unila
como um “choque”, questão a ser aprofundada no quarto capítulo. Colocando-se assim, num
processo social sentido de maneira distinta daquele de Marcos. A ideia de “choque de realidade”
aparece em sua fala quando pensa a segunda dimensão dessa experiência. É na perspectiva
acadêmica dos conteúdos trabalhados que Marcos percebe uma ruptura mais significativa, ao
trazer uma relação de estranhamento com esse processo. A explicação para esse “choque” vem
de uma ideia de maturidade apresentada por ele:
Tá. Olha, vou falar pra você, eu não sou até hoje, eu não sou o cara mais estudioso do
mundo assim, não sou aquele cara que vai chegar da aula e vai ficar lendo texto até...
até fritar o cérebro. E eu nunca fui desse jeito, no ensino médio eu não gostava de
estudar... no cursinho assim, foi quando eu comecei a... é que pra mim, essa questão
de como era meu ritmo de estudos tem a ver mais com uma questão de maturidade,
pra mim, sabe. Que hoje em dia eu entendo porque eu não gostava de estudar no ensino
médio, porque hoje em dia eu to muito mais maduro (MARCOS, 2017).
Ao narrar suas vivências no ensino médio como de pouca dedicação ao estudo, a
experiência do cursinho preparatório e da universidade surgiram como os modificadores dessa
90
relação. A partir desse contato com a Unila, Marcos relata um processo de amadurecimento que
contribuiu para entender seu relativo descaso com a dedicação aos estudos. Nesse sentido, é
relevante problematizar, apesar de ser inviável quantificar, até que ponto esse é um processo
ativado pela experiência universitária ou por uma maturidade a partir do contato com dimensões
da vida adulta. Até porque os contatos com essas dimensões são relativos. Ao levar em
consideração a definição de ingresso na vida adulta construída por Florencia Saintout (2009), o
estudante em questão possui pouco contato com essa experiência. Mora na casa dos pais, não
possui autonomia financeira, familiar ou educacional. Assim, por mais que o acúmulo de
experiências provenientes da idade possa ter colaborado para sua maturidade, nesta questão do
amadurecimento acadêmico, podemos inferir uma centralidade maior, mas não exclusiva, da
experiência universitária.
A especificidade do caso de Marcos colocou alguns desafios a análise de sua trajetória.
A mais relevante para nossa argumentação é o limite entre considerações que podem ou não ser
ampliadas enquanto questões citadinas. A particularidade ou a generalidade das experiências
estudantis são uma constante não apenas neste caso, mas ao longo de todo nosso texto. Assim,
vivências de Marcos como, por exemplo, a valorização da característica de gratuidade e a
vinculação federal da Unila podem ser importantes em seu caso, mas não possuir reverberações
em outros estudantes provenientes de Foz do Iguaçu ou de qualquer outro lugar. Enquanto ele
constituiu na e através da Unila uma estratégia para ingressar e alcançar seu curso desejado, por
questões outras que não o projeto integracionista, o mesmo não ocorre com outros estudantes.
Entre nossos entrevistados, o caso mais evidente é o de Carlos (2015)24 que migra da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) para a Unila e mantém-se no curso de
História, porém, em busca da experiência da vivência intercultural que a universidade em Foz
do Iguaçu promete. Dessa forma, o caso de Marcos, assim como dos demais estudantes, não
implica representatividade, mas possibilidades de caminhos e descaminhos – mais evidentes
em seu caso – que os levam ao ensino universitário, à Unila e a Foz do Iguaçu.
24
Cláudio: Estudante brasileiro, tinha 23 anos em 2016, momento da entrevista. Ingressou na Unila, em 2014, no
curso de História. Proveniente do interior do estado de São Paulo, residia, desde 2010, em Natal-RN, onde
ingressou no curso de História da UFRN. Interessado na discussão de América Latina promovida pela Unila,
mudou seu curso de história para essa instituição. A entrevista foi realizada em 16 de maio de 2016 na sua casa,
uma república estudantil
91
1.4 (DES)CAMINHOS: TRAJETÓRIAS EM MOVIMENTO
O grande desafio, neste momento do texto, tem sido a multiplicidade e diversidade de
narrativas e experiências destes estudantes. Abordávamos, já nas páginas iniciais, como essa
variedade dificulta e mesmo impossibilita qualquer tentativa de generalização. Tal diversidade
aparece em diferentes dimensões das experiências narradas: os contextos históricos de partida,
o processo de apropriação da universidade e da Unila como horizonte de expectativas, as
articulações sociais ativadas para a imigração ou para o ingresso nessa instituição e a própria
forma como esse conjunto de questões foi narrado.
As três trajetórias apresentadas e analisadas formam um jogo de “esconde e mostra que
visibilizam e ocultam elementos desse processo de imigração e/ou ingresso na Unila. Nesse
sentido, pensamos muito mais a partir da perspectiva de enunciação de possibilidades e de
evidenciação da diversidade que de uma possível tentativa de generalização. Com base na
proposta de Davis (1997), utilizamos esse momento do texto como forma de constituir
trajetórias que servem como “exemplos” das múltiplas experiências da Unila. Como já
afirmamos, não problematizamos “as trajetórias dos estudantes da Unila”, mas “trajetórias
estudantis”, sem sua característica generalizante. Nossas fontes, ao mesmo tempo que impedem
a abstração de seu conteúdo e sua aplicação para todo o conjunto de sujeitos que compõem
historicamente esses espaços, possibilitam a problematização de apropriações subjetivas de
suas possibilidades interculturais na e através da universidade e da cidade.
De todo modo, temos uma diversidade de espaços de experiências e horizontes de
expectativas que, dentro das limitações que estas fontes impõem, devem ser problematizados.
Da mesma maneira procede Davis. Ao concluir a apresentação de suas fontes busca pensar
elementos em comum entre aquelas trajetórias que possam servir como possibilidade de
complexificação de nossa compreensão sobre as vivências femininas no século XVIII. Em
nosso caso, buscamos atuar num sentido semelhante. A partir das trajetórias analisadas,
complexificar as percepções que temos das experiências estudantis.
Primeiramente, temos uma relativa especificidade da Unila: o fato de que seus
estudantes são provenientes de contextos sociais, históricos e culturais bastante distintos. Estes
são provenientes de 18 países da América Latina25 e essa questão apresenta uma problemática
inicial: como abordar seus contextos históricos? Essa tarefa se mostrou complicada e, para o
25
Informação disponível em: <https://www.unila.edu.br/sites/default/files/files/unila-em-numeros.pdf> Acesso
em: 25 set. 2017.
92
escopo desse trabalho, impossível. Mais do que isso, dentro de cada país, contextos sociais,
culturais, econômicos regionais e locais podem ser diferentes. Neste sentido, constantemente
nos deparamos com as (im)possibilidades de generalização das análises e informações
existentes nas entrevistas. É possível generalizar a experiência de Tuane, estudante uruguaia de
Montevideo, com a de Jorge de Bogotá, Colômbia? Ou a de Renato, cubano, com a de Alex, de
Santiago do Chile? Mais que espaços, distâncias e fronteiras políticas podem separar estes
jovens. Histórias e culturas distintas constituídas a partir de contextos nacionais, mas também
econômicos, de gênero, étnicos, etc, são específicos a cada um destes sujeitos.
Sem dúvida, algumas questões podem e são compartilhadas. Dimensões da História
colonial, língua - em alguma medida -, condições socioeconômicas, gênero e etnicidade são
compartilhados por diversos deles, bem como por inúmeros dos estudantes da universidade.
Entretanto, mesmo essas características compartilhadas são constituídas no tensionamento de
relações intersubjetivas muito específicas e sua análise deve ser cuidadosa. Aqui é necessária
atenção. Não estamos a negar a possibilidade de constituição de narrativas mais amplas, de
análises contextuais generalizantes dentro do campo historiográfico. Inúmeras pesquisas no
campo da Micro-História têm evidenciado a possibilidade de problematização do desvio e
também do tensionamento entre o desviante e a regra, suas articulações, negociações e
releituras. Quando nos focamos na especificidade e nas limitações das generalizações é pela
busca da construção de um conhecimento que perceba o específico, os desvios, o único, mas
também este tensionamento com a regra, através da busca da captura e problematização do
intersubjetivo e intercultural. É nessa possibilidade de intersecção do específico com o
intersubjetivo que focamos nossas preocupações.
Neste sentido, o contexto dos estudantes entrevistados é analisado a partir de suas
características individualizadas e também dialógicas. Viemos, ao longo desse capítulo, a lançar
mão da apresentação entre as trajetórias justamente com esse objetivo. Talvez o grande
elemento em comum nos casos em questão, e também para a grande maioria das entrevistas,
seja o fato de que nossos entrevistados sejam provenientes de classes trabalhadoras, operários
ou profissionais liberais, numa classe social que tem a universidade pública como a grande
possibilidade de percorrer o caminho universitário. Essa condição foi bastante enfatizada no
caso de Marcos, mas esteve presente também nas trajetórias e nas análises realizadas sobre
Renato e Tuane. A renda e a classe social foram determinantes para Marcos ao ir à universidade,
afinal, as instituições universitárias públicas brasileiras impõem barreiras ao seu acesso.
Também foi importante para os casos de Tuane e Renato, mas em outro momento, qual seja, o
da migração.
93
Mesmo ao compartilhar sua rotina entre trabalho e curso universitário, ambos não deram
ênfase narrativa à problemas econômicos como impeditivos de ingresso nas universidades. Isso
se deve, especialmente, ao fato de que nos países de origem desses estudantes, o ingresso ao
ensino universitário é universal. Assim, a condição socioeconômica surge como “limite” para
o caminho universitário entre os estudantes de países com barreiras institucionais nas
universidades. Os casos mais “fortes” nas narrativas de nossos sujeitos são os de brasileiros e
de estudantes chilenos – já que, no Chile, mesmo as universidades públicas cobram
mensalidades.26 Nessa dimensão, o fato de a instituição se voltar para um espaço geopolítico
marcado pela pobreza e desigualdade econômica será elemento importante dos limites e das
possibilidades que a mesma enfrenta ao longo do tempo. Veremos isso de maneira mais
evidente na importância que estudantes atribuem aos auxílios estudantis que a Unila fornece.
Um elemento em comum a todos os estudantes entrevistados, que serve, inclusive, de
recorte para a seleção de entrevistas, é a sua inserção no que construímos como juventude.
Todos os entrevistados podem ser percebidos a partir dessa categoria. O mais velho entre eles
tinha 24 anos, no momento do ingresso na universidade, e 27 anos, no momento da entrevista.
Mesmo o caso nesta faixa etária pode ser lido a partir das relações que entendemos como
constituinte da juventude. Nesse sentido, entendemos, juntamente com Saintout (2009), que
algumas dimensões da experiência social são entendidas como momentos de passagem da
juventude para a vida adulta como a constituição de família, a independência financeira através
do trabalho e a formação educacional completa.27 Em nosso caso, todos se colocam com maior
ou menor profundidade inseridos em relações sociais que ainda os transformam objetiva ou
subjetivamente inseridos em relações sociais juvenis. Dependência financeira, emocional ou
educacional de sua família marcam suas narrativas. Em que medida se cruzam as dimensões de
classe social e juventude entre nossos entrevistados é algo que teria de ser pensado de maneira
mais profunda através de análises individualizadas que fogem ao nosso escopo, mas que
constituem uma preocupação a se manter em mente na problematização dessas narrativas, nos
próximos capítulos.
O contexto de partida dos estudantes é o primeiro dos elementos que organizaram nossas
preocupações. Afinal, como já dito, partimos do pressuposto teórico de que o espaço de
26
Em 2017, após intensos protestos estudantis a educação pública e gratuita chilena foi ampliada.
A autora aponta ainda uma certa independência no campo da atuação política como elemento da passagem da
juventude para a vida adulta. Não incorporamos ela a nossa definição pela fluidez e dificuldade maior na
demarcação dessa relação. Historicamente, jovens de diferentes faixas etárias e classe social tem constituído
movimentos políticos, em especial estudantis, que os deslocam fora da área de atuação política de suas famílias,
mas nem por isso são reconhecidos ou se reconhecem como “adultos”.
27
94
experiências constituído antes da universidade é elemento determinante na interpretação do
presente universitário, bem como na incorporação da universidade no horizonte de expectativas
dos sujeitos. Nossa segunda preocupação vem justamente desta questão. Buscamos perceber
como os estudantes, que tiveram suas trajetórias analisadas, incorporaram a universidade como
instituição geral e a Unila como possibilidade específica ao seu horizonte de expectativas.
A universidade surgiu na trajetória e memória deles a partir de lugares distintos. No caso
de Renato, ela é incorporada como sinônimo de conhecimento e compreensão do mundo a partir
da ideia de ascensão social, em especial, simbolicamente, através do ganho de conhecimento.
Já Tuane a coloca como possibilidade de atuação em favor de seu bairro e classe social. O caso
de Marcos é o que mais se aproximaria da “regra”, a busca da universidade como espaço de
formação profissional, no caso dele, o curso de Cinema. Entretanto, vimos como o caso dele é
interessante em nossa perspectiva de “descaminho”. Enquanto ingressou na universidade
através de seus mecanismos tradicionais, construiu uma estratégia de utilização desses
mecanismos para seus próprios objetivos, ao almejar, a partir do ingresso, os editais de
aproveitamento de vagas que permitiriam a ele alcançar o curso desejado. A própria Unila é
lida como uma universidade federal, não enquanto um projeto institucional de integração latinoamericana que ultrapasse essa característica organizativa.
Essa possibilidade de apropriação da universidade ou da Unila como um “descaminho”,
ou seja, como um elemento não planejado da trajetória dos sujeitos, surgindo mais ou menos
abruptamente na trajetória desses jovens, está presente também em outras narrativas não
analisadas até agora. O caso de Antonio28 é significativo, nesse sentido. Ele chega à Unila por
um interesse despertado pelo projeto arquitetônico do campus da universidade. Ao pesquisar
sobre arquitetura, um hobby segundo ele, encontra a informação de que Oscar Niemayer havia
desenhado o projeto de campus de uma universidade brasileira. É a partir daí que a instituição
passa a compor seu horizonte de expectativas. Esse encontro não se dá por uma busca planejada,
não está no caminho, não é a regra da organização do sujeito, mas o desvio. Esse “acaso” está
presente também na trajetória de Tuane. Ela encontra a Unila num momento em que navegava
no site de sua universidade na tentativa de fazer matrícula para disciplinas. É a partir deste acaso
que a instituição se torna uma possibilidade.
28
Antonio: Estudante de Relações Internacionais, chileno, tinha 23 anos em 2013, momento da entrevista.
Proveniente da cidade de Santiago, capital do Chile, ingressou na Unila em 2011. Antes de vir para a Unila, residia
com seus pais, tendo ingressado na Universidade de Santiago. Ali permaneceu por 2 anos, antes de vir para a Unila.
A entrevista foi realizada em 16 de maio de 2013 em seu apartamento, uma república estudantil.
95
O terceiro elemento que buscamos atentar foram as articulações sociais necessárias para
a imigração para Foz do Iguaçu e para a Unila. De início é preciso fazer um adendo. Como
cerca de 70% dos estudantes da instituição são brasileiros, a imigração ocorre apenas entre os
30% restantes. Mesmo entre esses, pode haver paraguaios de Ciudad del Este e região e
argentinos de Puerto Iguazú e região que não precisaram imigrar para realizar o curso. Assim,
essa perspectiva de imigração surgiu nas trajetórias de estudantes de outros países. No caso dos
brasileiros vindos de outras cidades e regiões do país, a migração também ocorreu.
Entre os estrangeiros, há diferenças que poderemos explorar mais a fundo nos próximos
capítulos, em especial a diferença linguística, estranhamentos com a burocracia e a cultura
brasileira, etc, sentida por estes ao chegarem a Foz do Iguaçu. Todos os estrangeiros
entrevistados – há exceções entre os brasileiros, em especial Carlos – são estudantes de primeira
geração, ou seja, não possuíam redes de contatos e sociabilidades estabelecidas na universidade
e na cidade antes de sua vinda. Isso se deve, em especial, à juventude da instituição que não
possui uma massa de estudantes que possa produzir novas gerações de jovens que venham para
a Unila a partir desse contato. O ingresso de um maior número de estudantes brasileiros e
estrangeiros deve, em tese, tornar mais comum o processo de propaganda “boca a boca” que
possibilite a vinda de novos estudantes através da ativação de redes de sociabilidades e contatos
na universidade.
As articulações necessárias para a imigração implicam desde o processo de seleção de
candidatos estrangeiros que passam por necessidades financeiras para a viagem e instalação,
até a burocracia necessária para passaporte, documentação no Brasil, etc. À parte as questões
práticas citadas, o elemento mais relevante, nesse processo de migração que foi narrado pelos
estudantes, é a perspectiva de afastamento físico da família. O vínculo familiar, especialmente
com pais e irmãos, mas também avós, tios e afins, foi lembrado como um elemento importante
nesse processo de imigração. A forma como isso será processado, bem como a significação do
processo migratório, a partir da experiência na cidade de Foz do Iguaçu será aprofundada
adiante.
Por fim, há um último elemento que abordamos e que evidencia, mais uma vez, o
tensionamento constante, tanto nas narrativas quanto em nossa análise entre o específico e a
generalização, entre o individual e o intersubjetivo e intercultural. A construção da memória é
elaborada a partir de leituras constituídas no presente sobre o passado. Assim, as experiências
posteriores aos eventos acontecidos e narrados promovem constantes ressignificações sobre o
passado. Em nosso caso, isso se estabeleceu com base na leitura das experiências dos estudantes
96
a partir de categorias apreendidas nas vivências universitárias. De maneira mais ou menos
evidente – mais evidente nos casos de Tuane e Renato e um pouco mais difuso no caso de
Mateus – essa questão esteve presente nas narrativas e análises das trajetórias.
Assim, podemos perceber uma possibilidade de generalização, pois a experiência
universitária pode ser apontada como um elemento de ressignificação da memória dos
estudantes. Entretanto, aqui aparece o diverso, o tensionamento entre essa generalização e a
especificidade de cada caso. Afinal, cada trajetória acadêmica é única, compartilhada,
intersubjetiva e intercultural e, em última instância, experimentada de maneira única a partir do
espaço de experiências e horizonte de expectativas de cada um. Dessa forma, essa teorização
generalizante terá de ser percebida a partir de cada caso, pois a ressignificação de uma estudante
de História utiliza mecanismos acadêmicos distintos, podendo, em alguns casos, ser até
contraditórios do caso de um estudante de Geografia ou de Economia, etc.
A ressignificação é comum, o novo sentido é específico. Neste momento, buscamos
constituir um conjunto de possibilidades que permitisse complexificar a compreensão das
trajetórias estudantis. Ao mesmo tempo, intentamos permitir que o leitor se aproximasse,
subjetivamente, das sensibilidades individuais destes estudantes, num processo de humanização
de análises que, muitas vezes, acaba por apagar os sujeitos. Também focamos em dimensões
específicas do espaço de experiências que, segundo argumentamos, é formador das relações de
interculturalidade estabelecidas na relação cidade e universidade. Dessa forma, a partir da
problematização da constituição histórica das trajetórias dos sujeitos, com base no que carregam
de específico, ampliamos as possibilidades de significação dessas experiências no presente. Ao
problematizarmos sua dimensão histórica e processual, buscamos constituir uma densidade
temporal da experiência que permite a relocalização da subjetividade dos sujeitos para a relação
diacronia/sincronia.
97
2 NARRATIVAS DE HARMONIA MULTICULTURAL EM FOZ DO IGUAÇU
Chegar a uma cidade e ingressar em uma universidade não se constitui em um evento
puramente acadêmico. Dinâmicas diversas atravessam a escolha pelo curso e a própria opção
de realizar uma graduação, bem como o deslocamento social, geográfico, cultural, político, etc.
Se, muitas vezes, por parte do senso comum, o ingresso na universidade é percebido como uma
opção individual, calcado no puro mérito pessoal do estudante, já tivemos a oportunidade, em
trabalho anterior (REISDORFER, 2011), de evidenciar que o ingresso no ensino universitário
é um processo complexo. Dinâmicas pessoais, familiares e afetivas se cruzam com projetos
governamentais de ofertas de vagas, com a qualidade ou ausência dela nas instituições, no
processo de formação no ensino fundamental e médio, bem como com escolhas pessoais e
acadêmicas. Assim, essas e outras temporalidades atravessam as diferentes instâncias que
permeiam o ingresso no ensino superior e formam uma historicidade calcada em uma
multiplicidade de dimensões. Dessa forma, construir uma análise deste processo requer que nos
debrucemos de maneira pormenorizada na complexidade desta relação. Ainda mais que, em
nosso objeto, processos locais e nacionais se somam a questões internacionais, em especial no
escopo da América Latina, na experiência universitária.
Uma das dinâmicas constantemente subvalorizada na compreensão da experiência
universitária é a intrínseca relação entre a universidade – enquanto espacialidade e historicidade
– e as dinâmicas da cidade a que, de maneira, muitas vezes, tensa, pertence ou onde se localiza.
Dessa forma, em muitos casos, vemos a universidade ser pensada e representada como que
isolada da cidade e das dinâmicas sociais que a cercam. A universidade, nestes casos, acaba por
parecer uma “bolha” sem relação com a dinâmicas culturais, sociais e políticas daquela
espacialidade. No caso em questão, pensar a constituição e historicidade do processo de
formação da Unila, em articulação da sua institucionalização com as problemáticas de discursos
sobre fronteiras e multiculturalidade29 que atravessam e constituem a cidade de Foz do Iguaçu,
é um desafio sobremaneira importante para que possamos compreender nosso objeto de estudo
e fundamentar nossas hipóteses de pesquisa.
29
Os conceitos de multiculturalidade, multiculturalismo, multicultural, etc, aparecerão com frequência ao longo
deste capítulo. A esse respeito é necessário explicar uma questão para o leitor. A categoria analítica que utilizamos
para pensar a presença e as relações entre grupos culturais e étnicos distintos na cidade de Foz do Iguaçu é
interculturalidade, como discutido na apresentação. Assim, a constante presença da ideia de multiculturalidade e
suas variantes se deve ao fato de que essa é a categoria que as fontes analisadas utilizam para pensar e apresentar
a cidade de Foz do Iguaçu. Nosso objetivo não é reproduzir essa perspectiva, muito pelo contrário, é problematizala à luz da ideia de interculturalidade.
98
A construção de uma narrativa calcada na multiculturalidade, na fronteira e na fronteira
multicultural permeia as relações estabelecidas naquela cidade. Em viagens para pesquisa se
tornou comum, no diálogo com diferentes grupos de citadinos, em especial ligados ao setor de
turismo, taxistas, staff de hotéis, etc referências diversas a essas ideias. O mesmo acontece em
narrativas oficiais, imprensa e no conjunto de blogs que tem a cidade como objeto principal ou
ocasional. A multiculturalidade acaba por ser retratada, como veremos, em âmbitos os mais
diversos como alimentação, religião, roupas, etc e assumem e são transformados em portadores
da diversidade cultural que permeariam aquela urbanidade. Agrega-se, a isso, o constante
lembrete de pacificidade e harmonia na relação entre estes grupos.
Nessa relação se insere o espaço cujo nossos olhares se centram para a compreensão das
experiências estudantis: a Unila. Surge, naquela trama urbana, uma universidade que se quer
sem fronteiras, multicultural – através da presença de várias nacionalidades – e intercultural
devido a sua proposta integradora enquanto objetivos básicos de sua existência. Assim, sua
ênfase na ideia de “integração”, presente já no nome da instituição, implica um deslocamento
na ideia de multiculturalidade. Implicaria, segundo argumentaremos, na intrínseca necessidade
da promoção de relações interculturais, que produz e promove, além da convivência entre
culturas, constantes relações de trocas entre as mesmas.
Sendo nosso objetivo a problematização de ressignificações identitárias através da
análise da experiência universitária construída nesta relação cidade/universidade, a
apresentação e análise histórica de ambas se torna fundamental. Assim, é central a necessidade
de abordar as contradições entre uma narrativa oficial que permeia a urbanidade, a de que a
cidade se constituiu historicamente a partir de relações culturais harmônicas entre as diversas
etnias que nela convivem e a percepção dos estudantes a respeito desse espaço. Enquanto
predomina a narrativa de harmonia cultural, os estudantes, como veremos no capítulo 4,
enfrentam diferentes formas de preconceitos sociais, culturais, étnicos, de gênero, etc. Dessa
forma, abordar a cidade, sua constituição histórica enquanto espacialidade atravessada por
trajetórias diversas, será fundamental para que possamos perceber contradições entre a narrativa
oficial, com a qual os estudantes entram em contato e a experiência cotidiana desses mesmos
universitários.
Com esse objetivo, em um primeiro momento, apresentamos um mapeamento e uma
discussão a respeito do discurso de multiculturalidade presente em blogs e sites que tomam Foz
do Iguaçu como objeto. Em seguida, abordamos a construção da ideia de multiculturalidade e
de fronteira em teses de doutorado e obras de historiadores sobre a cidade de Foz do Iguaçu.
Estes textos são tomados enquanto fontes para a nossa análise. Ao invés de seguirmos o já
99
clássico modelo de debate historiográfico, objetivamos perceber como parte da historiografia
construiu discursos sobre Foz do Iguaçu, sendo inclusive parte constituinte e legitimadora das
narrativas de multiculturalidade que atravessam a cidade. Para essa leitura, buscamos
compreender as formas como os autores pensaram a presença de múltiplas etnias naquela
cidade. A análise dessa série de questões nos dedicamos, a partir de agora.
2.1 FOZ DO IGUAÇU: ENTRE A FRONTEIRA E A MULTICULTURALIDADE
A cidade de Foz do Iguaçu é comumente narrada a partir de suas características
geográficas, sejam as modificadas pelo homem, como a barragem de Itaipu e seu reservatório,
sejam as legadas pela natureza, as Cataratas do Iguaçu, sejam aquelas erigidas nas
historicidades humanas, sua tríplice fronteira. A construção desse espaço como uma fronteira,
a partir de embates ao longo de séculos, possibilitou um lugar privilegiado para o encontro,
dialógico e/ou tenso, de povos e culturas. Dessa possibilidade, foi construída uma ideia
generalizada nos meios sociais e acadêmicos de uma Foz do Iguaçu multicultural. Ao ir um
pouco adiante, é possível perceber, como buscamos pensar, a construção da ideia de que essa
região seria uma fronteira multicultural. Esse discurso é apropriado como elemento de
legitimidade para a constituição da Unila, em Foz do Iguaçu. A ideia apresentada é que tanto
por ser uma das mais conhecidas fronteiras da América Latina (pelo menos para nós brasileiros)
quanto por sua já existente multiculturalidade, essa cidade seria o espaço ideal para a construção
da universidade.
Diversos são os agentes que alardeiam ou recorrem a essa ideia. Seja no campo
acadêmico, na imprensa – impressa, televisionada ou virtual – ou nos meios estatais oficiais
como a prefeitura municipal e suas manifestações digitais. Ao se debruçarem sobre a
constituição étnica da cidade, atualizam o passado no presente. Incorporam ao presente um
suposto passado “idílico” no qual as etnias se respeitariam e viveriam em harmonia. É nesse
aspecto que as ferramentas da História do Tempo Presente se fazem de particular utilidade e
interesse. Observar e problematizar os usos do passado no presente, bem como a presença desse
passado no tempo presente tem sido bases de sustentação deste campo historiográfico e de suas
contribuições teóricas e metodológicas.
Para que possamos iniciar o pensar sobre as formas como as temporalidades da cidade
de Foz do Iguaçu têm sido utilizadas para construir sentidos sobre aquela historicidade,
utilizamos como fonte duas páginas da internet. Para a sua seleção, optamos por um
100
procedimento comum para usuários da internet. Ao acessar o buscador Google,30 inserimos o
nome da cidade na busca de resultados. Ao fazermos isso, pudemos nos deparar com o seguinte
resultado: em primeiro lugar, o site da prefeitura de Foz do Iguaçu; na segunda colocação, a
seção de turismo do site da Prefeitura de Foz do Iguaçu; em terceiro lugar, uma página de
turismo sobre Foz do Iguaçu chamada “Visite Foz” e, em quarto lugar, a página sobre a cidade,
no site Wikipédia.31
As três páginas da internet analisadas, com o objetivo de perceber dimensões de
fronteira e multiculturalidade no tempo presente e usos do passado para essa construção, são
bastante amplas e com objetivos que, assim como praticamente toda fonte histórica, foge do
escopo da problemática do historiador. Para a realização das análises foi necessária a realização
de um recorte a respeito das áreas dos sites que seriam analisadas. Focamos em áreas que
abordavam a história de Foz do Iguaçu, sua população e páginas iniciais que, dentro do site,
tinham por função a apresentação da cidade ao visitante online. Assim, no caso do site da
Prefeitura Municipal,32 mantido pelo poder público municipal, foram analisados os itens: “A
Cidade”,33 “História da Cidade”,34 e “Cronologia Histórica do Município”.35 A página da
Wikipédia sobre a cidade de Foz do Iguaçu36 teve seu texto analisado integralmente. Já a página
“Visite Foz”,37 de cunho informativo voltada para o turismo, teve analisada três itens: “Sobre a
cidade”,38 “Centenário de Foz do Iguaçu”39 e “Estudando em Foz do Iguaçu”.40
30
A pesquisa em sites de internet, em especial buscadores, e sua utilização como fonte histórica ainda é um desafio
para os historiadores. A ausência de uma reflexão mais aprofundada a esse respeito, no campo historiográfico,
torna necessário a problematização individual dessa ferramenta e seus usos. Assim, em nosso caso, para a
realização da pesquisa e para evitar vícios na ferramenta Google, foi utilizado um computador e um navegador
novo, ou seja, ainda não utilizado para pesquisas e sem vinculação a conta Google. Tal fato, faz-se necessário, pois
o buscador Google utiliza como forma de filtrar as informações, além da relevância dos termos, o histórico de
buscas da conta Google ao qual o computador está vinculado. Desta forma, conseguimos o que seria um “resultado
padrão” para primeiras buscas sobre a cidade. Esse resultado pode ser diferente dependendo do histórico de buscas
de cada usuário.
31
Site da Prefeitura Municipal de Foz do Iguaçu: <http://www.pmfi.pr.gov.br/> Acesso em: 9 maio 2016. Site da
Secretaria Municipal de Turismo de Foz do Iguaçu: <http://www.pmfi.pr.gov.br/turismo/>. Acesso em: 9 maio
2016. Site Visite Foz: <http://www.visitefoz.com.br/> Acesso em: 9 maio 2016. Página sobre Foz do Iguaçu na
Wikipédia: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Foz_do_Igua%C3%A7u> Acesso em: 9 maio 2016.
32
Site da Prefeitura Municipal de Foz do Iguaçu. Disponível em: <http://www.pmfi.pr.gov.br/> Acesso em: 9
maio 2016.
33
A Cidade. Disponível em: <http://www.pmfi.pr.gov.br/conteudo/?idMenu=1004> Acesso em: 10 maio 2016.
34
História da Cidade. Disponível em: <http://www.pmfi.pr.gov.br/conteudo/?idMenu=1007>. Acesso em: 10
maio 2016.
35
Cronologia Histórica do Município. Disponível em: <http://www.pmfi.pr.gov.br/conteudo/?idMenu=1009>
Acesso em: 10 maio 2016.
36
Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Foz_do_Igua%C3%A7u> Acesso em: 10 maio 2016.
37
Disponível em: <http://www.visitefoz.com.br/> Acesso em: 10 maio 2016.
38
Disponível em: <http://www.visitefoz.com.br/foz-do-iguacu/sobre-a-cidade/> Acesso em: 10 maio 2016.
39
Disponível em: <http://www.visitefoz.com.br/foz-do-iguacu/centenario-de-foz/> Acesso em: 10 maio 2016.
40
Disponível em: <http://www.visitefoz.com.br/foz-do-iguacu/estudando-em-foz/> Acesso em: 10 maio 2016.
101
A partir da análise textual dos três sites percebemos duas questões principais e que
permeiam a todos. A primeira é a similitude no texto e a segunda é a ausência de referenciais
historiográficos para as afirmações ali contidas. Os textos presentes na Wikipédia e no site da
prefeitura municipal são muito similares, em especial quando tratam da história do município
e sobre as características da população. É inviável qualquer afirmação em relação a autoria dos
textos que implique a origem do texto original, tanto por não haver assinatura quanto por não
haver data de publicação. A única indicação de relação é a presença na página da Wikipédia de
link para o site da prefeitura. Já a página Visite Foz, se contém um texto relativamente original
em relação aos outros dois, utiliza marcos temporais e categorias de análises similares, em
especial, a questão da multiculturalidade com destaque para a presença do que considera um
“grande número” de etnias presentes naquela localidade. Mas o que dizem as três páginas a
respeito da presença de diversas culturas e da fronteira? Comecemos pelo site da Prefeitura
Municipal de Foz do Iguaçu (2016):
Foz do Iguaçu está localizada no extremo oeste do Paraná, na divisa do Brasil com o
Paraguai e a Argentina. A cidade é centro turístico e econômico do oeste do Paraná e
é um dos mais importantes destinos turísticos brasileiros. Com cerca de 260 mil
habitantes, Foz do Iguaçu é caracterizada por sua diversidade cultural. São
aproximadamente 80 nacionalidades, sendo que as mais representativas são oriundas
do Líbano, China, Paraguai e Argentina (SITE DA PREFEITURA MUNICIPAL DE
FOZ DO IGUAÇU, 2016).
Esta é a fala de abertura da página da prefeitura que tem por objetivo apresentar a cidade
a partir da perspectiva do poder público municipal. Nela, estão presentes algumas questões
relevantes para a problemática levantada, neste momento do texto. De início é possível perceber
a forma como a sua localização é construída. Primeiro a sua posição geográfica em relação ao
Paraná. Logo, em seguida, sua característica de cidade de fronteira é demarcada, ao apontar
essa condição e, também, os países com os quais faz fronteira. Uma localização geográfica não
é algo natural. Ao demarcar sua condição fronteiriça logo na primeira oração da apresentação
da cidade, possibilita perceber a dimensão que essa condição assume no discurso oficial daquela
localidade. Na sequência, chama a atenção a opção narrativa que se constrói para dar
continuidade à apresentação. É o turismo41, atividade econômica privilegiada por esse discurso
que faz a conexão entre sua condição de fronteira e a descrição de sua população.
À fronteira e ao turismo se soma a terceira característica daquela espacialidade: a
diversidade cultural. Enfatiza-se uma grande quantidade de etnias, “aproximadamente 80
41
A respeito da diversidade cultural como característica explorada pelo turismo ver Klauck e Szekut (2012).
102
nacionalidades” (PREFEITURA MUNICIPAL DE FOZ DO IGUAÇU, 2016a), e constrói-se
um discurso de representatividade das principais nacionalidades presentes. Libaneses, chineses,
paraguaios e argentinos se destacam. De maneira irônica, os brasileiros não aparecem, sendo
naturalizados no processo. Destaque-se que na forma como são narrados, não vemos grupos
culturais, mas nações representadas. Não árabes, latinos, “orientais”, etc, mas paraguaios e
argentinos, libaneses e chineses.
Tal caracterização é relevante para nossa argumentação, pois Foz do Iguaçu se apresenta
como uma cidade da diversidade, da multiculturalidade. Mais que um espaço de encontro e
contato entre culturas, vemos chamado a público a existência dessa diversidade, porém, sem
ênfase nos contatos culturais. Vejamos outra descrição sobre a diversidade étnica, ainda no site
da prefeitura:
Foz do Iguaçu tem uma composição étnica muito variada e interessante, estimandose hoje uma população de 263.508 habitantes. A cidade abriga cerca de 80 das 192
nacionalidades existentes no mundo. Caminhando pelas ruas da cidade não é surpresa
nenhuma deparar-se com japoneses, chineses, coreanos, franceses, bolivianos,
chilenos, árabes, marroquinos, portugueses, indianos, ingleses, israelenses e tantas
outras nacionalidades, sem contar ainda paraguaios e argentinos. Os diferentes grupos
étnicos residentes na cidade fazem de Foz do Iguaçu uma das cidades mais
cosmopolitas do Brasil (PREFEITURA MUNICIPAL DE FOZ DO IGUAÇU,
2016a).
No texto apresentado na sequência do anterior, há um reforço na ideia de diversidade
populacional. Novamente, o que vemos é uma ênfase na possibilidade de existência de tais
grupos, pois “deparar-se” remete a uma perspectiva mais contemplativa que interacionista. A
diversidade, mais uma vez, aparece como um fim em si mesma. Mas em que medida essa
narrativa é reproduzida em outros espaços? Dentre nossas fontes, podemos destacar, na
sequência, a forma como a página da Wikipédia aborda essa questão. Antes, porém,
gostaríamos de destacar a centralidade que esse portal de informações tem atingido, na
contemporaneidade. Ao substituir ou, em regiões com menor acesso à internet, complementar
as antigas Enciclopédias e outros meios físicos de pesquisa, este portal tem assumido importante
dimensão na realização de pesquisas e trabalhos escolares. Seja através da cópia, resumo ou
pesquisa de conteúdo, essa é uma fonte formadora de percepções e pesquisas em âmbito
educacional. Isto influencia, deste modo, na formação cultural das gerações mais novas criadas
em relação constante com meios virtuais. De toda forma, vejamos como a página de Foz do
Iguaçu, no item demografia, apresenta a população desse município:
103
Foz do Iguaçu é considerada um dos municípios mais multiculturais do Brasil, onde
estão presentes mais de 72 grupos étnicos, provenientes de diversas partes do mundo,
e
dentre
os
principais
estão
os italianos, alemães,
hispânicos
(argentinos e paraguaios), chineses, ucranianos, japoneses. Destaca-se que está
presente a segunda maior comunidade libanesa do Brasil. Em termos proporcionais,
possui a maior comunidade islâmica do Brasil. Devido a sua localização de fronteira
com o Paraguai e a Argentina, Foz do Iguaçu apresenta uma grande circulação de
mercadorias contrabandeadas, drogas e armas, o que gera diversos problemas sociais,
principalmente a violência, fazendo com que a taxa de homicídios seja muito alta em
proporção ao número de habitantes. O município lidera o ranking de homicídios entre
adolescentes no país (WIKIPEDIA, 2016).
A narrativa construída sobre a população possui duas dinâmicas distintas. Primeiro, a
ênfase na multiculturalidade que, ao evidenciar a ideia de que seria um dos “municípios mais
multiculturais do Brasil” (WIKIPEDIA, 2016), é percebida como uma característica distintiva
e positiva dessa cidade. Há, entretanto, distinções entre a narrativa a esse respeito presentes na
página da Wikipédia e na página da Prefeitura Municipal. Primeiro, o número de grupos étnicos
ou etnias presentes na cidade. O surgimento da Unila, juntamente com outras dinâmicas de
imigração internacional contemporâneas, possibilita um incremento no número de
nacionalidades – tomadas por esses sites como etnias – na cidade, com o exemplo mais
marcante pela importância, em âmbito nacional, dos haitianos. Em seguida, temos uma
mudança na narrativa construída a partir de países de origem para a etnicidade ou suposto
pertencimento cultural. Assim, de “oriundos” da China, Argentina e Paraguai, passamos para
chineses e hispânicos – argentinos e paraguaios. Se, em 1982, Ruy Wachowicz (1982) afirmava
que, enquanto colônia militar do século XIX, aquela localidade estava “de costas para o Brasil”
e de frente para Argentina e Paraguai, vemos, aqui, uma inversão. O discurso da Wikipédia
coloca Foz do Iguaçu de costas para Argentina e Paraguai e voltada para o Brasil, a Europa e
seu passado colonial.
É importante apontar a utilização de um referencial colonial para a caracterização da
população proveniente de Argentina e Paraguai. Esta narrativa permite evidenciar nossa
argumentação teórica anterior. O presente e as narrativas construídas a seu respeito não se
produzem num vazio temporal. O sujeito que narra o presente, mesmo que oculto no anonimato
da Wikipédia, é um sujeito político, seu discurso é permeado por historicidades e constrói
significados ao inscrever sentidos sobre o objeto narrado. Ao atualizar a colonização espanhola
como característica comum de argentinos e paraguaios, apaga uma historicidade de resistência,
de forte presença populacional de origem indígena, em especial, no Paraguai, – cujas línguas
oficiais são o espanhol e o guarani – bem como constrói uma aproximação idealizada e
politicamente segregadora com a Europa, ao mesmo tempo em que os distancia da América
104
Latina. Importa destacar, ainda, que é, nessa cidade, permeada por grupos que ainda enaltecem
a proximidade com a Europa colonizadora em vez de a uma América Latina, que se inseriu a
Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Deixemos em suspenso, por algumas
linhas, a narrativa sobre a fronteira. Vejamos, agora, como nossa terceira fonte trata da questão:
Foz do Iguaçu é reconhecida internacionalmente pela natureza exuberante
das Cataratas do Iguaçu, pela construção monumental da Usina Hidrelétrica de Itaipu,
e pelas famosas oportunidades de compras em Ciudad del Este. Uma cidade trinacional, que une Brasil, Paraguai e Argentina, e multicultural, caracterizada pelas
diferentes culturas dos visitantes que compartilham espaços a cada semana. Uma
cidade que desperta o interesse, sempre que citada (VISITEFOZ, 2016).
O site VisiteFoz é uma página dedicada a informações para turistas. Organização
privada, sem autoria identificada na página, possui um rol de informações para auxiliar
possíveis visitantes daquela cidade. Voltado para os diferentes públicos, admiradores das
Cataratas do Iguaçu, visitantes da Itaipu ou compradores ocasionais de Ciudad del Este, constrói
uma imagem de tranquilidade, harmonia e beleza para a cidade ou, ao menos, para o potencial
turista. Se na página da Prefeitura Municipal, a presença de várias etnias é narrada a partir da
ideia de diversidade, assim como no caso da página da Wikipédia, aqui a ideia de
multiculturalidade é explicitada. Enquanto naquelas páginas a multiculturalidade era
comemorada como uma distinção de Foz do Iguaçu em relação a outros espaços, aqui é
nomeada como um dos elementos que despertariam o interesse do turista na distinção daqueles
destinos que possuem “apenas” belezas naturais. A diversidade cultural aparece como um
diferencial competitivo no mercado de destinos turísticos. Associada à multiculturalidade vem
a sua característica fronteiriça. No âmbito do turismo, tal perspectiva é fundamental, pois uma
parcela significativa dos turistas toma Foz do Iguaçu também como ponto de passagem em
direção a Ciudad del Este para compras.42
A presença da fronteira, na narrativa sobre a cidade, já havia sido percebida quando da
fala trazida pelo site da Prefeitura Municipal. Se lá aparece como um marcador geográfico
privilegiado, lembrado como referência para a localização da cidade, em outros momentos da
narrativa construídas pelas fontes, essa ideia muda. No caso do site VisiteFoz, a fronteira
aparece primeiro como espaço de passagem, de estratégia (CERTEAU, 2014) – no caso dos
sacoleiros – ou tática – no caso de compradores ocasionais – em que relações comerciais, em
ambos os lados, permitem ganhos, definitivos ou momentâneos (SOUZA, 2009). Mas ela
42
Uma importante discussão a esse respeito pode ser encontrada em Souza (2009).
105
aparece também, a partir de outra característica: a violência. Em um espaço em seu site
denominado “Perguntas Frequentes” (VISITEFOZ, 2016) , ocorre a seguinte fala:
Assim como a maioria das cidades turísticas que se destacam no Brasil, o turismo em
Foz do Iguaçu não costuma ser afetado por problemas de segurança ao se seguir o
bom senso habitual de segurança. A cidade está localizada numa tríplice fronteira e
tem tentando combater os problemas de segurança que historicamente afetam a região
(VISITEFOZ, 2016).
Como visto acima, a página da Wikipédia (2016) constrói uma narrativa no mesmo
sentido. Temos, aqui, uma distinção entre o site da Prefeitura Municipal (2016) e os demais.
Enquanto a Prefeitura Municipal se limita a utilizar a fronteira como marco, positiva-a, pois a
utiliza como elemento de memória para a localização da cidade, os outros dois sites abordam a
fronteira pela aproximação de uma narrativa de violência. Distanciam da percepção de
“harmonia” e “compartilhamento” da cidade e a constroem como a origem, causa e motivador
da violência. Outros fatores, principalmente a desigualdade social, não são elencados, pois
deixa à fronteira a responsabilidade por essa violência. Tal fato fica especialmente evidente no
caso da página da Wikipédia (2016). Já em VisiteFoz (2016), constrói-se um corredor de “bom
senso” no qual o turista pode transitar sem ser atingido pelos prejuízos trazidos pela violência
fronteiriça. Assim, ao turista, consumidor e/ou visitante, é possível aproveitar apenas o “lado
bom” da experiência. Há, nas narrativas, um deslocamento entre a fronteira como oportunidade
para táticas e estratégias para uma fronteira causadora de violência. O sentido desse espaço é
deslocado, mas esse deslocamento atinge apenas as vivências dos citadinos. O visitante pode
aproveitar, contanto que use “bom senso”, e estabelecer suas relações de apreciação das
oportunidades da fronteira de maneira tranquila.
O que temos percebido através da leitura das fontes, é a construção de uma narrativa
sobre o presente daquela cidade. A presença de um grande número de etnias e culturas, nesse
espaço, é utilizada para a construção de uma identidade de cidade multicultural. Entretanto, o
presente não é uma temporalidade solta. Sua representação permite perceber construções
históricas que possibilitam tais narrativas sobre esse tempo. Se este é um tempo fluído e
dinâmico, é formado, como afirma Koselleck (2012), no tensionamento entre espaços de
experiências e horizontes de expectativas. Assim, as leituras sobre o presente carregam, em si,
um conjunto de expectativas sobre o futuro, mas também um conjunto de temporalidades que
formam o espaço de experiências do objeto em questão.
Para a consecução desse objetivo, a compreensão da construção do discurso de
diversidade cultural ou de multiculturalidade que permeia as narrativas sobre o presente de Foz
106
do Iguaçu, faz-se necessário, a nosso ver, a construção de dois movimentos. Primeiro, o
exercício a que nos dedicaremos na sequência, pensar como as fontes aqui trabalhadas,
conformadoras de um discurso oficial, mesmo que fluido – principalmente no caso da
Wikipédia – utiliza-se de representações do passado para legitimar ou evidenciar uma suposta
vocação multicultural de Foz do Iguaçu que é expressada na existência de “aproximadamente
80” etnias na cidade. Em segundo lugar, apreender, através da historiografia sobre a cidade,
aqui tomada como fonte, o processo de construção e posterior desconstrução de um sentido de
harmonia para a diversidade populacional e para a fronteira, características marcantes nas
narrativas identitárias construídas por essas fontes sobre a cidade.
As três páginas aqui analisadas dispõem de seção dedicada a narrar a história de Foz do
Iguaçu. Em todas, a história narrada é a de uma cidade em formação. Todo o passado é colocado
à disposição do processo de formação da cidade do presente. Uma perspectiva teleológica
atravessa essas análises. Através de diferentes começos, a história é submetida à formação da
cidade. Essa perspectiva apaga ou, ao menos, invisibiliza a historicidade daquela região. A
única referência a uma historicidade pregressa à colonização oficial aparece a partir de relatos
arqueológicos:
Pesquisas arqueológicas realizadas pela Universidade Federal do Paraná no espaço
brasileiro do reservatório de Itaipu, antes de sua formação, situaram em 6.000 a.C. os
vestígios da mais remota presença humana na região; vários grupos humanos
sucederam-se ao longo dos séculos. Os últimos que precederam os europeus
(espanhóis e portugueses) foram os índios (PREFEITURA MUNICIPAL DE FOZ
DO IGUAÇU, 2016d).
Sessenta séculos de história são minimizados a “vestígios” da presença humana naquele
espaço. Além disso, cria-se uma fronteira temporal – num discurso que, como vimos, é marcado
por fronteiras geográficas – onde indígenas e europeus se precedem. Mais uma vez, o contato
entre culturas é submetido a lógica da mera presença das mesmas. Novamente, frisa-se a
existência da diferença, mas nunca o contato dialógico ou conflituoso entre elas. Assim, como
nas narrativas sobre a presença de etnias ou nacionalidades, constrói-se uma separação sutil
entre as mesmas, com ênfase na sua coexistência, nunca nas suas relações.
Se a história do espaço, enquanto história da presença humana e suas relações com
determinada espacialidade, é deixada de lado por essa narrativa, a mesma se foca na construção
da cidade. Assim, o discurso fundacional traça um caminho direto entre os primeiros habitantes,
a fundação da Colônia Militar e a cidade de Foz do Iguaçu, no presente. Esta última aparece
como herdeira de uma história com um só sentido, sua formação:
107
Em 1881, Foz do Iguaçu recebeu seus dois primeiros habitantes, o brasileiro Pedro
Martins da Silva e o espanhol Manuel Gonzáles. Pouco depois chegaram os irmãos
Goycochéa, que começaram a explorar a erva-mate. Oito anos após, foi fundada a
colônia militar na fronteira - marco do início da ocupação efetiva do lugar por
brasileiros e do que viria a ser o município de Foz do Iguaçu (PREFEITURA
MUNICIPAL DE FOZ DO IGUAÇU, 2016d).
Esta citação presente no item com o significativo nome de “História da Cidade”43possui
diferentes elementos para pensar nossa argumentação. Primeiro, o anacronismo de colocar os
supostos habitantes de 1881 como habitantes de Foz do Iguaçu.44 A suposta chegada destes dois
homens aquele espaço já seria uma chegada a Foz do Iguaçu. Agrega-se a esse elemento, a
grafia utilizada. Em primeiro lugar, em 1881, essa região permanecia sem nome, sendo
localizada dentro de Guarapuava. Em segundo, a grafia do século XIX para Iguaçu era Iguassú45
ou Iguassu. Entretanto, assim como a Prefeitura Municipal, trabalhos historiográficos que
versam sobre aquela região adota a grafia contemporânea sobre o passado. Outra significativa
questão levantada por esse excerto é, novamente, a ênfase na presença de diferentes
nacionalidades naquele espaço.
A fonte em questão apresenta a migração, em 1881, de dois homens para o espaço que
seria Foz do Iguaçu. Tal momento é tomado como marco inicial da ocupação dessa região. Esse
evento não pode ser confirmado por fontes em nenhuma das produções historiográficas
analisadas para esse trabalho. A primeira referência a esses sujeitos, entre a bibliografia
analisada, aparece em Wachowicz: “Os mais antigos moradores da região da foz do rio Iguaçu
teriam sido o brasileiro Pedro Martins da Silva e o espanhol Manoel Gonzalez, que ali se
estabeleceram, em 1881” (WACHOWICZ, 1982, p. 21). Nenhuma fonte é apresentada para
corroborar tal afirmação. Entretanto, em que pese a gravidade da ausência de fontes para tal
colocação, interessa-nos a nacionalidade elencada dos sujeitos. O “mito de origem”46 da escrita
teleológica da história da cidade é construído sobre a presença de duas nacionalidades distintas.
Desde seu marco de origem, a história da cidade é marcada pela ideia de compartilhamento
43
O texto se repete na página sobre a cidade de Foz do Iguaçu, na Wikipédia.
Há ainda um terceiro elemento presente que se localiza em paralelo às preocupações desta tese: a ideia de vazio
demográfico. A perspectiva da chegada de seus “dois primeiros habitantes” entrevê a inexistência de outros
habitantes naquele espaço, seja no momento dessa suposta chegada, seja anteriormente. Em que pese a localização
de povos indígenas na região, é significativo que, no momento do início daquela que seria a história da habitação
de Foz do Iguaçu, se exclua as populações indígenas. Sobre a construção da ideia de vazio demográfico que
congrega essas questões ver: Mota (2008).
45
Sobre a nomenclatura e história da fundação da colônia militar ver Myskiw (2009) que, em sua tese de doutorado,
apresenta vasto conjunto de fontes de viajantes e fundadores oficiais da Colônia Militar, onde, através de
documentos de época, é possível perceber a grafia utilizada.
46
Souza (2009) em subtítulo com o nome de “O Mito das Origens” aponta que memorialistas da cidade chegam a
apontar a presença do espanhol Núnez Cabeza de Vaca por volta de 1542 como o início da história do município.
44
108
deste espaço por diferentes nacionalidades. Essa é uma narrativa poderosa, mesmo quando não
evidenciada, em busca da construção de uma identidade multicultural para Foz do Iguaçu.
Vemos um movimento de uso do passado em busca da produção dessa identidade. O presente
constrói e utiliza-se de um determinado espaço de experiências para legitimar sua identidade.
2.2 FOZ DO IGUAÇU COMO OBJETO DA HISTÓRIA
Por meio da obra de Wachowicz (1982) pretendemos ingressar no segundo ponto da
construção de uma análise da dimensão histórica das narrativas sobre a fronteira e sobre a
presença de diferentes culturas através da ótica da multiculturalidade. Se, até agora, buscamos
compreender como esse discurso de fronteira multicultural se utilizou de uma narrativa histórica
criada e utilizada por instâncias oficiais para fundamentar essa identidade, agora ingressamos
no âmbito de trabalhos historiográficos que tem a história daquela espacialidade como
preocupação. Para a realização dessa discussão, tomaremos um conjunto de textos
historiográficos, em especial as teses de doutorado em história sobre a cidade, enquanto fontes
que permitem visualizar e problematizar a construção de percepções e narrativas sobre a
fronteira e a presença de diferentes nacionalidades ou etnias calcadas em discursos de harmonia
social. Assim, ao invés de suporte bibliográfico, tais obras servirão de fontes históricas para
análise.
Ao construir a análise a partir de obras historiográficas, faz-se necessário atentar para
as inscrições de sentidos que tais obras possibilitam. Dialogar com o discurso acadêmico e
científico nos obriga a considerar a capacidade de construção de discursos de verdade,
inscritores de verdades ou discursos “verdadeiros” que a academia, salvo as perspectivas mais
pós-modernas da mesma, tendem a defender que produzem. Nesse sentido, amparamo-nos em
Bourdieu que, ao pensar essa questão, afirma:
Ao consagrar um estado das divisões e da visão das divisões, o efeito simbólico
exercido pelo discurso científico e tanto mais inevitável quanto, em meio às lutas
simbólicas pelo conhecimento e pelo reconhecimento, os chamados critérios
“objetivos” (os mesmos conhecidos pelos eruditos) são utilizados como armas: eles
designam os traços sobre os quais pode fundar-se a ação simbólica de mobilização
com vistas a produzir a unidade real ou a crença nessa unidade (tanto no seio do
próprio grupo como junto aos demais) (BOURDIEU, 1998, p. 113).
A legitimidade do conhecimento produzido no meio acadêmico pode ou não ser
acionada nos embates identitários. Assim, vimos como elementos da obra de Wachowicz
(1982), produzida no meio acadêmico, mas financiada pela Itaipu – um dos mais relevantes
109
agentes nesse embate – é acionada, mesmo que de maneira indireta e sem a citação para a
legitimidade da narrativa de colonização. Ao mesmo tempo, obras críticas a discursos
consolidados podem servir, nesse processo, para denunciar construções narrativas que não
estariam de acordo com as identidades desejadas ou construídas por outros grupos. Nesse
sentido, os textos selecionados para a nossa análise se posicionam em diferentes espectros dessa
disputa por identidade, mesmo que partilhem de aspectos em comum – nos casos de Wachowicz
(1982) e Luiz Catta (2009) – em especial, a ideia de que Foz do Iguaçu seria uma cidade
multicultural na qual a diversidade convive em harmonia.
A essas preocupações de ordem metodológica do uso e da concepção de fontes que
partem da historiografia, cabem acrescentar possíveis problematizações provenientes das
preocupações surgidas no âmbito da História do Tempo Presente. Tendo suas relações com as
fontes históricas constituídas numa constante tensão entre ausência de acesso às fontes/
abundância de fontes, a possibilidade de agregar trabalhos de história ao conjunto de fontes
disponíveis parece interessante. Sem dúvidas, o tempo presente disponibiliza, potencialmente,
um imenso conjunto de fontes de pesquisa: orais, imagéticas, musicais, textuais, etc. Ao mesmo
tempo, veta o acesso do historiador, em alguns momentos, a outras fontes, como é o caso do
acesso a documentos oficiais da ditadura militar brasileira que tiveram seu período de sigilo
ampliado no início dos anos 2000. Dentro dessa tensão, cabe ao historiador, em diálogo com
suas problemáticas pensar limites e possibilidades de fontes sobre seu objeto de estudo, elencar
e priorizar aquelas que possam contribuir com maior riqueza para as análises propostas.
Sendo assim, e em consideração das ponderações de Bourdieu a respeito da dimensão
simbólica dos discursos acadêmicos e sua capacidade de inscrever sentidos a respeito das
questões a que se dedicam, passamos a analisar como a historiografia tem narrado tais questões.
Para tanto, contaremos com a análise de 3 textos. São eles: Obrageros, Mensus e Colonos de
Wachowicz (1982), A Fronteira como destino de Viagem: A Colônia Militar de Foz do Iguaçu
(1888/1907) de Antonio Marcos Myskiw (2009) e A Face da Desordem: Pobreza e estratégias
de sobrevivência em uma cidade de fronteira (Foz do Iguaçu/1964-1992) de Catta (2009).
Wachowicz publica, em 1982, aquela que pode ser considerada uma das obras
fundadoras da escrita da História sobre a região de Foz do Iguaçu. Um dos autores mais
importantes para a historiografia paranaense escreve a respeito de diferentes processos sociais.
Autor de obras tanto de divulgação, como obras de fôlego de pesquisa, possui textos de assuntos
variados, desde o processo de construção da Universidade Federal do Paraná (UFPR) até obras
sobre as colonizações de diferentes regiões do estado, como a analisada aqui.
110
Centrada na ideia da construção de uma história da região oeste do Paraná, o texto de
Wachowicz, Obrageros, Mensus e Colonos, toma Foz do Iguaçu, a formação política-territorial
dominante daquela região ao longo da primeira metade do século XX, como ponto de partida e
centralidade histórica em sua análise. Outro elemento necessário para compreendermos a obra
e sua importância na construção dos discursos oficiais que temos problematizado, até agora,
está no fato de que esta foi financiada com recursos da Itaipu. Elaborada ainda durante o
processo de construção da Usina, tem, por parte da empresa binacional, o objetivo de abordar a
história da região a partir da ótica da integração, da harmonia social e da ausência de conflitos.
Tal perspectiva, como afirma Myskiw (2009), não foi exclusiva desse autor:
Ruy Wachowicz, Cecília Maria Westphalen e José Augusto Colodel delimitaram o
recorte temporal e documental de suas pesquisas de modo a não dar visibilidade aos
conflitos agrários dentro e nos limites territoriais da Colônia Militar de Foz do Iguaçu.
O que estava por trás dessa ação? Acredito que dar ênfase aos conflitos agrários num
projeto colonizatório levado a cabo por militares, em pleno regime militar, não era
viável e saudável a ambos os historiadores. E mais, evitava-se, direta e indiretamente,
suscitar discussões sobre os conflitos, resistências e a migração de milhares de
trabalhadores rurais que passaram a ocorrer em fins da década de 1970 com a
desapropriação de terras agricultáveis, imóveis rurais e urbanos pela Usina
Hidrelétrica de Itaipu (MYSKIW, 2009, p. 21).
Posicionamento semelhante a respeito da obra é tomada por Aparecida de Souza (2009):
A pesquisa realizada por Wachowicz (1982) foi, portanto, uma análise produzida à
luz do processo de construção da hidrelétrica de Itaipu e das discussões acerca de seu
impacto sobre as áreas urbanas e rurais que formavam, histórica, social e
geograficamente, a área que seria atingida pela obra. Desse ponto de vista, as
investigações desenvolvidas por esse pesquisador buscavam, também, produzir
materiais para compor a memória de um lugar que sofreria drásticas e irreversíveis
mudanças com a formação do lago da usina. Apesar disso, essa composição da
memória foi, em grande medida, determinada pelos objetivos e pelos interesses
relacionados à Itaipu que, por meio do subprojeto, direcionou a definição do objeto
de estudo, as questões e o recorte histórico (SOUZA, 2009, p. 29).
A historiografia, sempre fruto de seu próprio presente, se construiu dentro das
possibilidades e limites colocados naquele momento histórico. Ao se colocarem em diálogo,
através do recebimento de financiamento, dos interesses da Itaipu, esses historiadores
construíram uma historiografia fortemente pautada na exclusão e silenciamento de um conjunto
de conflitos que marcou a formação daquela espacialidade. Tal narrativa tem sido, como já
vimos, utilizada por meios oficiais para a elaboração de uma identidade da cidade como espaço
de harmonia social, com ênfase em uma suposta harmonia étnica, fruto e promotora da
multiculturalidade supostamente presente. Com estas questões em vista, vejamos como essa
narrativa de apaziguamento e multiculturalidade é construída na obra de Wachowicz.
111
Wachowicz data de 1881 as primeiras entradas na região de Foz do Iguaçu. Esse seria o
momento em que a margem direita do Rio Paraná teria recebido as primeiras incursões de
argentinos, membros de uma “frente extrativa” (WACHOWICZ, 1982, p. 45). Entretanto, assim
como no caso da presença de um brasileiro e um espanhol nas margens do rio, datada
igualmente de 1881, já citada, aqui não são apresentadas fontes que permitissem tal afirmação
por parte do autor. A suposta47 ausência de testemunhos ou narrativas sobre esse processo é
apontada pelo próprio Wachowicz, quando afirma que:
Para os paranaenses aquela parte do seu território ainda era um sertão inculto e
desabitado. Nenhum movimento de penetração para o ocidente deixou sequer algum
vestígio na região. O núcleo populacional mais próximo das barrancas do Paraná foi
a fazenda do Chagú, a ocidente de Guarapuava, e situada a aproximadamente trezentos
quilômetros do rio Paraná. Não havia, portanto, fiscalização nem presença brasileira
na região. (WACHOWICZ, p. 75).
Toda essa região do oeste paranaense ainda pertence politicamente à Guarapuava até
1914. Mesmo assim, ao construir o recorte espacial, Wachowicz aponta como limites
geográficos para a história daquela região uma área que se inicia a pelo menos 200 quilômetros
a oeste de Guarapuava. A organização política do século XIX é desprezada a serviço da busca
da construção de uma identidade regional que, para que tenha efeito maior narrativo e político,
exclui as dinâmicas temporais. Assim, a organização regional proposta pelo autor, em 1982,
elaborada a partir de uma leitura específica dos processos de disputa e (re) ocupação48 territorial
ocorridas ao longo do século XIX e XX, é anacronicamente utilizada para caracterizar aquele
espaço já no século XIX. A emancipação, em relação à Guarapuava, ocorre apenas em 1914,
com o nome de Município de Vila Iguaçu. Sua nomeação como Foz do Iguaçu ocorre através
de lei municipal, em 1918. Apesar dessa sequência de transformações, ao se referir aquele
espaço, tradicionalmente, a historiografia o nomeia como Foz do Iguaçu, numa apropriação do
passado pelo presente.49 Tal atitude, intencionalmente ou não, constrói uma densidade temporal
para a identidade da cidade, o que evita rupturas e gera continuidades na memória oficial que
não necessariamente condizem com o processo histórico. Afinal, como afirma Pollack (1992),
47
Tanto Freitag (2007) quanto Myskiw (2009) apresentam um conjunto significativo de fontes produzidas por
viajantes e burocratas que visitaram ou trabalharam na região e na Colônia Militar de Foz do Iguaçu. Assim, se o
período anterior à implantação da Colônia Militar é relativamente desprovido de fontes escritas testemunhais, o
processo de implantação da Colônia é bem documentado.
48
Utilizamos o conceito de (re)ocupação a partir do diálogo com as discussões de Freitag (2007), as quais apontam
a construção de um discurso de vazio demográfico no oeste paranaense do século XIX como forma de legitimar a
ocupação e exploração dessas terras por novos grupos de ocupação.
49
Freitag (2007), Catta (2009), Wachowicz (1982) e Myskiw (2009).
112
a memória é dimensão importante, tanto da identidade individual quanto coletiva ao gerar e/ou
consolidar sentidos de continuidade para grupos e/ou indivíduos.
No mesmo sentido, em nenhum momento Wachowicz (1982) narra o processo de
afastamento ou ruptura regional entre o oeste paranaense – por ele caracterizado – e a região de
Guarapuava. O processo de regionalização elaborado se constrói sincronicamente e num
movimento de nova colonização do passado pelas preocupações do presente. As obrages,50 que
seriam a característica distintiva daquela região, foram a saída epistemológica encontrada para
o problema. O próprio Wachowicz afirma: “O primeiro grande problema foi encontrar uma
resposta adequada à indagação: como realizar e enfocar a história de uma micro-região, dentro
de uma região do Estado do Paraná?” (WACHOWICZ, 1982, p. 9). Não esqueçamos que este
trabalho não surge de uma preocupação orgânica de historiadores ou da comunidade local ou
da emergência de fontes sobre um problema histórico, formas comuns de construção de
problemáticas historiográficas. Temos, aqui, um agente “externo”, a Itaipu, empresa binacional,
preocupada em construir uma história sobre a espacialidade por ela atingida. Oras, essa é uma
problemática do presente da Itaipu, não necessariamente uma problemática orgânica para a
historicidade das populações que vivem próximas ou dentro de sua área de impacto. O problema
colocado não é um problema da historiografia, do historiador ou da comunidade, mas a tentativa
premeditada da Itaipu em construir uma identidade para aquela espacialidade.
O que acontece é a tentativa de substituição da diacronia por uma sincronia narrativa
que impede a percepção da processualidade política daquela região. O mesmo problema será
percebido em outros textos. Os processos político, econômico e cultural são submetidos a uma
construção identitária que parte do presente e sobrepuja o passado com suas preocupações e
delimitações.
A identidade construída e incentivada por instâncias oficiais tem como objeto central a
convivência harmoniosa entre as diferentes culturas que habitam a fronteira. Sejam árabes,
chineses ou indígenas - no século XIX – a marca das relações é, ou assim é narrado, a harmonia.
Apesar de nenhuma das fontes oficiais trabalhadas acima citar, mesmo que brevemente, os
indígenas como grupo étnico-cultural importante na miríade multicultural que forma Foz do
Iguaçu, Wachowicz aponta a importância e volume dessa população ainda durante o sistema de
obrages:
50
Sistema de organização da exploração da erva-mate baseado na grande propriedade e na exploração da mão de
obra barata dos mensus, trabalhadores parcamente remunerados e, em grande parte, provenientes do leste
paraguaio. Em muitos casos, viviam em situações precárias, com os obrageros – proprietário da obrage – que
utilizavam de dívidas para controlar esses trabalhadores.
113
Em consequência, o guarani moderno, que escapou dos paulistas e dos colonos
paraguaios, caía novamente nas mãos ávidas de grandes e fáceis lucros dos obrageros.
Eram, portanto, grupos ainda indígenas, que conservavam muitas de suas tradições,
mas que não viviam mais em regime tribal. O conflito entre índios e civilizados deu
lugar a um modus vivendi que permitiu as populações indígenas sobreviver e
conservar vários aspectos de sua cultura tradicional (WACHOWICZ, 1982, p. 47).
A fronteira foi a possibilidade de fuga para tais indígenas. A escravização por parte de
paulistas – note-se sua não caracterização como brasileiros – e paraguaios obrigou essa
população a “escapar” em direção à fronteira onde “não resistia mais a moda antiga, não agredia
fisicamente e não fugia”. Calejados pelos tensos contatos culturais daquele espaço, “se fez
pronto” para a convivência “harmoniosa” ou, pelo menos, “pacífica”, com os novos
“opressores”. Assim, quando chega o argentino obragero que, como elemento externo à
fronteira, a qual deseja explorar, é equiparado aos paulistas e paraguaios opressores, ele pode
servir de mão-de-obra para a exploração da natureza. Mas se o argentino é opressor, ávido por
lucros, a capacidade de adaptação dos “guaranis modernos” permite a sobrevivência física e
cultural desse grupo. Em meio a contradições e a relações que, em muitos casos, se contradizem
em poucas linhas, Wachowicz constrói a fronteira como o espaço da convivência cultural, da
sobrevivência dos diferentes. Sem, entretanto, perder de vista seu tipo ideal colonizatório.
Ao abordar a estruturação das obrages, no norte argentino e no oeste do Paraná,
Wachowicz, quando lido a contrapelo, deixa transparecer seu modelo de colonização ideal para
aquela região:
A chamada obrage foi uma propriedade e/ou exploração típica das regiões abertas de
matas subtropicais, em território argentino ou paraguaio. O interesse fundamental de
um obragero não era a colonização em regime de pequena ou média propriedade,
nem o povoamento de suas vastas terras. Seu objetivo precípuo era a extração da erva
mate, nativa da região, bem como da madeira em toras, abundante na mata nativa,
subtropical. A obrage portanto estava ligada ao binômio extrativista: mate-madeira
(WACHOWICZ, 1982, p. 44) [grifo nosso].
Ao construir sua narrativa de forma negativa, através do destaque daquilo que o
obragero não almeja, permite perceber o projeto idealizado por ele mesmo. Através da ausência
de projeto de colonização e, de maneira bastante específica, de colonização em pequenas
propriedades, Wachowicz evidencia, nas entrelinhas, sua concordância tácita com o modelo de
(re)ocupação da região implantada, ao longo da primeira e segunda metade do século XX.
Como já afirmamos, este texto foi financiado por um convênio bancado pela Itaipu
Binacional com a universidade na qual o autor trabalhava, a UFPR. Sendo assim, sua
concordância com tal modelo de colonização vinha ao encontro dos interesses da empresa
financiadora de construir uma história regional pacificada e pacificadora. O financiamento de
114
Itaipu, ao invés de indicar um processo de “compra de opinião”, aponta muito mais para uma
coincidência de interesses e interpretações da história local. Ambos percebiam essa região de
forma semelhante. Seus discursos apontavam na mesma direção. Omite-se, da narrativa, os
tensionamentos mais profundos existentes naquele espaço, seja de cunho cultural, econômico
ou político. Havia o ganho, por parte da Itaipu, de construir uma história ao seu interesse, mas
também a interpretação a qual Wachowicz se filiava.
A obra de Wachowicz permite perceber as contradições estabelecidas, historicamente,
entre o discurso de harmonia cultural, que foi possível identificar em textos pós-Itaipu, e
disputas e significações negativas sobre as populações estrangeiras. Diferentes sujeitos, que
narraram suas viagens para o oeste paranaense, denunciaram a presença de estrangeiros naquela
região. Essa denúncia esteve longe de uma perspectiva de harmonia cultural. Estava calcada
num ideal de nacionalização das fronteiras e do que Samuel Klauck e Andressa Szekut
denomina, apoiado em Demétrio Magnoli (1997), criação, delimitação e demonstração do corpo
da nação (KLAUCK e SZEKUT, 2012).
Nesse sentido, ao abordar a presença de estrangeiros no oeste paranaense, a ótica é
sempre a da exploração, sempre negativa. Vejamos como se refere a um grupo de trabalhadores
paraguaios que se encontraram com a expedição do capitão Belarmino, em 1888:51
Enquanto faziam a roça e construíam um depósito, outra vez tiveram uma grande
surpresa. Apareceu uma turma de paraguaios, interessada na procura de erva mate.
Esse fato impressionou ao capitão Belarmino. A expedição estava a mais de 100 km
das barrancas do rio Paraná, e já o estrangeiro, aproveitava-se da picada aberta pelo
grupo vanguardeiro e estava predando as riquezas da floresta brasileira. O capitão
Belarmino impediu que o grupo estrangeiro prosseguisse no seu intento, explicando
que não mais lhes era permitida a exploração do mate em território brasileiro, a não
ser se convenientemente autorizada pelo governo do país (Wachowicz, 1982, p. 23)
[grifo nosso].
