Tradução e Autoria
TRADUÇÃO
E AUTORIA
COLEÇÃO – ‘NAS TRILHAS DA TRADUÇÃO’
VOL. II
Sumário
|1
2|Prefácio
Conselho Editorial
Álvaro Faleiros (USP)
Anasthasie Angoran (Univ. Félix Houphouët-Boigny)
Carolina Paganine (UFF)
Fabiele Stockmans De Nardi (UFPE)
Fatiha Dechicha Parahyba (UFPE)
Germana Henriques Pereira (UnB)
Helena Topa Valentim (Universidade Nova de Lisboa)
Ines Oseki Depre (Université d’Aix – en-Provence)
José Hélder Pinheiro (UFCG)
José Lambert (Katholieke Universiteit Leuven)
Josilene Pinheiro-Mariz (UFCG)
Luana Ferreira de Freitas (UFC)
Marc Charron (Université d’Ottawa)
Marcelo Paiva de Souza (UFPR)
Marta Pragana Dantas (UFPB)
Muguras Constantinescu (Univ. Stefan Cel Mare/Suceava)
Pedro Heliodoro de Moraes Branco Tavares (USP)
Philippe Humblé (Vrije Universiteit Brussel)
Roberto Mulinacci (Università di Bologna)
Walter Carlos Costa (UFSC/UFC)
Sumário
Tradução e Autoria
TRADUÇÃO
E AUTORIA
Marie Hélène Catherine Torres (UFSC)
Maura Regina da Silva Dourado (UFPB)
Sinara de Oliveira Branco (UFCG)
Organizadoras
COLEÇÃO – ‘NAS TRILHAS DA TRADUÇÃO’
VOL. II
Ideia
João Pessoa
2014
Sumário
|3
4|Prefácio
Todos os direitos reservados às organizadoras.
A responsabilidade sobre textos e imagens
é do respectivo autor.
Editoração/Capa
Magno Nicolau
Revisão
Jose Temístocles Ferreira Júnior
Este livro foi publicado com verba da CAPES.
Projeto Dinter NF 2041/2009.
T763
Tradução e autoria / Marie Hélène Catherine Torres, Maura
Regina da Silva Dourado, Sinara de Oliveira Branco (Orgs.).
Vol. II. Col. Nas trilhas da tradução. - João Pessoa: Ideia,
2014.
221p.
ISBN 978-85-7539-949-1
1. Tradução – autoria
CDU 82.03
EDITORA
www.ideiaeditora.com.br
Impresso no Brasil – Feito o Depósito Legal
Sumário
Tradução e Autoria
|5
A P R E S E N T A Ç Ã O ..................................................... 7
Marie-Hélène Catherine Torres
Maura Regina da Silva Dourado
Sinara de Oliveira Branco
ENCANTOS NOTURNOS EM MANUEL BANDEIRA ... 13
Ana Cristina Cardoso
TRADUÇÃO: DIALOGISMO EM CONCEPÇÕES
PARAFRÁSTICAS .............................................................. 29
Araken G. Barbosa
MATAR OU CRIAR O “AUTOR”: O TRADUTOR
ENTRE BARTHES E BORGES .......................................... 43
Artur Almeida de Ataide
AUTORES/TRADUTORES PORTUGUESES NO
SUPLEMENTO ARTE-LITERATURA .............................. 69
Izabela Leal
VERSÕES DE BRINQUEDO: UMA TRADUÇÃO
BRASILEIRA DOS POEMAS DE JULIAN TUWIM PARA
CRIANÇAS .......................................................................... 87
Marcelo Paiva de Souza
A CIRCULAÇÃO DE OBRAS FRANCESAS NO BRASIL:
REFLEXÕES ACERCA DE ALGUNS OBSTÁCULOS À
TRADUÇÃO ...................................................................... 119
Marta Pragana Dantas
Artur Fragoso de A. Perrusi
Sumário
6 | Apresentação
DESAFIOS DE TRADUZIR FREUD COMO AUTOR DE
UMA NOVA DISCURSIVIDADE .................................... 129
Pedro Heliodoro Tavares
KARL SCHÄFER E FRIEDRICH SCHLEIERMACHER:
CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS SOBRE O
TRADUZIR ........................................................................ 147
Tito Lívio Cruz Romão
HAROLDO/GLISSANT E O DIABO DO TRADUZIR ... 175
Luciano Barbosa Justino
OS PARATEXTOS EM ANTOLOGIAS BRASILEIRAS
DE EDGAR ALLAN POE ................................................. 197
Francisco Francimar de Sousa Alves
SOBRE OS AUTORES, ORGANIZADORAS E
REVISOR ........................................................................... 213
Sumário
Tradução e Autoria
|7
No ano de 2010, três universidades federais uniramse em torno de um Projeto de Doutorado Interinstitucional
na área de Estudos da Tradução (DINTER/Edital 05/2009 da
CAPES – Ação Novas Fronteiras) com o objetivo de estabelecer um polo de referência no ensino, pesquisa e formação de
professores-pesquisadores em Tradução na Paraíba. Essas
instituições e seus respectivos Programas de Pós-Graduação
são: Universidade Federal de Santa Catarina (instituição
promotora) - Programa de Pós-Graduação em Estudos da
Tradução (PGET), Universidade Federal da Paraíba (instituição receptora) - Programa de Pós-Graduação em Letras
(PPGL) e Universidade Federal de Campina Grande (instituição associada) - Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino (POSLE). O objetivo principal do DINTER é
investir na qualificação de recursos humanos das universidades, bem como em sua estrutura, com ênfase na PósGraduação e na pesquisa, visando formar professorespesquisadores para o ensino, a pesquisa, a extensão e, também, fortalecer grupos de pesquisa na área de tradução tanto
dentro da UFPB e da UFCG quanto através de parcerias com
outras IES.
Enquanto o primeiro volume intitulado Pesquisas em
Tradução objetivou socializar algumas das pesquisas realizadas pelos professores-doutorandos integrantes do Projeto
Dinter em Estudos da Tradução (UFSC-UFPB-UFCG), este
segundo volume da Coleção Nas Trilhas da Tradução, intitulado Tradução e Autoria, é fruto do fortalecimento do
diálogo e da parceria entre diferentes Grupos de Pesquisa e
seus respectivos pesquisadores com as universidades integrantes do projeto Dinter em Estudos da Tradução.
Sumário
8 | Apresentação
Graças à iniciativa do Programa de Pós-Graduação
em Linguagem e Ensino, da UAL-UFCG, instituição associada no Projeto Dinter em Estudos da Tradução, o I Colóquio
de Tradução e Autoria reuniu pesquisadores e tradutores de
várias instituições e grupos de pesquisa em Estudos da
Tradução de universidades federais do Ceará, Pernambuco,
Pará, Paraná e da Universidade de São Paulo. Vários desses
palestrantes e conferencistas, cordialmente, contribuíram
com suas pesquisas relacionadas à questão da autoria no
processo tradutório para este segundo volume da coletânea
Nas Trilhas da Tradução.
Ana Cristina Cardoso abre as discussões com texto
intitulado Encantos Noturnos em Manuel Bandeira, debruçando-se sobre os poemas “Chambre Vide” e “Noturno do Morro do Encanto”, que, embora escritos em francês e em português, respectivamente, versam sobre a temática da solidão
noturna. Tema caro ao poeta, o grande pesar de uma noite
solitária num quarto vazio é o sentimento vivido e revivido
pelo eu lírico nesses dois poemas. A autora ainda compara
três traduções para o português do poema “Chambre Vide”
com o objetivo de analisar as diferentes escolhas tradutórias
feitas por três tradutoras distintas.
Ressaltando a paráfrase como elemento coadjuvante
essencial de grande potencial criativo no processo tradutório, Araken Barbosa, no texto Tradução: dialogismo em concepções parafrásticas, apresenta elementos básicos do dialogismo em uma análise que confronta o entrelaçamento polifônico no discurso. O autor sinaliza para uma prática que
implica a relação fluida e contínua de seus participantes em
termos relacionados com a heteroglossia. Inclui a análise de
tópicos como o universo cultural tomado em uma perspectiva semiótica constituída dialogicamente que nos leva a
perceber o signo como um construto social.
Em Matar ou criar o “autor”: o tradutor entre Barthes e
Borges, Artur Almeida de Ataíde toma como ponto de parSumário
Tradução e Autoria
|9
tida a conhecida ideia da “morte” imposta ao “Autor”
(Barthes) tão logo aberto um livro e iniciada a projeção do
imaginário do leitor na cadeia de significantes sobre a página, como faz Pierre Menard (Borges). Ataíde analisa a tradução, para o português, de alguns aspectos formais
do endecasillabo da Divina Commedia e o pretexto que escondem para novas e necessárias multiplicações da efígie de
Dante em âmbito lusófono.
Voltando-se para o suplemento literário do jornal
Folha do Norte, que circulou em Belém do Pará de 1946 a
1951, Izabela Leal analisa, em seu texto intitulado Autores/
Tradutores Portugueses no Suplemento Arte-Literatura, o lugar
de escritores portugueses, tais como Camões, Alexandre
Herculano, João Gaspar Simões e Fernando Pessoa, que
comparecem em traduções e textos críticos publicados no
suplemento de artes do jornal. Leal investiga o lugar desses
escritores/tradutores, propondo uma reflexão que aborde
diferentes pontos de vista com que os autores pensaram a
identidade cultural portuguesa.
Marcelo Paiva de Souza argumenta que na opinião
unânime dos leitores – de todas as gerações, e não apenas
poloneses – a poesia de Julian Tuwim (1894-1953) voltada
para as crianças constitui uma das mais altas realizações do
autor e da poesia do séc. XX, na Polônia e no mundo. Nessa
linha, em Versões de Brinquedo: Uma Tradução Brasileira dos
Poemas de Julian Tuwim para Crianças, Souza busca evidenciar,
pelo prisma de um Tuwim traduzido, de uma tentativa de
traslado – ainda em curso – de algumas das obras mencionadas para o português do Brasil, as diversas facetas da instância autoral de uma operação tradutória determinada.
Marta Pragana Dantas e Artur Fragoso de Perrusi
relatam, no texto intitulado A circulação de obras francesas no
Brasil: reflexões acerca de alguns obstáculos à tradução, o resultado de entrevistas realizadas com editores e tradutores que
atuam no campo das traduções de obras francesas no Brasil.
As entrevistas revelam que obras de autoria francesa têm
pouco público no Brasil e, portanto, não vendem bem. Ao
Sumário
10 | A p r e s e n t a ç ã o
longo do relato, os autores instigam o leitor a pensar sobre os
obstáculos culturais enfrentados por essas traduções no país,
num contexto marcado pela hegemonia da língua inglesa e
pela liderança do mercado editorial de autoria angloamericana.
Pedro Heliodoro Tavares aborda os desafios de
traduzir Freud enquanto fundador de discursividade, nos
termos de Foucault (1969). Tavares defende que a tradução
de Freud não envolve tão somente o conhecimento das
línguas de partida e de chegada, bem como de uma boa
técnica de tradução. Para o autor do texto de Freud, traduzse também o substrato teórico que sustenta uma prática clínica amparada nas capacidades representacionais e transformadoras da palavra, visto que na estilística de Freud e nas suas
opções de vocabulário, forma e conteúdo confluem. Para usar
os vocábulos de Freud a respeito da formação dos sonhos,
chiste, atos-falhos ou de outras construções do inconsciente,
há que se levar em conta as Vorstellungen, representações
ideativas, e as Darstellungen, representações figurativas, presentes e conjugadas em seus escritos.
Tito Lívio Cruz Romão confronta as concepções de
traduzir adotadas por Friedrich Schleiermacher e Karl
Schäfer. Para tanto, retoma as trajetórias de ambos os teóricos da tradução. Friedrich Schleiermacher notabilizou-se, sobretudo, graças às suas traduções das obras de Platão em
língua alemã. No âmbito dos Estudos da Tradução, celebrizou-se com seu ensaio Ueber die verschiedenen Methoden des
Uebersezens [Sobre os diferentes métodos de traduzir], apresentado como conferência em 1813 e publicado em 1838, em
que aponta “os dois únicos caminhos” a serem percorridos
pelo “verdadeiro” tradutor: “ou o tradutor deixa o autor em
paz e leva o leitor até ele; ou deixa em paz o leitor e leva o
autor até ele”. Karl Schäfer, professor de liceu dedicado às
línguas clássicas e principalmente à tradução de textos gregos, publicou, em 1839, um ensaio intitulado Ueber die Aufgabe des Uebersezens [Sobre a tarefa de traduzir], em que criticava o método de tradução proposto por Schleiermacher, toSumário
Tradução e Autoria
| 11
mando como ponto de partida as ideias do próprio Schleiermacher e as traduções realizadas por Johann Heinrich
Voß, célebre tradutor de obras homéricas em alemão.
No texto Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir, Luciano Barbosa Justino articula três teorias da tradução: a "transluciferação" de Haroldo de Campos, a épica crioula de
Edouard Glissant e a "tarefa-renúncia" do tradutor de Walter
Benjamin. Em todos elas, traduzir nunca é renunciar à
historicidade do tradutor, antes se estabelece na tensão entre
o passado e o futuro do original, que só realiza sua plenitude
(Benjamin) numa tradução que o concebe como diferença e
opacidade, operação necessariamente diabólica (Haroldo) e
crioula (Glissant), nas quais tradução é outro nome que se dá
para o encontro com a alteridade.
No capítulo Os paratextos em antologias brasileiras de
Edgar Allan Poe, Francisco Francimar Alves reflete acerca de
paratextos enquanto elementos informativos que se caracterizam como facilitadores da leitura, e que podem influenciar
a recepção da obra na cultura de chegada. Para o autor, esses
discursos de acompanhamento apresentam-se de forma
diversificada nas coletâneas de contos de Edgar Allan Poe
traduzidas para o português, levando ao leitor informações
relevantes para além da informação básica de que Poe é o
mestre do conto gótico ou do terror psicológico. À luz dos
princípios teóricos de Gerárd Genette, Alves concentra-se
nos elementos paratextuais na antologia de contos de Poe
intitulada A carta roubada e outras histórias de crime & mistério,
traduzida por William Lagos e publicada pela L&PM em
2003 [2006], observando de que forma o autor e sua obra são
apresentados através desses discursos.
Marie-Hélène Catherine Torres
Maura Regina da Silva Dourado
Sinara de Oliveira Branco
(Organizadoras)
Sumário
12 | A p r e s e n t a ç ã o
Sumário
Tradução e Autoria
| 13
Ana Cristina Cardoso
Introdução
Ao tomar conhecimento de que Manuel Bandeira havia feito poemas em francês, fiquei curiosa de conhecê-los.
Como seria o fazer bandeiriano à lafrançaise? Tomada por esse desejo de descoberta, resolvi fazer uma análise desses escritos.
Descobri, inicialmente, que embora em número reduzidíssimo, a “produção francesa” do poeta seguia seu estilo
em língua portuguesa. Dentre os três poemas franceses, isto
é, “Bonheurlyrique”, “Chansondespetitsesclaves” e “Chambre vide”, este último chamou-me a atenção sobremaneira.
Seu tema central, a solidão noturna, dialogava fortemente
com “Noturno do morro do Encanto”. Ficou, então, decidido
que o estudo seria sobre “Chambre vide” e “Noturno do
morro do Encanto”.
Em seguida, realizada a análise dos dois poemas,
uma segunda questão me veio à mente: como nem todos os
leitores do estudo compreendem bem a língua francesa, por
que não propor uma tradução do poema? Aceitei meu próprio desafio e fiz uma tradução sem caráter poético.
“De posse” de uma tradução de Bandeira, me vem o
desejo de saber: existem traduções poéticas desse poema?
Após uma pesquisa na internet, foram encontradas duas traduções.
Sumário
14 | E n c a n t o s
Noturnos em Manuel Bandeira
Assim, diante do exposto acima, este artigo é composto de quatros etapas:
1ª. A solidão noturna – tema em comum dos dois poemas;
2ª. “Chambre vide”– estudo do poema;
3ª. “Noturno do morro do Encanto”– estudo do poema;
4ª. Quartos vazios – apresenta e analisa as três traduções em português de “Chambre vide”.
A solidão noturna
Em “Chambre vide” e “Noturno do morro do Encanto”, Manuel Bandeira escreve com intensidade sobre a solidão, tema caro ao poeta. O grande pesar de uma noite solitária num quarto vazio é o sentimento vivido e revivido pelo
eu lírico nesses dois poemas. O primeiro, escrito em Petrópolis em 1925, faz parte de Libertinagem, quarto livro de poemas
de Bandeira, porém o primeiro considerado verdadeiramente moderno. Já o segundo, escrito 28 anos depois, também
em Petrópolis, pertence a Opus 10, seu oitavo livro de poesia.
Embora de épocas distantes, os dois reiteram a dor e a tristeza profunda do poeta nas longas noites solitárias. O tema da
solidão noturna está explicitamente presente em outros poemas como “Na solidão das noites úmidas”, “Noite Morta” e
“Noturno da Mosela”.
Chambre vide
Petit chat blanc et gris
Reste encore dans la chambre
La nuit est si noire dehors
Et le silence pèse
Ce soir je crains la nuit
Petit chat frère du silence
Sumário
Tradução e Autoria
| 15
Reste encore
Reste auprès de moi
Petit chat blanc et gris
Petit chat
La nuit pèse
Il n’y a pas de papillons de nuit
Où sont donc ces bêtes?
Les mouches dorment sur le fil de l’électricité
Je suis trop seul vivant dans cette chambre
Petit chat frère du silence
Reste à mes côtés
Car il faut que je sente la vie auprès de moi
Et c’est toi qui fais que la chambre n’est pas vide
Petit chat blanc et gris
Reste dans la chambre
Eveillé minutieux et lucide
Petit chat blanc et gris
Petit chat
Petrópolis, 1925
“Chambre vide”, poema escrito em versos livres, assim como tantos outros poemas de Libertinagem, é composto
por duas estrofes: a primeira com dez versos e a segunda
com quatorze, é o primeiro dos três poemas escritos por
Bandeira em francês. Este, junto com “Bonheurlyrique”, encontra-se em Libertinagem, quarta obra do poeta, já a “Chansondespetitsesclaves” pertence à Estrela da manhã, seu quinto
livro. A propósito dos títulos das obras de Bandeira, gostaríamos de citar o título do seu livro de estreia, A cinza das horas. Em sua atividade como tradutor de língua francesa,
Bandeira traduziu Mireille, de Fréderic Mistral. Isso certamente contribuiu para ampliação do seu domínio do idioma
estrangeiro. As palavras, assim como os tempos e modos
verbais, são escolhidas com cuidado e consciência. Quando
Sumário
16 | E n c a n t o s
Noturnos em Manuel Bandeira
Bandeira escolhe um verbo no indicativo em detrimento de
um no subjuntivo não o faz por acaso, como podemos observar no nono verso da segunda estrofe de Chambre vide. A
adoção do indicativo dá uma conotação bastante real à situação descrita: Et c’esttoiquifais que la chambre n’est pas vide. Se o
autor tivesse usado o subjuntivo ne soitpas vide a descrição da
situação de solidão não seria tão vívida, tão intensa. O emprego do indicativo aproxima o autor do leitor que passa,
dessa maneira, a compartilhar da solidão do eu lírico.
Com esse título, Chambre vide, o poeta nos faz pensar
num lugar não habitado, desocupado, vazio, sem ninguém,
sem nada. A ideia de solidão pelo título sugerida é, no entanto, quebrada logo nos primeiros versos: Petit chat blanc et gris
/ Reste encore dansla chambre. Na realidade, o eu lírico não está num quarto sozinho, mas acompanhado por um pequeno
gato. Situação inesperada essa da companhia de um animal.
A ideia de solidão que tinha sido sugerida pelo título e logo
em seguida modificada com a presença do animal é, contudo, retomada com mais força quando o eu lírico implora a
permanência deste: reste encore dansla chambre. Ele, o eu lírico,
encontra-se tão só que até a companhia de um pequeno animal já lhe daria algum consolo.
A presença do gato no poema reforça a melancolia da
solidão. O uso do diminutivo gatinho transmite carinho, afeição. Embora triste, o eu lírico tem afeição pelo animal. A
ideia da indiferença dos gatos em relação aos humanos é um
pouco afastada no poema com o emprego do diminutivo. O
cinza e branco do gatinho evoca tristeza. A cor cinza lembra
o tempo consumado, as horas passadas.
Nos três versos seguintes: La nuit est si noire dehors /
Et le silence pèse / Ce soir je crains la nuit,temos a descrição da
noite. A noite do poema não é uma noite qualquer, mas uma
noite escura, silenciosa, construída linguisticamente por escolhas lexicais como nuit si noire, silencepèse, jecrains, onde a
escuridão reina e amedronta. O silêncio é tão pesado que
Sumário
Tradução e Autoria
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chega a atemorizar. Naquela noite, especificamente, o eu lírico teme a escuridão.
Logo depois, o gatinho é chamado de irmão do silêncio. O animal, assim como o eu lírico, divide o mesmo ambiente tomado pela calma, sossego e sem ruídos. Os dois se
irmanam no silêncio profundo daquele quarto. Embora não
haja nenhuma interação entre o gatinho e o eu lírico, a simples presença do felino alivia o peso da noite. O uso do imperativo, implorando que o gato fique, reforça a ideia de solidão e paradoxalmente desconstrói a irmandade no silêncio.
O pedido do eu lírico ao gato de que reste encore pode sugerir
que o felino deve estar querendo sair e ele insiste em sua
permanência.
Para terminar a primeira estrofe, o eu lírico volta a
implorar a presença do animal. Ao repetir o pedido, ele não
somente pede para que o gato fique ainda mais, mas que fique perto dele - reste auprès de moi. Nos dois últimos versos,
há a repetição da primeira frase do poema - petit chat blanc et
gris e metade dela - petit chat. Ao chamar novamente o gatinho, o poeta expressa quase uma lamentação, que será repetida no final do poema.