Todo esse texto é uma paráfrase do relatório original publicado, em 1977, pelo Instituto
Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense. Tal paráfrase não é, de maneira nenhuma,
problematizada pelo autor antes ou depois de sua inserção. Esse fato nos leva a considerar esta
uma posição em que o autor, ao relatar um fato, concorda ou, pelo menos não discorda, das
categorias utilizadas para pensá-lo. Faz-se necessário, então, pensar as categorias utilizadas
nesse excerto. Primeiro, chama a atenção a forte ênfase em destacar os grupos que se encontram
com base em suas nacionalidades. Assim, ao invés de “trabalhadores”, “homens”, “pessoas”,
ou mesmo “mensus”, a nomeação do grupo encontrado se faz pela sua etnia. Tal escolha de
51
O capitão Belarmino foi o comandante da missão oficial de fundação da colônia militar na Foz do Iguassú.
Também foi o redator do plano de colonização e criação da localidade.
115
palavras denota a preocupação do autor do original e permite, também, perceber a preocupação
de Wachowicz em seu momento de escrita. Tanto para um quanto para outro, mesmo que por
motivos e dimensões temporais distintos, a preocupação com a nacionalidade é central.
Enquanto Brito, autor do texto original, estava inserido num contexto de busca do controle da
fronteira e demarcação da presença brasileira frente ao “aproveitamento” dos estrangeiros,
Wachowicz, já em outro contexto, reproduz categorias negativas para essa presença.
A escrita de Brito,52 trazida por Wachowicz (1982), é produzida em um contexto de
busca de ocupação daquele espaço pelo Estado brasileiro. Entretanto, esse território fronteiriço
era habitado, majoritariamente, por populações estrangeiras. Vejamos:
Nesta oportunidade, a penetração estrangeira na margem esquerda do rio Paraná já
atingia o rio Ocoí e era composta por uma percentagem irrisória de brasileiros. A
população levantada estava assim constituída: paraguaios, 212; argentinos, 95;
brasileiros, 9; franceses, 5; espanhóis, 2; inglês, 1; perfazendo um total de 324
habitantes (WACHOWICZ, 1982, p. 23).
A população local era, em maioria, estrangeira. Muito mais que um espaço brasileiro,
este se constituía numa ocupação “multinacional”. Nisto, é importante destacar duas questões.
Primeiro, a extensão populacional no qual foi realizado esse “censo”. Tal região é muito mais
extensa que a atual Foz do Iguaçu e abrange praticamente toda a costa oeste do estado, a qual
inclui o território entre Guaíra e a atual localização da cidade. Segundo, ocorre a não contagem
de possível população indígena. Não há informações, para além do “guarani moderno”,
utilizado como sinônimo de paraguaio, a respeito de sua presença. Esse contexto de grande
população estrangeira na região, continua até, pelo menos, o início do século XX:
Em 1905, a população civil no território da colônia, era de aproximadamente mil
habitantes. A grande maioria continuava sendo formada de trabalhadores braçais, de
origem paraguaia (guarani) e Argentina. Candido Ferreira de Abreu informa que nesta
data, a população propriamente colonial era composta de 58 famílias, que ocupavam
os lotes distribuídos gratuitamente pela direção da colônia. Desses 58 colonos, 33
eram estrangeiros, 5 solteiros e incapazes para o trabalho e o restante, 20, eram
brasileiros. A finalidade primordial da fixação de colonos na colônia militar, era
estimular o povoamento por brasileiros e proporcionar a produção de gênero
alimentícios.
Dezesseis anos após a expedição do capitão Belarmino, a situação continuava com forte
presença estrangeira.53 Apesar de um expressivo aumento no número de famílias brasileiras, a
Membro da expedição do Capitão Belarmino e autor do texto “Descoberta de Foz do Iguaçu e Fundação da
Colonia Militar” (1977).
53
Importa destacar que todo esse processo de nacionalização e consolidação das fronteiras ocorre durante ou logo
após a resolução de uma série de conflitos territoriais brasileiros. Assim, a fronteira entre o Brasil e o Paraguai,
52
116
presença de estrangeiros continua predominante. Sobre esse sentido negativo atribuído ao
mensú, Szekut afirma:
Esta reflexão nos permite pensar nos discursos de brasilidade que se fixaram sobre a
região, nos quais o mensu não é reconhecido como população adequada para ocupar
a fronteira, e com isso acaba não sendo contabilizado nos discursos oficiais de
ocupação deste espaço. Mesmo após a extinção das obrages, na sua maioria entre
1920 e 1930, os trabalhadores paraguaios são constantemente citados como
colaboradores para o trabalho durante a colonização, tanto pelas colonizadoras como
pelos colonos que chegam a região, mas nestas situações não é visto ou citado como
indivíduo formador do espaço. Esta perspectiva nos remete à questão da seleção para
o enquadramento da memória (KLAUCK e SZEKUT, 2012, p. 38).
Essa perspectiva que coloca o mensu como inapto ou como um sujeito que não serve
para a colonização não está presente apenas no século XIX ou início do século XX. O próprio
Wachowicz, na década de 1980, reproduz tal percepção, idealiza outros colonizadores e
significa, negativamente, a presença daqueles estrangeiros naquela espacialidade.
Tal presença, sob a ótica de nosso trabalho, tem de ser pensada a partir dos contatos
entre essas etnias. Afinal, mais que demarcar a existência de diferentes povos naquela região e,
hoje, em Foz do Iguaçu, interessa-nos pensar seus contatos que produzem, ou não, relações de
interculturalidade. Quando se propõe a falar sobre essa questão, Wachowicz “escorrega” de
maneira relevante em suas análises. Nesse “escorregar”, será possível perceber como seu lugar
social de produção historiográfica marca seu discurso. Vejamos:
Acreditamos que esse ambiente democrático existente em Foz do Iguaçu no
relacionamento social e de lazer, aplica-se mais ao ambiente dominado pelos poucos
brasileiros que lá habitavam, geralmente pessoas que ocupam cargos públicos,
proprietários de ervais ou exploradores de madeiras. Entretanto, o isolamento em que
vivia a localidade, facilitava o relacionamento entre indivíduos de classe sociais bem
determinadas. Lima Figueiredo constata que as diversões mais populares eram os
bailaricos, ao som de sanfona, onde em promiscuidade dançam pessoas de todas as
castas. Ressalta ainda o referido autor que os brasileiros e suas respectivas famílias,
geralmente, não participavam desse tipo de festas. Mas, neste tipo de bailaricos
dançavam ricos e pobres, patrões e empregados (WACHOWICZ, 1982, p. 40).
Na necessidade de construir uma narrativa que fundamente um processo de construção
de uma memória regional marcada pela harmonia cultural e social, Wachowicz força as fontes
a narrarem uma história diferente das possíveis, em seu texto. Como diria Thompson (1981),
se é impossível ao historiador afirmar a veracidade absoluta do conhecimento historiográfico,
em Guaíra, é resolvida apenas em 1872. A chamada “questão da zona de Palmas”, disputa fronteiriça entre Brasil
e Argentina pelo oeste do Paraná, foi solucionada apenas em 1895, já com a existência da colônia militar nas
proximidades.
117
é, por outro lado, possível perceber desvios e/ou falsificações históricas. Oras, Wachowicz
aponta a existência de um ambiente que, em suas palavras, seria “democrático” entre os
habitantes da região. Essa “democracia” é entendida como a mera convivência entre diferentes
sem problematizar contatos ou a inexistência de diálogo entre os grupos.
Aqui temos a construção de um sentido poderoso para sua narrativa. Antes da chegada
do Estado, do qual a Itaipu é a sua representante, contemporânea ao autor, a categorização da
população local, em sua maioria estrangeira, é bastante negativa. “Turmas de paraguaios”,
“exploradores”, “devastar as riquezas” são categorias utilizadas para caracterizar a presença e
a atuação desses estrangeiros. Temos, na citação acima, uma inversão importante: os brasileiros
teriam uma vivência local “democrática”. Entretanto, o que reforça nosso argumento de que
essa é uma construção anacrônica, feita no bojo de um projeto de reelaboração de memórias, é
que o próprio Wachowicz (1982) desmente sua afirmação poucas linhas depois. Ao afirmar que
as diversões mais populares eram os “bailaricos” e que, retomando Lima Figueiredo, os
brasileiros, geralmente, não participavam dessas atividades, o que vemos construído é uma
evidência, mesmo que não intencional, das divisões de classe e etnias existentes. Como pode
ser democrático um ambiente que exclui ou se exclui da convivência com a maioria da
população residente?
O que vemos, nessa construção narrativa de Wachowicz, é a visibilização de um projeto
de transformação da memória local que visa solidificar uma identidade harmônica para a então
já cidade de Foz do Iguaçu e região. Esse processo foi incentivado, por exemplo, com o
financiamento da obra em tela, pelos desejos de tranquilidade social do empreendimento
binacional que é a Itaipu. Sua chegada consolida em definitivo a fronteira, gera uma presença
maciça do Estado naquela região e, dessa forma, permite a eliminação, pelo menos a nível
oficial, da preocupação com discursos puramente nacionalistas e etnicamente excludentes. Mais
ainda, sua característica binacional, um convênio entre Brasil e Paraguai, demanda a criação de
uma agenda positiva de aceitação étnica.
Assim, o processo de nacionalização da fronteira se efetiva não apenas pela via
populacional, em que pese a chegada de milhares de trabalhadores brasileiros para trabalhar na
obra, mas, principalmente, pela via institucional. A monumental presença de Itaipu, sua
condição de área de segurança nacional e sua própria dimensão física e política dão conta da
nacionalização e liberam as instâncias do discurso para a proposta de integração que escolherá
a ideia de multiculturalidade como eixo central de atuação. Importa destacar que, como nos
lembram Klauck e Szekut (2012), a construção da barragem da Itaipu, na década de 1970, gera
118
uma disputa entre as velhas elites daquele espaço e as novas ligadas ao empreendimento. Logo,
a busca da construção de uma identidade que se quer integradora faz sentido, pois permite
acomodar de maneira eficiente – mesmo que através da invisibilização da disputa – a existência
de diferentes grupos sociais que podem se colocar em igualdade, mesmo que discursiva.
O que temos em Wachowicz (1982) é a obra historiográfica que inaugura, pelo menos
no campo acadêmico, a construção e difusão da ideia da Foz do Iguaçu de harmonia
multicultural. Mais que apenas habitada por diferentes etnias, aquele espaço seria marcado por
uma experiência harmônica de convivência entre culturas e classes sociais variadas. A chegada
da Itaipu e sua proposta intrinsecamente binacional e, portanto, de alguma forma – mesmo que
“imperialista”, pela forma como se estrutura a relação Brasil/Paraguai – forçosamente
integradora, gera uma reconstrução na discursividade sobre o estrangeiro. Sua presença e a sua
participação ativa, através de vultuosos investimentos em propaganda e em construção de
memórias, gerará, no discurso oficial, do qual o autor é tributário e também gerador, um sentido
de harmonia entre as etnias que ali convivem.
A Itaipu Binacional, na obra de Wachowicz surge, sempre nas entrelinhas, como o
elemento finalizador de um processo tardio de nacionalização e garantidor da presença
brasileira na tríplice fronteira. Seria a presença brasileira, até então relativamente esparsa
perante a grande quantidade de estrangeiros, a garantia de harmonia social e cultural. A chegada
da hidrelétrica e todo o seu aparato de construção, gerenciamento e financiamento ocasiona
dois elementos centrais para a criação de uma memória54 de harmonia social e cultural, naquele
espaço. Em primeiro lugar, algo evidente, já na obra de Wachowicz (1982), é que a Itaipu
consolida em definitivo a fronteira política. Seja através de tratados que dividem o rio e suas
águas ao meio entre Brasil e Paraguai, seja através da gigantesca presença do Estado brasileiro
exército, burocracia e o próprio financiamento da obra através de empréstimos ao Paraguai –
pois não caberia mais contestações à delimitação política e geográfica da fronteira.
Um segundo elemento é o grande aumento da população de Foz do Iguaçu com o início
das obras da barragem. Sua população aumenta, exponencialmente, em poucos anos. Tal fato
gera, no mínimo, duas consequências importantes. Por um lado, esse grande número de
habitantes tem de ser acomodado e inserido nas dinâmicas da cidade de alguma forma. Tendo
54
É preciso adiantar ao leitor que esse é um processo de construção de memória e identidade que não
necessariamente condiz com a experiência de diversos grupos sociais que habitam aquele espaço. Como discutem
Klauck e Szekut (2012), através da ideia de patrimônio cultural, essa narrativa não é apropriada e experimentada
por vastos setores de Foz do Iguaçu. Em nosso caso, veremos como estudantes membros da comunidade “unileira”
experimentam tal processo como profundamente marcado pela desigualdade social e cultural.
119
em vista a complexidade da obra, em especial sob a ótica política, tal inserção deveria ocorrer
da maneira mais pacífica possível.
Nesse sentido, se torna útil uma construção identitária urbana que tenha na harmônica
convivência entre etnias, entre população autóctone e migrantes, sua nota principal. Ao mesmo
tempo, cria-se, com a chegada de Itaipu, uma nova elite na cidade geograficamente delimitada
nas chamadas “vilas” construídas por Itaipu55, mas financeira e politicamente influentes na
cidade. Este novo grupo privilegiado– engenheiros, gerentes, administradores e burocratas, em
geral – necessitam ser incorporados à identidade citadina. É nesse momento que uma identidade
daquela fronteira como espaço da diversidade e da harmonia se torna relevante. Tal percepção
aparece já, mesmo que sem tanta ênfase, em Klauck e Szekut (2012):
Além disso, contrapõem dois grupos que tentam impor sua visão de cidade, a elite
“nativa” e a vinculada aos setores de serviços e empregados da Itaipu Binacional. Se,
em um primeiro momento, os outros, fora desse grupo de elite significavam
“problemas”, no decorrer do processo de afirmação de uma nova identidade à cidade,
figuram como elementos positivos, a partir da fixação de que a diversidade
populacional é a riqueza deste espaço (KLAUCK e SZEKUT, 2012, p. 166).
Dessa forma, o surgimento de novos grupos sociais passa a ser incorporado através da
ideia da diversidade. Por fim, mas de maneira alguma não menos importante, temos a
“necessidade” ou utilidade da ideia de harmonia social para aquele contexto histórico. Sendo
construída entre 1975 e 1982, a Itaipu se consolidou em plena ditadura militar. A complexidade
da obra, em aspectos sociais, econômicos, políticos e de engenharia, aliado ao contexto
repressivo nacional e à decretação do município como área de interesse da segurança nacional,56
provocou a busca da construção e consolidação de uma memória e identidade local e regional
com ênfase na inexistência ou silenciamento de conflitos. Como já citado, Myskiw (2009), ao
abordar a obra de Wachowicz, entende a mesma como tributária dessa busca. Focado na
problemática de conflitos agrários naquela região, objeto de estudos de sua dissertação, Myskiw
aponta a necessidade e conveniência do silenciamento dessa problemática pelos autores
contemporâneos e tributários do projeto da Itaipu.
O que fazemos, portanto, é expandir essa argumentação de Myskiw (2009). Não apenas
os conflitos agrários eram silenciados e/ou sistematicamente omitidos, mas também a existência
de conflitos e tensões entre as diferentes nacionalidades que lá habitavam. Mesmo quando
Sobre as vilas B e A ver a dissertação de Renato Muchiuti Aranha “De conjuntos habitacionais a bairros: A
construção e o desmonte das vilas de Itaipu. (1974-2012).
56
Foz do Iguaçu e outros municípios foram nominados Área de Interesse da Segurança Nacional pela lei nº 5.449,
em junho de 1968.
55
120
apresentados, tais conflitos eram narrados como situações pontuais e en passant. A necessidade
da construção de uma memória e identidade harmônica que inibisse ou, ao menos, não
fomentasse conflitos sociais, o aumento populacional e a consolidação da fronteira constituem
uma densidade temporal que nos ajuda a compreender a elaboração, propagação e permanência
em discursos oficiais da narrativa de Foz do Iguaçu enquanto cidade multicultural.
A cidade multicultural e harmônica descrita por Wachowicz é amplamente contestada
na em trabalhos que abordem a tríplice fronteira ou a cidade, especificamente. Souza (2009)
faz um cuidadoso apanhado dessas bibliografias. Toma como problemática a forma como
diferentes historiadores pensaram o desenvolvimento de Foz do Iguaçu. Por um lado, situa
aqueles que pensaram essa cidade como alvo de políticas e atuações estaduais e nacionais. Estes
teceriam o sujeito da história em processos exteriores às relações sociais desenvolvidas em Foz
do Iguaçu. Teriam lido a cidade como alvo de políticas públicas, projetos econômicos e
culturais gestados fora e aplicados na cidade. Dentre eles, Souza (2009) situa Wachowicz
(1982), Catta (2009)57 e Souza (1998) como os principais autores que leem a história de Foz a
partir de um sujeito externo. Em contraposição, a autora se coloca, juntamente com Emilio
Gonzalez (2005), em uma perspectiva que abordaria os processos ocorridos em Foz do Iguaçu
a partir das tramas de relações que comporiam essa processualidade a partir dos sujeitos locais
envolvidos. Assim, a história partiria e seria lida, majoritariamente, a partir de “dentro” e não
apenas através de uma predominância de fatores externos ao controle dos sujeitos da cidade.
Outra forma de aglutinar tais pesquisas e que se faz mais interessante para os objetivos
aqui, seria compor uma “classificação” que leria a história regional e local a partir da forma
como percebe ou silencia os conflitos sociais ali ocorridos. Por um lado, temos um conjunto
de obras “clássicas” sobre a região, através de autores como Ruy Wachowicz (1982), Cecília
Maria Westphalen (1987) e José Augusto Colodel (1988) que narram uma história desprovida
de conflito. Como já dito a respeito de Wachowicz, essas obras silenciam ou, pelo menos, não
evidenciam as relações conflituosas ocorridas. Conflitos sociais, econômicos ou étnicos são
colocados em segundo plano a serviço da construção de uma memória harmônica e sem
rupturas. Por outro lado, já em meados da década de 80 e, em especial, a partir da década de 90,
surgem uma série de trabalhos que abordam a história de Foz do Iguaçu fora da clave da
harmonia. Enfatizam, em diferentes graus, a existência e a permanência, ao longo do tempo, de
diferentes tipos de conflitos.
57
Enquanto D’arc de Souza utiliza para suas análises a dissertação de mestrado de Catta, nós utilizaremos sua tese
de doutorado publicada em livro, em 2009, sob o título “A Face da Desordem: Pobreza e estratégias de
sobrevivência em uma cidade de fronteira (Foz do Iguaçu 1964-1992)”.
121
Apesar da tentativa de superação da perspectiva que narra uma memória harmônica e
pacífica para a cidade, outros historiadores, mesmo ao buscarem narrar conflitos e tensões na
sua construção, não escapam desse discurso. É nessa clave, a da análise da permanência do
sentido de harmonia social, que surge nosso interesse pela obra de Catta (2009). Luiz Eduardo
Catta elabora sua trajetória de pesquisa na pós-graduação através de estudos sobre a cidade de
Foz do Iguaçu e a construção da barragem de Itaipu. Já em sua dissertação intitulada “O
cotidiano de uma fronteira: a perversidade da modernidade”, defendida em 1995 na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), os impactos negativos da construção de Itaipu
emergem como elemento central de suas análises. Para nossa discussão, tomamos como ponto
central sua tese que versa sobre “pobreza e estratégias de sobrevivência” constituídas em uma
cidade – Foz do Iguaçu - de fronteira. Em suas análises, traça como categorias básicas a ideia
de pobreza e a fronteira como lócus de sobrevivência. Sua obra se constitui numa clave muito
distinta da de Wachowicz. Enquanto aquele apresenta o processo de construção de Itaipu sob
uma ótica positiva de consolidação da fronteira que pertence, a partir daquele momento,
inequivocamente, ao Brasil, Catta percebe esse processo sob uma ótica negativa. Suas
discussões, tanto na dissertação quanto em sua tese, agora em tela, percebem o surgimento de
Itaipu como um momento de desarranjo e gerador de conflitos sociais. Assim, afasta-se em
grande medida de uma perspectiva de legitimação da obra de Itaipu para uma perspectiva que,
ao construir um afastamento temporal, metodológico e político, possibilita a construção de
críticas profundas a esse processo.58
Catta constrói a percepção de, ao menos, duas cidades distintas. Uma cidade prévia ao
início das obras de Itaipu e uma Foz do Iguaçu inaugurada a partir dessa experiência. A
característica distintiva dessas duas cidades é marcada a partir da ideia de modernidade,
entendida em seu texto como o processo de urbanização frenética daquele espaço e suas
consequências. Essa suposta modernidade teria tido o gatilho de seu desenvolvimento no
momento em que Foz do Iguaçu se tornou área de segurança nacional e a partir da implantação
do projeto da Usina de Itaipu. Tais eventos teriam rompido a malha de sociabilidades
experimentada a partir de relações “horizontais”. Até então, a sociedade iguaçuense seria
marcada pela ausência de hierarquias sociais profundas. A partir desse momento, profundas
58
É bastante significativa a produção historiográfica e de outros campos do conhecimento que discutem o processo
de construção de Itaipu a partir de uma ótica crítica. Sob essa perspectiva ver: Souza (2009), Maria de Fatima
Ribeiro e sua tese “Memórias do Concreto: Vozes na Construção de Itaipu” publicada em 2002 e Emilio Gonzalez
e sua dissertação “Memórias que narram a cidade: Experiências sociais na constituição urbana de Foz do Iguaçu”,
defendida em 2005.
122
distinções sociais teriam sido implantadas e passariam a compor as sociabilidades urbanas. De
uma sociedade pacata e solidária, a modernização teria tornado a cidade:
Um outro dado preocupante para os setores mais ricos e que tornava a situação ainda
mais grave, à medida que Foz do Iguaçu começava a atrair novos moradores, é que
ela era uma cidade de fronteira, onde a dispersão das pessoas e o individualismo,
exacerbado pela necessidade de novas transações econômicas, eram marcantes
(CATTA, 2009, p. 168) [grifos nossos].
Com ênfase à construção de “novas” relações e populações, o autor estabelece uma
fronteira temporal que delimita um momento de anterioridade – onde essas “novas” situações
não estavam presentes – com um momento posterior – a construção de Itaipu – na qual essa
novidade passa a ser a marca temporal. Assim, de uma idílica Foz do Iguaçu, passamos a uma
cidade “moderna”, individualizada e dispersa, cujos habitantes estavam preocupados apenas
com negócios e dinheiro. Como veremos ao dialogarmos com a tese de Myskiw, tal perspectiva
é equivocada. O processo de povoamento da região que abrigaria Foz do Iguaçu, ainda como
colônia militar, foi amplamente marcado por relações de privilégio, coronelismo e
desigualdades, seja entre estratos sociais, seja por privilégios de nacionalidades.
A própria argumentação de Catta evidencia, de maneira contraditória, uma inexistência
dessa cidade idílica que permeia alguns pontos de sua narrativa. O autor defende a ideia de uma
cidade idílica, proporcionada pela distância de grandes centros urbanos e pela variedade
populacional proporcionada pela fronteira que teria sido rompida pela presença de Itaipu.
Entretanto, em seguida, uma cidade precária, na qual a administração pública privilegiava os
ricos, aparece em sua argumentação:
Apesar de todos os prefeitos terem feito sua própria propaganda querendo mostrar sua
competência na administração pública, fica claro que os recursos disponíveis para
investimentos, eram muito aquém das reais necessidades do município. Entretanto, o
grande problema era que os investimentos não eram feitos, necessariamente, nos
setores mais problemáticos da sociedade, como o saneamento, a saúde e a educação
para a população mais carente. [...] e o que percebemos, a partir dos dados expostos
nos documentos que dispomos, é que a área diretamente ligada a qualidade de vida
dos moradores com menores recursos, era a mais desprezada pelo poder público.
Enfim, a questão não era apenas os baixos valores orçamentários, mas o destino de
sua aplicação (CATTA, 2009, p. 177).
Vemos a reprodução das realidades sociais de desigualdade, privilégios tão comuns no
Brasil e em sociedades capitalistas em geral. Através da expressa contradição em sua narrativa,
o que visualizamos é a construção de uma nova fronteira. Além da fronteira política, cultural e
econômica, o que vemos construído por Catta (2009) é a ideia de uma fronteira temporal que,
ao invés de servir como ponto de encontro, serve como ruptura. Ruptura entre a cidade antiga
123
e a cidade moderna, entre o velho e o novo, entre o idílico e a tensão. A construção de Itaipu
seria a linha fronteiriça que separaria duas temporalidades distintas:
Como a Maurília descrita por Marco Polo à Kublai Khan, em sua viagem pelo oriente,
Foz do Iguaçu, a partir da instauração do projeto Itaipu, tornava-se, definitivamente,
cartão-postal, deixando aquela outra Foz do Iguaçu provinciana na memória dos
moradores mais antigos, que se debatiam entre o novo, representado pela modernidade
e pela perspectiva de grandes lucros, e o velho, quando então se vivia em paz e
tranquilidade, sem os novos personagens tão estranhos que invadiram a cidade, a
criminalidade e a violência. Praticamente a cidade nova não conheceu a velha, pois a
maneira abrupta na qual foi transformada não permitiu que a maioria dos habitantes
tivesse a oportunidade, e mesmo a preocupação, de partilhar os antigos espaços e o
modus vivendi daqueles que a haviam construído (CATTA, 2009, p. 230) [grifo
nosso].
O velho idílico e o novo individualista, a modernidade e o lucro versus a paz e a
tranquilidade. Essas dicotomias constroem uma fronteira narrativa que permeia sua
interpretação da cidade. A velha cidade existe, sobrevive na memória dos antigos moradores e,
gostaríamos de acrescentar, nas narrativas que tomam essa memória como verdade, sem crítica
e sem problematização. No caso de Wachowicz, vemos essa construção de uma região idílica,
praticamente conflitos e harmônica, construída de maneira intencional, dentro da lógica de
elaboração de uma memória e identidade em diálogo com as narrativas elaboradas por Itaipu.
Já no caso de Catta, temos uma leitura historiográfica que se propõe crítica, muito distante ou
até diametralmente oposta aos interesses de Itaipu. Então, o que explicaria tal perspectiva
idílica? Se é difícil entender motivações pessoais a partir de sua obra historiográfica, podemos
pensar, juntamente a Souza, algumas questões a respeito de sua concepção histórica do processo
de formação de Foz do Iguaçu. Assim, a autora afirma, ainda, sobre Catta:
A investigação de Catta (1994) caminhou no sentido de problematizar as
determinações e as consequência desse processo de modernização de Foz do Iguaçu,
entendido como fenômeno característico de uma sociedade marcada pela exploração
do capital sobre o trabalho. Sua leitura acerca das transformações vividas pela cidade
preocupou-se em ressaltar o caráter perverso do processo de crescimento produzido a
partir da construção de Itaipu, que gerou um grande progresso tecnológico para o país,
mas, simultaneamente, engendrou, no espaço urbano de Foz do Iguaçu, a pobreza e o
aprofundamento das desigualdades sociais (SOUZA, 2009, p. 42).
Já na sua dissertação, Catta (2009) discute a formação daquele espaço a partir da
constituição de uma fronteira temporal entre os momentos pós Itaipu e o tempo anterior a esta.
Sua leitura foi construída na argumentação de que a construção da barragem trouxe
consequências perversas para a cidade, tendo contribuído para a sua captura pelo “mercado,
essa entidade que a tudo e a todos transforma em artigo vendável” (CATTA, 2009, p. 14). Em
124
sua tese, essa perspectiva continua e se aprofunda ao apresentar uma sociedade harmônica que
se dissolve com a chegada de Itaipu:
Uma primeira constatação, é que ali os embates protagonizados pela população
autóctone e adventícia, historicamente, tiveram características menos violentas do que
outras fronteiras onde a luta pela posse de terras e riquezas fincaram uma marca
indelével em suas populações. A resistência das autoridades ao trânsito de pessoas de
um lado para o outro foram sempre mais brandas, inexistindo qualquer tipo de controle
em alguns períodos da história. A noção de fronteira enquanto um amplo espaço de
circulação e estabelecimento de grupos de pessoas, sem distinção de nacionalidade,
teve ali um exemplo ímpar (CATTA, 2009, p.15).
Essa afirmação, não embasada em fontes ou bibliografias que pudessem dar sustentação,
constrói uma história regional num sentido muito próximo daquele de Wachowicz (1982). Essa
região teria sido privilegiada por uma conjunção de questões e desenvolvido uma relação social
menos violenta e traumática que outros espaços de fronteira. Entretanto, esquece-se o autor ao
afirmar que ali não haveria “uma marca indelével em suas populações”, resultado da “luta pela
posse de terras e riquezas”, de uma das mais significativas características da população de Foz
do Iguaçu: a quase total ausência de população indígena. Sua inexistência, ou seu pequeno
número, é a marca mais evidente daquilo que Catta não percebe. Agregado a isso, temos a
problemática da grande população descendente de guaranis que vivem na cidade vizinha,
Ciudad Del Este – anteriormente denominada de Presidente Stroessner.
Essa profunda distinção populacional evidencia um processo de forte expulsão da
população indígena do lado brasileiro. O nome do rio é de origem indígena, o nome da barragem
– Itaipu, a pedra que canta – também. Com exceção da obra de Schallemberger (1986),59 essa
população pouco aparece nas memórias locais ou na historiografia. Entretanto, socialmente,
temos uma curiosa combinação: uma cidade de um lado da fronteira com uma população
marcadamente de ascendência indígena e a outra, Foz do Iguaçu, onde esse fenótipo é
praticamente invisível. Tal processo de invisibilização não pode ser visto como pacífico. É
evidência clara da não “harmonia” tão propalada para as relações étnicas em Foz do Iguaçu. A
afirmação de que as relações tiveram “características menos violentas do que outras fronteiras”,
a ausência de estudos comparativos, de fontes históricas ou de discussão bibliográfica que
pudesse dar suporte a tal afirmação nos leva a considerar e a reforçar nossa tese de que Catta
busca, voluntária ou involuntariamente, constituir uma memória harmônica para os tempos
antes de Itaipu, em contraposição ao tempo de conflitos pós-Itaipu.
Schallemberger foi autor de uma dissertação intitulada “As Missões Jesuíticas do Guairá: a defesa do índio no
processo da colonização do Prata” que versava, entre outras coisas, sobre a população indígena da região que se
tornaria Foz do Iguaçu.
59
125
A característica de circulação populacional causada pela “privilegiada” localização
geográfica é reforçada em sua narrativa. O contato e o estranhamento seriam constantes naquela
localidade, no período anterior a construção da usina. É o sujeito de fora, não autóctone, que
constrói as diferenciações entre as nacionalidades. A introdução do livro de Catta (2009) faz
uma discussão que parte de suas percepções pessoais sobre a sociedade que o cerca. Coloca-se,
narrativamente, como o autóctone. Nessa direção, o autor se coloca como personagem dessa
experiência e lê aquela sociedade a partir de suas relações:
E ali, num cenário caleidoscópico de gente, atividades e perspectivas que se
multiplicavam incessantemente, percebíamos no cotidiano, de maneira contraditória,
a dissolução das barreiras culturais, econômicas e sociais, a despeito das imposições
legais, conformando um espaço onde a diversidade, a pluralidade, eram percebidas e
vivenciadas por todos indistintamente (CATTA, 2009, p.15).
A pluralidade e diversidade não apenas poderiam, como efetivamente seriam
experimentadas por todos de maneira indistinta. Nega, ou ao menos silencia, a existência de
qualquer tipo de preconceito, barreira ou fronteira que não as legais e impostas pelo Estado para
as experiências e vivências dos sujeitos que habitavam não apenas Foz do Iguaçu, mas toda a
região da tríplice fronteira. Este processo começa a se encerrar a partir da chegada de novos
moradores:
Se essa presença e essa íntima relação moldaram um olhar desarmado a respeito do
“outro” entre os habitantes mais antigos, as gerações que foram ali se estabelecendo
em períodos mais recentes, permeadas por interesses econômicos bastante concretos,
como a aquisição e a exploração de terras, a exploração da atividade turística e
comercial, construíram diferenciações entre os moradores de cada país, que podiam
ser abrandadas conforme o interesse imediato dos envolvidos (CATTA, 2009, p.16).
A fronteira traçada entre os “habitantes mais antigos” e “as gerações que foram ali se
estabelecendo” é clara e definida pelas suas relações com os “outros”. A harmonia existente
teria sido perturbada por essas novas gerações que teriam objetivos econômicos e sociais
bastante definidos, “concretos”, e, portanto, submeteriam a harmonia das relações sociais e
culturais a seus próprios interesses. Novamente, temos um posicionamento que reproduz o
discurso oficial de harmonia social e cultural na região. Mesmo que perceba a erupção de
tensões e conflitos, os mesmos são construídos por outros, não pelos verdadeiros moradores.
Esses seriam capazes de viver em harmonia, a qual teria sido rompida pelos novos, pelos
migrantes, pelas “populações adventícias”. Vejamos como o autor justifica essa vivência
harmônica por parte dos habitantes antes da Itaipu:
126
Como Foz do Iguaçu se encontrava à margem dos centros dinâmicos da economia
nacional até os últimos anos da década de 60, e o modelo de exploração capitalista da
terra, com toda sua violência, ali ainda não havia sido implantado em larga escala,
isso fez com que sua população não estabelecesse entre si distinções sociais lastreadas
nos bens pessoais, na maior ou menor posse de capitais. Ou seja, ainda não estava
marcada por uma nítida distinção entre aqueles que mais possuíam bens e aqueles que
se viam desprovidos dos mesmos (CATTA, 2009).
Aqui a ambição de consonância supera as questões culturais. Constrói uma sociedade
harmônica em todos as suas dimensões. Diferenças ou conflitos de classe, etnia e/ou gênero não
são demarcados. É a exploração capitalista da terra, surgida a partir da década de 70,
principalmente com Itaipu, que impõe esses conflitos. Os habitantes anteriores viviam quase
num mito de harmonia e tranquilidade, um éden fronteiriço de difícil sobrevivência para um
olhar mais apurado. Outros autores como Myskiw (2009), Liliane Freitag (2007), Souza (2009)
e Gonzalez (2005) têm questionado essa imagem ao apresentar e problematizar conflitos sociais
e culturais que constituem elemento central para o entendimento do processo histórico de
formação da região e da cidade.
Tanto Catta (2009) quanto Wachowicz (1982) estabelecem uma relação com a história
da região de Foz do Iguaçu por diferentes motivos, a qual leva a construção e consolidação de
um discurso que, como já argumentamos, tem sido utilizado por instâncias oficiais ou por
grupos econômicos para legitimar uma identidade de harmonia multicultural para aquela
cidade. Wachowicz estabelece uma relação de pesquisa que toma como recorte o período que
vai da fundação da colônia militar de Vila Iguassú até a construção da barragem de Itaipu e
lança, dessa forma, um olhar historiográfico sobre esse período, o que produz, a partir disso,
um silenciamento dos conflitos. Sua pesquisa esquece ou não enfoca diferentes relações
conflituosas estabelecidas naquele espaço. Vimos como, nas entrelinhas de seu texto, em
diferentes momentos, tais eventos emergem. Já Catta estabelece outra relação com esse tempo
histórico. No caso dele, não há pesquisa com fontes a respeito de períodos anteriores à década
de 60.
Na análise de Catta (2009), se constituem dois estratos temporais distintos. Primeiro,
aquele da crítica de Itaipu, amplamente dominante na historiografia a partir da segunda metade
da década de 80. Nessa senda, estabelece uma leitura profundamente crítica. Em alguns pontos,
ao atribuir à barragem e às relações dela provenientes a origem de praticamente todo o “mal”
existente na cidade, cai num exagero idealista. Um segundo estrato do tempo é aquele da
permanência discursiva da ideia de harmonia social. Se reconhece e evidencia a existência de
conflitos sociais em torno das relações de pobreza e riqueza estabelecidas na cidade de Foz do
Iguaçu ao se posicionar criticamente a esse processo, assume o discurso da harmonia absoluta
127
existente antes da Itaipu. Após a construção da mesma, somente sobra a harmonia étnica,
fragilizada constantemente pelo grande afluxo de pessoas de fora da cidade. Dessa forma, Catta
faz conviver, em sua narrativa, estratos temporais distintos. Um da ruptura crítica com o poder
local e outro da continuidade narrativa dos discursos de harmonia elaborados a partir dos
interesses desses mesmos poderes.
Se pensarmos essa questão, a partir da ideia de estratos do tempo, a narrativa de Catta
(2009), para o período antes de Itaipu, faz emergir diferentes dimensões da historicidade de Foz
do Iguaçu. Se todo historiador é filho de seu tempo, suas análises não são apenas carregadas de
teoria e metodologia, mas também de diálogo com o meio que o cerca. Assim, nos cabe buscar
perceber que conjunto de historicidades emergem em sua fala, bem como de que forma essas
questões se articulam na relação com a memória local oficial.
Em primeiro lugar, Catta (2009) tem uma hipótese bastante evidente: a Itaipu Binacional
seria o momento inicial dos problemas que ele detecta na cidade. Se não fosse esse o caso,
poderia ter lançado mão de diferentes conjuntos de fontes históricas disponíveis para perceber
e evidenciar que a Itaipu não é o ponto de surgimento da violência, do conflito e da pobreza na
região. Sem dúvida, a explosão demográfica e um conjunto de questões trazidas pela Itaipu
aprofundam esses problemas. Entretanto, como já vimos através das entrelinhas de Wachowicz
e ainda veremos através de Myskiw (2009), a violência, a pobreza e demais problemas são
partes constantes na história de Foz do Iguaçu. O que vemos, neste autor, é que, no anseio de
evidenciar os problemas causados por Itaipu, silencia, para maior efeito narrativo através da
comparação, qualquer problema existente antes. Ao silenciar e mesmo negar conflitos e tensões
existentes na cidade antes da obra de Itaipu, Catta consegue um maior efeito ao narrar
problemas que, segundo ele, são causados pela vinda da Itaipu para a cidade.
Ao “carregar nas tintas” sobre os problemas trazidos pela construção da barragem, Catta
acaba por coincidir suas análises aos interesses de membros da elite tradicional da cidade,
interessados em desconstruir a imagem da nova “elite tecnocrata”,60 proveniente da Itaipu.
Nesta perspectiva, aparece como reprodutor de uma memória local que identifica, na Itaipu, a
causa de todos os males. Memória esta produzida e incentivada pelas tradicionais classes
dominantes que veem ou viam, na Itaipu, e em seu corpo tecnocrático, uma ameaça a sua
posição de dominação na cidade. Assim, apontar a Itaipu como a origem dos problemas do
município fragilizaria esse grupo outsider, o que favorece as elites tradicionais em busca pelo
poder.
60
Para uma discussão sobre essas elites de Foz do Iguaçu, ver Souza (2009).
128
É a partir de fins da década de 90 e, principalmente, nos anos 2000 que emerge, na
historiografia, uma série de trabalhos que buscam repensar a história da região da tríplice
fronteira e de Foz do Iguaçu. Grande parte desses trabalhos - aqui dialogamos apenas com teses
– se concentram ao redor de dois tempos/momentos centrais. Um primeiro conjunto de
trabalhos tem se concentrado em discutir o processo de (re)ocupação,61 seja através da análise
da implantação de projetos como os das colônias militares em fins do século XIX, seja a partir
dos movimentos de migração incentivados pelo Estado, especialmente a partir da década de
1930. Outro momento central é o processo de transformações econômicas e sociais ocorridas
na já cidade de Foz do Iguaçu, a partir da construção da hidroelétrica de Itaipu, em fins da
década de 1970. Problemáticas centradas em relações de trabalho, moradia e diferentes formas
de tensões sociais utilizam, em geral, esse marco histórico como momentos iniciais de seus
trabalhos.
Buscamos, até aqui, perceber como historiadores e suas obras agiram enquanto
elaboradores ou reprodutores de discursos de multiculturalidade e harmonia entre etnias na
região e na cidade de Foz do Iguaçu. Vimos como Wachowicz e Catta agiram, de diferentes
formas. Interessa-nos, agora, perceber se e como esta problemática tem sido trabalhada por esse
novo conjunto de obras que já apontamos. Dentre as possibilidades apresentadas por essas
novas obras, optamos por trabalhar com a tese de Myskiw, A Fronteira como Destino de
Viagem: A Colônia Militar de Foz do Iguaçu (1888/1907) (2009). Trabalho de fôlego, que
discute um arcabouço de fontes, em especial relatos de viajantes ou de membros da
administração da colônia, bastante significativo sobre a formação da Colônia Militar.
Antes, faz-se necessário um apontamento a respeito do título e mesmo da construção da
narrativa dessa e de outras obras sobre a região. O nome “Foz do Iguaçu”, que se remete a uma
característica geográfica do local, só foi adotado, oficialmente, pelo município a partir de 1918.
A época de sua criação, a nomenclatura utilizada era “Colônia Militar da Foz do Iguassú”. Esta
nomenclatura remetia a sua posição geográfica que ficava localizada na foz do rio Iguaçu –
Iguassú, na grafia de fins do XIX. Longe de um debate puramente gramatical ou uma disputa
pela “verdadeira” grafia do nome, o que queremos é pensar nas implicações históricas e
identitárias destas nomenclaturas.
61
Para a ideia de (re)ocupação, ver Freitag (2007). Nesse trabalho, a autora explora os discursos elaboradores de
uma ideia de região para o oeste paranaense. Denuncia o chamado “vazio demográfico” e aponta que a ocupação
daquele espaço que, ao longo do século XX, se deu a partir da expulsão ou invisibilização de outras populações
ocupantes. Daí a ideia de (re)ocupação em detrimento da simples ideia de ocupação de um espaço vazio.
129
A criação da colônia, em 1889, foi seguida, em 1912, por sua mudança para a categoria
de distrito de Guarapuava sob o nome de Vila Iguassú, transformada em município, em 1914.
Sua mudança de nomenclatura ocorreu posteriormente. O que percebemos, através dessa
questão, é que a utilização da nomenclatura atual para a nomeação da colônia gera ou reproduz,
intencionalmente ou não, um sentido de continuidade que pode ser entendido como teleológico
para a história daquela localidade – onde o nome atual é colocado para o início da colonização.
Ao nomear a colônia da mesma forma que a cidade atual constitui uma perspectiva de que
aquele empreendimento colonizatório estaria determinado a se tornar a Foz do Iguaçu de hoje.
A cidade contemporânea é utilizada para ler aquele tempo, seja através de sua
localização geográfica, a partir da qual é determinado o recorte para os estudos da história de
Foz do Iguaçu, seja através da nomenclatura. Produzem um sentido de que a colônia estava
determinada a ser Foz do Iguaçu. Essa é uma problemática presente em todos os textos
pesquisados para esta tese. Não pretendemos inferir uma intencionalidade a esses autores na
reprodução desses sentidos. Vários deles se postam claramente em oposição aos sentidos de
continuidade, teleologia e harmonia criadas pela historiografia tradicional. Mas mesmo
propostas de rupturas e inauguração de novas perspectivas historiográficas se constituem
também a partir de continuidades. Como discutido na apresentação, não pensamos a história
apenas a partir de rupturas, mas numa dinâmica constante de transformação, rupturas e
continuidades. São esses estratos de repetibilidade que gostaríamos de apontar, nesse momento.
Evidencia-se uma perspectiva que é cara à História do Tempo Presente, a contemporaneidade
do não contemporâneo ou a densidade temporal do presente, também já abordadas. O tempo
presente não se constitui como novidade absoluta, mas a partir de um passado denso que é
significado e ressignificado constantemente à luz dos espaços de experiência e horizontes de
expectativas dos sujeitos em relação, o que gera as novidades históricas e também os estratos
de repetibilidade.
Estas questões devem ser percebidas ao trabalhar com as fontes historiográficas sobre
Foz do Iguaçu, a fim de não cairmos no engano de que a mesma se constitui como uma ruptura
total com as historicidades nas quais está, de diferentes formas, inserida. Neste sentido, o texto
de Myskiw apresenta avanços importantes na desconstrução da narrativa oficial de
multiculturalidade e harmonia social e cultural. Optamos pela utilização deste texto em
detrimento de outros possíveis porque o mesmo aborda, a partir de relatos de viajantes e
burocratas da Colônia Militar, um período que se tornou fundamental para a memória e a
identidade oficial dessa cidade. Já vimos como instâncias oficiais utilizam a década de 1880
130
como marco da ocupação da localidade. Essa ocupação seria intrinsecamente multicultural,
visto que foi “inaugurada” pela presença de um espanhol e um brasileiro. Assim, o estudo de
Myskiw (2009) nos permite perceber e desconstruir esta percepção sobre a região, bem como
relocalizar processos históricos e experiências de habitantes daquela fronteira. Vejamos como
Myskiw aborda a construção da Colônia Militar.
Tal como para Frederick Turner, ao trabalhar, ainda no século XIX, a expansão da
fronteira americana a oeste, a narrativa de fronteira nos relatos de viagem trabalhados por
Myskiw (2009) produzem um movimento de constante expansão da fronteira. É um constante
mover na fronteira em direção oeste, ao rio Paraná. Desde a fundação de Guarapuava, ainda no
início do século XIX, essa localidade se encontra no “extremo oeste” do “território ocupado” –
destaca-se, através das aspas, a evidenciação da vasta ocupação populacional do território a
oeste de Guarapuava, seja por indígenas, por agricultores, exploradores de erva-mate ou mesmo
por outros tipos de colonização, inclusive de estrangeiros – em que todo o território a oeste
ficava no “sertão” paranaense. Os constantes projetos de expansão ou de tentativas de
“empurrar” a fronteira em direção ao Rio Paraná buscavam colonizar ou inserir essa região no
território brasileiro.
O autor argumenta que essa região, considerada um “vazio civilizacional” pelo governo
brasileiro, era percebida de outras maneiras por outros grupos sociais. Assim, para argentinos e
paraguaios, esse espaço era local de exploração de erva-mate, de lucro com o comércio, de
exploração de mão-de-obra indígena e cabocla. Também os diferentes grupos indígenas viam
esse espaço de maneira diferente. Na fala de José Francisco (apud MYSKIW, 2009), “Aquele
velho me contou que os guaranys, de quem eles muito se temem, vieram dos lados do Paraguay;
[...] disse mais, que os guaranys trabalhavam para as gentes do outro lado do rio Iguassú, que
têm casas, andam caminhando com fogo por cima d’água (barco a vapor).”62
Assim, para os Kaigangs – que habitavam o centro do estado e, a partir da ocupação da
região por colonizadores, eram empurrados em direção ao interior e à fronteira – o espaço em
direção ao Rio Paraná era espaço de disputa e medo. Ali se formava uma fronteira em disputa
pelos indígenas, com pouca ou nenhuma interferência do Estado brasileiro. Ao mesmo tempo,
os Guaranis, do norte do Paraguai, tinham, nessa região, um espaço de expansão, tanto a partir
do uso de sua mão-de-obra a serviço de argentinos e paraguaios quanto de expansão territorial
62
José Francisco Thomaz do Nascimento, 1886. Viagem feita por José Francisco Thomaz do Nascimento pelos
desconhecidos sertões de Guarapuava, Provincia do Paraná, e relações que teve com os indios coroados mais
bravios daquelles lugares. Revista Trimensal do Instituto Historico Geographico e Ethnographico do Brazil, tomo
XLIX, 267-281.
131
às custas dos Kaigangs. Expansão essa que podia ser motivada tanto por uma busca de novos
territórios quanto pelas fugas dos processos colonizatórios que ocorriam naqueles países. Nesse
sentido, o autor afirma:
Os argentinos e brasileiros acima citados davam pouca (ou nenhuma) importância aos
limites territoriais então existentes na visão do governo brasileiro (que se
materializavam nos rios Paraná, Iguaçu, Santo Antonio e Pepiri-Guaçu). Os rios, que
perante os governos eram utilizados para separar territórios nacionais, serviam para
criar e reforçar os laços de amizade e comércio entre pessoas de diferentes
nacionalidades. Isso mostra que a fronteira era um lugar de oportunidades distintas.
Para uns, lugar para trabalhar na extração de erva-mate e madeira; para outros, lugar
para explorar a mão-de-obra indígena; para outros, ainda, de um lugar em que a
exploração ilegal das florestas facultava riqueza e status social (MYSKIW, 2009).
Já para os militares responsáveis por abrir a picada em direção à margem esquerda do
Rio Paraná, a fronteira era causa de medo, insegurança, mas também de possibilidades
profissionais. Assim, o receio de ataques de indígenas ou mesmo de feras que habitassem as
matas em direção ao oeste conviviam com a possibilidade de significativas bonificações
salariais e títulos de posse de terra na colônia militar, bem como a possibilidade de ascensão na
hierarquia militar (MYSKIW, 2009, p.118-123).
Entre a intenção e o projeto do Estado se inserem e se interpõem as vivências,
experiências, táticas e estratégias dos diferentes agentes do processo. Ao discutir a formação da
colônia, ainda na década de 1890, Myskiw aponta que era objetivo do Estado brasileiro a
formação de uma colônia que pudesse servir de ponta de lança da colonização do oeste
paranaense ou, no mínimo, de local estratégico para a defesa da fronteira ante o Paraguai e a
Argentina. Para tanto, o Estado buscava, através de diversos mecanismos – da distribuição de
terra à tentativa de dificultar a extração de erva-mate e madeira – formar uma colônia
autossustentável ou pelo menos relativamente autônoma. Os habitantes locais construíram
diferentes estratégias e táticas de sobrevivência que visavam um melhor atendimento de seus
anseios locais. Vejamos, de início, uma citação de Torres Homem:
Viviam ou procuravam viver só dos recursos fornecidos pelo Estado para a verba da
Colônia, quer empregando-se ao serviço d’esta como operários, quer obtendo
empreitadas ou encomendas de trabalho particular e livre, quer finalmente
conseguindo vale de fornecimentos para o comércio, como os que vi e cujo
fundamento não me foi satisfatoriamente explicado, afora os dons gratuitos que me
disse o Sr. Tenente Ajudante dever a administração proporcionar aos colonos pobres
(TORRES HOMEM apud MYSKIW, 2009, p. 157).
Recursos destinados para a manutenção da colônia eram apropriados pela população
local de forma diferente do disposto, originalmente. O trabalho de pecuária e agricultura, que
132
seria essencial para a sobrevivência e autonomia daquele espaço, era relegado em função da
participação em trabalhos organizados pelo poder público local como empreitadas ou outras
encomendas do Estado ou privadas. Dessa forma, a população local atualiza, na prática, a vida
na fronteira. O espaço de defesa nacional passa (ou contínua) a ser espaço de estratégias de
sobrevivência e de vivências diversas. Ao mesmo tempo, o próprio poder público local tem de
se adequar às formas de vida e às especificidades das práticas daquela espacialidade. Assim
vejamos:
A extração de erva-mate e madeira das matas próximas à Colônia Militar, assim como
a comercialização junto a mercadores argentinos e paraguaios não era a única forma
de sobrevivência dos colonos matriculados. Muitos colonos abandonaram a lide
agrícola e pecuária para se dedicarem aos trabalhos a particulares e à Colônia Militar,
mediante pagamento em dinheiro ou em vale mercadorias para serem gastos quando
da passagem dos vapores argentinos pelo porto Francês. Ambas as estratégias de
sobrevivência, criticadas pelo coronel Torres Homem, foram os caminhos
encontrados pelo tenente Edmundo de Barros para segurar, atrair e motivar os colonos
a permanecerem na Colônia Militar de Foz do Iguaçu (MYSKIW, 2009, p. 158).
O próprio Estado, na figura do Tenente Edmundo de Barros – que teve sua
administração bastante criticada por agentes do Estado posteriores – passa a reconhecer e a
utilizar as especificidades da vida na fronteira como forma de consolidar o empreendimento
estatal. A fronteira e as possibilidades de comércio constituídas surgem como desvio de função,
mas também como a possibilidade de salvação do empreendimento colonizador.
A consolidação dessas formas de vida leva o coronel Torres Homem a afirmar a
necessidade de uma reorganização daquele espaço, isto, é, sua transformação em uma
localidade extrativista: “encará-la, porém como um centro de indústria extrativa de madeira e
erva-mate, de real importância, oferecendo elementos bastantes para concorrer aos mercados
platinos, por via do rio Paraná” (TORRES HOMEM apud MYSKYW, 2009, p. 161).
Não apenas os civis construíam estratégias de sobrevivência na fronteira diferentes
daquelas propostas pelo planejamento estatal. Os próprios militares, principalmente a partir de
1900, elaboravam formas de enriquecimento naquele espaço. As experiências fronteiriças
acabam por serem vistas como a forma privilegiada de existência da colônia. De espaço de
defesa através da autonomia, a integração é que geraria a possibilidade de sobrevivência e de
colonização daquela espacialidade.
Através da visualização desse conjunto de táticas e estratégias construídas na
experiência da vida na fronteira, já nos é possível perceber a existência de desencontros e
tensionamentos entre os objetivos do Estado e as práticas cotidianas dos sujeitos. Dentro de
uma perspectiva linear de desenvolvimento e harmonia, como a apresentada por Wachowicz
133
(1982), essas questões não foram apresentadas ou, quando o são, apareceram sob a ótica da
corrupção, do desvio e da ilegalidade. Não questionamos a moralidade, legalidade ou a retidão
das práticas. Interessa-nos entender como a chave de leitura – a corrupção ou a ideia de táticas
– constrói significados para a memória e a identidade oficial daquele espaço. Wachowicz (1982)
apresenta esse comportamento como desviante e pontual sem fazer parte da narrativa oficial
dos “heróis” fundadores e “pioneiros” da formação de Foz do Iguaçu. Myskiw, ao abordar esses
comportamentos como relações constantes nas práticas sociais dos indivíduos, insere essas
relações no cotidiano da fronteira. Na sua interpretação, ao invés de corrupção, esses atos são
percebidos como diferentes formas de inserção naquela sociedade.
Da mesma maneira que insere a dinâmica das táticas e estratégias como elemento para
a compreensão das práticas dos sujeitos, Myskiw (2009), juntamente com outros autores,
enfatiza um conjunto de conflitos e tensionamentos existentes nas relações sociais existentes.
É recorrente, em seu texto, a evidenciação de conflitos, bem como a busca pela compreensão
desses tensionamentos. Em suas considerações finais, ele apresenta um diagnóstico interessante
sobre a história da Colônia Militar. Vejamos:
A trágica história de uma Colônia Militar. Esse poderia ser outro título deste estudo
sobre a Colônia Militar de Foz do Iguaçu, fundada oficialmente em 1892 e extinta em
1910. O cruzamento de diferentes tipologias documentais acabou por evidenciar que
o deslocamento humano com o intuito de abrir uma nova fronteira rumo a Oeste do
território paranaense em fins do século XIX se fez acompanhar de dificuldades
econômicas, isolamento geográfico, tensões sociais, disputas pelo poder e conflitos
agrários. No entanto, as diferentes estratégias utilizadas por militares e colonos para
sobreviver e manter em funcionamento a Colônia Militar eram evidências de que a
população local tinha sonhos e esperanças de que poderiam ter uma vida melhor e
perspectivas de futuro na fronteira (MYSKIW, 2009, p. 225).
As tensões, o isolamento, as dificuldades, disputas, conflitos, mas também sonhos e
esperanças compõem o sentido que Myskiw construiu para as experiências na Colônia Militar.
Longe de heroicizar pelo pioneirismo ou, através da dramatização excessiva, heroicizar pela
bravura, vemos um esforço do autor por relocalizar as vivências na Colônia de maneira mais
próxima daquela narrada em alguns relatos e silenciada em outros. Situados em duas dimensões
principais, os conflitos de terra e as relações entre nacionalidades e etnias, os tensionamentos
e, em alguns casos, conflitos, aparecem como marca característica da Colônia Militar em sua
narrativa. A denúncia do silenciamento destas relações conflituosas é uma constante:
134
Nos Relatórios Provinciais de meados da década de 1880 não há menção aos faxinais
e seus habitantes. Silenciar era necessário, pois eliminava da história aquilo que era
negativo no processo de ocupação da fronteira: os problemas agrários, envolvendo
conflitos armados, as mortes, as posses, os grilos e as práticas coronelísticas levadas
a cabo por muitos fazendeiros e auxílio dos capatazes (MYSKIW, 2009, p. 105).
Assim, os interesses pela ocupação privilegiada desse espaço, patrocinada pelo Estado,
levava ao silenciamento das ocupações já existentes, bem como dos diversos conflitos
existentes. Importa para nós, em especial as relações entre etnias e nacionalidades, visto que
buscamos, através da análise desta obra, perceber fragilidades na narrativa e memória oficial
da cidade que é tomada como espaço de harmonia multicultural. Mesmo sem ser o foco central
da análise de Myskiw, as relações culturais estabelecidas, na Colônia, aparecem em diferentes
momentos. Não remetem apenas a relações entre brasileiros, argentinos e paraguaios, mas
também aqueles de quem Catta não sente falta: os povos indígenas que disputavam essa região.
Os relatos de José Francisco dão a entender que as guerras entre tribos eram motivadas
por questões étnicas. Acreditamos que esses embates não eram motivados apenas por
diferenças étnicas, mas estavam atreladas à disputa por territórios. Nesse sentido,
esses embates eram sinais de que a fronteira movia-se sobre as áreas ocupadas e
exploradas pelos índios Kaingang, que, por sua vez, eram empurrados para os
territórios dos índios guaranis. E ainda, de que a aproximação dos índios Kaigangs
aos homens da fronteira mediante o fortalecimento de alianças poderia estar
motivando os embates contra os índios guaranis com a intenção de repeli-los da orla
das matas e de que os guaranis viessem a praticar correições, assaltos e mortes nos
faxinais e nas fazendas de criação (MYSKIW, 2009, p. 105).
A fronteira se constituiu móvel e objeto de disputa. Seja entre povos indígenas, seja
através de alianças entre os colonizadores patrocinados pelo Estado brasileiro com Kaigangs
com o objetivo de expulsão dos Guaranis. Os eventos desse relato ocorreram na região do
Chagú, relativamente distante do local em que seria localizada a Colônia Militar. Entretanto, é
evidência consistente a presença dos Guaranis e de que os mesmos ocupavam, mesmo que como
passagem, a região da Colônia Militar, algo a ser impedido pelos novos colonizadores.
Dessa forma, vemos já estabelecido uma primeira relação de tensionamento, essa em
forma de conflito aberto, entre os colonos e os Guaranis que habitavam e disputavam essa
região. A inexistência de registros desse embate e da expulsão dos guaranis para o lado
paraguaio do rio Paraná é uma das dimensões constitutivas da memória de harmonia social que
seria a base da história de Foz do Iguaçu. Silenciar o conflito contribuiu para a constituição
dessa memória. Ao apontar essa divergência, além de evidenciar a permeabilidade, a fluidez e
os diferentes significados da fronteira para diferentes grupos sociais, Myskiw contribui para a
desconstrução da ideia de harmonia. Evidencia, mesmo que não tenha essa intenção, já nas
135
relações com os povos indígenas, que a harmonia é apenas um discurso construído a posteriori
e a partir de interesses políticos e econômicos localizados.
A ausência de fontes sobre a presença de povos indígenas, na região, dificulta a
percepção do processo de expulsão dessa população. Apesar de trabalhos importantes terem
sido realizados sobre essa população como, por exemplo, o de Erneldo Schallemberger (1986),
ainda se faz necessário aprofundar essas pesquisas. Myskiw aponta duas hipóteses para esse
silêncio sobre os povos indígenas:
A omissão e a expulsão são ângulos possíveis de reflexão. Porém, a presença
constante de paraguaios, argentinos e brasileiros explorando erva-mate e madeira
podem ter afugentado os índios, obrigando-os a migrar para o interior da floresta. De
uma forma ou de outra, são indícios de que o conflito, o estranhamento e a morte
fazia-se sentir nos limites territoriais do Brasil com o Paraguai e a Argentina desde a
fase inicial do avanço do homem branco sobre as terras e florestas até então ocupadas
e exploradas por diferentes grupos indígenas (MYSKIW, 2009, p. 130).
Notamos um distanciamento importante do discurso de harmonia social apresentado
anteriormente. Da ideia de “democracia” e harmonia nas relações entre grupos e classes sociais
apresentada por Wachowicz (1982), passa-se para a percepção de um processo histórico que
tem, na violência e no estranhamento, uma constante. Dessa forma, ao dialogar vastamente com
fontes sobre o período, ao evidenciar as relações conflituosas físicas e simbólicas, o autor
possibilita a desconstrução da narrativa oficial de harmonia.
Nem só a partir de violências físicas e silenciamentos se construíam as relações sociais
na Colônia Militar. Imbuídos do projeto de nacionalização da fronteira, diferentes estratégias
foram implementadas com vistas à conclusão desse objetivo. Uma delas nos permite perceber
o estabelecimento de relações de violência simbólica entre o Estado brasileiro e os estrangeiros
residentes. Em 1902, foi estabelecida uma lei nacional que mudava a legislação para a
concessão de terras em colônias brasileiras militares. Assim, “No artigo 35, que legisla sobre a
concessão e a titulação de lotes urbanos e rurais, consta que ‘aos estrangeiros que requererem
lotes e residências nas colônias só serão passados títulos provisórios quando se tiverem
naturalizados brasileiros’”. (MYSKIW, 2009, p. 200). Dessa forma, a naturalização dos
estrangeiros era forçada por lei. Afinal, o acesso à terra aparecia como uma importante fonte de
renda para a população local. Essa imposição nos permite perceber tanto a insuficiência de
políticas de atração de brasileiros para o local que evidencia assim, a dificuldade no alcance
dos objetivos da colônia, quanto a violência simbólica praticada nesse espaço de fronteira sobre
os estrangeiros. Novamente, vemos reforçada a fragilidade da memória oficial e seus discursos
de harmonia. Como podemos pensar em multiculturalidade, em harmonia – conceito que se não
136
bem utilizada se caracteriza num grave anacronismo para a época – em um espaço no qual o
Estado força a nacionalização dos habitantes? Resta-nos pensar a efetividade desse processo:
Levando-se em consideração que a Colônia Militar de Foz do Iguaçu situava-se nos
limites territoriais do Brasil com as repúblicas da Argentina e do Paraguai; e que a
presença de estrangeiros era maior do que a de brasileiros, a naturalização acabou se
transformando num instrumento de abrasileiramento. Porém, alguns colonos
estrangeiros que requereram a naturalização, ao serem interrogados pelo militar na
audiência particular, disseram ter nacionalidade Argentina ou paraguaia. O colono
Carmo Benitez estava na Colônia Militar havia 10 anos. Em fins de 1907, tinha lote
pastoril e agrícola, este último com titulação provisória expedida em seu nome. Ao
ser inquirido pelo militar sobre sua nacionalidade, disse ser argentino. [...]são indícios
de que o abrasileiramento no papel, não se confirmava na vida cotidiana dos colonos
(MYSKIW, 2009, p. 214).
Mais uma vez podemos nos valer das categorias de Certeau para pensar essa questão.
Diante da violência institucional que força os estrangeiros a se naturalizar para ter acesso às
terras, táticas identitárias são construídas pelos sujeitos. Diante da necessidade de formalizarem
a naturalização para conseguirem os títulos, os estrangeiros cedem e se naturalizam, mas tal
fato não implica, necessariamente, em “abrasileiramento”. Mesmo perante o representante do
Estado, o uso da identidade originária de estrangeiro é feito. A nacionalização pode ser
percebida apenas como uma estratégia para o acesso à terra. Não implica, graças à resistência
dos sujeitos, em renegar sua identidade nacional. Joga-se com a mesma, tendo por objetivo
ganhos imediatos de curto e longo prazo.
2.3 DISPUTAS PELA MEMÓRIA E INTERCULTURALIDADE
O que temos visto é um processo de construção de memórias que seriam ou se projetam
coletivas para e sobre a cidade de Foz do Iguaçu. Resta-nos tentar construir uma
problematização para esse processo histórico marcado por continuidades – como vimos em
Wachowicz (1982) e Catta (2009) – mas também por rupturas – como vimos com Catta (2009)
e Myskiw (2009) – em que o texto de Catta está num ponto de intersecção intrigante e que
dificulta o processo explicativo. Esta tentativa não é nova. Souza (2009) possui uma importante
discussão sobre o processo de construção de uma memória social para a cidade. Outro texto que
caminha nesse sentido é o já abordado trabalho de Klauck e Szekut (2012) que traz a questão
da memória a partir da problemática do patrimônio cultural da cidade. Esses trabalhos
apresentam uma explicação para a construção da memória da cidade calcada na ideia de
turistificação da memória e da identidade social de Foz do Iguaçu.
137
Se concordamos que essa é uma dimensão essencial para pensar as questões aqui
colocadas, entendemos que o processo de constituição da memória social de Foz do Iguaçu tem
dimensões históricas que precisam ser localizadas com maior precisão. A importância do
turismo no presente não pode servir de chave colonizatória do passado, sendo utilizada como
única explicação para as construções sociais. Já demos pistas de que o papel da Itaipu e das
disputas entre as elites sociais, da década de 1970, são centrais para a construção dessa
memória. Assim, objetivamos complexificar essa problemática. Mas, antes, vejamos como
esses textos constroem suas explicações.
A obra de Souza (2009) tem por objetivo abordar e problematizar a memória de Foz do
Iguaçu a partir dos grupos ou classes sociais, tradicionalmente, excluídos da memória e de seu
processo de construção. Com esse objetivo, a autora se ocupa em analisar as formas como foram
construídas as bases para uma memória citadina ancorada na dimensão do turismo. Ela utiliza
como uma das fontes principais, especialmente em seu segundo capítulo, produções
memorialísticas publicadas na cidade, a partir da década de 1970, e mapeia as dimensões de
conflitos e tensões que seriam constituintes do processo de construção da memória oficial de
Foz do Iguaçu, bem como apresenta os elementos constituintes da mesma. Assim, a memória
produzida e que ainda constitui a memória oficial da cidade não pode ser entendida sem, antes,
compreendermos o que a autora apresenta como tensões que teriam marcado esse processo.
No início dos anos de 1980, havia, em Foz do Iguaçu, uma significativa tensão entre
alguns grupos locais e os grupos responsáveis pela construção e a instalação da usina
de Itaipu. Por parte dos grupos que historicamente prevaleciam na cidade, havia uma
preocupação em defender sua posição de comando local, diante dos tecnocratas
investidos de grande poder pelo governo federal. Tratava-se, naquele momento, de
criar, para a cidade, uma identidade para se contrapor ao impacto da instalação da
usina hidrelétrica. As elites locais iniciaram uma campanha em defesa de Foz do
Iguaçu como cidade turística, que começou na década de 1980 e se estendeu pela
década de 1990 (SOUZA, 2009, p. 80-81).
Focada na construção de uma narrativa que buscava demonstrar que a formação da
cidade estava intimamente ligada as suas belezas naturais, essa memória se constituía dentro de
um jogo de interesses entre as elites tradicionais – como a família Schimelpfeng63 – e a elite
formada pelos “tecnocratas”, de Itaipu. Tal debate possuía uma multiplicidade de dimensões e
buscava atuar em diferentes camadas do poder estatal circundante. Colocada no centro dos
63
Jorge Schimelpfeng foi o primeiro prefeito de Foz do Iguaçu, em 1914. Sua família ocupa papel de destaque
entre as elites tradicionais da cidade. Sua filha, Ottília Schimelpfeng, escreveu, na década de 1970, um conjunto
de textos memorialísticos que buscou colocar no turismo a centralidade do desenvolvimento da cidade, ao longo
do tempo.
138
debates e interesses nacionais, a cidade poderia ser alvo privilegiado de políticas em âmbito
estadual e federal. O gigantesco fluxo de recursos, materiais e humanos, direcionados para a
Itaipu penderiam a balança de poder em direção à Binacional. Assim, o passado, ou melhor, as
narrativas de passado, poderiam ser uma arma eficaz na luta pelo controle simbólico,
econômico e político da cidade. No âmbito do econômico, a busca por recursos nas esferas
federais exigia uma narrativa de centralidade do turismo no e para o desenvolvimento da cidade
(SOUZA, 2009, p. 79).
Essa memória de cidade turística não encontra respaldo na organicidade do processo de
constituição de Foz do Iguaçu. Como vimos com Wachowicz (1982), mas também em Myskiw
(2009) e Freitag (2007), a economia da região dependeu, pelo menos até a década de 1970,
fortemente da extração de madeira e erva-mate. Se, já em meados do século XX, hotéis foram
construídos para explorar possíveis viajantes às Cataratas do Iguaçu, essa foi uma atividade
econômica secundária, pelo menos até fins do século passado. Assim, o que vemos é aquilo a
que já nos referimos como uma colonização do passado pelo presente. Na mesma linha segue
Souza:
Em certa medida, nestes relatos, a origem da cidade foi vinculada ao início do turismo,
como se nesta atividade se explicasse a razão de criação e existência daquela. O mito
do pioneiro articula-se à outra construção igualmente mítica da gente da terra, na
perspectiva de estabelecer uma forte identificação entre o pioneiro e a cidade, de modo
a não mais poder distingui-los. Assim, o que era interesse de um grupo passava a ser
a vocação da cidade. Isso valoriza, ainda mais, o papel de seus fundadores, uma vez
que estes eram identificados como os precursores do turismo, na cidade. Para
explicitar o valor desta gente da terra, as narrativas feitas por Ottília [Schimelpfeng]
procuravam identificar a região da Foz do Iguaçu como um espaço vazio, em termos
culturais e populacionais, preenchido apenas por uma natureza exuberante, que,
justamente por isso, merecia ser transformado [...] (SOUZA, 2009, p. 105).
O pioneiro, utilizado como sinônimo de fundador da cidade, ou de dimensões da cidade,
é localizado nas pessoas que criaram estruturas voltadas para o turismo. Para a construção dessa
narrativa, Souza identifica a necessidade de dois elementos principais. Primeiro, o discurso da
natureza exuberante que atrai pessoas desde os primórdios da exploração da região que
remetem, em alguns casos, à Cabeza de Vaca.64 Essa exuberância seria o motor da colonização
e da vinda da população para o local. O segundo elemento é que, para que este discurso tenha
efeito, foi necessária a criação de um discurso de vazio populacional preenchido pelos atraídos
pela natureza.
64
Espanhol, que em viagem de exploração, chegou a região por volta de 1542.
139
Por fim, para compreender a argumentação e o que entendemos como uma limitação na
análise de Souza, resta-nos apontar a forma como utiliza as obras que tomamos como fontes. A
historiografia sobre Foz do Iguaçu é tomada pela autora a partir da ideia de debate
historiográfico. Assim, são apresentados, com profundidade, as perspectivas de diferentes
autores sobre a história de Foz do Iguaçu, que analisam, apontam e contrapõem suas
contribuições no entendimento desse processo. Entretanto, ela não os pensa na ótica da
construção da memória. Toma como fontes para a construção da memória oficial de Foz do
Iguaçu, memorialistas e membros de grupos sociais locais, mas passa ao largo das possíveis e,
como gostaríamos de perceber, importantes contribuições da historiografia, em especial
Wachowicz, para a construção da memória da cidade. Seu foco na análise do turismo como o
grande vetor de significados limita a compreensão dessa obra como elemento construtor da
memória local. Wachowicz, efetivamente, não escreve sua obra sob a clave do turismo, mas na
ótica da harmonia social, posteriormente transformada pelo discurso oficial local em “beleza
social” complementar à beleza natural da fronteira.
Souza, ao utilizar a historiografia da cidade apenas como bibliografia para a realização
de debates, perde de vista o fato de que essa historiografia é elemento constituinte das memórias
locais. No caso de Wachowicz, sua obra é utilizada para fundamentar academicamente a
memória oficial da cidade. Assim, percebemos, nas disputas no município, um jogo que envolve
a historiografia local em embates que legitimam ou, em determinados momentos, deslegitimam
essa memória oficial. Se as “elites tradicionais”, como nomeia Souza, utilizam-se de
memorialistas para abordar e construir sua versão voltada para seus interesses na área do
turismo, os “tecnocratas” de Itaipu lançarão mão de historiadores contratados para construir
uma versão alinhada aos seus interesses imediatos de harmonia social.
O texto de Klauck e Szekut (2012), já abordado, parte de uma premissa semelhante a
nossa. Busca compreender, através de um objeto diferente, o patrimônio cultural, como se
formou um discurso de diversidade populacional em Foz do Iguaçu. Para isso, utiliza de dois
conjuntos de fontes: textos bibliográficos sobre a cidade, sites oficiais da municipalidade e
reportagens da imprensa local. Ao discutirem a apresentação, por parte da prefeitura municipal,
de uma citação de um dos memorialistas da Colônia Militar, na qual são apresentados os
números de moradores e suas nacionalidades, avaliam que:
A ênfase ao registro dos sujeitos encontrados reforça a conjectura de que se quer
estabelecer ou mesmo fortalecer, que desde as origens – primórdios da formação da
cidade, um cenário de integração. Cabe destacar, que essa narrativa destoa do
movimento de nacionalização dos espaços de fronteira, pois comumente essa região
140
tornava invisível ou procurava controlar a presença de estrangeiros a partir dos
aparatos do estado [...]. Essas assertivas indicam que o pano de fundo das narrativas
e de seus agentes, está na concepção de integração que se quer passar através de
representações marcadas pelos discursos e pelos discursos e pelo poder simbólico que
carregam (KLAUCK e SZEKUT, 2012, p. 165-166) [grifos do autor].
As análises dos autores vão no sentido de entender que os discursos de harmonia e
multiculturalidade presente na cidade buscariam embasar uma identidade marcada pela
integração entre as culturas ali presentes. Para tanto, o poder local se valeria da ênfase na
visibilização da presença de uma expressiva quantidade de etnias e nacionalidades, o que
demarcan essa ideia de integração e harmonia cultural. Essa demarcação teria um sentido
histórico e político de construção de uma identidade inscritora de diferenças e fronteiras em
relação a outras cidades:
Estes agentes ao naturalizarem os discursos de que há harmonia entre as diversidades
populacionais e que isso é um posto positivo da cidade, marcam fronteiras em relação
a outros espaços urbanos. Contudo, ao enquadrarem a memória coletiva, associada
aos ciclos migratórios que definiram essa formação multicultural, escondem conflitos
e disputas entre os agentes envolvidos nesse processo. Assim, definir reconhecer
intencionalmente a diversidade populacional como patrimônio cultural, no caso de
Foz do Iguaçu, nos leva a considerar as operações de fixar silêncios e esquecimentos.
[...] Mesmo assim, por fim, se torna inegável que as marcas da diversidade
populacional, sejam signos capazes de mostrar a cidade como um palco multicultural
(KLAUCK e SZEKUT, 2012, p. 174-175).
Se o discurso sobre a cidade posiciona as relações culturais como integradoras, os
autores percebem que essa narrativa constrói, ou pelo menos contribui para construir, fronteiras
simbólicas nas relações entre Foz do Iguaçu e outras cidades. Se levarmos em consideração que
esse discurso é promovido, entre outros, por agentes do mercado de turismo, podemos inferir
que essa é uma ferramenta de disputa de mercado e sentidos que extrapola o campo do
simbólico e emerge no campo econômico como disputa comercial. Assim, na busca de clientes
e turistas, a harmonia cultural existente na cidade poderia ser um diferencial perante outros
destinos. Ao mesmo tempo, essa diferença poderia ser fator de atração de investimentos
privados e públicos. Recursos para a promoção e preservação da diversidade como patrimônio
cultural poderiam ser buscados nas instâncias estatais.
A denúncia dos usos político e econômicos é acompanhada pelo reconhecimento da
efetiva presença de uma ampla diversidade étnica e nacional na cidade. Este apontamento deve
ser feito também. Afinal, a ênfase que damos à problematização de discursos e narrativas
promotoras de uma ideia de diversidade e harmonia cultural não deve ser confundida com o
não reconhecimento do fato de que, efetivamente, naquela cidade está presente uma pluralidade
cultural expressiva. O que buscamos evidenciar são os usos dessa pluralidade transformada,
141
politicamente, em multiculturalidade. Usos que ressaltam a convivência e não as trocas, tensões
e diálogos; ressaltam a multiculturalidade e não a construção de possibilidades interculturais.
A conclusão do uso mercadológico da diversidade foi, como vimos, explorada por Souza
(2009).
No texto dos autores em tela, aparece de relance outra possibilidade de explicação, qual
seja, a de que essa memória da diversidade teria surgido dentro dos embates existentes a partir
da presença da Itaipu e, consequentemente, o surgimento de uma nova elite na cidade. Já
abordamos como a ideia de harmonia social foi útil, tanto para a harmonização de conflitos
sociais pelas desapropriações de terra por Itaipu quanto para a acomodação da nova elite
econômica.
Nosso intento, ao apresentarmos, nestes dois textos, as suas análises sobre a memória
oficial da cidade e seu processo de construção não é contrapô-las, mas percebermos como tem
sido abordada essa questão na academia e, a partir disso, apresentar colaborações. Nosso
argumento, após a exposição da construção de uma memória oficial para a cidade de Foz do
Iguaçu através da historiografia e da discussão com Souza e Klauck e Szekut (2012), é que
encontramos duas memórias oficiais em diálogo: para os memorialistas a serviço da elite local
promotora do turismo, as cataratas são o elo de ligação que une a história de Foz do Iguaçu;
para Wachowicz, em diálogo com os interesses de Itaipu, é a fronteira e sua característica de
harmonia social. Interessante pensar como as duas memórias acabam por se fundir e são
utilizadas uma pela outra. A memória constrói harmonia social e a multiculturalidade em
atrações turísticas para a cidade, ao lado das Cataratas do Iguaçu, da Itaipu e das compras no
Paraguai.
A contribuição que buscamos trazer é a compreensão de que o processo de construção
da memória oficial de Foz do Iguaçu é bastante complexo e, certamente, não é ocasionado por
apenas um fator. Se, no tempo presente, o turismo é a chave dominante para a compreensão dos
usos da memória da cidade, sua formação, ao longo das décadas de 70 e 80, possui elementos
diversos e que se movem ao longo do tempo. Faz-se necessário, detalhar, mesmo que
rapidamente, esse processo e nossa argumentação.
Primeiramente, gostaríamos de apontar que quando tratamos da memória oficial, não
buscamos apresentá-la de forma totalizadora e homogeneizadora. Todo grupo social ou
conjunto de grupos sociais possui um conjunto de memórias que não são monolíticas. No
interior de qualquer grupo social, um conjunto de disputas e tensões subjetivas e/ou materiais
colocam em movimento jogos de disputas pela memória social daquele grupo. Em
142
determinados casos, setores hegemônicos de grupos sociais podem conseguir atingir um nível
de controle sobre o grupo que permita que o mesmo inscreva sua narrativa de memória como
“a verdadeira” ou como a única legítima. No caso de uma cidade, esse poder inscritor pode vir
de diferentes lugares, de setores dominantes da economia, da política, da cultura daquele
espaço, etc. Em nosso objeto, vemos uma construção simbiótica entre o poder público
municipal, cuja manifestação foi trabalhada a partir do site da prefeitura municipal, e grupos
dominantes da economia ligados ao setor de turismo da cidade, cuja construção narrativa foi
possível perceber a partir do site VisiteFoz.
Essa construção se apropriou de duas dimensões distintas e, como vimos com Souza,
em determinados momentos rivais, mas com perspectivas não antagônicas para construir seu
discurso. Por um lado, as elites tradicionais de Foz do Iguaçu buscaram reivindicar uma
memória que teria a vocação turística da cidade em seu centro e, por outro lado, a Itaipu atuou
no financiamento de pesquisas que narraram a história a partir da ideia de harmonia social e
cultural. Essas duas narrativas, apesar de adversárias, ao longo do processo de construção da
Itaipu e de acomodação social dos interesses dessas elites, acabaram por se unificar na tentativa
de tornar a harmonia cultural e a multiculturalidade em atrações turísticas da cidade. A própria
Itaipu Binacional se tornou ponto de visitação, bem como trabalhou na construção de outros
pontos turísticos – Ecomuseu, Parque das Aves – e na divulgação do turismo. Os anos 1990
consolidaram um processo de unificação dessas memórias a serviço do turismo.
Esse processo foi possibilitado a partir de dois momentos. Por um lado, a conclusão de
Itaipu consolidou, definitivamente, sua presença na cidade. Assim, a acomodação ou o
confronto eram as possibilidades colocadas pela situação para os dois conjuntos das elites
locais. É nesse momento que o discurso de harmonia social e cultural permite pavimentar uma
junção nos discursos em prol dos interesses comuns. Assim, a memória a serviço do turismo e
sua ampliação de escopo das belezas da natureza com a harmonia cultural permite uma
acomodação de ambas as perspectivas e satisfaz os interesses da Binacional em busca de
apaziguamento social para a realização de suas atividades; os interesses das elites tradicionais,
voltados para o financiamento das atividades turísticas e, finalmente, os interesses da elite
tecnocrata de Itaipu que, a partir da ideia de harmonia, pode se inserir com maior tranquilidade
na cidade. Não queremos, com isso, inferir nenhum novo tipo de harmonia social, dessa vez
entre as elites de Foz do Iguaçu no tempo presente, pois apenas um trabalho aprofundado
poderia analisar essa questão. O que afirmamos é uma acomodação no campo da memória que
poderia ter contribuído para uma acomodação social de elites sociais diferentes.
143
Num complexo processo de disputa de mercado no âmbito do turismo, diferentes
cidades possuem e utilizam belezas naturais em busca de visitantes. Rio de Janeiro,
Florianópolis, Angra dos Reis e as diversas cidades praieiras do Nordeste, são destinos
“clássicos” do turista em busca de belas paisagens. Foz do Iguaçu se localiza no interior do
país, distante de outros roteiros turísticos. Sua disputa, nesse mercado, se deu, historicamente,
pelas belezas das Cataratas. A presença de múltiplas etnias que convievem em “harmonia” tem
sido utilizada como um “diferencial” da cidade na venda de sua imagem para o potencial turista.
Logo, produziu-se a ideia de que a cidade, além de contar com belezas naturais e belezas
artificiais como a barragem de Itaipu, contaria também com uma multiculturalidade rica para
ser conhecida.
Para finalizar, gostaríamos de retomar a discussão que tem movido e permeado a
narrativa que compõem este capítulo. Temos argumentado que a narrativa oficial constrói um
discurso de harmonia social na cidade de Foz do Iguaçu. Nos textos de Catta, este discurso é
incorporado, ainda que o texto tenha uma proposição bastante crítica ao processo de
implementação de Itaipu. A narrativa de harmonia social foi incorporada ao discurso da cidade
e compõe, hoje, um elemento importante de sua identidade propagandeada. Este discurso é
percebido com força pelos estudantes da Unila que apontam inúmeras contradições no mesmo,
como veremos ao longo do quarto e quinto capítulos. Um momento posterior desse discurso é
quando a ideia de harmonia social – convivência não conflitiva entre diferentes – é transformada
em integração e interculturalidade, ou seja, relações que colocam os grupos em diálogo e
relações de troca. Apresentamos e gostaríamos de reforçar uma perspectiva distinta.
A narrativa da presença de múltiplas etnias enfatiza a existência delas. O próprio texto
de Klauck e Szekut (2012) aponta como a construção do patrimônio cultural é fragmentada, na
qual cada grupo cultural produz “seu” patrimônio. A ênfase do discurso, como já visto, está na
multiculturalidade, na pluralidade étnica. O que vemos é um discurso muito mais próximo da
construção, legitimação e positivação da ideia de “tribos urbanas”, de Michel Maffesoli (1998),
que da perspectiva política da categoria de interculturalidade apresentada por Canclini (2007).
A multiculturalidade e a interculturalidade não são excludentes, pelo contrário. A
interculturalidade é entendida, por nós, enquanto um avanço político em relação à
multiculturalidade. Comungamos da perspectiva de que não basta o reconhecimento da
diversidade, da multiplicidade, mas se faz necessário, para uma sociedade democrática, que
essa diversidade entre em contato a partir de relações que se queira horizontais, mesmo que,
por diferentes motivos, possam se constituir verticalizadas.
144
Nesse sentido, a interculturalidade assume, e assumirá em nosso trabalho, duas
perspectivas e possibilidades. Primeiro, enquanto categoria analítica, implica buscar
compreender as relações entre os grupos culturais. Mais que perceber e apontar sua existência
e multiplicidade, interessa, para os fins de nossa análise, perceber se e como grupos culturais
distintos se relacionam. Se e como a presença de estudantes de fora de Foz do Iguaçu e mesmo
de fora do país negociou sua presença e estabeleceu relações de trocas, tensões e diálogos com
essa experiência multicultural. Ao mesmo tempo, entendemos que se a Unila é a Universidade
Federal da Integração Latino Americana, isto implica não apenas a coexistência de culturas em
seu meio, nem mesmo a existência orgânica de relações interculturais, mas uma política
propositiva, por parte da instituição, de promoção da interculturalidade. Obviamente, essa é
uma questão que teremos de pôr a prova ao estudarmos sua constituição e seu desenvolvimento.
Tarefa que nos propomos a seguir.
Se a cidade, enquanto espaço social, produz significações e sentidos para a experiência
dos estudantes, o mesmo acontece com a universidade. Para pensar nosso objeto, faz-se
fundamental problematizar a instituição na qual se inserem, a qual produzem, a qual vivenciam.
Suas subjetividades atravessam e são atravessadas pela historicidade e pelas temporalidades
existentes e produzidas na intrincada relação universidade-estudantes-cidade. Sendo assim, é
necessário a problematização da construção desta instituição e pensar esse processo enquanto
produtor de sentidos e objetivos que tensionarão as relações entre a instituição e os sujeitos que
a frequentam e a produzem. Essa é a tarefa a que nos propomos no próximo capítulo.
145
3 A UNILA EM CONSTRUÇÃO: UMA UNIVERSIDADE PARA A INTEGRAÇÃO
Uma universidade brasileira com vocação latino-americana. Essa é uma das definições
correntes que, em diferentes fórmulas, aparece em diversos documentos que visam definir a
Unila. Pensada para uma cidade que se afirma “multicultural” de fronteira e projetada como um
espaço intercultural de integração, a Unila se apresenta a partir de complexidades múltiplas que
não podem ser apreendidas apenas na sincronicidade da experiência social constituída no
presente. É na diacronia do processo histórico que encontraremos possibilidades de elucidação
e/ou análise das questões levantadas por tal problema. Pensar a complexidade dessa relação,
sua formulação e percepções a respeito desse processo é o objetivo deste capítulo.
Para tanto, utilizamos documentos oficiais como o Estatuto da Universidade e o Projeto
de Desenvolvimento Institucional, textos publicados pela instituição, com o intuito de
apresentar as discussões sobre seu projeto, como a Consulta Internacional (IMEA, 2009a), o
livro “Unila em Construção” (IMEA, 2009b), voltado para a narrativa do processo de
constituição dessa universidade e, por fim, entrevistas com sujeitos participantes do processo
de construção da instituição ou membros da comunidade acadêmica posicionados em diferentes
lugares sociais. A partir dessa documentação, buscamos compreender diferentes leituras,
análises e perspectivas sobre o processo de constituição, implantação e vivência da
universidade.
Uma das preocupações teóricas centrais para a constituição deste capítulo é a percepção,
análise e problematização do que chamamos de “densidade temporal” da experiência. Colocada
na intersecção entre sociologia, antropologia, jornalismo, ciência política, etc, a História do
Tempo Presente pode, ao mesmo tempo, se beneficiar de tais conexões, bem como se perder
em nuances e curiosidades casuísticas do presentismo, como abordado em Hartog (2013). Com
o objetivo de tirar o melhor proveito de sua condição epistemológica, sem perder sua
especificidade de área integrante da disciplina histórica, pensar a “densidade temporal” de seus
objetos de análise é fundamental. Para tanto, é necessário a compreensão desta questão.
Entendemos que a experiência de sujeitos, sejam eles postados no nosso presente ou em
algum passado remoto, é, inevitavelmente, histórica. Toda experiência humana é histórica.
Sendo assim, os processos e as experiências vivenciadas, no presente, também o são. Poucas
pessoas, talvez ninguém, duvidaria dessa afirmação. A celeuma surge não na colocação, mas
na transformação dessa perspectiva em fundante para a História do Tempo Presente.
Entendemos aqui, em consonância com o que discutimos já na apresentação, que toda
experiência possui uma “densidade temporal”, entendida como a historicidade carregada de
146
rupturas, continuidades e significações constituídas a partir da relação histórica entre indivíduo
e sociedade. É a densidade temporal de todas as experiências que permite, ao deslocar o objeto
da história para o tempo e não para o passado, a análise do tempo presente a partir da História.
Desta forma, evidencia-se que a experiência temporal humana é constituída no tensionamento
entre o espaço de experiências e o horizonte de expectativas.65 No amálgama e na tensão entre
essas dimensões se constitui a experiência humana no presente.
O processo de construção da Unila é percebido justamente nesta perspectiva. Sua
idealização se coloca em diálogo constante com a experiência universitária e política brasileira
e da América Latina. Tanto no âmbito do discurso onde, por exemplo, em diferentes momentos,
veremos uma busca da evidenciação desse diálogo, quanto no âmbito das práticas materiais
quando, por exemplo, se insere em trocas com a construção histórica da ideia de
multiculturalidade em Foz do Iguaçu, já analisada no capítulo anterior.
Para a construção de nossa análise, optamos por organizar esse capítulo em três
momentos: primeiro, pensamos o contexto das universidades brasileiras e, ao localizá-las
temporalmente, buscamos perceber diferentes estratos temporais a partir dos quais o processo
de construção de uma rede de ensino universitário se constituiu no país; em seguida buscamos
pensar a formulação da universidade a partir da perspectiva da integração latino-americana, sua
inserção e papel pensado no contexto deste projeto político; por fim, aprofundamos a discussão
sobre o processo de constituição da Unila em análise de suas características acadêmicas no
diálogo com o seu projeto político integracionista e sua proposta de qualidade acadêmica e
científica.
3.1 UMA UNIVERSIDADE NOVA? A UNILA NO CONTEXTO DAS UNIVERSIDADES
BRASILEIRAS
A Unila surge marcada pelo contexto histórico e político no qual se insere. Na dimensão
universitária, situa-se no âmbito de nova expansão do ensino superior no governo Lula, dentro
do Reuni. Politicamente, inserida em uma proposta de projeção brasileira dentro do chamado
eixo sul-sul, o qual privilegiou relações externas do Brasil com países emergentes e, no caso
em questão, com a América Latina. Essas questões são relevantes para a compreensão do
projeto Unila, pois, afinal, é a Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Seu
escopo foge a sua função acadêmica tradicional e abrange um objetivo político específico já em
seu nome. Assim, para pensar sua construção, é necessário pensar sua inserção neste contexto.
65
Essa discussão foi construída em diálogo com Koselleck (2012) e Hartog (2013).
147
A problemática do ensino universitário no Brasil tem sido pouco trabalhada no âmbito
da História. Poucos historiadores têm se dedicado a esta questão que, usualmente, tem sido
abordada no campo da Sociologia, da Educação e da História da Educação. Nesses campos tem
surgido, em especial a partir dos debates sobre cotas raciais e sociais nas universidades nos anos
2000, importantes trabalhos sobre cotas, vida e experiências estudantis, cultura juvenil e
universidade.66 O surgimento e expansão desses estudos convive, historicamente, com uma
produção importante e de grande qualidade sobre universidades no país. Intelectuais como
Anísio Teixeira (2003), Cristovam Buarque (1994), Darcy Ribeiro (1993) e outros abordaram
a questão da universidade, seja a partir de análises contextuais, seja a partir da criação de
projetos universitários como os da Universidade do Distrito Federal, gestada por Anísio
Teixeira, ou a UnB, organizada em parceria por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, da qual
Cristovam Buarque foi reitor entre 1985-89. No âmbito da história das instituições
universitárias no país, contamos, entre outros, com o importante trabalho de Luiz Antonio
Cunha que busca abordar a história das instituições de ensino superior no Brasil.
Tendo seu início, tradicionalmente, situado em meados do século XX, pela criação de
universidades em diferentes estados, o ensino em faculdades ou equivalentes no Brasil remonta,
pelo menos, ao século XIX. Apesar da existência de cursos de Teologia e Filosofia ainda nos
tempos de colônia, é no século XIX que se desenvolvem um conjunto de colégios superiores
que, segundo Cunha (2007), seriam equivalentes aos estudos da Universidade de Coimbra.
Embates diversos permearam as tentativas de criação de universidades no Brasil, ao longo do
Império.67
Novos embates, dessa vez também no campo da memória, foram construídos para tentar
definir o posto de primeira universidade do país. Grupos diferentes disputam tal pioneirismo.
No Amazonas, em Manaus, com a Escola Universitária Livre de Manaus, fundada em 1909,
transformada por seu corpo institucional em Universidade de Manaus, em 1913, ainda dentro
do ciclo da borracha. A instituição foi desativada em 1926. No Paraná, a UFPR, advoga sua
primazia a partir da ideia de continuidade dos cursos que marcariam sua característica
universitária. Sua fundação, em 1912, é defendida como o marco para a criação do que seria,
Sobre o assunto há, na Bahia, um “Observatório da Vida Estudantil” que, em 2012, publicou um interessante
livro sobre estudantes universitários intitulado “Observatório da Vida Estudantil: estudos sobre a vida e culturas
universitárias” (SAMPAIO, 2011). Internacionalmente, existe o importante trabalho “A Condição de Estudante”
(COULON, 2008), bem como escritos conjuntos de Bourdieu e Passeron (2014; 2009), entre outros.
67
Não é nossa intenção nos alongarmos sobre a história das universidades no Brasil. Pelo menos até a década de
1960. Aos interessados, os livros “A Universidade Temporã” (2007a) e “A Universidade Crítica” (2007b), de Luiz
Antônio Cunha, são trabalhos sólidos e importantes referências sobre o assunto.
66
148
segundo a instituição, a primeira universidade do Brasil. Interessante perceber como ambas as
instituições – no caso da extinta Universidade de Manaus, a atual Universidade Federal do
Amazonas (Ufam), se coloca como a “guardiã” dessa memória – mantêm esse embate vivo. Em
seus sites institucionais, as duas possuem itens onde narram suas histórias que alegam sua
primazia68.
Apesar das disputas sobre o pioneirismo universitário no Brasil, concordamos com a
opinião de Trindade que afirma que “apesar de algumas iniciativas universitárias regionais
precursoras, [...] foi a Universidade de São Paulo (USP), instituída em 1934, que, como o
primeiro paradigma, foi a instituição fundadora da universidade moderna do Brasil”
(TRINDADE, 2012, p. 110). Esses embates na memória pelo pioneirismo apontam, entretanto,
uma questão significativa. A universidade, instituição praticamente milenar, é fundada, no
Brasil, apenas em meados do século XX. As causas, amplamente trabalhadas por Cunha
(2007a), são diversas, assim como as consequências. A demora, por exemplo, quando
comparado à América Espanhola, que conta com instituições de ensino universitário desde o
século XVI, é enorme.
O nascimento tardio levanta algumas questões que são pertinentes para a nossa
discussão. Em especial acerca do modelo de universidade implantado no Brasil. Veremos ainda
como essa foi uma discussão importante durante o processo de implantação da Unila. Os
séculos XIX e XX proporcionaram diferentes modelos de universidades ao redor do mundo.69
No Ocidente, destaca-se, pela sua influência nos projetos universitários brasileiros até a
década de 1960, o modelo napoleônico, implantado na França após a Revolução Francesa, que
consistia, entre outras características, na criação de faculdades isoladas e especializadas em
determinadas áreas do conhecimento.70 Esse modelo privilegiava a formação universitária
como forma de suprir as necessidades burocráticas e técnicas do Estado francês. Assim, há uma
grande ênfase em áreas como Direito, Medicina e Engenharia.
Como reação à influência francesa, surge na Alemanha, capitaneado por von Humboldt
– reitor da universidade de Berlim, a primeira a adotar o modelo – um projeto universitário que
buscava enfatizar a pesquisa, o desenvolvimento da ciência e da cultura como o foco principal
68
Sobre a Ufam ver <http://www.ufam.edu.br/historia-da-ugm> Acesso em: 30 ago. 2018. Em seu logo inicial na
página aparece: “Universidade Federal da Amazônia – Nosso Maior Patrimônio. Desde 1909.” (Destaque no
original). Sobre a UFPR: <http://www.ufpr.br/portalufpr/a-mais-antiga-do-brasil/> Acesso em: 30 ago. 2018.
69
Uma discussão importante sobre os modelos universitários está presente no texto “Revisitando as concepções
de Wilhelm Von Humboldt em torno da universidade: O que dizer duzentos anos depois?” de Machado e Mendes
(2010).
70
A discussão deste modelo será retomada adiante pois a reação e a negação deste modelo foi importante para a
formulação da Unila.
149
da universidade. Nesse projeto, a investigação científica básica, as letras, as artes e a filosofia
tinham espaço privilegiado. O campus universitário deveria ser o centro de onde emanaria o
desenvolvimento do espírito e da ciência humana. A forte influência do idealismo alemão,
evidenciado pela presença de intelectuais como Hegel, nos debates sobre esse projeto, foi uma
das marcas do mesmo.
Essas duas perspectivas e seus defensores disputaram, ao longo da história, projetos de
criação e condução das universidades brasileiras. Instituições como a USP foram fortemente
influenciadas por estes modelos.
A USP absorveu este modelo francês da universidade reformada pela III República,
no final do século XIX, e fez uma incorporação seletiva desse modelo alemão na nova
Sorbonne, que foi reforçado pela presença significativa da missão francesa na sua
implantação. O modelo da universidade alemã trazia como contribuição uma estrutura
universitária integradora do ensino e pesquisa, tendo como eixo articulador a
faculdade de filosofia (TRINDADE, 2012, p. 110-111).
A influência europeia está presente também na instituição da cátedra como elemento
básico da instituição universitária. O sistema de cátedras, já existente no Brasil nas faculdades
e escolas superiores, organizará a estrutura docente da USP e das demais universidades
brasileiras – com exceção da UnB, já na década de 1960 – pelo menos até a reforma
universitária de 1968.
A Universidade de Brasília (UnB), cujo projeto foi capitaneado por Anísio Teixeira e
Darcy Ribeiro, fundada em 1962, durante o governo João Goulart, é o que Hélgio Trindade
(2012) denomina de terceiro paradigma entre os projetos universitários no Brasil. O momento
de sua criação é bastante distinto da década de 1930, quando a USP e a Universidade do Distrito
Federal (UDF)71 - que seriam, segundo Trindade (2012), os dois primeiros paradigmas de
universidade no Brasil - foram construídas. A década de 1960 é marcada por importantes
movimentos políticos no país. Para as universidades, foram especialmente relevantes a ascensão
dos movimentos estudantis através da União Nacional dos Estudantes – UNE, criada ainda em
1938, a efervescência política causada pela revolução cubana e seus impactos nos debates
nacionais e, por fim, o clima de mudanças causado pelos embates ao redor das reformas de
base.
A emergência do movimento estudantil brasileiro, sob a liderança da União Nacional
dos Estudantes (UNE), possibilitou, a partir de debates promovidos pelos universitários, o
71
Sobre a Universidade do Distrito Federal, ver Trindade (2012; 1999).
150
ingresso e a proliferação dos ideais da Reforma de Córdoba.72 Com uma centralidade tardia nos
embates sobre projetos universitários no país, a Reforma de Córdoba ganha influência
importante ao ser utilizada para legitimar uma série de mudanças no sistema de ensino
universitário brasileiro. Assim, pautas como a democratização do acesso e o co-governo73
passam a ser elencadas no cenário universitário nacional. Num contexto de forte urbanização
do país, bem como de modernização da economia em sua transição para uma industrialização
mais profunda, a demanda por vagas nas universidades era crescente.
Em 1960, o país tinha cerca de 93 mil estudantes em universidades. Esse número avança
para 142 mil, em 1964, e 278 mil, em 1968. O país fecha o ciclo da ditadura militar com cerca
de 1 milhão e 400 mil estudantes universitários, na soma entre as instituições públicas e
privadas. No setor público, o número de vagas entre 1960 e 1984 é multiplicado por 10. Já no
setor privado, esse número é multiplicado por quase 20, saindo de 41 mil estudantes, em 1960,
para 827 mil, em 1984. O surgimento de novas universidades públicas, nas décadas de 1960 e
1970, certamente contribuiu para essa ampliação do número de vagas. Essa é, certamente, uma
das pressões que levam à construção no início da década de 1960 da UnB. Entretanto, essa
demanda não explica, pelo menos não sozinha, as especificidades do projeto universitário
implantado.
Num sistema universitário marcado pelo elitismo no acesso, pela ênfase na formação de
quadros para o Estado, em especial médicos, engenheiros e advogados, e pelo sistema de
cátedras, a UnB74 surge como uma significativa ruptura. Sua concepção baseada em institutos,
concursos públicos e departamentos de ensino permite uma maior flexibilidade e uma menor
personificação nas relações internas à universidade.
O fim da cátedra no país, preconizado pela UnB, é oficializado pela reforma
universitária de 1968. Ao trabalhar com o processo de implantação da reforma universitária de
1968 sob a ótica da modernização autoritária e/ou75 conservadora, o historiador Rodrigo Patto
Sá Motta, aponta que:
A chamada “Reforma de Córdoba” foi um processo de reformulação do ensino universitário argentino detonado
por uma revolta estudantil, em 1918, que se iniciou na Universidade de Córdoba. Os protestos iniciaram contra a
elitização e a hierarquização rígida da instituição. Suas demandas incluíam pontos que, hoje, são comuns em
universidades latino-americanas: participação estudantil na administração universitária, fim da cátedra,
possibilidade de debate em sala de aula, autonomia universitária, promoção da extensão, etc.
73
A esse respeito discutiremos mais longamente em outro momento, pois a questão da paridade, co-governo,
enfim, a gestão da universidade e sua distribuição é um assunto central na Unila.
74
Sá Motta define a UnB como uma universidade projetada para ser “ponta de lança do processo de renovação do
sistema universitário”. (SÁ MOTTA, 2014, p. 68)
75
Esta dubiedade advém do fato de que o autor identifica momentos e dimensões da relação entre o regime militar
e as universidades onde pode se sobressair a modernização autoritária e, em outros casos, a modernização
conservadora (SÁ MOTTA, 2014).
72
151
Um dos problemas mais sentidos e mais criticados nos debates dos anos 1960 era a
estrutura básica das universidades. Elas eram organizadas em torno dos professores
catedráticos, docentes prestigiados e bem-remunerados, com total poder sobre as
respectivas áreas de saber. Os catedráticos tinham a prerrogativa de selecionar
pessoalmente seus assistentes, professores e pesquisadores, bem como de definir os
programas de ensino. Os cargos eram vitalícios, e esse poder gerava, por vezes,
práticas nepotistas, como a contratação de parentes para atuar como auxiliares de
cátedra. Além disso, os catedráticos controlavam as estruturas decisórias principais,
as congregações e os conselhos universitários. Não é preciso muita imaginação para
perceber que esse sistema, na maioria dos casos, opunha barreiras à produção de
conhecimento e à circulação de ideias. Em contraste com o imenso poder dos
professores catedráticos, os outros docentes, instrutores, auxiliares e assistentes
recebiam magros vencimentos e eram forçados a acumular aulas em várias
instituições. Essa situação resultava em escassa produção de pesquisa e conhecimento,
com professores ausentes e desmotivados (SÁ MOTTA, 2014, p. 66-67).
A cátedra era identificada como um problema central das universidades, nesse
momento. Para além das críticas elencadas pelo autor, o contexto de mobilização estudantil traz
outra reivindicação que é incompatível com esse sistema: uma gestão democrática que
empoderasse a classe estudantil. Esse sistema vigente nas instituições universitárias, ao tornar
praticamente absoluto o poder do catedrático, tentava colocar o estudante no papel de agente
passivo da aprendizagem. A ele cabia apreender as lições de seus mestres. Aliado ao elitismo
proporcionado pela perpetuação e pelo nepotismo da cátedra, temos o diminuto acesso ao
sistema o que gera, assim, uma universidade profundamente elitista e fechada em si mesma.
Como “ponta de lança” das mudanças, a universidade concebida por Anísio Teixeira e
Darcy Ribeiro elimina, internamente, tal sistema. Entretanto, as novidades implantadas pela
UnB não atuam num movimento linear de “evolução” do ensino universitário brasileiro. O
golpe de 64 com a invasão da UnB por tropas do exército, os expurgos, inclusive com a
destituição de Anísio Teixeira, a CPI da UnB e o AI-5, constituem momentos de recuos ou,
pelo menos, de interrupção na modernização autoritária da instituição e das universidades
brasileiras. É só em 1968 que se implanta a reforma universitária através da lei nº 5.540.
Ironicamente, a lei que visava modernizar a universidade brasileira é assinada apenas 15 dias
antes da promulgação do AI-5, o qual gera um período de profunda obscuridade política no
país.
A reforma universitária de 1968 é o principal momento de ruptura no processo de
constituição das universidades brasileiras. Ali, inaugura-se uma série de processos que
estabelecem continuidades até os dias de hoje. A década de 1960, com a criação da UnB e a
reforma universitária, pode ser considerada o momento de início do “presente” das
universidades. Sem dúvidas, desde então, uma série de mudanças foram realizadas nessa
estrutura. Entretanto, nenhuma dessas mudanças constituiu uma ruptura institucional ou legal
152
em relação a essa reforma. Elementos fundamentais continuam presentes e, entre eles, podemos
destacar alguns:
•
O vestibular: até então, os exames de ingresso eram realizados de maneira fragmentada.
Cada faculdade e, em alguns casos, cada curso possuía a liberdade de realizar seus
exames admissionais. Além disso, os exames tinham caráter classificatório e não de
concurso. Basicamente, estabelecia-se uma nota mínima e todos os candidatos que a
superavam estavam classificados para o curso. Obviamente que a escassez de vagas
fazia com que apenas um pequeno número destes conseguissem ingressar, o que gerava
o problema dos candidatos excedentes – aprovados, mas não matriculados. A partir de
1968, o vestibular tem caráter de concurso: abre-se um número x de vagas e os melhores
classificados são selecionados. As grandes mudanças realizadas a partir de 2003, nesse
sistema, apenas o modificaram superficialmente, sem o transformar. Assim, as cotas
sociais e/ou raciais, bem como o Sisu, apenas mudam seus critérios e abrangências, sem
transformar seu caráter de concurso.
•
O incremento do setor privado:76 esta é talvez uma das características mais marcantes
das transformações do sistema universitário brasileiro, a partir da década de 1960.
Enquanto em 1960, 54% dos universitários estavam no setor público, já em 1984, cerca
de 59% deles estão vinculados ao setor privado (PATTO SÁ MOTTA, 2014, p. 249).
Esta tendência se acentuou: em 2014, 71,4% estão matriculados no setor privado
(BRASIL, 2014). Esse processo foi facilitado pela criação e ampliação, por parte do
governo federal, de programas de crédito estudantil que remontam o regime militar. A
partir do governo Lula, programas como o Fies foram vastamente ampliados, além de
ser criado o Programa Universidade Para Todos (Prouni) que, através da isenção ou
perdão de impostos, concede bolsas em instituições privadas para estudantes de baixa
renda.
Tendo essas questões em vista, é importante pensar também nas continuidades que se
constituíram na reforma. Em primeiro lugar, o material humano anterior e posterior à reforma
é o mesmo ou, pelo menos, muito semelhante. Com exceção daqueles perseguidos pela
76
Aqui é necessária uma distinção que deveria ser melhor pesquisada e pensada. Há diferenças importantes entre
a rede privada e a rede filantrópica. Apesar de ambas se basearem na cobrança de mensalidades, a rede privada
simples possui fins lucrativos enquanto que as faculdades e universidades filantrópicas, por lei, não possuem fins
lucrativos. Isso redunda numa diferença importante que deve ser pontuada sempre que nos referimos ao sistema
privado de ensino. Instituições como a PUC, a UNISINOS e outras possuem um caráter bastante diferente daquelas
vinculadas ao setor privado como o grupo Anhanguera ou a Unipar, inclusive cotadas em bolsas de valores. Existe
a possibilidade de uma diferença de objetivo. Enquanto uma busca o lucro através do ensino universitário e
transforma-o num meio para um fim, a outra, pelo menos potencialmente, tem no ensino o seu fim.
153
ditadura, presos, exilados, demitidos ou forçados a se aposentar, os professores são os mesmos.
Essa inércia do pessoal certamente contribuiu para que a reforma fosse amortecida pelas
relações pessoais e/ou profissionais desses sujeitos. Tirados da figura de catedráticos, muitos
desses professores assumiram cargos de mando dentro das instituições, o que gerou, dessa
forma, poucas mudanças nas estruturas de poder imediatas (SÁ MOTTA, 2014, p. 288-325).
Instituições como a UnB, Unicamp e outras universidades criadas na época tiveram menos
problemas com essa questão, pois não possuíam elites internas consolidadas. Outra dimensão
de continuidades é o fato de que, apesar do aumento do número de instituições de ensino na
rede federal, as mesmas continuam a privilegiar centros regionais de poder como capitais e
grandes cidades. No caso do Paraná, onde se situa nosso objeto de estudo, a rede federal só será
interiorizada nos anos 2000, já sob a perspectiva expansionista dos governos Lula (2003-2010)
e Dilma (2011-2016). Até então, a interiorização das instituições de ensino superior havia sido
realizada pelos poderes estaduais e municipais. No âmbito estadual, ainda na década de 70, são
criadas a Universidade Estadual de Maringá (UEM) e a Universidade Estadual de Londrina
(UEL), ambas situadas no norte do estado. Nessa mesma década, o oeste paranaense constitui
uma rede de faculdades municipais criadas em Cascavel (Fecivel, 1972), em Foz do Iguaçu
(Facisa, 1979), em Marechal Candido Rondon (Facimar, 1980) e em Toledo (Facitol, 1980)
(REISDORFER, 2011, p. 10). Essas faculdades municipais foram estadualizadas e unificadas,
em 1994, as quais formaram a Unioeste, que possui campus em Foz do Iguaçu.
O estado do Paraná, historicamente, contou com apenas uma instituição de ensino
universitário federal, a UFPR. Uma das instituições envolvidas no embate memorial sobre o
pioneirismo universitário, como visto anteriormente, esta instituição localizada em Curitiba,
capital do estado, foi, até a primeira década dos anos 2000, a representante do sistema
universitário federal. Em 2005, foi transformado o Centro Federal de Educação Tecnológica do
Paraná (Cefet/PR), em Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). No âmbito do
Programa do Governo Federal de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das
Universidades Federais Brasileiras (Reuni), lançado em 2007, o estado pode contar com a
expansão de outras instituições federais. Nesse âmbito, foram criadas duas instituições: a
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) e a Unila. Enquanto a UFFS conta com campi77
espalhados pelos três estados do sul do país, a Unila tem sua sede e campus na cidade de Foz
do Iguaçu.
77
Os campi são localizados em Realeza e Laranjeiras do Sul no Paraná, Passo Fundo, Erechim e Cerro Largo no
Rio Grande do Sul e, em Santa Catarina, no município de Chapecó fica sua sede com a Reitoria.
154
O processo de reforma universitária de 1968, pelas profundas mudanças que traz ao
sistema de ensino universitário atual, é visto aqui como o processo que faz emergir o presente
das universidades brasileiras. Marcado por rupturas e, não menos importantes, continuidades,
os elementos centrais das universidades brasileiras, até hoje, estão ali expressos. As mudanças
ocorridas no sistema universitário com a redemocratização ocorrem muito mais no escopo de
ampliar princípios presentes na reforma de 68 que no sentido de incorporar novidades. Assim,
por exemplo, a garantia formal de autonomia universitária estava presente naquela reforma.
Entretanto, o contexto político de autoritarismo e perseguição política impôs sérias limitações
a esse dispositivo. Afinal, a demissão, a aposentadoria compulsória e a vigilância sobre os
professores não podem ser pensadas sob o signo da autonomia. Nesse contexto, as lutas por
autonomia, nas décadas de 1960 e 1970, estavam muito direcionadas a perspectivas de
autonomia didática, política e ideológica. Enquanto na redemocratização, garantida por lei a
liberdade de expressão, pensamento e de cátedra, podemos perceber um deslocamento
significativo voltado a questões administrativas, financeiras e científicas (MANCEBO, 2006).
Entre continuidades e rupturas no sistema universitário brasileiro, constituiu-se uma
universidade com uma proposta política e intelectual significativamente diferente das demais.
A Unila, além de sua proposta como produtora e disseminadora de conhecimento, se coloca em
uma relação complexa com a perspectiva de integração regional, mais precisamente da América
Latina. Calcada já em seu nome, sua chamada “vocação latino-americana”, é o segundo eixo
da questão que levantamos. Se esta universidade se constitui enquanto um elemento dentro do
processo histórico de construção do ensino universitário no país, também se insere nas políticas
de relações exteriores do Brasil com seu subcontinente.78 Assim, para compreender a densidade
temporal da constituição da Unila, é necessário entendê-la, tanto dentro dos embates sobre
universidade quanto dentro da perspectiva de integração latino-americana.
A perspectiva integradora da universidade em tela tem sido alvo de importantes debates.
Apesar da juventude da instituição, seu surgimento, juntamente com a criação da Universidade
da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), provocou uma série de
pesquisas sobre a educação como ferramenta da política externa.79 Duas das principais
produções partem “de dentro” da própria universidade. Gisele Ricobom (2009) e Gentil
Corazza (2010) são participantes do processo de implantação da universidade. Seus textos se
Almeida afirma que a Unila cumpriu uma dupla função nas políticas do governo Lula: “1) a política de
interiorização do ensino superior no país, (...); e 2) a política externa brasileira para a América do Sul”.
(ALMEIDA, 2015, p.76).
79
Sobre essa questão ver: MENEGHEL, S. e AMARAL, J. (2015); BRACKMANN, M. (2013); MARTINS (2012)
e SIEBIGER (2010). Especificamente sobre a Unilab, ver: RIBEIRO (2012).
78
155
tornam pontos de passagem de praticamente toda a bibliografia que tem a Unila enquanto
objeto.
Ao partir das discussões realizadas ainda durante a implementação do projeto da Unila,
Corazza e Ricobom constroem análises que se utilizam das considerações do texto “A Unila
em Construção” (IMEA, 2009b) e pensam o processo de formação dessa universidade. Corazza
enfatiza a perspectiva integradora da universidade. Seu texto, que objetiva fazer uma breve
historicização da construção da Unila enquanto projeto, toma como lente a ideia de integração
latino-americana. Para tanto, transforma, para utilizar a expressão de Dossê (2012), em
contemporâneo o não contemporâneo. Insere, na historicidade desse processo, Simon Bolivar e
seu ideal de federação latina e enfatiza as possibilidades solidárias que a Unila pode agregar a
essa perspectiva de pensar a América Latina. Ao fazer isso, filia a Unila entre os projetos
integradores da América Latina emergentes desde, pelo menos, o século XIX, sem, no entanto,
descaracterizar aquela que seria a marca distinta do esforço contemporâneo, uma ênfase na
horizontalidade e solidariedade na relação entre os povos. Esta seria possível, pois propõe-se
uma integração constituída a partir de elementos culturais, sociais e educacionais. Nesse
sentido, enquanto processos como o da Nafta e do Mercosul enfatizariam uma união ou
aproximação econômica, os ideais contidos no projeto Unila priorizariam, pelo menos num
primeiro momento, a integração solidária constituída a partir da educação e da cultura.
O texto de Ricobom (2010), amplamente referenciado na bibliografia a respeito da
Unila, se ainda se insere na perspectiva de pensar a integração latino-americana, o faz de
maneira a centralizar a universidade enquanto espaço privilegiado para uma relação de cunho
intercultural. “A universidade é uma das protagonistas na construção desse outro sentido da
integração, seja por sua própria natureza na produção de conhecimento, como pelo ambiente
fértil para o desenvolvimento do diálogo intercultural” (RICOBOM, 2010, p. 374).
A integração latino-americana construída na e através da universidade, na Unila, em
especial, aparece como importante ferramenta para desconstruir ou, ao menos, complementar
as propostas de aprofundamento das relações econômicas que teriam como objetivo central a
reprodução do capital. No caso da perspectiva de integração referendada por Ricobom, a
centralidade do processo deveria estar construída em relações interculturais de solidariedade e
de construção de igualdade de maneira horizontal. Desconstrói, dessa forma, propostas como
as da Alca, Nafta e mesmo a perspectiva que a autora considera excessivamente economicista
do Mercosul.
156
Corazza (2010) e Ricobom (2010) centralizam a Unila dentro desse processo de
integração. No caso de Corazza (2010), tal processo assume uma dimensão histórica de longa
duração. Não cabe explorar esse longo processo de integração no qual a Unila teria se inserido.
Tal feito necessitaria de uma tese específica. Tendo, neste momento, o objetivo de compreender
o contexto universitário e político no qual a construção desta universidade se insere, nosso
recorte, na área da integração latino-americana, seguirá o trabalho de Larissa R. de Almeida
(2015). A autora, em sua tese em Economia Política Internacional, constrói uma análise da
inserção da Unila no contexto da integração, a partir do Mercosul. Sua hipótese central é a de
que a Unila seria uma forma de o governo brasileiro, sob a égide do presidente Lula, fomentar
uma integração via educação. Superaria, dessa forma, propostas de integração local e regional
focadas, na ótica da autora, excessivamente no econômico. O projeto Unila seria, então,
demarcado a partir dessa perspectiva de integração via educação. Para pensar essa questão é
necessário pensarmos o processo de construção dessa universidade na cidade de Foz do Iguaçu,
problema ao qual nos dedicamos agora.
3.2 UMA UNIVERSIDADE BRASILEIRA COM VOCAÇÃO LATINO-AMERICANA
A criação de uma universidade certamente não é uma questão simples. Entre projeto
pedagógico, estrutura física, localização, recursos humanos, disputas e apropriações políticas e
partidárias, uma miríade de fatores interfere nesse processo. O caso em análise se insere num
momento de proliferação de novas universidades. Desde as instituições surgidas de
desmembramento de campi – caso, por exemplo, da Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD), criada a partir do campus de Dourados da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul (UFMS) – até a elaboração e implantação de dois modelos de universidades.
O primeiro modelo pode ser percebido a partir de propostas distintivas de formação
acadêmica. Está presente, em especial, na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), e na
Universidade Federal do ABC (UFABC). Ambos os casos inspirados na discussão
sistematizada no texto de Naomar de Almeida Filho (2008) da chamada “Universidade Nova”.
Ao contar com o modelo de bacharelado interdisciplinares (BI) e com titulação por ciclos, estas
instituições prezam pela flexibilidade na formação e fornecem ao estudante possibilidades e
caminhos de formação mais amplas, marcadas pela interdisciplinaridade.80
80
Para uma discussão mais aprofundada desse modelo e das questões por ele suscitadas, ver: SANTOS, B.S;
ALMEIDA FILHO, N. (2008).
157
O segundo modelo é constituído pelas instituições com cunho internacionalista: a
Unilab e a Unila. Ambas se definem não apenas a partir de suas características de ensino, mas,
especialmente, por suas características de integração internacional. Voltadas para duas regiões
privilegiadas pela política externa dos governos do PT, apoiam-se na ideia de integração como
seu elemento fundamental. No caso da Unila, vemos uma instituição que se constitui dentro do
universo das universidades brasileiras, inserida nesse contexto histórico e político de discussões
e, também, no âmbito da promoção da integração latino-americana, questões abordadas acima.
Cabe a nós abordar o processo de criação e implementação dessa instituição em Foz do Iguaçu.
A ideia de promover a presença de estudantes estrangeiros em universidades não é uma
inovação do tempo presente. Países ou grupos sociais priorizam o envio de estudantes para o
exterior, como é o caso do próprio Brasil, tanto no período colonial como ao longo de todo o
século XIX (CUNHA, 2007a), como em períodos mais contemporâneos com o programa
Ciência sem Fronteiras. Seja em busca de prestígio social, seja enquanto política de
desenvolvimento nacional, o envio de estudantes para o exterior não é uma novidade. Na outra
ponta, a possibilidade e, em muitos casos, a promoção da presença de estudantes estrangeiros
em universidades também não é uma questão nova. As instituições universitárias
estadunidenses, por exemplo, possuem amplos sistemas de bolsas para estrangeiros. No Brasil,
desde pelo menos a década de 1960, o Programa Estudante de Convênio Gradação, (PEC-G), e
o Programa Estudante de Convênio Pós-Graduação, (PEC-PG), tem promovido a presença de
estudantes africanos e latino-americanos nas universidades brasileiras.81
A grande novidade que se apresenta, na década de 90 e no início dos anos 2000, é o
processo de transformação da educação universitária em serviço regulamentado
internacionalmente no GATS, em 1995. Este acordo internacional transforma a educação
universitária em serviço regulamentado pela Organização Mundial do Comércio. Em
decorrência da competição internacional por mercados educacionais que culminam no Gats, a
União Europeia lança, em 1999, a Declaração de Bolonha que busca padronizar e, dessa forma,
tornar mais competitivo, internacionalmente, o ensino universitário europeu. Bolonha,
juntamente ao Projeto Erasmus, permite um processo de ampla circulação estudantil dentro do
Espaço Comum Europeu.82
81
Sobre esses programas existe uma vasta bibliografia. Textos construídos tanto por intelectuais que pensam o
programa quanto pelos próprios estudantes que tomam em suas monografias, dissertações e teses o programa e os
estudantes como objetos de estudo. A respeito, ver: SIEBEGER (2010) e FERREIRA & OLIVEIRA (2010).
82
Sobre as reformas no ensino universitário europeu e seus impactos no Brasil, ver: FERREIRA & OLIVEIRA
(2010).
158
Se, contemporaneamente, há uma certa ênfase no processo de migração estudantil
através da abertura das instituições universitárias para matrículas de estrangeiros, há também
modelos de produção de universidades que tenham em seus objetivos a presença destes
estudantes. Um dos primeiros casos que pode ser apurado foi o da Universidade Russa da
Amizade dos Povos.83 Criada em 1960, tinha por objetivo a atração de jovens de diferentes
partes do mundo para a propagação da cultura e ideais soviéticos.84 Na América Latina, temos
o caso da Universidad Andina Simón Bolivar (Uasb), com campi na Bolívia, Equador,
Venezuela e Colombia (ALMEIDA, 2015).
No Brasil, foram criadas, quase que simultaneamente, duas instituições de ensino
universitário voltadas para a integração internacional: a Unilab e a Unila. A Unilab tem como
público alvo estudantes de países luso-africanos. Assim, jovens de Moçambique, Angola, etc,
ingressam nessa instituição sediada em Redenção na Bahia. Esta instituição foi fundada por
decreto presidencial, em julho de 2010, apenas 6 meses após o decreto de fundação da Unila.
O processo de constituição da Unila já foi analisado em um número signicativo de
pesquisas. Tendo, em 2018, apenas 8 anos de existência, a instituição já foi alvo de um
importante número de monografias, artigos e, inclusive, pelo menos uma tese em Economia
Política (ALMEIDA, 2015). O trabalho de Almeida, assim como os demais, têm enfatizado o
aspecto integracionista dessa instituição. Da Universidade Federal da Integração LatinoAmericana, é a última parte que toma um escopo maior nas pesquisas realizadas. Seja nos já
citados textos de Ricobom (2010) e Corazza (2010), seja na tese de Almeida, a análise tem
recaído na instituição enquanto elemento e força integradora da América Latina. Seu projeto
pedagógico, sua atuação no campo da pesquisa, ensino e extensão ou as subjetividades
estudantis têm sido ainda pouco explorados nesses textos. Temos tomado como objetivo um
caminho que busque priorizar essas questões.
Antes de avançarmos, faz-se necessário fazer alguns apontamentos sobre as fontes que
utilizamos. Afinal, são centrais para o entendimento do processo de construção da instituição
e, também, para a análise da identidade institucional que é ali construída. A Unila, dentro do
regime de educação universitário brasileiro, conta com um conjunto de documentos que
83
A universidade foi criada em 5 de fevereiro de 1960 sob o nome de Universidade da Amizade dos Povos. Em
1961, passou a se chamar Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba, em homenagem ao primeiro
ministro do Congo deposto, em 1961, por um golpe militar. Após o desmembramento da União Soviética, assume
o nome atual de Universidade Russa da Amizade dos Povos.
84
Há pouca pesquisa sobre esta universidade no Brasil. A título de informação e memória existe um blog de uma
União dos Ex-Estudantes na Russia e Ex-União Soviética: <http://ueruss.blogspot.com.br/>. Acesso em
12/09/2016.
159
formam seu arcabouço legal, pedagógico e de planejamento estratégico. De diferentes formas
abordamos estes três conjuntos. No âmbito legal, temos, pelo menos, a Lei nº 12.189 (BRASIL,
2010), de 12 de janeiro de 2010 que versa sobre a criação da instituição; o Estatuto da
universidade (UNILA, 2012), aprovado em abril de 2012 e o Regimento Geral da Universidade
(UNILA, 2013c), aprovado em junho de 2013. No âmbito pedagógico, encontra-se o Projeto
Pedagógico Institucional – PPI, bem como há os Projetos Pedagógicos dos cursos. Por fim,
temos o planejamento estratégico representado no Plano de Desenvolvimento Institucional –
PDI 2013-2017 (UNILA, 2013a). Todo esse arcabouço legal foi constituído por diferentes
comissões, ainda durante a gestão do Reitor pró-tempore Prof. Dr. Hélgio Trindade.
A construção do projeto da Unila remonta a um desejo articulado entre a política externa
e políticas educacionais do governo Lula. Duplamente inserida no contexto do Reuni e da
ênfase externa Sul-Sul, a ideia de uma universidade de integração regional surgiu no contexto
do Mercosul. Para percebermos o processo de construção de uma identidade e filiação histórica
da Unila, utilizamos, em especial, o PDI, que conta com a parte 2: Perfil Institucional, composto
por dois itens: primeiro, Missão e Objetivos da Instituição e, segundo, Histórico e
Desenvolvimento da Instituição de Ensino. No segundo item, é desenvolvida uma narrativa que
busca situar a Unila no duplo contexto histórico de integração latino-americana e das
universidades. Esta narrativa contitui uma filiação da Unila a uma perspectiva de integração
latino- americana que remontaria a década de 1960:
A proposta de uma universidade latino-americana surgiu na década de 1960, em
reunião realizada pela União de Universidades da América Latina (UDUAL). Na
oportunidade, foram estabelecidas algumas recomendações às Instituições de Ensino
Superior participantes, as quais tornariam precursoras das ações para a integração da
América Latina. Houve uma clara consciência de que a universidade poderia
contribuir para esse processo. As discussões sobre o tema não cessaram, sendo
retomadas algumas décadas depois, no âmbito do Mercosul (UNILA, 2013a, p. 9).
Esse documento institucional, ao tratar da história da Unila, coloca seu ponto fundante,
pelo menos simbolicamente, em 1960. Expande o pertencimento da universidade para além da
proximidade dos debates ocorridos dentro do Mercosul. Assim, a década de 1960, enquanto
tempo, e a Udual, enquanto espaço, se tornaram as coordenadas do processo de fundação da
universidade. Dessa forma, a Unila deixaria de ser apenas um projeto de governo e passa a ser
um projeto mais amplo de integração latino-americana que tem no governo Lula sua emergência
definitiva. Importa apontar que não temos por interesse, necessariamente, questionar essa
filiação. Mas sim, pensar como o passado é utilizado para compor o espaço de experiências que
formaria a identidade da instituição.
160
Em que pese essa filiação constituída no contexto de consolidação institucional da
Unila, é no Mercosul que se aponta o momento de emergência definitiva da ideia de uma
universidade de integração. Num primeiro momento, essa instituição teria sido pensada para
uma atuação integracionista dentro dos países do bloco. A chamada Universidade do Mercosul
seria multicampi, presente em todos os países do bloco e, também, multinacional. Seria pensada
em um modelo parecido ao da Universidad Andina. Em que pese a mudança de ênfase da
integração regional, ocorrida no bloco durante o período do governo Lula (ALMEIDA, 2015),
a Universidade do Mercosul surge como uma proposta de aprofundamento da integração
regional, desta vez, sob a ótica da cultura. O Plano de Desenvolvimento Institucional continua:
Em 2006, durante o Fórum de Educação Superior do Mercosul, os Ministros da
Educação de diversos países latino-americanos se comprometeram a elaborar um
projeto que viabilizasse o então chamado Espaço Regional de Educação Superior do
Mercosul, com o objetivo de promover a cooperação acadêmica solidária entre os
países da região. O Ministério de Estado da Educação do Brasil propôs a constituição
de uma universidade multicampi, com vistas ao desenvolvimento do ensino e da
pesquisa nas diversas áreas do conhecimento e à integração regional. Essa iniciativa
foi denominada Universidade do Mercosul. Todavia, devido às dificuldades legais e
operacionais, a proposta não foi aprovada por dois países do Mercosul inviabilizando
a sua implementação (UNILA, 2013a, p. 9).
A narrativa histórica segue e aponta o Mercosul como o espaço privilegiado do
surgimento da ideia atualizada de uma universidade de integração regional. Ao diferir da
proposta da Udual, esta teria um escopo sub-regional, com área de atuação restrita ao bloco
econômico. A característica que nos chama a atenção é sua condição de universidade
multicampi, o que abriria as possibilidades de atuação da mesma nos diferentes países do bloco.
Assim, a instituição poderia, em tese, atuar tanto na circulação de estudantes pelo bloco quanto
na integração cultural proporcionada pela presença de estudantes, professores e funcionários
estrangeiros em cada país. Entretanto, apesar de ter sido, segundo Almeida (2015, p. 70), bem
recebida no encontro de ministros da educação do Mercosul, realizada em 2006, onde a ideia
foi apresentada, a universidade não saiu do papel. Mesmo assim, a discussão sobre ensino
universitário no bloco conheceu avanços naquele momento.
A proposta da Universidade do Mercosul realizada pelo governo brasileiro foi
acolhida pelos demais membros do Mercosul que decidiram criar, em 2006, o Espaço
Regional de Educação Superior do Mercosul (Eres) como um projeto de ensino e
pesquisa do bloco ligado a educação superior e que têm por princípios: a) lecionar e
pesquisar temas voltados para a integração regional; b) ser composto por campi
universitários instalados em diversos Estados partes e/ou ser parte de programas de
graduação e pós-graduação das instituições de ensino superior dos Estados partes; c)
ter processos seletivos abertos a cidadãos dos Estados parte para os docentes,
discentes, pesquisadores e gestores; d) oferecer cursos nos níveis de graduação e pósgraduação ligados as necessidades da região; e) ser constituído com base na
161
mobilidade acadêmica, incorporando os avanços logrados nas iniciativas já existentes
no Mercosul. Através do Eres lançavam-se bases para a possível criação da
Universidade do Mercosul (ALMEIDA, 2015, p. 2).
Como afirmado pela autora, a implementação do Eres abriria espaço para a implantação
da Universidade do Mercosul e marca um aprofundamento nas possibilidades de integração que
estariam, agora, pautadas em questões culturais, para além das já criadas pautas econômicas.
Entretanto, se o Eres é implantado como projeto, a Universidade do Mercosul, tal como
colocada, não sai do papel. Enquanto os documentos da Unila colocaram como motivação para
esse entrave “dificuldades legais e operacionais” (UNILA, 2013a, p. 9), o Prof. Hélgio
Trindade, em entrevista, aponta o que seriam as dificuldades na implementação desse processo:
Para fazer uma retrospectiva rápida eu diria que o Brasil tentou criar com a proposta
do MEC uma Universidade do Mercosul. [...] E o projeto fracassou por duas razões:
Primeiro, porque o Paraguai não concordou em compartilhar os custos e mesmo a
universidade, porque para o Paraguai talvez fosse um custo mais alto do que a
capacidade que eles teriam para investir; e o Uruguai, porque no Uruguai só existe
uma universidade, que é a Universidade de La Republica. E a constituição não permite
criar uma segunda universidade pública. Então é um monopólio (TRINDADE, 2016).
Se não objetivamos entrar em detalhes diplomáticos a respeito desse processo, cabe a
possibilidade de explorarmos, a partir do relato do Prof. Trindade, o que seriam as “dificuldades
legais e operacionais” apontadas no PDI da Unila. Para tanto, é preciso localizar o papel de
Trindade em todo esse processo. Trindade é doutor em Ciência Política e professor emérito da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), da qual foi reitor entre os anos 1992 e
1996. A época da proposta da Universidade do Mercosul, da qual não participa ativamente, era
coordenador do Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior (Conaes).85 Sua narrativa,
a respeito da proposta desta universidade, vem tanto dessa experiência quanto da posterior
participação e coordenação da Comissão de Implantação da Unila, instituição da qual será
Reitor pró-tempore entre os anos de 2010, sua fundação, até 2013. Com doutorado e trajetória
de pesquisa acerca do integralismo, o prof. Trindade é também autor de uma série de textos
sobre universidades.86 Dessa forma, sua trajetória acadêmica tem sido marcada pela presença
tanto em processos decisórios sobre o ensino universitário brasileiro quanto na produção de
conhecimento acadêmico a respeito das universidades.
Tanto o Eres quanto a Universidade do Mercosul propunham a criação de mecanismos
universitários compartilhados entre os países do bloco, estratégia distinta da adotada pelo
85
Dados disponíveis em: <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4788228J3> Acesso
em:14 set. 2016.
86
Dentre eles é possível destacar: TRINDADE (1996; 2012; 2000).
162
governo brasileiro para a fundação da Unila. Enquanto os projetos fracassados propunham uma
perspectiva institucional multilateral, nos moldes da Universidad Andina, a Unila é uma ação
do Estado brasileiro como promotor de integração. O ordenamento jurídico, o orçamento e o
conjunto de regras de funcionamento se dão dentro da lógica do sistema universitário brasileiro.
Assim, são projetos bastante distintos, apesar de, na ótica brasileira, possuírem objetivos
semelhantes.
Após o fracasso da iniciativa da Universidade do Mercosul, o prof. Hélgio é convidado
pelo então secretário nacional de educação superior a pensar uma alternativa.
Aí passado uns tempos muda o secretário de educação superior e esse novo secretário,
que é um físico aqui de... é professor da Universidade de Santa Maria, ele me telefona
um dia. Eu era do Conselho Nacional de Educação e ele pergunta pra mim se eu teria
interesse. “Avalia esse fracasso e pensa numa alternativa”, eu digo, “olha eu tenho um
bom contato com a América Latina, fui da CLACSO, circulei muito em termos de
ciências sociais, então eu conheço mais ou menos a região e estou disposto a olhar”.
Então eles juntaram aquela documentação toda, eu examinei e digo: “Bom, eu não
vou propor uma nova universidade porque já houve um veto, se o Brasil propõe uma
segunda, ela vai fracassar”. Então eu inventei um negócio que se chamava Instituto
Mercosul de Altos Estudos (TRINDADE, 2016).
O Imea, cuja atual denominação é Imea-Unila,87 surge como uma possibilidade
alternativa ao fracasso da proposta de Universidade do Mercosul. Concentrado em ser um
centro de pós-graduação, com a oferta de cursos de especialização através de Cátedras LatinoAmericanas, tinha como público alvo estudantes de pós-graduação do bloco e, a partir do
surgimento da ideia da Unila e de uma proposta de integração mais ampla envolvendo a
América Latina, de todo o subcontinente. O PDI da Unila também aborda o Imea como
precursor do processo de implantação da Unila e aponta o desdobramento desse instituto
voltado para a pós-graduação e integração regional até a emergência da ideia de uma
universidade de integração:
Considerando a pertinência do projeto, o Ministério da Educação do Brasil buscou
alternativas. Primeiro, foi proposta a criação do Instituto Mercosul de Estudos
Avançados (Imea) que teve a acolhida unânime dos Ministros de Educação, em
reunião realizada em Assunção, como alternativa à Universidade do Mercosul, cujas
atividades estariam focadas na cooperação interuniversitária em nível de pósgraduação. Posteriormente, por orientação do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
foi decidido ampliar o escopo da proposta com novo Projeto de Lei a ser encaminhado
87
Informações sobre o mesmo estão presentes em: <https://www.unila.edu.br/imea> Ali o Instituto é definido
como: “O Instituto Mercosul de Estudos Avançados (IMEA-UNILA) é um órgão suplementar da Reitoria, no qual
a pluralidade de ideias e o estímulo à reflexão sobre a integração regional pelo conhecimento compartilhado nas
áreas das Ciências Naturais, Engenharias, Humanidades, Letras, Artes, Ciências Sociais e Aplicadas, são
constantemente fomentados. Inicialmente, o Instituto foi formado pelas estruturas do Conselho Consultivo LatinoAmericano (Consultin), Colégio de Cátedras Latino-Americanas (Catelam) e Coordenação Científica Colegiada
que, juntos, elaboraram as atividades de ensino, pesquisa e extensão da Universidade” (UNILA, 2016).
163
ao exame do Congresso Nacional que propôs a criação da Universidade Federal da
Integração Latino-Americana, a ser estabelecida em Foz do Iguaçu, Estado do Paraná,
devido à confluência das fronteiras do Brasil com as da Argentina e do Paraguai
(UNILA, 2013a, p. 9).
Este excerto permite a visualização de duas questões importantes para a nossa análise.
Primeiro, a influência pessoal do Ex-Presidente Lula na criação da Unila e, em seguida, a
justificativa para a sua localização, em Foz do Iguaçu. A localização da Unila é colocada como
tendo sido motivada pela confluência da tríplice fronteira. Como abordado no Capítulo 2, esta
cidade constituiu um importante discurso a respeito de sua multiculturalidade e sua localização
fronteiriça. No PDI-Unila, a justificativa elencada é a confluência fronteiriça entre Brasil,
Argentina e Paraguai. Essa condição geográfica já foi utilizada em outros momentos
importantes da relação entre o Brasil e estes países. A exemplo dessa situação, temos a
Declaração do Iguaçu,88 de 1985, considerada, por Almeida (2015), um dos precedentes que
teria possibilitado a formação do Mercosul, em 1991, e, posteriormente, a Unila, localizada na
mesma cidade.
A assinatura da Declaração do Iguaçu, na cidade brasileira de Foz do Iguaçu em 1985,
faz parte do contexto histórico de superação das rivalidades entre Brasil e Argentina,
que possibilitou a criação do Mercosul e, quase dezessete anos depois, a inauguração,
na mesma cidade, da primeira universidade vocacionada para a integração latinoamericana, a Unila (ALMEIDA, 2015, p. 11).
Essa declaração fez parte das cerimonias de inauguração da ponte Tancredo Neves –
primeira ponte de ligação entre os países desde a inauguração da ponte entre Uruguaiana e Paso
de Los Libres, em 1947 - que liga o Brasil e a Argentina através das cidades de Foz do Iguaçu
e Puerto Iguazú. Assim, a cidade tem sido utilizada como elemento da política externa brasileira
muito antes da inauguração da Unila, em especial, através de obras de infraestrutura, como a
Itaipu, a Ponte da Amizade e a Tancredo Neves.
A perspectiva geográfica, como forma de legitimação da localização da universidade
em Foz do Iguaçu, se apresenta também no livro “A Unila em Construção”: “O primeiro desafio
foi o de pensar a Unila como universidade sem fronteiras, no contexto da região trinacional,
envolvendo o nordeste da argentina, o leste do Paraguai e o oeste brasileiro” (IMEA, 2009b, p.
7). A universidade que se quer “sem fronteiras” se legitima, geograficamente, através da
proximidade com fronteiras políticas. A instituição opta, em sua narrativa, pelo discurso
fronteiriço e não pela perspectiva multicultural tão evidenciada na propaganda da cidade. A
88
Tratado assinado entre Brasil e Argentina que teria lançado as bases para as propostas de integração econômica
da região consolidadas no Mercosul.
164
diversidade cultural daquela urbanidade será muito mais evidenciada na narrativa dos sujeitos
que constituem essa instituição, principalmente os estudantes – de maneira crítica – que no
discurso oficial da Unila.
Um segundo elemento levantado na página anterior é importante para compreender a
transição entre o Imea, um instituto voltado para a pós-graduação, e a constituição de uma
proposta de universidade.89 Essa transformação implica uma série de mudanças, desde a
necessidade de uma estrutura física que comporte tal proposta institucional até a solução de
diferentes demandas trazidas pela constituição de uma universidade. Segundo o PDI-Unila, foi
“por orientação do presidente Luís Inácio Lula da Silva” que o escopo institucional teria sido
transformado. Desta forma, localiza-se, na figura do ex-presidente, a responsabilidade da
criação da instituição da forma como se configura, atualmente. Essa perspectiva será ratificada
por Hélgio Trindade, em entrevista concedida para esta pesquisa. Após a apresentação da
proposta do Imea, para o então ministro da educação, Fernando Haddad, a ideia é levada até o
ex-presidente:
E o que aconteceu: o Haddad volta muito contente com esse avanço. Há uma
recomendação de que isso possa se criar. Então mostra pro Lula e o Lula reage de uma
forma inesperada. Ele diz: “Olha eu acho que esse instituto é uma bela ideia, agora,
eu quero uma universidade”. Aí o Haddad me chamou e disse: “Olha, temos um
problema. O Lula gostaria que, embora o instituto possa integrar essa universidade,
ele gostaria que fosse uma universidade. Porque ele andou vendo umas experiências
aí, inclusive acho que em Cuba, faculdades latino-americanas de medicina e ele está
convencido de que colocar estudando junto latino-americanos nascidos no Brasil e
nascidos em outros países, nós estaríamos criando um clima de cooperação intelectual
de fraternidade no dia-a-dia e que acabaria tendo um efeito para uma verdadeira
integração muito maior que acordos e estratégias econômicas ou sociais apenas”. E aí
nós tivemos que partir para a elaboração de uma lei [...] então o Lula ficou satisfeito
(TRINDADE, 2016).
Enquanto o Imea estaria mais voltado para a formação de pós-graduandos com
perspectivas integracionistas, a universidade poderia ser, pelo menos esta é a ideia narrada, ela
própria um espaço de integração latino-americana. A aposta estava nas possibilidades que a
convivência intercultural entre estudantes, professores e funcionários estabeleceriam naquele
espaço. Há um deslocamento do mecanismo privilegiado de integração que, no Imea, se daria
através da produção do conhecimento para uma integração proporcionada pela
Importa destacar que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB define universidades como: “Art. 52. As
universidades são instituições pluridisciplinares de formação dos quadros profissionais de nível superior, de
pesquisa, de extensão e de domínio e cultivo do saber humano, que se caracterizam por: I - produção intelectual
institucionalizada mediante o estudo sistemático dos temas e problemas mais relevantes, tanto do ponto de vista
científico e cultural, quanto regional e nacional; II - um terço do corpo docente, pelo menos, com titulação
acadêmica de mestrado ou doutorado; III - um terço do corpo docente em regime de tempo integral” (BRASIL,
1996).