O pesar da noite inicia a segunda estrofe, paira no ar
um mal-estar, um incômodo. Não há nada em movimento, o
mundo está imóvel, calado, nem as mariposas, animais noturnos, estão presentes e até as moscas dormem sobre o fio
elétrico. O eu lírico sente-se demasiadamente só dentro daquele quarto.
No sexto verso da segunda estrofe, temos a repetição
do sexto verso da primeira estrofe, no qual o eu lírico tornase irmão do gatinho no silêncio. O sétimo verso da segunda
estrofe repete, embora de maneira diferente, a mesma ideia
do sétimo verso da primeira estrofe, ou seja, o eu lírico implora ao animal para que fique ao seu lado: Petit chat frèredusilence / Reste à mês côtés.
Sumário
18 | E n c a n t o s
Noturnos em Manuel Bandeira
No oitavo verso, o eu lírico explica o porquê daquele
pedido. Ele precisa da presença do gatinho junto a si, pois é
necessário sentir a vida ao seu lado, e só ele, o gato, faz com
que o quarto não esteja vazio.
Continuando o poema, no décimo e no décimo primeiro versos, temos novamente o chamamento do gatinho, o
pedido da sua permanência no quarto. No décimo segundo
verso, há a atribuição de características curiosas a um animal. Ele está acordado, é minucioso e lúcido. Como poderíamos atestar a lucidez de um animal? Dizer que se esforça
para não excluir nenhum detalhe no que faz? Tais escolhas
lexicais humanizam o animal ao atribuir-lhe características e
comportamentos humanos.
Os dois últimos versos retomamo mesmo chamamento do eu lírico pelo gatinho. A repetição desses versos fecha o
poema como um lamento.
Noturno do morro do Encanto
Este fundo de hotel é um fim de mundo!
Aqui é o silêncio que tem voz. O encanto
Que deu nome a este morro, põe no fundo
De cada coisa o seu cativo canto.
Ouço o tempo, segundo por segundo,
Urdir a lenta eternidade. Enquanto
Fátima ao pó de estrelas sitibundo
Lança a misericórdia do seu manto.
Teu nome é uma lembrança tão antiga,
Que não tem som nem cor, e eu, miserando,
Não sei mais como o ouvir, nem como o diga.
Falta a morte chegar... Ela espia
Neste instante talvez, mal suspeitando
Que já morri quando o que eu fui morria.
Petrópolis, 21-2-1953
Sumário
Tradução e Autoria
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No conjunto da obra de Bandeira, encontramos um
total de quatro noturnos: Noturno da Mosela, que está no livro
O Ritmo Dissoluto, Noturno da parada de Amorime Noturno da
rua da Lapaque fazem parte de Libertinagem e Noturno do morro do Encanto que está em Opus 10.
O Noturno do morro do Encanto é um soneto composto
por versos decassílabos que segue rimas regulares do tipo A
B A B nos dois quartetos e do tipo C D C no primeiro terceto
e E D E no segundo terceto.
O título remete ao momento e ao lugar em que o poema acontece, descrevendo uma noite triste e melancólica.
Esse mesmo tema é também o tema dos Noturnos, gênero
musical de caráter melancólico e sonhador, de andamento
vagaroso. Várias são as acepções para o vocábulo noturno em
relação à música, segundo o Dicionário Houaiss, vejamos duas: 1a.: composição ou cântico para esta subseção das matinas; 2a.: composição vocal ou instrumental de cunho melancólico destinado às serenatas, em voga no século XVIII.
O demonstrativo “este”, empregado pelo poeta no
início do primeiro verso, é encontrado em outros poemas:
Desesperança (Esta manhã...), Estrada (Esta estrada...) e Gesso
(Esta minha estatuazinha...). Esse emprego do demonstrativo
gera para o leitor não somente uma individualização, aproximação do tema a ser desenvolvido, mas também constrói
um estilo próprio do fazer poético bandeiriano.
No primeiro quarteto, é descrito o cenário onde o poema se desenvolve. O espaço é interno, tudo acontece num
fundo de hotel. Não há, como se poderia imaginar, a presença de um ambiente externo apesar do título. O poema começa descrevendo de forma pungente o quarto de hotel no qual
se encontra o eu lírico. Além de ser o fim do mundo, aquele
ambiente é sem movimento, sem barulho e só o silêncio fala.
O encanto que dá nome ao morro atravessa tudo que ali há e
de maneira surreal a tudo atinge. Cada coisa em seu devido
canto estaria de alguma forma encantada. Identificam-se claSumário
20 | E n c a n t o s
Noturnos em Manuel Bandeira
ramente aliterações de “n”, “m”e “c” no último verso e assonâncias de “e” e “o”.
O segundo quarteto é denso e tem como tema o tempo. O eu lírico conta os segundos do lento passar do tempo
na eternidade. A estrofe continua com a imagem de Nossa
Senhora de Fátima lançando seu manto sedento de misericórdia. Possui aliterações de “s” e assonâncias de “o”, “a” e
das nasais “un” e “em”.
“O passado como objeto de narração pertence à memória. O passado como tema do lírico é um tesouro de recordação”. (STAIGER, 1975, p. 55) Nessa terceira estrofe, encontramos justamente recordações do passado que já estão
sendo apagadas pela passagem devastadora do tempo. O
passar do tempo provoca o esquecimento do nome de alguém que parece ter sido importante para o eu lírico, porém
as lembranças tanto auditivas quanto visuais já não existem
mais, a lembrança “é tão antiga” que só restou o sentimento.
Para terminar o soneto, Bandeira como em tantos outros poemas, “Testamento” e “A morte absoluta”, por exemplo, é tomado pelo tema da morte. Com tanto tempo vivido,
só falta a morte chegar. Embora ela não tenha chegado, o eu
lírico afirma, surpreendentemente, que já morreu. Em seguida, apresenta um final inesperado, afirmando que na realidade já morreu, pois já não é mais o mesmo, o tempo o teria
matado.
Sumário
Tradução e Autoria
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Quartos vazios
a.QUARTO VAZIO1
Gatinho branco e cinzento
Fica mais um pouco no quarto
A noite está tão escura lá fora
E o silêncio pesa
Esta noite tenho medo do escuro
Gatinho irmão do silêncio
Fica mais um pouco
Fica junto a mim
Gatinho branco e cinzento
Gatinho
A noite pesa
Não há borboletas da noite
Por onde andarão esses animais?
As moscas dormem em cima do fio de eletricidade
Eu estou demasiado só vivo (ou vivendo?) neste quarto
Gatinho irmão do silêncio
Fica ao meu lado
Porque eu preciso sentir a vida junto de mim
E és tu que fazes com que o quarto não esteja vazio
Gatinho branco e cinzento
Fica no quarto
Acordado minucioso e lúcido
Gatinho branco e cinzento
Gatinho
Tradução que se encontra no site Literatura e Gramática, organizado por Lu Cunha http://www.literatura.pro.br/ libertinagem.htm
1
Sumário
22 | E n c a n t o s
Noturnos em Manuel Bandeira
b.QUARTO VAZIO2
Gatinho branco e cinzento
Fica ainda no quarto
A noite está fria lá fora
E o silêncio pesa
Eu tenho medo da noite
Gatinho irmão do silêncio
Fica ainda
Fica comigo
Gatinho branco e cinzento
Gatinho
A noite pesa
Não têm borboletas na noite
Onde estão esses insetos agora?
Os mosquitos dormem sobre o fio da eletricidade
Eu estou me sentindo muito sozinho neste quarto
Gatinho irmão do silêncio
Fica ao meu lado
Que é preciso que eu sinta vida perto de mim
E é você que faz com que este quarto não esteja vazio
Gatinho branco e cinzento
Fica ainda no quarto
Acordado minucioso e lúcido
Gatinho branco e cinzento
Gatinho
2Tradução
de Nina Rizzi que se encontra no site Revista Bula
http://acervo.revistabula.com/posts/traducao/duas-traducoesineditas-de-manuel-bandeira.
Sumário
Tradução e Autoria
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c. QUARTO VAZIO3
Gatinho branco e cinza
Fique ainda dentro do quarto
A noite é tão escura lá fora
E o silêncio está pesado
Esta noite tenho medo da escuridão
Gatinho irmão do silêncio
Fique ainda
Fique perto de mim
Gatinho branco e cinza
Gatinho
A noite está pesada
Não há mariposas
Onde estão esses bichos então?
As moscas dormem sobre o fio elétrico
Eu estou tão só vivendo neste quarto
Gatinho irmão do silêncio
Fique ao meu lado
Pois preciso sentir a vida perto de mim
E é você que torna este quarto “não vazio”
Gatinho branco e cinza
Fique dentro do quarto
Acordado minucioso e lúcido
Gatinho branco e cinza
Gatinho
A análise das traduções apresentadas neste trabalho
parte da ideia de tradução como trabalho criativo, como observa Paulo Henriques Britto no seu livro A tradução literária.
Para ele, “Traduzir – principalmente traduzir um texto de
valor literário – nada tem de mecânico: é um trabalho criativo” (2012, p. 18). Entendemos, no entanto, assim como Britto
3Tradução
nossa sem caráter poético.
Sumário
24 | E n c a n t o s
Noturnos em Manuel Bandeira
(2012, p. 33) que “tradução literária e criação literária não são
a mesma coisa”.
Como se pode notar, o título do poema é o mesmo
nas três traduções. Porém, já no primeiro verso, a escolha do
adjetivo indicando a cor não foi a mesma, o que era “cinza”
virou “cinzento”. Curiosa essa diferença na escolha do adjetivo porque nesse caso o “cinza”, por ser uma palavra transparente nas duas línguas, me parecia ser a possibilidade
mais provável correspondente em português do Brasil (em
Portugal, a cor é chamada cinzento),até porque existe em
francês a palavra grisâtre que poderia ser cinzento, grisalho,
acinzentado. O sufixo ento, como afirma Rodrigues4, é “somado quase sempre a bases pejorativas”; ele “deriva palavras
que designam indivíduos ou coisas que suscitam rejeição, ou
indivíduos cujo comportamento é socialmente estigmatizado”.
O verbo ficar difere quanto ao modo e a pessoa (tu e
você) em quatro versos nas três traduções. No segundo e no
sétimo versos da primeira estrofe – Fica mais um pouco no
quarto/ Fica ainda no quarto / Fique ainda dentro do quarto/ Fica
mais um pouco / Fica ainda / Fique ainda /– e no sétimo e no décimo primeiro versos da segunda estrofe –Fica ao meu lado /
Fica ao meu lado / Fique ao meu lado / Fica no quarto / Fica ainda
no quarto / Fique dentro do quarto. A escolha do subjuntivo “fique” passa, nesse trecho, a ideia de súplica, enquanto que o
uso do imperativo “fica” torna o pedido uma ordem. Talvez
a escolha de “você” em detrimento do “tu”, possa ser explicada pelo caráter não-poético da tradução feita por mim.
Outra diferença na escolha verbal é a do verbo être no
terceiro verso da primeira estrofe – La nuit est si noiredehors.
A escolha tradutória nesse verso não foi fácil para mim, uma
4No
artigo O pejorativo na sufixação proposta descritivo-pedagógica para
o português L2. In <http://www.filologia.org.br/xcnlf/4/11.htm>
último acesso em 30.05.2013.
Sumário
Tradução e Autoria
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vez que o verbo être pode ser tanto o verbo estar quanto o
verbo ser em português. Após longa hesitação entre a ideia
de a noite ser escura lá fora e a noite estar escura lá fora, optei
pelo sentido permanente do verbo ser. Com essa escolha o
verso traduzido passa para o leitor o caráter de escuridão
permanente das noites. As noites são sempre escuras para o
eu lírico. Já a escolha do verbo estar, opção de Lu Cunha e de
Nina Rizzi, deixa o leitor consciente de que naquela noite especificamente está escuro, mas que talvez em outras não seja
assim. Ainda nesse terceiro verso, é interessante comentar a
escolha tradutória de Rizzi, ela troca a escuridão da noite pela frieza da noite.
O silêncio pesa também foi uma possibilidade aventada na minha tradução e seria, com certeza, uma linguagem
mais poética do que a escolha que fiz: o silêncio está pesado.
No entanto, optei pela expressão mais corrente da língua.
Nesse mesmo sentido, foi feita a escolha do primeiro verso
da segunda estrofe: A noite pesa e A noite está pesada. É importante observar aqui a homogeneidade das escolhas tradutórias. As três traduções mantêm o mesmo estilo nas duas estrofes. As traduções existentes nos sites, Literatura e Gramática e Revista Bula é silêncio pesa logo, também é noite pesa. Como optei por silêncio está pesado, consequentemente, optei por
noite (também) está pesada.
Nas traduções de Lu Cunha e na minha própria, no
quinto verso da primeira estrofe há manutenção do demonstrativo esta do poema fonte: Cesoirjecrainslanuit / Esta noite tenho medo do escuro / Esta noite tenho medo da escuridão. A diferença está no final do verso. Decidi fazer uso do substantivo
escuro no aumentativo, ou seja, de escuridão porque, nesse caso, o aumentativo expressa mais intensidade do fenômeno.
Cabe observar ainda que nas três traduções o verbo craindre
não foi traduzido por temer, que seria uma ótima escolha,
mas pela forma mais coloquial ter medo. Esta noite temo a escuridão seria provavelmente uma escolha mais poética do que a
Sumário
26 | E n c a n t o s
Noturnos em Manuel Bandeira
escolha que foi feita, Esta noite tenho medo da escuridão. Já na
tradução de Nina Rizzi, não aparece o demonstrativo esta
nem há acréscimo de substantivo para expressar a ideia de
escuro/escuridão. Esta tradutora opta pela economia de palavras Eu tenho medo da noite legando ao leitor a associação
entre noite e escuro, também existente na língua francesa.
Mariposas ou borboletas noturnas? Uma vez que em
português temos um vocábulo específico para borboletas de
hábitos noturnos, depois de alguma dúvida, o escolhi tão
simplesmente pela questão da “economia de palavras” e pela
sua clareza. Meu objetivo era passar a mensagem e não repetir as escolhas vocabulares do texto fonte. Nesse mesmo sentido, optei porfio elétrico e não porfio de eletricidade, que é a
tradução literal do poema fonte.Quanto a Lu Cunha, ela decide pela tradução literal, Il n’y a pas de papillons de nuit /
Nãoháborboletas da noite. Escolhadistinta fez Nina Rizzi, a
tradutora cria a imagem de borboletas na noite em detrimento
de borboletas da noite.
No terceiro e quarto versos da segundaestrofe, a
tradutora Rizzi toma certa liberdade tradutória e traduz
animal porinseto e moscaspor mosquitos. As outras duas
tradutoras optam pela literariedade.
A tradução existente no site Literatura e Gramática do
quinto verso da segunda estrofe – Eu estou demasiado só vivo
(ou vivendo?) neste quarto traz duas opções para o leitor através de dois tempos verbais, ou seja, – Eu estou demasiado só
vivo neste quarto e – Eu estou demasiado só vivendo neste quarto.
Nina Rizzi escolhe uma fórmula bem coloquial, Eu estou me
sentindo muito sozinho neste quarto, aproximando dessa maneira o eu lírico do leitor.
Porque, que e pois introduzem as três traduções do oitavo verso da segunda estrofe. No original, a escolha da conjunção car guiou a escolha do pois. Como o pourquoi francês
não foi escolhido, achei por bem não empregá-lo em português. Lu Cunha escolhe uma construção verbal no presente
Sumário
Tradução e Autoria
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Porque eu preciso sentir, enquanto que Nina Rizzi mantém a
estrutura do poema fonte com o subjuntivo, Que é preciso que
eu sinta.
Para Paulo Henriques Britto (2012, p. 145) “Toda tradução é obrigada a alterar o original, mas idealmente essas
alterações deverão ser discretas, de modo a não descaracterizar aspectos importantes do poema.” Nas três traduções
aqui comentadas, pode-se afirmar que os aspectos importantes do poema não foram descaracterizados, inclusive no que
diz respeito ao número de versos e à estrutura do poema. Há
manutenção da forma do poema fonte nas três traduções.
Considerações Finais
Primeiramente este artigo se propôs a analisar dois
poemas de Manuel Bandeira, “Chambre vide” e “Noturno
do morro do Encanto”,assim como o tema da solidão noturna comum aos dois escritos. Pudemos observar que, neles,
Bandeira usa da sua experiência da solidão profunda para
alimentar sua poesia.Ambos são poemas noturnos e tanto
num quanto no outro o eu lírico está só, dentro de um quarto.
Como vimos, “Chambre vide” data de 1925.Nele, o
eu lírico está no quarto com o gatinho branco e cinza
(ou,como está nas outras traduções, branco e cinzento) e sofre com a noite pesada, onde nem os bichos noturnos, como
as mariposas, existem. Há um pedido insistente por parte do
eu lírico para que o animal permaneça ao seu lado; ele quer
sentir a vida. Apesar de escrito 28 anos mais tarde, emNoturno do morro do Encanto, o poeta continua com o tema de solidão que o acompanha.
Em seguida foi feita uma tradução, para o português,
do poema “Chambre vide”. Esta tradução foi confrontada
com outras duas traduções desse poema, encontrada no site
Sumário
28 | E n c a n t o s
Noturnos em Manuel Bandeira
Literatura e Gramática, organizado, segundo consta, por Lu
Cunha e a outra de Nina Rizzi postada no site Bula Revista.
Por fim, ao cotejar as três traduções e analisar as escolhas tradutórias ali efetuadas, pode-se afirmar que, embora
subjetivas e, consequentemente, diferentes, as três traduções
apresentam escolhas lexicais coerentes. Essas traduções em
português do Brasil, fizeram vir a tona três Quartos vazios,ao
mesmo tempo correspondentes e diferentes da Chambre vide
de Manuel Bandeira.
REFERÊNCIAS
ARRIGUCCI JR., Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
___________________. O humilde cotidiano de Manuel Bandeira.
In: Schwarz, Roberto. Os pobres na literatura brasileira. São Paulo:
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BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1974.
BRITTO, Paulo Henriques. A tradução literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
RODRIGUES, Bruno de Andrade. O pejorativo na sufixação proposta
descritivo-pedagógica para o português L2. In
http://www.filologia.org.br/xcnlf/4/11.htm acesso em
08.08.2011.
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. Trad. Celeste A.
Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
Sumário
Tradução e Autoria
| 29
Araken G. Barbosa
Antes de dar início a essa exposição que aborda um
tema bastante discutido no meio acadêmico que é o Dialogismo, gostaria de me posicionar e esclarecer que não pretendo me ater a questionamentos improdutivos sobre a legitimidade da obra de Bakhtin. Não desejo apoiar Bronckart e
Bota que questionaram “Os Problemas da Obra de Dostoiévsky” onde conceitos-chave parecem ter sido apropriados indevidamente e Bakhtin é finalmente desmascarado.
Assim a obra não seria mais bakhtiniana e passaria a ser
volochnovniana. Essas considerações para mim não são de
maior interesse, apenas acredito ser importante destacar a
ideia do entrelaçamento polifônico do discurso.
Apesar de tudo, também acredito que seria interessante discutirmos um pouco sobre a natureza do dialogismo. O que é? Do que trata?
Mikhail Bakhtin o definiu como uma interação entre
textos que ocorrem com a Polifonia. Escrito ou oral o texto
não seria visto como algo isolado. Correlacionar-se-ia com
outros discursos aproximados ou similares.
Bakhtin também expressava a ideia de que os enunciados não seriam diferentes entre si. Uns conheceriam os
outros e se refletiriam mutuamente.
Para ele, cada enunciado seria pleno de ecos e ressonâncias de outros possíveis enunciados com os quais estaria
ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva
Sumário
30 | T r a d u ç ã o :
Dialogismo em Concepções Parafrásticas
e deveria ser visto como uma resposta, uma réplica aos
enunciados precedentes de um determinado campo.
Essa resposta seria a réplica, a tensão ao ‘dito’, numa
forma argumentativa de rejeição, confirmação, persuasão,
complementação etc. Tomando como base esses enunciados
precedentes, os subentenderia como conhecidos, familiares e
de certa maneira os levaria em conta. Isso me fez refletir e
me leva a considerar o fato de que: Toda comunicação
implica um diálogo cujos enunciados refletem uma grande
diversidade de pressupostos que reverberam entre si.
É preciso entender que tanto na oralidade, quanto na
escrita, nossos dizeres fazem referência a algo já mencionado
por outrem. Dessa forma, fazemos alusão a um filme, a uma
obra de arte, a um provérbio, a um pensamento célebre, a
um poema, a um fato ocorrido, enfim, a muitas outras circunstâncias.
Assim sendo, podemos constatar o que ocorre com os
textos, pois mediante toda diversidade e entrelaçamento de
ideias, elas se juntam, condensam-se e se materializam como
enunciados de forma plena. A título de exemplo, basta
analisarmos as palavras de João Cabral de Melo Neto, cujo
poema “Tecendo a manhã” representa a metáfora da intertextualidade, exatamente quando ele nos revela:
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
É, sem dúvida, alguma nosso diálogo com um interlocutor, um leitor ou com uma audiência. É nossa prática
verbal mediada por gêneros textuais ou tipos de discurso.
Podem ser formais ou informais, simples ou complexos.
Essa prática implica a relação entre os participantes
que se dá em uma fluidez contínua, seja verbal, oral/escrita
eivada de significados.
Sumário
Tradução e Autoria
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Trata-se de respostas ao que foi dito anteriormente
que encadeia outras produções, outros enunciados, outras
respostas verbais por meio da língua.
Esse pensamento também nos transporta para o
conceito de Polifonia.
O conceito de Polifonia (Ducrot) está diretamente
ligado ao de heterogeneidade, já que os dois distinguem
entre o ‘eu’ e o ‘outro’. Dentro da polifonia existe a noção de
vozes enunciativasque podem estar representadas no discurso de outro enunciador.