89
165
interculturalidade. Ao mesmo tempo, enquanto o Imea, até mesmo em seu nome, está voltado
para o Mercosul, a Universidade da Integração Latino Americana carrega, em seu nome, tanto
quanto em sua sigla – Unila é foneticamente igual a “uni-la” – a proposta de integração da
América Latina. Este deslocamento é acompanhado na bibliografia sobre a Unila, em especial
naquela produzida ainda durante o processo de implantação. Significativo dessa questão é que
vários trabalhos que tomam a instituição como objeto, a pensam vinculada à estratégia de
política externa e menos enfaticamente enquanto instituição acadêmica. Sobre o tema, vejamos
o texto de Gentil Corazza:90
À medida que este projeto possa ser implementado de acordo com o que vem sendo
concebido, a universidade poderá representar um poderoso e mais qualificado
instrumento de integração latino-americana, em especial porque se volta
completamente para a promoção da integração dos povos latino-americanos –
objetivo a ser perseguido não por meio de instrumentos comerciais ou políticos, mas
por meio da educação, da cultura, da ciência e das artes. Não é de hoje que muitas
universidades da América Latina vêm se preocupando com a temática da integração,
mas a Unila poderá representar um novo marco neste processo, uma vez que foi criada
com a missão específica de promovê-la. O fato de estar localizada na fronteira entre
três países não significa que pretenda restringir suas ações aos limites territoriais
destes países. Ao contrário, este fato tem um acentuado conteúdo simbólico, pois
sugere que a Unila será uma universidade sem fronteiras que visa unir os países latino
americanos em torno de seus valores e interesses comuns, respeitando ao mesmo
tempo suas identidades e suas diferenças. Efetivamente, trata-se de uma universidade
federal brasileira com vocação latino-americana (CORAZZA, 2010, p. 79) [grifos
nossos].
Como é possível perceber, a ênfase na análise está na ideia de integração que vai da
universidade sem fronteiras até a missão específica de promover a integração. Como é possível
visualizar nas indicações de textos apresentados acima, esta é a ênfase da bibliografia sobre a
Unila. Essa produção valoriza o que seria o diferencial dessa proposta integracionista: não mais
os acordos comerciais, a serviço do capital financeiro, industrial ou comercial, mas uma
integração regional constituída a partir de elementos culturais. Um projeto que buscaria
integrar, a partir da valorização de interesses e características comuns sem, no entanto, apagar
ou silenciar as diferenças. Da homogeneização do mercado para a pluralidade intercultural das
populações, esse nos parece ser o movimento privilegiado pelos autores. Uma posição que
coloca as universidades como motores desse processo, afinal, se essa instituição social aparece
90
Gentil Corazza é professor titular da UFRGS, formado em Filosofia e Economia, com Doutorado em Ciências
Econômicas. Foi professor visitante da Unila entre os anos de 2009 até 2011. De acordo com informações
disponibilizadas em seu currículo lattes, seus temas de interesse são: “Estado e economia, história do pensamento
econômico, banco central, sistema financeiro, liberalismo, regulação, dinheiro, globalização financeira,
metodologia
da
economia
e
integração
da
América
Latina”.
Disponível
em:
<http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4794869E6>. Acesso em: 15 set. 2016.
166
como espaço de produção e problematização da cultura, pensá-la enquanto motor de integração
cultural é algo não apenas factível, mas de significativa importância.
Esta ênfase na análise da Unila não está presente apenas na narrativa daqueles dedicados
a estudá-la. A concepção do processo de sua criação está fortemente marcada pela perspectiva
de que seu objetivo e missão institucional é a promoção da integração latino-americana, da
mesma forma que a construção da Unilab está marcada pela proposta da integração luso-afrobrasileira. Isso pode ser facilmente percebido quando analisadas as leis de criação dessas
instituições. As universidades federais criadas, no país, a partir de 1996, com a vigência da
LDB, possuem leis de criação relativamente semelhantes. Seus textos contam, entre a
diversidade de artigos, com um no qual é explicitado o objetivo daquela instituição.
Basicamente existem dois modelos de redação:
Art. 2º A UFGD terá por objetivo ministrar ensino superior, desenvolver pesquisa nas
diversas áreas do conhecimento e promover a extensão universitária (BRASIL, 2005).
Art. 2o A UFCA terá por objetivo ministrar ensino superior, desenvolver pesquisa nas
diversas áreas do conhecimento e promover a extensão universitária, caracterizando
sua inserção regional mediante atuação multicampi (BRASIL, 2013).
Ambas as leis de criação atentam aos objetivos elencados na Lei de Diretrizes e Bases
de 1996 a respeito da definição de universidade. A redação é basicamente idêntica, mudando
apenas na questão da inserção regional. Enquanto a UFCA tem atuação regional através de uma
estrutura multicampi, essa questão não é levantada pela lei de criação da UFGD. No caso da
Unila, a lei possui características bastantes específicas:
Art. 2o A Unila terá como objetivo ministrar ensino superior, desenvolver pesquisa
nas diversas áreas de conhecimento e promover a extensão universitária, tendo como
missão institucional específica formar recursos humanos aptos a contribuir com a
integração latino-americana, com o desenvolvimento regional e com o intercâmbio
cultural, científico e educacional da América Latina, especialmente no Mercado
Comum do Sul - MERCOSUL.
§ 1o A Unila caracterizará sua atuação nas regiões de fronteira, com vocação para o
intercâmbio acadêmico e a cooperação solidária com países integrantes do Mercosul
e com os demais países da América Latina.
§ 2o Os cursos ministrados na Unila serão, preferencialmente, em áreas de interesse
mútuo dos países da América Latina, sobretudo dos membros do Mercosul, com
ênfase em temas envolvendo exploração de recursos naturais e biodiversidades
transfronteiriças, estudos sociais e linguísticos regionais, relações internacionais e
demais áreas consideradas estratégicas para o desenvolvimento e a integração
regionais (BRASIL, 2010).
167
Diferentemente das outras instituições criadas nos anos 2000, das quais a Ufca e a
UFGD são tomadas como exemplo, a Unila possui, já em sua lei de criação, uma missão
institucional específica. A integração latino-americana, o desenvolvimento regional e
intercâmbio cultural em diferentes níveis são articulados na legislação como missão da
universidade. Aliou-se à dimensão acadêmica universitária e proposta política da integração.91
Dentro desse objetivo, o Mercosul surge como o ponto central, a partir do qual se projetará o
processo de integração. Se o alvo do processo é o subcontinente, a área de atuação privilegiada
é o Mercosul.
A instituição se distingue de suas congêneres em sua missão institucional. Calca sua
proposta naquilo que denomina de integração regional através de cooperação solidária. Aqui,
coloca-se a solidariedade regional em evidência, diferentemente dos blocos econômicos que se
utilizam da legitimidade conferida pela competitividade econômica internacional como forma
de legitimação. Ao mesmo tempo, apesar de financiada, organizada e de responsabilidade única
do governo brasileiro, dentro do espírito da cooperação solidária, coloca a determinação das
áreas de atuação acadêmica, os cursos de graduação, sob a perspectiva do cumprimento das
necessidades regionais, em especial o Mercosul, ao invés de submeter essas definições apenas
a demandas acadêmicas de seus membros.
A ênfase no Mercosul, enquanto espaço de atuação e discussão, coloca o bloco quase
como uma plataforma de lançamento da proposta de integração. Utiliza uma estrutura regional
relativamente consolidada para, a partir daí propor um salto integracionista para toda a América
Latina. Esta proposta institucional foi corroborada pelo paulatino oferecimento de matrículas
aos estudantes de diferentes países ao longo do processo de implementação da universidade
entre 2010 e 2016, como pode ser visto na Tabela 1.
91
O mesmo acontece na lei de criação da Unilab. A diferença está somente na área de atuação de cada instituição,
mas os princípios e a perspectiva integradora são as mesmas.
168
Ano de Ingresso
Brasileiros
Paraguaios
Argentinos
Uruguaios
Peruanos
Chilenos
Bolivianos
Colombianos
Equatorianos
Venezuelanos
Salvadorenhos
Haitianos
Panamenhos
Cubanos
Guatemaltecos
Dominicanos
Costarriquenhos
Franceses92
Total
Tabela 1 – Número de estudantes matriculados por nacionalidade/ano (UNILA, 2016)
2010
25
17
6
2
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
50
2011
69
35
6
11
7
0
10
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
138
2012
115
52
8
13
38
2
22
25
38
15
4
0
0
0
0
0
0
0
332
2013
3
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
393
2014
293
84
16
17
1
2
11
26
7
0
0
0
0
0
0
0
0
1
458
2015
689
108
19
7
7
31
31
13
14
4
7
61
0
0
0
0
0
0
991
2016
790
119
20
2
14
12
12
72
8
4
10
10
2
4
1
1
3
0
1084
Total
1984
415
75
52
67
47
86
136
67
23
21
71
2
4
1
1
3
1
3056
Fonte: elaboração do autor.
O primeiro ingresso de estudantes de graduação acontece no ano de 2010. Nesse
momento, apenas estudantes dos chamados “Estados Parte” do Mercosul ingressaram na
instituição94. Tendo a Venezuela se tornado “Estado Parte” apenas em 2012, os ingressantes,
no total de 50 estudantes, são provenientes de Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina. Já em
2011, há uma ampliação para fora do núcleo dos Estados Parte, com o ingresso de 7 peruanos
e 10 bolivianos. E, em 2012, ocorre a ampliação do ingresso para estudantes de fora do âmbito
do Mercosul e da América do Sul, com o ingresso de 4 estudantes salvadorenhos. Estes dados
tornam evidente como o bloco regional funcionou como plataforma de lançamento para a
expansão da universidade.
92
Originários da Guiana Francesa.
O ano de 2012 foi marcado por uma greve nas universidades federais que durou cerca de 4 meses. O atraso no
ano letivo de 2012 e 2013 levou a uma opção, por parte da Unila, de não realizar ingresso naquele ano. Os processos
de seleção foram normalizados nos anos seguintes. Com relação aos 3 novos estudantes, são ingressantes em vagas
remanescentes.
94
O Mercosul é composto por todos os países da América do Sul em diferentes graus de filiação e associação.
“Composição do Bloco: Todos os países da América do Sul participam do MERCOSUL, seja como Estado Parte,
seja como Estado Associado. Estados Partes: Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai (desde 26 de março de 1991) e
Venezuela (desde 12 de agosto de 2012). Estado Parte em Processo de Adesão: Bolívia (desde 7 de dezembro de
2012). Estados Associados: Chile (desde 1996), Peru (desde 2003), Colômbia, Equador (desde 2004), Guiana e
Suriname (ambos desde 2013)” (BRASIL, 2016).
93
169
Ainda longe da meta de 10.000 estudantes propagada em âmbitos institucionais como o
objetivo da Unila, a presença de cerca de 300095 estudantes, 1072 dos quais provenientes de 17
países, além do Brasil, permite pensar a instituição como um fator no processo de integração
regional (UNILA, 2018). Principalmente se considerarmos que o ano de 2015 foi marcado por
um significativo aumento de ingressos de estudantes, o que deve ser consolidado quando os
cursos iniciados nesse ano completarem suas turmas.
Para finalizar, a análise do processo de construção da Unila enquanto elemento de
fomento da integração regional, gostaríamos de apontar mais uma questão presente na lei de
criação da universidade. Diferentemente das demais leis de criação de universidades nos anos
2000 – exceção feita à Unilab que, como já dito, possui características semelhantes – no caso
da Unila, vemos a inserção de um artigo que busca regulamentar a presença de professores e
estudantes estrangeiros na instituição. Demarca, assim, a nível de lei federal o caráter de
presença multinacional de seus docentes e discentes:
Art. 14. Com a finalidade de cumprir sua missão institucional específica de formar
recursos humanos aptos a contribuir para a integração latino-americana, o
desenvolvimento regional e o intercâmbio cultural, científico e educacional da
América Latina, especialmente no Mercosul, observar-se-á o seguinte:
I - a Unila poderá contratar professores visitantes com reconhecida produção
acadêmica afeta à temática da integração latino-americana ou do Mercosul, sendo
observadas as disposições da Lei no 8.745, de 9 de dezembro de 1993;
II - a seleção dos professores será aberta a candidatos dos diversos países da região, e
o processo seletivo será feito tanto em língua portuguesa como em língua espanhola,
versando sobre temas e abordagens que garantam concorrência em igualdade de
condições entre candidatos dos países da região;
III - os processos de seleção de docentes serão conduzidos por banca com composição
internacional, representativa da América Latina e do Mercosul;
IV - a seleção dos alunos será aberta a candidatos dos diversos países da região, e o
processo seletivo será feito tanto em língua portuguesa como em língua espanhola,
versando sobre temas e abordagens que garantam concorrência em igualdade de
condições entre candidatos dos países da região; e
V - os processos de seleção de alunos serão conduzidos por banca com composição
internacional, representativa da América Latina e do Mercosul (BRASIL, 2010).
95
Em 2018, esse número já chega a 4.358 estudantes. Entretanto, não está disponibilizado a divisão por
nacionalidade e curso como em anos anteriores (UNILA, 2018).
170
A especificidade da universidade força um arranjo legal que possa dar conta das
necessidades imaginadas da instituição. Dessa forma, cria-se um aparato legal que busca
amparar tanto a proposta de integração quanto o fato de que estava a ser projetada uma
universidade que necessita de estruturas para cumprir sua função social e constitucional de
ensino, pesquisa e extensão. A saída encontrada é a possibilidade de normatização e
normalização através do uso de ordenamentos jurídicos já existentes – como a lei que versa
sobre a contratação de professores estrangeiros – do ingresso de docentes e discentes
estrangeiros na universidade. Cabe ainda sobre esse tema duas ressalvas importantes.
A primeira diz respeito a presença, ou melhor, à ausência de funcionários estrangeiros
na instituição. Enquanto a vinda de professores de fora do país é prevista já na legislação, a
possibilidade de funcionários não está presente. Este é um dos limites encontrados no projeto
da universidade que é elencado em entrevistas realizadas com técnicos administrativos da
instituição:
Emerson96: É assim, por lei, os técnicos não são estrangeiros. Alguma coisa que não
sei te dizer, como se optassem por viver no Brasil, não sei. É por lei só os Brasileiros
os técnicos, os professores que tem essa possibilidade de serem professores
estrangeiros. Por um lado, seria muito bom técnicos de outros países, por que a gente
acaba forçando os alunos a falarem português, já que não é pré-requisito [para os
técnicos] falarem espanhol. No concurso para técnico é uma prova suave de 5
questões.
Entrevistador: Nível de proficiência.
Emerson: Não. Interpretação de texto 5 questões de português e 5 questões de
espanhol, nem pra dizer que é bom em português e nem pra dizer que você é bom
espanhol (EMERSON, 2016).
A ausência da possibilidade de contratação de técnicos estrangeiros, de língua
espanhola, limita aquele que seria um dos pilares da instituição: o bilinguismo. Aliado a essa
impossibilidade, a fragilidade na prova de línguas no momento do concurso que, segundo o
entrevistado, não é capaz de avaliar efetivamente o domínio mesmo que básico do espanhol,
dificultaria a comunicação com os estudantes estrangeiros.97 Esse quadro se agrava quando em
2014 e 2015 ingressam estudantes de língua francesa e os estudantes haitianos provenientes de
um país multilíngue, onde convivem o espanhol, o francês, o inglês e o criouli como falas
cotidianas.
96
Funcionário da Secretaria de Comunicação da Unila. A entrevista foi realizada em 6 de março de 2016, em seu
escritório na universidade.
97
Para complexificar essa discussão, temos os casos de estudantes provenientes de comunidades tradicionais, com
línguas maternas como o quéchua, ou mesmo, no caso dos estudantes paraguaios, o guarani.
171
Aqui é possível perceber um dos “limites” do projeto Unila. O fato de ser uma
“universidade brasileira com vocação latino-americana” a coloca numa encruzilhada
importante. O ordenamento jurídico a qual deve seguir e se orientar é o das instituições
universitárias federais brasileiras. Não houve a criação de alguma espécie de “mandato”
especial para a Unila. Diferentemente da já abordada Universidade do Mercosul, aqui falamos
de uma instituição nacional que visa integração internacional. Tal formatação demandou que,
em determinados momentos, a ênfase estivesse mais em “universidade brasileira” do que em
“vocação latino-americana”. Isso fica evidente na questão dos funcionários. Como abordado
pelo entrevistado, a possibilidade de contratação de servidores estrangeiros poderia contribuir
para a pluralidade linguística ou, ao menos, bilíngue, cuja qual está no cerne da proposta
institucional. A ausência dessa possibilidade limitaria a integração ao forçar os estudantes
estrangeiros a conviver com o português como sendo, na prática, a língua institucional.
Outro ponto em que essa limitação aparece surgiu para nós na tentativa de verificação
de uma informação amplamente difundida na comunidade acadêmica da Unila. Pesquisadores,
funcionários, estudantes e professores afirmam, em diferentes momentos, que a universidade,
por lei, deve disponibilizar 50% de suas vagas para estudantes brasileiros e 50% de suas vagas
para estrangeiros. Nesse sentido, vejamos:
A meta é ter 10.000 alunos e 500 professores, sendo uma metade oriunda do Brasil e
a outra da América Latina. Essa exigência está no centro das reflexões da Comissão
na medida em que se torna necessário conceber um projeto pedagógico de alcance
inter e transdisciplinar que, tendo como substrato a convivência intelectual e o diálogo
intercultural, ofereça um ensino e desenvolva pesquisas e programas de extensão de
elevado nível acadêmico (IMEA, 2009, p. 11).
No mesmo sentido, a lei de sua criação define que 50% dos professores e 50% dos
alunos deverão ser brasileiros e os outros 50% do corpo docente e do corpo discente
oriundos dos demais países latino-americanos (CORAZZA, 2010, p. 79).
A Unila foi projetada para ser uma instituição vocacionada, dedicada ao ensino e à
pesquisa da integração regional, com metade das vagas docentes e discentes
destinadas a brasileiros e a outra metade a cidadãos dos demais países da América
Latina (ALMEIDA, 2015, p. 75).
Buscando verificar tal informação nos deparamos com o fato de que não existe tal
determinação na lei de criação, tampouco no estatuto ou regimento geral da universidade. Essa
questão aparece brevemente no PDI, publicado em 2013. Mas é apenas uma resolução de 2014
que regulamente essa questão, a qual afirma:
172
Art. 3º Para cumprir sua vocação legal e com fulcro no Inciso IV, Artigo 14, da Lei
12.189/2010, a seleção de alunos de graduação da UNILA objetivará o preenchimento
de suas vagas com 50% (cinquenta por cento), por curso e turno, de estudantes
brasileiros e com 50% (cinquenta por cento), por curso e turno, de estudantes naturais
e residentes nos demais países da América Latina e Caribe. Parágrafo único. Não
havendo preenchimento do percentual de vagas com brasileiros e/ou com estrangeiros,
como previsto no caput, as mesmas serão remanejadas automaticamente (UNILA,
2014).
Apesar da disseminação, na comunidade acadêmica, de que a universidade teria por
obrigação a disponibilização de 50% de suas vagas de estudantes e professores para
estrangeiros, o mesmo só é regulamentado por uma resolução do conselho universitário da
Unila. Apesar disso, tem sido prática presente, em todos os editais de seleção de estudantes, a
disponibilização da metade das vagas para os estudantes de fora do país. Sendo assim, o que
propomos refletir é que, apesar da existência da prática, seu amparo e garantia legal são frágeis.
A disseminação da informação não condiz com garantias sólidas do cumprimento dessa
política. A presença de metade de estudantes estrangeiros está sujeita, além do interesse desses
estudantes, dos interesses conjunturais dos membros do conselho universitário. Algo que pode
tornar problemático essa política, no longo prazo.
Temos nos dedicado até aqui a pensar a Unila sob a ótica da integração. Essa tem sido
a perspectiva dominante nas análises da instituição. Monografias, dissertações e teses
elaboradas sobre essa instituição – bem como sobre a Unilab, instituição congênere – tem se
dedicado a abordar essas instituições a partir da ótica da promoção da instituição. Muitas vezes,
há uma secundarização da sua condição de instituição universitária. Para que possamos atingir
nossos objetivos, faz-se necessário abordar a Unila a partir de sua perspectiva acadêmica.
3.3 UNILA: PARA ALÉM DA INTEGRAÇÃO?
A Unila carrega consigo a característica de ser uma universidade promotora da
integração. Não apenas se insere nesse processo, mas também tem, por função, pensar
estratégias políticas, culturais e sociais de promoção desse projeto integrador. Mas, nem só de
projeto integrador vive uma universidade. Diferentemente de órgãos e instituições
governamentais ou supranacionais, como é o caso da Comissão Econômica para a América
Latina (Cepal), da Organização dos Estados Americanos (OEA), Unasul, Mercosul, etc, a Unila
tem na Integração uma de suas vocações legais. Entretanto, ela também é uma universidade.
Tal fato traz consigo responsabilidades no campo do ensino, da pesquisa e da extensão, bem
como do domínio e cultivo do saber humano, como definido pela Lei de Diretrizes e Bases da
173
Educação (LDB) de 1996. Dessa forma, a construção de uma instituição com essas
características possui especificidades que devemos levar em consideração ao pensar as
experiências estudantis.
Como já afirmamos e apontamos através do diálogo com diferentes autores, as análises
sobre a Unila têm se concentrado sobre suas características integracionistas. Pesquisadores de
diferentes campos do conhecimento e vinculação com a instituição têm dedicado seus trabalhos
a pensar aquela que é sua característica distintiva em relação as outras instituições universitárias
brasileiras, exceção feita à Unilab. Mesmo assim, em diferentes momentos, alguns estudiosos
têm pensado a proposta acadêmica institucional. O que objetivamos é justamente pensar,
mesmo que brevemente, essa organização acadêmica, para que, a seguir, possamos perceber
como essa dimensão atravessa e é atravessada pela experiência dos estudantes.
Já comentamos como se constituiu uma narrativa acerca da Unila que tenta inseri-la no
contexto das universidades latino-americanas, bem como na historicidade do processo de
integração desse subcontinente. Corazza (2010, p.23) aponta como o projeto Unila se coloca
numa perspectiva de continuidade desse processo. Entretanto, a especificidade da universidade,
enquanto espaço de conhecimento com projeto integrador, força adaptações e inovações no
campo institucional e acadêmico. Desde seu organograma até a nomenclatura dos cursos passa
por uma problematização e, pelo menos, a início, foram desenhados na busca de construir e
evidenciar sua proposta integradora. É bastante evidente que a fundação da Unila surge da
perspectiva de promoção da integração. Não fosse isso, uma universidade, aos moldes das
demais criadas no período, poderia ter sido construída em seu lugar. Isso fica claro em todas as
etapas do projeto e está explicitado na lei de criação. Resta pensar que tipo de instituição
acadêmica é construída para essa proposta integracionista. Qual o lugar e que tipo de
conhecimento acadêmico e cultural estaria sendo pensado.
A construção da Unila foi marcada por debates e embates de concepções e perspectivas
de universidades diversas. Entre 2006, quando foi proposta e abortada a Universidade do
Mercosul, e 2010, momento da assinatura da lei de criação, o projeto passou por diversos
momentos. Já em 2007, é criado, mas não oficializado, o Imea, a partir do qual serão
constituídos eventos, debates e palestras que buscavam subsidiar a formação do que seria a
Unila. É em 2009, dentro da coordenação institucional da UFPR, instituição tutora da Unila,
que se oficializa o Imea. Nesse momento, e a título de “inauguração”, ocorre a realização do 1º
Colóquio Internacional Educação Para a Integração Latino-Americana.
174
[...] e convidamos para falar nessa ocasião o Reitor da Universidade Simon Bolívar,
do Equador, que foi criada pelo parlamento dos países do Pacífico. Uma das mais
bonitas é a do Equador. E como essa foi uma experiência imposta pelo conselho, pelo
parlamento latino dessa região, eles tiveram que trabalhar intensamente no termo. Aí
com isto, ele tinha muita coisa a dizer da sua experiência, já que a nossa foi uma
decisão do governo e o parlamento [Mercosul] ao contrário, foi resistente a uma
universidade que fosse feita para o Mercosul (TRINDADE, 2016).
A experiência prévia da Universidade Simon Bolívar é utilizada para subsidiar os
trabalhos de formulação da proposta da Unila. Mesmo que aquela instituição fosse mais focada
na pós-graduação que na graduação, sua experiência aparece valorizada nas palavras do
Presidente da Comissão de Implantação. Também dentro da perspectiva desse debate, com
intelectuais latinos, surge a proposta da criação de uma consulta internacional, na qual
pesquisadores de diversas partes do mundo serão solicitados a colaborar com ideias para a
formulação do projeto pedagógico e político da instituição.
A ideia de uma consulta a intelectuais não é uma novidade na criação de universidades,
no Brasil. Foi realizada, anteriormente, para a construção daquela que Trindade considera como
um dos modelos paradigmáticos dessas instituições no país: a criação da UnB sob a
coordenação de Darcy Ribeiro:98
Resgatando a ideia da consulta realizada por Darcy Ribeiro com cientistas,
professores e intelectuais brasileiros, por ocasião da elaboração da proposta de criação
de Brasília, decidiu-se encaminha uma consulta, agora de âmbito internacional, com
especialistas de várias áreas do conhecimento. Com este objetivo, elaboramos um
texto com a apresentação do projeto da Unila, acompanhado de algumas questões
estratégicas e encaminhamos para colher suas contribuições. Foi a primeira exposição
da Unila no plano internacional e sua proposta teve uma acolhida muito favorável
entre os seus destinatários. O número de respostas foi bastante significativo e
representativo do interesse suscitado pela nova universidade (IMEA, 2009a, p. 7).
A consulta conta com a resposta de 46 intelectuais das Américas e da Europa. Apesar
de não ter sido possível descobrir o número de solicitações enviadas pela comissão de
implantação, a quantidade de respostas de intelectuais de diferentes partes do mundo evidencia
um interesse e uma disponibilidade de contribuição relevante. A ideia da consulta se legitima
através do uso do passado. A experiência de Darcy Ribeiro e da UnB é utilizada como elemento
de aprendizado e legitimação do processo de implantação. Uma das diferenças entre as duas
consultas é o caráter internacional daquela realizada pela Comissão de Implantação da Unila,
enquanto no caso de Ribeiro, na UnB, a consulta foi majoritariamente realizada com intelectuais
brasileiros. Já na Consulta, ao convidar intelectuais de diferentes países, em especial da
Em 1963, a Universidade do Brasil – atual UFRJ – passou por processo semelhante ao realizar uma ampla
consulta para seu processo de reforma. Empresários, estudantes e professores foram consultados (CUNHA, 2007,
p. 148).
98
175
América Latina, a universidade começa a construir uma identidade integracionista. Essa
perspectiva será aprofundada na “Carta aos Especialistas” elaborada por Trindade e enviada
aos intelectuais convidados juntamente com um “Roteiro da Consulta” que objetivava
contextualizar e orientar as contribuições.
No contexto das discussões ocorridas nos últimos anos sobre o desafio da integração
regional na América Latina, tanto no âmbito do Mercosul, como de toda a América
Latina, o Ministério da Educação do Brasil tomou a decisão de criar uma Universidade
Federal para a Integração da América Latina (Unila), cujo projeto de lei encontra-se
tramitando no Congresso Nacional. O princípio básico que orientou essa proposta foi
a perspectiva de promover a integração pelo conhecimento e pela cultura, para
subsidiar a aspiração histórica de uma América Latina solidária e integrada em seus
objetivos comuns (IMEA, 2009a, p. 8).
Essa contextualização do processo de construção da universidade é acompanhada por
um roteiro de 5 páginas no qual se apresentam aqueles que seriam os objetivos e a missão da
instituição, de acordo com a lei 2878/2008 (BRASIL, 2008)99, que tramitou no Congresso
Nacional. Nesse roteiro, há uma ênfase bastante significativa na questão da qualidade
acadêmica da instituição. Essa qualidade seria o suporte a partir do qual a proposta
integracionista poderia prosperar e legitimar-se. Há um grande peso à questão do conhecimento
e sua produção.
A questão da qualidade tem merecido a melhor das atenções da Comissão. Trata-se
de entender esse vocábulo em diferentes dimensões, sobretudo nos planos ético e
cognitivo. Espera-se que os docentes e os estudantes a serem formados pela Unila,
com competência e atitude ética, para o surgimento de cenários sociais e políticos à
altura da responsabilidade planetária que se requer neste novo milênio para todas as
pessoas e instituições. É essa visão global de sociedade que fundamenta uma
metodologia de visão sistêmica. A evolução do conhecimento disciplinar para o inter
e transdisciplinar, em que pesem a magnitude dos desafios metodológicos, deve ser
praticada e perseguida pela Unila. Os projetos de pesquisa e a prática pedagógica
devem refletir essa inovação (IMEA, 2009a, p. 11).
A perseguição ao ideal de qualidade e de visão global da sociedade, através de atitudes
éticas, se materializam em elementos almejados na formação dos estudantes. Essa preocupação
será compartilhada com os intelectuais escolhidos para a consulta internacional. A eles serão
endereçadas 7 perguntas que deverão servir como roteiro para suas contribuições:
99
A lei de criação da Unila é aprovada, em 2010, sob o número 12.189. As alterações entre o projeto original e a
lei promulgada são apenas de âmbito orçamentário e burocrático que adequam a Unila às prerrogativas financeiras
das demais universidades federais.
176
1. Como articular a missão da Unila com o contexto da mundialização e do crescente
diálogo entre as culturas?
2. Quando se fala em integração latino-americana, diversas abordagens e
considerações, sob diversos ângulos, são referidas. Quais deveriam ser os eixos mais
importantes dessa proposta no contexto de uma universidade pública brasileira?
3. Quais seriam, em sua avaliação, os eixos temáticos mais importantes e os cursos e
programas de pesquisas decorrentes, que deveriam compor o plano acadêmicocientífico da Unila?
4. Diante da tendência da inter e transdisciplinaridade, em função da complexidade
das transformações do conhecimento, quais as implicações para a estrutura
acadêmica, seu projeto pedagógico nos campos das ciências e/ou das humanidades?
5. Sendo um dos principais diferenciais da nova instituição recrutar professores e
alunos oriundos de vários países latino-americanos, que inovações poderiam ser
adotadas nas atividades de ensino, pesquisa e extensão?
6. Qual a melhor forma de selecionar os futuros alunos da Unila para assegurar a
igualdade de oportunidades entre os candidatos de diferentes países da América
Latina?
7. Numa universidade voltada para os desafios da América Latina, como harmonizar
o local, o regional e o universal? (IMEA, 2009a, p. 13).
Praticamente todo o escopo da universidade está presente nestas questões. Desde a
seleção de estudantes e professores até a concepção de conhecimento presente na instituição,
bem como a estrutura organizativa é colocada em debate. Igualdade, inter e transdiciplinaridade
e integração são eixos estruturantes dessas perguntas. Não se solicita ponderações sobre a
validade da proposta, pois a mesma é tomada como dada. Isso pode ser explicado pelo contexto
de elaboração do questionário. A comissão de implantação já estava formada, o escopo geral
da universidade também, restava operacionalizar a instituição. Assim, o debate sobre uma
universidade enquanto elemento da integração latino-americana não é questionado. É debatido
no contexto do governo brasileiro e, no máximo, no âmbito do Mercosul, o qual havia vetado
uma iniciativa universitária multinacional.
A construção e definição dos cursos a serem oferecidos é articulada com vistas as
preocupações presentes, tanto no questionário quanto no excerto anterior. Uma das perspectivas
centrais pode ser percebida por um expressivo silêncio nessa definição. Em nenhum momento
se percebe a figura do Estado como elemento central da Universidade. A instituição,
diferentemente daquelas tradicionais montadas sob a ótica da concepção napoleônica de
universidade100, não estaria a serviço do Estado, mas dos latino-americanos ou, mesmo, de uma
“responsabilidade planetária”. Esta é, segundo Trindade, uma premissa básica presente na
concepção da instituição. Após uma fala de contextualização da universidade brasileira, na
História, ele comenta:
100
Sobre a discussão e os embates do modelo napoleônico e do modelo humboldtiano de universidades, ver:
MENDES e MACHADO (2010). Para essa discussão no âmbito do sistema universitário brasileiro, ver: CUNHA
(2007).
177
Então qual é a primeira diferença? Nós decidimos que uma proposta ousada não cria
nenhuma faculdade napoleônica. Ou seja, não tem faculdade de direito, não tem
faculdade de engenharia, não tem faculdade de medicina. Embora nós possamos ter
curso de Saúde Pública, curso de Relações Internacionais, ou direito que rege as
relações entre países que é chamado de direito comunitário, ou até cursos de
engenharia, cursos de engenharia diferenciado. Mas a ideia de não criar faculdades,
porque na estrutura da universidade nós temos institutos que são 4 grandes. Depois
temos centros interdisciplinares onde se passa o ensino que tem que ser por definição
interdisciplinar. E o departamento, reduzido ao local onde estão os professores, mas
não tem o papel de departamento das nossas universidades. O órgão que delibera é o
centro interdisciplinar que inclusive além de ser interdisciplinar, ter professores de
várias áreas, eles interagem com os outros centros interdisciplinares (TRINDADE,
2016).
Os cursos da Unila, suas nomenclaturas e propostas foram adaptados para se vincularem
ao projeto não-napoleônico dessa instituição. Há, aqui, duas preocupações principais: a criação
de um projeto novo que consiga articular qualidade acadêmica e proposta integradora e a busca
de garantir a continuidade desse projeto, expressa na organização que busca romper com a
institucionalidade tradicional (TRINDADE, 2016). Assim, busca-se enfatizar cursos que
possam contribuir para as relações internacionais como o curso com o mesmo nome, citado por
Trindade, ou através da possibilidade de um curso de direito focado em direito internacional.
Ao mesmo tempo, propõe-se a substituição de um curso tradicional como Medicina101 por um
de Saúde Coletiva, por abranger uma área de atuação próxima, mas diferente da proposta
tradicional. Essa perspectiva está presente também em textos publicados, à época da fundação
da Unila.
O objetivo da integração latino-americana da Unila, que molda seu projeto
pedagógico e organizacional, se materializa também na concepção dos cursos de
graduação e de pós-graduação, bem como na definição das linhas de pesquisa da nova
universidade. Esta diretriz se concretiza já na denominação dos cursos, em que é
possível inovar, mas especialmente nos seus objetivos e no rol de suas disciplinas. Na
definição de muitos cursos preponderou uma ampla inovação da organização
curricular e, em outros, procurou-se combinar o cumprimento de suas diretrizes
curriculares (tendo em vista o aspecto profissional dos egressos) com os temas da
integração da América Latina (CORAZZA, 2010, p. 85).
Dentro do objetivo de moldar os cursos da instituição ao ideal de integração, as
propostas de cursos são adaptadas. Assim, do tradicional curso de História, temos História América Latina, ao invés de Ciência Política ou Sociologia enquanto cursos independentes,
temos Ciência Política e Sociologia – Sociedade, Estado e Política na América Latina, entre
101
O curso de Medicina da Unila é criado, em 2014, dentro da proposta de expansão de vagas na área através do
programa Mais Médicos.
178
outros. O ideal integracionista forma a nomenclatura e a concepção do curso. Essa mesma
perspectiva estará presente no perfil almejado para os egressos, proposto em 2013:
Os egressos da UNILA deverão obter sólida formação humana e técnico-científica,
devendo ser capazes de refletir criticamente e selecionar informações importantes em
suas áreas de trabalho, cultura e exercício da cidadania. Comprometidos com
princípios éticos, deverão ser capazes de avaliar, propor e atuar desenvolvendo
soluções adaptadas às peculiaridades da América Latina e Caribe. Neste contexto,
terão a possibilidade de aprender constantemente, buscando espaços intermediários,
solidários e integradores entre os conteúdos acadêmicos e a aplicação de
conhecimentos multidisciplinares. Além disso, possuirão uma postura transformadora
e humanística, cuja base solidificará a capacidade de analisar os problemas latinoamericanos e caribenhos sob as perspectivas das diversas culturas envolvidas
(UNILA, 2013b, p. 18).
A perspectiva integracionista, a partir de princípios éticos e humanísticos, prepondera
no perfil do egresso presente no Plano de Desenvolvimento Institucional. A capacidade de
pensar, articular e propor soluções para problemas regionais estão entre suas ênfases. Um
conhecimento acadêmico amparado e voltado pela proposta de integração da América Latina,
dentro de uma perspectiva humanista, acaba por se consolidar ao longo das discussões da
universidade que parcialmente se materializam no PDI como o foco de sua proposta.
Em que pese a tentativa de constituição dessa perspectiva de ensino, trabalho e
desenvolvimento institucional, temos de destacar que uma universidade não é um todo
homogêneo. Diferentes perspectivas disputam esse espaço. Uma abordagem mais
pormenorizada dessa questão, a qual pensa as disputas no âmbito docente e técnico, foge ao
escopo de nosso trabalho. Essa discussão será realizada com mais cuidado a partir daqueles que
temos abordado como os sujeitos centrais de nosso estudo, os estudantes. Discussão a qual nos
dedicaremos nos próximos capítulos.
A apresentação e discussão das propostas e do projeto da universidade são um dos
momentos da construção de nossa tese. Esse processo de construção terá ainda de ser colocado
em contato com as percepções, críticas e significações constituídas no cotidiano acadêmico e
pessoal dos estudantes que constroem e experienciam essa instituição. É no cruzamento
intersubjetivo desses sujeitos com a proposta institucional que a universidade se dá na prática.
Apesar da construção de uma estrutura que se deseja favorável à integração, a mesma
não pode ser eficiente sem a presença da figura central nesse processo: os discentes. Afinal,
uma universidade é, em última instância, um espaço de formação de estudantes. São eles que
movem, ou não, o processo integracionista a que se propõe a Unila. A convivência de jovens
de diferentes nacionalidades, culturas e etnias possibilita a existência de trocas e/ou
tensionamento interculturais que transformam identidades e subjetividades. Diversas
179
entrevistas, que serão abordadas no capítulo seguinte, apontam que, apesar da postura
institucional, a integração latino-americana tem ocorrido principalmente entre os estudantes.
Enquanto institucionalmente tem sido possível perceber diversos limites para o projeto político
da universidade, entre os estudantes, diferentes dimensões da vida universitária têm contribuído
para a promoção desse mesmo projeto.
180
181
4 IDENTIDADES E DIFERENÇAS NA CIDADE
Trajetórias pessoais de estudantes da Unila, narrativa de multiculturalidade na
cidade/universidade de e para a integração latino-americana. Estas três questões têm sido
construídas enquanto dimensões assimétricas e relacionais, do espaço de experiências
constitutivo das vivências estudantis na relação universidade/cidade. Chegamos, neste
momento, a um momento na discussão que nos permite abordar formas como os estudantes
narraram, experimentaram e incorporaram suas vivências em Foz do Iguaçu a partir da
especificidade de seu pertencimento na identidade construída em torno do “unileiro”.
Foi possível perceber que, no dia-a-dia citadino, se entrecruzaram em mútuas e
assimétricas determinações, tensões, trocas e diálogos, as historicidades individuais, urbanas e
institucionais. O entendimento dessas vivências só é possível ao articular aproximações e
estranhamentos entre as individualidades e os contextos sociais e espaciais nas quais estas se
movem. O imbricamento entre estas dimensões deu origem a uma historicidade nova,
constituinte da identidade articulada em torno da ideia de “unileiro”. Dividimos em duas partes
esta questão para problematizá-la: uma – este capítulo – em que nos dedicamos a uma
abordagem densa das experiências estudantis na cidade e outra – próximo capítulo – na qual
nos debruçamos sobre a especificidade do processo de constituição dessa identidade no âmbito
universitário.
Um dos grandes desafios tem sido a construção de uma narrativa que atente a duas
preocupações centrais. Primeiramente, a apresentação e problematização do espaço de
experiências que percebemos como constitutivos das vivências e trajetórias estudantis na
universidade e na cidade. Dessa forma, preocupamo-nos em apresentar três questões que
percebemos como centrais: primeiro, um convite ao leitor a pensar a diversidade de trajetórias
estudantis antes da vinda para a universidade, através da problematização de três narrativas;
segundo, o discurso de multiculturalidade que permeia os ambientes oficiais de Foz do Iguaçu
e, por fim, a constituição de uma universidade com projeto de integração latino-americano.
Pensamos estas dimensões enquanto articuladas pelos entrevistados ao experimentarem esse
momento de suas vidas como estudantes e sujeitos numa urbanidade e universidade específica.
Também apareceram articuladas, ao longo das narrativas de suas memórias, nas entrevistas.
Num segundo momento, que se inicia com este capítulo, buscamos apresentar e
problematizar como ocorre esse processo de imbricamento entre as três dimensões citadas. A
tentativa é a realização dessa problematização sem a constituição de uma divisão inorgânica no
texto, que implicaria a impressão ou percepção de que essa dicotomia ultrapassa a dimensão
182
metodológica da narrativa e se insere nas falas ou vivências dos sujeitos. Não é isso que
propomos. Intentamos realizar um exercício de construção narrativa que adense e aperfeiçoe
uma das preocupações centrais da História do Tempo Presente, qual seja, a constituição de uma
análise focada na densidade histórica do presente. Para tanto, tentamos lançar mão da estratégia
supracitada. A expectativa é que a problematização da historicidade da qual os estudantes
partem e daquela na qual se inserem permita uma análise do entrecruzamento das dimensões
diacrônicas e sincrônicas das experiências e memórias narradas. Metodologicamente separados
para a constituição do texto, esses dois momentos se imbricam de maneira relacional em suas
vivências e narrativas e constituem-se em movimento temporal.
Ao pensar a organização dos capítulos finais, outra questão é a presença constante.
Como abordar vivências estudantis na cidade e na universidade sem criar uma relação estanque
entre as duas espacialidades? A perspectiva com a qual estruturamos essa discussão é a da
interculturalidade. Ou seja, lugares socioculturais diversos entram em diálogo, tensão, trocas e
ressignificações na cotidianidade experimentada nessas relações. Mas isso não implica que
ambas são vividas de maneira equivalente ou equilibrada. Vimos, ao longo do texto, sobre a
trajetória dos estudantes, bem como, através da análise das demais entrevistas, que sua escolha
não se dá pela cidade, os estudantes não visam Foz do Iguaçu per se. A vinda para esse lugar
ocorre a partir da possibilidade constituída pela Unila. Este é o polo de atração dos sujeitos.
Não negamos a possibilidade de que, em diferentes casos, tenha existido um
imbricamento entre a possibilidade de estudar nessa universidade e viver neste lugar em
específico – o caso analisado de Marcos, residente da localidade, evidencia essa questão.
Entretanto, nossas entrevistas e outras inserções em espaços dessa comunidade universitária –
em especial o acompanhamento das discussões desenroladas no grupo de Facebook “Unila” –
evidenciam que a universidade e a ideia da Unila são o espaço de destino. O horizonte de
expectativas é formado a partir da Unila e apenas num segundo momento incorpora as
possibilidades urbanas da espacialidade onde essa se localiza. Assim, Foz do Iguaçu apareceu
nas narrativas como uma consequência necessária de uma escolha pela instituição.
A partir dessa constatação, podemos pensar formas como os entrevistados narraram e
significaram as experiências citadinas apoiado no seu lugar social como universitário. Essa
dimensão é de suma importância. As entrevistas, como analisamos a seguir, apresentam um
espaço urbano experimentado a começar do lugar de universitário da Unila. Não é qualquer
experiência universitária, bem como não são outras dimensões que tomam o primeiro plano. É
“ser”, ou ser tomado por universitário da Unila, “unileiro”, que demarca essa experimentação.
Esse é o lugar de partida do diálogo com as narrativas de multiculturalidade que atravessam
183
essa urbanidade. Essa é a marca que carregam e que, segundo suas narrativas, lhes é atribuída
nas vivências cotidianas fora da universidade. Nesse sentido, a experiência “unileira”,
constituidora dessa identidade, é construída na historicidade da universidade e da urbanidade.
Nesse momento, buscamos compreender como essa identidade foi constituída e
incorporada na relação com a cidade. O sentido e os usos predominantes se movem ao longo
do tempo. Veremos como a identidade “unileira” surge, nos primeiros anos, em especial entre
2010 e 2012, como experiência original e positiva. Há um esforço de acolhimento, por parte
dos próprios estudantes, dos novos universitários e de criação de um sentimento de acolhimento
a partir do “unileiro”. Nos embates originados pela presença da universidade, com seu projeto
específico, e de seus estudantes na cidade, esta é ressignificada num movimento marcado por
xenofobia, pela antipatia política e pelo preconceito social. Constituiu-se uma dinâmica que
interpretou a cidade baseado em dicotomia estabelecidos/outsiders. Os preconceitos e a
localização como outsider constituem marcas profundas nas memórias e narrativas dos
estudantes. Estas são exploradas, ao final do capítulo, em busca de compreender formas pelas
quais os “unileiros” lidaram com esse tensionamento.
Por fim, algo que abordaremos, mas que adiantamos ao leitor, é que a categoria
“unileiro” é apropriada pelos estudantes num movimento de ressignificação identitária quando
buscam retomar ou recriar os sentidos do termo quando de sua criação, ao utilizá-lo como marca
distintiva e positiva de suas experiências. A constituição desses sentidos incorporados e
narrados nas suas memórias é um processo complexo que lida com a sua inserção na cidade,
mas, também, com dinâmicas políticas e culturais a respeito da Unila,
A importância do trabalho dessa problemática, da forma como propomos, advém de
nossa compreensão de que mesmo que os estudantes não organizem seu processo migratório
através de Foz do Iguaçu, mas da universidade, as vivências urbanas são constitutivas de sua
experiência. Moradia, alimentação, entretenimento, multiculturalidade e preconceito/xenofobia
estão presentes em suas falas. Essas dimensões foram constituídas na universidade e também
na relação com a cidade. Por mais profunda que seja a vivência universitária, a relação com Foz
do Iguaçu é igualmente inescapável. Mesmo que de forma tangencial, por exemplo, através do
comércio, foi necessário a esses estudantes a convivência de diferentes formas e, com diferentes
densidades, o diálogo com a urbanidade e com os citadinos.
A partir da percepção das constantes relações entre os estudantes e Foz do Iguaçu, foi
possível levantar evidências para a problematização da hipótese de que as experiências urbanas
são constitutivas das (res)significações identitárias produzidas a partir da experiência estudantil
184
na Unila. Essa possibilidade pode parecer relativamente óbvia, mas são raros os trabalhos que
abordam essa inter-relação. Em geral, a academia, quando pensa identidades, trajetórias e
vivências estudantis, foca seu olhar na universidade e nas sociabilidades internas à comunidade
universitária, em especial à militância política estudantil. A cidade, quando abordada, é
percebida como um espaço físico de sobrevivência. Pouco se coloca sobre as condicionantes
relações socioculturais estabelecidas na relação dos estudantes com o espaço urbano. O mesmo
acontece quando o olhar é invertido. Trabalhos que abordam cidades, em geral, não tem nos
estudantes universitários um olhar atento. Quando muito, pensa-se a universidade como
fenômeno catalizador de desenvolvimento urbano, em especial, no âmbito imobiliário.
Esperamos, então, tornar evidente a necessidade de ampliar o olhar para a inter-relação entre as
vivências urbanas e as experiências universitárias.
Para efetivar essa problematização, organizamos o capítulo em três momentos
relacionais. Primeiro, abordamos o processo de chegada na universidade e na cidade. Aqui,
buscamos pensar como os estudantes significaram esse processo de migração em diálogo com
expectativas, estranhamentos, alteridades, dificuldades e distanciamentos. Para tanto,
analisamos as narrativas dos entrevistados em busca de perceber suas memórias e significações
a respeito do contato entre seus horizontes de expectativas, constituídos na ideia de vir para a
Unila e a historicidade da cidade/universidade.
Num segundo momento, buscamos apreender a invenção e o movimento histórico da
categoria “unileiro”. Primeiramente, analisamos o processo de constituição dessa identidade
quando da chegada dos estudantes na universidade e na cidade. O recorte temporal dessa análise
é o início das atividades pedagógicas da Unila, no segundo semestre de 2010, e o momento de
uma ação policial em uma das moradias estudantis da universidade e sua repercussão, em 2012.
Ao longo desse período, como veremos, inventou-se um sentido positivo para a ideia de
“unileiro”, tanto no âmbito da universidade quanto na cidade. Esse processo é pensado baseado
na conjunção de análise de entrevistas que abordam o período e de outras fontes que mapeamos
e contribuem para a constituição e/ou divulgação de um sentido positivado da experiência
“unileira”. Assim, abordamos a operacionalização do termo em vídeos, reportagens e
publicações online que permitem o mapeamento da construção dessa identidade.
Em seguida, problematizamos a ressignificação dessa identidade. Se, até 2012, a
presença dos “unileiros” na cidade era apresentada em diferentes meios como algo bom e
produtivo, a partir da ação policial na moradia estudantil e de sua repercussão na imprensa local,
há uma inversão dessa interpretação. De diferentes lugares sociais passam a ser emitidos juízos
que visam combater a universidade e a presença dos estudantes. Essa interpretação reverbera
185
questões que tangenciam a instituição e os “unileiros” de diferentes formas. Veremos como
incorporou sentidos produzidos nacionalmente, já a partir do anúncio da Unila. Para trabalhar
esta questão, utilizamos diferentes fontes locais e nacionais que tomam a universidade e/ou os
estudantes como foco central. Importa destacar que, em meio a uma infinidade de manifestações
a respeito da Unila, problematizamos aquelas que tiveram maior repercussão entre os
estudantes.
A sua seleção foi realizada a partir de duas formas: a presença ou a menção desses
discursos na memória narrada nas entrevistas e a reverberação da manifestação no grupo
“Unila”, no Facebook. Assim, optamos por 3 manifestações: comentários em dois vídeos no
Youtube sobre a ação policial na moradia estudantil que reverberou fortemente nas memórias
dos estudantes e no grupo “Unila”; colunas do blog/periódico EmpresariALL e comentário de
Marco Antonio Villa, na Jovem Pan. Reafirme-se que essa seleção se deu pela importância que
estas manifestações assumem, direta ou indiretamente, nas memórias dos estudantes e na
constituição da identidade “unileira”.
Esses movimentos contribuem para a compreensão de memórias estudantis que
apreendem as vivências urbanas a contar de diversas experiências que vão desde as questões
cotidianas apresentadas no primeiro subtítulo do capítulo até as vivências traumáticas, calcadas
em manifestações xenofóbicas, agressões político-partidárias e de preconceitos sociais, raciais
e culturais.
A problematização da incorporação dessas experiências nas memórias dos
estudantes é objeto de olhares na parte final do capítulo.
4.1 CHEGANDO NA CIDADE
Em momentos anteriores, abordamos trajetórias individuais que, por diferentes
caminhos, desembocaram na vinda para a Unila. Tentamos pensar e demarcar uma
compreensão que parte da necessidade de perceber uma grande diversidade de sujeitos e
experiências nesse espaço. Poucas foram as possibilidades de generalização possíveis naquele
momento. A diversidade espacial, cultural e histórica de origens dificulta sobremaneira esse
trabalho. Agora, deparamo-nos com outra possibilidade. Se o lugar de partida é diverso, o lugar
de chegada é, historicamente, comum. A universidade e a cidade, em suas diversidades, são os
lócus do desembarque migratório. De uma ou outra maneira, os estudantes são forçados a
encarar um processo de adaptação e experimentação dessas historicidades. A fuga só é possível
através da desistência, transferências, trancamentos e afins, mas, mesmo nesses casos, isto
186
ocorre também em relação a esses lugares. Dessa forma, a chegada na universidade e na cidade
se constituem como um momento interessante para pensarmos os estudantes como grupo.
Obviamente, pela natureza de nossas escolhas metodológicas, tal fato é limitado pelas
possibilidades de uma pesquisa qualitativa, a qual permite a observação de leituras individuais
sobre uma relação mais ampla e diversa.
A partir de diferentes lugares, eles são colocados em relação com narrativas e práticas
institucionais e urbanas. Ao almejarem o ingresso na universidade, lidam com um discurso
institucional acessível, principalmente online. Mesmo os estudantes que narraram terem
chegado ao conhecimento sobre a Unila a partir de outras formas – como no caso de Renato –
nomearam a internet,102 o site institucional e o Facebook com suas páginas sobre a universidade,
como espaços centrais de informação. O mesmo acontece em relação à cidade. Esse foi,
inclusive, um dos motivos pelo qual construímos um capítulo no qual uma parte das análises
focou nas narrativas construídas por sites de relevância. O site da prefeitura, a página da
Wikipédia e o VisiteFoz aparecem entre os primeiros resultados. Assim, é possível, e mesmo
provável, que os estudantes tenham se deparado com, pelo menos, um desses, ao realizarem
pesquisas sobre a cidade.
Essas questões nos levam ao primeiro elemento que problematizamos. Ao pensar o
tempo histórico, sempre em diálogo com Koselleck, articulamos um momento inicial de nossa
análise, através da tentativa de compreensão histórica das expectativas constituídas pelos
estudantes ao virem para a universidade e para Foz do Iguaçu. Isso foi feito desde a análise das
memórias narradas nas entrevistas. Deste modo, lidamos com uma construção narrativa que
pode ter, de diferentes formas, (res)significado, com base na experiência universitária e nos
elementos presentes no processo de vinda para a universidade. Esse é o grande limite e também
a possibilidade de trabalhos com a memória. Estamos a lidar não apenas com uma
representação, mas com uma representação construída a posteriori. Com isso em vista,
pretendemos propor a análise de como as expectativas construídas a começar do contato maior
ou menor com informações sobre as espacialidades de destino foram narradas e, ainda, como
elas são significadas desde o contato com a materialidade da historicidade local.
A fala de Bernarndo,103 a seguir, traz alguns dos elementos centrais, tanto no âmbito
teórico quanto nas dimensões que desejamos priorizar. Vejamos:
102
É sempre importante deixar evidente a especificidade do caso dos estudantes cubanos e suas limitações no
acesso à internet. O mesmo vale para outros conjuntos de estudantes de comunidades latino-americanas carentes
e/ou rurais nas quais esse acesso pode ser prejudicado.
103
Estudante equatoriano, tinha 22 anos em 2016, momento da entrevista. Proveniente de Orellanas, interior do
Equador, veio para a Unila em março de 2012 estudar Relações Internacionais. Antes disso, havia começado a
187
Entrevistador: Que tipo de expectativa você tinha quando veio para cá em relação
tanto à universidade, à cidade, e como você vê essas expectativas hoje?
Bernardo: Olha, minhas expectativas da cidade... Porque primeiro eu fui pesquisar a
cidade, né. A cidade para mim por ser uma cidade turística, eu pensei que ia ser tipo,
por ser Brasil mesmo, uma questão um pouquinho mais aberta. Porque assim a gente
fala, a região andina, tipo... Peru, Bolívia, Equador... Elas têm, vou voltar um
pouquinho para a história, época dos Incas, um pouquinho mais da história... A gente
é mais conservador. Depois daí aconteceu a colonização. E tem muitas igrejas, a gente
tem muito conceito de tipo... a gente é muito reservado, muito fechado. E Equador e
sobretudo a capital Quito, a gente é muito conservador. Tipo, para a gente é horrível
dois homens de mãos dadas e duas mulheres juntas ou qualquer coisa assim continua
sendo um enigma, continua sendo uma coisa impossível de entender. E quando eu
cheguei aqui eu falei, “Tá, to no Brasil, eu tenho que mentalizar o que eu vou fazer lá,
numa cidade como Foz do Iguaçu, uma cidade turística e tal...”E aí eu pensei: “Tá, eu
vou lá, eu vou ter que ir com a minha mente aberta para cá”. E tudo isso aconteceu
aqui, tudo isso eu vi, tudo isso eu aprendi... (BERNARDO, 2016).
Avancemos, primeiramente, nas repercussões teóricas que essa fala nos permite. Temos
um exemplo claro do que buscamos abordar: a chegada na cidade e na universidade é permeada
por uma construção de horizontes de expectativas constituídas no espaço de experiências do
sujeito. Tal formulação não é segredo nem novidade. Pelo contrário, tem sido a pedra angular
de nossa argumentação e de nossa ênfase na problematização do tempo presente como
constituído por ampla densidade temporal. As expectativas de Bernardo sobre Foz do Iguaçu
dialogam em diferentes direções temporais, espaciais e sociais. Primeiro, narra um imaginário
a respeito de Foz do Iguaçu. Esta seria uma cidade turística. Dessa informação, extrai
conclusões que condicionam suas expectativas e aquelas que deveriam ser sua postura na
chegada nessa espacialidade. Por ser turística e, mais ainda, por ser no Brasil, seria uma cidade
“mais aberta”.
Sua construção narrativa vincula turismo, Brasil e “abertura” que, como é possível
perceber, na sequência, está relacionada com dimensões culturais, em especial, na questão de
gênero, constrói uma complexa teia de relações e significados dialogados com representações
históricas sobre estas questões. Relaciona uma representação sobre o Brasil enquanto espaço
cultural liberal. Imagem constituída tanto sincronicamente, através da produção e reprodução
de sentidos a respeito de momentos como o carnaval, como diacronicamente, na qual estes e
outros sentidos reverberaram ao longo do tempo. Independente da veracidade ou não desta visão
sobre a cultura brasileira, esta percepção atravessa o horizonte de expectativas do estudante.
cursar Medicina em Quito, de onde desistiu e, na sequência ingressou em Comércio Exterior e, por fim abandonou
esse curso para voltar para Medicina, de onde saiu para vir para a Unila cursar Relações Internacionais. A entrevista
foi realizada em um Café da cidade no dia 13 de agosto de 2016.
188
Ainda mais quando é colocada na comparação com o espaço de experiências, no qual está
inserido.
Para pensar isso, Bernardo busca na história, inclusive na trajetória colonial de seu país
e região – notemos que amplia a localização para a região andina e não apenas para o Equador
– raízes diacrônicas de uma experiência “conservadora”, na qual se vê inserido. O retorno ao
passado, aos fundamentos de seu círculo cultural, é utilizado para exprimir a contradição entre
o local de partida e o local de chegada imaginado. Determina, dessa forma, uma postura que
seria necessária, uma vinda com “mente aberta” para poder navegar com segurança por essa
diferença cultural.
As expectativas de Bernardo104 não se constituíram apenas no âmbito cultural. A
narrativa de cidade turística, que abre possibilidades e necessidades de posicionamentos
“progressistas”, também traz possíveis dificuldades. Na sequência do excerto acima, ele afirma:
“E aí eu falei: ‘Ah, cidade turística vai ser um pouquinho caro também’”. (BERNARDO, 2014).
Essa afirmação será repetida em outros momentos. Assim, quando em um momento posterior
é incitado a falar sobre como vê a cidade após um tempo de moradia nela, ele retoma a
expectativa a respeito do custo de vida: “E quando eu vi que Foz do Iguaçu era uma cidade
turística, eu falei: ‘Tá, cidade turística é caro e tal’” (BERNARDO, 2014). Aqui, vemos outra
dimensão daquilo que temos argumentado. Os estudantes não estruturam suas expectativas e
trajetórias de maneira isolada e sincrônica, mas no diálogo com diferentes narrativas as quais
são expostos. Desta maneira, Bernardo entra em contato com dimensões do discurso que
problematizamos no capítulo 2. A promoção de Foz do Iguaçu enquanto destino turístico, que
se intentou construir ao longo das últimas décadas é apropriada. Mas isso se faz de maneira
histórica, não idealizada.
Os sites abordados não dialogam com a questão do custo de vida urbano. Quando
discutem preços, gastos e consumo, estes são colocados enquanto momentos de gastos no
âmbito do que denominam “turismo de compras” que utiliza Foz do Iguaçu como base e ponto
de passagem para Ciudad del Este. Desta forma, a narrativa citadina oficial incorpora os baixos
custos do consumo do outro lado da fronteira como um elemento da turistificação. Esta
narrativa foi construída com alvo nos turistas e não, necessariamente, nos imigrantes.
Entretanto, não é dessa forma que Bernardo lê a dimensão turística da cidade. Se a dimensão
cultural é um possível desafio e uma possibilidade interessante, o fato de ser uma cidade
turística tem “efeitos colaterais”. Afinal, imagina que, por ser turística, “deve ser caro”. A
104
Perspectiva compartilhada com Fabiano.
189
narrativa urbana é lida a partir da subjetividade e do espaço de experiências do sujeito e constitui
reverberações possivelmente distintas daquelas inicialmente imaginadas. Entre a emissão e a
recepção, a densidade temporal de diferentes presentes atua.
Se, para Bernardo, as expectativas se constituíam em torno de um elemento turístico,
para outros estudantes são outras questões que aparecem como centrais em suas narrativas. Em
várias dessas falas, Foz do Iguaçu é imaginado como um espaço semelhante a grandes cidades,
brasileiras e latino-americanas. É o caso de César:105
Sim, eu penso que foi algo meio que geral. Eu comecei a perguntar e tinha pessoas
que achavam que a gente ia para uma metrópole, tipo São Paulo, é uma coisa
totalmente diferente... Você vê Quito, Loja... Loja é uma cidade que, além de ser a
minha cidade natural, é uma cidade que tem muita cultura, tem muito a oferecer...
Tradições... E Foz do Iguaçu é um lugar bastante carente de muitas coisas então isso
chocou um pouco, não só pra mim, eu penso que pra muitas pessoas chocou bastante
isso, né? (CÉSAR, 2017).
A imagem construída por César é exaustivamente repetida por outros estudantes. Em
especial por aqueles provenientes de grandes cidades ou de regiões que identificam como
espaços de grande oferta de produtos culturais. Essa perspectiva dialoga com um imaginário
sobre o Brasil que dificilmente encontra repercussão nas vivências de boa parte da população
brasileira.
Esse imaginário sobre o país pode ser pensado quando dialogamos com a produção
cultural midiática. Já em 1989, Canclini (1997) apontava a importância de meios de
comunicação brasileiros na criação e exportação de uma imagem do país para a América Latina
e para o mundo. Em destaque colocava o fenômeno da telenovela como um dos elementos dessa
produção. Essa perspectiva tem acompanhado o processo de crescimento da produção e
exportação de produtos culturais do país. Elementos como o carnaval e o futebol, o cinema
nacional e as próprias telenovelas contribuem nesse processo. A título de ilustração, “Avenida
Brasil” contava, em 2013, momento do término de sua exibição, com licenciamento em 106
países e com dublagem em 14 idiomas (GLOBO, 2013). A novela ambientada no Rio de Janeiro
apresenta elementos do cotidiano dessa grande cidade brasileira. Difícil mapear se os estudantes
tiveram acesso direto a essas imagens produzidas sobre o país. De qualquer forma, dialogam
com sentidos que reproduzem elementos apresentados nesses produtos midiáticos.
105
Estudante equatoriano, tinha 24 anos em 2017, momento da entrevista. Ingressou na Unila em 2013 no curso
de Relações Internacionais e Integração, no qual se formou em 2016. No momento da entrevista residia em São
Paulo, onde cursava mestrado em Relações Internacionais. Antes de ingressar na Unila estudou 2 anos de
Eletrônica e Comunicações em uma escola técnica de Loja, cidade do interior do Equador. A entrevista foi
realizada em 4 de abril de 2017 via Skype.
190
Sendo assim, de uma forma ou de outra, César e Bernardo entraram em contato com
uma imagem do Brasil que produziram as grandes cidades como o espaço imaginado em seu
horizonte de expectativas no momento da vinda. Não nos esqueçamos que os estudantes que
vieram para a Unila vivenciaram, ainda na sua adolescência, o processo de auge da
representação do Brasil como um espaço em franco desenvolvimento. Nesse sentido, a escolha
do país para sede da Copa do Mundo de 2014 – realizada em 2007 quando César tinha 16 anos
– e para as olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016 – realizada em 2009 quando ele tinha 18 anos
– pode ter reforçado esse imaginário do país como espaço de desenvolvimento econômico,
cultural e social.
Esta imagem do Brasil, reforçada ao longo dos anos 2000, mas que remonta a outros
momentos da história nacional, adensa temporalmente o imaginário dos estudantes ao
escolherem a Unila e, consequentemente,106 o país como lugar de destino de sua migração. Isso
pode ser percebido também em outras falas:
Marla:107 É parecido... De quantidade de população acho que é parecido, só que aqui
não tem muita coisa, porque Foz do Iguaçu é uma cidade muito nova, tem 100 anos
apenas. Então... A cidade se construiu para estrangeiros, para a Itaipu, pela represa,
para atender as necessidades dos trabalhadores da represa, mas também para atender
os estrangeiros pelas cataratas. Aí a cidade está voltada só para atender a estas coisas,
coisas básicas para a população, e aí muito restaurante caro, muito hotel caro. Só tem
dois cinemas, acho que no total deve ter seis livrarias, coisas assim. Não tem um centro
cultural, por exemplo. Tem lugares públicos que são usados como centros culturais,
mas que dependem do interesse das pessoas para criar projetos e fazer.... Não sei, sinto
que ainda falta muito nesta cidade (MARLA, 2017).
Sua condição de proveniente de uma cidade mexicana com cerca de 400 mil habitantes
ajuda a estabelecer parâmetros de comparação com a região de destino. Se a população seria
semelhante – isto porque Foz do Iguaçu possui cerca de 260 mil habitantes, Ciudad del Este
com cerca de 380 mil e Puerto Iguazu com 80 mil – uma das diferenças estaria calcada na
juventude dessa urbanidade. Enquanto a região de Foz foi oficialmente colonizada em fins do
século XIX, sua cidade de origem é fruto de ocupação ameríndia que remonta a séculos
anteriores à chegada dos espanhóis. Na comparação, torna-se evidente, para a estudante, a
relativa “juventude” da colonização brasileira.
106
Aqui cabe uma ressalva inicial. Nesse momento, estamos a nos referir a estudantes imigrantes. O caso de
estudantes residente no norte do Paraguai e Argentina é peculiar. Nem todos precisam migrar para estudar na
instituição, apesar de que possíveis burocracias na fronteira podem incentivar um processo de migração.
107
Estudante mexicana, tinha 26 anos em 2017, momento da entrevista. Discente do Mestrado Interdisciplinar em
Estudos Latino-Americanos – UNILA, é formada em Língua e Literatura Hispânica na Universidad Veracruzana.
Entre a graduação e o mestrado, trabalhou dois anos em um departamento de uma editora no México, com o
objetivo de angariar recursos para vir ao Brasil estudar Fandangos Caiçara. A entrevista foi realizada dia 4 de abril
de 2017, via Skype.
191
Mas o estranhamento central está no âmbito do entretenimento, de espaços culturais
ativos e/ou ativados pela população. Por mais que a cidade seja um dos principais destinos
turísticos do país, esse afluxo de visitantes não teria, na visão de Marla e de outros estudantes,
um impacto na vida cultural da cidade. Lembremos a colocação analisada no site VisiteFoz. Lá,
a discussão sobre a suposta violência presente na cidade pode ser desviada através do que
denominamos de “corredor de bom senso”. Ou seja, caso o turista, qualquer que seja seus
interesses, se atenha a um trajeto e a espaços específicos no uso da urbanidade, não teria
problemas com a violência urbana.
Esta lógica pode ter impactos nas formas como estudantes, citadinos e turistas
interagem, ou não, e no impacto que este mercado consumidor e conjunto de indivíduos
produzem sobre a cidade. Uma ocupação de passagem que se resume a hotéis, parques turísticos
e compras em Ciudad del Este pode ter pouco impacto sobre as dimensões cotidianas de Foz
do Iguaçu. Assim, teatros, cinemas e mesmo bares e restaurantes fora do roteiro turístico podem
ser pouco estimulados por esse fluxo. Infelizmente, não congregamos dados empíricos para
sustentar ou refutar o impacto do turismo no mercado cultural da cidade. Vimos que outros
historiadores se dedicaram a isso, em especial Souza (2009) que evidenciou o baixo potencial
de melhoria nas condições de vida promovido pelo turismo na população pobre da região.
De qualquer forma, esse processo de distanciamento relativo entre turistas e
citadinos/estudantes é interpretado e sentido pelos entrevistados, como no caso de Marla. Notese a identificação pela própria estudante de que este é um processo histórico. Vimos essa disputa
entre uma cidade turística e um projeto tecnocrático, ao longo de nossas discussões anteriores.
O resultado, a partir da percepção dos estudantes, tem sido a consolidação de uma cidade
organizada “para fora”, para visitantes, para outros que não os estudantes ou citadinos.
A principal consequência seria, como destacado por ela, “Aí a cidade está voltada só
para atender a estas coisas, coisas básicas para a população, e aí muito restaurante caro, muito
hotel caro” (MARLA, 2017). Dessa forma, da expectativa de uma cidade movimentada por vida
cultural estudantil e turística, construída a partir de sua própria experiência urbana, encontra
uma cidade que a “decepciona”, nesse sentido. Por fim, não podemos esquecer que o motivo da
vinda de Marla para a Unila foi o intento de estudar estruturas culturais presentes no âmbito
dos “fandangos” regionais. Tendo estudado na graduação o Fandango Jarocho, vem para o
Brasil para uma comparação com o Fandango Caiçara. Dessa forma, é possível pensar que, para
ela, que estuda manifestações culturais, a expectativa pudesse ser mais forte, no momento de
imaginar a universidade, que outros estudantes com objetivos diversos.
192
Essa posição é amplamente compartilhada entre os estudantes. Tanto a ausência de
aparelhos culturais quanto a dinâmica de uma cidade organizada em torno de visitantes.
Bernardo reforça essa perspectiva:
E aí eu falei, ah, cidade turística vai ser um pouquinho caro também, só que não foi
aquela ideia que eu tinha de uma cidade aberta, de recepção, de ajuda, de
companheirismo, de parceria. Não sei, não consegui atingir minhas expectativas. Eu
critico até agora. Foz do Iguaçu não foi uma cidade pensada para pessoas, nem muito
menos pensada para pessoas de uma universidade como a Unila. Foz do Iguaçu não
foi uma cidade pensada para ser uma cidade universitária. Porque se você ver, Foz do
Iguaçu não tem praças. Se no sábado e no domingo você precisa sair para, sair com
os teus amigos conversar, caminhar um pouco, jogar basquete, jogar futebol, você não
vai achar uma quadra aqui, no centro da cidade. Não vai achar. Você vai ter que ir lá
na Vila A para conseguir. Bem longe. Pra conseguir... Tem um Shopping, tem um
cinema só, você tem que enfrentar uma fila enorme caso você queira assistir um filme
(BERNARDO, 2016).
Foz do Iguaçu tem sido marcada pelas intervenções externas em seu espaço. Sua própria
constituição se dá de maneira “não orgânica”. Essa é uma experiência compartilhada por várias
cidades do oeste paranaense. A já bem conhecida “marcha para o oeste”, patrocinada pelo
governo Vargas, marcou profundamente essa região do estado. Companhias colonizadoras
organizaram e recortaram esse espaço de maneira diversa para expulsar indesejáveis –
indígenas, paraguaios, posseiros – e atrair desejáveis, em especial descendentes de imigrantes
alemães, italianos e poloneses residentes no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A bibliografia
sobre esse processo e suas contradições é expressiva.108 Entretanto, se o surgimento de cidades
como Toledo, Marechal Candido Rondon e Guaíra se deu por obra de empresas colonizadoras,
o caso de Foz do Iguaçu é ainda mais peculiar. Afinal, a mesma foi fundada para ocupar uma
fronteira em disputa. Assim, a preocupação militar é central em sua organização como colônia
militar, ainda no século XIX. De maneira interessante, hoje, o batalhão do exército, presente na
cidade, ocupa um espaço central, correlato ao “corredor de bom senso” dos turistas. Some-se a
isso o fato desta ter se mantido como área de segurança nacional durante todo o período da
ditadura militar e vemos sobrar um espaço bastante limitado para a agência urbana.