O locutor pode assim representar no seu próprio
enunciado, posições diversas da sua. Podemos perceber
como o sujeito não está, nem se estabelece sozinho no mundo,
toda enunciação retoma outros dizeres, o eu sempre se constitui em relação ao não-eu.
Em linguística, polifonia é, segundo Mikhail Bakhtin
a presença de outros textos dentro de um texto, causada pela
inserção do autor num contexto que já inclui previamente
textos anteriores que lhe inspiram ou influenciam.
Acredito que o tradutor tem a obrigação de identificar essa diversidade textual e investigá-la antes de processar seu texto de chegada.
Apolifonia é um fenômeno também identificado por
Authier-Révuz (2004), como heterogeneidade enunciativa,
que pode ser mostrada (no caso de citações de outros autores
em obras acadêmicas, por exemplo) ou constitutiva (como a
influência de dramaturgos clássicos em Shakespeare, que
não é mencionada diretamente, mas transparecida).
O uso das aspas no texto escrito é entendido por
Maingueneau (1997) como a demarcação daquilo que pertence a certa formação discursiva do eu, daquilo que é exterior a
ela. As enunciações aspadas são “[...] sintagmas atribuídos a
um outro espaço enunciativo e cuja responsabilidade o
locutor não quer assumir” (MAINGUENEAU, 1997, p.90).
Sumário
32 | T r a d u ç ã o :
Dialogismo em Concepções Parafrásticas
Pela classificação de Authier-Révuz essa é uma forma de
heterogeneidade enunciativa marcada e mostrada.
Bakhtin usa o conceito depolifonia para definir a
forma de um tipo de romance que se contrapõe ao romance
monofônico. Os textos que serviram de base às suas reflexões
acerca desta temática são os de Fiodor Dostoievski. Romance
polifônico é aquele em que cada personagem funciona como
um ser autônomo com visão de mundo, voz e posição própria no mundo.
A Polifonia está relacionada com a Heteroglossia, que é
a tradução de raznorecie que significa a diversidade social de
tipos de linguagens. Essa diversidade é produzida por forças
sociais tais como profissão, gêneros discursivos, tendências
particulares e personalidades individuais (subjetivismo). Isso
é um fato inalterável e inegável porque o homem é um ser
social.
E para não perdermos a linha de raciocínio, lembremos que o tradutor também materializa suas ideias através de ações interpretativas em uma contínua atribuição de sentidos ao texto de chegada. Esse processo contínuo de atribuição
de sentidos, possivelmente possui uma estreita relação com o
processo dialógico.
Bakhtin (2004) criticou as ideias de Wilhelm Dilthey,
porque constituíra um sistema em que o psiquismo teria
primazia sobre o Universo da Cultura. Eu prefiro dizer que é a
Consciência que tem essa primazia sobre os fenômenos naturais e psíquicos. Embora não esteja levando em conta a
expressão de uma Consciência Coletiva.
Existem, como sabemos, estudos freudianos sobre o
Inconsciente Coletivo. Mas, esse não é nosso caso e não nos
interessa particularmente nesse contexto. O universo da
cultura é percebido por Dilthey como expressão e materialização de consciências individuais (sem considerar a dimensão
social). Por isso, para ele, a compreensão das ações dos outros
não passaria de um processo de empatia psicológica.
Sumário
Tradução e Autoria
| 33
Nós teríamos mesmo condições de compreender o
universo alheio com nosso subjetivismo? Será que minha
compreensão poderá vibrar no mesmo diapasão conceitual
que o de meu(s) interlocutor(es)?
Ora, Bakhtin pensava de forma totalmente contrária a
Dilthey asseverando que o universo da cultura tem primazia
sobre a consciência individual. Isso é uma perspectiva
semiótica constituídadialogicamente já que o signo também é
antes de tudo um construto social.
Às vezes questiono a mim mesmo se esse construto
social, esse universo cultural para ser compreendido necessitaria de algo como a ‘egossemelhança’. Nos remetendo novamente ao pensamento de Dilthey de empatia psicológica.
Assumiria uma forma semelhante a um ‘fractal geométrico’
com proporções vastíssimas.
Nesse caso, tal construto social se manifestaria com
‘autossimilaridade’ – semelhança exata ou aproximada a
uma parte de mim mesmo. Meu discurso é estruturado muito mais sobre tópicos com os quais simpatizo do que com
aqueles que me desagradam.
Elaborando praticamente uma reenunciação parafrástica, diria que o universo da cultura, o que chamo de
Megatexto Sociohistórico se compara a um fractal e suas partes
menores seriam os indivíduos.
Cada consciência individual ao encarar as tensões e
desafios provocados pelo discurso ‘já dito’, ou aprova ou
desaprova o mesmo. A egossemelhança seria identificada
com algo similar à consciência do sujeito, enquanto indivíduo. Nesse caso existirá aprovação ou desaprovação da
ideia manifestada através de discursos previamente enunciados.
Para entendermos melhor, o signo no contexto histórico e dinâmico da comunicação vai se manifestando semioticamente, produzindo texto numa ação dialógica contínua –
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34 | T r a d u ç ã o :
Dialogismo em Concepções Parafrásticas
como réplica ao já dito e, possibilitando a previsão de
significados do vir a ser de um infinito diálogo.
Às vezes querendo replicar um discurso “x” para
uma dada situação, nós elaboramos toda uma resposta da
noite para o dia e na manhã seguinte ainda estamos regurgitando esse conteúdo baseado no já dito que que talvez
não tenhamos gostado ou que tenhamos apreciado bastante.
Só em dado momento essa resposta, esse novo discurso
poderá ser enunciado, ou não.
Em contrapartida, não podemos de forma alguma
descartar a influência do idioleto (a consciência individual)
que se opõe aos socioletos para firmar-se como geradora de
significados e de compreensão.
Eu relaciono essa ideia ao processo tradutório onde o
tradutor como indivíduo também é gerador de significados e
um agente de mudanças socioculturais manifestadas nos
textos de chegada elaborados com certa intencionalidade.
O famoso Iuri Lotman imaginava o conjunto de
textos e línguas em interação recíproca, como um sistema, e
o chamava "semiosfera". Uma das principais qualidades
deste sistema seria sua capacidade de delimitação. A semiosfera estaria confinada a um espaço circundante, que
poderia ser extra semiótico (onde não se produziriam processos de significação, como um espaço natural) ou hetero
semiótico (que pertenceria a outro sistema semiótico, como,
por exemplo, um texto musical frente a um texto pictórico).
Tal como acontece no mundo geográfico, seria a
noção de "fronteira" que reclamaria o conceito de "tradução".
Onde não há fronteiras, não há necessidade de tradução:
E por falar em fronteiras, em meu livro Tradução:
Fronteiras do Sentido na Linguagem eu considero a relevância
intercultural do parafrasear e seu potencial criativo no processo tradutório. Desde que a finalidade de toda comunicação é a compreensão de um texto por parte do receptor, a
paráfrase pode entrar nesse contexto com seu potencial
Sumário
Tradução e Autoria
| 35
altamente criativo, esclarecedor e tradutor de mensagens
textuais. Esse seu papel facilitador possibilita o acesso ao
âmago das mensagens, imprescindível para a revelação de
significados.
Levando em consideração que a maior parte das traduções são na forma escrita, o texto como fenômeno cultural
e transcultural nos remete para aquém e além das informações objetivas consubstanciando-se através das formas
categoriais. Dessa maneira, possibilita-nos constantemente a
participar de sua elaboração através de nossa percepção
racional.
Ao contrário do que realmente se pensa, compreender não é um ato solitário, passivo, é uma ação replicante, uma
tomada de posição, uma reflexão constante diante de um
determinado texto.
O indivíduo vivencia atividades cognitivas em seu
espaço-tempo interior (seu diálogo interno) que presume poder
partilhar com uma audiência ou com leitores ideais. Isso fica
bem claro que se trata de uma ação dialógica.
Em minha tese de Doutorado intitulada: A Paráfrase
como Proposta Linguístico-Pedagógica no Ensino de Línguas –
UFPE, Recife. 2005, abordei dois tópicos relacionados ao processo tradutório – “Paráfrase, espaços mentais e fusão de
conceitos” – onde foi discutido o processo cognitivo de produção de sentido.
A paráfrase é analisada através de um de seus aspectos mais importantes que é a ‘intencionalidade’. Mais
adiante discutiremos com um pouco mais de detalhes os
espaços mentais e a fusão de conceitos.
O segundo tópico foi A Paráfrase no Processo Tradutório – Onde argumentei que o processo tradutório não se
limita à comunicação entre usuários de diferentes idiomas.
Uma língua materna qualquer pode apresentar expressões
desconhecidas ou de baixa frequência entre seus usuários
Sumário
36 | T r a d u ç ã o :
Dialogismo em Concepções Parafrásticas
motivando uma necessidade de reestruturação semântica
para que sejam devidamente compreendidas.
As variantes linguísticas e registros diferentes que
podem levar seus usuários a representar suas ideias de formas diversificadas compelem-nos a usar a paráfrase como
estratégia para a compreensão de enunciados polissêmicos,
que pareçam incoerentes ou ininteligíveis.
Em se falando de variantes, quero também mencionar
um capítulo de outra obra minha, intitulado Ensino de
Línguas e Diversidade Dialética, que consta do livro Tópicos de
Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas, da Editora Libertas
Recife 2010.
Tal artigo trata basicamente da subpadronização da
língua inglesa. Durante muito tempo, considerou-se o inglês
não padronizado como uma cópia incorreta do padronizado.
Os países falantes de língua inglesa começaram a preocuparse com esse assunto tendo em vista os terríveis problemas
educacionais dos ‘guetos urbanos’.
É verdade que o papel fundamental da escola é
ensinar leitura e escrita da forma padronizada da língua,
mas ninguém pode negar a diversidade dialética e frequentemente certos autores inserem em seus trabalhos textos com
excertos que apresentam variações dialetais. Devemos
contemplar essas variantes não como objetos isolados, mas
como uma parte integral de uma estrutura sociolinguística
mais ampla de uma dada língua.
A polissemia, por exemplo, pode nos levar a um
raciocínio mais elaborado a fim de que possamos identificar
os termos no contexto em que se inserem. A fidelidade na
tradução exige que a informação seja bastante explícita e
precisa para se evitar a manifestação de incoerência tradutória.
Os significados primários e secundários de uma palavra não causam muitos problemas na tradução, entretanto, as figuras de linguagem, elementos de natureza retóSumário
Tradução e Autoria
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rica, podem tornar o processo tradutório um pouco complicado.
A metonímia com sua contiguidade semântica, suas
relações associativas nas quais substituem-se alguns termos
por outros, pode tanto quanto a sinédoque (do grego= entendimento simultâneo) constituir um desafio para uma tradução mais precisa.
Na pars pro toto ou totum pro parte:
Ex: Ficaram sem teto. (Sem a casa inteira)
Adoro Danone: (marca pelo produto)
Leio Vygotsky e ouço Chico Buarque (Autor pela obra)
Em se tratando do processo tradutório, seja em traduções textuais, interpretações em tempo simultâneo, ou no
processo de ensino/aprendizado de línguas, inelutavelmente
a intencionalidade estará liderando o processo cognitivo de
‘tradução mental’.
Trata-se de uma das formas mais conhecidas de se
produzir sentido. São constantes nesse processo as circunstâncias em que se lança mão de opções semânticas para as
questões de transferência de sentido dos textos de partida
para os textos de chegada.
A meu ver, a produção de sentido relaciona-se com o
pensamento de Fauconnier que trata de estruturas conceituais
e linguagem. Aborda os processos de representação e deixanos entrever as possibilidades de se intervir na sociedade
através da linguagem e da imaginação.
Sua teoria nos esclarece que podemos atuar em
interface com os outros num processo claramente dialógico
negociando sentidos através de reestruturações semânticas.
O espaço mental é uma das habilidades humanas de
se construir o conhecimento. A cognição para Fauconnier
origina-se na sociedade graças ao uso da linguagem. Ali é
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Dialogismo em Concepções Parafrásticas
que se estabelecem, portanto, as “fusões de espaços
mentais”.
Ainda em minha tese acima citada, cunhei um termo
que passei a chamar de núcleo conceitual cultural (NCC)
relacionado aos espaços mentais. Mais adiante decidi alterálo e em um artigo recém publicado na obra organizada por
Maria José Matos Luna e Vera Moura, sobre leitura e
produção de texto, intitulado: A Retextualização e as metáforas
na Criação de Significados onde apresentei um breve panorama sobre aspectos da Tradução Intralinguística e da Reformulação Textual, marcado por perspectivas que nos remetem às interações sociocomunicativas.
Passei, então, a reformular o termo chamando-o
Domínio Conceitual Nuclear (DCN) procurando descrever os
valores de elementos que ajudam a classificar, interpretar,
explicar e criar significados.
E, nesse cenário de comunicação, vale a pena abordar
alguns aspectos da comunicação humana através da interpretação intralinguística implicando a reformulação textual que
direta ou indiretamente relaciona-se com as metáforas,
cognição humana e memória (consciência). Tudo isso está
possivelmente contido no processo tradutório.
Para mim, a tradução se debruça sobre a significação e
por isso deve trabalhar com a compreensão e não com a
explicação como faz a maioria das ciências.
A compreensão contempla o significado que de certa
forma é o efeito de uma interação sociocultural e ao mesmo
tempo linguística. Isso requer uma dimensão de pluralidade
semântica. Ora, Significação e compreensão são partes
fundamentais do processo cognitivo.
A cognição, em termos mais simples, é o processo que
passa o pensamento para chegar ao conhecimento ou compreensão de algo. Disciplinas relacionadas com a ciência da
cognição e psicologia diversificam bastante o uso desse
termo.
Sumário
Tradução e Autoria
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Às vezes encontramos a expressão “processamento
da informação”, outras vezes encontramos “funções psicológicas” etc. Assim, voltamos a um aspecto que não pode
deixar de ser mencionado que é a interpretação intralinguística.
O resultado desse processo é sem dúvida alguma a
reenunciação parafrástica adequando-se ao contexto sociohistórico, seguindo padrões idiossincráticos cuja relatividade
dependerá da ênfase dada por cada participante do processo
dialógico.
Smole (1999) sustenta a ideia de que a comunicação
define a situação que dará sentido à troca de mensagens
transcendendo a transmissão de ideias e fatos quando oferece novas formas de interpretar essas ideias, de pensar e relacionar as informações recebidas, de modo a construir novos
significados.
Dessa forma, concluímos que a utilização de reformulações parafrásticas em contextos diversificados não impede sua participação em um grande diálogo (cronotópico)
com pontos de vista, enunciações diversificadas de sujeitos
em tempo e espaço distintos.
Nessas concepções parafrásticas existe uma dialética
onde prevalece uma dinâmica de troca, de mudança muito
mais que de síntese. Aí encaixa-se o passado, o “dito”, o presente, representado pela tensão gerada perante a heterogeneidade de ideias que se apresentam e o futuro, a antecipação de um possível diálogo com a alteridade.
À medida que se faz a interpretação de um texto, um
parágrafo ou simples frases, o leitor/tradutor poderá
atribuir-lhes sentidos diversificados, orientado por sua própria capacidade de focalização para chegar até o núcleo de
sua intenção comunicativa.
Ao representarmos algo em um processo tradutório
estamos invariavelmente cocriando, “agindo” e de certo
modo sendo agentes modificadores responsáveis pela consSumário
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Dialogismo em Concepções Parafrásticas
trução de um contexto sociohistórico. É nossa intencionalidade que molda nosso discurso.
A língua é dinamismo, uma forma de ação e sua
flexibilidade é uma propriedade inerente. Os enunciados são
construções plásticas partilhadas na interação social. Desde
que essa interação se manifesta através de textos, a primazia
da compreensão nos incentiva a empregar enunciados que
possuam alto grau de ressonância na significação.
A compreensão nos ajuda a modelar o mundo. É
uma compatibilização de modelos produzidos por nós
mesmos com os modelos já instituídos ou convencionalizados. O tradutor é de certa maneira um coautor consciente/inconsciente daquilo que denominei Megatexto Sociohistórico.
Minha convicção de que realmente a paráfrase é um
elemento imprescindível no processo tradutório está relacionada ao fato de que, através de frases equivalentes, variantes de um mesmo padrão sintático-semântico contextualizado, consegue-se delinear com relativa nitidez o sentido
de conceito cultural nuclear como uma unidade analítica de
criação de significados inserida no ambiente comum da
interação comunicativa.
E, para concluir, desejo deixar uma sugestão – e um
desafio aos tradutores e professores que se utilizam-se de
atividades comunicativas em seus propósitos pedagógicos –
que utilizem a paráfrase com mais frequência para que esse
processo se manifeste com maior índice de criatividade em
diferentes níveis de compreensão e produção linguística.
Sumário
Tradução e Autoria
| 41
REFERÊNCIAS
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enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
BAKHTIN, M. Dialogical imagination. 15ª ed. Austin: University of
Texas Press, 2004.
BARBOSA, A.G. A Paráfrase como Proposta Linguístico-Pedagógica no
Ensino de Línguas. UFPE, Recife. 2005
______. Tópicos de Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas.
Editora Libertas Recife 2010.
______. Tradução – Fronteiras do Sentido na Linguagem Editora Livro
Rápido – Elógica, 2013.
FAUCONNIER, Gilles. Mental Spaces. Aspects of meaning construction in Natural Languages. Cambridge. Mass: MIT Press, 1994.
MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso.
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SMOLE, Kátia C.S. – A matemática na Educação Infantil. In: Múltiplas
inteligências na Prática Escolar. Cadernos da TV escola. MEC/Secret.
Da Educação à Distância. 1999.
Sumário
42 | T r a d u ç ã o :
Dialogismo em Concepções Parafrásticas
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Artur Almeida de Ataide
Funes tradutor: alguma teoria
As conclusões da filologia acerca, por exemplo, de
qual o sentido preciso desta ou daquela palavra em certo
verso de Racine, conclusões essas baseadas numa análise
científica, auxiliada por textos e dicionários da época, constituiriam apenas uma das muitas autoridades cedo desafiadas
por Barthes; essas, no caso, já em “Crítica e verdade”, de
1966 (BARTHES, 2009 [1966], p. 185). Os protocolos científicos a que obedeceria um filólogo ao ler, sugere Barthes,
não lhe garantiriam uma leitura mais verdadeira, conforme a
convicção do próprio filólogo, mas, apenas, não mais que
uma leitura adequada a certos protocolos, tomados por ele
mesmo e por seus pares – este, sim, o dado inegável – como
parâmetros objetivos, científicos, suficientes para empurrar sua
leitura um degrau acima na escada epistemológica, resguardadas que estariam contra os excessos, as idiossincrasias, as
ingerências do subjetivismo interpretativo. Aquilo que para
o filólogo seria um pretenso maior acordo seu com o texto,
com o texto real, seria por Barthes entendido como um
acordo, meramente, do meio filológico consigo mesmo a
respeito do texto: um consenso que, não sem alguma
patrulha – da qual terá sido vítima o próprio Barthes –,
deverá ser imposto como universal às novas gerações de
leitores, desencorajadas a jogar livremente o jogo da efetiva
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geração de sentidos.Tal universal, portanto, “é apenas um
particular a mais: é um universal de proprietários”
(BARTHES, 2009 [1966], p. 201).
Dois anos mais tarde, em “A morte do autor”
(BARTHES, 2004 [1968], p. 57), Barthes dirá o mesmo, mas
em relação a outra convicção tácita: a de que a leitura que
um escritor, no próprio ato de escrita, faça em tempo real das
palavras que ele mesmo grafa no papel deva ser a mais
autorizada, a verdadeira, servindo de parâmetro e rédea a
futuros excessos interpretativos, e mesmo correspondendo,
por fim, àquilo que o texto, antes de qualquer coisa, é.
Também nesse caso pareceria falar-se, ainda que em outros
termos, de um significado intrínseco ao texto, como de um
corpo em repouso eterno a ser exumado, como de um corpo
essencial a ser despido do que não lhe pertencesse, do que
não lhe fosse originário. Assim como para Platão o
conhecimento estaria dividido entre uma ciência verdadeira
e o mero opinar inconsistente dos não filósofos – a “ἐπιστήμη
[epistḗmē]”, de um lado, e a “πίστις [pístis]” ou “δόξα [dóxa]”,
de outro –, igualmente cindida estaria a leitura, entre o que
se pode conhecer do texto, para além das circunstâncias
mudáveis, e o que se fantasia sobre ele.
Seja desautorizar como último o juízo do filólogo, seja
matar o “Autor”, as insubordinações de Barthes, meras
imposturas inconsequentes à primeira vista, teriam raiz em
outra manobra teórica, de alcance maior. Remontariam elas,
antes de tudo, à licença irrestrita que concede ao que
chamará mais tarde, em “Escrever a leitura” (BARTHES,
2004 [1970], p. 26), de “uma lógica do símbolo”, sempre em
ação quando tocado qualquer texto por qualquer olhar leitor.
Essa “lógica”, diz Barthes,
associa ao texto material (a cada uma de suas frases)
outras ideias, outras imagens, outras significações. “O
texto, apenas o texto”, dizem-nos, mas, apenas o texto,
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isso não existe: há imediatamente nesta novela, neste
romance, neste poema que estou lendo, um suplemento de sentido de que nem o dicionário nem a gramática podem dar conta (BARTHES, 2004 [1970], p. 28).
O advérbio “imediatamente”, grifado no original,
viria garantir: texto algum jamais será visto sozinho, em si
mesmo; não haverá um momento inicial objetivo que anteceda
a projeção fantasiosa do leitor e do seu mundo sobre o texto;
nada neste, de anterior à leitura, de anterior ao cruzamento
imprevisível de imagens, experiências e códigos culturais da
memória que lê, persistiria intocado enquanto aquela
acontece. A presente leitura do trecho citado acima, por
exemplo, não poderia querer-se nunca como repetição, como
descrição neutra do mesmo que terá dito Barthes: há uma
leitura de intermédio, uma nova produção de sentidos
incancelável; e essa leitura – esta leitura –, por mais que
aponte para o grifo de uma palavra “no original”, buscando
um apoio objetivo para sua interpretação, com atenção às
receitas vigentes para o estabelecimento de objetividades
convincentes, terá posto “imediatamente” a perder, de modo
irremediável, o próprio Barthes-“Autor”, tão logo iniciada.