Nessa historicidade, a leitura de Foz do Iguaçu pelos estudantes soa coerente.
Obviamente, isso deve ser colocado em perspectiva e precisamos observar, por exemplo, a
origem desses jovens. Quando provenientes de lugares com alta oferta de meios culturais, a
exigência poderia estar acima daquelas esperadas por brasileiros. Não parece ser o caso, afinal
essa percepção é generalizada entre os estudantes. Outra questão, que é preciso ponderar, é
justamente a especificidade de seu lugar social no processo de ocupação da urbanidade.
108
Sobre esses tensionamentos ver: LAVERDI, (2005); GREGORY, (2002); FREITAG (2007).
193
Enquanto estudantes universitários de uma instituição que objetiva a integração cultural e
intelectual, a demanda por serviços culturais pode ser maior que em outros grupos sociais.
Trabalhadores e desempregados podem não ter o mesmo interesse ou prioridade no
desenvolvimento dessa área. Logo, constituiu-se uma tensão entre uma cidade imaginada e
narrada oficialmente como “aberta”, culturalmente desenvolvida e receptiva para uma
experiência estudantil calcada em uma urbanidade percebida e narrada como voltada quase que
exclusivamente para o turismo.
As expectativas sobre a cidade se constituem também em relação a anseios, receios e
esperanças em relação à migração. Entretanto, esse não é um processo voltado apenas para
urbanidade. Se, ao longo deste capítulo, nos focamos nas leituras da cidade realizadas pelos
estudantes e nas leituras sobre a universidade realizada por agentes urbanos, como lócus
privilegiado, a migração ocorre, como já afirmamos, motivada pela universidade. A Unila é o
motor do processo. Ao mesmo tempo, essas dimensões estão constantemente intercaladas. As
expectativas imbricam tanto a cidade como a universidade, percebem esses dois espaços como
lugares de destino, mesmo que a motivação e o objetivo da migração seja a instituição e sua
proposta política, cultural e acadêmica. Podemos perceber essa intersecção na fala de
Fabiano:109
É, e também tem a questão que eu tava preocupado porque quando você sai de uma
cidade, de uma cidade, era um pouco longe, assim uns 300km longe de Foz e se
preocupa e ta, vai ter emprego como é que eu vou fazer e tal. E a Unila tinha a questão
de subsídio financeiro né, tinha toda a questão da assistência estudantil. E eu não
conhecia muito, não tinha muita segurança nessas coisas porque na Utfpr tinha tal de
um bolsa permanência de cento e cinquenta reais e dai tinha todo aquele maravilhoso
de assistência estudantil. Mas eu tava tranquilo porque como sempre trabalhei e
estudei eu já chegaria em Foz e se não fosse aquilo não me importaria, eu ia buscar
um emprego e ia tentar leva do jeito que dava, como eu sempre tava acontecendo. E
felizmente a Unila no começo ela oferecia muito essa assistência pra você permanece
na universidade e tals. E ai vim pra Unila. E ai já tipo tava muito ansioso pela questão
de conhecer estrangeiros (FABIANO, 2015).
O caso deste estudante é bastante interessante. Brasileiro, morava em Francisco
Beltrão/PR, cidade relativamente próxima à Foz do Iguaçu. Era estudante de uma universidade
federal. Mesmo assim, opta por migrar para a Unila, inclusive pelo anseio de “conhecer
estrangeiros”. Entretanto essa escolha se deu num processo de dúvidas e receios com relação à
109
Estudante brasileiro, tinha 24 anos em 2015, momento da entrevista. Ingressou na Unila em 2011, no curso de
Desenvolvimento Rural e Segurança Alimentar, de onde migrou para o curso de Engenharia Civil no segundo
semestre de 2011. Proveniente de uma cidade vizinha de Foz do Iguaçu, Francisco Beltrão, Estudava Tecnologia
em Alimentos na UTFPR antes de ingressar na Unila. A entrevista foi realizada na biblioteca do antigo campus da
Unila – Centro em 13 de agosto de 2015.
194
saída e à chegada na nova cidade. Ele não tomou essa decisão sem ponderações a respeito do
espaço que estava a deixar, que apresentava um conjunto de condições para suas vivências.
Nesse sentido, a informação de que a Unila contava com um programa de assistência estudantil
permitiu alguma tranquilidade na hora da decisão. Aliado a isso, sua experiência passada,
enquanto trabalhador, permitiu o estabelecimento de expectativas e precauções caso as mesmas
não se concretizassem. Em qualquer caso, sempre poderia trabalhar novamente.
Na sua fala, podemos perceber a dualidade a respeito da migração para a Unila e para a
cidade. São dois momentos com significados distintos: “Sempre trabalhei e estudei eu já
chegaria em Foz...”; “E aí vim pra Unila...” (FABIANO, 2015). Os dois momentos apresentam
dimensões e preocupações distintas nas vivências dessas duas espacialidades. Foz do Iguaçu
foi narrada baseada nas condições necessárias para sua sobrevivência. Assim, esta foi o lugar
da relação com o trabalho. Sua trajetória de estudante/trabalhador lhe permitiu uma leitura
específica das possibilidades e dos limites que a migração ocasionaria. Dessa forma, preenche
a sincronicidade de seu presente com a densidade temporal de sua experiência.
A Unila é lida por uma segunda dimensão. Se a cidade é, prioritariamente, o espaço da
sobrevivência, a universidade articula dois sentidos. Por um lado, lançou expectativas nas
políticas públicas de assistência estudantil que essa instituição possuía e ainda possui – mesmo
que em escalas diferentes pelo forte aumento na quantidade de estudantes. Articulou a
sobrevivência urbana com a possibilidade de receber recursos da instituição. Isso se fez não
apenas em relação às informações adquiridas da Unila, mas também de informações
constituídas na sua experiência como estudante de outra universidade federal, a UTFPR.
Conjuntamente, colocou em movimento suas expectativas a respeito do projeto integracionista
da universidade. A expectativa por “conhecer estrangeiros” apareceu na sequência de sua fala
sobre as condições e as expectativas sobre a migração. O projeto e suas possibilidades foram
movedores da migração. As condições de sobrevivência ingressaram em sua narrativa como
necessidade para a vivência do objetivo de “conhecer estrangeiros”, estudar um curso em uma
instituição específica, com projeto e historicidade específicas.
Temos aqui algo central para nossa argumentação e formação desta tese. A fala de
Fabiano articula os espaços de experiências abordados nos três capítulos anteriores. Cidade,
universidade e trajetória individual e suas historicidades se articulam e tensionam a
reorganização do horizonte de expectativas do sujeito. Ao mesmo tempo, a memória atua na
narrativa ao atribuir e organizar os significados a respeito das vivências formativas dessa
experiência. De um presente “fino”, instantâneo, fluído, sincrônico, agregamos uma
temporalidade densa, carregada de historicidade, na qual passado e futuro, diacronia, se
195
articulam sem forçar o presente a ser apenas um momento de passagem, mas um momento em
si mesmo mediado pelo espaço de experiências e pelo horizonte de expectativas do sujeito.
A densidade temporal da experiência encontra um “tipo ideal” narrativo. É nessa
perspectiva de apreensão do tempo presente que pensamos a História, mais especialmente
aquela que se ocupa de problematizar o Tempo Presente. Observar este processo de maneira
exclusivamente sincrônica sem perceber, por exemplo, a construção destes sentidos ao longo
do tempo, limita a análise à superfície da questão. É preciso dimensionar as construções das
possibilidades com a qual o estudante dialoga. Isso só é possível ao percebermos a constituição
da trajetória do indivíduo, a formação da universidade e a constituição histórica de Foz do
Iguaçu e da própria ideia de cidade com a qual Fabiano e os demais estudantes dialogam.
Em que pese as dimensões que assumem a chegada na cidade e na universidade,
carregadas de um denso horizonte de expectativas, este processo é também um momento de
partida. À exceção dos estudantes brasileiros, os demais entrevistados partem de países distintos
em direção ao Brasil. Esta questão implica alguns desdobramentos. Três deles aparecem de
modo privilegiado em suas narrativas: a língua, o clima e a comunicação com a
casa/família/amigos. Estas mudanças implicam impactos na leitura que estabelecem nas novas
espacialidades e sociabilidades experimentadas.
A problemática da diferença linguística se apresenta de maneiras distintas a depender
da origem do estudante. Na Unila, temos falantes de português que, como vimos, constituem a
maioria dos estudantes; falantes de espanhol, o segundo maior grupo e, por fim, os estudantes
haitianos, falantes de francês. Isto no âmbito das línguas oficiais dos países. Entretanto, a
diversidade populacional e cultural que permeia a América Latina impede uma sistematização
linguística apenas a partir dos Estados nacionais. E, mesmo nessa instância, temos uma
diversidade maior que as línguas dos colonizadores.
O Paraguai é exemplo claro. Quem atravessa a Ponte da Amizade é recebido por uma
dupla saudação, em espanhol e em guarani, ambas línguas oficiais. O mesmo acontece de
maneira oficial ou não com outras falas, o criouli e o quéchua talvez sejam os exemplos mais
claros, dentro da universidade. Mas, grosso modo, até pela dualidade linguística na qual os
estudantes, foco do nosso olhar – que exclui os haitianos – estão inseridos, em muitos casos
numa complexa e tensa coexistência entre línguas tradicionais e o espanhol, o conhecimento
desta última está presente entre todos.
O português se tornou a língua estrangeira, mas cotidiana, com a qual estes estudantes
têm de dialogar. Nas relações com a cidade, o pouco conhecimento do espanhol pelos citadinos
196
com os quais cruzam é constantemente ressaltado. Na universidade, mesmo com a proposta de
contratação de 50% de professores estrangeiros, nunca concretizada, a maioria das aulas são
em português. Isso ocasiona limites e necessidade de superação de barreiras nem sempre
esperadas por esses estudantes:
Assim como eu falei, difícil, foi muito difícil pra mim, muito, por que eu nunca tinha
ouvido o português. Mas pra mim o mais difícil é a aula de pensamento científico que
era o professor carioca. E era muito, muito difícil. O sotaque dele era bem forte e a
gente não conseguia entender nada. A gente viajava, a gente dormia, a gente voltava
e saia, tipo nada. A gente tinha texto pra ler em português, eu lia duas, três páginas
com o dicionário na mão e eu falava: “ah não, isso não é pra mim (CLÓVIS 110, 2015).
O total desconhecimento do português por Clóvis não necessariamente é compartilhado
por todos os discentes. Diversos deles tiveram algum tipo de contato com a língua. Televisão,
viagens, literatura e música possibilitaram esse contato inicial. Entretanto, Clóvis destaca uma
questão interessante. A dimensão territorial e a diversidade populacional brasileira, mesmo que
compactada dentro de uma única língua oficial, gerou um caleidoscópio de sotaques que podem,
como é o caso em questão, dificultar a compreensão da fala. A língua “tipo exportação” dos
telejornais da Rede Globo, por exemplo, não é a mesma do “professor carioca”. A experiência
multi e intercultural da urbanidade, somada à dimensão da diversidade de sotaques que
constituem a Unila, dificulta o processo de adaptação de Clóvis. Pouco antes da citação anterior
ele falava:
Fui bem. Porque foi difícil, porque você ficava muito tempo... Bom, foi fácil,
desculpa. Porque você ficava muito tempo inserido. Estudando, lendo um texto em
português porque você não entende nada... Pegando um dicionário aí fazendo
anotações. A maior parte do tempo a gente ficava desse jeito, eu pelo menos. Aí você
relaxa, esquece algumas... Mas, foi difícil porque você está longe de casa, não conhece
nada, não sabe onde fica o mercado, qual o nome da fruta no mercado, qual a troca da
sua moeda pro Real. Então fica difícil, mas você fica mais forte tendo a motivação.
São coisas que você deixa de lado, vão fazendo você persistir (CLÓVIS, 2015).
Sua fala constituiu uma contínua mudança no significado atribuído à experiência. Ela
muda de difícil para fácil a depender da dimensão analisada. Sua adaptação teria sido fácil pela
“imersão” na língua e nos estudos, o que permitiu sua relativização da dificuldade no
aprendizado do português, ao mesmo tempo em que distraiu de outros problemas. Por outro
110
Estudante salvadorenho, tinha 24 anos em 2015, momento da entrevista. Ingressou na Unila em 2012 no curso
de Engenharia Civil. Morador da capital do país, estudou um ano de Engenharia Mecânica na Universidad de El
Salvador antes de ingressar na Unila. A entrevista foi realizada na biblioteca do antigo campus da Unila-Centro
em 14 de agosto de 2015.
197
lado, teria sido difícil pela dificuldade em questões cotidianas, tanto a própria linguagem quanto
questões econômicas, como o câmbio.
Buscar uma atribuição de significado desprovida de contradições nesses processos é
difícil e, pensamos, contraproducente. A experiência sociocultural da migração e da adaptação
na universidade/cidade não é uma dinâmica linear. Pelo contrário, vimos, no caso de Tuane,
como os momentos de continuidade e ruptura, de chegada e partida, podem ser reestruturados
temporalmente pela memória narrada. Nesse caso específico, vemos uma fluidez nos
significados que são construídos e reconstruídos a cada momento. Mesmo assim, a consolidação
se deu através do sentido de que a experiência foi difícil, mas pôde ser mitigada através de
dinâmicas internas a ela.
Apesar da centralidade das diferenças entre expectativas e experiência urbana, entre as
dinâmicas culturais dos lugares de saída e dos espaços de chegada, das diferenças linguísticas,
outras dinâmicas menos evidentes aparecem nas narrativas. Uma das constantes, em grande
parte dos entrevistados, é a questão do clima. O forte calor da cidade, em especial no verão,
momento da chegada dos estudantes (que ocorre, geralmente, em fevereiro e março), foi
lembrado por vários como elemento marcante e produtor de forte estranhamento. Vejamos
como isso foi tratado em algumas narrativas:
Entrevistador: E com relação a cidade, como é que foi chegar na cidade de Foz do
Iguaçu?
Marla: Nos primeiros dias foi em fevereiro, que eram os maiores dias de calor da
cidade. Eu fiquei um pouco arrependida de ter chegado aqui porque eu não gosto do
calor. [risos] e ainda não tinha ventilador – obviamente – não tinha ar-condicionado,
nada, então no primeiro mês, porque eu cheguei em fevereiro e as aulas começavam
em março, no primeiro mês em ficava só em casa, eu só saia à noite para fazer as
compras de comida e voltava para casa que era o lugar mais fresco, eu passei muito
tempo sem conhecer a cidade, eu não queria sair na rua. E aí pouco a pouco quando
começaram as aulas eu... tive que sair. [risos] pelo menos para assistir as aulas e aí
você já faz amigos, sai com eles, tomar uma cerveja e conhecer este e aquele lugar,
assim... Mas no início eu não queria sair de casa (MARLA, 2017).
Proveniente do México, país que, entre outras coisas, é conhecido por ser uma região
quente, inclusive destino turístico de praias e resorts, Marla destacou a chegada em um período
de altas temperaturas como um dos elementos que geram um primeiro impacto. Essa questão a
levou, inclusive, a limitar suas relações com a cidade, pelo menos num primeiro momento. O
forte calor fez com que organizasse suas saídas de casa para momentos de temperaturas mais
amenas, especialmente à noite. É só com um período de adaptação que essa organização foi
flexibilizada e permitiu uma dinâmica de relações mais mutável e constante. Isso se torna ainda
198
mais instigante quando, num momento posterior da entrevista, ela é solicitada a falar sobre suas
relações com a cidade no momento, cerca de 18 meses após sua chegada:
Entrevistador: E hoje como é que é a sua relação com a cidade?
Marla: Ah, agora já me adaptei. Me adaptei também ao calor porque agora eu
tenho ventilador e ar-condicionado [risos]” (MARLA, 2017).
Esse processo de adaptação foi acompanhado por outras questões como a língua, as
sociabilidades com a população local, etc. Mas o clima continua a ocupar espaço importante
em sua memória. Seu exemplo não é o único. Outros estudantes, inclusive brasileiros, destacam
essa questão como um primeiro elemento de dificuldades:
Entrevistador: Como que foi a sua chegada aqui em Foz? Como você foi chegar aqui
e tal? Os primeiros momentos?
Fabiano: Eu cheguei já senti morrendo de calor que é uma cidade bem quente...
(FABIANO, 2015).
El clima también, para mi sobretodo, soy del sul, frio, lluvia... acá calores de 40 graus
com 100% de umidade, isso también me generó algunas complicaciones. Pero
mínima, minimamente. Eso no fue lo más grave (VALÉRIA,111 2013).
[...] mas a gente se acostuma depois de um tempo com o calor, com o clima, com o
idioma acho que, depois de 3 ou 4 meses eu consegui me adaptar, depois de 5 meses,
fiquei assim, mais tranquila, acho que é isso (NATÁLIA,112 2017).
Essas falas evidenciam que o processo de migração não é formatado de maneira
unificada. Estudantes de diferentes regiões, culturas e temperaturas podem enfrentar dinâmicas
distintas durante o período de vinda para a cidade e para a universidade. Para além de elementos
como a língua e a infraestrutura urbana, questões que podem ser vistas por outros sujeitos como
menores ou pouco importantes podem assumir centralidade na perspectiva de alguns desses
imigrantes. Essa questão permite ainda pensar a diversidade do público da universidade. A
geografia latino-americana é bastante variada e vai das geleiras da Patagônia aos desertos no
Chile e no México, do serrado brasileiro às cordilheiras andinas. Isso coloca elementos
importantes para o processo de integração e de interculturalidade proposta pela Unila e
experimentado, ou negado, pelos estudantes. A variedade sociocultural é, sem dúvida, um dos
111
Estudante chilena, tinha 20 anos em 2013, momento da entrevista. Estudante do curso de Ciência Política,
estudava Sociologia em Santiago, capital do Chile, onde residia antes de vir para a Unila. Foi a única entrevista
concedida em espanhol. A entrevista foi realizada em 16 de julho de 2013 na biblioteca do antigo campus da UnilaCentro.
112
Estudante chilena, tinha 29 anos em 2017, momento da entrevista. Formada em fisioterapia, estudava no terceiro
ano de Arquitetura e Urbanismo. Antes de vir para a Unila, trabalhou por 5 anos em um escritório de arquitetura.
A entrevista foi realizada em 9 de abril de 2017, via Skype.
199
elementos centrais para se pensar o ambiente universitário. O caso do clima é apenas um dos
elementos que podem ser elencados como exemplo a esse respeito.
Por fim, há em todo esse processo um elemento que o permeia. Estamos a dialogar com
sujeitos sociais em um momento específico de suas vidas: a juventude. A maior parte dos nossos
entrevistados, assim como a grande maioria dos estudantes da Unila, ingressaram na graduação
da instituição entre os 17 e os 23 anos. Por força da localização geográfica da instituição,
vinculada a sua proposta política, grande parte desses estudantes migraram de suas casas em
direção à universidade e Foz do Iguaçu. Em que pese esse não ser um movimento
fundamentalmente incomum quando dialogamos com o público universitário e enfrentamos,
aqui, uma especificidade importante. Primeiro, a baixa densidade de estudantes da própria
cidade nos primeiros anos, algo que se aprofundou posteriormente. Segundo, e talvez o mais
relevante, a migração não ocorre apenas dentro do país. Uma parte significativa desses
estudantes teve de migrar para o Brasil, outro país, outra língua, outras culturas.
O impacto do afastamento da família, das sociabilidades locais, dos referenciais
culturais que acompanharam a construção da subjetividade dos sujeitos que experimentam as
universidades, bem como suas leituras a respeito desse processo precisam ser pensadas e
historicizadas. Em nosso caso, objetivamos pensar as ressignificações identitárias interculturais
desses jovens no qual pensar o afastamento e esse possível “desligamento” cultural é
sobremaneira importante. Contudo, é preciso historicizado e debatido à luz das percepções dos
sujeitos que experimentaram esse processo. Vejamos o caso de Clóvis:
Aí você chega e a primeira sensação que faz é chorar. Você sabe que chegou em Foz
e que vai ficar ali por um tempo. Você fica triste, você vai pra frente, vai motivado.
Aí fui recebido por três salvadorenhos, dois brasileiros e bom, sem problemas,
chegamos, a gente veio de ônibus pro terminal... A fala português tem um contraste,
eu estudei lá por 3 meses, mas quando eu cheguei aqui e escutei eu fiquei “Meu Deus!”
mas foi bem... A chegada aqui foi impressionante porque eu cheguei aqui e realmente
eu esperei que fosse uma cidade mais desenvolvida, não mais rural, mas mais
desenvolvida. Pelo fato de que eu morava na capital e outra coisa que eu esperava de
Foz era que ela falasse mais espanhol, que ela fosse mais... (CLÓVIS, 2015).
O deslocamento migratório, a expectativa de morar por “um tempo” em outro lugar, a
diferença na fala e a “decepção” com a cidade constituem dificuldades que o levam ao choro.
Esse desdobramento psicológico deve ser pensado de maneira relacional. A preocupação ou a
quebra de expectativas e a reconstrução de outras pode ser vista de diferentes formas, desde um
prisma puramente emocional até aquele que colocamos como objetivo: a fundamentação
histórica das relações constituídas na cidade e na universidade. Suas expectativas não são
fundadas no vazio, são construídas a partir de suas vivências. Assim, os sentidos atribuídos à
200
Foz do Iguaçu são produzidos na comparação com sua cidade anterior, a capital de El Salvador
em San Salvador. A partir dessa comparação, ele percebe Foz do Iguaçu como uma urbanidade
pouco desenvolvida, calcada em uma “ruralidade” identificada, mas não explicada. Emoção
semelhante, mas com destaques distintos, é narrada por César:
Foi um processo emotivo, você deixa a sua família... Emocionante, você vem e vai
encontrar outras pessoas... Chocante, frustrante, também das tristezas... Você encontra
uma coisa totalmente diferente do que você estava esperando, por exemplo... Mas, eu
penso que foi, assim, foi algo bastante tranquilo. Isso depende de cada pessoa, né?
Tem pessoas que levam, radicalizam um pouco a situação. Eu consegui manter a
cordura, [riso] fazer as coisas certinhas, consegui ter bons amigos, bons colegas... Um
amigo é algo primordial quando você está fora de casa, você cria uma família. Tem
muitas emoções no meio, tem saudade da família, tem saudade da comida, mas eu
digo isso que foi tranquilo. Regularmente para mim foi uma coisa bastante tranquila
(CÉSAR, 2017).
A vinda para Foz do Iguaçu é novamente percebida como emocionante e, além disso,
chocante e frustrante. Mas é lida para além das rupturas. O processo de afastamento e
desterritorialização é imediatamente acompanhado de uma reterritorialização. O “você deixa a
sua família” é logo acompanhado pelo “vai encontrar outras pessoas”. Não num processo de
substituição de umas pelas outras, mas de soma de possibilidades. Basta “fazer tudo certinho”
(CÉSAR, 2017). Essa é uma perspectiva instigante. Para além da ruptura, temos a construção
de novas sociabilidades, novas relações pessoais que significam e ressignificam as experiências
anteriores. Assim, das “muitas emoções”, de saudade da família (sociabilidades) e da comida
(cultura local), há um processo de construção de uma memória de expectativas pelas novas
experiências que a migração e o ingresso na Unila proporcionam. O deslocamento, físico ou
simbólico, é partida, mas também chegada.
4.2 UNILEIROS: CONSTRUINDO UMA IDENTIDADE
As expectativas construídas e as vivências relidas na memória dialogam com
experiências constituídas numa teia de relações socioculturais intrincadas. Primeiro, temos a
constituição de identidades pelos indivíduos desde suas trajetórias pessoais. Ao longo de suas
vidas constroem e reconstroem suas identidades em relação a inúmeros elementos, família,
escola, amigos, etc. A partir do momento em que emergem a universidade, a Unila e Foz do
Iguaçu em seus horizontes de expectativas, estas identidades se entrelaçam com representações
e práticas sociais externas que, de diferentes formas, se imbricam em suas identidades. Este
entrelaçamento, percebido por nós como uma dinâmica intercultural de hibridação
201
intersubjetiva, ou seja, um processo de constante troca e tensão entre a subjetividade dos
estudantes e a historicidade na qual se inserem e constroem-se, constitui a temporalidade central
de nossa atenção.
Temporalidades distintas estão em movimento em outros lugares. A cidade se constitui,
se transforma e ressignificam-se em seus ritmos que podem ou não estar em diálogo com os
projetos de universidade ou de vida dos estudantes. Isso fica evidente quando, por exemplo,
vemos a exterioridade da constituição da Unila, tema já abordado. Uma universidade para a
integração latino-americana, ou mesmo, uma instituição educacional para o Mercosul não fazia
parte das reivindicações citadinas, pelo menos até onde pudemos mapear. Movimentos mais ou
menos formalizados e socialmente mais ou menos densos, pela constituição ou ampliação de
universidades, são comuns no país. A especificidade do projeto da Unila não. De qualquer
forma, ao ser pensada e criada, a Unila reverberou na cidade.
Concomitante, a dinâmica de constituição e de desenvolvimento dela não
necessariamente está preocupada com o espaço urbano no qual se insere. Há diferentes
manifestações sobre distanciamentos, tanto culturais quanto físicos, entre a Unila e as
dimensões de Foz. A instituição tem realizado inúmeros e importantes esforços no sentido de
reverter esse processo e construir uma identificação entre a cidade e a universidade. De qualquer
forma, os espaços no qual a Unila se desenvolve não são apenas urbanos, mas se relacionam
com elementos da academia, da política nacional e internacional. Constitui-se em uma
temporalidade que, apenas em alguns momentos, coincide, dialoga ou tensiona com a
urbanidade na qual se insere.
Talvez o momento mais evidente dessa tensão cidade/universidade/estudantes esteja
condensado nas tensões presentes na construção de significados identitários do termo
“unileiro”. Este termo se tornou cada vez mais comum em manifestações provenientes tanto de
citadinos de Foz do Iguaçu quanto dos membros da Unila. Como primeira tentativa de
definição, podemos dizer que tem sido utilizado para identificar indivíduos, grupos, práticas e
representações que constituiriam essa universidade. Esta designação ocorre externamente,
identificada por parte de “outros” aqueles que seriam os membros desse grupo, e internamente,
nas relações de auto identificação com essa identidade social. O desenvolvimento dessa
identidade é historicamente difuso e de difícil mapeamento. O surgimento, os usos ou os
elementos que constituiriam essa categoria se dão em temporalidades distintas e com
significados diferentes, a depender do lugar social que observarmos. Nosso esforço, ao longo
202
das próximas páginas, é de mapear o processo de construção e as transformações de sentidos
agregados a esta identidade.
Mesmo que haja esta dificuldade de mapeamento, a problematização desta categoria é
fundamental para entendermos as experiências estudantis na cidade e na universidade. As
vivências estudantis se dão, voluntária ou involuntariamente, dentro de um universo que é
permeado pela constituição da Unila enquanto um espaço de experiências compartilhadas. Isso
não significa concordância ou uma tácita identificação com valores ou prioridades comuns.
Inúmeros são os pontos de distanciamento e tensionamento entre os estudantes. Ainda assim,
ao ingressarem em uma universidade que possui elementos comuns em sua diversidade, no
mínimo uma ideia difusa, negada ou apropriada, de integração e identidade latino-americana
(com inúmeros sentidos e significados) através da convivência entre diferentes referenciais
culturais, compartilham uma historicidade comum, mesmo que produzida e produtora de
diferentes temporalidades.
Os estudantes convivem entre si em espaços compartilhados, dialogam com uma
mesma burocracia, um mesmo projeto institucional, grades curriculares formatadas a partir
desse projeto, disciplinas comuns a todos os cursos como Fundamentos de América Latina e
línguas estrangeiras. Não nos esqueçamos que essas instâncias compartilhadas se movimentam
historicamente, são disputadas, transformadas ou mantidas a partir de embates ocorridos dentro
e fora da instituição. A instituição não é dada, não é apenas concreto e asfalto, é móvel, faz-se.
O compartilhamento desse fazer-se serve de base para nossa argumentação de
compartilhamento entre os estudantes, mesmo que através da negação de uma historicidade
comum.
A busca pelo mapeamento das origens e dos significados do termo “unileiro”
acompanhou boa parte da nossa pesquisa. Ainda em 2013, quando foram realizadas sondagens
e entrevistas iniciais para a construção do projeto, desconhecíamos a palavra e a própria
turbulenta relação com a cidade da qual ela faz parte. O encontro com o termo e com um
primeiro conjunto de significações a seu respeito se deu da maneira que, tradicionalmente, tem
sido narrada pela instituição, por estudantes e por textos que tomam a Unila por objeto. Assim
como estes, tomamos contato e convencemo-nos de que a origem do termo havia se dado com
base em uma perspectiva preconceituosa a respeito dos “unileiros”. Desta forma, esta identidade
teria sido constituída para dar conta de um sentido pejorativo através do qual a presença destes
na cidade era lida.
Sem querer cair em uma busca pela origem, por um mito de criação, temos nos
preocupado com os usos e com os significados que este termo, transformado em identidade,
203
têm tido, ao longo do tempo. Para tanto, buscamos pesquisas sobre o processo de construção
desta identidade, mapear seu surgimento, usos e sentidos em diferentes momentos pela
comunidade universitária e por veículos de comunicação de Foz do Iguaçu. Foi possível
perceber que esse é um processo ainda mais complexo que a apropriação e ressignificação dessa
categoria pelos estudantes. Esse levantamento se deu, basicamente, de três formas: através do
questionamento nas entrevistas orais realizadas entre 2013 e 2017; através da pesquisa em
documentos oficiais da instituição, de páginas de veículos e blogs de comunicação que tomam
Foz do Iguaçu ou a Unila como espaço privilegiado e pesquisas e acompanhamento constante
do grupo de Facebook “Unila”, em busca de manifestações sobre os estudantes ou sobre a
universidade que reverberam entre a comunidade universitária.
Nesse processo de mapeamento e busca de uma possível “origem” do termo, o primeiro
uso que foi possível encontrar está em um blog organizado por estudantes ingressantes da Unila,
de 19 de setembro de 2010. A publicação é realizada 34 dias após o início formal de suas
atividades letivas, em 16 de agosto de 2010, e 17 dias após a aula inaugural da instituição,
ministrada pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. O blog criado por cinco estudantes
brasileiros foi denominado “Unileiros”. Tanto em seu nome quanto em sua primeira postagem
denominada “Os Unileiros – Apresentação” (UNILEIROS, 2010) aparece o termo. A utilização
ocorre a partir da invenção – no sentido que Muniz de Albuquerque (2007) tem trabalhado – e
operacionalização do termo em categoria identitária. A invenção intersubjetiva da identidade
assume materialidade e se condensa em torno do termo “unileiro”, o que gera reverberações de
diferentes tipos nas temporalidades em que atuou. Importa destacar que falamos de um
momento muito específico da instituição. A sua abertura, em 2010, ocorreu com escopo
limitado de atuação, com um número relativamente pequeno de estudantes, professores e
funcionários, limitados a uma estrutura cedida pela Itaipu em seu Parque Tecnológico. O
impacto material na convivência com citadinos ainda era limitado. Os estudantes, em sua
grande maioria, viviam em moradias estudantis localizadas e com baixa capilaridade urbana.
O próprio blog não nos permite grandes aprofundamentos na compreensão do sentido
que seus construtores atribuíam a categoria identitárias de “unileiro”. Não há uma definição
específica ou um trabalho formal de significação. O post citado com a utilização do termo, bem
como as outras postagens realizadas em seu período de atividade – cerca de 1 ano – utiliza
“unileiro” como sinônimo de estudante da Unila. Desta maneira, construiu o termo como
identificação formal daqueles que fariam, pelo fato de serem matriculados à instituição, parte
da comunidade estudantil desta universidade. O termo surgiu como uma denominação para um
204
grupo de pessoas que, por diferentes motivos, estava a se reunir sob uma nascente instituição
universitária. A abrangência e amplitude do termo permitiu apropriações e (res)significações
diversas, ao longo do tempo, tanto diacronicamente, ao se transformar com seus usos, como
sincronicamente, ao ser utilizado de maneiras distintas em um mesmo momento.
Além do blog, esse grupo de estudantes manteve por período semelhante um canal no
Youtube com vídeos próprios ou agregados de outros espaços, em especial, reportagens. O
“vídeo de capa” do canal foi produzido com falas de estudantes da instituição e publicado em
25 de abril de 2011, sob o título “Unileiros” (YOUTUBE, 2011). Nele, estudantes dão
depoimentos sobre suas percepções e interesses na universidade. Seu objetivo é apresentar a
instituição para os novos “unileiros”. Em suas falas, destaca-se uma temática. Primeiro, na fala
de todos os 7 estudantes que fornecem depoimentos, está presente uma ideia de diversidade que
significa a presença, naquele momento, de pessoas provenientes de Brasil, Argentina, Paraguai
e Uruguai. Nessa forma, a diversidade apareceu como a simples aglomeração de indivíduos
provenientes de diferentes espaços nacionais e culturais. Um segundo sentido atribuído à
diversidade também emerge. Ele surge com base na perspectiva da convivência, do conhecer
outros sujeitos e culturas e das possibilidades de integração e construção de um sentido de
orgulho de pertencimento à América Latina que são projetadas pelos estudantes. Este talvez
será o sentido mais arraigado nesta identidade entre eles. Aqui, já ocorre uma tentativa,
intencional ou não, de avanço. O “unileiro” não apenas identifica um conjunto de pessoas de
uma mesma instituição, mas também demarca um conjunto de valores e de possibilidades nas
quais os novos “unileiros” devem se inserir e com as quais devem se identificar.
Ao longo do vídeo, o termo “unileiro” aparece apenas uma vez na voz de uma das
idealizadoras do mesmo, participante da comissão de recepção formada por estudantes e
responsável pela criação e edição do vídeo. A expressão está presente no final do vídeo, após
uma série de depoimentos sobre a experiência universitária na comunidade “unileira”. Numa
espécie de “jogral”, quatro idealizadores do vídeo dão as boas-vindas aos novos “unileiros”:
Rosane: Nós, alunos da Unila, gostaríamos de agradecer a participação de todos na
recepção dos novos unileiros.
Karen: Bem-vindos alunos da Unila. Obrigada por fazerem parte desta família.
Raisa: Esperamos que a partir deste ano possamos fazer juntos uma América Latina
bem melhor.
Gilson: Nossa vida é feita de sonhos e uma nova história começa a ser escrita a partir
de agora.
Todos juntos: Bienvenidos (YOUTUBE, 2011).
205
Num primeiro momento há, novamente, uma simples identificação entre alunos da Unila
e “unileiros”. Este sentido se transforma, já na segunda fala, com o adensamento subjetivo
através da transformação de um grupo de indivíduos ligados a uma instituição de ensino em
uma “família”. Há uma transformação entre uma simples nomeação de um conjunto de
indivíduos em um grupo identitário. Neste processo, começamos a perceber a historicidade do
termo, de seus usos e significados. De uma nomeação “superficial” no blog para uma construção
identitária positivada através do sentido de “família”.
Este processo de transformação dificilmente pode ser mapeado. O acesso aos
tensionamentos intersubjetivos que atravessaram a cotidianidade dos estudantes, ao longo dos
primeiros meses de suas vivências na instituição, é difícil. A única forma de acesso se dá a partir
das memórias narradas em entrevistas, já permeadas pelas sobreposições, ressignificações e
apagamentos de significados dessa identidade ocorridos durante o tempo. Os fugazes registros
escritos, falados e gravados, que partem desse momento, são limitados e constituídos apenas
pelas referências no blog e neste vídeo.
Uma segunda dimensão aparece na fala. É a consciência da novidade e do papel dos
discentes como sujeitos não apenas de um curso de graduação, mas da construção de um
processo visto como inovador de integração e transformação cultural. Ao afirmarem o desejo
de “construir juntos uma América Latina bem melhor” (UNILEIROS, 2010), colocam-se como
agentes históricos da transformação daquilo que identificam, a partir da ideia de integração,
como uma comunidade em construção. Deslocam a universidade enquanto momento de
formação profissional, para uma perspectiva diferente na qual a universidade é meio e fim de
um projeto de integração política e cultural continental do qual eles são sujeitos e não apenas
objeto do ensino. Essa problemática é destacada e problematizada com mais densidade ao longo
do 5º capítulo.
Há neste desenvolvimento a atuação de outros agentes. A universidade, num processo
de construção de sua identidade institucional – que analisamos através de sua documentação no
capítulo 3 – também se apropria do “unileiro”. Esse processo é precoce, ainda em fevereiro de
2011, quando temos uma reportagem no site oficial da Unila com a operacionalização dessa
identidade. Ao abordar a vinda de um estudante do Rio Grande do Norte para a instituição,
utilizou a expressão como título de um dos subtítulos da reportagem:
Unileiro
Quando perguntado sobre como está sendo a vida de “unileiro”, ele é simples e direto:
“Quando a gente chega aqui, parece um sonho”. José Maria afirma estar encantado
com a diversidade cultural que encontrou na UNILA e na cidade de Foz do Iguaçu.
Quanto ao idioma espanhol, no começo, foi difícil, admite. Mas, agora ele está se
206
acostumando a ouvir a língua estrangeira e seus mais variados sotaques. “E eu estou
me acostumando a falar devagar, porque eu falo muito ligeiro. Nem os brasileiros me
entendem”, brinca. “Estou tentando aprender a puxar o R (característico do interior
do Paraná)”, observa (UNILA, 2011).
“Unileiro” é apresentado não apenas como uma denominação genérica, mas como uma
experiência. A indagação não se refere apenas a um lugar ou a um conjunto de indivíduos, mas
a um processo no qual o estudante se insere. A “vida de unileiro”, que “parece um sonho”, passa
a ser construída com destaque ao diálogo com a diversidade cultural que teria encontrado tanto
na universidade quanto na cidade. De maneira interessante, não vemos na reportagem
manifestação alguma de José Maria sobre a cidade. Todas as suas falas relatadas são referentes
a seu lugar de origem, Assú/RN, a dificuldade na compra de passagem para chegar até Foz (que
aparece como simples demarcador da localização) e à chegada e suas impressões sobre a Unila.
Assim, a ponte entre a diversidade da universidade e da cidade é realizada pela edição da
reportagem ou, pelo menos, sem a sustentação em elementos apresentados da fala do
entrevistado.
A segunda parte de sua fala remete a algumas questões que temos tratado na primeira
parte deste capítulo. Especialmente em relação a questão da língua. A especificidade de sua
forma de falar se revelou contrastante não apenas com o espanhol e “seus mais variados
sotaques”, mas também devido a características regionais que o diferencia dos próprios
brasileiros. Notamos, por fim, o que narrou como uma tentativa de aproximação com os
“paranaenses”, a busca pela incorporação do regionalismo no uso do “R”. Assim, a questão
linguística foi utilizada pela universidade como forma de reforçar uma ideia de diversidade,
sendo as dificuldades que essa questão pode trazer no processo de adaptação dos estudantes,
desconsideradas ou suavizadas. A questão é abordada informalmente, sem problematização de
possíveis dificuldades, ao reforçar a ideia da diversidade enquanto elemento positivo. O mesmo
ocorre com a dificuldade financeira do estudante, apresentada como uma curiosidade, uma
superação individual, sobre a qual a universidade não teria nenhuma responsabilidade. Essa
descompatibilização institucional com as dificuldades cotidianas dos estudantes foi
constantemente criticada por estes, como veremos adiante.
Essa reportagem foi republicada, na íntegra, pelo periódico “ClickFoz”,113 em 2 de maio
de 2011. Essa publicação é a primeira vez que o termo “unileiro” aparece registrado em veículos
de comunicação de Foz do Iguaçu. Tal conclusão foi possível a partir da pesquisa nos portais
113
O Portal Click Foz do Iguaçu, ou “Clickfoz”, é um portal online de notícias com foco na cidade de Foz do
Iguaçu e região. Criado em 2009, publica reportagens sobre cotidiano, política, economia, etc. Disponível em:
http://www.clickfozdoiguacu.com.br/.
207
de notícias exclusivamente online ou que reproduzem seu conteúdo na rede. Outra ferramenta
utilizada foi a pesquisa através do site da instituição que possui setor específico com uma
compilação de notícias na imprensa local, regional e nacional sobre a universidade.114 Por fim,
foi reproduzido o mecanismo de pesquisa online que apresentamos no capítulo 2. Antes dessa,
portais de notícia de Foz do Iguaçu já haviam publicado, desde pelo menos 2009, inúmeras
reportagens sobre a instituição, sobre os estudantes e diversos assuntos relacionados.
Entretanto, esta é a primeira vez que vemos a identificação destes a partir desta nomenclatura
que marcará profundamente as memórias e as experiências dos estudantes.
A utilização do termo pela primeira vez ocorre de uma forma positivada. Ao reproduzir
a reportagem da instituição, vemos a existência de uma dinâmica de colaboração e de
incorporação dos sentidos atribuídos pela universidade à experiência narrada pelo texto. A
primeira utilização “urbana” ao termo “unileiro” é um uso carregado de sentidos positivados
como sonho, diversidade e superação. Em geral, a memória a respeito do surgimento do termo
tem sido construída como tendo se iniciado a partir de representações negativas de citadinos
sobre os estudantes. Logo, na sequência, acompanharemos esse processo. Não é o que foi
possível perceber na nossa historicização. Temos um caminho no qual a construção do termo é
realizada primeiro pelos estudantes e, posteriormente, apropriada pela universidade para, por
fim, ser reproduzida por meios de comunicação externos a esta e presentes na cidade.
4.3 O “UNILEIRO” NA CIDADE
Temos nos esforçado para constituir um histórico da construção da identidade
“unileira”, bem como de apropriações e transformações de sentidos dessa identidade na relação
cidade/universidade. Para tanto, deve ficar evidente a compreensão de que nem a universidade
nem a cidade são corpos únicos de posições e historicidades homogêneas. Nossa posição, busca
compreender essas duas espacialidades numa perspectiva histórica e dialógica que apreende
esses lugares sociais a partir da percepção das múltiplas temporalidades que a compõem. A
utilização desses “corpos sociais” carregados de diversidade como lugares do qual emanam e
são apreendidos discursos se dá pelas necessidades metodológicas do texto, bem como pela
compreensão de que essas espacialidades são compartilhadas sincrônica e diacronicamente
114
Disponível em: <https://www.unila.edu.br/unila-na-midia> Acesso em: 2 mar. 2018. Importa destacar que não
são agregadas todas as notícias sobre a instituição, mas aquelas que, de diferentes formas, contribuem para a
imagem que esta busca construir. Tal conclusão foi possível perceber através do acompanhamento e pesquisa no
portal que evidenciou a inexistência de notícias negativas sobre a Unila arquivadas nesse espaço.
208
pelos sujeitos que as fazem, produzem, reproduzem, ativam e silenciam historicidades
compartilhadas. Nesta perspectiva, qualquer compreensão de que os significados do termo
unileiro poderiam ser apreendidos em sua totalidade se torna ilusória. O que buscamos
apreender são elementos nodais dessa relação que possibilitem um adensamento na
compreensão das relações entre os estudantes, identificados sob o arcabouço de sentidos que
compõem o termo unileiro e a cidade de Foz do Iguaçu, em sua diversidade e complexidade.
Sob essa complexidade, aguardam-nos outras. Se é possível problematizar sentidos que
podem ser abordados desde vestígios deixados de diferentes formas no tempo, usos e
ressignificações cotidianas do “unileiro” são praticamente inacessíveis. Esse tipo de
manifestação dificilmente deixa vestígios e sua percepção e problematização pode ocorrer,
principalmente, através da memória. Outra forma que temos explorado amplamente é o registro
online. Mecanismos como o Facebook e o Youtube permitem o levantamento e o
acompanhamento dessas manifestações. Com algum cuidado, mas com baixa possibilidade de
ordenação precisa, é possível extrair movimentos importantes ao processo. Ao entrecruzar
memória e registros virtuais foi possível perceber o deslizamento nas relações entre estudantes
e citadinos.
Se durante os anos de 2010 e 2011, o clima, para a universidade, é de relativa
tranquilidade na imprensa e na sociedade local, o que é corroborado pela pesquisa nos veículos
de comunicação e pelas memórias dos estudantes, o ano de 2012 será um momento importante
na transformação ou no emergir de dinâmicas diferentes e menos amistosas. Esse processo tem
como marco uma ação da Polícia Militar em uma moradia estudantil da Unila. Na madrugada
de 03 de junho de 2012, a Polícia Militar foi acionada por moradores vizinhos a uma das
moradias estudantis, invadiu uma festa universitária, agrediu e prendeu 8 estudantes, bem como
feriu outros durante a ação115. O evento foi amplamente difundido e usado de maneiras distintas,
marcadas pela posição em relação à presença da universidade e de seus estudantes na cidade.
Diversos estudantes comentaram esse processo de transformação da relação entre eles e
citadinos, em que o evento da invasão da festa foi o ponto de inflexão. Vejamos como isso
aparece na fala de Valéria:
Agora, a questão da relação com a cidade quando a gente chegou, quando eu cheguei
aqui a gente era muito mais bem recebido. Assim, a gente tinha muitas expectativas
da Unila por parte da população e isso gerava que eles nos tratassem de um jeito bem
agradável. Só que o ano passado a gente teve uns problemas que, é, a policia a gente
tem problemas que foi a persecución policial aos estudantes da universidade a
115
A maior parte da ação pode ser acompanhada em vídeo disponibilizado no Youtube. Tanto o processo de
negociação entre a polícia e os estudantes quanto imagens das agressões sofridas (YOUTUBE, 2012a).
209
repressión policial aos estudantes da universidade. Foi uma questão muito forte, não
só com os estudantes da Unila mas não só. [...] Aí isso obviamente saiu na imprensa
e a imprensa começou a gerar junto com a policia uma estigmatização dos estudantes
da Unila. Então os estudantes da Unila são maconheiros, os estudantes da Unila estão
aqui pra roubar a vaga dos brasileiros entrar na universidade; os estrangeiros, a gente
não merece estar aqui porque a gente está aqui só pra fumar maconha e fazer festa,
mientras que os filhos dos trabalhadores de Foz tem de trabalhar pra pagar a
universidade e começaram a criar aquele estigma sabe. [...] A gente sofreu preconceito
pra caralho. Realmente o ano passado na rua você ia, você via que era estudante da
Unila e falavam alguma coisa, via que você era estrangeiro e falavam alguma coisa,
foi uma situação tensa, forte (VALÉRIA, 2013).116
A narrativa de Valéria tenta cobrir esse processo que temos abordado. O relato provoca
a compreensão da ressignificação dos sentidos atribuídos à presença dos estudantes da Unila na
cidade. Antes de entrarmos em alguns detalhes, é importante destacar uma questão do âmbito
da produção da entrevista. Em 2013, foram realizadas 3 entrevistas, inclusive esta, com o
objetivo de levantar questões e problemáticas que pudessem nos ajudar a organizar uma
pesquisa que partisse de um diálogo entre nossas preocupações e temas que estivessem a ser
construídos na e pela comunidade estudantil. Nosso objetivo era a construção de uma
problemática de maneira dialogada. Assim, essas entrevistas tiveram um caráter exploratório.
Buscávamos perceber as vivências universitárias na instituição e na cidade para elaborar
questões mais precisas. Nessas 3 entrevistas, nenhuma vez emergiu, diretamente, o termo
“unileiro”. Entretanto, a dimensão da Unila e de seus estudantes como uma comunidade,
família, amigos, etc, foi constante. Assim, mesmo sem acionar essa identidade, dialogaram com
sentidos que a ela se relacionam.
A percepção de Valéria da relação citadinos/estudantes enquanto um processo se
constitui a partir de três momentos principais. Primeiro, um conjunto difuso, mas identificável,
de expectativas positivas por parte da “população” de Foz do Iguaçu; em seguida, o primeiro
evento que teria transformado essa relação, a já citada intervenção da polícia na festa; por fim,
a divulgação e a cobertura da imprensa sobre o evento que teria gerado uma estigmatização dos
estudantes. Esse movimento histórico ocorreu em um período relativamente curto e é narrado
por Valéria como momentos relacionados. É altamente improvável que a presença da Unila,
mesmo em seu início, tenha gerado apenas reações positivas entre os habitantes de Foz. Assim
como é improvável que, mesmo após a ação da polícia, os estudantes sejam apenas objeto de
preconceitos. Não há homogeneidade absoluta quando falamos de uma historicidade complexa,
como é o caso de uma cidade. Mesmo assim, a memória de Valéria significa esse momento
116
Entrevista com Valéria, chilena, 20 anos, realizada no campus da Unila, em 16 de julho de 2013. Migrou do
Chile para Foz do Iguaçu em março de 2012 para cursar Ciência Política e Sociologia.
210
desta forma. Em sua narrativa, é apenas a partir da intervenção da polícia e da estigmatização
dos estudantes, por parte da cidade, que teríamos um processo de tensionamento nessa relação.
Os significados se transformam a partir da ação da polícia e da repercussão na imprensa.
Destaque-se que a narrativa de Valéria trata as duas questões de forma conjugada. Juntas,
produzem uma ressignificação da presença dos estudantes para questões negativas. Assim, eles
passam a ser maconheiros, festeiros e, no caso dos estrangeiros, ladrões de vagas de brasileiros,
dos “filhos dos trabalhadores de Foz”. Essa é uma mudança significativa e que atravessa
diferentes momentos da instituição e que chega com força até nossos dias. Há, inclusive, a
transformação e invenção da expressão rimada “unileiro maconheiro”, que cria e inscreve uma
identificação entre essas duas representações. Importa destacar que essa operação da polícia
ocorreu em um momento sensível para a universidade.
Em 2012, houve uma das mais importantes greves da história das universidades federais
brasileiras. Por cerca de 4 meses, entre maio e setembro daquele ano, a maior parte dessas
instituições permaneceram em greve. Como consequência, a Unila teve problemas em seu
calendário acadêmico e suspendeu o ingresso de estudantes, no ano de 2013, o que foi retomado
apenas em 2014. Assim, os estudantes da instituição estavam em momento de suspensão das
aulas, o que pode ter reforçado os sentidos negativos atribuídos à festa por parte daqueles que
utilizaram o evento para manifestar sua insatisfação com sua presença na cidade.
A repercussão do evento pode ser, em parte, percebida nos comentários dos vídeos que
divulgaram a operação policial na moradia estudantil e que tiveram ampla repercussão entre os
estudantes. Tanto nas entrevistas quanto no grupo “Unila”, foram constantes as referências a
esses vídeos. São dois vídeos principais. O mais visualizado é uma reportagem com entrevistas
de estudantes, policiais e excertos da filmagem realizada pelas câmeras de segurança da
moradia estudantil. Possui mais de 18 mil visualizações (o maior número entre todos os vídeos
que tomam a Unila como objeto direto ou relacionado) e 76 comentários, sendo 69 postados
em 2012 e 7 distribuídos pelos anos seguintes (YOUTUBE, 2012b). O segundo apresenta a
filmagem das câmeras de segurança da moradia estudantil por cerca de 15 minutos. Publicado
pelo canal de Youtube de uma Rádio de Foz do Iguaçu, a Rádio Cultura AM, possui mais de 11
mil visualizações e 75 comentários concentrados nos anos de 2012 e 2013 (YOUTUBE, 2012a).
Vejamos algumas das reações, na íntegra, que podem ser lidas como contrárias à posição dos
estudantes. Primeiro vídeo:
A gloriosa PM, não invadiu o alojamento, ela foi acionada através de denúncia dos
moradores que moram ao lado destas repúblicas. Você que está assistindo o vídeo,
não se iluda, pois estes jovens (uma minoria) estão apavorando a cidade com bagunças
211
e arruaças. Pessoas de bem não tem mais sossego com estes baderneiros. A polícia
esta certa, aqui não é lugar de bagunça. O pior de tudo é saber que tudo isto é pago
por nós, contribuintes. Casa, comida, segurança, estudo. Tudo pago com o seu
dinheiro.
Bando de vagabundo! maconheiros de merda! TEM QUE APANHAR MUITO
BANDO DE ESTRANGEIRO DE MERDA! bando de favelado, maconheiro do
caralho e são mesmo, a senhora ai que ta defendendo sua filha faça um exame de
sangue nela!!! bando de inutil !!!
Esses gringos vagabundos que aprendam Português para entrar aqui ou voltem para a
merda de seus países. A polícia tem que enxotar esse tipo de gente. Esta é uma
instituição brasileira, e os caras chegam e esculhambam o lugar.
Parabéns policiais, tem que mostrar que a que não é o lugar desses vagabundos!!!!
METE PAU NELESSSSSSSSS (YOUTUBE, 2012b).
Segundo vídeo:
os pms tinham que pegar akela chupadera q jogou akele copo cheio de sei lá o que
(pelo jeitinho dela devia ta cheio de porra, chupando akele pirulito) e tinham q quebrar
ela no meio...bando de vândalos..se fuderam...a pm tinha q baixar o pau nessa
molecada...
Eu achei que PM foi mtu paciente ainda com os estudantes... Devia ter metido o
porrete pra aprenderem a respeitar a autoridade...se começar a deixar eles assim
agirem como se tivesse no pais deles, daqui uns dias tao badernando a cidade inteira...
Bem feito, devia ter é batido mais!
Ai galera, certo ou errado. Peço que vocês da Unila, deem uma olhada não apenas nos
comentários do video aqui postado, mas também nos comentários da Radio Cultura.
É triste mas uma minoria apóia a atitude dos alunos. E uma grande maioria enaltece o
trabalho e a postura da PM. Resta saber. O que esta errado? Porque o iguaçuense
rejeita as noticias vinda da Unila, no que dez respeito a atitude dos alunos? Já esta ai
um tema para futuras pesquisas? O que fazer para mudar a imagem do aluno da Unila?
PARABENS A POLÍCIA MILITAR DE FOZ DO IGUAÇU, TEM QUE DAR UM
BASTA A ESSE BANDO DE ARRUACEIROS, DISFARSADOS DE
ESTUDANTES... ISSO CABE AO GOVERNO FEDERAL, ACOMPANHAR
MELHOR QUEM É ESSE TIPO DE GENTE QUE SAI LÁ DAS CONCINCINHAS
E VEM ARRUAÇAR E SE DROGAR EM NOSSA CIDADE...
A PM tem que sentar a porrada mesmo nesse bando de maconheiro!
E ainda estão ameaçando com FARC!!Este nosso país está decadente mesmo, perdeu
o rumo da História! Estamos a mercê destes terroristas, cérebros "lavados", que
pensam que têm e detém a verdade! É assim que um país é derrotado, espezinhado e
perde sua soberania! (YOUTUBE, 2012a)
Optamos por não “polir” a linguagem e a gramática utilizadas para permitir, ao leitor,
uma compreensão própria das falas que podem ser acompanhadas com o acesso ao vídeo.
Recortamos postagens que, a nosso ver, são as mais “agressivas”, ou seja, permeadas pela raiva,
isto porque raiva é a base da agressividade, no universo de comentários, bem como abrangem
um universo amplo de questões que, de diferentes formas, são articuladas em outros momentos.
Assim, vemos uma miríade de questões. A ênfase no apoio à ação da polícia, visivelmente
212
desproporcional para o caso. A identificação dos estudantes presentes na festa como
maconheiros, mesmo que nenhum entorpecente tenha sido apreendido ou apareça nos vídeos e
depoimentos disponibilizados. A tensão pela presença de estrangeiros entre os estudantes,
através de várias manifestações xenofóbicas e, por fim, a identificação de problemas que festas
e atividades desses estudantes trariam para a cidade, bagunça, arruaça, vandalismo, etc.
As falas significam, de maneira negativa, a presença dos estudantes da Unila na cidade.
Isso não quer dizer que essa ressignificação ocorre a partir do evento, mas que este junto a sua
publicização servem de catalizadores para a emissão de novos discursos que vão da xenofobia
à reverberação de representações comuns em relação a estudantes universitários. No esforço
para pensar nosso problema, as falas presentes nos comentários dos vídeos são elementos
pontuais que nos servem como ponto de partida nesta questão. Diversas dificuldades emergem
na tentativa de analisar estas falas como a possibilidade de perfis fakes e a dificuldade em
mapear e acompanhar de maneira mais sistematizada as discussões, pois muitos comentários
podem ter sido apagados. Ainda assim, estes comentários servem como um interessante ponto
de referência para as análises posteriores. Afinal, temos, aqui, uma inversão importante das
narrativas anteriores a 2012. Enquanto aquelas, produzidas por estudantes e pela universidade
e reverberadas em meios de comunicação citadinos, positivam a universidade e os unileiros,
vemos, ao contrário, a reverberação de preconceitos e estereótipos que, de diferentes formas,
atravessaram a experiência de citadinos e unileiros. Neste sentido, é importante pensarmos a
partir da definição de Albuquerque Junior para o discurso da estereotipia:
É um discurso assertivo, imperativo, repetitivo, caricatural. É uma fala arrogante, de
quem se considera superior ou está em posição de hegemonia, uma voz segura e
autossuficiente que se arroga no direito de dizer o que o outro é em poucas palavras.
O estereótipo nasce de uma caracterização grosseira, rápida e indiscriminada do grupo
estranho; este é dito em poucas palavras, é reduzido a poucas qualidades que são ditas
como sendo essenciais. O estereótipo é uma espécie de esboço rápido e negativo do
que é o outro. Uma fala redutiva e reducionista, em que as diferenças e multiplicidades
presentes no outro são apagadas em nome da fabricação de uma unidade superficial,
de uma semelhança sem profundidade. O estereótipo pretende dizer a verdade do
outro em poucas linhas e desenhar seu perfil em poucos traços, retirando dele qualquer
complexidade, qualquer dissonância, qualquer contradição. [...] O estereótipo
constitui e institui uma forma de ver e dizer o outro que dá origem justamente a
práticas que o confirmam ou que o veicula, tornando-o realidade, a medida que é
incorporado, subjetivado (ALBUQUERQUE, 2012, p. 13) [grifo nosso].
Os estereótipos presentes nos comentários reverberam sentidos presentes na
comunidade. Ao mesmo tempo, inscrevem formas de pensar e representar esses estudantes.
Essas manifestações não são apenas casos isolados e a sua quantidade é indicativo disso, pois
entre cerca de 150 comentários - somados os vídeos - pelo menos 100 são contrários aos
213
estudantes e favoráveis a atuação da polícia. Para tanto, ativam estereótipos de maconheiros,
baderneiros, vagabundos, etc. Logo, temos, sincronicamente, a presença de um número de
pessoas dispostas a investir seu tempo na criação de comentários e no engajamento em
discussões naquele espaço. Também reverberam diacronicamente. Muitos dos sentidos
compartilhados nos comentários dos vídeos, por se inscreverem na representação desses
estudantes, reaparecem em outra publicação importante para pensarmos a constituição de
estereótipos negativos sobre os estudantes da Unila.
Em 2013, uma reportagem do periódico “EmpresariALL” fez emergir, novamente,
tensionamentos na relação que grupos citadinos estabelecem com os estudantes. Publicado
semanalmente em formato de encarte no jornal “Primeira Linha”, o periódico conta também
com um blog atualizado diariamente e com página de Facebook (com apenas 152 “curtidas”
que inclui a do autor deste texto). Em sua rede social, descreve-se da seguinte forma:
“Empresários agora tem vez e voz. Blog atualizado diariamente com as principais notícias e
novidades da nossa região e do mundo. EmpresariALL, tudo sobre o mundo business”
(FACEBOOK, 2018b). Tanto sua rede social quanto o blog possuem baixo engajamento,
poucas curtidas e comentários, o que indica, possivelmente, baixa repercussão média de suas
publicações. Entretanto, as colunas sobre a Unila, especialmente a apresentada, a seguir,
possuíram uma repercussão importante na universidade. Pela centralidade do texto, optamos
por disponibilizá-lo por completo:
Unila: o perigo mora ao lado.
Jovens barbados, cabeludos, com roupas sujas repletas de símbolos comunistas
dividem espaço com livros e drogas. Parece cenário de um filme decadente dos anos
1980. Mas é Foz do Iguaçu, hoje. É um dos locais que abrigam estudantes da Unila Universidade Federal da Integração Latino-Americana, criada com recursos do povo
brasileiro em janeiro de 2010. A ideia que se originou da megalomania de um expresidente pode reforçar a má imagem de Foz do Iguaçu. Como toda ideia socialista,
nasce num fundo de verdade: integrar povos latinos que são separados até pelo idioma.
Mas, como toda ideia socialista, é desviada do foco original para se transformar numa
manobra
para
perpetuação
de
um
grupo
político
no
poder.
Estrangeiros que estudam na Unila não precisam revalidar seus conhecimentos. Basta
uma simples comprovação do país de origem. Nem o idioma português é respeitado.
Pois só a metade dos alunos e professores é do Brasil. Nossa cidade será inundada
com os conceitos que lá aprendem. Esses alunos farão título de eleitor para votar
naqueles que lhes retiraram dos piores rincões da América do Sul para a fronteiramaravilha. Esse filme é conhecido. A maioria depois de formada buscará uma posição
no serviço público. E o brasileiro que pagou para instruir estrangeiros, que ajudou a
bancar casa, comida, estudo, passará a bancar uma horda de párias do estado. Um
paraguaio confessa que largou o emprego pois era melhor receber a bolsa da Unila.
Pense nisso: um estrangeiro parou de produzir e gerar riqueza para estudar e ser
bancado pelo povo do Brasil!
Segundo a Organização das Nações Unidas - ONU, Foz do Iguaçu está apenas em
526º lugar no índice que mede o desenvolvimento humano nos municípios do país. E
a Unila não ajudará a melhorar esse quadro. A Universidade não oferece cursos que
214
representem as reais necessidades da fronteira. Embora nenhum ensino mereça ser
diminuído, é inegável que os cursos ofertados não servem aos contribuintes que
pagam pela obra de Niemeyer. Alguém imagina que Saúde Coletiva é mais importante
que Medicina? Que ensinar Música é mais relevante que Administração? Ou que
Ciências da Natureza sejam mais valiosas que Turismo para nossa região? Foz do
Iguaçu merece muito mais. Mas o dinheiro arrecadado por uma perversa carga
tributária está indo para o ralo (EMPRESARIALL, 2013).
A coluna traz uma série de questões que precisam ser abordadas atentamente. Antes,
gostaríamos de lembrar que esse periódico circula na mesma cidade que, em instâncias oficiais,
tentou construir, historicamente, uma narrativa de harmonia e diversidade cultural. O
tensionamento nessas relações, que já anunciamos, fica claro.
O texto é escrito cerca de um ano após a ação policial na moradia estudantil. Não há
evidências de conexão direta entre os eventos. O que é possível perceber é uma reverberação
de algumas das representações sobre os estudantes da Unila, em especial, o uso de drogas, a
condição de estrangeiro e a vinculação dos estudantes com o Comunismo (as FARC, nos
comentários dos vídeos). Nenhuma dessas representações, quando vistas isoladamente, é
novidade no ambiente universitário ou geral. A vinculação da juventude com o uso de drogas,
a xenofobia e o anticomunismo são elementos que compõem a sociedade brasileira
contemporânea e emergem em diferentes contextos. O que podemos perceber é a criação de
uma unidade relacional destas três características e a representação de um grupo social a partir
dela.
A novidade não são as partes isoladas, mas seu uso e sua identificação com um grupo
social, os discentes da Unila, “unileiros”, de maneira totalizadora. Outro ponto importante é a
percepção de que a negativação desse grupo social ocorre baseada em características
efetivamente presentes entre eles. Há, de fato, cabeludos, usuários de maconha, comunistas e
estrangeiros. Alguns fazem parte de movimentos sociais diversos, organizaram Marchas da
Maconha, reverberaram lutas feministas, etc. A especificidade da questão é a utilização destas
características como uma questão negativa, como uma marca distintiva utilizada como
“contrapropaganda” desse grupo social. Destaque-se, a ênfase na Unila. Como já apontado, Foz
do Iguaçu conta com a Unioeste e a UAB como universidades públicas. Além disso, conta com
diversas faculdades particulares. Entretanto, as notícias negativas deste periódico focam na
Unila. Difícil que não haja “cabeludos” e “maconheiros” nas outras instituições.
Em que pese a existência de elementos como as drogas e a aparência pessoal que são
usados na construção dessa imagem negativa sobre os estudantes, são outras duas características
que predominam na reportagem: a xenofobia e o “anticomunismo”. Apesar de contrário à Unila,
o autor, no EmpresariALL, faz questão de pincelar uma concessão ao projeto da qual ela faz
215
parte. Afinal, seria interessante integrar os povos latino-americanos, mesmo que eles sejam
separados, segundo o jornalista, até pelo idioma. Mas começa, então, um problema, pois essa
condição traria um “desrespeito” à língua portuguesa, pois a mesma não precisaria ser dominada
para os estudos na instituição. Vemos, portanto, a desconexão e o desconhecimento da forma
como a Unila funciona.
Todos os estudantes passam por disciplinas de aprendizagem de línguas, o espanhol para
os nativos do português e a língua portuguesa para os nativos de outros idiomas. Entretanto, a
perspectiva deste autor é a de que o objetivo da universidade estaria dissimulado. O
“verdadeiro” objetivo seria um projeto de tomada ideológica do país por esses “socialistas”.
Afinal, ao serem retirados dos “piores rincões da América do Sul para a fronteira-maravilha”,
esses jovens recompensariam aqueles que o fizeram (o governo do PT) com votos e apoio
político.
Destaque-se que esta reportagem ocorre cerca de 60 dias após o anúncio do programa
Mais Médicos, em julho de 2013, o qual enfrentou acusações absurdas, mas semelhantes, como
a de que serviria para trazer guerrilheiros cubanos para o país que dariam sustentação ao PT117.
Uma América Latina que ainda possuía diversos governos à esquerda do espectro político é
identificada pelo blog como ameaça ao país, em especial pela possibilidade de dar sustentação
ao governo “socialista”, nas palavras do autor, brasileiro. A imagem que acompanha a
reportagem é significativa para pensarmos a forma como o autor lê a América Latina, o projeto
de integração que a Unila incorpora e a própria universidade:
Essa “teoria da conspiração” foi famosa durante 2014. Inúmeros exemplos poderiam ser trazidos. Reportagem
do “Folha Política”, blog de notícias próximo ao Movimento Brasil Livre – MBL, noticiou, sem evidências
documentais da informação, em outubro de 2014: “cuba infiltrou militares no programa mais médicos” (FOLHA
POLÍTICA, 2014).
117
216
Figura 2 - Unila: o perigo mora ao lado
Fonte: EMPRESARIALL, 2013.
O logo da universidade, uma linha continua que se curva em diferentes direções e forma
um esqueleto do mapa da América Latina, juntamente como o nome da UNILA, sendo sugadas
num buraco negro é acompanhada pela chamada de perigo. A dimensão desta representação
pode ser compreendida quando acompanhamos um dos apelidos constantes que o autor do blog
dá à universidade: Unilatrina (EMPRESARIALL, 2014a). Desta forma, sem ser necessário
exercício imaginativo, é possível perceber que o que busca representar é a América Latina e a
universidade dentro de uma privada. Se a reportagem não cita diretamente a atuação policial na
festa (outras publicações posteriores citam118), o blog reverbera questões presentes nos
comentários. Em publicação de 19 de novembro de 2014, o autor afirma:
Unicrack: a nova universidade de Foz do Iguaçu
Uma determinada universidade de Foz do Iguaçu ganha mais um apelido. Os vizinhos
de um dos prédios da instituição, no centro da cidade, já se acostumaram a chamá-la
de Unicrack. Isso porque é bastante comum ver pessoas abusando do álcool, fumando
maconha e até pedras de crack em frente à universidade que fica numa rua sem saída.
Imagina só. O aluno frequenta uma instituição de ensino por 5 anos consecutivos e o
máximo que consegue alcançar é um diploma da Unicrack e milhões de neurônios a
menos. Uma lástima! Depois que a PM atender ao chamado do cidadão de bem e
sentar o cacete, não há como fingir vitimismo nem alegar perseguição ideológica, viu?
(EMPRESARIAL, 2014b).
118
Em publicação de 26 de setembro de 2014, entitulada “UNILA: uma das piores universidades do país”, há um
“Print” da filmagem da ação policial apresentada nos vídeos presentes no Youtube (EMPRESARIALL, 2014c).
217
O apelo às drogas como característica generalizada do grupo de discentes e a utilização
ou reivindicação da atuação da polícia e da violência policial são constantes tanto no blog
quanto nos comentários do Youtube. Lembremos o que a entrevista de Valéria apontava, como
narrativa presente na cidade, algumas páginas atrás: “Os estrangeiros, a gente não merece estar
aqui porque a gente está aqui só pra fumar maconha e fazer festa”. Estas manifestações
tensionam a narrativa de harmonia cultural e de multiculturalidade, evidenciam fissuras e
contradições nesta representação construída para a cidade.
O que podemos perceber, a partir do blog e dos comentários, é a construção e a
reverberação de tensionamentos entre grupos sociais da cidade e estudantes da Unila. Esse
tensionamento é construído e reforçado através da negativação e da generalização de
determinadas características presentes entre eles. O uso da maconha ou de outras drogas, a
condição de estrangeiro e mesmo características visuais como cabelos longos entre homens, são
estigmatizadas e utilizadas como ferramentas para a construção de uma identidade estereotípica
negativa para esses estudantes. Desta forma, do “unileiro” como universitário e elemento da
integração positiva latino-americana, passa-se a um oposto, o “unileiro maconheiro”.
Aqui, nos parece oportuno uma pequena pausa na análise das fontes em busca de um
diálogo que possa nos ajudar a compreender as questões que temos exposto de maneira mais
complexa. As estigmatizações construídas para os estudantes dialogam, em diversos momentos,
com sua condição de estrangeiros. Estabelece-se, em alguns desses momentos, uma simples
orientação xenofóbica no trato com eles. É o caso dos comentários apresentados acima que os
criticam pela sua estrangeiridade, suposto “desconhecimento” das leis e costumes,
desconhecimento da língua, etc. No caso do EmpresariaALL, vemos uma dimensão adicionada.
Primeiro, a ênfase na Unila e o silenciamento em relação a outras comunidades acadêmicas.
Segundo, em um dos momentos da reportagem “Unila: o perigo mora ao lado”, há uma
expressão interessante: “Esses alunos farão título de eleitor para votar naqueles que lhes
retiraram dos piores rincões da América do Sul para a fronteira-maravilha” (EMPRESARIALL,
2013). Não obstante a possibilidade exagerada de um grupo de uma universidade que, à época,
contava com 523 estudantes, influenciarem nas eleições regionais ou nacionais, é interessante
pensar os usos da geografia e das fronteiras na narrativa. Temos um exemplo do que Durval
Muniz de Albuquerque chama de “preconceito quanto à origem geográfica”, definido como:
Aquele que marca alguém pelo simples fato deste pertencer ou advir de um território,
de um espaço, de um lugar, de uma vila, de uma cidade, de uma província, de um
estado, de uma região, de uma nação, de um país, de um continente considerado por
outro ou outra, quase sempre mais poderoso ou poderosa, como seno inferior, rústico,
218
bárbaro, selvagem, atrasado, subdesenvolvido, menor, menos civilizado, inóspito,
habitado por um povo cruel, feio, ignorante, racialmente ou culturalmente inferior.
Estes preconceitos quase sempre estão ligados e representam desníveis e disputas de
poder e nascem de diferenças e competições no campo econômico, no campo político,
no campo cultural, no campo militar, no campo religioso e nos campos dos costumes
e das ideias (ALBUQUERQUE, 2012, p. 11).
A oposição “piores rincões da América do Sul” e “fronteira-maravilha”
(EMPRESARIALL, 2013) torna visível aquilo que Albuquerque Junior aponta. Pessoas de
lugares “inferiores” buscariam tirar vantagens da “fronteira-maravilha” e, por consequência, do
“povo do Brasil” que pagou os impostos que sustentam esses futuros “eleitores”. A união da
preocupação eleitoral com a origem geográfica complexifica as coisas. No caso dos
comentários, ficamos de mãos amarradas na tentativa da identificação da origem do preconceito
e da vontade de inscrever estereótipos. A ausência da possibilidade de mapear os sujeitos que
comentam impede análises para além do conteúdo e do contexto dos próprios comentários. Esse
não é o caso com o EmpresariALL. A disponibilidade do blog online permite uma análise mais
aprofundada de suas motivações. Permite compreender um pouco melhor se o preconceito, com
relação aos estudantes da Unila, advém de sua origem ou da suposta vinculação político
partidária da universidade que traria esses estudantes para influenciar eleições. Estas questões
nos permitem responder algumas das perguntas que lançamos sobre se haveria uma
especificidade no preconceito e nos estereótipos sobre os unileiros.
Ao analisarmos o blog enquanto narrativa emitida por um sujeito com intenções, valores
e localizações políticas, que dialogam com o contexto no qual se inserem, é possível
compreender suas posições políticas. Opositor ferrenho dos governos Lula e Dilma, apresenta
uma proximidade constante com o deputado federal Jair Bolsonaro. Evidência dessa questão é
o enaltecimento do voto favorável ao impeachment da ex-presidenta Dilma Roussef realizado
pelo deputado:
O voto do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC) tomou alguns poucos segundos da
votação que determinou o afastamento da então presidente Dilma (PT). Mas serviu
mais à nação do que os últimos dez anos de atuação e prodigalidade do Ministério da
Cultura.
Ao enaltecer o maior combatente da ditadura do proletariado no Brasil, o Coronel
Carlos Alberto Brilhante Ustra, o deputado não só resgatou parte da verdadeira
história brasileira como fez o livro de Ustra ser o mais lido do país.
A obra “A Verdade Sufocada” está na 11ª edição e conta tudo o que os professores
esquerdistas
fizeram
questão
de
esconder
por
muito
tempo.
Ustra foi chefe da unidade que combatia o comunismo no Destacamento de Operações
de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) e ajudou a salvar
o Brasil de virar uma ditadura comunista como os terroristas lutaram com extrema
violência para impor aos brasileiros assim como fizeram em Cuba
(EMPRESARIALL, 2016).
219
A publicação, postada dois meses após a realização do afastamento, evoca o voto do
deputado e exalta a trajetória do coronel Brilhante Ustra. A narrativa reverberada pelo autor é
apresentada pela extrema-direita brasileira contemporânea. Encontrou eco em grupos dessa
vertente política no período do afastamento e do impeachment da ex-presidenta, sendo
propagada por integrantes desse grupo, em especial por Olavo de Carvalho, espécie de “guru”
intelectual de alguns desses grupos.
O que o acompanhamento do blog e de suas diversas postagens, majoritariamente
alinhadas com os posicionamentos apresentados pela publicação acima, permite perceber é um
entrelaçamento entre a oposição aos projetos políticos do PT e do preconceito com a origem de
lugar dos estudantes estrangeiros da Unila. Como já enunciado, os governos petistas foram
contemporâneos de governos de esquerda em vários países da América Latina: Bolívia,
Venezuela, Chile, Equador, Paraguai, Argentina, etc. Assim, podemos inferir uma conexão
realizada pelo autor entre a oposição ao governo do PT, no Brasil, com a oposição a um
alinhamento automático desses estrangeiros provenientes dos “piores rincões” do continente
com o governo de esquerda brasileiro. Desta forma, o preconceito contra a origem de lugar se
soma ao suposto alinhamento político dos estudantes ao governo ao qual o autor se opõe. Ao
conectar estas duas dimensões – antipetismo e xenofobia – de forma estereotipada, elas se
reforçam mutuamente, o que gera a necessidade da oposição do blog aos estudantes e à Unila.
Mesmo o blog não tenha tido grande repercussão visível na cidade quando somado aos
comentários e a outras manifestações difusas de preconceito em relação a esses estudantes e às
próprias memórias destes em relação a esses estereótipos, é possível notar a presença e a
constância desses preconceitos entre grupos na cidade. Isso não quer dizer que todos os
citadinos ou mesmo sua maioria tenham preconceitos em relação aos unileiros, mas que o
preconceito é elemento presente e constante na experiência dos estudantes. Esta dimensão é
central. Não é possível mapear precisamente os preconceitos existentes de maneira latente ou
manifestos, mas é possível pensar os impactos destes na construção da identidade dos
estudantes e da comunidade acadêmica da Unila.
Se o blog EmpresariALL é o principal mecanismo formal de manifestação destes
preconceitos e sentidos negativos que partem de grupos citadinos, existem outros e mais antigos
espaços online que combateram a própria criação da Unila. Buscamos analisar alguns deles para
compreender onde e como se constituíram histórica, política e ideologicamente. A seleção
destes discursos seguiu o mesmo critério de escolha dos comentários nos vídeos e do blog
EmpresariALL.
220
Mais importante que a repercussão quantitativa destas narrativas, escolhemos os
discursos que tiveram uma reverberação mais densa entre os discentes. Nosso guia é a recepção
e a densidade da repercussão do discurso ou de suas categorias entre os estudantes. Essa
repercussão pode ser mapeada tanto através das memórias presentes nas entrevistas quanto no
acompanhamento do grupo Unila que congrega grande parte dos estudantes. Assim, optamos
por agregar dois discursos externos à cidade, mas com alto impacto nos estereótipos narrados a
partir das memórias dos estudantes. O primeiro, uma coluna de 2007 de Reinaldo Azevedo,
quando do anúncio do projeto de criação da Unila. O segundo, um comentário do historiador,
colunista e comentarista político Marco Antonio Villa, feito em 2016, na rádio Jovem Pan.
O primeiro material a ser analisado possui uma especificidade para a qual abrimos uma
exceção em nossa seleção de fontes. A coluna de Reinaldo Azevedo foi escrita em 2007, antes
da criação da universidade e, consequentemente, antes da chegada dos estudantes. Sendo assim,
não é possível que tenha tido repercussão entre os discentes enquanto grupo universitário, pois
a Unila ainda não existia. Sua discussão se ampara no fato de que as categorias utilizadas pelo
jornalista, para interpretar a proposta de projeto, possuirão ampla disseminação, direta ou não,
nos estereótipos sobre os “unileiros”. Logo, mesmo sem se direcionar a um grupo já constituído,
suas categorias encontrarão eco nas leituras posteriores sobre a universidade. Algumas
significações do projeto que aparecem no blog do jornalista Reinaldo Azevedo119 reaparecem,
em 2012, nos comentários de vídeos do Youtube e no blog EmpresariALL.120
De início, temos de destacar a velocidade da análise e da crítica ao projeto realizada por
Azevedo, pois tudo ocorre em menos de 12 horas. O jornal, A Folha de São Paulo, noticia
online, às 6 horas da manhã, a elaboração do projeto da Unila. Na tarde do mesmo dia, Azevedo
publica a coluna “A universidade do Fórum de São Paulo” que repercute a notícia e analisa a
proposta lançada junto a uma gama de outros projetos na área de educação:
Do conjunto da obra, no entanto, a tal da Unila chama a atenção. O pretexto meritório,
de mercado, é que a universidade vai atender aos interesses do Mercosul, com alunos
e professores brasileiros e da América Latina, aula bilíngüe, em português e espanhol
etc e tal… O cheiro é péssimo. É o pior possível. Vamos ver: – Quem vai se
encarregar, e já está se encarregando, de formar profissionais para atuar no comércio
do Mercosul é o mercado; – No que diz respeito à relação entre os países, a tarefa cabe
ao Itamaraty (VEJA, 2007).
119
Para interessante análise do trabalho de Reinaldo Azevedo, na construção do antipetismo no Brasil, ver
“Reinaldo Azevedo em VEJA online: um intelectual a serviço da construção do antipetismo” (DALTOÉ, 2017).
120
Se a coluna do EmpresariALL, sobre a Unila, não faz referência direta ao jornalista Reinaldo Azevedo, o blog
o cita diversas vezes como ícone do pensamento conservador, ao qual o EmpresariALL se identifica.
221
Em menos de 24 horas foi possível a Azevedo a conclusão de que o “cheiro” do projeto
é péssimo. Tal velocidade indica a inclusão da proposta em questão em uma estrutura já préconcebida de análise. O projeto, que usurpa funções do “mercado” e do Itamaraty, só poderia
existir a partir de uma perspectiva de construção de poder do governo petista. Não só isso, pois
existiria para servir o “Fórum de São Paulo”, que é amplamente significado, no campo da
extrema direita, como elemento conspiratório de grupos, partidos e movimentos sociais de
esquerda em busca do poder na América Latina. A sequência da coluna amplia essa análise:
O que a tal da Unila vai produzir? “Intelequituais” especializados em movimentos
sociais da América Latina. Nada além. Se essa estrovenga for mesmo adiante, vamos
conversar depois de uns três ou quatro anos de funcionamento da dita-cuja. Vocês vão
ver no que vai se transformar a Unila. Mais: o campus vai ficar na Tríplice Fronteira,
uma área comprovadamente infiltrada pelo terrorismo islâmico. Quando se juntar com
a militância bolivariana, será realmente um estouro. Lula exaltou anteontem as
virtudes do Fórum de São Paulo, a entidade que congrega grupos de esquerda, legais
e ilegais, da América Latina. O Fórum vai ter, finalmente, um curso superior (VEJA,
2007).
A projeção de um futuro de controle da universidade por um projeto de produção de
“intelequituais” de esquerda, organiza sua argumentação. Nessa perspectiva, a universidade, já
de largada “orquestrada” e “sequestrada” pelo Fórum de São Paulo e pelo “projeto de poder
petista”, estaria fatalmente condenada a reproduzir este modelo. Mas o jornalista vai além.
Constrói uma junção entre Fórum de São Paulo, militância bolivariana e terrorismo islâmico e,
na ironia final, que seria “um estouro”. Se sua análise beira teorias conspiratórias constituídas
em um olhar para o mundo carregado de ideias prontas, na qual os novos acontecimentos se
encaixam, de uma forma ou de outra, os sentidos que produz repercutem em outros espaços da
extrema-direita nacional.
Em 2008, o blog “Resistência Militar” publicou coluna sobre o assunto. O blog se
autodescreve como: “Um espaço democrático, onde a voz da caserna tem peso e qualidade. Um
espaço anticomunista e contrário a tudo que de ruim está sendo feito pelo PT e seus
agrupamentos do mal” (RESISTÊNCIA MILITAR, 2008). Este blog, de combate ao
pensamento e a movimentos de esquerda repercute a proposta de criação da Unila e incorpora
os sentidos apresentados por Reinaldo Azevedo, o que ocorre a partir de citação textual da fala
apresentada acima e da apropriação do sentido básico de suas análises. Aqui, também, a
universidade aparece como projeto de poder e de dominação ideológica da esquerda estruturada
desde o Fórum de São Paulo.
222
O melhor de tudo vem agora. Sabe quem irá bancar essa farra toda? Você, eu, todos
nós, pois além de bancar banqueiros teremos que ver a turma do Foro de São Paulo
indo aos poucos conquistando os seus reais objetivos e a cada dia formando mais e
mais militantes. Em suma, os sócios do Foro de São Paulo não param de obter
conquistas. A criação desta universidade é um instrumento de doutrinação ideológica,
algo que não vai de encontro com o real objetivo da educação (BLOG RESISTÊNCIA
MILITAR, 2008).
Esta fala, originalmente escrita por Fabiano Coury, no site “Recanto das Letras” e citada
na sua integra pelo blog Resistência Militar, deixa claro a incorporação do sentido produzido e
reverberado por Reinaldo Azevedo e por membros da extrema-direita brasileira sobre a Unila.
Esta narrativa que alia a universidade aos supostos planos de dominação da esquerda, no Brasil
e na América Latina, perverte a universidade como espaço de construção e disseminação de
conhecimento a um papel político-partidário.
Se observarmos os comentários nos vídeos da ação policial, bem como a narrativa
construída pelo blog EmpresariALL, veremos a repercussão deste discurso. Com isso, não
afirmamos que os autores dos comentários ou do blog, necessariamente, tiveram contato com
estes textos. O que argumentamos é que na recepção do projeto Unila, em Foz do Iguaçu e no
Brasil, houve, em diversos momentos, a incorporação de um conjunto de sentidos constituídos
e presentes na sociedade brasileira durante o governo do PT, de antipetismo e resistência a suas
propostas. Em geral, estas propostas eram encaradas como projetos de poder e dominação deste
partido. Bolsa Família, Mais Médicos, Unila, Unilab, todos projetos identificados com as
propostas dos governos petistas passaram, de diferentes formas, por esta significação. Estes
sentidos emergem reverberados pelos comentários no Youtube, pela narrativa do
EmpresariALL e, como veremos, por experiências cotidianas e na memória dos estudantes da
Unila.
Tendo esta perspectiva em vista, uma das motivações para os preconceitos percebidos
pelos estudantes, algo que aprofundaremos adiante, é a resistência política aos projetos de
governo e de Estado implementados pelos governos do PT. Sem tomarmos os eventos que
temos narrado de maneira determinista, é possível perceber a disseminação e consolidação da
resistência à Unila. Esta é legitimada e justificada através da incorporação de um suposto
“projeto de poder de esquerda” à representação negativa construída por seus detratores. Isto
fica evidente nos sentidos que atravessam as narrativas de Reinaldo Azevedo, nos comentários
nos vídeos da ação policial e, principalmente, a partir de 2013, no blog EmpresariALL.
Esse processo de construção de um sentido negativo para a Unila que liga sua proposta
a um projeto de poder e dominação de esquerda, no Brasil e na América Latina, volta com força
após o processo de Impeachment da ex-presidenta Dilma Roussef. No final de 2016, em
223
comentário no Jornal da Manhã da Jovem Pan, emissora de rádio com alcance nacional, Marco
Antonio Villa, historiador, colunista e comentarista político de diferentes veículos de
comunicação, fez um importante ataque à proposta através de um “pedido de esclarecimentos”
ao MEC sobre a existência e as especificidades da Unila. Ao longo de cerca de 5 minutos,
transmitidos ao vivo e, posteriormente, disponibilizados no Youtube, em sua página pessoal no
Facebook e no site da Jovem Pan, atualizou e reverberou os sentidos negativos sobre a
universidade que temos abordado. O vídeo é intitulado, em sua postagem no canal do Youtube
da Jovem Pan (YOUTUBE, 2016) e no site da emissora de rádio (JOVEM PAN, 2016), “MEC
deve explicar tudo sobre a Universidade Federal da Integração Latino-Americana”. Já na página
pessoal de Villa, no Facebook (FACEBOOKc), é postado sob o título “MEC deve explicar tudo
sobre a Universidade Federal da Integração Latino-Americana, inventada pelo "lulismo"”. Sua
fala se inicia da seguinte maneira:
Eu tinha recebido uma informação sobre a Universidade Federal da Integração LatinoAmericana que fica em Foz do Iguaçu. É uma universidade federal inventada pelo
“lulismo” das repúblicas bolivarianas. Pagas, a universidade, alunos, quase todos
estrangeiros, pagos, claro, pelos contribuintes brasileiros. Afinal, nós estamos aqui
para isso, para sustentar o projeto criminoso petista [ironia]. Estávamos, estávamos.
Inventaram essa universidade federal, de tantas outras inúteis universidades federais
criadas durante o domínio petista do projeto criminoso de poder. E eu queria saber, e
essa é uma tarefa do ministro Mendonça Filho, eu sei que não é fácil. A herança
maldita do PT vai durar décadas na estrutura do estado brasileiro, décadas pra tirar,
décadas. No campo dessa educação, por exemplo, essa universidade é um escândalo
(YOUTUBE, 2016).
O comentário é concluído com a solicitação de informações e explicações ao Ministério
da Educação:
Quantos alunos brasileiros tem lá? Eu sei que é uma minoria. Como é o vestibular?
Porque dessas disciplinas? E mais do que isso, para que uma Universidade Federal da
Integração Latino-Americana? Porque nós brasileiros temos de sustentar essa fábrica
de ideologia, esse panfleto chamado Universidade Federal da Integração LatinoAmericana? (YOUTUBE, 2016).
O vídeo de seu comentário conta com cerca de 70 mil visualizações. 18.560 na página
da Jovem Pan no Youtube e 51 mil visualizações na página pessoal de Villa, no Facebook. Em
nenhum dos casos é um vídeo que tenha recebido atenção especial. Enquanto o canal da Jovem
Pan tem 150 vídeos com mais de 30 mil visualizações, a página de Villa possui inúmeros vídeos
e postagens com um número mais amplo de interações através de visualizações, comentários e
“reações” (curtidas e emojis diversos). Entretanto, a repercussão nos espaços online frequentado
pela comunidade da Unila, em especial o grupo Unila no Facebook, foi ampla e imediata. Ainda
224
no mesmo dia, o vídeo foi compartilhado nesse espaço e gerou inúmeras críticas tanto ali quanto
através do direcionamento e da mobilização de estudantes e professores para questionar as
colocações do comentarista em sua página pessoal e no Youtube. Além disso, no dia 20, dois
dias após o comentário, a universidade lançou nota oficial em resposta às críticas de Villa. Essa
mobilização local transforma esse comentário em um dos momentos importantes na
estruturação da forma como os estudantes se veem percebidos pela comunidade local e pela
sociedade brasileira, em geral. Se os ataques não necessariamente formam um todo articulado
e determinista, eles adicionam camadas à percepção que os estudantes têm de seu lugar na
sociedade na qual se inserem.
Em termos de conteúdo, é visível a construção de uma narrativa que busca degradar a
percepção que se tem dessa universidade. Isso pode ser percebido quando o autor aponta a
existência de uma maioria de estudantes estrangeiros na Unila: “Quantos alunos brasileiros têm
lá? Eu sei que é uma minoria” (YOUTUBE, 2016). Ao afirmar que teria conhecimento de que
a maioria dos estudantes são estrangeiros, o que uma rápida pesquisa no próprio site da
universidade permite perceber não ser verdade, joga com a sua credibilidade na difamação da
instituição. Esse movimento, claramente intencional, é acompanhado pela vinculação da
criação da universidade a um “projeto criminoso de poder” do PT, articulado a “repúblicas
bolivarianas” (YOUTUBE, 2016). Essa conjunção de categorias e de ferramentas de
interpretação dos governos petistas está articulada ao sentimento antipetista que une um
discurso de combate à corrupção e um sentimento difuso, mas importante, de vinculação das
políticas petistas a um suposto comunismo, socialismo ou bolivarianismo, na vertente socialista
chavista.
4.4 MEMÓRIAS E PRECONCEITOS
Para compreendermos este processo, não basta percebermos como elementos internos
ou externos à cidade constituíram um estereótipo negativo sobre a universidade e sobre os
estudantes. A emissão da narrativa é apenas um dos elementos. Esse discurso será percebido
pelos estudantes, como já apontamos na fala de Valéria. Faz-se necessário, a partir de agora,
percebermos de maneira mais detalhada como isto ocorre e como é significado pelos
entrevistados. Assim como Valéria, a entrevista de Tuane, problematizada no primeiro capítulo,
foi realizada em 2013, antes da elaboração do projeto de pesquisa. É interessante perceber como
a questão do conflito cidade/universidade emerge de maneira orgânica já naquele momento.
Tuane narra essa relação de maneira muito semelhante ao de Valéria:
225
Tuane: Agora na questão com relação a cidade, como a gente já falou, quando eu
cheguei aqui a gente era muito mais bem recebido, a gente era mais... A gente tinha
muitas expectativas da Unila...
Entrevistador: Por parte da cidade?
Tuane: Por parte da população mesmo. Isso gerava que fosse de um jeito bem
agradável. Só que ano passado a gente teve uns problemas... É, a polícia... A gente
lembra de Foz pela perseguição aos estudantes da universidade. A perseguição
policial, a repressão policial na cidade é uma repressão muito forte. Não só com os
estudantes da Unila, mas com a população em geral, principalmente por causa da
instituição militar que tem vínculos com a ditadura que aconteceu aqui, né? Porque
aqui foi um pouco forte. E aí, ano passado, 3 de agosto, teve invasão da polícia militar
numa moradia estudantil, eles reprimiram mais de 40 estudantes que não estavam
fazendo nada. Estavam fazendo umas fogaças, tocando um violão e trocando ideia.
Ninguém reagiu contra a polícia, senão todo mundo a única coisa que fez era apanhar,
tive uns colegas que foram machucados... Isso, obviamente saiu na imprensa e a
imprensa começou a gerar junto com a polícia uma estigmatização dos estudantes da
universidade... Começaram a falar que os estudantes da universidade são
maconheiros, os estudantes da Unila só tão aqui pra roubar a vaga dos outros da
universidade, que os estrangeiros são gente que não merece estar aqui, porque a gente
ta aqui só pra fumar maconha e fazer festa enquanto os filhos dos trabalhadores de
Foz tem que trabalhar para pagar a universidade. E começando a criar aquele estigma,
sabe? Que a imprensa reforçou, reforçou, reforçou e até hoje continua reforçando
junto com a polícia. A população em geral gerou um sintoma de rechaço, de rejeitar...
Os estudantes em geral sofreram preconceito pra caralho. Você via que era estudante
da Unila e falavam alguma coisa, viam que você era estrangeiro e falavam coisa.. Era
uma situação tensa, forte e olhe, passou mal (TUANE, 2013).
A transformação é a mesma: haveria, inicialmente, um sentimento agradável com
relação aos estudantes, porém, após a invasão da moradia, houve uma mudança na relação entre
os estudantes e a cidade em que o principal motivo seria a atuação da polícia e a construção de
estereótipos pela imprensa. Interessante perceber como a narrativa de Tuane constantemente
retoma o processo de análise das relações e experiências com base na historicização das
mesmas. Como apareceu anteriormente, esta é uma característica agregada a sua narrativa pela
formação acadêmica no curso de História. É a partir desse lugar social que constitui sua fala,
suas memórias. Assim, a atuação da polícia não seria um ato específico em relação aos
estudantes, mas uma continuidade histórica a partir da militarização da cidade e da experiência
repressiva nessa região durante a ditadura militar brasileira.
Em sua fala, a imprensa e a polícia atuam em conjunto, com papéis distintos, na
formação do preconceito com relação à Unila. É relevante perceber como os estereótipos e
discursos preconceituosos narrados por Tuane apareceram nos comentários do Youtube e no
blog EmpresariALL. Isso evidencia a reverberação destes estereótipos entre os estudantes. A
partir de diferentes canais, principalmente os que temos apontado e analisado, estes discursos
chegam até eles e contribuem para a organização subjetiva da relação destes para com a cidade.
A continuidade desta relação, por mais de um ano, (momento da invasão da moradia, em 2012,
226
e da realização da entrevista, em 2013) continuava a reforçar essa percepção negativa. Na
sequência de sua fala, Tuane, na Unila, desde 2011, aponta que a atuação da polícia em relação
aos estudantes não se inicia em 2012, mas já no primeiro ano de sua estada na Unila, sendo ela
própria vítima do que narra como truculência policial:
A polícia é a coisa que mais faz tensa a relação aqui. A gente fez uma manifestação,
a gente faz uma atividade e sempre tem medo deles chegarem aqui e tal. Porque a
gente sempre acreditava que eles não iam chegar aqui e fazer isso e eles fizeram. A
gente passou um ano acreditando que a relação com a polícia ia melhorar. Porque
quando eu cheguei aqui em 2011 eles já tinham feito uma invasão na moradia, só que
eles não tinham... No meu caso eles me pegaram, me movimentaram de lugar com
uma violência, mas eles não me machucaram, não me agrediram assim forte... Então
a gente acreditava que isso nunca ia acontecer, só que aconteceu [riso] O dia que
aconteceu e que eles quebraram as costelas de nossos colegas e que a gente viu a
barbaridade que eles eram capazes de fazer, jogaram bala, atiraram na porta da
moradia foi só ai que a gente viu do que eles eram capaz. Então a gente fica “vamos
fazer uma reunião? Vamos fazer uma festa?” a gente sempre tem medo. Porque a
primeira coisa que eles perguntam é se a gente é estudante da Unila. Porque se é
estudante da Unila, se é estrangeiro, ainda é cabeludo ou fuma maconha... Você cheira
mais de cinco categorias você não vai sair bem de lá, entende? Ai a gente ta nisso...
(TUANE, 2013).
A estudante não deixa claro, nem nos foi possível localizar, o momento da primeira ação
policial. Entretanto, seus efeitos são visíveis na narrativa de Tuane. Nesta, a ação surge como
tendo ressignificado as formas de atuação dos estudantes. A partir desse evento, os
universitários tiveram de incorporar a possibilidade de repressão da polícia em suas
manifestações políticas ou atividades de socialização. A possibilidade de intervenção da polícia
é incorporada ao seu horizonte de expectativas. Mesmo assim, haveria, até 2012, uma sensação
de segurança através da crença em limites para a atuação da polícia na repressão. Esses limites
são ultrapassados na violenta repressão à festa, o que reforça o medo e a insegurança que
marcam a memória da estudante sobre a relação dela e de seus colegas com a polícia. Importa
destacar que Tuane incorpora, como apontamos no 1º capítulo, a trajetória de militância política
de seu bairro e a consequente repressão policial uruguaia a essas atividades. Junto a isso, a
preocupação apontada por ela no estudo dos direitos humanos e temáticas afins, pode ter
contribuído para a forma como a questão é apresentada. De qualquer forma, o caso dela não é
isolado. Elementos de sua narrativa se repetem todas as vezes que a questão é levantada.
Vejamos outro caso. Bernardo, estudante de Relações Internacionais, ingressou na universidade
em fevereiro de 2012. Era calouro no momento da invasão da polícia:
Só que sempre tem aquele povo que cara, quer curtir a vida, quer sair, quer farrear,
quer beber, quer comer. Daí o primeiro problema que aconteceu foi numa moradia
que fica pelo Big um pouquinho mais pra lá... na virada da Tancredo Neves teve uma
festa. Tinha muitas festas. Todo mundo ia, não vou me isentar, eu também ia naquelas
227
festas. Só que teve uma última festa que teve boatos, porque ninguém conseguiu falar
se era boato ou não, os vizinhos ligaram para a polícia, falaram que o som tava muito
alto e tal e tal e tal. E a polícia foi lá, quebrou as portas da moradia, entraram a força
na moradia, pegaram os alunos, bateram neles, pegaram e levaram para a polícia, para
a comissaria lá e esse foi o primeiro contato da Unila – ruim – para a comunidade
(BERNARDO, 2016).
A fala de Bernardo contextualiza a promoção da festa dentro de um âmbito maior de
atividades socializadoras. Reconhece que há estudantes que querem “farrear”. Atividades como
festas estudantis são comuns nas comunidades universitárias e, é preciso apontar, em diversos
momentos podem gerar tensionamentos com moradores locais ou mesmo outros estudantes que
não participam dessas atividades. Seria desse tensionamento que teria se originado a denúncia
à polícia e a intervenção no local. Mas essa é uma versão nebulosa e conflituosa, como o próprio
entrevistado aponta. De qualquer forma, mais que esclarecer as versões, interessa-nos pensar as
consequências da intervenção na construção da imagem dos unileiros entre citadinos. E, nesta
construção, a imprensa é vista por Bernardo como central:
Daí o Tribuna da Massa, que é um programa daqui, ele começou a se imiscuir mais
com a Unila e a passar todos os dias a insultar, a insultar mesmo, tipo, a falar mal. E
a mídia, tem esse ponto bom e esse ponto ruim. Bom porque ela consegue comunicar
e ouvir e ruim porque às vezes comunica errado. E esse tipo de espaço de comunicação
do Tribuna da Massa faz com que a população comece tipo “Ah, a Unila ta aqui...
Você ta aqui pra estudar e não pra fazer bagunça. O Unilero ta aqui pra não sei o
quê...” entendeu? E aí começou esse negócio de Unileiro, Unileiro pro ruim. Depois
teve, tinha festa na Moradia 1, a polícia entrava a Tribuna da Massa tava tipo, era
interligado. A polícia ligava para a Tribuna da Massa, a Tribuna da Massa ia com a
polícia e fazia todo o cobrimento do acontecimento. Tipo, “Ah o Unileiro tá pra isso,
o Unileiro não sei o quê...” E depois também tem um jornal aqui, Primeira Linha acho
que é, que também. Tipo, acabava insultando pessoas. “Unileiro não sei o que,
Unileiro comunista. Porque Unileiro é sinônimo de comunista, é sinônimo de
maconheiro também. Unileiro de ladrão, de ta roubando...” tipo, sinônimos que foram
feitos pelas mídias que foram sendo incorporados pela população. Tipo, a população
comprou aquele produto que começou a reproduzir. E tem muito problema, já teve
problema por causa disso (BERNARDO, 2016).
A atuação da polícia não ocorre isoladamente, mas através de um contato próximo com
a imprensa local. Assim, um problema “legal” do âmbito da “ordem pública” é transformado
em um problema social ao ser amplamente divulgado de maneira negativa pela imprensa. A
repercussão se amplia pela transformação da intervenção da polícia em fato noticiado. Dessa
forma, o tensionamento localizado entre polícia e estudantes extrapola os muros institucionais
e transforma-se em tensionamento entre estudantes e grupos citadinos. Na narrativa de
Bernardo, é a cobertura da imprensa que transforma a relação entre esses grupos.
Esta questão se torna especialmente interessante quando colocamos em diálogo dois
elementos. Vimos a dimensão e virulência dos ataques realizados à presença dos universitários
228
na cidade. Vimos também, no capítulo 2, a importância da construção de uma narrativa e
memória oficial que propaga e comemora a existência de uma suposta harmonia cultural na
história de Foz do Iguaçu. Oras, a xenofobia é elemento marcante nos comentários agressivos
e no blog analisado. Na própria narrativa de Bernardo, este elemento aparece, mesmo que não
evidenciado por ele. Quando diz que uma das falas sobre os estudantes seria “Ah, a Unila ta
aqui... Você ta aqui pra estudar e não pra fazer bagunça. O Unilero ta aqui pra não sei o quê...”,
o “tá”, coloquialismo para “está”, denota esta questão. Afinal, o unileiro “está aqui”, não “é
daqui” (BERNARDO, 2016).
O unileiro é, nesta lógica, um ser externo à comunidade e, ao “estar” aqui, deve cumprir
com determinadas expectativas. A origem geográfica, a estrangeiridade, a condição de outsider,
nos termos de Elias, é ativada a partir de um “pré-conceito” sobre suas obrigações e o seu
suposto descumprimento redimensiona a relação para tensionamentos que ativam preconceitos
diversos. Assim, a origem externa desses estudantes, no suposto descumprimento de suas
obrigações ativada através de xenofobia, tensiona e desconstrói “natureza harmônica” que
haveria em Foz do Iguaçu.
O discurso de harmonia cultural é tensionado não apenas pela presença de estudantes
que sofrem com manifestações xenofóbicas, mas também porque algumas dessas manifestações
são, na verdade, incorporadas de outros preconceitos pré-existentes naquela comunidade. Isto
fica claro na fala de Cláudio. Ao ser questionado se conhecia ou já havia presenciado casos de
xenofobia, ele diz:
Há, eu acho que é por que assim, é muito...na verdade é muito mais velado isso, mas
você vê a forma de tratamento, a pessoa por exemplo... Essa questão que eu falei do
bar, por exemplo, começou uma discussão por causa dessa questão de que eu acho
que o cara era equatoriano e o cara ficou chamando o cara de índio...burro, uma coisa
assim. Chamando o cara de xiru só que o cara não é. Geralmente, aqui em Foz a gente
chama de xiru o paraguaio, que xiru, em guarani, se eu não me engano é pessoa burra,
índio burro, uma coisa assim... E eles chamam muito a galera de xiru. E ele ficou
chamando esse cara de xiru quando o cara era equatoriano e não paraguaio, mas ele
entendeu nessa lógica e o cara equatoriano entendeu o que ele tava tentando dizer. E
aí começou toda uma confusão, sei lá, daqui a pouco tava voando mesa, cadeira,
garrafa, tudo, foi uma briga generalizada. E não é a primeira né, teve outros caras
também em... Se você procurar no Youtube você vê, em 2012, eu não tava aqui, mas
teve uma briga na moradia aqui, da polícia com a galera da Unila. E aí a alegação da
polícia ter invadido a moradia foi que a galera estava com som alto e aí quando for vê
tava um celular com uma caixa de som de computador e a polícia chegou lá e quebrou
uma costela de um cara, levou três “maluco” estrangeiro preso. A questão, a polícia
legitima esse preconceito com os alunos também, quando por exemplo sei lá, é preso
um cara furtando um mercado não vai passar no jornal do almoço, mas se for um aluno
da Unila com certeza vai passar (CLAUDIO, 2016).
229
Novamente, 2012 é ativado para explicar tensionamentos nas vivências urbanas dos
estudantes. Cláudio, ingressante em 2014, tomou conhecimento e sugere ao entrevistador os
vídeos do Youtube que já apontamos. A narrativa é semelhante às demais. Entretanto, um novo
elemento é apresentado. Em outro momento de conflito, sem datação na narrativa: um estudante
equatoriano teria sido alvo de preconceito e xenofobia, o que teria gerado uma briga
generalizada em um bar da cidade. O estudante equatoriano, possivelmente de fenótipo
indígena, é chamado de “xiru”. O termo, de circulação comum em regiões do sul do país, possui
conotações diversas. É apropriado como nome por um cantor de música gauchesca bastante
conhecido em apreciadores desse gênero, o Xiru Missioneiro, mas é também utilizado como
xingamento coloquial121.
O termo, utilizado como sinônimo de “paraguaio”, carrega consigo o estereótipo e os
preconceitos em relação a essa nacionalidade. Para compreendermos esta questão, é útil
acrescentarmos um excerto da narrativa de Marcos: “Paraguaio também tem os seus adjetivos
pejorativos, sabe: que paraguaio é burro, paraguaio só serve para trabalhar, paraguaio é tudo
índio, não sabe falar direito, paraguaio é bandido, é safado...” (MARCOS, 2017). Importa
lembrar que Marcos é de Foz do Iguaçu, tendo vivido ali durante toda sua vida e tem convivido,
dessa forma, de maneira mais prolongada com esses preconceitos. Esta fala indica a existência
de preconceitos e estereótipos contra paraguaios, em Foz do Iguaçu, e evidencia as fissuras e
contradições da narrativa de harmonia multicultural. O que podemos perceber, a partir da
análise conjunta das duas falas, é a incorporação destes preconceitos a um fenótipo indígena
(que na fala de Marcos é narrado como elemento depreciativo por si só) e, a partir disso, a
extrapolação de que estrangeiros com fenótipos indígenas são paraguaios; por fim, a
incorporação do preconceito em relação aos paraguaios a esses estudantes estrangeiros. O
preconceito não se dá pela simples identificação de alguém de outra origem nacional, mas pela
criação de uma nova espacialidade imaginada, comum, organizada desde fenótipos e elementos
visíveis ao observador superficial: aparência física, roupas, língua, etc. Cria-se um espaço
simbólico estrangeiro e, aos provenientes/pertencentes a esse lugar, aplica-se o preconceito
contra a origem. Essa espacialidade imaginada é atribuída aos estudantes que herdam as
categorias preconceituosas, os estereótipos e a negativação. A complexidade só aumenta
quando vemos que, além desta dimensão, o preconceito agrega novas características do projeto
institucional e sua suposta vinculação partidária a elementos das vivências juvenis, festas,
drogas, músicas, etc.
121
Sobre os usos do termo, ver: COTA, 2017.
230
A repercussão deste e de outros estereótipos e preconceitos geram consequências
práticas nas vivências estudantis. Problemas e desafios não esperados ou não experimentados
por outros grupos sociais emergem em suas narrativas como consequências da imagem negativa
que se construiu sobre o “unileiro”. Alguns se destacam: dificuldade em alugar imóveis,
discursos/práticas preconceituosas no dia a dia e necessidade de omitir a filiação institucional.
Estas questões não são, necessariamente, novidades ou exclusivas ao caso dos “unileiros”. A
dificuldade em alugar casas, conseguir créditos, enfim, relacionar-se economicamente com o
meio urbano no qual universitários migrantes habitam já foi abordada por nós anteriormente
(REISDORFER, 2013). Vejamos como Cláudio aborda a situação:
Muita gente que chegava e foi muito maltratada na cidade, foi muito maltratado por
que a galera não gosta da gente aqui na cidade. É uma cidade extremamente
conservadora e às vezes as pessoas não alugavam casas. Quando a gente chegou aqui
você ia em uma imobiliária pedir para alugar uma casa e eles perguntavam se você
estudava na Unila e falava: “Ó, não, para estudante da Unila a gente não aluga”. Então
era meio que assim, é um preconceito legalizado por que não se considera como
preconceito ser estudante de uma instituição, mas era um preconceito muito velado,
tipo “Ah, você não pode ser uma pessoa boa pagadora”. Além de vários outros
problemas como por exemplo: os caras cobravam taxa de 10% de taxa de incêndio se
vier a pegar fogo, só que nunca devolviam esse dinheiro (CLAUDIO, 2016).
A dificuldade para alugar uma casa, apartamento ou quitinete é sentida pelos estudantes
e é explicada, no caso de Cláudio, pelos preconceitos que as imobiliárias teriam com os
“unileiros”. Como dito, este não é um problema exclusivo de Foz do Iguaçu ou desses
estudantes. A promoção de festas e confraternizações, elementos comuns das chamadas
“repúblicas estudantis”, podem deteriorar as propriedades e/ou tensionar as relações com a
vizinhança, o que gera dificuldades no aluguel para estudantes, em muitos lugares. Mas há uma
especificidade que precisa ser abordada e relativizada. A fala de Cláudio permite entrever o que
ele percebe como uma dificuldade específica dos estudantes da Unila: “Não, para estudante da
Unila a gente não aluga” (CLÁUDIO, 2016). Aqui, emerge uma perspectiva que apresenta o
veto ao aluguel como uma característica específica na relação com os “unileiros”. Lembremos
que Foz do Iguaçu conta com outras instituições universitárias e o que o estudante destaca é a
percepção de que aqueles que estudam na Unila sofreriam restrições aplicáveis apenas a eles.
Estudantes de outras universidades não passariam por essa situação porque o veto no aluguel
não é para “estudantes”, mas para “estudantes da Unila”.
É impraticável a verificação deste fato. Não é possível, dentro de nosso arcabouço de
fontes e aparato metodológico, levantar informações a respeito da existência ou não de
restrições a outros estudantes. O que podemos abordar e buscar compreender é a narrativa que
231
aponta este preconceito como exclusivo da Unila e suas consequências para a experiência
desses estudantes na cidade. Para avançar nesse sentido, a fala de Marcos traz considerações
importantes:
Mas eu não consigo entender, agora que você falou da questão da multiculturalidade.
Porque essas pessoas, europeias, americanas, essas pessoas do Oriente Médio que vem
pra cá não tem esse mesmo problema, sabe. Essa dificuldade para se instalar. Agora,
latino-americanos eles têm, sabe. Eu já cansei de escutar companheiros da
universidade falando que tem algum amigo peruano, boliviano, venezuelano, que ta
perambulando pela cidade porque ta com problema de conseguir emprego, de alugar
uma casa, enfim, de conseguir organizar a própria vida aqui em Foz. Mas pessoas
dessas outras etnias, pessoas, os árabes, os japoneses. [...] engraçado que pessoas
vindas destes lugares não tem esse problema, sabe. [...] Pra pensar, por que pessoas
que vem lá do alto escalão, Europa, Estados Unidos, Oriente Médio, Japão, essas
pessoas não tem problema para conseguir se instalar aqui em Foz, de organizar a vida
e sei lá, conseguir ter uma vida melhor do que muita gente que já mora aqui, sabe.
Mas, o povo latino-americano, que vem de países da América Latina, para eles é um
pouquinho mais complicado. Por isso que reforça aquela questão de que parece que o
preconceito contra o latino-americano, que tem aqui em Foz (MARCOS, 2017).
Ao passar toda sua vida em Foz do Iguaçu, Marcos nos apresenta sua percepção de
dificuldades que seriam enfrentadas por imigrantes. Enquanto os imigrantes latino-americanos
(que em sua fala parecem limitados aos estudantes da Unila) enfrentariam dificuldades na
instalação e permanência, aqueles que vem “lá do alto” teriam acesso privilegiado à urbanidade.
Novamente, o mesmo problema de dificuldade na verificação da fala se apresenta. Não é
possível, dentro do nosso escopo verificar esta informação. Entretanto, o sentido que é
compartilhado com Cláudio e com outros estudantes da Unila é visível: os estudantes da Unila
enfrentam dificuldades na instalação. A motivação seria variada. No caso de Marcos, há o
questionamento (provocado por uma pergunta realizada pelo entrevistador) a respeito da
multiculturalidade que, na fala do estudante, é idealizada como uma valorização horizontal das
diferentes origens e culturas. Mas, segundo ele, em Foz, a multiculturalidade seria limitada
pelos lugares sociais ocupados pelos sujeitos em uma escala de valorização de origens de lugar,
nas palavras de Albuquerque (2012). A percepção de Marcos contradita a narrativa de harmonia
cultural, apresenta estranhamentos e denuncia o que percebe como hierarquização das etnias e
das origens de lugar dos diferentes grupos sociais que habitam e formam a cidade.
Os entraves, na hora do aluguel, são acompanhados por manifestações e violências
verbais com as quais alguns entrevistados são confrontados. O caso de Valéria, narrado em
2013, é interessante nesse sentido:
232
Existe mucho essa imagem de que nosotros venimos, como que los brasileiros, através
de su imposto estão nos financiando la vida. Essa es uma ciudad que temos sofrido de
xenofobia, temos sofrido de discriminação, temos sofrido por esse perjuício. Y
también porque haviam conflitos de los próprios estudiantes com la polícia militar.
Siempre haviam problemas, hostilidades. [Pausa] Por exemplo, em lo mesmo barrio
donde vivo, la convivência es bastante tranquila. Nunca tive problemas com mis
vecinos, nem nada. Pero siempre nos miravam de maneira estranhas, somos um
elemento distinto. Entonces, ellos veem em nosotros algo diferente. Todos temiam de
maneira particular, como te reconocem como distinto. Y isso já es suave, pero hay
cosas que son mucho mais hostiles como que vai a pagar, y te dicen... não sei. [Pausa]
Noutro dia, uma amiga quis resolver a um problema burocrático a la receita federal.
Y le dijo que este problema yo no poso solucionar, porque no tengo dinheiro para
solucionar-lo. Y la funcionária disse pague, se nosotros la estamos manteniendo, lo
único que tiene que hacer é pagar. Y em outro dia, por exemplo, uma amiga foi a pagar
algo que havia consumido em uma cafeteria, y uma senhora disse aquela estudiante
coloca a senha do cartão y somos nós que pagamos. Esse tipo de coisas y otros tipos
que são mucho mais hostiles (VALÉRIA, 2013).
Aqui aparece alguns dos elementos do tensionamento entre grupos citadinos e
estudantes. O fato de serem estrangeiros é acompanhado pelo fato de que a universidade, por
ser pública, é financiada com o dinheiro dos impostos de residentes no país que, na fala de
Valéria, são limitados aos brasileiros. Esse elemento, acompanhado do discurso de que os
estrangeiros tiram vagas de brasileiros na universidade (mesmo que não corresponda à realidade
da instituição, criada especificamente com o projeto de atrair estudantes de outros países da
América Latina), fundamentam o preconceito e dão uma base social para este. Esta narrativa
esteve presente em diferentes momentos, desde o blog Reinaldo Azevedo até os comentários
de Villa. Assim, para o emissor, o que é entendido como preconceito pelos estudantes, pode ter
outro sentido, o de injustiça para com os brasileiros. Deste modo, dificultar ou agredir
verbalmente esses estudantes aparece como uma dimensão de uma espécie de justiça popular
ou vingança em relação aqueles que, nessa perspectiva, estariam a tomar a vaga de seus filhos,
amigos e colegas. Grupos sociais diferentes aderem às narrativas distintas e legitimam, a partir
destas, suas práticas. Estas narrativas não são tomadas como equivalentes, pois a segunda
narrativa, a qual sustenta preconceitos contra os estudantes, é construída com base em erros e
engodos propositais na leitura do processo de implantação da Unila. A leitura desta questão é
realizada também por Marcos:
Exatamente. Eu já escutei comentários do tipo... “Ah, porque esses caras de outro
país, eles vêm aqui, recebem dinheiro do governo”. Aí essas pessoas inventam
informações, sabe. “Ah, porque esses caras recebem 900,00 reais por mês do governo
e ficam aqui gastando em droga e não sei o quê... vai voltar para o seu país” e sabe,
coisas assim (MARCOS, 2017).
233
A criação e propagação de boatos e informações falsas fundamentam e operacionalizam
o preconceito com os estudantes. A fala de Marcos evidencia a sensação de injustiça que os
boatos proferidos sobre a instituição geram entre a população da cidade. O próprio narrou uma
situação em que foi alvo dos preconceitos que atingem os unileiros:
Sim, sim. Então, eu acho que a situação mais marcante que eu já passei com relação
a comentários maldosos em relação a UNILEIRO ou a universidade em si foi em
2015. Foi quando eu entrei. Eu tinha um amigo e eu tinha uma banda com ele e ele
estuda na UDC que é a União Dinâmica das Cataratas, uma universidade particular
aqui de Foz. A princípio é uma das mais caras, mais elitistas aqui da cidade. E... teve
um dia assim da semana que eu fui, eu saí da UNILA pra me encontrar com ele e ele
tava lá na UDC, que ele falou “Ah, me encontra aqui na UDC, que a gente vai fazer
alguma coisa”. [...] E assim, eu não tenho aquele estereótipo que todo mundo diz né,
de um UNILEIRO, tipo, eu estava vestido simplesmente com um tênis, uma calça e
uma camisa polo e uma mochila, simplesmente. E daí, eu cheguei nesse grupo de
amigos desse meu amigo, o nome dele é Bruno. Nós começamos a conversar e formar
uma conversa assim de 15/20 minutos, mais ou menos, até que um deles, um dos
amigos do Bruno perguntou, “Ah, e você cara, de onde você é? O que que você faz?”.
Aí eu falei: “Eu estudo na UNILA, eu faço geografia.” Aí todos os olhares se dirigiram
a mim, a minha pessoa, me olharam dos pés à cabeça e dizendo: “Cara, mas você não
parece UNILEIRO, porque UNILEIRO tem dread, UNILEIRO é sujo, é fedido, mas
você todo arrumadinho assim, nem dá pra dizer que você é da UNILA”. Eu fiquei sem
reação né, só dei aquela risada de nervoso assim né, pra não parecer que eu sou mal
educado. Mas essa é a situação mais marcante assim... comentários irônicos, por
exemplo, porque como a UNILA ela é muito longe da cidade, então do transporte
público, as únicas linhas que vão até, que chegam até a Itaipu, geralmente em horários
de pico assim, horário que os estudantes estão indo pra aula, são horários onde os
ônibus estão muito cheios, e às vezes sei lá, algum estudante pode ter tido alguma
correria, alguma coisa pra fazer de manhã, daí sei lá, às vezes a pessoa está suada
porque aqui em Foz faz muito calor... já escutei comentários também em ônibus de as
pessoas falando: “Nossa que cara fedido, com certeza é UNILEIRO. Ah não.. ele é
UNILEIRO. Olha só, olha a bolsa dele, ta falando que ele é da UNILA, é por isso que
ele é fedido desse jeito.” Coisas assim sabe. Mas ainda assim o que mais me marcou
foi a situação que eu passei com meu amigo na faculdade particular onde ele estudava
(MARCOS, 2017) [destaques nossos].
Em seu caso, não são as bolsas (às quais ele não teve acesso), os gastos com impostos
ou mesmo a estrangeiridade, afinal, Marcos é brasileiro e de Foz do Iguaçu, que são ativados
como estereótipos. Perante a presença de alguém que foge ao estereótipo e a narrativa
preconceituosa fácil, outros elementos são ativados. Vincula-se à imagem do “unileiro” a falta
de higiene, asseio pessoal ou vestuário “adequado”. O próprio Marcos reconhece e aponta a
existência desses elementos entre os estudantes, explica-os e contextualiza-os dentro da
especificidade da Unila.
O que podemos perceber dos relatos é um processo de construção e manifestação de
preconceitos dos quais os estudantes da Unila são alvos. Através da construção de um
estereótipo que os transforma em um grupo único, os unileiros, tendo sua presença na cidade
negativada, a partir dos eventos que apresentamos, enfrentam desafios diversos nas suas
234
vivências urbanas. Constituem, baseado nisso, uma narrativa que apresenta suas experiências e
suas leituras da cidade marcada pelo tensionamento constantemente manifesto em seu
cotidiano. É preciso atentar para o fato de que, apesar de significarem amplamente suas
experiências na cidade a partir do signo do preconceito e de tensionamentos, essa não é a única
dimensão. A experimentação da cidade acaba por ser inevitável, mesmo que como lugar de
passagem ou apenas de comércio. Dessa forma, mesmo limitados pelos significados
construídos, é possível inferir que outras relações diversas e com outros sentidos possam ter
sido construídos.
Também é preciso alertar que, mesmo que sofram preconceitos de alguns grupos, esta
não é uma relação unânime na cidade. Outras formas de lidar com a instituição foram
constituídas. De todo modo, ao tomarmos as narrativas e a memória dos sujeitos como fonte
para a compreensão dos significados constituídos sobre suas trajetórias, abordamos de maneira
mais enfática aqueles sentidos que foram constituídos. Ficamos, portanto, limitados
metodologicamente na compreensão de outras relações. Entretanto, ao observarmos as
problematizações teóricas sobre cidades, vemos a constatação de que este espaço é histórico e
diverso. Nele, processos sincrônicos e diacrônicos se atravessam e geram uma experiência
complexa que é dificilmente captável por qualquer aparato metodológico. Dessa forma, resta a
atenção a esses fenômenos de forma a não idealizar sua fonte e sua pesquisa como uma
possibilidade única na análise.
O encontro com estes preconceitos leva os estudantes a criarem táticas e estratégias de
inserção pessoal e da universidade. No âmbito pessoal, há constantes tentativas de esconder ou
omitir a filiação institucional quando em espaços urbanos. Em diversos casos, a identificação
do pertencimento a uma universidade, no caso brasileiro, a uma universidade federal, implica
em ganhos sociais e, portanto, pode ser buscada pelos seus estudantes. Dessa forma, é comum,
em cidades com universidades, presenciar estudantes que utilizam a marca institucional,
principalmente em mochilas, camisetas, agasalhos, adesivos, etc. Geralmente, estas marcas são
acompanhadas do curso do qual o estudante faz parte.
Análises desta questão já foram realizadas sobre estudantes africanos, no Brasil,
especialmente aqueles do programa PEC-G e PEC-PG. Entre estes estudos, destaca-se os de
Carlos Subuhana, ele próprio moçambicano e participante desse convênio. Em 2009, escrevia
sobre preconceitos sentidos pelos estudantes negros do programa e sobre táticas e estratégias
identitárias de enfrentamento da questão: “o que notei em quase todas as entrevistas é o
reconhecimento de que o fato de ser universitário e estrangeiro atenua a experiência negativa
que representa descobrir-se em desvantagem social pela simples pigmentação da pele”
235
(SUBUHANA, 2009, p. 121). O saber-se universitário, ou seja, o senso de utilidade de sua
condição no país, ajuda a mitigar o prejuízo causado pelos preconceitos sentidos
cotidianamente.
Ao mesmo tempo, estes estudantes buscam marcar sua estrangeiridade como estratégia
de reconhecimento social para tentar evitar os preconceitos. “Uns, quando se preparam para ir
à rua, passam por um processo ritual que inclui “fazer um penteado típico” (Ziza) e sair com
uma roupa que os identifique como diferentes, ou seja, estrangeiros” (SUBUHANA, 2005,
p.99). Ao marcar sua origem de lugar, como um outro na cidade do Rio de Janeiro, buscam
fugir dos preconceitos. O autor acaba sem abordar em maior profundidade a eficiência ou não
dessa estratégia. De qualquer forma, interessa-nos a abordagem desses estudantes perante essa
situação, em especial, por ela marcar um lugar social diferente para universitários estrangeiros.
A presença de estudantes do PEC-G ou PEC-PG na cidade é bastante distinta do caso
dos discentes da Unila. Primeiro, nos programas citados, eles estão diluídos numa comunidade
universitária mais ampla. Constituem um pequeno grupo dentro da universidade. São elementos
complementares, não fundantes. O caso da Unila, como já apresentado no capítulo 3, é distinto.
A instituição tem como proposta a atração e manutenção de um grande grupo, relativo ao
tamanho da instituição, de estrangeiros. Dessa forma, o impacto da instituição e mesmo do
número de estudantes em Foz do Iguaçu pode ser sentido de maneira mais ampla. Mesmo que
nos primeiros anos esse número tenha sido relativamente baixo, em 2012, momento da ação da
polícia na moradia estudantil, são cerca de 200 estudantes numa população urbana de mais de
200 mil habitantes. A proposta institucional e sua reverberação na cidade multiplica
exponencialmente o impacto. Assim, a estrangeiridade, que no caso dos estudantes PEC pode
ser diluída, subjetiva e socialmente, dentro da representação enquanto universitário, toma outra
dimensão, no caso da Unila.
Ao lidar com esta questão, os estudantes constroem estratégias diversas de inserção na
urbanidade. Em diversos casos, estas são elaboradas no sentido de omitir sua identidade de
estudante da Unila. É o caso de Clóvis:
Clóvis: O exemplo que eu ia falar... Lá no meu país você ir na rua, ir num ônibus, com
uma camisa da UES – Universidade de El Salvador – mostra isso um pouco. “Você
estuda na UES? Faz o que?”.. “Engenharia”... “Como que você conseguiu entrar lá?”
“Bom foi difícil, mas consegui”. “Parabéns, estuda”. Então o que você percebe nesse
exemplo? Você percebe que você ser da UES, daquela universidade, você é um gênio.
Aqui é diferente. Eu tenho duas ou três conhecidas minhas e você vai num ônibus e
diz que é da Unila, eles olham pra você... [risos] Realmente isso é verdade, é verdade
infelizmente. Então, eu fui pro meu país e eu entrei no ônibus com uma camisa da
236
UES, eu tenho uma camisa da UES aqui e eu saio com ela, mas sair com camisa da
Unila... só quando vou pra faculdade.
Entrevistador: Você não anda com ela pela cidade... Você não vai numa festa com
uma camiseta da Unila?
Clóvis: Não. Eu me sinto orgulhoso de ser da Unila, mas não faz sentido. Porque eu
sei que vai ter alguém que vai ficar contente e vai ter alguém que vai ficar descontente
(CLÓVIS, 2015).
Os usos da identidade universitária se transformam conforme o lugar onde Clóvis se
encontra. Se, em El Salvador, há ganhos sociais na exposição dessa identidade, o mesmo não
aconteceria em Foz do Iguaçu. Mas esse ganho ou, pelo menos, uma relação “neutra” se
estabeleceria na exposição da Universidade de El Salvador. Em sua fala, fica evidente que a
identificação negativada não é a de universitário, mas aquela vinculada à Unila. Importa
lembrar que Clóvis é discente do curso de Engenharia Civil, um curso que inicia uma carreira
com importantes vínculos potenciais com a espacialidade na qual se insere. Afinal, esta é
constantemente lembrada por uma das mais impressionantes obras de engenharia humana, a
Itaipu. Mesmo assim, o estudante busca omitir sua vinculação com a instituição e com o curso.
Tal atitude não é isolada. Fabiano, seu colega de curso, constrói tática semelhante:
Contar uma coisa assim, que eu não sei porque que aconteceu, mas sei lá... Às vezes
essas coisas não dá pra entender direito. Eu tive que fazer um trabalho, aí tinha que ir
no materiais de construção e perguntar preços de máquina e tal. E quando entrei na
loja, “Ah, eu vim fazer um trabalho e tal. Eu queria saber os preços das máquinas.” E
não falei diretamente da Unila. E tinha um receio assim, se eu falar o cara não vai me
ajudar, não vai deixar eu fazer o trabalho. Ele me ajudou um pouco assim e aí a gente
conversou um pouco e ele perguntou: “Ah você faz Engenharia Civil?” “Ah eu faço”.
“E onde você faz?” E eu não sei porque, eu não tive coragem de dizer eu faço na
Unila, eu não tive coragem de dizer naquele comecinho, isso foi no primeiro ano. E
tipo porque, “Ah não o cara vai, não vai deixar eu terminar o trabalho, ah não sei vai
fazer alguma coisa”. E eu não falei não. “Ah eu sou da Unioeste, a Unioeste tem civil.”
E nem tinha, nem tinha Unioeste nem tinha Engenharia Civil. E aí falei nossa depois
daquele dia, eu fui idiota, sabe? Mas eu não sei, aquele receio, “Ah eu sou da Unila.”
O cara já não ia deixar eu fazer o trabalho (FABIANO, 2015).
Fabiano não se identificou como estudante da Unila por receio de ser impedido de
realizar um trabalho de pesquisa em uma loja de materiais de construção. Como forma de burlar
a situação, ele se identificou com outra instituição, a Unioeste, o que permitiria a tranquilidade
na execução de seu trabalho. Dessa maneira, para lidar com uma situação nova, a improvisação
identitária, a tática, surge como uma alternativa de atuação social que permite ganhos, mesmo
que apenas momentâneos, para o sujeito. Ao realizar tal ação, joga com as representações
sociais que se constituem em Foz do Iguaçu. Enquanto a Unila e sua comunidade sofrem
preconceitos diversos, a Unioeste é vista como instituição consolidada e parte da urbanidade.
Interessante notar como essa tática social lida com uma intrincada relação de
237
conhecimento/desconhecimento a respeito das instituições em questão. A Unioeste campus de
Foz do Iguaçu não conta com Engenharia Civil – este curso está localizado apenas em Cascavel.
As engenharias oferecidas naquele campus são Engenharia Elétrica e Mecânica. Assim, o
desconhecimento do vendedor em questão a respeito das especificidades do campus permite o
sucesso da tática de Fabiano. Entretanto, lida também com o conhecimento do sujeito, mesmo
que difuso e superficial – vide o desconhecimento da inexistência do curso em questão – a
respeito das instituições universitárias da cidade.
Outra marca visível de identificação de uma parte dos estudantes da Unila é um crachá.
Pelo fato de que um dos campi da instituição fica localizado dentro do território da Itaipu, o
ingresso nessa estrutura é regulado por regras que fogem ao controle da instituição, sob
responsabilidade da administração da usina binacional. Como ferramenta de controle, o
ingresso nesse espaço só ocorre por uma entrada que é protegida por forças de segurança.
Qualquer visitante, trabalhador ou estudante deve passar por esse espaço. A forma de acesso
aqueles que usam cotidianamente o espaço é a realização de um cadastro e o fornecimento de
um crachá como o da imagem abaixo:
Figura 3 – Imagem do crachá de identificação do PTI
Fonte: acervo do autor.
238
Este sistema de identificação permite perceber não apenas os estudantes da Unila, mas
todos os usuários cotidianos daquele espaço. Além disso, impede ou dificulta o acesso ao espaço
universitário, o que dificulta a possibilidade de integração com a cidade. A utilização ou
omissão do crachá é citada por Natália:
Entrevistador: “Você usa o crachá da UNILA fora da Universidade? Ou alguma outra
forma de identificação?”
Natália: “Não, eu tiro.”
Entrevistador: “De propósito ou por comodidade?”
Natália: “ Por comodidade e também de propósito mesmo. Por ser uma cidade que é
muito turística, eu acho que ela não tem problema com a pessoa que seja estrangeira,
por exemplo, que sabe que vem pra visitar. Você encontra, às vezes, num ônibus, sabe
que tem pessoas que não são daqui de Foz, que são estrangeiras, mas que estão
visitando de turista e a gente de Foz é bem mais receptiva com eles. Então acho que é
intencional tirar o crachá”.
Entrevistador: “Pra ser identificada como turista ou ser confundida como turista?”
Natália: “Pra ser confundida como turista e não como estudante da UNILA”.
Entrevistador: “Você acha que isso traz vantagens ou, pelo menos, não traz nenhuma
desvantagem?”
Natália: “Sim, geralmente traz mais vantagens (NATÁLIA, 2017).
Novamente, a tática de se camuflar em meio a um grupo social mais aceito é ativada.
Há uma especificidade interessante. Clóvis e Natália são estrangeiros. Sua fala e, no caso de
Clóvis, seu fenótipo contribuem para identificá-los facilmente como tal. Dessa forma, assim
como os estudantes abordados por Subuhana, utilizam-se dessa característica como forma de se
inserirem de maneira privilegiada na cidade. Enquanto isso, Francisco é brasileiro, de cidade
próxima a Foz do Iguaçu. Mesmo ao poder se passar por turista brasileiro, sua opção e
necessidade é outra. Precisa se identificar como estudante e – o que não é o caso de Clóvis e
Natália – utiliza a Unioeste como camuflagem. Origem de lugar e necessidades práticas
implicam a ativação de identificações distintas e fluída ao lidar com o preconceito que sofrem
na cidade. Se as táticas são distintas, os objetivos são os mesmos: a fuga da violência simbólica
gerada pelos estereótipos construídos e reproduzidos sobre os unileiros.
Os tensionamentos nas relações sociais entre estudantes e citadinos que viemos
acompanhando ao longo desse capítulo possuem uma variedade de motivadores e dimensões.
A opção metodológica de nosso trabalho em entrevistar apenas pessoas ligadas à universidade
limita a possibilidade explicativa dessas motivações. Afinal, observamos esse problema a partir
da ótica daqueles que são vítimas do processo. Buscamos mitigar as limitações que essa opção
trouxe, através da análise de manifestações sobre a instituição e seus estudantes em momentos
que consideramos cruciais para a consolidação desse tensionamento. Assim, abordamos a ação
policial na moradia estudantil, momento traumático para a formulação da identidade “unileira”
239
e de ampla divulgação de sua presença na cidade. Além disso, acompanhamos a publicação do
blog EmpresariALL como forma de perceber uma das narrativas que atravessam a construção
dos preconceitos sobre os estudantes. Está claro para nós que essas incursões no ambiente
citadino, mesmo que virtual, são limitadas e não esclarecem plenamente a questão. Entretanto,
pensamos que ao aliarmos as narrativas dos estudantes a essas manifestações de preconceito
podemos ter uma percepção interessante sobre as estruturas que movem essa relação. Afinal,
quando lidos a contrapelo, como nos ensinava Benjamim, os atos de violência simbólica
permitem perceber, através das características utilizadas para os ataques, quais elementos
constitutivos dos preconceitos que são verbalizados. A partir disso, podemos dimensionar e
identificar constâncias que podem ser utilizadas para problematizar elementos mais
aprofundadas dessas manifestações. Mesmo não sendo esse o objetivo central desse capítulo,
daí a escolha de fontes, ponderações sobre essa questão possuem valor heurístico para algumas
discussões que serão realizadas na sequência.
Se já enunciamos brevemente acima, cabe aqui uma breve sistematização do que
pensamos ser os elementos centrais desses preconceitos. Dois se destacam, a xenofobia e a
dimensão social. Em relação à xenofobia fica claro tanto nos comentários, nas manifestações
do EmpresariALL, e na fala dos estudantes, a constância de manifestações xenofóbicas. A
estrangeiridade dos membros da Unila é constantemente ativada, tanto como forma de
deslegitimação da instituição, quanto como forma de agressão a eles.
Uma superioridade imaginada do Brasil em relação a América Latina é utilizada para
agredir simbolicamente os estudantes estrangeiros. Alia-se a essa xenofobia o fato de que
muitos desses estudantes possuem fenótipo indígena, agregando a estrangeiridade, elementos
de preconceito racial que atravessam o país em relação a sua população indígena. Fica claro a
partir das fontes elencadas ao longo do capítulo que a xenofobia, o preconceito contra a origem
de lugar, agregada ao racismo é motor constante dos preconceitos com o qual os estudantes
devem lidar na cidade. Funciona, inclusive, agregando elementos de preconceitos xenofóbicos
em relação aos paraguaios na representação negativa que constroem dos estudantes. Em relação
a esse preconceito vimos Natália e Clóvis buscarem se imiscuir na imagem de turista, o que
amenizaria a xenofobia pois estes seriam transitórios na cidade.
Outro elemento que aparece em diferentes momentos é um preconceito social, de classe.
A pobreza imaginada da América Latina é agregada a esses estudantes que viriam ao país como
forma de explorarem riquezas brasileiras em benefício próprio e egoísta. Manifesta-se, por
exemplo, na imagem de sujeira, nas roupas que seriam utilizadas para identificar os unileiros,
240
como apontado anteriormente por Marcos. Esse preconceito social, ativa também imaginários
xenofóbicos, como apontado em relação ao imaginário sobre o lugar da América Latina no
mundo.
Há um elemento, para além desses que nos parece constituir um pano de fundo da
motivação aquelas manifestações de preconceito “não-cotidianas”. Uma coisa é a fala
preconceituosa no ônibus, a piada de mau gosto dos colegas e amigos estudantes, o comentário
casual. Estas são manifestações cotidianas desses preconceitos. Entretanto, existe um outro
extrato, relacional de construção desses estereótipos preconceituosos.
É o momento em que alguém investe tempo, dinheiro e diversos recursos na construção
e divulgação destes. É o caso dos comentários no Youtube e do blog EmpresariALL. Ali se
manifestam além da xenofobia e do preconceito social, uma dimensão de oposição política que
é central. No caso do blog isso é significativo. A oposição aos governos do PT e a identificação
da Unila como um projeto de controle político e ideológico da sociedade brasileira por esse
partido, é um dos elementos centrais que movem os ataques. Buscando “agregar valor” à sua
oposição, o autor adiciona a xenofobia e o preconceito de classe em sua narrativa.
O objetivo deste capítulo foi, em grande medida, apreender o processo de inserção dos
estudantes na cidade de Foz do Iguaçu. Foi possível acompanhar a construção de uma relação
tensa entre entres unileiros e citadinos. Essas relações não são monolíticas. Se enfatizamos em
grande medida a tensão, a xenofobia e diversas formas de preconceito experimentados pelos
estudantes na cidade, essa não deve ser vista como a única possibilidade. Afinal, tanto a
comunidade estudantil quanto a cidade são amplas e marcadas pela diversidade. De qualquer
forma, foi possível perceber a fragilidade da narrativa multicultural que, como vimos no
capítulo 2, é central para a identidade propagada de Foz do Iguaçu. Historicizando experiências
estudantis na cidade, alcançamos a possibilidade de complexificar as análises dessa urbanidade.
Nos resta ainda o desafio de perceber como essas vivências marcarão a dimensão final de nosso
trabalho: como os unileiros significam a experiência universitária na Unila. Esse é o objetivo
do próximo capítulo.
241
5 UNILEIROS: CONSTITUIÇÃO E (RES)SIGNIFICAÇÃO IDENTITÁRIA NA
EXPERIÊNCIA ESTUDANTIL
Ao longo dos três capítulos iniciais, buscamos apresentar um conjunto de historicidades
que temos percebido como centrais para a experiência dos estudantes na Unila. Já no capítulo
4, discutimos relações e experiências de estudantes no contato com a cidade. A partir dessas
experiências, bem como de dinâmicas internas da universidade, foi possível perceber o emergir
de uma identidade, qual seja, os unileiros. Com sua significação transformada a depender do
momento no tempo ou do grupo social que observamos, essa identidade foi marcada pela
relação com a cidade e com seus diferentes grupos sociais. Tensões, mas também diálogos
produziram transformações e agregaram sentidos. Realizada a tarefa de historicizar e
problematizar esses movimentos, é chegado o momento de abordar a constituição desta
identidade no e para o ambiente universitário.
Foi possível acompanhar o processo de construção do “unileiro” que, em diferentes
tempos, significou formas distintas de inserção dos estudantes na cidade. A própria
transformação do sentido que o termo assume, a depender do momento ou do lugar social que
se faz a leitura, evidencia esse movimento. Desta forma, não nos é possível imaginar a
problematização de identidades constituídas entre os estudantes da Unila sem pensar neste
movimento histórico, nos tensionamentos, nas aproximações e nas localizações diversas que a
relação cidade/universidade possibilita para esses estudantes. Sendo assim, esta relação, que
nos acompanhou até agora, continua a nos acompanhar durante este último capítulo.
Entra em foco as relações que os estudantes estabeleceram com essa identidade, as
maneiras como (res)significaram essa categoria e a forma como a constituíram no e para o
ambiente universitário. Tal processo, como veremos, não é linear ou monolítico, mas tortuoso
e carregado de tensionamentos. Enfim, é um processo histórico. Para abordar tais questões,
utilizamos as narrativas orais dos estudantes constituídas nas entrevistas.
Com vistas ao objetivo deste capítulo, organizamos o mesmo em três momentos:
primeiramente, buscamos apresentar, brevemente, a identidade unileira constituída no ambiente
universitário. Em seguida, ocupamo-nos em discutir as dificuldades, tensionamentos e as
disputas identitárias narradas pelos estudantes no processo de constituição dessa identidade. Por
fim, analisamos a consolidação do unileiro como identidade estudantil para pensar seus usos e
significados na historicidade da experiência estudantil na Unila.
242
5.1 CHEGANDO NA UNIVERSIDADE
No capítulo anterior, buscamos problematizar o espaço de experiências narrado pelos
estudantes com foco no momento de chegada em Foz do Iguaçu. Ali, fizemos uma divisão
quase que “artificial”. Afinal, a chegada na cidade, como vimos nos capítulos 1 e 4, não esteve
descolada da chegada na universidade. Tanto pelo fato de que estes jovens não migram com o
objetivo Foz do Iguaçu quanto porque, ao migrar, chegam “simultaneamente” na cidade e na
universidade. Se é nosso objetivo compreender as experiências dos estudantes nesta relação, a
partir das quais constituem suas identidades, faz-se necessário problematizar também suas
memórias a respeito da chegada na Unila.
Exceção feita a Marcos, morador de Foz do Iguaçu, todos os entrevistados
experimentaram deslocamentos migratórios. Mesmo no caso de estudantes moradores da
cidade, há deslocamentos que podem ser mais ou menos significativos, a depender das
subjetividades de cada sujeito. Exemplo desta questão é a possibilidade de mudanças nas redes
de sociabilidades nas quais estas pessoas se inserem. Seja a partir da escola, da família, de
amigos ou mesmo do trabalho, as redes de sociabilidades de jovens não-universitários
dificilmente são aquelas predominantes quando olhadas a partir da experiência universitária.
No caso da Unila, há um elemento adicional. Com objetivo institucional de atração de
estrangeiros latino-americanos para seu corpo discente, existe, ali, a formação de sociabilidades
que não estão, necessariamente, à disposição para os citadinos porque boa parte dos membros
desse corpo estudantil não eram habitantes da cidade. Desta maneira, mesmo os citadinos, ao
ingressarem na Unila, passam por importantes deslocamentos sociais e culturais que não podem
ser desprezados. O caso de Marcos e de outros moradores de Foz do Iguaçu, que acessam a
Unila a partir do cursinho Ingressa é distinto. Ao cursarem o pré-vestibular, acessam algumas
dimensões da experiência unileira, pois os professores deste curso são estudantes da Unila.
As memórias e significações a respeito do momento de ingresso na Unila são diversas.