Em toda leitura, pois, não haveria volta, repetição; não haveria exumação possível de um mesmo, mas apenas soterramentos sucessivos do que quer que se imagine ser o originário
num texto, sempre eclipsado pelo espaço diferencial que a
própria leitura, “imediatamente”, inauguraria. Daí é que
decorreria: o que seja tomado como um dado objetivo em
relação a algum texto, ou como um mesmo que perdura, não
o será por obra de uma causalidade universal a-histórica,
intersubjetivamente infalível, como engrenagem nunca exposta à fantasia associativo-fabular dos sucessivos e diversos
leitores; mas o será por obra de uma operação fabular posterior conjunta, mediada por critérios e códigos particulares,
contingenciais, que porventura formem a memória de certos
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46 | Matar ou Criar o “Autor”: o Tradutor entre Barthes e Borges
leitores. Não havendo, pois, um pretenso objeto que, permanecendo puro, condicione ou possa legitimar uma dada
leitura, de certos tipos de leitura é que seriam derivados
certos tipos depretenso objeto, tornados sempre, por um
passe de mágica, ou por um passe de teoria, anteriores a seu
próprio berço, antes contingencial e instável como o de toda
leitura. Não seriam, nesse sentido, tão irrestritamente universais, substratos objetivos e últimos originários do texto, por
exemplo, os límpidos paralelismos de estrutura que teóricos
eslavos da primeira metade do século XX, amparados pela
linguística estrutural de Saussure e comovidos com a arte do
futurismo, nos ensinaram a estabelecer, a exemplo do novelo
de simetrias e assimetrias que Jakobson expõe passo a passo,
com disciplina incansável, em “‘Les chats’ de Charles
Baudelaire” (JAKOBSON, 2002 [1962]). Ater-se à estrutura,
às pretensas intenções do “Autor”, ou ao que digam os
filólogos, não será, portanto, na leitura segundo Barthes,
remontar ao essencial, assim como vestir não será jamais
remontar ao nu. Quem mata o “Autor”, pois, é a leitura, e sua
“lógica do símbolo”.
Mais de duas décadas antes de Barthes desenvolver
seu pensamento sobre a leitura, Jorge Luis Borges publicava,
em 1939, “Pierre Menard, autor del Quijote”, em que se conta
de como certa cadeia de vocábulos, se lida à luz do que terão
sido os anos de 1600 – segundo, por exemplo, o que dizem os
historiadores –, corresponderá a uma obra conhecida,
publicada por Miguel de Cervantes em 1604, mas, se lida à
luz dos anos de 1900, corresponderá a outra obra:o Quijote
de Pierre Menard. Antes que o modelo de leitura teorizado
por Barthes matasse o “Autor”, Menard, ao que parece, já
haveria matado Cervantes: como todos os seus leitores o
matariam ao lê-lo, ainda que em pleno exercício de um amor
incondicional pelo próprio Cevantes, a exemplo de Menard,
a exemplo de Borges.
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Se, no prólogo ao seu Elogio de la sombra, de 1969, o
mesmo Borges enumeraria, em meio às “astúcias” que o
tempo lhe terá ensinado, “evitar os sinônimos, que têm a
desvantagem de sugerir diferenças imaginárias”, o caso aqui
seria outro. Se radicais diferentes, ou diferentes conformações prosódicas (um acento proparoxítono, uma alternância
peculiar de vogais, uma aliteração que evoque um verso de
Cruz e Souza ou Castro Alves etc), ou mesmo diferentes
valores afetivos, sedimentados pelo uso familiar de um ou
outro termo, podem mesmo, em confronto com o “montón de
espejos rotos” da memória, dispersar em direções até opostas
o imaginário deste ou daquele leitor, a despeito da sinonímia
anunciada pelos dicionários, as “diferencias imaginarias” que
tornam outra a obra de Menard frente à de Cervantes, por
outro lado, dão-se no confronto com palavras que seriam as
mesmas, lidas apenas sob outras condições. O desafio ao
senso comum, em se conceber que se trate de duas obras
diferentes,o Quijote de Cervantes e o Quijote de Menard, é
tão desconcertante quanto submeter-se ao mundo estranho
de Ireneo Funes, de “Funes el memorioso”, de 1942, conto
também incluído em Ficciones.
Funes, personagem “quase incapaz de ideias gerais,
platônicas”, não compartilharia do que lhe terá parecido
uma dispensável metafísica cotidiana: aquela que faz supor
sob “o cão das três e catorze (visto de perfil)” e “o cão das
três e quinze (visto de frente)” um mesmo cão essencial que
perdura. Assim como para Funes, em seu mundo infinitamente “multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente
preciso”, seriam dois os cães, que para nós são o mesmo e
único em dois momentos diversos, dois serão os Quijotes, o
de Cervantes e o de Menard, que para nós são o mesmo e
único Quijote em duas leituras diferentes.O particularismo
radical de cada ato de leitura, afirmado pela teoria de
Barthes, e reafirmado por sua prática virtuosisticamente dispersiva da leitura do texto literário, seria um golpe premeSumário
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ditado contra toda tendência, na tradição de recepção de
cada obra, à formação de consensos essencializados, tornados objetos perduráveis – na mesma medida, toda essência
terá sido esquecida por Funes, embora não por opção. Com o
auxílio dessa aproximação entre Barthes e Borges, ou entre
Barthes e Funes, talvez se possa finalmente resumir: não
apenas dois, enfim, mas inúmeros, se assim se quiser, serão
os Quijotes, tantos quantos serão seus leitores, gerando cada
um, a cada vez que reparta nas mãos a massa de suas tantas
páginas, a sua torrente pessoal de “diferencias imaginarias”,
que enterram Cervantes à medida que, de algum modo, um
modo inconfessado, o perpetuam. Mas isso, claro, sempre no
mundo “multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente
preciso” de Roland Barthes.
Sob semelhante regime ético de leitura, ler, querendose ou não, será sempre matar o “Autor”; será sempre,
inescapavelmente, soterrar o originário – a despeito das
ilusões de regresso ao objeto, qualquer que ele seja, infundidas
por tal ou qual método científico. Proceder à leitura de um
texto, forjar em seguida um segundo texto que,com base em
não se sabe quais critérios, e mesmo escrito noutra língua,
àquele primeiro se assemelhe, e, por fim, publicá-lo como
seu duplo noutra cultura: por muito menos que isso, o
filólogo e o estruturalista terão sido cassados. Que seria
então do tradutor, sob esse mesmo regime ético, com um
crime tão mais qualificado de pretensão à identidade com o
originário?
Como um texto que não terá como negar algum
comércio, sempre, com alguma anterioridade, fantasma que
ronda a sua recepção, a tradução pareceria precipitar-se, de
fato, num ambiente hostil; sabe ela imiscuído, nas leituras
que gera, e mesmo nos mais heterodoxos novelos de
“diferencias imaginarias” que perpetrem seus leitores, o germe
de uma difusa nostalgia platônica, memória incriminatória
de um original admirado. É então que o tradutor, em defesa
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de si mesmo e do seu ofício, vem acrescer a já grande lista de
paradoxos sob a guarda de Funes, e, no interior mesmo do
espaço diferencial instaurado com a leitura, vem ele propor
que, paralelamente às “diferencias imaginarias”, e talvez por
algum amor à simetria, admita-se a blasfemia y lainfamia, nada
inconsequentes, de uma identidad imaginaria: a possibilidade
de uma identidade, entre tradução e traduzido, que se saberá
articulada não sob o signo da objetividade, e alicerçada sobre
os pretensos universais do texto traduzido, a serem exumados
e repetidos por seu ato de tradução, mas sob o signo de uma
memória contingencial, particular, situada, que, em seu
lugar e em seu tempo, lê, sabendo que é soterramento a sua
leitura. O tradutor, desse modo, entraria em choque com
Funes, num primeiro momento, ao se ver propondo identidades com um original; com Funes, no entanto, reconciliar-seia de novo logo em seguida, ao dizer serem elas, todas elas,
imaginárias, meros sonhos de uma leitura, leitura que funda,
ela mesma, o original que traduz.
Se a leitura, a leitura segundo Barthes, mata o “Autor” aniquilando sua presença, vendo-se egoística e orgiasticamente a sós o leitor e a página, numa geração anônima de
outros e outros mundos, a tradução o mataria, ao “Autor”,ao
afirmá-lo como indefinidamente múltiplo, num ato de
confusa destruição e reafirmação de sua autoria, segundo a
lombada dos livros testemunha, nas seções de literatura
estrangeiradas livrarias, das bibliotecas. Em decorrência
desse mesmo paradoxo autoral é que dirá Manuel Bandeira,
sobre uma tradução de Onestaldo de Pennafort para as Festas
galantes, de Verlaine: “‘Isto é Verlaine!’ e, ao mesmo tempo:
‘Isto é Onestaldo!’” (VERLAINE, 1983, [orelhas]).Também
Augusto de Campos, introduzindo suas traduções de Dante,
fala no “meu Dante” (CAMPOS, 2003, p. 184). O tradutor,
que lê, mataria, sim, o “Autor”, mas o faria, quem diria, para
criá-lo: nos termos, agora, de uma efígie desautorizada, que
não subsistirá senão como soma incôngrua e móvel das
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identidades imaginarias que se multiplicam, indefinidamente,
a seu pretexto; objetos que se sabem, apenas, pretensos.
A forma eterna
A expressão utilizada por Augusto de Campos –
“meu Dante” – seria apenas um dos sinais de sua consciência
sobre a condição situada, particular, de sua leitura da obra
de Dante; sua tradução, aliás, não hesitaria entre a ousadia
inventiva, de um lado, desde que poeticamente à altura do
seu Dante, e a nem sempre poética “reverência acadêmica ao
texto” (CAMPOS, 2003, p. 184), do outro. Essa atitude potencialmente subversora das objetividades filológicas, ou esse
aparente reconhecimento – “meu Dante” – da plasticidade
possível às identidades imaginarias estabelecidas pela tradução, ou mesmo de sua irremediável condição de alteridade,
conviveriam, no entanto, com uma espécie de contrapeso: o
de que tenham sido “respeitadosos lineamentos semânticos e
o arcabouço formal do poema” (CAMPOS, 2003, p. 184).
Jorge Wanderley, ao traduzir a primeira “cantica” da Divina
comédia, o “Inferno”, não terá feito diferente quanto a esse
aspecto, ao listar, entre os seus objetivos, o de“manter o
esquema métrico e rimário” (WANDERLEY, 2004, p. 48) do
original. Haroldo de Campos também os terá acompanhado,
ao buscar “produzir um texto isomórfico em relação à matriz
dantesca” (CAMPOS, 1998, p. 67).
A questão que surge diante dessas passagens, tão
triviais, não diz respeito às opções de seguir à risca ou não os
esquemas métricos e rimários de um poema, ao traduzi-lo. O
caso seria que, embora todas as instabilidades interpretativas
pareçam tacitamente possíveis na história de um texto, esses
esquemas métricos ou rimários, de um modo que Funes
dificilmente aceitaria, parecem permanecer, também tacitamente, como cristal incorruptível de sob o texto, iguais a si
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mesmos. A forma, em meio ao soterramento generalizado da
leitura, pareceria permanecer intacta: enquanto uma torrente
de “diferencias imaginarias” tornará tudo outro, parecerá que
algum órgão universal do olhar simplesmente colhe, como
objetiva, a forma incólume do poema, como a vê o estruturalista ou como a vê o tradutor “isomórfico”. Será esse um
olhar que atravessa, aparentemente sem sofrer refração, os
mais diferentes tempos históricos. É esse o mesmo acordo
tácito que, diga-se de passagem, compareceria no seguinte
trecho de Bosi, por exemplo, de O ser e o tempo da poesia:
as interpretações de um grande texto diferem muito
de uma geração para outra. Por quê? Certamente, o
processo da consciência histórica e crítica dos leitores
não é tão estável como a forma do poema. A consciência percorre vetores: avança, retrocede, sobe, desce, ou
gira por espirais conforme o momento do processo
social que o leitor ou o seu grupo está vivendo. Já o
tempo da forma é mais denso, compacto, resistente,
mais palpável e acessível ao trabalho da análise; duro,
dura milênios. Podem se refazer, hoje, os esquemas
métricos da Ilíada. Mas o tempo histórico, produtor
dos valores, saturado de conotações ideológicas e
míticas, é mutante por natureza. Para reconstituí-lo
vai algum esforço e muita empatia (BOSI, 2000, p.
145).
Trata-se, sim, do “meu Dante”, portanto; mas, quanto
à forma, é Dante ele mesmo, ou assim se estará sempre pronto
a aceitar.
Sobre o caráter não tão sólido, no entanto, da materialidade linguística, ou sobre a suscetibilidade de sua solidez
sob a memória vária que forme o leitor, Borges terá também
uma fábula. A passagem provém de mais um dos contos de
Ficciones, “La biblioteca de Babel”. Após haver considerado,
seguramente, fruto de uma combinação aleatória a massa de
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caracteres românicos – ou percebidos como românicos – que
preenchia as páginas de um dos volumes da biblioteca, pôde
surpreender o narrador que esse mesmo volume, em meio
aos bibliotecários de uma sala distante, noutro dos muitos
pavimentos de número talvez infinito do extenso complexo
de torres, fosse lido fluentemente em voz alta, numa língua
que ele não compreendia; o objeto que eles viam, ao lerem,
para ele permanecia invisível; o volume que agora folheavam, era e não era o mesmo que ele havia folheado dias atrás;
dois os leitores, duas as leituras e dois os cabedais de
códigos culturais: dois os objetos. Talvez os falantes desse
idioma estranho, acrescentaria Borges, ou de algum outro
dos inumeráveis falados na biblioteca, pudessem ler outro
livro inaudito na mesma sequência de caracteres que os
ingleses aprenderam a reconhecer, por exemplo, como o
Hamlet de Shakespeare.
Da fábula ficcional de Borges não estará distante a
fábula teórica de Barthes, que, em “Da obra ao texto”, falará
sobre o significante não dever “ser imaginado como ‘a
primeira parte do sentido’, seu vestíbulo material, mas, sim,
ao contrário, como o seu depois” (BARTHES, 2004 [1971], p.
69). A operação de derivar, de manchas diminutas de tinta
numa página, num átimo inescrutável, logo traços precisos, e
logo letras de um alfabeto, e logo movimentos articulatórios,
e logo palavras, que logo serão também ideias, pessoas,
países, vivências ou coisas, não se daria em algum órgão
mantido a salvo do aprendizado cultural, ou como processo
apartado do constante metabolismo simbólico da memória.
O corpo, que percebe, será sempre um corpo formado
culturalmente, e por isso portador de um repertório memorial – formas, cores, ritmos, textos etc. – em contínuo
processo de releitura, e em contínuo processo de transformação pela história; não seria um processo universal, em
suma, o que daria conta da formação dos significantes sob
um olhar, mas, já, um processo de leitura. A relativa imporSumário
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tância dessa ideia,mas não mais para a tarefa de identificar
caracteres, e, sim, para a tarefa de ler e traduzir poesia,
talvez se mostre com uma visita, ainda que curta, mais
adiante, ao exemplo das traduções da obra de Dante. Mas se
siga.
Embora em “There are more things”, conto incluído no
seu El libro de arena, Jorge Luis Borges, mais uma vez,
também considere o assunto – “para ver una cosa hay que
comprenderla”... –, o que segue desta vez são palavras de
Rudolf Arnheim:
a percepção não é uma assimilação mecânica dos
dados retinianos, mas a criação de uma imagem estruturada. Perceber consiste em descobrir um padrão
estrutural que se ajusta à configuração das formas e
cores transmitidas a partir da retina (ARNHEIM, 2004
[1979], p. 314).
A forma, para Arnheim – os elementos relevantes de
uma composição pictórica, por exemplo –, não seria colhida;
seria sempre o resultado de um processo ativo de formação,
em que tomaria parteum repertório memorial particular, um
feixe de “padrões estruturais” alguma vez catalogados pelo
olhar que vê. O resultado dessa concepção seria o de que
Pessoas diferentes veem, de fato, coisas diferentes. [...]
Não se trata apenas de uma diferença de “interpretação”, que faria a imagem percebida ser igual para
todos os observadores. Equivale a perceber uma
pintura diferente (ARNHEIM, 2004 [1979], p. 313).
Em outras palavras, não haverá um ver, “igual para
todos os observadores”, anterior ao interpretar, sendo o próprio ver, “imediatamente”, já o interpretar. E valerá acrescentar que “a obra como tal, a percepção objetiva, nunca será
vista por ninguém” (ARNHEIM, 2004 [1979], p. 333). O
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elemento de instabilidade, o particularismo subjetivo, trazidos com a admissão de que os repertórios culturais incidam
diretamente sobre o ato de percepção, é que tornaria possíveis episódios como o de Kandinsky, numa primeira apreciação do impressionismo:
A história da arte nos oferece exemplos extraordinários de observadores competentes que eram incapazes de ver obras que, algumas gerações mais tarde,
não ofereciam nenhuma dificuldade a uma pessoa
mediana. Hoje achamos difícil acreditar que, ao visitar
uma exposição dos impressionistas franceses em
Moscou, na década de 1880, o jovem Kandinsky não
tenha sido capaz de identificar o tema representado
numa tela de Monet: “O catálogo me diz tratar-se de
um monte de feno, mas não pude reconhecê-lo, o que
achei constrangedor. Senti, também, que o pintor não
tem o direito de pintar de forma tão irreconhecível”
(ARNHEIM, 2004 [1979], p. 313).
No caso da poesia, ou, mais especificamente, da
métrica, que aqui interessará, poder-se-ia dizer que os “padrões estruturais”, referidos por Arnheim em relação à percepção visual, seriam, antes de tudo, de outra natureza:
corresponderão a uma memória sonora, e, não menos, a uma
memória muscular, formada ao longo da leitura de uma série
de obras. Concedendo-se licença ao trivial: um grafema
como o m, por exemplo, não representará apenas uma
entidade ideal, uma mera possibilidade combinatória, sem
rosto ou corpo, que diferencia mala de fala. Além de como o
estuda a fonologia, haverá o modo como o estuda a fonética:
o m se vincularia indissociavelmente na memória de alguém
a um som, e, mais do que isso, a um movimento dos lábios,
dos pulmões que empurram o ar garganta acima, das cordas
vocais que vibram e da língua que, moldando o som numa
vogal, dá aos lábios o que falta à eclosão da sílaba: ma. Se
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assim se admite, sílabas lidas – ma, cor, sol, ti etc. – não
culminarão apenas em sons, mas numa combinação precisa
de sutis movimentos corporais, que envolverão pulmões,
cordas vocais, língua, dentes e lábios, bem como a criação de
inércias. Como amálgama sutil de sentido, música e dança,
cada vocábulo constituiria, assim, uma articulação de sons,
mas que também traria em si implícita uma coreografia dos
órgãos da fala. Se, indo-se adiante, o verso corresponde a um
encadeamento de vocábulos, o que estará em pauta agora é a
execução, em cadeia, de diferentes movimentos de corpo.
Um artista circense, a esse respeito, talvez pudesse
confirmar: uma pirueta, sozinha, não será o mesmo que uma
pirueta entre um salto mortal e uma reverência ao público; o
caso é que cada movimento individual – uma pirueta, um
salto – gerará o seu quinhão de inércia, energia a ser reabsorvida no movimento subsequente, em que uma nova injeção
de energia, um novo impulso, entra no conjunto para ter
suas sobras de novo absorvidas num terceiro movimento, e
assim sucessivamente, integrando-se todos, como numa
frase, num único grande movimento composto. Essa dinâmica não parecerá tão estranha a um leitor atento de poesia: as
palavras, quando em sequência, transmitiriam umas às
outras, sucessivamente, o impulso que sobra de sua própria
articulação, impulso que a próxima palavra retrabalharia
num novo ápice acentual, ou resolveria de algum modo
harmônico, dando fim ao verso. Como na ginástica olímpica
ou na patinação no gelo, se o impulso do movimento
anterior for maior do que o movimento subsequente pode
absorver, o verso cai; se for menor do que ele precisa para
ser executado, ele perde em decisão e fluidez, torna-se hesitante e forçado, e os jurados reclamam. Quando a economia
é perfeita, administrando-se a energia do início ao fim sem
dissipações, crê-se ter em mãos um caso de exemplar
equilíbrio de forças – forças ou musculares ou acentuais, o
que aqui já não parecerá importar muito. Aos diferentes
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modos como se podem distribuir, ao longo do grande
movimento composto que seria um verso, os momentos de
impulso, corresponderiam os diferentes “padrões estruturais” conhecidos, por exemplo, do decassílabo de língua
portuguesa, ou do endecasillabo italiano,sendo alguns desses
“padrões” privilegiados pela prática poética de uma época, e
outros, não. Diferentes fórmulas para o equilíbrio sonorocoreográfico de um verso – eis os diferentes “padrões estruturais” – circulariam em diferentes épocas. Com algumas
consequências.