Seja pela dimensão do deslocamento ocorrido para a chegada até a universidade, seja pelas
relações socioculturais que estes estudantes construíram anteriormente, eles destacam questões
distintas a respeito desse momento, o que constitui, a partir disso, significados também
distintos. Sendo assim, buscamos pensar algumas dimensões que se tornaram recorrentes dentre
as entrevistas. Sempre atentos aos limites das possibilidades de generalização que o conjunto
de entrevistas impõe, observamos elementos comuns ao nosso conjunto de fontes que foram
construídas sem visar uma representatividade – inalcançável – do corpo estudantil, mas um
conjunto que possibilite a percepção de questões comuns na diversidade desse grupo social.
243
Comecemos, então, por um caso em que o deslocamento, em tese, poderia ter sido pouco
impactante. Fabiano já teve partes de sua narrativa analisada no capítulo anterior. Proveniente
de uma cidade relativamente próxima de Foz do Iguaçu, ele se deslocou para a Unila depois de
iniciar seus estudos em outra instituição universitária, a UTFPR. Em tese, poderíamos esperar
um movimento de acomodação e sem grandes transformações, pois Fabiano era universitário e
residente de uma cidade próxima. Vejamos como ele apresenta esse momento:
Eu sofri um pouco quando vim pra Unila. Sofri nas questões sociais assim, que eu pra
mim foi muito grande. Assim, outra pessoa no meu lugar tinha desistido e tinha ido
embora, mas enfim. Quando você vem de cidade pequena você vem com a mente
muito fechada. Em questões políticas é, nas questões de drogas principalmente isso
que eu tipo eu cheguei primeiro uma barreira pra amizades, não gostava de pessoas
que fumavam cigarro, maconha então era: “Nossa!”. É a pessoa que eu era. Eu era
aquele cara chato: tão fazendo uma festa, eu vou lá denunciar. Eu era desses caras
assim, vinha com a minha mente muito fechada e hoje eu tenho vergonha. Eu tenho
vergonha de lembrar que eu era um cara assim. Até algumas inimizades que eu tenho
aqui na Unila que foram por essas coisas que aconteceram lá em 2011, lá no começo
(FABIANO, 2015).
Questões “sociais” e drogas surgem como limitadores e pautadores das sociabilidades
deste estudante. Ao chegar na Unila, vê-se imerso em um conjunto de sociabilidades que ele,
pelo menos a princípio, não apenas rejeita, mas busca combater através de denúncias, visto que
as entende como negativas. O tensionamento causado foi focado, principalmente, na questão
das drogas, mesmo as lícitas como o cigarro. Este posicionamento colocado como proveniente
de uma “mente muito fechada” seria responsável pela constituição de rivalidades que
permaneceriam até o momento da entrevista. Sua fala permite a percepção de que o ingresso na
universidade foi impactante, assim como vimos que sua chegada na cidade também foi. A
experiência universitária, por mais que possua idealizações diversas, seja no cinema, nas
propagandas das instituições ou em vertentes musicais do chamado “sertanejo universitário”,
tensiona essas idealizações com as possibilidades ou limites apresentados em seu cotidiano.
Neste sentido, foi comum ouvir dos entrevistados elementos com os quais estiveram
decepcionados ou impactados. A fala de Fabiano é de especial interesse na busca de
compreender esta questão, sobretudo pela força e densidade de seu incômodo apresentado
acima e também pelo desenvolvimento desse incômodo a partir de sua experiência como
estudante da Unila. Fabiano continua:
E isso pra mim eu lembro sempre porque eu aprendi muito com isso. Hoje nossa, hoje
eu, como eu disse tenho vergonha por que aprendi muito com essas questões por
conviver com pessoas, ver que não faz sentido nenhum ter preconceito nenhum sobre
essas questões. Eu penso que talvez se viesse outro colega meu pra cá e passasse por
essas situações ou ele não teria aberto a mente ou tinha ido embora. Porque pra mim
244
aqui na Unila se você não for um mente aberta, todas essas questões, até sociais,
questões de gênero, questões de vários preconceitos, se você não vem com essa mente
aberta você não vive a Unila. Eu pra mim não tem como você conviver na Unila sendo
preconceituoso com várias questões, não tinha como isso pra mim eu aprendi muito,
muito, e o engraçado é que tipo... Quando eu voltei pra minha casa eu vi que isso
mudou com a minha mãe principalmente, com a minha mãe que é onde eu tenho maior
contato. Ela nessas questões era também mente fechada. Como eu vivi com ela, ela
também me passava isso, então tinha um certo receio nessas questões. Certo mas hoje
eu consigo conversar aberta com ela abertamente sobre isso e tudo mais e... E mudou,
sabe? O que eu vivo aqui na Unila eu vivo pelo menos na minha casa ou na minha
cidade, mas a minha casa assim mesmo, ambiente essas questões que eu aprendi na
Unila (FABIANO, 2015) [grifos nossos].
O destaque nesta fala fica para a questão da apreensão das vivências universitárias com
base em um sentido construído em torno da importância do aprendizado. Se Fabiano começa,
na fala anterior, com as marcas das dificuldades que experimentou, ao ir para a Unila, neste
momento, ele ressignifica essas experiências a partir da ideia de aprendizado. O “aprendi
muito” denota o movimento de transformação deste sentido e, também, de sua subjetividade.
Transformação esta diacrônica, pois calcada num tempo e espaço específico, e sincrônica, pois
reverbera nas sociabilidades de seu presente. Assim, a vivência na Unila força uma
reformulação na sua perspectiva de mundo. A necessidade de “abrir a mente” para práticas e
formas distintas de ser em sociedade reformulou não apenas sua visão de mundo, mas também
sua identidade. Ao narrar o evento, emerge uma memória e uma identidade marcadas por sua
“nova” perspectiva de mundo, uma perspectiva já calcada nas transformações ocorridas desde
as relações de interculturalidade estabelecidas na e a partir da universidade.
Novas experiências podem causar transformações na subjetividade e nas identidades
dos indivíduos. A participação em espaços sociais diversos pode ser incorporada aos jogos
identitários dos sujeitos de diferentes formas. Não é aí que mora a especificidade de nosso
objeto. Já discutimos isto, em especial, em uma das dimensões de nossa crítica à narrativa de
multiculturalidade produzida para Foz do Iguaçu. Lá, apresentávamos os limites que uma
essencialização e idealização da multiculturalidade podia trazer, qual seja, a ausência de contato
entre diferentes. Estes se olhavam, até se observavam, mas não necessariamente interagiam.
Uma situação diferente está colocada na Unila.
Qualquer universidade ou instituição de ensino tem, potencialmente, sua composição
formada por algum nível de diversidade. Essa situação se repete na Unila com uma importante
especificidade. Essa universidade tem como proposta as trocas interculturais. Mais que a
convivência de diversos grupos, a instituição propõe relações de trocas sociais, culturais e
políticas como um de seus pilares. Desse modo, as transformações experimentadas e produzidas
por Fabiano vão ao encontro do objetivo, pelo menos o genérico, da instituição. Afinal,
245
carregada de diversidade, a instituição e sua proposta de integração demandam a desconstrução
de preconceitos. Essa desconstrução de preconceitos “sociais, de gênero” que sua chegada na
Unila teria ocasionado, seria fundamental. Ainda voltaremos a esta questão adiante.
Outra questão narrada por diversos estudantes foi a solidariedade que teriam encontrado
na Unila. Seja por parte de outros universitários ou mesmo do corpo de funcionários. Este é um
elemento significativo que aparece na fala de Angela:122
Eu lembro que quando eu cheguei tinha um brasileiro, veterano de RI mesmo, me
esperando. Aí eu falei: “Nossa eu to surpresa. Como eles recebem muitas vezes em
comissão assim, que vai, que vai chegar tal dia pra ir pegar no aeroporto. Ah você
está, por exemplo, nessa moradia: “Eu vou levar você pra estar bem, se você quiser
eu te dou meu contato e você pode me ligar me escrever qualquer coisa”. Aí ele sempre
estava em posição de ajudar a gente. E também quando eu estive na moradia 1, aquele
dia, eu lembro estavam fazendo uma festa ali. Estava tocando música, é fazendo
integração né. (risos) Dançando, conhecendo-se, e ai é isso eu gostei. Tem a diferença,
tem muita diferença, de todo mundo, sempre respeitando as pessoas também, o modo
de pensar de conviver. Muitas pessoas são muito diferentes, a cultura, o modo de
pensamento como eles foram educados também, e é isso (ANGELA, 2017).
Sua fala descreveu a chegada na cidade como um momento rememorado e significado
a partir de dois elementos. O primeiro, comum a outros estudantes, é a solidariedade, já o
segundo são as primeiras percepções da lógica de integração cultural que, segundo ela, eram
produzidas naquele espaço. No primeiro momento, quando a solidariedade é o destaque,
aparecem algumas especificidades importantes da chegada na universidade. Falamos de uma
instituição que, ao atrair um conjunto importante de estudantes de outros países, em especial de
língua espanhola, se depara com uma dificuldade específica, que é a da estranheza linguística.
Neste sentido, o aparato de solidariedade constituído pelos estudantes foi destacado
como muito importante para uma primeira acomodação na estrutura urbana e universitária.
Tenhamos em mente possibilidades como as narradas por Tuane, abordadas no primeiro
capítulo, onde o deslocamento migratório para a Unila foi apenas o primeiro momento da
reconstrução do que ela pensa como “casa” em seu sentido mais subjetivo. O mesmo pode e,
efetivamente acontece, com outros estudantes. Desta forma, as solidariedades, mesmo
informais, se constituíram ao longo do tempo em uma rede de proteção e acomodação das
diferenças e especificidades que estes jovens trazem para a universidade.
122
Angela: Estudante equatoriana, tinha 24 anos em 2017, momento da entrevista. Se formou em Relações
Internacionais em 2016 e ingressou no Mestrado em Integração Contemporânea da América Latina em 2017.
Proveniente de Portoviejo, cidade de cerca de 220 mil habitantes no Equador. Antes de ingressar na Unila, havia
passado um semestre em São Paulo por um projeto de intercâmbio do clube Rotary. Entrevista realizada em 05 de
abril de 2017, via Skype.
246
Essa possibilidade e forma de acomodação material e subjetiva que existiu no caso de
Angela, também apareceu em outras falas. Mesmo os estudantes que chegaram nas primeiras
turmas, como é o caso de Antonio que veio em 2011, destacam essa questão:
Eu sabia que aqui era diferente, eu cheguei aqui e estranhei foi o clima, o calor do
clima. Também teve gente que te receba bem, não sei se é porque é fronteira e é mais
natural o espanhol e o estrangeiro, como se fosse você e um milhão de brasileiro. Fui
super bem recebido, se não fosse não estaria aqui. Isso foi de chegar e não se sentir
como estrangeiro, na universidade te ajudam a superar essa etapa. Foi uma coisa boa
que eu encontrei (ANTONIO, 2015).
Assim como Ângela, Antonio destaca a recepção na universidade como uma facilitadora
desse processo de acomodação. Em seu caso, apesar do estranhamento com a questão climática,
ele, proveniente do Chile, narrou a percepção de uma possibilidade de aproximação com esse
novo espaço. Ao afirmar que em sua chegada pôde “não se sentir como estrangeiro”
(ANTONIO, 2015), pois na “universidade te ajudam a superar essa etapa”, permite perceber a
construção, já nos primeiros semestres da instituição, de instâncias informais de aproximação
entre as diferentes culturas e nacionalidades ali presentes. A generalização da interpretação de
Antonio sobre o momento da chegada, para todos os estudantes, é inviável. Retomemos a
lembrança da fala de Tuane que leva mais de um semestre para poder se “sentir em casa”.
Mesmo que ambos tenham chegado na universidade em momentos próximos, no ano de 2011,
há diferenças na percepção desse momento. Essas distinções podem ter sido constituídas por
experiências universitárias distintas que ocorreram ao longo de sua presença na instituição,
posterior à chegada, e que foram incorporadas as suas memórias e transformaram o sentido
construído sobre aquele momento. Também podem ser compreendidas como elaboradas a partir
de diferenças subjetivas entre esses estudantes que ultrapassam as vivências universitárias.
Se, na universidade, Antonio pode se sentir acolhido, um sentido diferente será atribuído
a sua presença em Foz do Iguaçu. Sobre a cidade, estabelece uma distinção e significa sua
presença ali de maneira diferente:
Por hora estou no círculo da universidade, que a cidade eu conheço nada, duas ou três
pessoas apresentadas por outros. Eu sinto que a cidade é minha? Não. Eu sinto que eu
estou de passagem. Que eu vou ficar aqui, termino de cursar um ano e vou embora.
Nunca senti que fosse ficar com a cidade, que ia participar. Isso eu tenho que eu sou
estudante e estou de passagem (ANTONIO, 2015).
Enquanto se sente parte da universidade, elenca a transitoriedade de sua vivência na
cidade. Essa narrativa evidencia uma dupla interpretação sobre o sentido da presença na
universidade e na cidade. Enquanto na primeira Antonio se entendeu como membro “pleno”,
247
na relação com a cidade houve a constituição de uma percepção de que ele é um estrangeiro em
uma condição transitória. Esta posição reforça nossa argumentação anterior de que o objetivo
de migração não é a cidade, mas a universidade. Também permite perceber que há um
deslocamento no sentido atribuído a cada uma dessas espacialidades.
Nesta perspectiva, cabe lembrar que, no capítulo anterior, abordamos o tensionamento
na relação entre os estudantes e grupos sociais citadinos que elaboraram e manifestaram
preconceitos e sentidos negativos para a presença dos estudantes naquela urbanidade. Assim, o
distanciamento em relação à cidade e a aproximação com os “unileiros” possibilita uma
proteção, nesse processo. Destaque-se que na entrevista, realizada em 2013, 3 anos após sua
chegada, ele aponta que nunca se sentiu como membro da cidade. Assim, essa não é apenas a
impressão do momento de migração, mas um sentido que se consolidou em sua relação com
essa espacialidade.
A entrevista com Antonio ainda nos permite a problematização de mais uma questão
que está relacionada às vivências universitárias e pode nos ajudar a compreender esta dinâmica.
A relação com estudantes de outras nacionalidades é importante para a sua interpretação da
chegada na universidade:
Entrevistador: E com relação aos outros estudantes da universidade? Como foi essa
relação de se encontrar?
Antonio: Em geral, como estava fora do país, a gente tende a se juntar por países, os
uruguaios, os peruanos... e como eu vim sozinho, eu não ia me encontrar por países,
na maioria chegaram com sua delegação, como meus companheiros, Chegaram uma
semana antes não tivemos esse vínculo de vir junto. Cheguei sem nenhum conhecido
por esse lado. Por conta própria nós nos juntávamos, comer comida própria.
Entrevistador: Mas a delegação do Chile?
Antonio: Aham, nos juntamos, comemos comida típica. Via lugar para viver, para
estudar, mas eu estou como chileno, não funciono assim, não tem que funcionar assim.
Meu grupo são dois chilenos, quatro paraguaios, quatro brasileiros, dois equatorianos.
São muitos grupinhos que são dos uruguaios (ANTONIO, 2013).
Ele destaca a existência, entre os estudantes, de uma aproximação com suas identidades
nacionais como elemento estruturante das sociabilidades, na vinda para a universidade. Assim,
pelo menos de início, haveria uma tendência a que esses discentes, provenientes de diferentes
países, acabassem por se juntar pelas suas nacionalidades. Tal efeito teria sido menor nele, pois
sua viagem para o Brasil ocorreu em momento distinto dos demais chilenos que vieram naquele
semestre. Assim, ao chegar aqui, os laços de sociabilidade e solidariedades constituídos pelos
demais estudantes durante a viagem e nos primeiros momentos de sua estadia na universidade
não se aplicariam ao seu caso. Isso facilitou sua aproximação com estudantes de outras
nacionalidades e, também, a capacidade de identificar e perceber divisões entre estudantes de
248
diferentes países como um problema. Algo ainda a ser abordado com maior profundidade. Essa
percepção permite um diálogo interessante com a fala de José. Ao ser questionado a respeito da
sua chegada na universidade, ele afirma:
Muito interessante, porque a gente chegou em 2014 depois que na Unila ninguém
estrangeiro, nem brasileiro, entrou em 2013. Então a gente chegou depois que eles
ficaram dois anos assim. Então quando a gente chegou, todo mundo era muito... O
povo colombiano que tinha antes ajudaram demais a nós, todo tempo, dia e noite.
Então quando eu cheguei, por isso eu te falei, eu senti que o início era muito passeio:
“Ah ta, vamos lá conhecer, tudo bem em conhecer”. Então não foi muito complexo
(JOSÉ, 2015).
A suavidade desse primeiro momento, proporcionado pela recepção amistosa de seus
colegas colombianos, será contraposta pela dificuldade linguística sentida na universidade.
Ainda em sua narrativa sobre a chegada, José afirma:
A Unila não tinha muita noção que a maioria dos estrangeiros não conheciam o
português, não entendia muito. Tipo, eu aprendi minhas primeiras palavras no avião...
Como eu te falo, nossa ideia de Universidade quando fala Universidade bilíngue, você
espera uma coisa mais... Mas a Unila com todas as burocracias totalmente português...
Mas eu entendo, porque é necessário a legalidade. Mas no início, eu acho que o
primeiro mês eu estava tentando aprender português (JOSÉ, 2015).
Se o deslocamento para outro país e para a universidade foi acomodado pela
solidariedade dos colegas, o mesmo não ocorre em relação à institucionalidade. Apesar da
proposta de bilinguismo da Unila, enquanto ferramenta de integração, isto não necessariamente
está presente nas vivências cotidianas dos estudantes. Tendo como limitação legal a
impossibilidade de contratar funcionários estrangeiros – a não ser os naturalizados – o
bilinguismo institucional é limitado, restrito ao aprendizado individual do espanhol, cuja
fluência não é critério nos concursos para a contratação dos funcionários. Problema semelhante
acontece na relação com os professores. Apesar de, neste caso, a contratação de estrangeiros,
em diversas modalidades (professores visitantes, substitutos e/ou efetivos) ocorrer, a maioria
dos professores são brasileiros. Em 2016, eram 298 docentes brasileiros e 58 de outras
nacionalidades (Unila,2016). Em relação a estes profissionais, a fluência em espanhol também
não é obrigatória – exceto nos casos de professores e funcionários contratados especificamente
com essa função, tais como professores de línguas e tradutores. Isso ocasiona uma dificuldade
na chegada dos estudantes estrangeiros na Unila. Afinal, muitos não dominam ou, como é o
caso de José, não tem praticamente nenhum conhecimento do português. Neste sentido, o
projeto da Unila, apresentado e problematizado ao longo do terceiro capítulo, apresenta
249
limitações importantes que dificultam a chegada e adaptação dos estudantes a esse ambiente
universitário que se quer intercultural.
As limitações no bilinguismo não foram os únicos obstáculos para os estudantes na
chegada na universidade. A ausência de estruturas, principalmente física, foram destacadas:
Em 2012, houve uma bagunça de moradias em fevereiro. Eu cheguei em abril, três
meses depois, já tinham se organizado mais ou menos, mas, com certeza foi... Por
exemplo, eu fui morar num quarto na Moradia 1 com um salvadorenho e um brasileiro.
Com duas camas, tinha um colchão pra mim e eu fui dormir no chão. A primeira
semana foi desse jeito. Mas eu fui bem, cheguei domingo e o guarda me recebeu na
moradia e ele me falou: “Clóvis, eu te recebi porque você não tem mais pra onde ir,
mas amanhã você conversa com a administradora do local e aí você se arruma”. Me
deu o colchão e foi difícil. Mas, pra mim sabe... Eu vinha muito motivado então... Aí
passei, a gente não tinha água quente no chuveiro, sem problema. A Unila dá benefício
de transporte, pois três reais é muito caro, três pra ir e três pra voltar, é muito caro. Eu
fiquei um mês sem benefício e aí foi muito, muito, paciente. Mas foi bom, porque
senão... e se eu tivesse desistido? Realmente muita, muita gente desistiu (CLÓVIS,
2015).
Da questão linguística, Clóvis amplia as dificuldades para as limitações na infraestrutura
física e burocrática da Unila. A limitação de vagas nas moradias estudantis, sua precariedade,
são conjugadas com as dificuldades para conseguir o auxílio transporte necessário para a
locomoção na cidade. Mais uma vez a solução, mesmo que parcial, desse problema, passa pela
receptividade e solidariedade de indivíduos presentes na universidade. É a gentileza e
flexibilidade do guarda, junto com a não mencionada solidariedade dos estudantes que o
recebem no quarto, que permite que Clóvis tenha lugar para dormir na noite de sua chegada.
O que podemos perceber é a densidade da solidariedade grupal como elemento
organizador das memórias dos estudantes acerca de sua chegada. Ao encontrar diferentes
dificuldades na adaptação que, segundo Clóvis, levam a um grande número de desistências, é
nas relações cotidianas de solidariedade estabelecidas entre estudantes, funcionários e
professores que ele apresenta a possibilidade de superação de limites da instituição e de suas
práticas. Sobre a evasão é preciso destacar um elemento. Apesar da fala de Clóvis apontar um
grande número de desistências, essa afirmação precisa ser relativizada e colocada em
perspectiva. Segundo dados do Censo da Educação Superior, de 2015, o índice de evasão no
ensino universitário brasileiro chegou, em 2014, a 49% dos discentes (MEC, 2016). No caso da
Unila, dados de 2015 apontam que, entre os ingressantes dos anos de 2010 e 2011, o índice de
evasão ficou em 41,26% e 40,46% respectivamente (UNILA, 2016)123. Esses dados apontam
123
Os dados utilizados se referem aos ingressantes em cada um desses anos. Como os estudantes que ingressaram
em 2010 e 2011 já teriam tempo para se formarem em 2015, momento em que os dados foram compilados, eles
são mais completos. Se observarmos a evasão de estudantes ingressantes nos anos seguintes, 2012, 39,16%; 2014,
250
que os índices da Unila são melhores que a média nacional. A compreensão da fala de Clóvis
só pode ser elaborada quando entendemos que não estamos a lidar apenas com números e dados
quantitativos. A leitura realizada pelo estudante se dá no âmbito da significação subjetiva do
fenômeno. Deste modo, apesar de ser um número inferior, informação a qual Clóvis talvez não
tenha acesso, o volume de desistência é apontado pelo estudante e significado como algo
impactante em sua memória.
Outro elemento que precisa ser destacado é que os índices de desistência entre os
discentes da Unila são maiores entre brasileiros que entre estrangeiros. A única exceção são os
estudantes venezuelanos. A porcentagem de evadidos entre brasileiros chegou a 32,64%, entre
venezuelanos 50%, argentinos 30,69% e, em quarto lugar, os bolivianos com 21,41. Há uma
diferença significativa entre os três primeiros lugares e os demais. Além disso, existe a
percepção de que, excluídos os venezuelanos, os brasileiros desistem com maior frequência.
Essa foi uma surpresa em nossa pesquisa. Imaginávamos que a dificuldade de adaptação, a
distância de casa, a questão linguística, os tensionamentos na cidade, entre outros fatores,
levariam a um índice de desistência maior entre os estrangeiros. Não é isso que acontece. Nossas
possibilidades de explicação não dão conta deste fenômeno, pois nossas fontes são estudantes
que estavam na instituição no momento da entrevista ou estudantes que haviam concluído seu
percurso com sucesso. Não alcançamos narrativas que interpretem o processo de evasão, a não
ser a partir de uma perspectiva externa.
O que é possível perceber é que haveria uma rede de solidariedade estabelecida entre os
estudantes para suavizar o processo de chegada dos estrangeiros. Podemos levantar como
hipótese a possibilidade de que essa rede de solidariedade não funcione com a mesma eficiência
para estudantes locais. Como discentes de Foz do Iguaçu não ingressam em programas de
moradia estudantil e, portanto, não residem nos ambientes oficiais da Unila, isso pode ter gerado
algum tipo de afastamento de fronteira entre eles. Outro elemento que poderia ajudar a
compreender este fenômeno é o fato de que muitos dos estudantes estrangeiros ingressam na
Unila a partir de outra universidade. Vários de nossos entrevistados já haviam começado seus
estudos após o ensino médio em seus países. Assim, a escolha pelo curso na Unila pode ter sido
feita, no caso desses grupos de estudantes, de maneira mais eficiente, com maiores informações.
Novamente, essa é uma possibilidade, pois não temos informações suficientes para afirmar
essas interpretações. Ficam registradas como possibilidades de investigação.
33,20 e 2015, 12,46 veremos que os dados de evasão baixam para 28,40% (UNILA, 2016). Esse dado aprofunda
a diferença entre a Unila e a média nacional.
251
Em que pese essa questão a respeito da evasão, vemos a solidariedade estudantil se
destacar como elemento central na significação da experiência universitária na Unila. Essa
perspectiva se reproduz na fala de Renato:
Eu nunca imaginei tampouco que o pessoal aqui de Foz, o pessoal da Unila iria me
receber da forma como receberam, que foi muito agradável. Eles foram muito
dedicados, muito receptivos. Eles deram as suas mãos para nós cubanos em geral,
especialmente a galera de Economia, os veteranos, eles tiveram muito interesse de me
conhecer quando eu cheguei. Falaram: “Nossa, a gente está esperando você aqui faz
tempo, a gente está esperando o pessoal de Cuba aqui, que bom que você chegou”. E
começaram a me fazer perguntas de tudo... Imagina né, perguntas de economia, de...
não sei, de tudo. E foi ótimo chegar aqui na Unila e conhecer toda essa galera bem
animada, bem... integrada, né (RENATO, 2017).
O elemento central que permeia a sua fala e se manifesta é a dimensão da solidariedade.
Vimos, ao analisar sua trajetória, no primeiro capítulo, como seu espaço de experiências narrado
através de suas memórias é profundamente marcado por um sentido de solidariedade existente
em seu círculo de sociabilidades. Narrativa semelhante ocorre sobre a trajetória de Tuane e de
Marcos (a relação com o cursinho Ingressa é significativa). No caso de Renato, isso se
aprofunda tanto no momento citado aqui como em outras partes de sua entrevista. Assim, temos,
por exemplo, uma fala sua em que afirma que o celular que tinha consigo durante nossa
conversa era fruto de uma doação de colegas do curso de Economia. A doação teria ocorrido
pela dificuldade financeira de Renato que, por ser proveniente de uma sociedade com
especificidades econômicas, teria dificuldade para arcar com os custos do aparelho e, dessa
forma, dificuldades para se comunicar com sua família, em Cuba. A ideia de integração, que
finaliza sua fala, busca sintetizar vários sentidos e adjetivos do grupo social no qual se insere.
Solidariedade, diversidade, dedicação e receptividade são colocados dentro dessa ideia de
integração.
Uma galera bem “integrada” é a forma que Renato define o grupo de estudantes com o
qual convive e no qual se agrega a partir de sua chegada ao serem interessados e curiosos em
conhecer mais a respeito de sua trajetória. É preciso lembrar que o estudante é da primeira turma
de cubanos a chegar na graduação da Unila. Mais ainda, chega para estudar no curso de
economia. Proveniente de uma sociedade de economia socialista, despertou imediatamente
curiosidade a respeito das estruturas e experiências econômicas que trazia consigo. Uma
vinculação com outro curso, muito possivelmente, teria gerado curiosidades distintas. Sua fala
nos permite perceber uma especificidade da condição estudantil. Enquanto socialmente nos
inserimos em grupos demarcados por relações e interesses mais ou menos comuns, algo
semelhante à universidade, esta carrega uma especificidade: o ingresso, no caso brasileiro, em
252
um curso específico. Enquanto outros projetos de ensino universitário possibilitam ingressos
em campos mais amplos, no caso brasileiro (salvo exceções de instituições que implantaram os
bacharelados interdisciplinares) ocorre por um caminho mais estreito. Dessa forma, a chegada
dos estudantes, nacionais e estrangeiros, na instituição, é marcada pela especificidade de sua
escolha acadêmica. Um estudante de Direito, Medicina, História, Serviço Social, enfim, de
outro curso, seria indagado a partir de perspectivas e lugares distintos.
Para pensarmos as identidades estudantis constituídas e (res)significadas na experiência
na Unila, é preciso levar em consideração não apenas as relações com a cidade, o projeto
institucional, mas também agregar dimensões específicas dessa experiência. O caso do curso
escolhido é um desses elementos. Há ainda outros como a diversidade cultural presente na
instituição.
Obviamente, eu nunca imaginei bem certinho o que eu iria encontrar aqui. Quando eu
cheguei aqui e encontrei paraguaios falando uma língua indígena, isso para mim foi
ótimo, foi uma coisa que eu realmente não esperava. E eu fiquei muito surpreendido
com coisas, tipo assim, não sei, todo mundo com culturas tão distintas e ao mesmo
tempo tão parecidas, e com suas histórias, outros países com problemas políticos tão
distintos dos problemas políticos que tem no meu país, muito diferente (RENATO,
2017).
A historicidade com a qual os estudantes se deparam, após projeções realizadas em seus
horizontes de expectativas, nem sempre é a imaginada. No caso de Renato, a diferença é
positivada, principalmente através da variedade cultural com a qual se depara. Mesmo com
informações que circulam e as quais os estudantes têm acesso, seja aquelas das narrativas
multiculturais sobre a cidade ou dos projetos institucionais da Unila, a vivência acaba por
surpreender, como nas palavras de Renato. A surpresa com a diversidade é acompanhada por
uma leitura de aproximação identitária com essa dimensão. Assim, da variedade cultural e
linguística emerge uma proximidade cultural, histórica e mesmo política em relação com os
demais. A narrativa de Renato não se prende à dimensão da diferença, da diversidade, mas
operacionaliza essas dimensões através de aproximações identitárias que permitem ao estudante
uma sensação de surpresa e de proximidade.
A chegada na universidade foi narrada por diferentes perspectivas. Em comum, a
memória do encontro com uma diversidade ampla de culturas, nacionalidades, identidades, etc.
Manifestações de uma estrutura de solidariedade estudantil atravessaram as narrativas não
apenas de Renato, mas também de outros estudantes. Essas dinâmicas de solidariedade se
manifestaram, inclusive, pela precariedade das possibilidades de recepção dos estudantes pela
instituição que é um limite importante em seu projeto de atração de jovens estrangeiros. De toda
253
forma, tanto a solidariedade quanto a diversidade são marcas relevantes das vivências desses
estudantes e, em diferentes medidas, na constituição e significação da identidade “unileira”.
Para compreendermos este processo, é necessária uma exposição mais pormenorizada de
algumas dinâmicas da especificidade das vivências estudantis na Unila.
5.2 VIVÊNCIAS NA UNILA
Uma de nossas preocupações, ao longo do quarto capítulo, foi perceber como os
estudantes experimentaram e significaram as relações estabelecidas com Foz do Iguaçu.
Migrantes em função da universidade, eles se viram numa cidade em que grupos sociais, em
diferentes momentos e formas, rejeitavam sua presença. Dessa relação, emergiram memórias e
também uma identidade que buscava agregar os estudantes em contraposição aos preconceitos
sofridos em alguns espaços daquela urbanidade. A partir desses tensionamentos, as memórias
a respeito das experiências na cidade se concentraram nessa relação conflitiva, mesmo que, em
alguns casos, a vivência da diversidade cultural tenha sido narrada em paralelo. É neste contexto
histórico urbano que os estudantes constituem suas vivências na universidade. O espaço
objetivado para a migração se coloca em relação com a historicidade vivida, rememorada e
narrada.
O primeiro elemento que salta aos olhos, na análise de todas as entrevistas, é uma
memória que significa a trajetória estudantil na Unila como positiva. Mesmo que, em alguns
casos, esse contentamento possa ser atravessado por percalços de diversas importâncias, o
sentimento generalizado, o qual foi manifesto nas narrativas, é de que a experiência nessa
instituição foi positiva. A esse respeito, é preciso ponderar se essa seria uma especificidade do
grupo analisado ou um sentimento generalizado a respeito das vivências universitárias. Em
outras entrevistas para nossa pesquisa no mestrado foi possível perceber que os estudantes da
Unioeste – Marechal Candido Rondon, viam positivamente sua experiência universitária. Sem
que queiramos criar uma extrapolação fora dos limites de possibilidades de nossas fontes, é
interessante destacar esta coincidência, a entender, obviamente, suas especificidades. Nossas
entrevistas foram realizadas com aqueles que obtiveram relativo sucesso em sua carreira
acadêmica: estavam a cursar ou já haviam concluído seus cursos. Esteve fora de nosso alcance
o grande número de estudantes desistentes que formam “buracos” nas turmas dos anos finais
das universidades. Sendo assim, constituiu-se, por força das especificidades do objeto e das
254
fontes, um olhar parcial sobre o problema. De qualquer forma, essa satisfação com a
universidade está presente em nossas fontes e precisa ser enunciada e levada em consideração.
Há vários elementos que conformam essa percepção positiva das trajetórias na Unila. A
mais recorrente é uma possibilidade de proximidade e acesso entre professores e estudantes.
Haveria, segundo os entrevistados, uma horizontalidade presente nessa instituição que, ao
mesmo tempo, difere de outras universidades e produz possibilidades de formação mais rica
para o “unileiro”. A narrativa de Clóvis, proveniente de uma tradicional e antiga universidade
de El Salvador, é esclarecedora, nesse sentido:
A faculdade do meu país é de 1875, não me lembro bem a data, porém, a faculdade lá
e boa, o ensino superior é excelente. Só que os professores, a dinâmica deles é bem
difícil. Pra você se formar é bem complicado. Os professores colocam uma trava para
você não conseguir se formar. Eles desvalorizam muito o estudante. O estudante não
consegue fazer pesquisa, por exemplo. Algumas das diferenças que eu já percebi a
respeito do Brasil, a respeito da Unila, por exemplo, estou fazendo minha segunda
bolsa de iniciação científica, já fiz extensão aqui no Brasil, já fui apresentar trabalhos
que eu fiz com a direção de um mestre, um professor da área. Mas lá você não
consegue fazer isso, você não consegue ir pra obra porque você não é formado. Aí
precisa de uma autorização de um professor, aí o professor não dá, olha pra você:
“Você não é engenheiro, você não é formado”. Sabe? Você é desvalorizado. Então,
isso é a principal diferença. O ensino é bom, é um dos melhores da América Central,
mas em geral esse é o problema (CLÓVIS, 2015).
A grande diferença que Clóvis narra ter percebido entre a universidade em que estudava
em El Salvador e a Unila é o trato com os estudantes. Quando pensada a contrapelo, esta fala
permite antever a perspectiva de universidade do estudante. Em sua percepção, este deveria ser
um espaço onde universitários tenham a possibilidade de não apenas estudar, mas também, de
diferentes formas, produzir conhecimento. Apesar de destacar a qualidade da universidade, em
El Salvador – lembremos que este é o estudante que, como apresentado no quarto capítulo,
utilizava a camiseta de seu curso como elemento identitário em sua cidade – valoriza as
possibilidades humanas e, principalmente, acadêmicas que as relações entre professores e
estudantes da Unila permitiram. Dessa forma, esse acompanhamento próximo teria
possibilitado a ele uma formação mais qualificada.
Essa perspectiva repercute entre os demais estudantes. Fabiano, por exemplo, afirma
que: “Eu acho, que assim comparando conversar com algumas pessoas que eu converso, com
algumas pessoas de outras universidades, a gente até que tem algo diferente pelo menos entre
os estudantes, dos professores” (FABIANO, 2015). Assim como Clóvis, Fabiano é proveniente
de outra instituição. Ambos são estudantes da área de Engenharia e, nas duas narrativas, esteve
presente a possibilidade de proximidade e de diálogo entre estudantes e professores. É
interessante observar este caso, especialmente pelo fato de terem vivenciado outras
255
universidades, na tentativa de perceber que foram narradas dificuldades e distanciamentos entre
docentes e discentes naquelas instituições. Esta desigualdade percebida seria, inclusive, um
dificultador do aprendizado e desenvolvimento acadêmico, como pode ser percebido na fala de
Clóvis. Esse seria um dos elementos distintivos da vivência na Unila que contribuiu para a
positivação dessa experiência.
Se essa relação igualitária é o primeiro elemento de destaque, a positivação é
aprofundada a partir de outra especificidade da Unila. Ali, convivem estudantes e professores
de diferentes nacionalidades. Mesmo em menor número, o impacto da presença desses
professores estrangeiros é, pelo menos, potencialmente, importante. Em todo caso, a existência,
em sala de aula, de uma multiplicidade nacional, aliado ao projeto institucional de integração
latino-americana, gerou uma historicidade que é lida como interessante. Comecemos pela
narrativa de Marcos, estudante brasileiro:
Vou te dar um exemplo de uma aula que eu tive ontem. Que é sobre urbanização. O
professor, ele falou sobre... na última aula, específica, ele falou sobre as metrópoles
latino-americanas. Na minha sala tem pessoas do Chile, da Argentina, tem uma moça
que se não me engano é do Peru. Então, são pessoas que passaram justamente por
essas localidades que o professor citou na aula. Então, eles mesmos falavam sobre
aquilo. Complementavam as informações do professor. Esse tipo de dinâmica que eu
falo que muda, sabe. As experiências dessas pessoas de outros países contribuem
muito para a aula. Não só nesses exemplos empíricos, mas a vivência também. Porque
assim, você está na academia, mas não é só isso. Você conversa com as pessoas, você
faz amizade com elas, você conversa, você troca experiência. Então, levando tudo isso
em conta, influência muito você ter pessoas de outros países ali (MARCOS, 2017).
Os debates e informações proporcionados pela presença de estudantes de diversas
nacionalidades assumem o destaque nesta fala. Discente do curso de Geografia, percebe uma
ampliação de suas possibilidades formativas a partir da convivência em sala com os
estrangeiros. Para que possamos localizar sua fala, é preciso destacar que essa não é uma
possibilidade exclusiva da Unila. Já vimos que, através de programas como o PEC-G e o PECPG, essa é uma possibilidade, mesmo que bastante restrita, em diferentes instituições. Em todo
caso, a especificidade da Unila e da Unilab é justamente o projeto institucional que prioriza a
constituição dessa relação. As possibilidades de circulação de experiências distintas que, na
perspectiva de Marcos e de Roberto124, citada abaixo, enriquecem os debates e os aprendizados
124
Roberto: Estudante costarriquenho, tinha 21 anos em 2017, momento da entrevista. Cursava Medicina antes de
vir para a Unila estudar Saúde Coletiva. Morava sozinho na capital da Costa Rica, não exercia atividades
profissionais. Entrevista realizada em 13 de abril de 2017, via Skype.
256
são valorizados e institucionalmente incentivados pela própria proposta universitária. A fala de
Roberto, estudante de Saúde Coletiva, aprofunda as discussões levantadas por Marcos:
Então, vou... Darei um exemplo nesse aspecto. Se a Unila estivesse só focada no
aspecto brasileiro mesmo e for só para entender a composição de cada uma das
carreiras aqui no Brasil, eu acho que todos os professores seriam só brasileiros, né?
Porque mantém o conhecimento sobre o seu país. Mas, o que a Unila faz é contratar
professores de outros países. Como eu já falei, temos professores de Cuba, da
Argentina... Eu mesmo tenho vários professores cubanos, argentinos, chilenos,
bolivianos, por exemplo. Então, cada um deles aproveita a sua área e faz uma ênfase
naqueles países e é aí que nasce a conversação. Mas, tem algumas disciplinas que tem
muito, muito enfoque no Brasil. Então nós estudantes temos que fazer a diferença e
eu acho que é uma coisa que acontece muito, por exemplo, quando estamos numa aula
sobre política, aí vem um professor com um monte de política sobre o Brasil. E daí já
são duas aulas que estão só se falando sobre o Brasil, aí geralmente o que o aluno faz
é bater a mão: “Professor, a gente acha que está mostrando muito só do Brasil”. E aí
começa aquela mudança das perspectivas das aulas. Então, acho que cada uma das
disciplinas tem um plano de ensino e em cada plano de ensino tem indicado as aulas
e geralmente o que eles fazem é... Eles dividem as coisas. Por exemplo, duas semanas
o Brasil, três semanas Cuba, duas semanas da Argentina, uma semana da Costa Rica,
uma semana da Nicarágua, uma semana da América Central... (ROBERTO, 2017).
A fala de Roberto elenca tanto a dimensão da docência quanto dos discentes. Os dois
grupos são formados por brasileiros e estrangeiros. No caso dos docentes, essa presença é
minoritária. No terceiro capítulo apresentamos a proposta de que a Unila tivesse 50% do seu
corpo docente formado por estrangeiros. Tal perspectiva não se concretizou e está longe de sua
meta. No primeiro quadrimestre de 2016, como já dito, último com dados publicados, a
universidade contava com 356 professores e apenas 58 estrangeiros. Os demais eram
brasileiros. Dentro desse grupo de estrangeiros é preciso ponderar que alguns fizeram pósgraduação e mesmo graduação, no Brasil. Assim, a circularidade de conhecimentos acaba por
ser ainda mais limitada. Afinal, nesses casos, não se conta com uma formação nacionalmente
diversa, mas com uma formação pautada nas estruturas educacionais brasileiras.
Assim como pensado em relação aos estudantes, é preciso lembrar a presença de
professores estrangeiros em outras instituições. Essa presença data de muitas décadas, sendo
essencial para a criação e expansão das universidades. USP, UnB e Unicamp tiveram números
importantes de estrangeiros desde a sua constituição. Intelectuais importantes como Braudel e
Lévi-Strauss estiveram presentes na formação da USP. Atualmente, políticas como a de
realização de editais com salário diferenciado (maior) para Professor Visitante busca, entre
outros, atrair professores estrangeiros. Tudo isso sem contar com a intensa circulação destes em
eventos, congressos, palestras, bancas, etc. De toda forma, assim como em relação aos
estudantes, a especificidade está na proposta institucional da Unila e da UNILAB, baseada na
presença desses profissionais numa projeção que visa uma paridade entre brasileiros e
257
estrangeiros. No caso da Unila, o primeiro vice-reitor foi um professor do Uruguai, o que
demarca a importância institucional dada a essa situação.
A institucionalização da circulação internacional nos debates marcou a fala de Roberto.
Quando essa possibilidade não ocorreu, com a concentração de um debate em um ou outro país,
principalmente o Brasil, coube e caberia aos próprios estudantes a reivindicação dessa
diversificação. Ao estar no Brasil, formada por uma grande maioria de professores e mesmo
estudantes brasileiros, mesmo que tenha uma proposta internacionalista, não é de se estranhar
que a historicidade brasileira acabe por funcionar com uma espécie de “centro de gravidade”
que atrai os debates. Mesmo assim, a atuação dos estudantes estrangeiros permite ou exige um
olhar mais cuidadoso para historicidades diversas da brasileira.
A ativação da responsabilidade e das possibilidades que a atuação dos estudantes
oferece ao projeto institucional aparece ainda em outros sentidos. Ainda no âmbito da
positivação da experiência na Unila, recorre-se a necessidade dos estudantes em “abraçarem” o
projeto institucional, tanto para realizá-lo quanto para ter uma trajetória melhor dentro da
instituição. Fabiano, estudante de Engenharia Civil e uma das lideranças estudantis da Unila –
sendo o principal “moderador” do grupo Unila no Facebook – aponta essa questão:
Cara eu acho que, não depende só da Unila porque tipo você vem e aí tá [...] A Unila
te oferece professores que realmente pensam no projeto da Unila, mas o aluno tem
que aceitar, tem que aceitar e incorporar e tem que ajudar. E esse que falta ainda, mais
alunos que cheguem aceitem incorporem e que ajudem, ajudem no sentido de: “Ah,
vamos montar um centro acadêmico não vai ser tradicional vai ser um centro
acadêmico com isso... Não vai ser um centro acadêmico com o nome do curso, vai ser
um centro acadêmico um nome, vai ter um nome latino no final”. Isso já vai fazer
diferença. Um centro acadêmico com sei lá uma linguagem latino-americanista. É,
não vai chegar ele não vai procurar bibliografia lá da Europa, não vamos procura uma
bibliografia em espanhol, procura, valoriza. [...] Acho que a Unila está aqui, mas tem
que ajudar a construir. Ela não está pronta “Ah, você entrar e vai sair um latino
americano esbanjando ‘américa-latinidade’ assim” (FABIANO, 2015).
Fabiano centra a responsabilidade pela construção da Unila nos estudantes. Coloca a
universidade como um meio que, para atingir o seu fim, necessita do engajamento dos discentes
no seu projeto institucional. Não caberia apenas aos professores e funcionários essa proposta.
Ao invés de serem objetos de uma política universitária e integracionista, os estudantes
deveriam ser e seriam os sujeitos dessa proposta. Em nossa pesquisa, essa possibilidade tem se
sobressaído.
Mesmo que haja focos de percepção, os quais em nenhum momento apareceu em nossas
entrevistas – só aparece quando levamos em conta os opositores do projeto que veem os
estudantes como alvo de alguma espécie de doutrinação ideológica bolivarianista – que possam
258
entender os estudantes como objeto dessa proposta latino-americanista, o que temos percebido
é a posição de sujeitos que dialogam, negociam e tensionam essa proposta. Assim, a leitura e a
proposição de Fabiano se aproxima de nossas conclusões a esse respeito, ao centrar nos
estudantes as possibilidades de desenvolvimento desse projeto institucional.
Outro momento em que podemos perceber essa reivindicação do estudante como sujeito
desse processo, sempre em diálogo com as possibilidades e limites de sua conjuntura, é na
forma como Bernardo apresenta sua relação com o cursinho Ingressa – aquele mesmo citado
por Marcos, no primeiro capítulo – e sua trajetória como estudante da Unila e professor do
cursinho:
A Unila tem grupos de extensão, trabalho para a comunidade, que é muito bom. Tipo,
eu dou aula no cursinho no Porto Meira que é o cursinho Ingressa, que é para pessoas
fazerem a prova do Enem. Tipo, são coisas, na periferia de Foz do Iguaçu, que tem
uma realidade diferente, um olhar diferente e você ajudar é uma forma de retribuir
tudo que a Unila deu pra mim, retribuir para outras pessoas e aprender com aquelas
pessoas com a sua vida. Tipo, são coisas que eu nunca iria ter no Equador. Eu nunca
iria conseguir essa oportunidade que a Unila tem, de oferecer para uma pessoa ir dar
uma aula X em um canto da cidade, dar conhecimento para eles conseguirem entrar.
Eu dei aula no ano passado. E dos meus alunos, quase dez pessoas conseguiram entrar
na faculdade. E quando uma pessoa manda uma mensagem para você no Facebook,
falando “Oh Bernardo, professor, consegui entrar na faculdade, agora vou entrar na
Unila, vou entrar”, tipo, é um sentimento que nunca ninguém acho que iria me
oferecer fora da Unila. Tipo uma coisa que eu considero muito, que eu agradeço
também, que a Unila me ajudou também neste aspecto. E eu cresci muito, muito
profissional, academicamente, pra mim a Unila está sendo uma boa escola, já tá
acabando, mas está sendo uma boa escola (BERNARDO, 2016).
No caso de Bernardo, estudante do curso de Relações Internacionais, é a possibilidade
de atuação como professor, de retribuição “de tudo que a Unila deu para mim” (BERNARDO,
2016) que seria um dos principais diferenciais da instituição. A atuação no Cursinho Ingressa
permite ao estudante uma ação própria em relação às carências educacionais da cidade, mas
também, simbolicamente, da América Latina. Ao possibilitar uma interferência nessa situação,
a universidade se diferencia daquelas que conhecia no Equador. Destacamos que essa atuação
do estudante é narrada como com resultados positivos não apenas para si, mas também para os
discentes do Cursinho Ingressa.
A existência de projetos de extensão como ferramenta de ação na cidade é uma das
dimensões que a Unila tem explorado ao longo de sua história. Em especial a partir da
necessidade de desconstrução da imagem negativa que havia sido construída sobre a instituição
e seus membros, a partir dos eventos de 2012. Os dados da universidade apontam um
crescimento importante de projetos e programas de extensão. Com apenas 1 programa em 2011
– lembremos que, nesse momento, a universidade tinha apenas 1 ano – vai para 22 em 2012, 58
259
em 2014, 94 em 2015 e 111 em 2016, último ano com dados. O público beneficiado, em 2015,
seria, segundo dados da instituição, de 54.014 pessoas da região (UNILA, 2016). Infelizmente
não há dados de público beneficiado para outros anos. Esse crescimento, que acompanhou a
expansão da própria Unila, bem como o amplo público atingido, contribui para a lógica
apresentada por Bernardo, de retribuição dos ganhos que os estudantes têm com a presença na
instituição e na própria cidade.
Até agora vimos elementos de maior ou menor especificidade da Unila em relação a
outras universidades que foram utilizados pelos estudantes para positivar sua experiência na
instituição. Enquanto a presença de estudantes e professores estrangeiros, devido a uma política
institucional, é uma especificidade da Unila, os projetos de extensão são presentes nas
instituições brasileiras como partes do tripé formador das universidades. Como desdobramento
da política institucional de atração de estrangeiros, temos outra dimensão que é narrada pelos
estudantes de fora do Brasil, qual seja, a possibilidade de falar sua língua natal, no caso de
nossos entrevistados, o espanhol, no seu cotidiano universitário.
Este elemento foi constantemente elencado como um dos desafios no momento da
chegada – vide falas na primeira parte deste capítulo – mas também, das vivências positivas
criadas a partir da Unila. A narrativa de Marla é a que mais evidencia essa possibilidade.
Lembramos que entendemos a experiência universitária de uma maneira ampla, que ultrapassa
a sala de aula e é incorporada em outras vivências decorrentes diretamente da condição de
estudantes universitário e, mais especificamente, de discente da Unila.
Foi divertido todos os dias porque... Muito engraçado, todos nós tínhamos algumas
dificuldades com o português né. Mas na casa, nós sabíamos, como todos éramos
espanhóis, tínhamos essa liberdade para falar espanhol, tínhamos essa comodidade,
essa familiaridade de falar todas as coisas por causa do idioma também. Mas era muito
engraçado porque o nosso espanhol era diferente, então todos os dias tínhamos que
aprender uma palavra nova. Tipo, como se fala abacate? No Peru se chama palta, não
sei onde se chama não sei o que assim.....E é muito engraçado porque às vezes
começávamos a falar e tínhamos que parar a conversa: “Mas do que que você está
falando, eu não entendo essa palavra, tem que explicar seu espanhol”. Então em algum
momento tínhamos que escrever palavras novas na parede, para entender do que
estava falando... (MARLA, 2017).
A coexistência em uma república compartilhada por estudantes de diferentes
nacionalidades é destacada por Marla. Problemas de convivência, choques de personalidade e
outras possíveis dificuldades são silenciadas em troca da ênfase nos ganhos que essa
convivência intercultural teria possibilitado. Nesse caso, a ênfase recai nas dinâmicas de
interculturalidade, o aprendizado, as trocas que essa relação produz. Essa é uma dinâmica que
ainda exploraremos mais profundamente adiante. Em sua fala, a língua e o aprendizado cultural
260
dela decorrente são os elementos de destaque. Aponte-se que Marla vem para a Unila, como já
destacado em outros momentos, para estudar uma manifestação cultural. Esse projeto individual
pode ter interferido nas expectativas e nas ênfases que ela trouxe para a entrevista. A questão
linguística, juntamente com outras, reaparece em sua entrevista no excerto abaixo, quando
falava que teria tido sorte de vir para a Unila:
Acho que se eu tivesse ido para as outras universidades, tivessem sido como qualquer
outra universidade pública como eu já conhecia no México. Mas o projeto da Unila
tinha outro interesse, como está no nome da Integração Latino-Americana. Então o
fato de ter estudantes de muitos países, eu amei isso, de ter a liberdade de falar
espanhol nas aulas, que de alguma forma me permite participar mais. Acho que se
tivesse que falar português a minha participação nas aulas seria a metade, porque eu
ainda não falo muito bem, então eu ficaria com mais vergonha, eu ficaria pensando
mais as coisas, não sei. Outra coisa que eu gostei, que não é obrigatório no mestrado,
mas que eu acabei conhecendo e agora eu assisto as aulas como ouvinte, as aulas de
FAL, Fundamentos da América Latina, que está na grade comum. Todos os
universitários da graduação, de qualquer curso, têm que cursar esta matéria (MARLA,
2017).
As duas questões, a língua e a disciplina de Fundamentos de América Latina, permitem
aprofundarmos, através da narrativa de Marla, a leitura que fazíamos em relação a fala de
Fabiano. Aqui, temos novamente uma interpretação da experiência universitária que coloca os
estudantes como sujeitos desse processo. Essa dimensão não deve ser subestimada. Trabalhos
de História, que tomam diferentes dimensões da universidade como preocupação central,
geralmente, deslocam os estudantes a um papel secundário. A gama de trabalhos que abordam
mobilizações políticas dos estudantes talvez seja a exceção. O que vemos é uma tentativa de
localização dos estudantes como sujeitos do processo analisado. Nosso argumento não é o de
que os trabalhos a esse respeito negam essa condição, mas que deslocam os estudantes, suas
subjetividades, experiências e vivências para um papel secundário.
Marla utiliza a língua como elemento para enfatizar as possibilidades de atuação em sala
de aula. O fato de poder se expressar em sua língua natal teria facilitado essa condição. Temos
de atentar ao fato de que as línguas espanhola e portuguesa têm uma proximidade importante.
No caso de outros programas de imigração estudantil como o PEC-G e o PEC-PG, no Brasil, e
mesmo no caso de grandes programas como o Erasmus, na União Europeia, essa possibilidade
linguística é limitada. Mesmo na instituição criada em conjunto da Unila e Unilab, a situação é
distinta. A Unilab tem por objeto estudantes de países lusófonos. Desta forma, o português se
repete como língua oficial dos países de origem. Obviamente, questões como as diferenças
linguísticas, apontadas por Marla, podem se reproduzir e contribuir para a diversidade cultural
da instituição. Uma especificidade da Unila é, justamente, essa conjunção de elementos, a
261
circulação de estudantes de diversas nacionalidades, a proximidade linguística que, pelo menos,
em tese, facilita o contato – o caso dos haitianos, não analisados aqui, é diferente – em uma
instituição com proposta única. Entretanto, a posição de Marla não pode ser tomada para uma
interpretação totalizadora.
Das entrevistas, uma das que mais chamaram a atenção a respeito da narrativa sobre as
vivências universitárias foi a de Fabiano. Estudante brasileiro, ele foi bastante sensível a
dinâmicas diversas do corpo discente. Seu papel como liderança estudantil certamente ajuda a
compreender esta posição. Em sua fala, destacou que a estrangeiridade, como no caso de Marla,
é uma dimensão de interesse para as vivências estudantis, mas também que isto poderia
funcionar a limitar a atuação discente:
E entre os estrangeiros eu vejo que mesmo depois de dois, três anos no curso, na
universidade, eles têm um pouco receio ainda em perguntar. Eles têm um pouco de
receio de tipo de dar a sua opinião a respeito, eu converso muito com eles assim,
conheço muito estrangeiro e tipo eu sinto eles não são pessoas que, por exemplo:
“Professor vou perguntar uma coisa”. Principalmente quando são professores que são
brasileiros. Eles não são pessoas assim, eles ficam na deles às vezes eles estudam lá
sozinhos. E eu acho que deveria ser diferente, deveria haver uma relação muito grande
assim dos professores e alunos, principalmente por serem estrangeiro. De certo modo,
fazer eles se sentiram à vontade de realmente interagir dentro do curso e com os
professores (FABIANO, 2015).
Haveria, segundo o olhar de Fabiano, uma dificuldade maior de estudantes estrangeiros
em agirem mais ativamente em sala de aula. Essa dificuldade seria potencializada quando o
professor é brasileiro. O próprio estudante aponta o que seria a causa, a timidez, bem como
também a necessidade de solucionar esse problema ao permitir uma maior facilidade de atuação
dos estudantes nas diversas esferas da vida acadêmica. A esse respeito, é importante lembrar
que os estudantes da Unila sofrem preconceitos diversos com sua presença na cidade. As
possibilidades de se sentirem “confortáveis” na condição de estudante estrangeiro são afetadas
por essa experiência citadina. Logo, ao contrário da narrativa de multiculturalidade
propagandeada pelos circuitos oficiais da cidade, o que vemos é o preconceito contra a origem
de lugar, nos termos de Muniz de Albuquerque, o que repercute negativamente na proposta
institucional e nas vivências cotidianas dos estudantes no processo de integrá-los de maneira
horizontalizada. Essa questão é aprofundada, ainda na fala de Fabiano, em relação a algumas
nacionalidades específicas:
Eu acho, independente da nacionalidade, mas ainda tem assim, bolivianos eles
parecem que são mais carentes. Eles vêm de regiões muito pobres. Eles vêm às vezes
isolados e eu sinto que eles são muito mais tímidos em se relacionar. É até difícil de
você chegar neles assim. E alguns, alguns estudantes que sabiam que eu era do centro
262
acadêmico e tal, eles vinham me perguntar pra mim, por que eu era sempre aberto a
eles, eles não tem muita “ah, eu vou na sala do professor”, eles não tem muita assim
sabe. Isso eu via muito nos bolivianos. No geral, sentia que eles eram bem mais
receosos e eu acho que por essa questão de eles viverem em regiões mais isoladas da
Bolívia. Eu não sei exatamente de onde eles vieram. Acho que eles têm uma certa sei
lá, uma carência de convívio alguma coisa assim. E até a própria língua, mas vai além
disso acho, vai além disso (FABIANO, 2015).
Entre os estudantes bolivianos há falantes da língua quéchua que podem ter dificuldades
na adaptação para a língua espanhola. O que pode ser percebido, com base nesses dois excertos
de Fabiano, são limites na possibilidade de convivência e da construção de relações
interculturais. Falamos de uma instituição que abriga estudantes de diferentes classes sociais,
gênero, etnias, culturas e nacionalidades, bem como com diferentes leituras a respeito dessa
diversidade. Dessa forma, imaginar que é possível uma Unila marcada apenas por diálogos e
trocas, sem a presença de tensionamentos diversos, é idealizar as possibilidades da convivência
multicultural.
A interculturalidade presente deve ser vista também desde tensionamentos e limites
ocasionados pela diversidade. A língua é apenas um desses exemplos, pois, ao mesmo tempo
que permite aproximações e diversificação, demanda adaptações e pode gerar limites e barreiras
significativas. Os preconceitos apresentados pela cidade são outro elemento. Assim, a
integração intercultural proposta pela instituição deve ser pensada a partir de suas limitações.
As identidades dos estudantes serão (res)significadas a partir desse complexo processo. Mesmo
com essas problemáticas, o significado predominante e repetido da experiência na universidade
foi positivo. Isso pode ser percebido ao retomarmos a narrativa de Clóvis:
Bom, foram duas coisas que me chamaram a atenção na Unila. A primeira, a
possibilidade um pouco egoísta eu acho, mas a possibilidade que meus irmãos venham
pra cá estudar. Tipo, o fato de eles vir pra cá, eles vão conseguir ter uma perspectiva
de olhar da América Latina, de olhar pra eles mesmos, de um jeito diferente. Então,
tipo, porque a Unila mudou a minha vida, a Unila fez que eu .... que eu seja mais
visionário, mais aberto de cultura, mais conhecedor de outras culturas. Então esse é a
primeira. A segunda é a minha convivência na Unila. Por exemplo, aqui na Unila eu
consegui conhecer pessoas da Colômbia, da Venezuela, o Brasil, Argentina, todo
mundo na mesma sala. Tipo, você está fazendo algumas disciplinas, uma disciplina
você faz trabalho em grupo com algumas nacionalidades, com algum outro, muito
bom. Você trabalhar, troca de experiência, troca de conhecimentos, você morar com
um brasileiro, por exemplo, numa moradia, sair pra algum lugar, por exemplo, é uma
experiência muito enriquecedora. Que, por exemplo, agora a gente pode ser... Mas
porém, no futuro, uma experiência que vai enriquecer muito a minha vida (CLOVIS,
2015).
O estudante valoriza diferentes dimensões dessa que conceitua como uma “experiência
enriquecedora” e afirma, inclusive, seu anseio por trazer seus irmãos para a instituição para que
possam vivenciar as possibilidades que a Unila apresenta. A ideia de que a Unila enriqueceu
263
não apenas sua formação, mas sua vida, de maneira mais ampla, justifica essa opção. A fala de
Clóvis não deve servir para apagar os elementos trazidos por Fabiano e vice-versa. O que
buscamos é uma visibilização da complexidade experimentada na instituição. Nem conflito,
nem alteridade pura organizam as trajetórias dos estudantes, mas sim uma complexa mistura de
ambas as questões.
5.3 IDENTIDADES FRAGMENTADAS
As experiências de estudantes da Unila, ao longo de sua trajetória universitária,
ultrapassam, de diferentes formas, as possibilidades de análise de nosso texto. Esse
reconhecimento contribui como um alerta contra simplificações, sempre tentadoras, e análises
unidimensionais que coloquem esses sujeitos em “caixinhas” a respeito das quais a descrição
seria precisa e completa. É preciso colocar em perspectiva a leitura que eles fazem sobre suas
vivências na universidade, de que esta seria majoritariamente positiva. Não nos esqueçamos do
alerta que fizemos: pelo menos até o momento da entrevista, estes estudantes estavam na
universidade ou a haviam completado com relativo sucesso. De todos os entrevistados, apenas
2, um casal que concedeu uma entrevista em conjunto, havia desistido do curso, mas isto
ocorreu após a entrevista. A majoritária positivação desta experiência certamente é influenciada
por esse recorte de entrevistados.
Se a experiência na Unila foi narrada como positiva, como momento de crescimento e,
como veremos à frente, como momento de transformação na vida desses sujeitos, isso não se
dá de maneira uniforme nem sem contradições. Vimos isso quando falamos a respeito das
relações historicamente diversas que os estudantes constituíram e nas quais se viram inseridos
na cidade. Da recepção amistosa, construída num primeiro momento, transformou-se em uma
relação de enunciação de um conjunto de preconceitos. No âmbito que focamos neste capítulo,
na constituição e (res)significação de identidades, também encontramos uma complexidade
importante para a sua compreensão.
O “unileiro” foi o signo identitário que se apresentou e se apresenta como unificador da
constituição de uma “comunidade estudantil”. De início, essa identificação foi produzida pelos
próprios estudantes para abranger aqueles membros do que era ainda um Projeto Unila.
Posteriormente, por parte daqueles citadinos que recusam a presença da instituição, foi
agregado a esta identificação um conjunto de elementos negativos, o que gerou expressões
como “unileiro maconheiro”, como forma de tratar esse grupo social de maneira pejorativa. Por
264
último, essa identidade/identificação tem servido no jogo identitário, em especial nas formas de
lidar com a cidade, como um marco de resistência no tensionamento dessa relação.
O que objetivamos apresentar e problematizar, nesse momento, é uma complexificação
dessa identidade. Apesar de, em um olhar superficial, dar a impressão de que essa é uma questão
pacífica entre os estudantes, o que nos foi possível perceber é que essa identidade é um espaço
de disputa, bem como existem diversas fragmentações dentre os próprios estudantes que
complexificam a identificação com a ideia do “unileiro”. Para tentar perceber esta questão,
optamos por discutir as fragmentações identitárias, relativas à identidade “unileira”, mais
recorrentes nas falas dos entrevistados. Assim, discutimos divisões e tensões em relação a
diferenciações construídas e reproduzidas a respeito das nacionalidades de cada um, dos cursos
e áreas do conhecimento e, por fim, uma disputa identitária específica, a tensão entre
“Capivaras” e “Unileiros”.
Já discutimos a proposta da Unila de integração latino-americana. Como vimos, com
esse propósito, a universidade foi criada tendo por característica a convivência entre sujeitos de
várias nacionalidades e culturas. Em tese, essa convivência permitiria a constituição de laços
de solidariedade que poderiam servir tanto de “laboratório” de integração quanto de futura
“ponta de lança” através do potencial de formação de lideranças regionais, nacionais e
internacionais. Assim, não se objetivava, no escopo do projeto, o apagamento de
nacionalidades, mas uma possibilidade de ultrapassagem dessas fronteiras através da
constituição de alteridades e laços de solidariedade. Isso precisa ser pensado em relação à
materialidade da experiência dos sujeitos. Nas narrativas e vivências dos estudantes é que
podemos perceber como essa convivência se processou e como foi compreendida.
A esse respeito, a primeira coisa que fica claro, ao longo da pesquisa, é que a
coexistência com outras nacionalidades não ocorreu nem foi compreendida como uma espécie
de “quebra-cabeça” no qual simplesmente se encaixam peças e forma-se uma figura maior.
Farpas, pontas e fraturas, provenientes do passado e ativados no presente dos estudantes,
dificultam essa montagem. A convivência ativa sincronia e diacronia no cotidiano intercultural.
Vejamos como Bernardo, estudante de Relações Internacionais, expressa essa questão:
Assim, no meu curso somos em nove nacionalidades. É o único curso que tem nove
nacionalidades dentro do curso e a minha turma também tem essas nove
nacionalidades. Olha vai depender das pessoas no decorrer dos dias, vai depender das
pessoas. Tipo, no futebol, na época da Copa do Mundo, foi um desastre. Todo mundo
brigava com todo mundo, normal. Agora, tem ressentimentos sociais, tipo boliviano
fala sobre o pré-sal, por exemplo. Ah, tipo questões dessa área não sei o quê. Talvez
seja isso mais o ponto de vista do meu curso porque a gente vê esses temas. A gente
pensa justamente nisso. Tem bolivianos com chilenos, peleando sobre... [se refere à
265
disputa secular pela saída para o Pacífico]. Você vai ter paraguaios, argentinos e
brasileiros por negócio da tríplice fronteira, Tríplice Aliança para vocês eu acho. [...]
Tipo, tem esses ressentimentos ainda tem sim. Existe, tem, tem, tem... (BERNARDO,
2016).
Bernardo, até por interpretações de conhecimentos construídos em sua graduação, em
Relações Internacionais, narra um interessante e relativamente abrangente panorama de
relações históricas entre países da América Latina. Conflitos ocorridos no século XIX e início
do XX são narrados como causadores de tensionamentos entre estudantes de nacionalidades
distintas. Diferentes interpretações constituídas, ao longo do tempo, em cada país, entram em
contato e tensionam essa relação. A diferença de nomenclatura, que é composta por uma
diferença de interpretação sobre o evento, que ele narra a respeito da relação entre paraguaios,
brasileiros, argentinos e uruguaios, é significativa. As identidades nacionais colocadas em um
ambiente de convivência carregam consigo um espaço de experiências denso que não pode ser
descartado ao pensarmos a constituição de uma ideia comum de integração. Para alguns desses
países, históricos de agressão, de violência mútua ou unilateral precisam ser superados para que
se possa pensar nessa possibilidade. Isso reverbera entre os estudantes. No caso em questão, a
provocação e o tensionamento inicial ocorre a partir de um evento esportivo, a Copa do Mundo.
Entrevistado em 2016, pouco após a Copa realizada, no Brasil, Bernardo coloca este evento no
centro da eclosão ou acirramento de rivalidades entre nacionalidades. O passado emerge no
presente através do futebol e também através de discussões em sala de aula que tomam esse
passado como objeto. Temporalidades diacrônicas e sincrônicas tensionam a experiência
histórica destes discentes, bem como a ressignificação de suas identidades.
As rivalidades históricas entre os países da América Latina se apresentam na
contemporaneidade, o que limita ou desafia as possibilidades de criação de uma identidade
comum entre os estudantes. Assim, vemos o espaço de experiências dos universitários sendo
ampliado ao incorporar o passado de seus países como elementos no processo de constituição
ou de tensionamento em relação a uma identidade latino-americana que a universidade busca
colaborar na construção.
O histórico de rivalidades e conflitos regionais são ativados a partir das identidades
nacionais dos estudantes. Além desse tensionamento, outros são construídos desde vivências e
sociabilidades constituídas no cotidiano. O futebol, elemento importante na cultura latinoamericana, aparece, novamente, na fala de Clóvis:
266
Clóvis: Tive um problema porque eu jogava bola e tinha um menino aqui que pegava
forte. Aí eu fiz como se fosse uma caneta... quando você passa a bola no meio das
pernas? Caneta. Aí ele ficou meio mal e de qualquer jeito ele quer brigar. Ele tentou
sair com uma menina e começou uma briga, deu problema, nunca teve briga na Unila
muito forte, briga de nacionalidade. Teve uma no ano passado e foi bem difícil... teve
três argentinos contra um paraguaio e aí veio mais paraguaios e aí se formou uma
briga bem difícil. Foi a mais difícil que eu já vi. Foi no ano passado. E a minha briga
foi isso, não passou disso. Só que eu percebi que os demais meninos do país dele já
não queriam...
Entrevistador: Que país era?
Clóvis: Da Bolívia... Eles já não queriam mais jogar bola comigo, eles faziam equipes
só deles e eu fiquei... Mas não foi muita briga assim (CLÓVIS, 2015).
Neste caso, vemos a ativação de outra dimensão das identidades nacionais, o
estabelecimento de sociabilidades e solidariedades que a tomam por base. Ao invés de
rivalidades entre países ser a causa da disputa, o que ocorre é a solidariedade de estudantes de
um mesmo país durante e após a briga. Assim, o conflito não ocorreu entre nacionalidades, mas
entre sujeitos – seja pelo drible no futebol ou pela disputa por uma mesma garota. A dimensão
da nacionalidade é ativada como desdobramento dessa briga. Nesse momento, os paraguaios se
juntam ao seu compatriota na hora da briga com os argentinos. Já os bolivianos passaram a
excluir Clóvis de seu time de futebol, mas continuaram a jogar contra ele. Se, na fala de
Bernardo, vemos o passado nacional como causador de conflitos no presente, aqui temos a
identidade nacional ativada através de redes de sociabilidade e solidariedade, a partir de
conflitos ocasionados no presente. São usos distintos de uma mesma dimensão, a identidade
nacional. Na sequência da fala de Clóvis, vemos outra dimensão desses conflitos:
Entrevistador: Mas rola uma rivalidade entre os países?
Clóvis: Rola. São duas ou três pessoas que não gostam. Rola rivalidade, rola
menosprezo, infelizmente.
Entrevistador: De quem pra quem, por exemplo?
Clóvis: Em engenharia, por exemplo, da turma que eu sou é fácil de perceber que o
rendimento de dois países é muito fraco.
Entrevistador: Quais? [Nota de transcrição: Ele baixa o tom ao tocar nesse assunto]
Clóvis: Paraguai e Colômbia. Aí, na hora de fazer equipe eles não fazem equipe com
aquele país. Fazem equipe com El Salvador? Faz equipe. Então, não gosto disso. Tem
isso e outra coisa que eu ia falar... Bom, acho que é isso. Mas, por exemplo, faz um
ano... Eu sempre fiz grupo com os brasileiros, tipo, tem salvadorenho vai lá. Eu já
trabalhei com muita gente, tem colombiano, fiz equipe com paraguaio, às vezes você
não precisa fazer equipe com o teu país, você faz por afinidade. Ele, ela, aquela
menina, você olha o grupo e fala “tem uma brasileira, uma venezuelana, um
salvadorenho e um argentino”... Estou me lembrando das equipes que eu já tive que
foram, nós fomos amigos muito próximos.. Por exemplo, o argentino desistiu, a
brasileira desistiu, o colombiano desistiu. Mas, tipo, a gente não precisava ser do
mesmo país para ter afinidade, nós éramos... (CLÓVIS, 2015).
267
Aqui, vemos um imbricamento entre a dimensão universitária e a nacionalidade. O
“fraco desempenho” de estudantes de dois países seria responsável por um “escanteamento”
desses estudantes na hora da montagem de grupos e equipes de estudos. Através da fala de
Clóvis só é possível perceber uma leitura sobre sua própria sala. Assim, estudantes dessas
nacionalidades poderiam ocupar lugares distintos de acordo com seu desempenho, carisma
(elemento que ao fim é o que é valorizado por ele na montagem de grupos) e outras questões
que possam ser valorizados, de acordo com as circunstâncias.
Tanto Clóvis quanto colombianos e paraguaios compartilham a mesma língua oficial, o
espanhol, logo, essa barreira inexiste ou é baixa, nessa relação. Inclusive, ele não identifica
problemas em participar de equipes com brasileiros, nos quais a barreira linguística poderia
existir. Assim, o elemento colocado por Clóvis é basicamente acadêmico, mas com
repercussões sociais. A fragilidade no desempenho em um curso de Engenharia Civil, formado
por alta carga de disciplinas como Matemática, Física, etc, pode ser causada tanto por
deficiências individuais quanto por carências educacionais locais. Assim, vemos, novamente, o
passado, mas dessa vez individualizado no desempenho dos estudantes com desdobramentos
no presente e, consequentemente, ativado como motivador de diferenças entre estudantes de
diferentes nacionalidades.
Outro elemento apresentado pelos entrevistados, desta vez por Fabiano, para as
diferenças e tensões entre nacionalidades está relacionado ao desempenho intelectual,
juntamente com uma capacidade de articulação política. A narrativa de Fabiano permite
entrever uma dimensão da relação de estudantes com aqueles provenientes do Uruguai. Ao falar
sobre a construção de centros acadêmicos – CAs - afirma:
Montaram agora, mas esse período de montar os únicos que barravam era o pessoal,
os uruguaios. Então eu sinto que tem uma, assim não digo briga, mas é uma relação
assim até de inveja. Muitos uruguaios que vem aqui, eles são muito inteligentes, são
pessoas que tiram dez facilmente porque o ensinamento deles lá no Uruguai lá é
diferente. Então eles têm uma certa facilidade e já ouvi de outras pessoas de outros
cursos coisas tipo: “Ah, aquele uruguaio metido. Ah aquele não vai...”. Eu acho que
o único país que existe alguma questão são os uruguaios, eu acho que seria o único.
Mas tipo, os uruguaios são extremante inteligentes, uma das nacionalidades que tipo
dentro do movimento estudantil são os mais firmes, são os únicos que discutem a nível
muito grande de política, de conhecimento é incrível. Eu realmente fico
impressionado pela inteligência deles sabe, no conhecimento. Alguns sabe são meio
extremistas, radicais, mas assim eu vejo assim muita preocupação nessa questão do
projeto da Unila latino-americana, pra mim assim uma referência tipo: “Quem é a
nacionalidade que mais liga pra América Latina? São os uruguaios”. Pra mim, sem
dúvida, são eles. Eu tenho vergonha como brasileiro que o nosso brasileiro não tem
essa, essa força, essa discussão dentro do projeto da Unila (FABIANO, 2015).
268
Uruguaios e brasileiros protagonizam sua fala. Enquanto os primeiros são lidos como
politizados e inteligentes, os segundos são motivo de vergonha. Haveria, inclusive, dentro da
universidade, uma espécie de inveja em torno da politização dos estudantes dessa
nacionalidade. Uma de nossas entrevistadas, Tuane, que teve sua narrativa problematizada no
primeiro capítulo, se encaixa exatamente neste perfil. Proveniente do Uruguai, constituiu sua
narrativa imbricada com a trajetória política de seu bairro. Avançou, inclusive, para uma leitura
de sua experiência de luta na universidade a partir dessa trajetória de luta construída no passado,
em seu bairro.
Essa percepção de Fabiano agrega outra dimensão nas diferenças entre as identidades
nacionais. Se os estudantes de nacionalidades entendidas como “inferiores”, seja por méritos
acadêmicos ou rivalidades locais, sofrem discriminação na hora da formação das equipes,
aqueles provenientes de países com características “superiores” aos demais, podem sofrer com
exclusão motivada por um senso de inferioridade.
De maneira bastante interessante, a rivalidade ou a dificuldade de relacionamento com
os uruguaios apareceu em diferentes falas e por diversos motivos. Nessa linha de percepção
sobre os uruguaios, Cézar afirma que “Eu abertamente digo, porque penso que a maioria pensa
assim, por exemplo, os uruguaios. Eles sempre ficavam na deles (riso). Se apoiando e tudo, mas
problema de cada um” (CÉZAR, 2017). Já no caso de Marla, os uruguaios são lidos de uma
maneira mais individualizada:
Eu particularmente não me dou muito bem com os uruguaios, não sei por que, mas a
maioria dos uruguaios e uruguaias que eu conheci eu não gostei do seu jeito, não sei
por que. Mas também é uma generalização, porque tem outros uruguaios que são meus
amigos. Mas não sei porque a causalidade de a maioria das pessoas com quem eu não
me dou bem, são uruguaios [risos] (MARLA, 2017).
Marla afirma, na parte anterior de sua fala, que mexicanos e colombianos seriam muito
próximos, em especial, por causa do “gosto por festas”. Já sua relação com os uruguaios seria
tensa. Não apresenta motivações, mas esse distanciamento se daria por motivos pessoais, pois
é ela que “não se dá bem” com os uruguaios. Constitui uma diferença no âmbito subjetivo sem,
necessariamente, explicar ou apresentar argumentos dessa diferença. Ocorre, aqui, um elemento
importante. Para além de questões históricas, políticas e intelectuais já enunciadas, existe a
dimensão das personalidades e subjetividades como elementos que interferem na relação entre
estudantes, sejam eles de um mesmo país ou não. Uma instituição e mesmo a constituição de
análises de identidades não dão conta de todos estes elementos. Entretanto, no âmbito da análise
proposta, a enunciação e problematização destas dimensões são fundamentais. Obviamente, não
269
cobriremos todas as causas ou relações que geram tensionamentos. Mas a enunciação e
apresentação de evidências destas diferentes dimensões de tensões pode servir como
provocação para a percepção da complexidade desta questão no âmbito da formação da
identidade simbolizado no “unileiro”.
O posicionamento de Tuane, discente uruguaia, a respeito das relações entre estudantes
de diferentes países apresenta algumas questões que também merecem ser trabalhadas. Ainda
dentro da lógica de que as diferenças entre as nacionalidades são diversas, assim como seus
usos, Tuane aponta elementos que nos ajudam a pensar relações estabelecidas com outro grupo
importante de estudantes, os brasileiros.
É.. principalmente aqui de Foz, que são estudantes da Unila mas são da cidade, eles
são meio... meio retraídos em respeito a gente.. Mas eu acho que esse processo é um
processo que não é normal que não tenha que acontecer, mas que é entendível que
aconteça. Eu entendo quando a população tem rechaço que o trabalhador teve que
pagar prova pro seu filho entrar na universidade e ele não ta conseguindo ter auxílio
e eu que sou estrangeira, que não pago imposto no Brasil, agora sim, mas não pagava.
Eu estou recebendo educação e tal tal tal... Então eu... eu entendo... Eu realmente não
compartilho porque eu entendo que tem outras coisas além disso, mas eu entendo... E
os colegas brasileiros muito também são essas posturas, sabe? (TUANE, 2015).
Aqui vemos o imbricamento de discussões presentes em diferentes momentos de nosso
trabalho. Ao pensarmos o projeto institucional da Unila, as narrativas de multiculturalidade de
Foz do Iguaçu e as tensas relações entre citadinos e estudantes, vimos facetas deste problema.
É previsível que, em algum momento, as contradições presentes neste processo transbordem
nas relações entre os estudantes. Este é um deles. Quando uma discente uruguaia aponta
dificuldades nas relações com estudantes brasileiros provenientes de Foz do Iguaçu, vemos
resultados destes tensionamentos na comunidade discente.
Não apenas na cidade ou no âmbito institucional, mas também no cotidiano estudantil,
as diversas narrativas se entrecruzam e criam fronteiras que impõem barreiras para a proposta
de integração intercultural. Isso ocorre justamente pelo fato de que o cotidiano estudantil não é
compartimentalizado, mas histórico, carregado desse passado e deste presente através do qual
se processam jogos de poder, disputas de sentidos e do significado da existência da Unila, bem
como das identidades desses estudantes.
Apesar de Tuane se definir como uma “pessoa muito dada, assim, eu falo com muitas
pessoas, eu adoro falar, trocar ideia” (TUANE, 2015), não foge da reverberação das
contradições da experiência da vida estudantil. Essas contradições geraram fragmentações
identitárias naquela que se apresenta e propunha-se como uma comunidade “unileira”.
270
A dimensão que apresentamos até aqui, as diferenças entre identidades nacionais, é
específica da Unila, ao menos nas formas em que elas ocorrem naquele espaço. A próxima, os
tensionamentos entre cursos e áreas do conhecimento é um elemento comum dentro das
universidades e da academia, em geral. Na Unila, traduz-se, como veremos ao final dessa
discussão, em uma construção identitária própria que reproduz e aprofunda a fragmentação
daquela que seria, idealmente, uma comunidade com um projeto relativamente organizado em
prol da integração.
Se o projeto institucional da Unila, para além da produção de conhecimento, é a
promoção da integração, isso foi lido pelos entrevistados como uma proposta na qual algum
tipo de unidade deveria ser constituído dentre os discentes. Essa unidade era atingida quando
falávamos do “unileiro”, pois todos os estudantes poderiam ser inseridos nesse guarda-chuva
identitário. Entretanto, há um tom de decepção com o desenvolvimento histórico da
universidade. No decorrer do tempo, com a expansão da instituição e a abertura de novos cursos,
teria ocorrido um deslocamento e um processo de fragmentação dos estudantes a partir das áreas
de conhecimento e da disposição dos cursos na estrutura física da instituição. Cláudio apresenta
este processo:
Então é isso, a gente vai tentando se ajeitar por que na verdade e ao mesmo tempo de
se ajeitar e a pessoa chegar também já ir entendendo qual é a ideia da universidade.
Porque um dos problemas de abrir muitos cursos e expandir a fragmentação dos
cursos, bem segmentadamente bem visível, medicina de um lado e humanas de outro
e outros pensamentos de outro, engenharia onde dá dinheiro lá na Itaipu na área de
segurança. Então isso foi muito bem dividido. Também essa divisão deixa muito claro
como a Unila é um projeto muito bom, mas a gestão transforma ela cada vez mais em
uma universidade como qualquer outra federal brasileira. E ela faz questão, inclusive
na gestão da reitoria, faz questão de sempre reiterar isso: “A Unila é uma universidade
federal brasileira (CLÁUDIO, 2016).
A expectativa de uma universidade diferente, de um “projeto muito bom”, seria
frustrada pela historicidade da instituição. Para compreendermos isso, precisamos de algum
contexto a respeito das divisões espaciais dos cursos. Quando a Unila é inaugurada, todos os
estudantes convivem no mesmo lugar, uma área cedida pelo Parque Tecnológico Itaipu (PTI).
A ideia inicial era concentrar as atividades num campus novo que começou a ser
construído e que, em 2018, ainda não tem previsão de conclusão. A partir de então, o
crescimento do número de cursos e discentes faz com que a universidade necessite de novos
espaços. Enquanto as engenharias continuaram no espaço do PTI, cursos das áreas de sociais,
sociais aplicadas e humanas foram concentradas em um espaço alugado, no centro da cidade, e
fechado em 2016. A abertura do curso de Medicina, juntamente a outros, já ocorreu em um
271
terceiro espaço, o chamado Jardim Universitário – JU, espaço alugado de uma faculdade
particular. Assim, em 2015, havia três campi da instituição: um voltado para engenharias e
arquitetura, um para humanas e sociais e um para as áreas de saúde. Havia circulação, inclusive,
de uma linha de ônibus fornecida pela Unila entre seus prédios, mesmo que limitada entre esses
campi. Em 2016, esses espaços são reduzidos a dois, com o encerramento das atividades no
centro da cidade e a concentração dos estudantes no Jardim Universitário e no PTI.
A fala de Cláudio busca questionar não a necessidade ou a importância do crescimento
da instituição, mas a forma como esse processo ocorreu. A divisão física da universidade
dificultaria, em sua perspectiva, a criação de um ambiente diferente e integrador entre os
estudantes. A Unila proporcionaria a continuidade da normalidade das universidades federais
brasileiras, incentivada pela postura da administração, naquele momento, de não motivar,
inclusive fisicamente, a unidade da comunidade estudantil. Essa possibilidade é criticada por
Cláudio e estranhada por outros estudantes. Um exemplo é Natalia:
A Unila separou os prédios. Por exemplo, tem as pessoas de humanas e tem as pessoas
de exatas. As de exatas estão no PTI e o resto está no JU. A gente não tem muita
integração mesmo. Acho que a Unila esqueceu aquela parte, ela só juntou pessoas de
vários países e deixou assim. Mas não tem muita atividade pra gente se integrar. Só
tem aquela atividade que a gente faz dentro do curso ou festas que a gente se encontra
e termina conhecendo umas pessoas. Mas não tem muita atividade para a gente se
integrar. Tem, por exemplo, cursos que a gente possa fazer e ficar conhecendo galera
de outro curso. Mas acho que a Universidade deixou assim a pessoa viver junto mais
não fazendo aquela integração que ela fala (NATÁLIA, 2017).
A divisão física da instituição, inclusive por força das circunstâncias, leva a uma
compartimentalização das atividades. No caso de Natália, cuja fala ocorre mais de um ano após
a de Cláudio, ela forma uma divisão atualizada das relações. No momento de sua entrevista, a
percepção que ela constituiu é de que existia uma divisão entre “humanas” e “exatas”, entre o
PTI e o JU, os dois campi, desde 2016. Esta percepção é factualmente equivocada porque as
áreas de saúde – Medicina e Saúde Coletiva – que, normalmente, se localizam entre as exatas e
biológicas, ficam no Jardim Universitário. Independente dessa imprecisão, ela é sentida e
narrada pela estudante, o que evidencia a densidade dessa divisão que ultrapassa a proximidade
física e se localiza no campo simbólico.
O “mapeamento” que Natália faz atualiza a historicidade da divisão da instituição. Mas
essa divisão é subjetiva, pois, como vimos, há mescla entre diferentes áreas, tanto no PTI quanto
no Jardim Universitário. De qualquer forma, é significativo perceber essa divisão reproduzida,
constantemente, na fala dos entrevistados. Aliado a essa questão que se desenvolve, ao longo
do tempo, temos a percepção, por parte tanto de Cláudio quanto de Natalia, de que a instituição
272
tem falhado na promoção de integração. De maneira interessante, o conceito de integração deixa
o espaço latino-americano e passa, em suas falas, para as relações cotidianas entre os cursos.
Atualiza-se, na narrativa, o sentido de integração. Não basta querer integrar povos, seria preciso
integrar cursos, nacionalidades e estudantes. Seria preciso criar e reforçar uma comunidade
“unileira”.
Essa divisão física bem como as rivalidades cotidianas entre estudantes, foram
percebidas por eles quando buscaram compreender a constituição de esterótipos entre os
diferentes grupos sociais que permeiam a universidade. Um exemplo dessa tentativa vem de
Valéria:
Cada curso creio que construiu su imagem de estereótipo de estudiantes. Por exemplo,
mi curso tem esse estereótipo de que los estudiantes de Ciência Política e Sociologia
não se envolve em nenhuma instância política, por exemplo. [Risos] Em nada que
tenga a ver com el movimento estudantil, em nada que tenga a ver com la
institucionalização de la universidade. Nada. Y isso yo lo vejo como uma realidade
de que, sim, nos custa mucho envolver nesse sentido. Los estudiantes de, por exemplo,
Antropologia são mucho mais políticos, mucho mais envolvidos nesse sentido.
História también. Estão a la cabeza de todo movimento estudantil de la Unila. Pero,
cada um como em su forma y, no se, a meu ver isso já tem muito a ver com perjuicio
e essas coisas. Pero, si, se hay criado essa imagem de estudante de cada curso
(VALÉRIA, 2013).
A interpretação dos estereótipos que Valéria apresenta é um exemplo das relações
constituídas dentro da instituição. Estudantes de cada curso, inclusive por relações de
sociabilidades, constituem trajetórias distintas no âmbito universitário. Essas trajetórias
dialogam com os estereótipos dos cursos, com as dinâmicas internas a eles e também com
imagens constituídas a seu respeito que geram expectativas diferentes para cada grupo. Mas a
fala de Valéria aponta ainda outra questão. Entrevistada em 2015, a estudante tinha aulas na
Unila -Centro que concentrava cursos de humanas, sociais e sociais aplicadas. Se observarmos
os cursos citados, vemos que ela concentra sua fala naqueles com os quais compartilha o
campus universitário.
Ela não faz referência aos cursos que, naquele momento, se localizavam no PTI, como
as Engenharias. A fala dela serve para mantermos o contato com as consequências que essa
divisão física provoca entre os estudantes. Nem mesmo a coexistência durante disciplinas como
Fundamentos de América Latina ou de línguas foi suficiente para provocar em Valéria a
necessidade de elencar mais cursos ao dialogar com estereótipos.
Essa divisão pode ser superada por estudantes que buscam apresentar uma perspectiva
mais ampliada da universidade, como no caso de Cláudio, e também por estudantes que, por
diferentes motivos, navegam entre as diferentes áreas. Um desses casos é o de Fabiano. Como
273
já mencionado, ele é estudante de Engenharia Civil e atuante no movimento estudantil e no
Grupo Unila no Facebook. Sua preocupação com as divisões que atravessam o cotidiano
universitário aparece, recorrentemente, em sua fala:
Fabiano: E eu sempre tentei levar pro resto da galera como representante do centro
acadêmico essa questão: “Não vamos falar mal do pessoal de humanas, não vamos
criar rixa, vamos se relacionar, vamos fazer parcerias com várias questões”. Eu
sempre tentei levar, até hoje levo quando chego assim, aos calouros: “Galera aqui é
difícil a relação, mas vamos respeitar seus espaços, cada um com seus cursos e
ninguém é superior a ninguém”. E eu sempre tento levar isso, hoje são poucas assim
que me apoiam assim nesse sentido até de falar, se você não falar o pessoal vai chegar
na sala, o professor vai começar a fazer piada e já vai criar uma barreira entre os cursos
de humanas e exatas. Então, uma coisa que até hoje eu acabo trazendo pros curso eu
to Engenharia Civil é essas questões de não criar rixa, tipo tentar evitar o máximo
possível. Manter uma boa relação com os cursos de humanas e curso de exatas
(FABIANO, 2016).
A narrativa de Fabiano evidencia tanto suas preocupações quanto a identificação desse
problema. Em sua fala, assim como no caso de Natália, a divisão é organizada entre humanas e
exatas. Essa divisão seria gerada pela criação de “rixas”, piadas, que criariam e reforçariam
barreiras entre as áreas, o que prejudica a integração entre os estudantes. O posicionamento de
Fabiano é o de tentar buscar soluções para esses problemas que seriam, segundo ele, reforçados
pela postura de professores, sendo necessária a tomada de medidas, por parte dos estudantes,
para mitigar a questão:
E a maior preocupação, os maiores culpados disso pra mim são os próprios
professores, entende? Você já chega na sala, o professor já faz piada com galera de
humanas. Isso, pra mim, sei lá... pra mim na Unila isso não deveria existir, sabe? Então
isso foi tipo não se foi me incomodando ou me estimulando de me envolver com o
centro acadêmico de Engenharia Civil, de me envolver com algumas questões
políticas da universidade, do movimento estudantil (FABIANO, 2016).
Se professores e estudantes criam fronteiras entre os cursos, assim como entre
nacionalidades, qual o desdobramento disto no âmbito da identidade “unileira”? Um deles é a
constituição de uma divisão nesta identidade que percebe e/ou estabelece distinções entre
diferentes espaços da instituição, entre diferentes áreas de conhecimento, identidades distintas.
Emerge, a partir desta problemática, uma diferenciação e uma tensão entre os “capivaras” e os
“unileiros”. Ambos os termos são amplamente utilizados dentre a comunidade estudantil. A
capivara, inclusive, é uma espécie de mascote da instituição e aparece em materiais
promocionais, em camisetas de cursos, em logotipos de associações e centros acadêmicos. O
desenvolvimento desse símbolo, transformado em elemento nas negociações identitárias, é
relevante. Vejamos as narrativas de Clóvis e Fabiano a esse respeito:
274
Bom, é meio paradoxo, sabe? Por exemplo, o “Capivara” é o seguinte. Lá no PTI,
como comentei pro senhor, fica o parque tecnológico, tem três universidades: a Unila,
que tem vários cursos, a UNIOESTE, que tem engenharia e a UaB - Universidade
aberta do Brasil. Faz três anos que o pessoal da Unioeste falava pra Unila “Capivara”
porque você entra lá na usina e pela rua, por todo lado que você olha são capivaras e
eles são protegidos, cuidados, enfim. Aí o pessoal da Unila, no intervalo das 14 horas,
eles saem e por algumas horas eles ficavam no chão, ao estilo capivara. Eles levam
comida até hoje e almoçam lá, eles se reúnem, cantam, fumam, fazem muita coisa,
realmente fazem muita coisa. Tem casal que dorme junto. Por isso o pessoal da
UNIOESTE começou a falar pra nós “capivara” de um jeito depreciativo. Para nós
nos sentir mal, só que a gente mudou aquela ideia e a resposta foi “nós somos
capivaras” porque a gente agora se identifica como “capivara”... E realmente foi isso,
eu acho que é isso (CLÓVIS, 2016).
Juntamente com os quatis, as capivaras são comuns em Foz do Iguaçu. Esse animal, que
pode ser visto constantemente “ao sol” e “em relaxamento”, acaba por ser utilizado como
símbolo para depreciar os estudantes da Unila, mais precisamente, aqueles que estudavam no
PTI. Essa identificação é constituída dentro da historicidade das relações entre os estudantes
das diferentes universidades que ocupavam esse espaço, em especial, os discentes da Unioeste.
Essa condição inicial é transformada pela apropriação realizada pelos estudantes que
reivindicam para si essa identidade e ressignificam-na no processo. Esse movimento é o mesmo
daquele narrado pelos entrevistados sobre o “unileiro”.
A identidade “unileira” passa por ressignificações, assim como a “capivara”, entretanto,
suas origens são distintas. Como vimos, no caso do “unileiro”, este surge entre os próprios
estudantes e depois se transforma em estereótipo negativo na cidade para, por fim, ser
reapropriado pelos discentes. No caso do “capivara”, temos sua criação como estereótipo pelos
estudantes da Unioeste e sua posterior apropriação e ressignificação pelos discentes da Unila.
A forma como esse estereótipo surge e é apropriada como identidade contribui para
diferentes formas de se apropriar ou se afastar dela:
O de exatas gosta mais de ser chamado de capivara do que unileiro, mas a gente
também usa. Mas o capivara porque, assim, a galera que veio em dois mil e dez, eles
não tinham muita matéria, não tinha professor, era muito deixados e aí a galera,
imagina, estrangeiros ne, tudo aquela, e ai esse pessoal estudava no PTI e lá na Itaipu,
é, tem várias, tem UNIOESTE lá no parque de exatas, tem UAB e tal, tem vários
funcionários e quando a Unila chegou lá, os alunos praticamente não ficavam na aula
por que não tinha. Aí eles ficavam deitado na grama todo mundo no sol ou na sombra,
ou fumando ou ne e lá no Itaipu tem as capivaras no lago lá, então aí ficou
característico e a galera começou a chamar de capivara, e aí os outros chamando, a as
capivaras e aí foi e na verdade a gente não achou ruim, a gente achou bom uma coisa
que identifica nós unileiro a capivara. E aí gente de exatas, a gente acabou adotando
como mascote, o pessoal da atlética também adotou como mascote (FABIANO,
2016).
A narrativa do surgimento é, grosso modo, a mesma de Clóvis. A diferenciação que é a
ênfase no uso do “capivara” pelos estudantes das áreas de “exatas”. É essa área que ocupa o
275
PTI como espaço acadêmico. Essa especificidade acaba por produzir um jogo identitário onde
a apropriação do termo capivara ocorre a partir do lugar que se ocupa ou ocupou na
universidade. Na fala de Fabiano, o “capivara” surge como um desdobramento do “unileiro”,
como uma forma específica de identificação constituída nas disputas com as outras
universidades, com as quais se relaciona. Dessa forma, dialoga internamente e tensiona a
constituição de um sentido unificado para a categoria “unileiro” que, externamente, tensiona
narrativas pejorativas sobre os estudantes. Surge como, ao mesmo tempo, uma fenda no
“unileiro” e uma complexificação desta.
A análise da identidade “unileira”, ao ser complexificada pela compreensão de
fenômenos, tensiona sua formulação e seu significado, ganha em complexidade e historicidade.
A partir dessa percepção, esta deixa de ser uma identidade monolítica e passa a ser um
fenômeno histórico, com temporalidades e sentidos múltiplos que a atravessam e formam-na.
Ao mesmo tempo, isso permite, mesmo que de maneira fugidia, perceber as possibilidades de
deslizamento que essa identidade possui, diacronicamente, na transformação produzidas ao
longo do tempo e, sincronicamente, a partir das múltiplas apropriações e significações
constituídas para essa identidade. Para melhor compreendermos este processo, precisamos
aprofundar a compreensão do que seria o “unileiro” para nossos entrevistados. Se essa questão
já foi problematizada na relação com a cidade, faremos ainda sua análise no âmbito da
universidade. Essa divisão, longe de ser dicotômica, busca apenas facilitar, metodologicamente,
a compreensão da identidade que tem se constituído, mesmo que de maneira assimétrica, na
relação universidade/cidade.
5.4 IDENTIDADES E INTERCULTURALIDADE
A constituição de nosso interesse na pesquisa sobre a Unila se deu baseada na
possibilidade de perceber como uma de nossas preocupações, as subjetividades e identidades
universitárias, se constituíam em um ambiente intercultural. Já tínhamos tido a oportunidade de
pensar nuances deste processo através da migração estudantil para a cidade de Marechal
Candido Rondon, a qual pesquisamos no mestrado. Entretanto, a Unila se mostrava com um
potencial importante, justamente pelo seu projeto institucional. Afinal, uma universidade que
buscava promover e pensar a integração latino-americana, através da construção de um espaço
de coexistência multicultural, era um lugar privilegiado para nossas análises. Diferente de
outras espacialidades, ali, a multiculturalidade tinha um propósito específico, a integração.
276
Logo, em alguma dimensão, a interculturalidade deveria se fazer presente e
potencializar ressignificações identitárias. Esta era a nossa hipótese. A localização do espaço
multicultural, tanto na cidade quanto na universidade, bem como suas contradições, foi simples.
Mesmo a percepção da interculturalidade, como fator para a compreensão desse espaço,
também foi tranquila. Ambas as questões já foram trabalhadas em outros textos, por outros
autores. Inclusive, apresentamos e discutimos alguns nos capítulos 2 e 3. Resta-nos pensarmos
como os estudantes experimentaram e narraram esta problemática com seus desdobramentos
para a ressignificação de suas identidades.
Se um primeiro olhar sobre a Unila pode ser atraído pela diversidade cultural decorrente,
principalmente, da migração estudantil proveniente de diferentes países da América Latina e
Caribe, há uma dimensão “extra”. Não podemos observar esses estudantes apenas como
provenientes de um país e utilizar generalizações e extrapolações simplesmente a partir dessa
informação. A diversidade presente na Unila é aprofundada pela multiplicidade cultural
presente dentro dos Estados nacionais latino-americanos. Isso é evidente em vários casos, sendo
ressaltado pelos estudantes. Comecemos pelo Brasil:
E aí muita coisa vai do processo da própria universidade, os professores são mais
novos e tal. Então esse nome que te instiga também é responsável pela intensidade
dessa troca aí de professor e aluno. E muitas vezes aqui na Unila tem esse lance da
multiculturalidade entre países, mas também tem a questão de que os alunos trazem
muitas experiências não só dos outros países, mas também do Brasil e muitos alunos
que vieram para cá vieram de outras universidades. Aqui dentro, de São Paulo
principalmente, e a galera sempre traz umas ideias novas e tal (CLÁUDIO, 2016).
Cláudio é um migrante do Brasil. Nascido em São Paulo, viveu também em Santa
Catarina e, por último, no Rio Grande do Norte, onde começou sua trajetória universitária, na
UFRN, de onde se transferiu para a Unila. Tendo experienciado diversidades culturais em suas
migrações, apresenta essa questão, na entrevista. Em que pese seu foco, neste excerto, na
multiculturalidade brasileira, esta também se apresenta em relação a outros países. Falamos
dessa questão quando abordamos a diversidade linguística que existe na universidade. Além
disso, Cláudio destaca a força que a proposta institucional de integração, expressa no nome da
universidade, tem para a constituição de trocas culturais. Não apenas entre diferentes
nacionalidades, mas também entre estudantes do mesmo país. Afinal, apesar de ser sua
especificidade, a diversidade nacional não é a única que compõe a Unila:
A interculturalidade eu acho que ela entra quando por exemplo, existia moradia, que
agora é a ocupação de um prédio que a Unila não usa. Mas quando a moradia existia,
tinha muitas noites dos países por exemplo né, sei lá, a noite da Bolívia, daí tinha
apresentações, músicas. Aí sim eu acho que é um processo de interculturalidade, é
277
você apresentando a sua cultura para o outro, aí eu acho que é um processo de
interculturalidade e você interage com aquele processo naquele momento. Mas a
interculturalidade está nisso aí, você vai percebendo que as vezes ações que você tem
estão muito mais relacionadas a essa coletividade que você está vivendo. E aí você
vai se percebendo, hábitos sei lá. Tomar tererê, por exemplo, depois de um tempo
você vai percebendo que é hábito de onde você tá tirando, e ela não se dá só pela
interculturalidade mas sobretudo transpassando por que você entende do tererê por
que você foi viajar em uma viajem de campo com uma comunidade de amigos
paraguaios que você vai andando e eles pegam as ervas e cheiram e conhecem todos
os tipos de ervas. Coisas que a gente jamais vai fazer isso, a gente não teve essa
educação, essa troca é muito importante, é o que faz a integração (CLÁUDIO, 2016).
Provocado a falar se identificava “trocas culturais, interculturalidade” no cotidiano da
Unila, ao identificar uma mudança na relação, permite perceber historicidades das trocas
culturais. Assim, enquanto existia a chamada “Moradia 1”, haveria um espaço de
interculturalidade. A coexistência e o relacionamento próximo entre os ocupantes daquele
espaço, proporcionou um lugar de sociabilidades interculturais. Esse espaço é transformado,
em 2015, pois a “Moradia 1” é considerada imprópria para habitação e é interditada.
A partir disso, estudantes da Unila ocupam esse espaço como forma de resistir e de
reivindicar uma ampliação nas moradias estudantis. Essa ocupação estava ocorrendo no dia da
entrevista e seguiu por mais alguns dias, quando se desmobilizou a partir do compromisso de
melhoria na política de habitações estudantis. Dois elementos são centrais, nesta fala. Primeiro,
a percepção de que existem trocas e aprendizados culturais com base na convivência entre
estudantes de diferentes culturas. Outra questão é a historicidade dos espaços e das
possibilidades destas trocas culturais. Estes se movem e são movidos ao longo do tempo. Tanto
os formais, como a moradia ou a viagem de campo, quanto os informais, como, por exemplo,
as relações de sociabilidades, são constituídas desde a experiência universitária.
Buscar perceber relações de interculturalidade apenas dentro das paredes da
universidade seria um equívoco. As narrativas dos estudantes deixam muito claro que, para
além dos muros universitários, as redes de sociabilidade e as relações cotidianas são centrais
nessa possibilidade:
E à noite volto pra casa fazer a janta, se não to com vontade de fazer a janta saio comer
pra fora, um Shawarma alguma coisa assim, e é isso. E ao chegar fim de semana tem
evento, e tenho que sair com os amigos, bailar, beber uma cerveja, ou pro cinema, se
tem algum evento que, que a Unila ta, os estudantes da Unila que ta promovendo,
alguma é tocada é, alguma dança, ou algum evento que, é tradicional mais ou menos
que o pessoal de diferentes países, fazem como o dia nacional deles né. Sempre fazem
do Paraguai, Argentina, do Equador, da Bolívia, pra ver as diferentes culturas da Unila
que os estudantes fazem também pra comunidade, ta todo mundo e é bom também
(ÂNGELA, 2017).
278
O espaço urbano é, também, espaço de trocas culturais. Apesar de termos focado no
tensionamento entre elementos da urbanidade e os estudantes da Unila, a cidade não pode ser
reduzida a esta tensão. Para além da conflitividade, Foz do Iguaçu é, como visto no segundo
capítulo, um espaço multicultural. A coexistência de uma grande diversidade de etnias
proporciona à Ângela experiências as quais não tinha acesso no Equador. Assim, quando
falamos de interculturalidade, é preciso levar em consideração que a universidade e os
estudantes existem num espaço mais amplo, o da cidade. Mais que espaço de passagem, ou de
conflitos, a cidade é também espaço de trocas, de aprendizagem, etc. Mesmo as sociabilidades
estudantis se centrando entre os próprios estudantes, as vivências se dão também na cidade.
A experiência cotidiana de convivência, nessa multiculturalidade, tanto da cidade
quanto da universidade é lida, em geral, como algo positivo. Até por fazer parte do projeto
institucional, em grande medida apropriado pelos estudantes, há um esforço em positivar as
relações constituídas nessa diversidade. Entretanto, é preciso tomar cuidado com idealizações
a esse respeito. Em diversos sentidos essa convivência é uma relação cotidiana. A diversidade
não é ativada, nem existe, em todas as dimensões do dia a dia. Em muitos momentos, esses
sujeitos são semelhantes, carregam características que os aproximam, compartilham
subjetividades e sentidos. Ao mesmo tempo, dimensões da vida cotidiana são encaradas a partir
de outras perspectivas, por exemplo, no compartilhamento de uma casa, uma república e não
necessariamente a diferença de nacionalidade é transformada em algo relevante. Para muitos, a
moradia pode ser apenas o compartilhamento de um ambiente. A fala de César nos ajuda a
compreender essa questão. Ao falar sobre a convivência com pessoas de diferentes culturas, ele
afirma:
Como eu falei, o positivo e às vezes o negativo, né? Mas, eu penso que culturalmente
falando foi muito positivo, muito positivo mesmo... Inclusive, eu morei com um cara
que falava um pouco de Aimara, um cara boliviano, por exemplo, ele falava umas
coisas estranhas, e você fica, você já sabe que um estado nacional que possui muitas
línguas, que o Equador também... Colegas que falam quíchua, por exemplo, ou
colegas que... Morei também com um colega peruano que fala quíchua, que é
diferente, né? E aí, assim, daí penso que a convivência é um pouco de comum. Do
meu ponto de vista, é comum, você faz as suas coisas e espera que o outro também
faça as coisas. É questão de responsabilidade mesmo, às vezes quando se rompe isso
dá algum problema. Mas, no geral, penso que foi positivo (CÉSAR, 2017).
A pergunta visava perceber o contato entre as diferenças culturais. Em um primeiro
momento, Cézar encaminhou a resposta nesta direção. Logo, a seguir, passou a narrar a
convivência como tendo uma dimensão “comum”. Assim, existiriam momentos de contatos da
diferença e também dimensões de “comum”. O compartilhamento de uma moradia, seja da
279
universidade seja de uma república, implica a criação de espaços comuns. Nesses espaços,
físicos e simbólicos, experimenta-se a diferença, mas também a expectativa de atitudes
semelhantes ou, no mínimo, que atenda aquilo que se espera de um colega de moradia. Esta
perspectiva é corroborada pela fala de Renato: “é que também... É distinto assim, mas nem tanto
assim. O pessoal tem muitas coisas que são semelhantes em todos e que são funcionais a uma
boa relação, ao diálogo” (RENATO, 2017). Quando essa expectativa é rompida, “dá algum
problema” (CÉSAR, 2017).
Perceber esta questão é importante para que não sejamos tentados a idealizar a
convivência intercultural. Se esta é uma questão, em grande medida, específica da Unila, ali
existem outras questões que são comuns à experiência universitária. A carreira acadêmica, a
faixa etária dos estudantes, as pressões por nota, desempenho, presença em sala, etc, também.
Logo, é preciso considerar que as inovações ou novidades que a vida na Unila traz e são
incorporadas ao processo de significação da identidade “unileira” devem ser colocadas em
perspectativa. Afinal, em diferentes dimensões, essa experiência é semelhante a inúmeras
outras. Ainda na fala de Cézar vemos a reafirmação do processo de positivação da experiência
universitária:
Porque você aprende muito. Conhece muitas pessoas, você praticamente mora com as
pessoas. Você sai, você pega o ônibus com eles, você chega na faculdade com eles,
você faz uma comidinha com todos eles, por exemplo. É quase como se vira uma
família. Eu penso que isso é bom, dependendo de cada um. Mas, os saberes, o
conhecer as pessoas de qualquer parte da América Latina, eu sinto que te faz mais
unido, inclusive, olhando as condições do outro, dando uma ajuda quando alguém
precisa de alguma coisa. Várias pessoas me ajudaram, por exemplo, quando tava com
fome, quando não tinha para comer. Por isso foi uma experiência maravilhosa
(CÉSAR, 2017).
Mesmo com este campo de “comum” nas vivências estudantis dos “unileiros”, existe a
especificidade da coexistência intercultural. E este é nosso foco. Esta experiência foi lida a
partir de duas chaves complementares. Primeiro, a constante reafirmação de que isso foi um
elemento positivo de suas trajetórias e, em segundo, a narrativa de que essa coexistência
intercultural gerou transformações na identidade e na vida desses estudantes. Esta fala de Cézar
nos permite ver essa primeira dimensão. Seja pelo aspecto da solidariedade, também lembrada
por Renato, seja pela possibilidade de conhecer muitas pessoas e culturas, as quais, de outra
forma, não se teria acesso, a coexistência é lida como positiva. Já havíamos visto como a
experiência na Unila, por diversos motivos, foi narrada de maneira positivada.
As duas falas de Cézar, citadas acima, trazem para a discussão aquele que foi narrado
como o elemento central da experiência e construção da identidade “unileira”: a
280
interculturalidade – narrada como positiva – que gera aprendizado e transformação identitária.
A interculturalidade, pensada a partir de Canclini, tem sido bastante produtiva para se
problematizar as vivências de estudantes na Unila, já que ela se coloca como a Universidade
Federal da INTEGRAÇÃO Latino-Americana. A complexidade das relações que ali se
estabelecem limita as possibilidades de abordagem que se foquem na diversidade, diferença ou
apenas na multiculturalidade. Perspectivas que reconheçam essas questões, mas as pensem a
partir de princípios relacionais como intersubjetividade e interculturalidade têm, a nosso ver,
uma possibilidade maior de alcançar resultados mais densos, em especial, no que temos nos
focado enquanto hipótese: as relações entre estudantes provenientes de diferentes contextos
históricos, sociais, culturais e políticos tem produzido uma identidade que ressignifica a
experiência universitária e, no processo, a própria universidade. Esta questão pode ser percebida
nas falas dos estudantes. Primeiro, Fabiano:
E tipo com o tempo cara, eu aprendi muito sobre a América Latina, no ciclo comum
a gente tem América Latina. Nossa aprendi coisas assim que eu já deveria saber e eu
nunca me interessei, nunca me interessei. É tipo, conversar sabe... Tipo, ver a cara do
boliviano, peruano e “Nossa eles têm cara de indígena mesmo”. Você acha que é uma
coisa que não é, que só a TV mostra, mas realmente eles têm cara de indígena e eles
são pessoas como você. E até uma coisa que agora me fez lembrar disso, é muito,
muito... Uma coisa agarrada de engenharia no Brasil: “Ah, você tem que ter cara de
engenheiro”. É sério e te leva a pensar. Te leva a pensar que um cara que tem cara de
indígena não pode fazer engenharia porque não combina, tem cara de indígena. E eu
senti até eu senti isso sabe quando eu vim: “Não o cara não tem...”. Porque ter esse
pensamento ridículo? O cara faz a mesma coisa que eu, estuda a mesma coisa. E tipo,
hoje e eu estou estudando vou pedir ajuda pra um peruano. Tem coisa que eu não
entendo cara, eles me ensinam isso e nessas horas que você vê, o cara tem a mesma
capacidade de estudar (FABIANO, 2015).
A fala de Fabiano relata processos em que a inter-relação entre diferentes produziu
transformações subjetivas e políticas na experiência desses sujeitos. No caso de Fabiano, temos
aquela que seria a possibilidade movedora dessa política integracionista. Em primeiro lugar, o
aprofundamento de um saber histórico e social sobre o continente latino-americano. Isso pode
gerar ou adensar sentimentos de pertencimento que ampliam a noção de nós para latinoamericanos, na superação ou problematização de divisões nacionais, linguísticas, religiosas e,
por que não dizer, futebolísticas. Num segundo momento, uma possibilidade de longo prazo de
desconstrução de preconceito e construção de igualdade.
A convivência desde princípios interculturais e intersubjetivos – através de uma
coexistência entre diversidades construídas, afinal, não existem diferenças naturais ocasionadas
pela cor da pele ou constituição facial, a não ser aquela meia dúzia de genes responsáveis por
tais características fenotípicas – permite perceber uma desconstrução de um preconceito latente
281
e, a partir disso, o aplainamento de desigualdades através do reconhecimento do outro como
um nós. Esse movimento de deslocamento do outro em nós – atentemos sempre para a
pluralidade presente nesta palavra – possibilita uma ampliação da igualdade e de seu
reconhecimento que acreditamos possa ser mais sólido, pois existe a superação de barreiras
entre nós/eles que dividem, positiva ou negativamente, os grupos sociais.
Relacionado a esta questão, temos o caso de Tuane, de origem trabalhadora, de
nacionalidade uruguaia e discente do curso de história, entrevistada em 2013. Podemos perceber
um outro conjunto de consequências da criação de espaços e políticas interculturais:
E a nossa vida e a universidade, o próprio nome da universidade é “Integração LatinoAmericana” então a gente vive a partir disso. A gente constitui nossas amizades,
constitui as nossas brincadeiras, os nossos próprios jogos internos do que entende por
integração, do que América Latina é porque a gente ta aqui. Então tem pessoas que
rejeitam sim, mas essas pessoas ou vão ter que deixar isso de lado ou vão ter que calar
por toda a sua vida. Porque uma pessoa que ta aqui e se manifesta de forma xenofóbica
a gente vai contra isso, vai tentar ir contra isso. A gente teve caso de homofobia, teve
casos já de xenofobia, em 2011, e a gente foi em cima... A gente sabia quem eram as
pessoas. A gente não identificou publicamente para não fazer mal também à pessoa,
mas a gente fez um escracho e aí interferiu na autoridade da Unila e essas pessoas
tiveram que deixar de fazer essas práticas xenofóbicas e homofóbicas e foi assim que
a gente conseguiu. [...] O próprio processo do tempo vai dar que em algum momento
essas pessoas deixem de pensar assim, deixem de ser... [...] Principalmente porque as
fronteiras são construções imaginárias... (TUANE, 2013).
O processo trazido por Tuane é um pouco distinto. Aqui, emerge a visibilização, o
empoderamento e a confrontação com sentimentos preconceituosos que permeiam a sociedade.
Em uma universidade, pode-se criar mecanismos de relativo aplainamento de assimetrias
sociais e de horizontalização da prática política, o que permite que grupos ou indivíduos
excluídos pela sua diferença possam resignificar esse espaço e, a partir disso, reivindicar seu
pertencimento ao “nós” universitário. Esta possibilidade está expressa em sua fala. Afinal, não
são “nós uruguaios”, “nós mulheres” ou “nós gays” que são operacionalizados quando fala,
mas “a gente” que amplia o grupo de pertencimento para além de divisões de gênero, classe ou
nacionalidade. Constrói um “nós” inclusivo que coloca fora de suas fronteiras aqueles que
rejeitam a própria possibilidade de existência de um “nós”, pois enfatizam a diferença
transformada em desigualdade. Cria-se uma comunidade, a “comunidade unileira”. Essa lógica
é reafirmada em outras entrevistas. Vejamos exemplos:
Entrevistador: Uhum. Você acha que o fato de a Unila ter essa proposta institucional
de misturar diferentes culturas, diferentes nacionalidades, interfere na forma como
vocês convivem com estas pessoas?
Renato: Definitivamente.
Entrevistador: Uhum. Você pode falar um pouco sobre isso...?
282
Renato: Definitivamente. Eu acho que para todo mundo, a Unila foi muito
desconstrutora, desconstruiu toda uma realidade dogmática que tínhamos, sobre quem
é o outro, sobre identidade. Para mim hoje, a identidade já não é mais o que era antes,
que era uma espécie de região, de círculo, que tinha que se reafirmar constantemente.
Se não que é uma concisa perceptível, você não é, você vai sendo. Você não é cubano,
você vai sendo cubano. E isso mudou muito minha percepção do que eu sou, do que
você é, do que o outro é... Teve uma revolução eu acho, na mente de todos os unileiros.
[...] E jovens responsáveis, consequentes e dispostos a melhorar nossa realidade, uma
realidade que está bastante complexa (RENATO, 2017).
O grupo social constituinte da identidade “unileira” é significado desde a ideia de
responsabilidade, do desenvolvimento da capacidade de melhorar “nossa realidade”, a
“realidade” latino-americana. Renato incorporou, na identidade “unileira”, a transformação da
sociedade que passa da identificação de um grupo estudantil, em um sentido identitário com
um aprofundado senso de futuro, para um horizonte de expectativas marcado pela integração
latino-americana que melhoraria suas condições sociais. Ao mesmo tempo, quando coloca a
perspectiva desta identidade em movimento, você “vai sendo” ao invés de apenas “ser”, permite
uma historicização das perspectivas dos unileiros. A transformação deixa de ser um momento
e passa a ser uma constante, uma marca, uma característica definidora desta identidade.
Profundamente ligada na perspectiva de superação de mazelas sociais a partir da
responsabilidade destes jovens, ancora-se numa percepção da integração. Da América Latina
integrada como um fim, um projeto em seus horizontes de expectativas, mas também um meio,
uma forma de ver e perceber o mundo a sua volta. Importa destacar que essa interpretação se
apropria de narrativas presentes no próprio projeto de fundação da Unila. A integração latinoamericana como motor de desenvolvimento social esteve no horizonte de expectativas dos
organizadores de seu projeto. Portanto, podemos perceber como a significação da experiência
estudantil utilizou elementos desse projeto disseminado institucionalmente e o incorporou
subjetivamente.
A percepção dessa incorporação subjetiva fica mais evidente quando pensamos a forma
como os entrevistados percebiam a América Latina como região de pertencimento antes do
ingresso na Unila. No primeiro capítulo, ao dialogar com a narrativas de Tuane, Renato e
Marcos, discutimos, de maneira inicial, esta questão. Aqui, ela assume outro lugar, pois
evidencia uma transformação identitária causada pela apropriação de narrativas presentes na
instituição. Os entrevistados tinham leituras distintas a respeito de seu lugar, do lugar de seu
país e de seu grupo social na América Latina. De forma geral, a percepção se dava muito mais
como parte de uma nacionalidade que como parte de uma suposta “latinoamericanidade” ou
algo do gênero. A posição de Roberto é ilustrativa, tanto do posicionamento inicial de
283
afastamento da ideia de América Latina quanto da aproximação ocorrida durante a trajetória
estudantil na Unila:
Olha, a Unila te muda totalmente. Te muda... É uma mudança de percepção da vida,
da sua... Eu não me achava nem tão latino-americano. Era uma coisa ridícula, podia
dizer que eu era costarriquenho só, e eu sabia que estava localizado na América
Central. Mas o negócio de eu falar que sou latino-americano, que me sinto orgulhoso
e tal, cresceu só aqui na Unila e, tipo, agora quando eu falo que eu sou latinoamericano eu sinto muito orgulho. Me identifico muito com a região e acho que isso
foi por causa de um sentimento da Unila. Foi um sentimento por conta dos meus
parentes, dos meus amigos, por exemplo, lá na Costa Rica eu falo: “Cara, você tem
que pesquisar, tem que conhecer da sua região”. Mas eu acho que eu só compreendo...
A experiência muda o seu pensamento (ROBERTO, 2017).
A experiência, na Unila, não apenas transforma a percepção do sujeito, mas faz com que
Roberto passe a disseminar essa identificação latino-americana. Se observarmos o projeto
Unila, apresentado no capítulo 3, à luz da fala de Roberto, Renato, Fabiano, Tuane e as demais
entrevistas, podemos perceber que aquele projeto se realizou, pelo menos no âmbito da
incorporação de um sentimento de identidade latino-americana na subjetividade destes sujeitos.
A ideia de integração regional, marcada pela possibilidade de transformação das condições
sociais, políticas, econômicas e culturais desse espaço são reproduzidas nas narrativas que
citamos. Mais que isso, é incorporada no próprio significado definidor da identidade unileira:
Pra mim unileiro é comprar uma camiseta pela integração, e pelo companheirismo, e
por querer alcançar um sonho, que eu acho que a construção ficou muito grande para
a gente. Ficou muito, muito grande mesmo e a gente não está conseguindo isso na
Unila, unir nós como unileiros também. O sentimento está se perdendo muito. É como
eu falei, no início eu comprei o projeto, eu estava compromissado com a universidade,
mas aos poucos fui vendo que eu estava lutando sozinho. E as poucas pessoas que
estavam comigo, tipo, foram se afastando ou voltaram para o seu país. Acho que
unileiro é.... é uma casa, é uma formação. Eu mudei muito quando eu cheguei aqui.
Sou uma pessoa totalmente diferente (BERNARDO, 2016).
Bernardo centra sua fala nas dinâmicas de integração e companheirismo. A continuidade
da presença da integração como elemento definidor do unileiro é significativa. Ao ser
questionado diretamente sobre o significado dessa identidade, Bernardo, em 2015, mantinha a
percepção que esteve presente no conjunto de entrevistas de 2013 e, posteriormente, em 2017,
assim como nas fontes estudantis apresentadas no capítulo 4, provenientes do Youtube e de
reportagens, em 2010 e 2012. Lembremos, juntamente com Sahlins (1990), a ideia de que a
continuidade também é um fenômeno histórico. Se nós historiadores somos, em grande medida,
atraídos pelas transformações, a existência de uma continuidade, mesmo que seja num tempo
284
de curta duração, como é o nosso caso, é historicamente significativa. Mas temos de atentar que
essa continuidade é também transformação. Expliquemos.
Ao focarmos nosso olhar na experiência estudantil da Unila, vemos uma narrativa que
valoriza a integração, a solidariedade e o companheirismo como sentidos centrais desta
experiência. Isso ocorre ao longo de todo nosso recorte e constitui-se como uma continuidade.
Essas três dimensões foram constantes na significação da identidade “unileira”. Mesmo com
idas e vindas de estudantes, estes sentidos foram constituídos como uma permanência. Dessa
forma, estas narrativas criaram uma temporalidade sincrônica que permitiu a identificação entre
estudantes dos diversos anos com estruturas de significação semelhantes a respeito de suas
experiências.
Se existe a constituição desta temporalidade sincrônica, a formulação destes sentidos
não abandona a diacronia. Se observarmos os estudantes enquanto indivíduos, vemos que suas
subjetividades são transformadas ao longo da trajetória estudantil. Enquanto olhamos para a
significação da experiência universitária dentro da identidade “unileira”, isto é, entre os
estudantes como grupo, percebemos a integração latino-americana como uma continuidade.
Entretanto, se focarmos nosso olhar para as subjetividades dos indivíduos, esta identificação
como “unileiro” e com a integração latino-americana é uma transformação. A fala de Roberto
é especialmente clara sobre esta questão. Ele não se pensava como latino americano e é a
trajetória, na Unila, que transforma esta percepção. Assim, a identidade “unileira” é, ao mesmo
tempo, continuidade histórica, quando pensada enquanto grupo e enquanto conjunto de
significados e, também, transformação, quando focamos nossas lentes nos estudantes de
maneira individualizada. Enquanto individualmente se constituiu diacronicamente ao
ressignificar as subjetividades, quando tomados como grupo, constituiu-se como uma
intersubjetividade com significados sincrônicos. É possível, então, perceber a dimensão
relacional da diacronia e sincronia, uma das questões que propúnhamos.
Se elementos como integração, companheirismo e solidariedade são constantes na
constituição da identidade unileira, há também elementos conjunturais. Esses elementos podem
ser ativados a partir de desenvolvimentos sociais e históricos com os quais os estudantes se
envolvem direta ou indiretamente. Um bom exemplo está contido na fala de Marla. Ao narrar
os usos do termo unileiro, ela afirma:
Às vezes quando usam o termo de unileiro... Assim, por exemplo: “Ah, isso aí tem
cara de Unilero”, que é mais liberal, que é mais de esquerda – que não são todos os
estudantes da Unila – é mais como uma generalização. Que discute as políticas, que
está inteirado sobre as políticas da América Latina, que é contra o governo Temer,
que é contra a PEC, coisas assim mais de ativismo que identificam como unileiro, e
285
também maconheiro que eu sei que utilizam como sinônimo maconheiro e unileiro
(MARLA, 2017).
A preocupação com as condições sociais e econômicas latino-americanas se repetem.
Ela, que é mexicana, apresenta os usos da identidade “unileira” baseado em elementos
marcados pela preocupação com os problemas que identifica na região. Dessa forma, se
apropria dos elementos de continuidade nesta identidade. Entretanto, sua fala também permite
entrever a ativação de dimensões conjunturais na identidade “unileira”. Assim, dentro da
preocupação com as condições sociais – uma constante – temos a relação dos estudantes com
o governo Temer, no poder a partir de 2016, e a PEC-55 ou a PEC do controle de gastos
promovida por esse governo e em discussão no parlamento brasileiro, no período da entrevista.
Para finalizar, apresentamos mais uma fala de Renato. Sua entrevista esteve entre as
mais instigantes e o constante uso dela, na tese, não foi um acaso. De articulação excelente e
com uma capacidade de análise diferenciada, o estudante cubano pode apresentar dimensões
que outras entrevistas não alcançaram. A fala, a seguir, apresenta uma compreensão
aprofundada que dialoga com nossa perspectiva de identidades, com nosso objeto e com nossa
leitura e posição em relação à proficuidade que uma universidade como a Unila pode ter:
Eu acho que essa questão de uma identidade comum está diretamente relacionada às
ações, a ideias. E ação na Unila eu acho que é a razão de reclamação, de não
conformidade e é uma coisa que todos nós temos. Todos nós temos nossas
particularidades, mas todos nós temos governos que não são os que mais desejaríamos,
todos nós temos países com muita pobreza, todos nós temos muitas demandas, e
também todos nós temos muita vontade de mudar essas realidades. Então acho que
conseguimos formar um corpo unificado de ideias, e de vontade política. E de
vontades em geral... Um corpo moral para alimentar com isso o motor da integração
latino-americana. E eu acho que todo mundo se sente identificado com tudo aquilo
que está relacionado a uma espécie de intercâmbio entre os povos, não somente
cultural, mas acadêmica também, ou econômico (RENATO, 2017).
Esta identidade comum, fruto de um “corpo de ideias”, não deveria, em sua perspectiva,
ser apenas um processo subjetivo. Para Renato e, como vimos, para os demais entrevistados,
ela só faz sentido quando ativada na ação social. A identidade proveniente de um espaço
historicamente marcado por inúmeras mazelas como pobreza, desemprego, preconceitos
diversos – de raça, gênero, de origem de lugar, etc – baixo acesso à educação de qualidade,
desigualdade social, corrupção, etc, o “unileiro” se apresenta e entende-se como um agente que
busca lutar pela transformação desse contexto social. A prática política que emerge dessa
identidade comum articula o projeto de integração latino-americano, apropriado do conceito de
integração horizontalizada e solidária presentes no projeto institucional da Unila, como
alternativa de desenvolvimento histórico para a região. A imprecisão, nas falas dos estudantes,
286
da definição do que seria essa integração possibilita apropriações diversas que podem se focar
em dimensões como a cultura, a política, a economia e as sociabilidades, de acordo com as
temáticas mais sensíveis a cada grupo. Ao fluir entre passado, presente e futuro, constituiu-se
uma identidade e uma utopia.
287
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste trabalho, buscamos pensar construções e ressignificações identitárias de
estudantes da Universidade Federal da Integração Latino-Americana, Unila. Marcados por uma
coexistência intercultural, a trajetória dos estudantes, seus espaços de experiência e seus
horizontes de expectativas constituíram objeto de nossas análises. Para tanto, esforçamo-nos
por compreender suas narrativas e vivências num diálogo entre dinâmicas universitárias e
citadinas. Nesta relação, pudemos acompanhar o desenvolvimento e a transformação da
identidade unileira, incorporada e transformada na subjetividade dos entrevistados.
Estudantes (i)migrantes de diferentes lugares da América Latina construíram, na Unila,
um espaço de convivência intercultural. Este espaço, longe de idealizado, é calcado em diversos
tensionamentos, trocas e diálogos. Esta relação foi sintetizada no “unileiro”. Misto de
identidade e utopia de harmonia entre povos e culturas, esta figura, constante nas falas dos
estudantes, enfrenta e enfrentou, internamente e na relação com Foz do Iguaçu, desafios
diversos. Numa cidade marcada por um processo oficial de tentativa de constituição de uma
narrativa de multiculturalidade, os “unileiros” continuam a sofrer preconceitos diversos. Mais
que isso, na constituição da intensa polarização política da última década, tanto a universidade
quanto seus estudantes têm sido estigmatizados como algum tipo de projeto de poder
esquerdista/comunista. Preconceito contra a origem de lugar, tensões de gênero (tristemente
marcadas pelo assassinato de Martina, em março de 2014), racismo e tensões políticas
continuam por atravessar as experiências e identidades dos estudantes da Unila.
O enfrentamento destes desafios, no cotidiano dos estudantes, levou a constituição da
identidade “unileira” nos moldes fluídos apresentados. Desafiados a encarar preconceitos
diversos, construíram e reconstruíram-se, subjetivamente, no processo, numa identidade
calcada na alteridade. Ressignificaram o ideal de integração latino-americana proposto pela
universidade e construíram uma proposta própria com pontos em comum, mas com
sensibilidade aguçada que se baseia numa horizontalidade social, num olhar e apreender do
outro, seus ensinamentos, suas habilidades, sua forma de ver e viver o mundo. Sem dúvida, essa
perspectiva não é unânime entre os estudantes. Subjetividades tão diversas geram e geraram
apreensões distintas desse projeto de América Latina. Entretanto, a força narrativa e a
enunciação constante desta ideia nos faz concluir que esta é uma proposta que reverberou
fortemente entre os unileiros. Funciona, dessa forma, como um dos elementos constitutivos das
identidades dos estudantes dessa instituição.
288
Se as trajetórias dos estudantes passam por percalços, ao longo de sua experiência
discente, o mesmo podemos dizer da própria universidade. Encerramos nossas entrevistas e,
também, nosso recorte histórico, em abril de 2017. Em julho deste ano, foi apresentada uma
emenda à medida provisória 785/2017 com uma proposta para a transformação da Unila em
Universidade Federal do Oeste do Paraná – UFOPR. Esta englobaria a Unila e campi da UFPR,
em Toledo e Palotina. Além da expansão, a missão institucional, que no caso da Unila engloba
a promoção da integração latino-americana, seria mudada e aproximada das missões
institucionais das universidades federais “tradicionais”. Essa proposta teve grande repercussão
e resistência na comunidade estudantil. Acabou por ser retirada pelo próprio proponente,
Deputado Sérgio Souza (MDB-PR), ainda em 2017.
Em um ambiente marcado por profundas restrições orçamentárias para as universidades,
polarização política, leituras infantilizantes da conjuntura política e teorias da conspiração
disseminadas na sociedade, o presente e o futuro da Unila requerem cuidados. Tendo seu
projeto, assim como o da Unilab, socialmente identificados com os governos petistas, a
legitimidade de sua existência tem sido questionada em discursos mais conservadores,
preocupados com uma “onda bolivariana” que tomaria o país. Essa questão, infelizmente, não
é novidade. Ataques a universidades em geral e, em especial, àquelas não identificadas com a
ideologia dominante são uma constante em nossa história. O caso da Universidade do Distrito
Federal, fechada pelo Estado Novo, ou da UnB, atacada pela ditadura militar, são exemplos.
Neste momento, durante a campanha eleitoral de 2018, ataques à gratuidade e a própria
existência de um ensino universitário público têm sido frequentes. Ao unir a identificação,
mesmo que relativamente artificial, da Unila com a esquerda e o discurso de corte de verbas, o
ambiente não parece promissor.
Para complexificar esta questão, ao longo da escrita desta tese, grande parte do planeta
teve seus olhos voltados para a consolidação de discursos virulentos a respeito da imigração e
da coexistência multicultural. A ascensão eleitoral da extrema direita em diferentes lugares do
mundo tem sido, em vários casos, pautada num discurso questionador das políticas migratórias.
Marine Le Penn, na França, Brexit, no Reino Unido e Donald Trump, nos EUA, fizeram dos
“perigos” da imigração pautas centrais de suas campanhas. No ano de 2018, o próprio Brasil
tem enfrentado esta questão. A crise na Venezuela provoca uma onda de refugiados nos estados
do norte brasileiro, para a qual não há respostas eficientes. No começo de agosto, inclusive, foi
decretado – e logo levantado pelo STF – um bloqueio da fronteira entre Roraima e a Venezuela.
Também para a multiculturalidade e, consequentemente, para a interculturalidade, o ambiente
parece hostil.
289
Neste universo de desafios, diferentes questões foram levantadas por nós. Ao mesmo
tempo em que evidenciamos dimensões da experiência estudantil que consideramos centrais
para a ressignificação identitária nesse ambiente intercultural, outras foram deixadas em aberto.
Duas chamam a atenção. Primeiramente, a dupla dimensão da evasão e do egresso estudantil.
Destacamos, em diferentes momentos, que havíamos recortado a seleção de entrevistados para
estudantes que estavam a frequentar a Unila. A única exceção foi Cezar que era recém-formado
e fazia mestrado na PUC-SP. Este recorte tem como limite a impossibilidade de compreender
os desdobramentos da experiência na Unila, bem como as ressignificações da identidade
“unileira” a partir do momento em que os estudantes se desligaram dela.
No caso dos egressos, seria interessante a realização de um acompanhamento qualitativo
destes indivíduos para problematizar a densidade dos sentidos identitários constituídos na
instituição quando do retorno ao país ou do ingresso no mercado de trabalho. Esta é uma tarefa
para outras pesquisas. Uma questão diferente se coloca quando falamos dos evadidos.
Problematizar suas trajetórias e suas leituras sobre a Unila e a identidade “unileira” seria de
grande valia para a complexificação da compreensão de contradições e limites para essa
identidade e os sentidos que a ela foram agregados por nossos entrevistados. Fica o convite para
pesquisas que tomem estes dois grupos como objeto e, com base neles, revisitem as narrativas
problematizadas neste texto.
Quanto a segunda questão, a fronteira trinacional se localiza numa clave diferente.
Quando iniciamos nosso trabalho, acreditávamos que a fronteira seria um elemento central para
a constituição das identidades e narrativas dos estudantes. Entretanto, se foi fundamental para
a construção da identidade cultural de Foz do Iguaçu e, também, para a legitimação da
localização da Unila, ela se tornou secundária nas entrevistas. Todos os estudantes foram
provocados a falar sobre como percebiam a fronteira, se mantinham relações de alguma forma
com Paraguai e Argentina e de que forma utilizavam esse espaço. Com exceção de ocasionais
referências a compras de eletrônicos, especialmente celulares e computadores, a fronteira
praticamente não surgiu em suas falas. Essa foi uma das surpresas da pesquisa. Pensávamos
que o discurso citadino e da universidade de aproximação simbólica com a fronteira
reverberasse entre os estudantes. Entretanto, tal reverberação não foi possível de ser percebida.
A pouca presença da fronteira nas narrativas pode ser explicada por algumas
especificidades da experiência na Unila. Primeiro, a frágil condição econômica de muitos
estudantes. Isso torna a mobilidade, mesmo urbana, limitada. Em muitos casos, a movimentação
pela cidade ocorre apenas a partir do auxílio transporte fornecido pela universidade. Esta
290
condição também explica o uso da fronteira para o comércio. Afinal, compras em Ciudad Del
Este – PY, podem ser significativamente econômicas. Outra questão é o volume de atividades
as quais os estudantes estão submetidos para realizar seus cursos. Muitas vezes, envolvidos em
aulas, projetos de pesquisa e/ou extensão, podem ter seu tempo livre reduzido por tais
atividades, o que limita a ocupação e os usos do espaço da fronteira. Por fim, as relações de
sociabilidade desses estudantes são marcadamente internas à universidade, em especial quando
falamos de estudantes migrantes. Sendo assim, muitas vezes, cria-se uma autossuficiência
material e subjetiva em torno da universidade, o que limita usos de outros espaços. De toda
forma, mesmo atentos a essas possibilidades, foi-nos surpreendente o silenciamento sobre a
fronteira trinacional em suas narrativas.
Em que pese as questões apresentadas e dessas considerações finais, gostaríamos de
finalizar em uma chave mais positiva. Sem dúvidas, os desafios para a existência de uma
sociedade intercultural são significativos. Entretanto, acreditamos que as narrativas e as
experiências dos estudantes abordadas evidenciaram o potencial que a constituição de espaços
de promoção do conhecimento e, também, da convivência intercultural têm para a construção
de uma sociedade mais democrática. As ressignificações nas identidades e subjetividades dos
estudantes produziram uma leitura e atuação no mundo vinculada a essa possibilidade. Descer
no aeroporto ou na rodoviária de Foz do Iguaçu não representou apenas uma mudança de
cidade, mas também a incorporação de uma perspectiva de futuro na qual a coexistência cultural
seja não apenas possível, mas também desejável.
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Disponível em: <http://resistenciamilitar.blogspot.com.br/>. Acesso em: 2 abr. 2018.
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Dinponível
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<http://unileiros.blogspot.com.br/2010/09/os-unileiros-apresentacao.html>. Acesso em: 28
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em:
YOUTUBE. Canal Rádio Cultura am. Confronto entre estudantes da Unila e Policia Militar
Pr. 2012a. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xyneCDJCPC8>. Acesso em:
2 mar. 2018.
YOUTUBE. Outro Olhar - "Violência policial contra estudantes da Unila". 2012b. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=AYCk_lLBv2c. Acesso em: 15 mar. 2018.
YOUTUBE. Canal Jovem Pan News . MEC deve explicar tudo sobre a Universidade
Federal
da
Integração
Latino-Americana.
2016.
Disponível
em:
<https://www.youtube.com/watch?v=sOxjFxj0DgY>. Acesso em: 3 abr. 2018.
APÊNDICE I
Antonio: Estudante de Relações Internacionais, chileno, tinha 23 anos em 2013,
momento da entrevista. Proveniente da cidade de Santiago, capital do Chile, ingressou na
Unila em 2011. Antes de vir para a Unila residia com seus pais, tendo ingressado na
Universidade de Santiago. Ali permaneceu por 2 anos antes de vir para a Unila.
Angela: Estudante equatoriana, tinha 24 anos em 2017, momento da entrevista. Se
formou em Relações Internacionais em 2016 e ingressou no Mestrado em Integração
Contemporânea da América Latina em 2017. Proveniente de Portoviejo, cidade de cerca
de 220 mil habitantes no Equador. Antes de ingressar na Unila, havia passado um
semestre em São Paulo por um projeto de intercâmbio do clube Rotary.
Bernardo: Estudante equatoriano, tinha 22 anos em 2016, momento da entrevista.
Proveniente de Orellanas, interior do Equador, veio para a Unila em março de 2012
estudar Relações Internacionais. Antes disso, havia começado a cursar Medicina em
Quito, de onde desistiu e, na sequência ingressou em Comércio Exterior e, por fim
abandonou esse curso para voltar para Medicina, de onde saiu para vir para a Unila cursar
Relações Internacionais.
Clóvis: Estudante salvadorenho, tinha 24 anos em 2015, momento da entrevista.
Ingressou na Unila em 2012 no curso de Engenharia Civil. Morador da capital do país,
estudou um ano de Engenharia Mecânica na Universidad de El Salvador antes de
ingressar na Unila.
Cláudio: Estudante brasileiro, tinha 23 anos em 2016, momento da entrevista. Ingressou
na Unila em 2014 no curso de História. Proveniente do interior do estado de São Paulo,
residia desde 2010 em Natal-RN, onde ingressou no curso de História da UFRN.
Interessado na discussão de América Latina promovida pela Unila, mudou seu curso de
história para essa instituição.
Cezar: Estudante equatoriano, tinha 24 anos em 2017, momento da entrevista. Ingressou
na Unila em 2013 no curso de Relações Internacionais e Integração, no qual se formou
em 2016. No momento da entrevista residia em São Paulo, onde cursava mestrado em
Relações Internacionais. Antes de ingressar na Unila estudou 2 anos de Eletrônica e
Comunicações em uma escola técnica de Loja, cidade do interior do Equador.
Fabiano: Estudante brasileiro, tinha 24 anos em 2015, momento da entrevista. Ingressou
na Unila em 2011, no curso de Desenvolvimento Rural e Segurança Alimentar, de onde
migrou para o curso de Engenharia Civil no segundo semestre de 2011. Proveniente de
uma cidade vizinha de Foz do Iguaçu, Francisco Beltrão, Estudava Tecnologia em
Alimentos na UTFPR antes de ingressar na Unila.
José: Estudante colombiano, tinha 23 anos em 2015, momento da entrevista. Ingressou
na Unila em 2014 no curso de Ciências Biológicas. Antes de ingressar na Unila estudava
Química em uma universidade em Bogotá. De lá, se transferiu para Foz do Iguaçu.
Marcos: Estudante brasileiro, tinha 24 anos em 2017, momento da entrevista. Morador
de Foz do Iguaçu. Egresso do cursinho Ingressa, entrou na Unila em 2015 no curso de
Geografia. Tinha a intenção de mudar para o curso de Cinema, mas acabou permanecendo
no curso inicial.
Marla: Estudante mexicana, tinha 26 anos em 2017, momento da entrevista. Discente do
Mestrado Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos – UNILA, é formada em
Língua e Literatura Hispânica na Universidad Veracruzana. Entre a graduação e o
mestrado, trabalhou dois anos em um departamento de uma editora no México, com o
objetivo de angariar recursos para vir ao Brasil estudar Fandangos Caiçara.
Natalia: Estudante chilena, tinha 29 anos em 2017, momento da entrevista. Formada em
fisioterapia, estudava no terceiro ano de Arquitetura e Urbanismo. Antes de vir para a
Unila, trabalhou por 5 anos em um escritório de arquitetura. A entrevista foi realizada em 9
de abril de 2017, via Skype.
Renato: Estudante cubano, tinha 21 anos em 2017, momento da entrevista. Em Cuba,
estudava Engenharia Elétrica quando, em 2016, mudou para a Unila, para o curso de
Ciências Econômicas. Em seu país de origem trabalhava como músico em áreas turísticas
para incrementar a renda familiar.
Roberto: Estudante costarriquenho, tinha 21 anos em 2017, momento da entrevista.
Cursava Medicina antes de vir para a Unila estudar Saúde Coletiva. Morava sozinho na
capital da Costa Rica, não exercia atividades profissionais.
Tuane: Estudante uruguaia, tinha 21 anos em 2013, momento da entrevista. Estava no
terceiro ano do curso de História. No Uruguai, morava sozinha em Montevidéu e
trabalhava em um call center.
Valéria: Estudante chilena, tinha 20 anos em 2013, momento da entrevista. Estudante do
curso de Ciência Política, estudava Sociologia em Santiago, capital do Chile, onde residia
antes de vir para a Unila. Foi a única entrevista concedida em espanhol. A entrevista foi
realizada em 16 de julho de 2013 na biblioteca do antigo campus da Unila-Centro.