Assim como a formação de Kandinsky sob certo
repertório visual lhe terá rendido certo modo de ver, que terá
incidido sobre sua primeira recepção da obra de Monet, a
formação de um leitor – ou tradutor – sob certo repertório
métrico talvez lhe renda certos modos de ouvir e articular
primários, que não deixarão de tomar parte em seus atos de
leitura. E dificuldades daí advindas, como aquela enfrentada
por Kandinsky, não deixarão de ocorrer. D’Arco Silvio
Avalle, especulando sobre que tipo perdido de musicalidade
pode ter sido a do Psalmus contra partem Donati, escrito no
ano de 393 por Santo Agostinho, num contexto fonéticofonológico bastante diverso do que se experiencia hoje com
as atuais línguas românicas, volta-se precisamente para o
particularismo histórico indissociável do seu olhar – ou dos
seus (e dos nossos) ouvidos:
a sensibilidade musical não é um fato da natureza,
mas um fenômeno cultural [...]. Aquilo que nos parece
incompreensível (e que tendemos a atribuir a leis
universais da articulação fônica), na verdade, pode ter
tido um significado preciso em outros momentos
históricos, em presença de outras e diversas sensibilidades musicais. Os nossos “valores” não são valores universais, mas valores de alguma forma “datados”, relativos, sobre os quais o ouvido se exercitou
com a exclusão de outros “valores”, que não conse-
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guimos mais perceber senão com grande esforço e
desconcerto, em virtude dos nossos mais inveterados
hábitos prosódicos (AVALLE, 1979, p. 25-6, tradução
nossa).
Também será de “inveterados hábitos prosódicos”, e
de sua incidência sobre a percepção métrica, que falará Aldo
Menichetti, mas, desta vez, em relação a um fenômeno
diretamente relacionado com a poesia de Dante, qual seja:
o fato de que a sensibilidade rítmica pode variar consideravelmente no tempo, fazendo com que, por
exemplo, o andamento acentual de alguns versos do
duecento e do trecento pareçam, a um ouvido habituado aos padrões petrarquistas, antes prosaico do
que poético (MENICHETTI, 2004 [1984], p. 10, tradução nossa).
Os “padrões petrarquistas”, a que se refere Menichetti, fazem remontar a uma questão que, ao menos sob a
miragem de certa identidad imaginaria aqui mesmo articulada
e proposta, será de fundamental importância.Trata-se da
reforma que se terá dado, à época do Renascimento, no repertório dos padrões de equilíbrio praticados no decassílabo,
ou no endecasillabo, seu equivalente italiano. Certo tipo de
decassílabo, de acentos – ou impulsos – principais sobre a 4ª,
a 7ª e a 10ª sílabas métricas, “já minoritário embora não
infrequente na poesia do Duecento e de Dante”, teria
sofrido“uma forte redução de uso na poesia lírica a partir de
Petrarca” (BELTRAMI, 2002, p.182, tradução nossa). A partir
da Poetica (1529) de Trissino, os tratadistas terão começado
mesmo a reputar “menos harmônicos, musicais, apreciáveis
que os outros” (BELTRAMI, 2002, p.46) os versos acentuados
na 4ª e na 7ª sílabas, em lugar de na 4ª e na 8ª, ou na 4ª e na
6ª. É o que terá feito Minturno, por exemplo, em sua Arte
poetica, de 1563 (BELTRAMI, 2002, p.128). Spina, por seu
Sumário
58 | Matar ou Criar o “Autor”: o Tradutor entre Barthes e Borges
lado, também dá conta, na tradição ibérica, desse processo,
isto é, “a substituição dos decassílabos de tradição ibérica ou
de influência franco-provençal pelo metro italiano à moda
petrarquista – que acentuava o verso nas sílabas pares”
(SPINA, 2003, p.59). De tal modo ter-se-ão estabelecido os
“padrões petrarquistas”, inclusive até a modernidade, que
Camilo Pessanha, talvez o único a utilizar sistematicamente,
na tradição de língua portuguesa pós-camoniana, o
decassílabo com acento na 7ª, “por algum tempo parece ter
acreditado mesmo que se tratava de uma solução sua,
original” (FRANCHETTI, 2001, p.41), muito embora a leitura
atenta de cantigas de D. Dinis e de Garcia de Guilhade, ou
mesmo de alguns sonetos de Sá de Miranda – precisamente o
introdutor das mudanças em Portugal –, lhe pudesse
lembrar o contrário, como lhe acabou fazendo a leitura de
Verlaine (FRANCHETTI, 2001, p.41).
Embora a troca de um acento sobre a 8ª por um
acento sobre a 7ª, em termos abstratamente matemáticos,
possa parecer insignificante, a leitura de um exemplo talvez
dê a dimensão do quanto acarretaria, essa mesma troca, em
termos de movimento concreto do todo do verso. Seguem
abaixo, com uma proposta de tradução (e algum desregramento gramatical), os três primeiros versos da composição LXXXVIII das Rime, segundo o texto fixado por
Michele Barbi para a edição crítica de 1921 das Opere de
Dante (ALIGHIERI, 2011). O eu lírico se dirige a sua donna
para dizer-lhe, em tom de queixa, que apenas porque se vê
tão nova e bela, tem ela orgulho e dureza – desdém – no
coração:
Perché ti vedi giovinetta e bella,
tanto che svegli ne la mente
Amore,
pres’hai orgoglio e durezza nel
core.
(Rime, LXXXVIII
Porque menina e graciosa e
bela, tanto que esperta em
toda mente Amor, coração tens
que em dureza é senhor.
(tradução nossa)
Sumário
Tradução e Autoria
| 59
A leitura em voz alta talvez dê conta: os acentos sobre
a 4ª, a 7ª e a 10ª sílabas, no terceiro verso, e não sobre a 4ª, a
8ª e a 10ª, como nos anteriores, emprestariam ao verso um
movimento final perfeitamente ternário, que se estenderia da
quarta à última sílaba como valsa constante – talvez um movimento maestoso, diria um músico –, gerando uma impressão de maior lentidão, em contraste com a alternância binária, e não trinária, que fecharia os outros dois – um allegretto,
quem sabe. A Fig. 1 busca representar graficamente essa
diferença, diga-se de novo, coreográfica:
Figura 1 – Distribuição de acentos métricos nos três primeiros
versos de “Perché ti vedi giovinetta e bela”,
de Dante (Rime, LXXXVIII)
Sumário
60 | Matar ou Criar o “Autor”: o Tradutor entre Barthes e Borges
Esse mesmo padrão assumiria uma forma ainda mais
marcada – em meio a sáficos e heroicos de um mesmo
poema, como acima –, nos casos em que um quarto impulso,
na primeira sílaba, viria torná-lo,do início ao fim,uma
perfeita sequência ternária. É o padrão que vai aqui
apelidado de metro-valsa, e do qual teria Dante, ao menos
segundo alguns ouvidos, muitos belos exemplos. Seria o
caso – escolhido a esmo – de quando se depara com certa
“saggiadonna”, a sábia dama que praz aos olhos tanto que, no
coração de quem a vê, nasce um desejo por aquilo que praz:
“nasce undisio de la cosa piacente” (Rime, XVI), ou “nasce um
desejo da coisa prazente”. Seriam também exemplos,
escolhidos ao acaso, “esse meu verbo antipático e impuro”,
da “Oficina Irritada”, de Drummond; “doce repouso de
minha lembrança”, de Camões;“quando passònella mente um
romore”, de Cavalcanti;“mais os que troban no tempo da
flor”, de D. Dinis, entre tantos, como talvez o próprio “pres’
haiorgoglio e durezzanel core”, a depender da leitura (“tens
coração que em dureza é senhor”, então, seria uma tradução
possível). A Fig. 2 traz uma representação gráfica do padrão
de distribuição de seus impulsos, ou acentos:
Figura 2 – Distribuição de acentosnum
exemplo de metro-valsa (Rime,XVI)
Tais tipos de verso, enfim, de finalização ternária, é
que os ouvidos pós-petrarquistas de Theodor Elwert, segunSumário
Tradução e Autoria
| 61
do Menichetti, em complemento ao trecho de mais acima,
terão rejeitado – como os olhos do jovem Kandinsky ao
monte de feno de Monet:
É sintomático (e inaceitável, porque remete a uma
concepção imanentista do ritmo) que Elwert qualifique tais versos de “arrítmicos”, chegando a afirmar
que “somente no curso dos séculos o ritmo veio a ser
elemento intrínseco ao verso italiano. A lírica italiana
antiga o ignora completamente”
(MENICHETTI, 2004 [1984], p. 10, tradução nossa).
Considerados, frise-se, apenas os 1000 versos iniciais
da Gerusalemmeliberata (1581), de Tasso; do Orlando Furioso
(1516), de Ariosto; do Canzoniere (composto entre 1336 e
1374), de Petrarca; e da Divina Comédia (composta entre 1304
a 1320), de Dante, tais versos “arrítmicos” corresponderiam,
respectivamente em cada obra, segundo Fasani, a 1,3%, 4,4%,
6,4% e 16,1% das amostras (FASANI, 1992, p. 14). A Comédia
constituiria um “unicum” métrico, por ser dessas obras, e
incluídas ainda as de Guittone e Giacomo da Lentini, aquela
em que os três padrões considerados por Fasani se encontrariam em quantidades mais próximas de um equilíbrio
(FASANI, 1992, p. 15). Na impossibilidade de se demorar em
longas análises, segue abaixo, na Fig. 3, um quadro das
variações métricas, verso a verso, de pelo menos um dos
“Cantos” da Comédia: o “Canto V”, do “Inferno”:
Figura 3 – Variações métricas na Divina Comédia (Inf., Canto V)
Sumário
62 | Matar ou Criar o “Autor”: o Tradutor entre Barthes e Borges
Os valores de “1” a “142”, dispostos no eixo horizontal, corresponderiam, um a um, aos 142 versos do
“Canto”. Os valores de “0” a “4”, dispostos no eixo vertical,
corresponderiam aos diferentes padrões acentuais: o valor
“0”, por exemplo, foi atribuído para heroicos e sáficos (versos que têm entre os seus principais acentos um acento sobre
a 6ª e/ou a 8ª sílaba); o valor “1”, para versos com acentos
geminados (sobre a 6ª e a 7ª sílaba), de leitura ambígua; o
valor “2”, para os versos de finalização ternária (acentos
sobre a 4ª, a 7ª e a 10ª); e o valor “4”, para versos inteiramente ternários (metros-valsa). Desse modo, os metros-valsa,
por exemplo, segundo o gráfico, totalizariam nove em todo o
“Canto” – os nove picos mais altos –, cinco deles
concentrando-se logo ao início. Nas Fig. 4, 5, 6 e 7, vê-se um
gráfico análogo de pelo menos quatro traduções do mesmo
“Canto V” para o português: as de Cristiano Martins
(MARTINS, 2006 [1976]), Augusto de Campos (CAMPOS,
2003 [1986]), Vasco Graça Moura (GRAÇA MOURA, 2005
[1996]) e Jorge Wanderley (WANDERLEY, 2004), respectivamente. O valor “3” foi utilizado para versos com acento
sobre a 9ª (um em Augusto de Campos, dois em Graça
Moura, um em Wanderley), bem como para o verso idêntico,
de acentos sobre a 3ª, a 5ª e a 8ª, que aparece como tradução
do segundo verso do trecho nas versões tanto de Graça
Moura quanto de Wanderley.
Figura 4 – Variações métricas na tradução de
Cristiano Martins (Inf., Canto V)
Sumário
Tradução e Autoria
| 63
Figura5 – Variações métricas na tradução
de Augusto de Campos (Inf., Canto V)
Figura6 – Variações métricas na tradução
de Vasco Graça Moura (Inf., Canto V)
Figura7 – Variações métricas na tradução
de Jorge Wanderley (Inf., Canto V)
O que os gráficos talvez deixem entrever de um
modo prático: os versos de cadência final ternária das quatro
traduções – metros-valsa completos ou não –, se somados,
totalizariam 18, contra os 24 que movimentariam, segundo
certos ouvidos, o texto italiano. Na maioria dos casos,
acrescente-se, em que parecem surgir nas traduções os
andamentos ternários, não corresponderiam eles a trechos
ternários do original. Ao menos segundo um inescapável
modo de ler, aqui em ato, modo alimentado por fábulas de
Borges e dos historiadores da métrica, talvez seja lícito
pensar, pois, que alguns “inveterados hábitos prosódicos”,
agora reconhecidos, terão sido decisivos em tais traduções,
Sumário
64 | Matar ou Criar o “Autor”: o Tradutor entre Barthes e Borges
abrindo-se um caminho, entre tantos possíveis ainda à
sombra, para a constituição, em língua portuguesa, de novas
identidades imaginárias para a obra de Dante, inclusive em
termos ditos formais. A forma já não mais será eterna, igual a
si mesma sempre, mas um cristal ambíguo que se crie a cada
vez, como todo o resto do texto: assim como para Arnheim
“ninguém jamais viu a percepção objetiva” (ARNHEIM,
2004 [1979], p. 331), e assim como para Funes são todas as
coisas, ninguém jamais o terá nas mãos, a esse cristal, por
completo. Mas o argumento para uma nova multiplicação de
Dante – argumento que já o multiplica – não acabaria aqui,
no desejo por um perfil sonoro-coreográfico, apenas, aparentemente mais medieval.
Coda: repertório métrico-gestual,“circulata melodia”
e mais um Dante
No exemplo de “Perché ti vedigiovinetta e bella”, a
altura em que surgiria na composição a cadência ternária
seriaa mesma em que surgiria a “durezza” de coração da
“donna”. No poema “Iosonvenuto al punto de la rota” (Rime, C),
fala o eu lírico da obstinação do seu amor: “la mente mia,
ch’èpiù dura chepetra”, ou “a mente minha, mais dura que
pedra”. Também depois de acordar de um sonho, no “Canto
XIX” do “Purgatorio”, Dante encontra o anjo com asas de
cisne que lhe indica a estreita passagem para o próximo nível
do monte, “tradueparetidel duro macigno” (Purg., XIX, 48), ou
“entre dois muros do duro rochedo”. A coreografia, associada de novo e de novo ao pétreo, formaria com ele apenas
um exemplo, entre muitos,de certas figuras recorrentes,
integrantes de um possível repertório métrico-gestual da obra
de Dante, em que mudanças coreográficas pareceriam
conferir relevo e expressividade a certos elementos, como a
mão que acompanha a fala de alguém: da violência de um
Sumário
Tradução e Autoria
| 65
impacto físico, como um inesperado pungir de esporas, à
suavidade ou ao “dolzore”do sorriso da “donna”;do enlevo
indizível de contemplá-la, traduzido imaterialmente em
influxos celestes, vozes de anjo ou ferimentos a luz, à
dinâmica sobressaltada dos “spiriti”, que, carregando dos
olhos ao coraçãoas imagens daquela,transformam-se ali em
“sospiri” fugitivos, abandonando rapidamente o corpo, que
desfalece. As cadências ternárias, sobretudo nesses contextos
de transfiguração pelo amor – “ond’io mi cangio in figura
d’altrui” (Rime, XI), ou “donde eu assumo a figura de um
outro” –, teriam um papelfundamental; e essa cadência
hipnótica, de quando “nasce um disio de la cosa piacente”,
sempre infundindo “tanta dolcezza, che ‘l viso ne smore” (Rime,
XXIV),ou infundindo tanta doçura que“angelo clama in divino
intelletto” (Rime, XIV), cadência essa, ainda, que a língua
ensaiariaàs vezes por si só – “come per se stessa mossa” (Vita
nuova, §XIX) –, como ao iniciar da canção “Donnech’
aveteintelletto d’amore” (Rime, XIV), seria cadência que viriaa
assumir tal papel pela pertinência de suas relações com
ainda outros elementos, sugestivos, de sentido.
O enrolar da cauda de Minos em torno das almas
recém-chegadas ao inferno (início do “Canto V”); o ato de
envolver uma corda em torno da cintura; o arco formado por
um arco-íris; a forma circular de um caminho no inferno; o
giro dos anjos ou de centelhas divinasem grande coroa;o giro
cego da esfera da fortuna; o “amor angelico” volteando em
torno de Maria e fazendo soar uma irresistível “circulata
melodia” – “l’altaletiziachespiradel ventre” (Par. XXVIII, v. 104),
ou “alta alegria que emana do ventre” –; a “girazione” dos
céus e dos astros, fazendo avançar o tempo, ou favorecendo
o nascimento do amor nos corações: talvez por seu caráter
perfeitamente cíclico, de “rotach’igualmenteè mossa” (Par.,
XXXIII, 144), ouroda que se move por igual, é que o metrovalsatanto compareça em tais passagens.Um metro circular,
cujas partes se repetem, e um metrosem faltas, “s’elli ha le
Sumário
66 | Matar ou Criar o “Autor”: o Tradutor entre Barthes e Borges
parti igualmente compiute” (Par., XXVIII, 69), que“partes já
tem igualmente completas”. É comum lembrar-sea referência
às estrelas que fecha o “Inferno”, o “Purgatorio” e o “Paradiso”, como elemento circular da estrutura do poema: três
grandes ciclos que se consumam sob o grande ciclo do
poema inteiro. Mas no interiorde cada um desses três ciclos,
acrescente-se, 33 “Cantos” se iniciam e se concluem, como
ciclos menores; no interior de cada “Canto”, vários tercetos
se iniciam e se concluem, como ciclos ainda menores; em
cada terceto, três ciclos de dez sílabas métricas se iniciam e
se concluem; e, por fim, em alguns desses versos, três ciclos
de três sílabas se iniciam e se concluem (permanecendo o
último incompleto), num giro agora velocíssimo, se em comparação ao amplo giro das três “cantiche”. As relações dessa
sobreposição de círculos em movimento com a estrutura
divina dos céus, tão minuciosamente explicada por Beatriz
nos “Cantos” do “Paradiso”, e mesmo com o Amor – “ego
tamquamcentrumcirculi...” (Vita nuova, §XII) –, motor de tudo,
faria pensar no rei eterno com as grandes rodas – “lo rege
eterno com leruotemagne” (Purg., XIX, 62) –, que tanta ordem
terá dado a “quanto na mente e no espaço volteia”, a“quanto
per mente e per loco si gira” (Par., X, 4). Uma doutrina escondida sob certos versos? “Sotto‘l velame de li versistrani” (Inf.,
63)? Tais considerações, resumidas ainda na Fig. 8 abaixo,
nada vêm concluir: serão antes, e apenas,o início de mais um
Dante.
Sumário
Tradução e Autoria
| 67
Figura 8–Proposta de leiturada estrutura circular da Comédia
REFERÊNCIAS
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Dantesca Italiana. Florença: Le Lettere, 2011.
ARNHEIM, Rudolf. Intuição e intelecto na arte. 2 ed. São Paulo,
Martins Fontes, 2004.
AVALLE, D’ Arco Silvio. Le origini della versificazione moderna.
Torino: G. Giappichelli Editore, 1979.
BELTRAMI, Pietro G. La metrica italiana. 4 ed. Bologna: il Mulino,
2002.
CAMPOS, Augusto de. Invenção: de Arnaut e Raimbaut a Dante e
Cavalcante. São Paulo: Arx, 2003.
CAMPOS, Haroldo de. Pedra e luz na poesia de Dante. Rio de Janeiro:
Imago, 1998.
FASANI, Remo. La metrica della Divina commedia: e altri saggi di
metrica italiana. Ravena: Longo Editore, 1992.
Sumário
68 | Matar ou Criar o “Autor”: o Tradutor entre Barthes e Borges
FASANI, Remo. L’infinito endecasillabo e tre saggi danteschi. Ravena:
Longo Editore, 2007.
FRANCHETTI, Paulo. Nostalgia, exílio e melancolia: leituras de
Camilo Pessanha. São Paulo: Edusp, 2001.
GRAÇA MOURA, Vasco. (Trad.) A divina comédia. São Paulo:
Landmark, 2005.
JAKOBSON, Roman. “‘Les chats’ de Charles Baudelaire”. [1962].
In: Costa Lima, Luiz (org.). 2002. Teoria da literatura em suas fontes.
vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 833
MARTINS, Cristiano. (Trad.) A divina comédia. Belo Horizonte:
Itatiaia, 2006.
MENICHETTI, Aldo. “Problemi della metrica". In: ANTONELLI,
Roberto. (org.) La costruzione del testo poetico: metrica e testo. Roma:
Aracne, 2004. pp. 7-50
SPINA, Segismundo. Manual de versificação românica medieval. 2. ed.
São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
VERLAINE, Paul. Festas galantes. Tradução Onestaldo de
Pennafort. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. 160 p.
WANDERLEY, Jorge. (Trad.) A divina comédia: inferno. Rio de
janeiro: Record, 2004.
Sumário
Tradução e Autoria
| 69
Izabela Leal
Introdução
O suplemento literário do jornal Folha do Norte surgiu
em 5 de maio de 1946, fundado e dirigido pelo escritor
Haroldo Maranhão, e durou até 1951, reunindo uma geração
de jovens escritores paraenses, como o próprio Haroldo
Maranhão (1927-2004), Oliveira Bastos (1933-2006), Benedito
Nunes (1929-2011), Max Martins (1926-2009), Mário Faustino
(1930-1962), Ruy Barata (1920-1990) e Paulo Plínio Abreu
(1921-1959). Batizado de “Arte-Literatura”, o suplemento
permitiu a divulgação de poemas, capítulos de romances,
traduções e trabalhos de crítica literária produzidos pelos
autores locais e por colaboradores de outros estados1 e tinha
como objetivo a difusão e circulação do que estava sendo
produzido de novo na literatura brasileira e no exterior.
É importante atentar para o espaço que a atividade de
tradução ocupou no jornal, funcionando como fonte de
informação e circulação de textos, fundamental para a ampliação de horizontes dos jovens autores e proporcionandolhes uma via de diálogo com os movimentos literários desenvolvidos nos grandes centros do país. Durante o período de
Para maiores informações a respeito do suplemento ArteLiteratura, conferir as teses de Marinilce Coelho (2008) e Maria de
Fátima do Nascimento (2012).
1
Sumário
70 | Autores/Tradutores Portugueses no Suplemento Arte-Literatura
circulação do suplemento foram traduzidos mais de 100
poemas, dos mais variados autores e línguas, entre elas francês, inglês, alemão e espanhol. Foram publicados também
textos de alguns escritores que impulsionaram a reflexão
teórica sobre tradução no Brasil, como Paulo Rónai e Sérgio
Milliet.
Este capítulo pretende investigar a presença de
autores portugueses em algumas traduções/textos críticos
que foram publicados no suplemento literário da Folha do
Norte. Parte desse material é proveniente de escritores que
desenvolviam a atividade de escrita durante o período de
circulação do suplemento, como Maria da Saudade Cortesão2
(1913-2010), que traduziu o poema “The wanderer”, de W.
H. Auden (1907-1973); João Gaspar Simões (1903-1987), que
colaborou no suplemento com um texto ensaístico; e Paulo
Quintela (1905-1987), que traduziu três poemas de Rainer
Maria Rilke (1875-1926). Outra parte do material foi escolhida pela mão dos próprios editores, que decidiram incluir
traduções de autores que a essa altura já estavam mortos,
como é o caso de Alexandre Herculano (1810-1877), do qual
constam uma tradução de Friedrich Hölderlin (1770-1843) e
outra de Richard Wagner (1813-1883); e Fernando Pessoa
(1888-1935), que comparece com uma tradução para o inglês
de um soneto de Luís de Camões (1524-1580). Comentarei o
poema “A pátria”, de Friedrich Hölderlin, traduzido por
Alexandre Herculano; o texto ensaístico de João Gaspar
Simões intitulado “O valor da descoberta em literatura”; e o
soneto “Alma minha gentil que te partiste”, de Camões, traduzido por Pessoa. Procurarei avaliar em que medida essas
traduções/textos ensaísticos dialogam com os trabalhos que
Herculano, João Gaspar Simões e Pessoa desenvolveram
enquanto autores, propondo uma reflexão que será atraPoeta e tradutora, filha de Jaime Cortesão. Veio para o Brasil
acompanhando a família e casou-se com Murilo Mendes em 1947.
2
Sumário
Tradução e Autoria
| 71
vessada pelos diferentes pontos de vista com que esses
autores pensaram a questão da identidade portuguesa.
Partida e retorno na cultura portuguesa
A história do povo português é, como bem lembra
Clara Rocha, indelevelmente marcada pelos movimentos de
viagem e regresso: “repetidas vezes houve no nosso percurso colectivo momentos de viagem, de saída (os Descobrimentos, a guerra colonial, a emigração), contrabalançados
por movimentos de regresso (por exemplo, as sucessivas
fases da descolonização).” (ROCHA, 1985, p. 223). Se, por
um lado, a partida e a aventura se configuram como imagens
necessárias à cultura portuguesa, por outro, a perda da terra
natal desencadeia o sentimento da saudade, do exílio, também característico do “espírito” português. Ainda segundo
Clara Rocha, o século XX será marcado por duas linhas de
força antagônicas, oscilando entre “a intenção de abrir ao
público português novas perspectivas, ‘saltando’ as fronteiras nacionais em busca de literaturas alheias”, ou assumindo
a “demanda duma identidade cultural literária e naciona[l]”
(ROCHA, 1985, p. 224)
Esse embate, segundo creio, irá atravessar as traduções/textos portugueses publicados no suplemento da Folha
do Norte. Ainda que Clara Rocha se debruce sobre um momento histórico muito específico, as vanguardas do século
XX, tal embate se apresenta desde muito cedo na história de
Portugal, remetendo no mínimo ao século XIV, e sendo aquilo que António Sérgio identifica muito propriamente como
uma tensão entre a política de fixação e a política de transporte (SÉRGIO, 1975, p.27). Nos séculos seguintes, e sobretudo após o século XVI, essa problemática se altera um
pouco e o que está em questão não é mais a relação com o
outro, o estrangeiro, mas ao contrário, uma espécie de ausênSumário
72 | Autores/Tradutores Portugueses no Suplemento Arte-Literatura
cia de relação, um alheamento profundo em relação ao outro
que não deixa de repercutir num alheamento em relação ao
próprio. É importante lembrar que o século XIX é caracterizado por Eduardo Lourenço (1999) como um momento de
despertar, momento em que os intelectuais começam a se
questionar a respeito dos rumos que o país havia tomado.
Trata-se de uma época marcada por um profundo sentimento de insatisfação, gerado pela consciência de uma pátria
decadente, estagnada, sem projeção no cenário cultural
europeu. Para os autores românticos, o processo de decadência se encarnava no esquecimento das raízes populares e
nacionais e no pouco caso com que eram tratados os monumentos que deveriam atestar a importância histórica da
nação.
Eduardo Lourenço comenta essa situação de isolamento, chegando a utilizar a metáfora da ilha para se referir à
singular conjuntura portuguesa no século XIX:
[...] dessa singularidade faz parte o estranhíssimo
fenômeno, mais do que paradoxal, de ter sido durante
séculos uma nação que viveu e se viveu simbolicamente como uma ilha, sendo ao mesmo tempo um
povo que desde os séculos XV e XVI se instalara no
papel de descobridor e colonizador, em terras de
África, do Oriente e do Brasil. (LOURENÇO, 1999, p.
95)
É nesse contexto que Alexandre Herculano3 traduz o
poema significativamente intitulado “A pátria” (“Die HeiUm dos expoentes do Romantismo em Portugal, junto com
Almeida Garrett, é também o autor da monumental História de
Portugal. Introdutor do romance histórico em Portugal, Herculano
soube alinhar sua grande erudição como historiador e jornalista ao
talento literário, produzindo obras que se tornaram célebres e
constituíram o ponto de partida para a moderna prosa de ficção
3
Sumário
Tradução e Autoria
| 73
mat”), de Friedrich Hölderlin4. Embora pouco conhecido como tradutor, Herculano era conhecedor de várias línguas e
traduziu do inglês, do francês, do alemão, do italiano e do
latim (OLIVEIRA, 2008, p. 114). O interesse de Herculano pela atividade de tradução começou bem cedo; no Dicionário do
Romantismo literário português, organizado por Helena Carvalhão Buescu, consta a informação de que o autor, por volta
de 1828, já estudava alemão e se dedicava à tradução do Fantasma de Schiller (PEREIRA, 1997, p. 223).
Herculano e Hölderlin: a pátria em questão
É curioso pensar que Herculano provavelmente conheceu e reconheceu a importância do autor alemão num período em que sua obra ainda não tinha obtido o devido reconhecimento nem mesmo por seus amigos e contemporâneos,
como Schiller e Schelling, o que só veio a ocorrer um bom
tempo depois da sua morte, em 1843. O poema “Die Heimat”
foi publicado originalmente no livro Gedichte 1784-1800 (Poemas 1784-1800). A versão publicada no suplemento da Folha
do Norte apresenta apenas duas estrofes, o que pode remeter
em Portugal. Inspirando-se no romance histórico de Walter Scott,
Herculano empreendeu um projeto de reforma da sociedade portuguesa do século XIX, buscando no passado, mais especificamente na Idade Média, os modelos pelos quais seria possível
repensar o presente para a construção do futuro.
4 Não foi possível identificar a partir de que fonte as traduções de
Hölderlin e Wagner foram publicadas. Maria Felipa Oliveira, na
tese Alexandre Herculano e a tradução, apresenta um quadro bastante
completo das traduções realizadas por Herculano, porém não há
nenhuma menção aos dois poemas que foram publicados no suplemento. Em termos de língua alemã, estão listadas na tese traduções de August Bürger, Schiller e Klopstock. (OLIVEIRA, 2008, p.
75-77)
Sumário
74 | Autores/Tradutores Portugueses no Suplemento Arte-Literatura
à primeira versão do poema, de 1798, sendo que a versão
mais conhecida é de 1800 e apresenta seis estrofes
(GEBHARD; GEISLER; SCHRÖTTER, 2007, p. 16):
Volve ao tranquilo rio, alegre, o marinheiro,
Das ilhas onde fêz, distantes, a colheita;
Quem me dera também voltar à minha aldeia;
Mas que tenho eu colhido, além de mágoas?
Sabeis, ó margens queridas onde me criei,
Penas de amor sarar? ó se me désseis, vós,
Bosques da minha infância, um dia, quando à pátria;
(sic)
Eu volte, esse repouso antigo, uma vez mais?
Herculano procurou fazer uma tradução que preservasse a estrutura geral do poema de Hölderlin. É curioso notar a oscilação semântica da palavra Heimat – que pode ter o
sentido de pátria, terra natal ou até mesmo casa. Herculano
traduziu o título “Die Heimat” por “A pátria”, quando poderíamos pensar, por exemplo, numa tradução como “Minha
terra”. Já na primeira estrofe a mesma palavra é traduzida
por aldeia, dando ao texto uma atmosfera tipicamente portuguesa.
O poema apresenta uma tensão entre a partida e o retorno, evocando o exílio, um importante topos do Romantismo em particular, e da cultura portuguesa como um todo. A
figura do marinheiro comparece metaforicamente no primeiro verso como aquele que deixa a terra natal e retorna feliz,
trazendo os bens adquiridos no exterior. Em contrapartida,
há a expressão de um “eu” para o qual o retorno parece incerto, apenas uma suposição. De todo modo, a ideia de pátria que Hölderlin elabora em seus poemas não tem qualquer
caráter nacionalista ou de atribuição de identidade. Para
Hölderlin a pátria não pode ser representada como a terra ou
a língua, ou seja, algo que se expresse em termos de repreSumário
Tradução e Autoria
| 75
sentação. Mesmo a descrição geográfica – rios, bosques,
montanhas – só tem relevância no sentido poético; a pátria é
um princípio criador. Há em Hölderlin um movimento de
renovação da língua, sendo a terra natal um lugar de origem,
lugar da língua natural, mas uma origem que desde o início
já agencia forças contraditórias e nunca qualquer tipo de pureza ou univocidade. Segundo Berman, “esse movimento visa a reencontrar a Sprachlichkeit, a força falante da língua comum, força falante que vem de seu enraizamento pluridialetal.” (BERMAN, 2002, p. 286).
O sentimento de exílio é, para Hölderlin, a experiência de um afastamento, a perda de orientação no sentido
mais fundamental. Por isso o mergulho em direção à origem
não é um gesto nostálgico, mas a produção de uma abertura,
a invenção de um passado. É nesse sentido que a Grécia buscada e inventada por Hölderlin não é um país perdido no
tempo, mas um futuro para a humanidade. Pois ele buscava
na Grécia o “patos sagrado”, o “fogo do céu”, apontando para a “superação de uma modernidade saturada por sobriedade” (BERMAN, 2002, p. 289). Para Hölderlin o Ocidente
estava sofrendo de uma doença, um “mortal prosaísmo”, para a qual o remédio só poderia ser encontrado numa cultura
estrangeira carregada de exuberância e intemperança. Lembremos que essa preocupação repercutiu nos autores da
primeira geração romântica de Portugal. Almeida Garrett
denunciava o empobrecimento da sociedade, afundada no
materialismo e no utilitarismo, o que ele chamava ironicamente de “tempos de prosa”5. É interessante notar que GarO tema do ‘século prosaico” é recorrente em Garrett. No capítulo
XLII das Viagens na minha terra, Garrett elabora a oposição, já
estabelecida anteriormente, entre prosa e poesia: "Nós, que somos
a prosa vil da Nação, nós não entendemos a poesia do povo [...].
(GARRETT, 1976, p. 186)". O tema aparece também no prefácio à
Lírica de João Mínimo.
5
Sumário
76 | Autores/Tradutores Portugueses no Suplemento Arte-Literatura
rett expressou uma preocupação com a busca de uma origem
linguisticamente plural, como Hölderlin:
O que é preciso é estudar as nossas primitivas fontes
poéticas, os romances em verso e as legendas em prosa, as fábulas e crenças velhas, as costumeiras e as superstições antigas: lê-las no mau latim mosárabe, meio
suevo meio godo, dos documentos obsoletos, no mau
português dos forais [...]. (GARRETT, 1961, p. 66)
Herculano, por sua vez, observava atentamente a letargia da sociedade portuguesa, sempre confiante num desabrochar da literatura:
Infelizmente em nossa pátria a literatura há já anos
que adormeceu ao som dos gemidos da desgraça pública: mas agora ela deve despertar, e despertar no
meio de uma transição de ideias. Esta situação é violenta, e muito mais para nós, que temos de passar de
salto sobre um longo prazo de progressão intelectual
para emparelharmos o nosso andamento com o do século. (HERCULANO, 1909, p. 24)
Hölderlin percebeu a necessidade do contato entre o
próprio e o estrangeiro para evitar o empobrecimento cultural. Para Herculano, traduzir Hölderlin é uma forma de
apostar nesse princípio regenerador tão necessário à sociedade portuguesa do século XIX. Ao traduzir inúmeros autores estrangeiros, Herculano mostrou-se atento às principais
inquietações de sua época, não apenas àquelas que diziam
respeito à sua pátria, como também as que podiam ser compartilhadas com outros espíritos sensíveis à mediocridade e
ao pragmatismo que contaminou as nações europeias dos séculos XVIII e XIX.
Sumário
Tradução e Autoria
| 77
A sinceridade de uma arte viva
Literatura viva é aquela em que o
artista insuflou a sua própria vida [...].
(José Régio)
João Gaspar Simões (1903-1987), primeiro biógrafo e
editor da obra de Fernando Pessoa, foi um dos fundadores
da revista Presença, que circulou em Portugal de 1927 a 1940
e caracterizou o Segundo Modernismo português. A revista
tinha como objetivo divulgar as obras e as pesquisas estéticas
dos autores que participavam do movimento, tais como
Adolfo Casais Monteiro, José Régio e Branquinho da Fonseca, e teve grande repercussão em Portugal e no Brasil. O texto publicado na edição de 21 de dezembro de 1947 no suplemento da Folha do Norte intitula-se “O valor da ‘descoberta em literatura”. A considerar apenas o título, não parece
provável que o artigo seja uma discussão sobre a tarefa de
tradução, porém o autor constrói a sua argumentação a partir de considerações sobre a dimensão incomunicável da literatura, percorrendo as noções de traduzível/intraduzível, e
desembocando inclusive no problema da tradução de poesia.
O tema não deveria ser de pouco interesse para Gaspar Simões, que dedicou boa parte de seu tempo à atividade de
tradução, tendo vertido para português, autores como Jean
Cocteau, Dostoievski, Tolstói, D. H. Lawrence, Thomas
Mann, Henry James, entre muitos outros autores.
A ideia que organiza a argumentação central do
ensaio é a de que a obra literária encontra o seu valor não
naquilo que ela tem de comunicável, mas sim no que apresenta de trabalho formal, o que de todo modo não invalida a
tradução: “o certo é que nos mais formalistas dos grandes
escritores há qualquer coisa suscetível de ser conservada
mesmo quando a sua forma original sofre o traumatismo
violento da tradução”. (SIMÕES, 1947, p.1). Assim como o
Sumário
78 | Autores/Tradutores Portugueses no Suplemento Arte-Literatura
título do artigo, o argumento inicial é enganador e a questão
mais relevante a ser levantada não é exatamente a da possibilidade ou impossibilidade de traduzir, mas a da pouca
quantidade de traduções de obras portuguesas no exterior, o
que leva o autor a refletir acerca do “isolamento que pesa
sobre a nossa literatura” (p. 2). Note-se a recorrência do
problema do “isolamento” experimentado pelos escritores
portugueses.
O autor nota, com algum espanto, que as obras
portuguesas mais traduzidas não fazem parte dos cânones
portugueses – sendo Fernão Mendes Pinto o único que realmente goza de reputação literária –, e o que determina a sua
divulgação é o fato de se debruçarem sobre as navegações,
isto porque “a época dos nossos triunfos marítimos ainda
hoje é dos poucos períodos da nossa história com repercussão universal”. (p. 2). É bem verdade que o fio condutor
da argumentação de João Gaspar Simões é o livro editado
pelo renomado lusófilo Charles David Ley e intitulado
“Portuguese voyages 1498-1663”, lançado em 1947. Na visão
de Gaspar Simões, a perenidade desses textos está assegurada por eles serem vivos e atuais, o que lhes confere um
valor universal que não se encontra naquelas que são consideradas as grandes obras literárias portuguesas. O autor
afirma também que elas representam um “avanço sobre a
época traduzido no deslumbramento e na sinceridade com
que os seus autores abriam os olhos para o novo mundo”.
(p.2). Impossível não comentar que a sinceridade era um
valor dos mais notáveis para a geração presencista. Para o
autor, as navegações tiveram como correlato o desvelamento
do mundo, colhido como obra para toda a humanidade, e
que por isso mesmo elevou a literatura da época a um
patamar vanguardista não mais atingido posteriormente, já
que as obras literárias dos tempos vindouros nada mais
eram senão tributos às literaturas estrangeiras. Tal problema
só irá se agravar, e em 1977, ao publicar o livro Jose Régio e a
Sumário
Tradução e Autoria
| 79
história do movimento da ‘Presença’, Gaspar Simões se depara
com uma crise total da literatura portuguesa, agora aprofundada pela ditadura salazarista:
De facto, nas nossas letras era visível uma crise de
independência dos valores intelectuais frente aos
interesses de ordem moral, política e religiosa. Se é
verdade que se não tratava ainda de servidão mental
que se agravava de dia para dia nos países fascistas e
totalitários, havia já muito da mesma abjecção na vida
intelectual portuguesa. (SIMÕES, 1977, p. 167)
A discussão que o autor procura estabelecer não é
nada estranha aos estudiosos da literatura portuguesa; talvez
ela encerre de fato a grande preocupação de todo e qualquer
intelectual português desde o Romantismo – como Herculano, por exemplo –, e que poderia ser enunciada da seguinte
forma: que lugar ocupa a literatura e a cultura portuguesa no
cenário europeu?6
Para Gaspar Simões, o diagnóstico da derrocada cultural portuguesa se dá em termos de perda da originalidade
e do pioneirismo, traçando uma linha paralela entre os feitos
e as letras, tópico importantíssimo n’Os Lusíadas, apesar de
lido sob uma certa inversão de perspectiva. Para Camões,
não bastava que existissem os feitos se não houvesse um
escritor que estivesse à altura de cantá-los; para Gaspar
Simões, a obra só é valiosa porque traz em si o germe do
feito, que foi, por sua vez, inovador. Do século XVI em
diante a sociedade portuguesa mergulha cada vez mais num
oceano de estagnação e isolamento, basta atentar para as
palavras já citadas de Gaspar Simões que sinalizam para o
“isolamento que pesa sobre a nossa literatura” (p.1).
Basta lembrar que Alexandre Herculano escreveu um texto intitulado: “Qual é o estado da nossa literatura? Qual é o trilho que ela
hoje tem a seguir?”
6
Sumário
80 | Autores/Tradutores Portugueses no Suplemento Arte-Literatura
A questão é simples: a nação portuguesa do século
XX nada tem a ver com aquela que viveu os descobrimentos,
e esse problema se inscreve literariamente, culturalmente. Os
feitos realizados pelos portugueses do Renascimento deram
uma nova feição ao mundo, e a literatura, acompanhando
essas realizações, assumiu uma posição vanguardista. Nos
séculos posteriores a cultura portuguesa perdeu o caráter
vanguardista, daí que a literatura tenha se tornado também
uma espécie de “fruto tardio” de movimentos literários
provenientes do exterior. Gaspar Simões assinala também a
“minuciosidade e verdade que torna essas obras vivas” (p.2)
e o fato de os textos possuírem valor universal. Para ele,
esses textos representam, no sentido cultural, um avanço em
relação à sua época, expressos na forma do deslumbramento
e da sinceridade. E é essa mesma postura – conservadora no
que diz respeito ao valor estético da sinceridade, já ultrapassado anos antes por Fernando Pessoa7 – que Gaspar
Simões exibe para nortear seu posicionamento crítico:
Daí, talvez, no fundo de toda a comoção estética não
haver, verdadeiramente, outra raiz que não seja o
estremecimento de nossa existência em contato com a
realidade liberta de qualquer outra. O que explica que
só as obras de homens sinceros, isto é, capazes de
transmitir sinceramente o que neles há de essencialmente vivo – seja dado o poder de se repercutirem no
que em nós de mais essencial também existe: a nossa
presença humana.
Ora é o poder de sinceridade que distingue os artistas
dos outros homens. (Apud. ROCHA, 1985, p. 394)
Não posso deixar de mencionar aqui o ensaio de Eduardo Lourenço, “’Presença’ ou a contra-revolução do modernismo português?” (2003).
7
Sumário
Tradução e Autoria
| 81
Tudo indica que a literatura portuguesa, para Gaspar
Simões, teria muita dificuldade de reencontrar um lugar ao
sol. Se é necessário que as grandes obras estejam ancoradas
em grandes façanhas, é a própria autonomia da arte que está
aqui rasurada. Nesse sentido, o que pensar de um artista
como Fernando Pessoa? Que grande façanha ele dá a ver?
Um Super-Camões para Camões
Não posso estar em parte alguma. A minha
Pátria é onde não estou. (Fernando Pessoa)
Gaspar Simões acreditava que uma obra de arte “viva” era aquela que atestava a sinceridade com a qual foi escrita, levando o autor a apostar na dinâmica do reconhecimento, isto é, da expressão do próprio; já Pessoa – que décadas antes havia abandonado a crença na sinceridade artística
e eleito o fingimento como princípio de criação poética –
acreditará no processo pelo qual o escritor inventa a si mesmo, e não na revelação de qualquer tipo de autenticidade.
Retorno à inquietação de Hölderlin no que dizia respeito à
necessidade de um aprendizado do próprio. O autor suábio
escreveu em uma carta a Böhlendorff de 1801: “O que é próprio deve ser aprendido tanto quanto o que é estrangeiro”
(Apud. BERMAN, 2002, p. 288) Ou seja, o lugar do próprio
não é algo dado, o próprio não existe – ou não deve existir –,
sob a forma de uma identidade, ele é tão inventado quanto o
estrangeiro. Por isso Hölderlin buscou recuperar na Grécia
clássica as qualidades que não poderiam ter sido esquecidas
em sua época. A cultura portuguesa, por sua vez, talvez padeça de um excesso de “identidade”, o que gera um enrijecimento difícil de contornar.
Pessoa, porém, inverte completamente os polos da
realidade e da irrealidade, impregnando a vida de um caráSumário
82 | Autores/Tradutores Portugueses no Suplemento Arte-Literatura
ter irreal, fictício, e concedendo à literatura a tarefa de atribuir realidade à vida. É nesse sentido que Bernardo Soares, heterônimo de Pessoa que responde pelo Livro do Desassossego,
retoma num de seus fragmentos o tema da viagem a partir
de uma perspectiva em tudo dessemelhante ao pensamento
de Gaspar Simões8:
Quem cruzou todos os mares cruzou somente a monotonia de si mesmo. Já cruzei mais mares do que todos. Já vi mais montanhas que as que há na terra. Passei já por cidades mais que as existentes, e os grandes
rios de nenhuns mundos fluíram, absolutos, sob os
meus olhos contemplativos. Se viajasse, encontraria a
cópia débil do que já vira sem viajar. (PESSOA, 1999,
p. 156)
Numa visada tipicamente hölderliniana, Bernardo
Soares escreve que “toda literatura consiste num esforço para tornar a vida real” (PESSOA, 1999, p. 140), apresentando a
pátria não como um território político, lugar de uma identidade a ser preservada, mas como um domínio a partir do
qual o próprio terá de ser inventado. Por isso a pátria é a língua materna, fora disso é uma pura abstração. Bernardo Soares afirma ainda: “Não tenho sentimento nenhum político ou
social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me
incomodassem pessoalmente”. (PESSOA, 1999, p. 255)
A tradução de Pessoa para o inglês do mais conhecido soneto de Camões, “Alma minha gentil, que te partiste”9,
A anacronia aqui é proposital. A modernidade da proposta pessoana não pode ser entendida pela via da linearidade temporal que
normalmente denominamos de “história da literatura”.
9 O poema e outras referências de sua publicação encontram-se no
seguinte livro: MONTEIRO, George. The presence of Camões: influ8
Sumário
Tradução e Autoria
| 83
incluída na Folha do Norte, foi curiosamente publicada pela
primeira vez, segundo Claudia Fischer (2012/2013), por ninguém menos que Charles David Ley10, o autor do livro Portuguese Voyages citado por Gaspar Simões. David Ley colaborou nas revistas Seara Nova e Presença e publicou um livro em
1939 intitulado A Inglaterra e os escritores portugueses. O soneto, por sua vez, já apresenta um diálogo com Petrarca, autor
do qual Camões retirou ao menos a primeira estrofe do poema11:
O gentle spirit mine that didst depart
So early of this life in discontent,
With heavenly bliss thy rest be ever blest
While I on earth play wakeful my sad part.
If in the ethereal seat where now thou art
A memory of this life thou do consent,
Forget not that great love self-eloquent
Whose purity mine eyes here showed thy heart.
And, if thou see ought worthy of thy light
In the great darkness that hath come on me
From thine irreparable loss’ spite,
Pray God, that made thy year so short to be,
As soon to haste me to thy deathless sight
As from my mortal sight he hasted thee.
Na tentativa de revigorar a pátria decadente, Pessoa
não apelará aos sentimentos comuns de afetividade, ou ao
ences in the literature of England, America and Southern Africa. Kentucky: The University press of Kentucky, 1996.
10 Charles David Ley também foi tradutor de Pessoa.
11 Quest’anima gentil, che si diparte,/Anzi tempo chiamata all’altra
vita,/Se lassuso è, quant’ esser de’ gradita,/Terrà del ciel la più
beata parte. (PETRARCA, 1867, p. 32)
Sumário
84 | Autores/Tradutores Portugueses no Suplemento Arte-Literatura
saudosismo, que caracterizou a revista A Águia, na qual inclusive iniciou a sua participação no meio literário português. Lembremos que esse início esteve ligado à sua vertente
crítica, quando, ao avaliar o futuro da literatura portuguesa
no famoso ensaio “A nova poesia portuguesa”, Pessoa profetiza o surgimento de um Super-Camões, que afinal de contas
não é outro senão ele mesmo. O Super-Camões é aquele que
pode desestagnar a sociedade portuguesa, não por uma simples retomada da autenticidade do espírito português, como
imaginavam os saudosistas, mas num movimento que vai na
contramão de qualquer ideal de espelhamento. É o que afirma Eduardo Lourenço quando declara que Pessoa não intencionava “resgatar o subconsciente nacional [...] de históricos
e acidentais complexos de dependência mas de si mesmo,
transfigurando a gesta particular de um pequeno-grandepovo em gesta da consciência universal.” (LOURENÇO, 1982,
p. 115)
Camões, como se sabe, é a figura tutelar sob a qual se
organiza o imaginário português. Basta observar as palavras
de Teixeira de Pascoaes na revista A Águia: “Camões é uma
divindade portuguesa; a Divindade tutelar da nossa Pátria.
Portugal tem vivido à sombra do épico imortal: é o único país cuja autonomia se tem firmado sobre o nome dum Poeta”
(Apud: ROCHA, 1985, p. 273). Mas, para Pessoa, a referência
a um Super-Camões nada significa em termos de “divindade
tutelar”. O que está em questão é a tentativa de ultrapassar o
domínio da identidade, de afrouxar as amarras da tradição e
sair da mesmice para permitir que uma nova imagem surja
intempestivamente.
Pessoa viveu na África do Sul e falava inglês fluentemente, tendo escrito seus primeiros poemas nesse idioma.
É impressionante como Pessoa consegue transpor para o inglês a musicalidade do poema, sem recorrer a alterações semânticas significativas. Se para o leitor de português há algo
da ordem da estranheza, ela se deve ao fato de termos em
Sumário
Tradução e Autoria
| 85
nossa mãos um poema que praticamente sabemos de cor,
mas que se apresenta agora com uma outra roupagem, numa sonoridade incomum. Nesse sentido, é possível imaginar que o contato com o inglês enuncie a necessidade de adquirir do outro, da língua estrangeira, aquilo que mais falta
ao próprio, roubar dele o que ele tem de mais estranho, como sugere Berman (BERMAN, 2002, p. 298). Do mesmo modo, ao traduzir para o inglês o soneto mais conhecido de
Camões, talvez Pessoa encene essa gesta do Super-Camões: a
transformação do nacional em universal.
REFERÊNCIAS
BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na
Alemanha romântica. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. São
Paulo: EDUSC, 2002
CAMÕES, Luís Vaz. “Alma minha gentil que te partiste”. In:
Suplemento Arte-literatura da Folha do Norte, Belém, 11 de dezembro
de 1949
COELHO, Marinilce Oliveira. Memórias literárias de Belém do GrãoPará: o Grupo dos Novos (1946-1952). Universidade Estadual de
Campinas/Instituto de Estudos da linguagem, São Paulo, 2003.
(tese de doutorado)
FISCHER, Claudia. “Auto-tradução e experimentação
interlinguística na génese d’“O Marinheiro” de Fernando Pessoa”.
In: Pessoa Plural, Revista de Estudos Pessoanos / A Journal of Fernando
Pessoa Studies, Brown University, Utrecht University, Universidade
de Los Andes.
http://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Stu
dies/ejph/pessoaplural/Issue1/PDF/I1A01.pdf
GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. Lisboa: Publicações
Europa-América, 1976.
––––––. Doutrinas de estética literária. (Prefácio e notas de Agostinho
da Silva). Lisboa: Gráfica Santelmo, 1961
Sumário
86 | Autores/Tradutores Portugueses no Suplemento Arte-Literatura
GEBHARD, Gunther; GEISLER, Oliver; SCHRÖTTER, Steffen.
Heimat: Konturen und Konjunkturen eines umstrittenen Konsepts.
Bielefeld: Verlag, 2007
HERCULANO, Alexandre. “Poesia: Imitação – Bello – Unidade”.
In: Opúsculos. Tomo IX. 3ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, 1909.
HÖLDERLIN, Friedrich. “A pátria”. Tradução de Alexandre
Herculano. In: Suplemento Arte-literatura da Folha do Norte, Belém,
27 nov. 1949.
LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da saudade: seguido de Portugal
como destino. São Paulo: Companhia das Letras, 1999
––––––. “‘Presença’ ou a contra-revolução do modernismo
português?” In: Tempo e poesia. Lisboa: Gradiva, 2003, p. 131-154
––––––. O labirinto da saudade: psicanálise mítica do destino português.
Lisboa: D. Quixote, 1982
NASCIMENTO, Maria de Fátima do. Benedito Nunes e a moderna
crítica literária brasileira (1946-1969). Universidade Estadual de
Campinas/Instituto de Estudos da linguagem, São Paulo, 2012.
(tese de doutorado).
OLIVEIRA, Maria Felipa. Alexandre Herculano e a tradução.
Universidade Aberta, Portugal, 2008. (Dissertação de Mestrado).
PEREIRA, B. Capelo. “HERCULANO (DE CARVALHO E
ARAÚJO), ALEXANDRE”. In: BUESCU, Helena Carvalhão
(coord.). Dicionário do romantismo literário português. Lisboa:
Caminho, 1997, pp. 221-230.
PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. (organização de Richard
Zenith). Lisboa: São Paulo: Companhia das Letras, 1999
PETRARCA, Francesco. Rime di Francesco Petrarca (com
l’interpretazioni di Giacomo Leopardi). Firenze: Successori le
monnier, 1867
ROCHA, Clara. Revistas literárias do século XX em Portugal.
Lisboa: INCM, 1985
SÉRGIO, António. Breve interpretação da história de Portugal. Lisboa:
Sá da Costa, 1975
SIMÕES, João Gaspar. “O valor da ‘descoberta’ em literatura”. In:
Suplemento Arte-literatura da Folha do Norte, Belém, 21 de dezembro
de 1947
–––––. José Régio e a História do Movimento da ‘Presença’. Porto:
Brasília editora, 1977
Sumário
Tradução e Autoria
| 87
Marcelo Paiva de Souza
“Denn, um es endlich auf einmal herauszusagen, der
Mensch spielt nur, wo er in voller Bedeutung des
Worts Mensch ist, und er ist
nur da ganz Mensch, wo er spielt.”
Friedrich Schiller
(Über die ästhetische Erziehung des Menschen, 15. Brief)
Sem prejuízo da hipótese de que “fatos e dados”
relativos à sua prática tradutória, “confidências sobre as suas
motivações, seus métodos de trabalho, suas dificuldades e as
soluções a que tem recorrido possam” ser de “algum interesse para os colegas do ofício e mesmo para o público em
geral”, ainda assim Paulo Rónai pede desculpas aos leitores
de A tradução vivida pelo “uso talvez excessivo do pronome
de primeira pessoa” (RÓNAI, 1981, p. 157) nos capítulos
finais da obra, “Saldos de balanço” e “A operação Balzac”,
retomada rememorativo-reflexiva do longo, riquíssimo
histó-rico das atividades do autor sob o signo da translatio.
Diferentemente dele, e não apenas por questão de
gosto ou vezo de estilo, não farei o mesmo aqui. Notas de
assumido viés pessoal, ancoradas no peso específico da
experiência de traduzir, poderiam não ser de interesse para
qualquer profissional ou estudioso contemporâneo da área?
Sumário
88 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas...
A relevância de que porventura elas se revistam dependerá,
claro, de múltiplos aspectos. No tocante às breves considerações que se seguem, importa ressaltar desde logo um
ponto decisivo. A exemplo de Rónai1, gostaria de dizer algo
sobre o que venho empreendendo em prol da divulgação de
uma literatura estrangeira amplamente desconhecida no
Brasil, quer por conta dos males de certo “isolamento linguístico”, quer em resultado da desatenção – até há pouco
flagrante e generalizada – que a cercava entre nós.
Refiro-me à literatura polonesa; tal como a húngara,
quiçá menos exótica hoje em nossa paisagem letrada, não
obstante o (muito) que falta para a esta integrar-se de modo
satisfatório. No caso que trago à baila, ademais, trata-se de
um escritor polonês cujo destino incluiu um significativo
episódio brasileiro, tópico por si só digno de exame, mas
ainda inexplorado pela pesquisa literária nacional2. Sequer
enfocando por ora, então, a invulgar estatura artística de
Julian Tuwim (1894-1953) – eis o nome em apreço – não deve
restar dúvida de que seu perfil e sua obra constituem, a
rigor, o eixo em torno do qual gravitamos. Antes que aceno
ao eu atrás dos dêicticos, evite-se o mal-entendido, minha
opção pela primeira pessoa tem por fito, isto sim, fazer
sobressair o nexo entre um ato e seu sujeito: evidenciar, pelo
prisma de um Tuwim vertido para o português do Brasil,
rasgos de individualidade, facetas vincadamente autorais de
Penso aqui não apenas no papel de divulgador das letras húngaras entre nós, como também nas virtudes louvadas por Aurélio
Buarque de Holanda em “O brasileiro Paulo Rónai”, prefácio de A
tradução vivida: o humanismo “de largas fronteiras”, a “inteligência
[...] vigilante, sempre a observar, a descobrir e apontar caminhos”.
Ver RÓNAI, 1981, p. 13.
2 Alberto Dines, admirável biógrafo de Stefan Zweig, registrou atiladamente a presença de Tuwim em meio ao grupo de exilados poloneses que encontram refúgio no Brasil no início da década de
1940. Ver DINES, 2012, p. 479 (nota nº 78) e 525.
1
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Tradução e Autoria
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uma operação tradutória determinada. O problema vai
ocupar-nos adiante, em distintos planos. Para bem de seu escrutínio, convirá que esteja disponível um mínimo de informação sobre Julian Tuwim, bem como sobre as circunstâncias que deram azo a que eu o traduzisse. Comecemos por
este último assunto. Na sequência, uma vez expostas metas e
motivações do meu projeto de tradução, sumaria-se a
trajetória criativa de Tuwim e, por fim, submete-se a debate
a forma como o traduzi.
* * *
Em celebração ao centenário da estreia literária do
poeta3 e ao sexagésimo aniversário de sua morte, 2013 foi
proclamado pelo Parlamento da Polônia o Ano Julian
Tuwim. A decisão motivou diversas homenagens ao escritor,
dentro e fora de seu país, e uma delas, de iniciativa de
Agnieszka Drewno e da Babel Studio, empresa de Varsóvia
dedicada à promoção da cultura polonesa no exterior, foi
levada a termo no Brasil. O projeto abarcou uma série de
itens: a realização de uma exposição sobre a vida e o legado
criativo de Tuwim, com destaque para sua fuga até Portugal
e de lá para solo brasileiro em 1940, fustigado rumo aos
azares de exílio pelo flagelo da Segunda Guerra; a gravação
de um CD com poemas do autor em versão em português
interpretados pela atriz Tatiane Trovatti; a publicação de um
livreto, tanto catálogo da exposição quanto encarte do CD,
contendo, além dos versos registrados em áudio sob forma
impressa, uma sucinta biografia do escritor, textos seus de
caráter memorialístico e autobiográfico, palavras da irmã – a
Com a publicação do poema “Prośba” (“Pedido”), no nº 6 do Kurier Warszawski, em 1913. Já antes disso, porém, haviam sido publicadas traduções tuwimianas de poesia russa para o polonês e de
poesia polonesa para o esperanto.
3
Sumário
90 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas...
também escritora Irena Tuwim – acerca dele, reprodução de
fotos, cartas e outros documentos de arquivo, e um precioso
estudo de Wojciech Ligęza, crítico literário e historiador da
literatura polonesa, sobre o (des)encontro do poeta desterrado com as maravilhas da Terra Brasilis: “‘Dizem que é a
mais bela cidade do mundo’: Julian Tuwim no Rio de
Janeiro”.4
Fui convidado a tomar parte na empreitada no início
de março de 2013. Manifestei-me disposto à colaboração e de
pronto, em um e-mail que aliava as virtudes da simpatia e da
objetividade, do entusiasmo e do bom senso, Agnieszka
Drewno descreveu as linhas mestras do que tinha idealizado.
Como o traslado dos poemas cumpria uma função capital
em todo o plano e – para não variar – era bastante apertado o
prazo com que se contava, a primeira questão em pauta
urgia: que títulos traduzir? Deviam ser contemplados tanto
os versos de Tuwim para adultos quanto para crianças. Com
respeito àqueles, felizmente um pedaço do caminho estava
andado. Havia obra alheia de mérito a repor em circulação,
visando a novos públicos.
Tal era o caso, por exemplo, do belo fragmento
carioca de Kwiaty polskie (Flores polonesas) dedicado pelo
autor a Olegário Mariano, de cujo auxílio Tuwim valeu-se
O projeto contou com financiamento do Ministério da Cultura e
do Patrimônio Nacional da República da Polônia, e com o apoio
das seguintes instituições: em Varsóvia, o Arquivo de Registros
Novos e o Museu de Literatura; em Brasília, a Embaixada polonesa
e a Cátedra Cyprian Norwid do Instituto de Letras da UnB; em
Curitiba, o Consulado Geral da República da Polônia e o Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da UFPR (nomeadamente,
sua área de polonês). A idealização do catálogo, bem como a direção de arte e de produção do CD são de Agnieszka Drewno. O projeto gráfico é de Ryszard Kajzer. Excetuado o artigo de Wojciech
Ligęza – cuja tradução assino –, os textos em prosa incluídos no livreto foram vertidos para o português por André de la Cruz.
4
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em Lisboa para obter o visto de entrada em território brasileiro. Em 24 de setembro de 1943 o poeta exilado escreve de
Nova Iorque – deixara o Brasil rumo aos Estados Unidos em
meados de 1941 – ao Sr. Ministro da Legação da República
da Polônia no Rio de Janeiro, Tadeusz Skowroński, “com
um grande pedido” (TUWIM, 2013, p. 485). Remete em anexo
carta e versos de sua lavra, dirigidos a Olegário Mariano,
solicitando que sejam traduzidos para o português e em
seguida encaminhados a seu destinatário. Tuwim prevê o
risco de que “escrúpulos literários” possam constituir um
entrave ao favor que pede e assegura antecipadamente se
dar por satisfeito com uma versão “simples e literal” do
excerto poético enviado (p. 48).
Tudo corre conforme desejou. 25 de outubro de 1943
Skowroński despacha adiante os escritos a ele confiados: “filos traduzir literalmente nesta Legação”, observa o Ministro
em sua missiva a Mariano6. Com efeito, a tradução anônima
providenciada para o poeta, político e diplomata brasileiro
não prima pelo empenho de recriação criteriosa das peculiaridades do trabalho formal tuwimiano em Flores polonesas.
Mas nem por isso o texto que se foi achar mais tarde sob a
guarda do Arquivo de Registros Novos em Varsóvia carece
de valor, do qual nos convencemos, aliás, já pela leitura da
carta de Tuwim a seu confrade nos trópicos. Citem-se alguns
parágrafos dessa comovida e comovente prosa epistolográfica:
Não sei – se graças ao céu bendito do Rio ou se à
grande distensão que senti ao pisar o solo livre do
Brasil –, mas o fato é que a mais farta, mais ardente, a
Cito a carta na tradução de André de la Cruz.
A carta de Skowroński, em português, é reproduzida no catálogo.
Ver TUWIM, 2013, p. 15.
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mais eloquente poesia jorrou de minha alma nesse Rio
maravilhoso.
Desta forma, a tua pátria tornou-se a mãe dum poema
polonês, que escrevo desde três anos e não acabarei
tão cedo. Amo pois o Brasil, não somente porque me
deu um abrigo hospitaleiro e carinhoso, não somente
porque não seria possível deixar de amá-lo, tão belo
ele é – mas, antes de tudo, porque a obra que cerco de
maior carinho teve seu berço em tua terra. Tais laços
são inquebrantáveis.
Chama-se o meu poema Flores polonesas. É ao mesmo
tempo um romance e um poema, tanto lírico quanto
épico. Conta atualmente oito mil versos – cinco mil
deles foram escritos no período de seis meses no Rio e
o resto durante os dois anos seguintes em Nova York.
Mas, visto as lembranças do Brasil permanecerem
sempre vivas em mim e voltarem teimosamente sob
minha pena – escrevi ultimamente um fragmento
sobre a tua cidade. Dedico-o a ti. Aceita essa modesta
oferta dum poeta polonês que muito te estima e que te
será sempre grato. (TUWIM, 2013, p. 517)
Desnecessário encarecer a importância desse testemunho. Alguns lamentarão, quem sabe, que tão pouco da
exuberante invenção verbal, da mestria da linguagem poética com que Tuwim canta o Rio se faça perceptível no traslado “literal” do trecho de Flores polonesas enfim endereçado
a Olegário Mariano. Contudo, cumpre ressaltar que esse
modesto expediente tradutório é a engrenagem mesma que
efetiva o contato entre o autor brasileiro e o polonês. Em sua
constrangida discrição burocrática, a língua portuguesa dos
versos de Kwiaty polskie traduzidos a mando de Tadeusz
Skowroński empresta corpo textual ao gesto de gratidão de
O fragmento é citado na tradução anônima providenciada por
Tadeusz Skowroński. Os versos de Kwiaty polskie remetidos a Olegário Mariano acham-se reproduzidos em TUWIM, 2013, p. 26-27.
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Tuwim em nossa cultura, inscreve sua visão e suas saudades
do Brasil em nossas letras. Mais que justificada, portanto, a
ideia de garantir acesso a essa tradução no orbe lusófono
tinha um quê de impositivo.
Por razões documentais, igualmente, porém sobretudo por conta do cacife literário em jogo, impunha-se também à atenção uma outra obra, datada de fins da década de
1940, a qual todavia uma oportuna coincidência trouxe de
novo a lume em livro editado pouco tempo atrás. E se as
Flores ofertadas a Olegário Mariano brotaram no anonimato,
o Tuwim brasileiro de que falamos agora vem em companhia de uma assinatura de máxima expressão nos círculos
literários nacionais, a de Carlos Drummond de Andrade.
O itabirano verteu seu colega nascido na longínqua
Łódź por via indireta8, a partir do texto francês –
“L’Enterrement” – que consta de Les cinq continents:
anthologie mondiale de la poésie contemporaine, coletânea
concebida e organizada por Ivan Goll, publicada em 1922.
“O enterro” foi estampado originalmente no Correio da
Manhã de 22 de fevereiro de 1948, precedido por uma nota
introdutória de Drummond, em conjunto com outras duas
peças líricas extraídas da antologia de Goll, “Dinamarca”, de
Fredrik Nygård, e “Eu olho”, de Sigbjørn Obstfelder, sob o
título geral de “Três poetas europeus”. Em 2011, entretanto,
o leitor brasileiro teve o deleite de ver coligida, sob os
irreprocháveis cuidados de Augusto Massi e Júlio Castañon
Guimarães, a Poesia traduzida do autor de Claro enigma. Entre
várias outras, o volume recolheu as versões mencionadas.9
Colho os dados seguintes nas notas apensas por Augusto Massi e
Júlio Castañon Guimarães à coletânea da poesia traduzida de
Drummond que ambos organizaram. Ver DRUMMOND, 2011, p.
414-415, 429-430.
9 A tradução brasileira de “Pogrzeb” – ladeada pela francesa que
lhe serviu de base – consta em DRUMMOND, 2011, p. 362-363.
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Para efeito do planejado tributo a Julian Tuwim, difícil
imaginar circunstância mais benfazeja: no rol das traduções
em português do grande poeta polonês, figuraria um dos
maiores poetas de nossa língua.
A par do traslado anônimo do fragmento de Kwiaty
polskie e da versão drummondiana de “Pogrzeb”, a lista de
títulos tuwimianos existentes em português incluía ainda
“Wiersz” (“Poema”), breve composição lírica recriada por
Aleksandar Jovanović, recolhida em excelente coletânea de
1996, com organização, estudo introdutório, notas e traduções de sua autoria, Céu vazio: 63 poetas eslavos (JOVANOVIĆ,
1996, p. 60). Não que fosse muito, quantitativamente, mas –
como se afirmou antes – o material aproveitável no que
tocava à produção poética de Tuwim para os adultos parecia
logo de saída de óbvio relevo.10 Com relação a seus versos
para crianças, o quadro era distinto.
Também nesse âmbito, de fato, a iniciativa de
Agnieszka Drewno poderia beneficiar-se de labor tradutório
prévio já dado à prensa. No ano de 2012 publicou-se em
Lisboa, vertida a quatro mãos por Gerardo Beltrán e José
Carlos Dias, esmerada “Lokomotywa” portuguesa (TUWIM,
2012). Uma das mais célebres e mais consumadas realizações
da verve infantil do autor polonês, o poema tinha lugar
reservado no CD e no catálogo a produzir. No entanto, nada
do Tuwim para crianças fora visitado até ali por tradutores
Nas notas da edição, às p. 429-430, Massi e Guimarães também deram à estampa o original polonês.
10 Cuidou-se de enriquecê-lo, a seguir, com a colaboração de Henryk Siewierski, que traduziu os até então inéditos em português
“Erotyk” (“Poema erótico”), “Wiersz” (“Poema”; trata-se do texto
com incipit: “Natchnienie jak śmierć nadciąga”/”A inspiração vem
feito morte”, não do “Poema” traduzido por Jovanović) e “Los”
(“O destino”). Ver TUWIM, p. 30, 32 e 33. Contribuí para a seção
dos poemas voltados para o leitor adulto com uma versão de
“Trawa” (“Relva”). Ver p. 29.
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brasileiros – chamariz poderoso, que de imediato influiu na
balança de minhas prioridades.
Acresceu a tanto um fator muito pessoal, ainda que,
decerto, longe de ser vivência exclusivamente minha. Como
quase todo aprendiz da língua polonesa, quer nativo, quer
estrangeiro, não tardei a deparar com os versos de Tuwim
para as crianças. Excetuados os mais curtos e de feitura
verbal menos opulenta, não os entendi por completo, nem
fruí de maneira consciente de cada recurso de sua depurada
arte, do alto, pletórico engenho poético neles investido: fui
antes mero objeto de seu fascínio. Era tempo e ocasião, pois,
de regressar a eles mais bem equipado, munido de um outro
olhar, talvez capaz, com sorte, de lobrigar uma nesga de seus
arcanos criativos e – sorte enorme – de invocar seus encantos
no cadinho do português brasileiro contemporâneo.
Uma terceira e última causa teve seu quinhão na
escolha da criação poética que Tuwim votou à meninada
como alvo primordial de meus esforços tradutórios. Relendo
esses textos, e compulsando a vultosa fortuna crítica acumulada em torno à obra do autor, percebia um curioso descompasso. O elogio infalível, irrestrito e caloroso aos versos
para crianças não era acompanhado, em medida correspondente, pelo trabalho de análise e de reflexão dos pesquisadores. Em ensaio recente, cujas premissas vieram corroborar minha percepção, Piotr Matywiecki, notável estudioso
do opus tuwimiano, asseverou:
Todos sabemos que Julian Tuwim escreveu poemas
geniais para crianças. A criança sabe disso e sabe
disso o adulto, não apenas quando lê esses poemas
para uma criança – também quando os repete para si
próprio. A poesia infantil de Tuwim desperta para a
existência a criança no adulto – e permite que essa
criança continue a existir. Até hoje, contudo, ninguém
examinou essas obras com a necessária atenção, porque
parecem evidentes em sua beleza sonora, em sua
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96 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas...
diafaneidade semântica. E no entanto essa diafaneidade mesma é intrigante... (MATYWIECKI, 2013, p.
56; grifo meu)
Detalhe sintomático, o especialista desenvolve essas
ponderações à guisa de um mea culpa. Matywiecki verifica
haver omitido anos antes em seu Twarz Tuwima (A face de
Tuwim; 2007) – alentada, meticulosa prospecção crítica da
obra do autor de Flores polonesas – “um tema muito importante”: a personalidade e a poesia de Tuwim caracterizam-se
“por um traço de singular infantilismo” (MATYWIECKI,
2013, p. 56). Nada tem isto a ver com um diagnóstico de
comezinha, renitente imaturidade, adverte, avançando em
seguida a tese de que tal infantilismo deve ser esquadrinhado, em suas tensões, dilaceramentos e paradoxos,
tanto existenciais quanto artísticos, no contexto do “grande
mito do poeta-criança” (p. 56).
Abandonemos nesta altura o revelador arrazoado de
Piotr Matywiecki. O que aí fica basta, creio, para sinalizar
dois problemas de monta. Primeiro, tal ou qual retraimento,
certa esquiva por parte da pesquisa especializada, quiçá
negligência, em suma, perante os desafios analítico-interpretativos intrínsecos à poética tuwimiana voltada para o
receptor mirim. Segundo, e averiguá-lo torna ainda mais
crucial a questão precedente, um intrincado complexo de
motivos, figurações e atributos ligados à infância, a perpassar a totalidade dos escritos do autor, suas feições mais
próprias como artista da palavra. Adaptando a conhecida
afirmativa de Schiller que evoquei em minha epígrafe aos
termos da presente discussão, de maneira geral caberia argumentar que para Julian Tuwim o poeta é integralmente poeta
apenas ali, onde ele joga e brinca, ali, onde ele é criança.
Admitida a pertinência de tal linha de raciocínio, suas
implicações para a tarefa de traduzir os versos tuwimianos
para crianças parecem consideráveis. Antes de mais nada, a
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achega tradutória a esse domínio ganha nítido matiz reparador. Destrinçando a meada dos textos, percorrendo-os com
morosidade e zelo, a fim de retextualizá-los, a lente crítica
inerente à tradução tenta fazer-lhes alguma justiça. Pois se é
correto, por um lado, que o processo de traslado das obras
visa ao público de uma língua estrangeira, por outro ele
também constitui, a seu modo, uma leitura dos originais:
leitura exigente, produtiva, que pressupõe aquele necessário
grau de atenção cuja falta Matywiecki indigita ao meditar
sobre a poesia infantil de Tuwim e sua recepção entre os
conhecedores do autor.
Outra consequência a destacar, além disso, é a interessante possibilidade de uma mudança de perspectiva na
apreciação do fazer poético tuwimiano. Como já se afirmou,
não há controvérsia no que concerne à estima que merecem
dos estudiosos proezas de invenção e de graça verbal do
gênero da suprarreferida “Lokomotywa”. O enfoque usual,
contudo, se bem que não isole os versos para o leitor infantil
em um compartimento estanque, à parte da “obra adulta”,
toma-os em regra como subsidiários em relação ao cerne da
criação literária de Tuwim. Autora de dois livros fundamentais sobre o escritor, Jadwiga Sawicka (1975 e 1986), por
exemplo, não hesita em recorrer à designação de obrasprimas diante dos poemas destinados às crianças: exploramse neles “as conquistas da oficina” tuwimiana de artesanato
de linguagem (SAWICKA, 1986, p. 223), observa. Michał
Głowiński, outro eminente especialista, ajuíza segundo a
mesma craveira que os versos para a criançada não representam “de forma alguma fenômeno marginal na produção”
de Tuwim:11
Não por acaso, me parece, a assertiva tem lugar em nota de pé de
página do estudioso, abrindo a seção dedicada aos versos infantis
na antologia da obra poética tuwimiana que organizou para a prestigiosa coleção Biblioteka Narodowa. Na longa, excelente “Intro-
11
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98 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas...
Ao contrário, nesse âmbito o poeta criou obras-primas
como “Lokomotywa” ou “Spóźniony słowik” (“O
rouxinol atrasado”). Nos versos para crianças Tuwim
explora suas experiências poéticas mais essenciais,
daí, neles, entre outros aspectos, o papel dos jogos de
palavras, de sonoridades etc. Tuwim elege motivos
que podem falar à imaginação infantil, mas elabora-os
de sorte a satisfazer os mais severos conhecedores de
poesia (nesse sentido esses poeminhas infantis são
obras para adultos).
Repare-se: tanto Głowiński quanto Sawicka compreendem o engenho de talhe mirim em função da práxis poética
voltada para os interlocutores adultos, apontam naquele o
aproveitamento desta, ombreiam aquele a esta. Acaso não
reduziriam aquele a esta, de certo modo? A maioria absoluta
dos poemas para crianças data dos anos 1930, período da
trajetória tuwimiana tido por sua plena maturidade. A
simples cronologia obriga portanto a inferir que o escritor se
vale então do instrumental criativo que foi ajuntando e aprimorando em suas realizações anteriores. Isto posto, contudo,
resta saber até que ponto se percebe – ou não – a especificidade
dos versos para a infância na ótica que tende a identificá-los
como instância de derivação, como uma espécie de pequeno
veio efluente do mainstream da poesia de Tuwim. Mais ainda,
resta indagar se o terreno exclusivo ao estro infantil e sua
específica modalidade de “brincadeira com a palavra”
(SAWICKA, 1986, p. 221) não facultam vislumbres inesperados de todo o restante da obra do autor. Em caso positivo, que
teria a nos dizer sobre a(s) prolífica(s) pena(s) do adulto a
limpidez bailarina e risonha da escrita poética por ele
dedicada aos guris?
dução” de Głowiński ao volume, os poemas para crianças não são
discutidos. Ver GŁOWIŃSKI, 1986. A referida nota acha-se à p. 260
da antologia.
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Os questionamentos assim suscitados demandam
investigação de fôlego – sem dúvida inoportuna aqui. Conquanto apenas sugerido, porém, o horizonte que descortinam deve dar ideia suficiente do derradeiro porquê da
opção que fiz. Situado nas coordenadas críticas que esbocei,
o conjunto dos poemas dirigidos ao leitor mirim passava a
oferecer um atrativo suplementar. O corpo a corpo tradutório com esses textos também daria ensejo a incursionar
pelos vastos confins à sua volta, em um instigante exercício
de reflexão global sobre Tuwim. Comprimir em poucas
linhas um mapa razoavelmente fidedigno da obra completa
do escritor é intento temerário. Cumpre correr o risco, agora,
na esperança de que se entremostre – contra retalhos do rico,
acidentado pano de fundo biográfico – uma vista panorâmica da arte tuwimiana. Cientes de sua escala e variedade,
alertas quanto aos pulsos e sismos históricos que nela vêm à
tona, devastadoramente, às vezes, poderemos afinal nos
concentrar em meu Tuwim para as crianças lusófonas.
Quando o autor veio ao mundo, cercado pelo cinza
fabril de Łódź, no seio de uma família pequeno-burguesa de
judeus assimilados, o séc. XIX estertorava. A feia cidade da
infância e de boa parte da juventude de Tuwim abrigava
diversas nacionalidades: russos, alemães, judeus e poloneses.
Estava subordinada, à época, ao poder político do tzar, o que
assegurava à diminuta minoria dos primeiros preponderância e privilégios ostensivos, foco gerador de acirrados
antagonismos na vida local. Somem-se ao quadro, outrossim,
fermentos emancipatórios sionistas e a voga crescente de um
renhido nacionalismo em meio à população polonesa, sob a
contínua e violenta pressão dos implacáveis imperativos econômicos a ditar os ritmos de um moderno polo de indústria
têxtil, e eis a complexa e conturbada atmosfera social em que
se vai formando a têmpera do futuro escritor.
Os manuscritos mais antigos da juvenília ainda hoje
conservados remontam a 1911; ao que parece, os célebres
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100 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas...
cadernos com a produção do aprendiz de poesia vinham de
antes. Até a estreia em livro, por conseguinte, com o tomo de
versos Czyhanie na Boga (À espreita de Deus), em 1918,
estende-se um intervalo decisivo, ao longo do qual Tuwim
toma conhecimento de numerosas referências literárias e,
pouco a pouco, firma posição em face delas. Entre as
matrizes e tradições que deixam marca mais funda no autor
nesse ínterim avulta a princípio a Młoda Polska (A Jovem
Polônia), de cujo amálgama de tendências – simbolismo,
esteticismo, decadentismo – um tanto remanesce na linguagem poética tuwimiana.12 Essa herança é recebida, a bem
dizer, à revelia: teima em dar sinais de si na coletânea de
estreia e nos três volumes que se sucedem, Sokrates tańczący
(Sócrates dançante; 1920), Siódma jesień (O sétimo outono; 1922)
e Wierszy tom czwarty (Poemas – quarto volume; 1923), não
obstante o professo repúdio do jovem poeta de Łódź à Jovem
Polônia. A órbita do simbolismo de língua francesa, pelo
contrário, interessa-lhe muito, em especial um de seus
numes tutelares, Jean Arthur Rimbaud, o mesmo se aplicando aos simbolistas russos (estes e aquele, aliás, vertidos
por Tuwim para o polonês). Acmeístas e futuristas russos, o
futurismo, de forma geral, Walt Whitman (também traduzido por Tuwim), expressionismo – o profuso colorido do
mosaico que resulta das descobertas e entusiasmos do
escritor durante sua iniciação não permite engano. A poesia
tuwimiana terá dicção fundamentalmente sincrética.
De resto, o grupo de que passará a fazer parte após
sua ida para Varsóvia em 1916, o Skamander (Escamandro),
tampouco primava por uma rigorosa unidade programática
ou pela homogeneidade das poéticas subsumidas sob sua
rubrica. O lema que une os escamandritas – além de Tuwim,
Antoni Słonimski, Jan Lechoń, Kazimierz Wierzyński e
Sobre as relações entre a obra de Tuwim e a tradição literária polonesa ver GŁOWIŃSKI, 1962.
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Jarosław Iwaszkiewicz – consiste antes em uma atitude
básica comum, em um tipo assemelhado de resposta artística
à conjuntura histórica assinalada pelo fim da Primeira
Guerra e o renascer da Polônia independente em 1918. A
poesia do grupo despede-se do fardo oitocentista dos deveres para com a causa nacional e celebra a liberdade reconquistada, rejeita o absenteísmo individualista e estetizante da
Jovem Polônia e ergue um peã vitalista e sensualista à contemporaneidade, panteisticamente encarnada em seu epítome por excelência: o vertiginoso perpetuum mobile da vida
citadina. A hora era propícia para tais propostas, cujo apelo e
novidade caem no gosto de largas frações do público ledor.
O raio de ação do Skamander vai-se ampliando, em paralelo
com sua popularidade.13 Expande-se do núcleo inicial, a
revista Pro arte et studio e o café literário Pod Picadorem, por
meio de outros periódicos importantes, o mensário homônimo Skamander e o semanário Wiadomości Literackie. No caso
de Tuwim, ademais, que desde os tempos de Łódź já dera
início a uma bem-sucedida carreira no mundo dos cabarés, a
notoriedade aumenta em virtude de sua intensa e talentosíssima atuação nessa esfera: esquetes, canções, textos satíricos, adaptações, a veia tuwimiana voltada para a cultura do
entretenimento de fato faz dele, como quer Małgorzata
Szpakowska, uma celebridade da época, cuja “fama ia [...]
muito
além
do
público
literário
costumeiro”
(SZPAKOWSKA, 2012, p. 140).
Słowa we krwi (Palavras em sangue), tomo de versos de
1926, inaugura a etapa de perfeito amadurecimento da
poesia de Tuwim. Daqui até a eclosão da Segunda Guerra
vêm a lume as suas mais altas realizações – além do volume
referido, Rzecz czarnoleska (O tom de Czarnolas; 1929), Biblia
cygańska i inne wiersze (A Bíblia cigana e outros poemas; 1933),
Ver a indispensável “biografia coletiva” do grupo em STRADECKI, 1977.
13
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102 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas...
Treść gorejąca (O cerne ardente; 1936), Bal w operze (O baile na
ópera; 193614) e as coletâneas de poemas para crianças
(193815). Não há ruptura marcada entre esta fase e a anterior;
o virtuosismo formal atinge novos cumes, privado agora do
ímpeto otimista e da aceitação voraz do presente, tingido de
reflexão entre amarga e irônica; vicejam reminiscências
infantis em poemas construídos com sábia parcimônia de
recursos, ao passo que, em Bal w operze, a fúria da sátira
transvaza num magma de linguagem em que as hipérboles
de uma fulminante visão expressionista, crispando-se num
apocalipse moderno, convulsionam ritmo e palavra sob suas
arremetidas. No frenesi grotesco do cenário mostrado no
poema, Tuwim logrou projetar não apenas a espiral de
insensatez das elites de seu país, como também lampejos de
prenúncio da desabrida barbárie, da catástrofe de proporções mundiais então iminente.
Ressoam talvez n’O baile na ópera, de certo modo,
notas de desabafo, uma espécie de revide simbólico. Pois a
despeito da fama, ou em consequência dela, Tuwim era alvo
de permanentes ataques. Judeus não assimilados censuravam-lhe com aspereza o desenraizamento, e a raivosa direita
antissemita persegue-o com virulência cada vez maior na
esteira do crescendo fascista que precede a Segunda Guerra.
Dos destinos de Julian Tuwim durante o conflito já sabemos
um pouco. Foge para a Romênia, depois para a França, desta
escapa para Portugal e acaba na Brasil. Nesse meio-tempo,
em circunstâncias ainda hoje não inteiramente esclarecidas,
sua mãe é morta pelos nazistas na pequena cidade de
Em 1936 Tuwim conclui o poema. Sua primeira publicação só se
dará em 1946.
15 Estampam-se no mesmo ano quatro volumes, todos em Varsóvia, sob o selo editorial J. Przeworski: Lokomotywa, Rzepka, Ptasie
radio; O panu Tralalińskim i inne wierszyki; Słoń Trąbalski e Zosia Samosia i inne wierszyki.
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Otwock.16 Nos Estados Unidos, pouso seguinte no exílio, o
poeta rompe com os antigos camaradas do Skamander e
aproxima-se da imigração comunista. Regressa à pátria em
1946, onde será acolhido com as deferências e sinecuras
estatais de praxe – uma vez declarado o seu apoio ao regime
imposto pela URSS. Flores polonesas sai em 1949; em 1950, o
formidável Pegaz dęba (O Pégaso empinado): “panóptico
poético” que reúne ensaios tuwimianos acerca das “mais singulares esquisitices e raridades” da arte do verso, verdadeiro
tratado de “escola superior de montaria no Pégaso”, coleção
de “anomalias, prodígios, equívocos e extravagâncias,
monstra e curiosa, [...] e centenas de outros acepipes do
Parnaso, colhidos em antigos e inacessíveis alfarrábios e
inutilmente dados à estampa” pelo autor (TUWIM, 1986, p.
4). A República Popular da Polônia deve ter-lhe parecido
bastante diferente da Polônia lembrada, de que sentiu
doridas e ininterruptas saudades em seu desterro. Também
por isso, quem sabe, seu espevitado Pégaso não fez jorrar
nova Hipocrene com a benesse de mais versos. A morte veio
de súbito, em 1953, durante estada de descanso na montanhosa Zakopane. Em Varsóvia, a baixeza das ameaças
antissemitas embuçadas em telefonemas e cartas anônimas
teria de achar outro destinatário.
Michał Głowiński observou há alguns anos que
“desde o momento da estreia” as obras tuwimianas “não
passavam despercebidas” e que “muitos iam-se definindo
em relação a elas” (GŁOWIŃSKI, 2007, p. 283). Em vida,
Em 1944, menos de dois anos após o assassinato da mãe (ocorrido em 1942), Tuwim publica no periódico londrino Nowa Polska o
vigoroso “My, Żydzi Polscy” (“Nós, judeus poloneses”), manifesto
em que, não obstante a sóbria reafirmação de sua identidade polonesa, o poeta reivindica a condição de “judeu doloris causa”, compungidamente solidário para com o povo massacrado pelas hordas
de Hitler. Ver TUWIM, 1984, 27-31.
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prossegue o estudioso, Julian Tuwim gozou da reputação de
uma sumidade poética. Não lhe faltaram, de um lado, admiradores exaltados e acríticos. De outro, todavia,
Paradoxalmente, tanto as críticas que lhe dirigiam os
adeptos de outras poéticas quanto os ataques dos racistas locais, que lhe recusavam a posição de um
escritor polonês (não se deve equipará-los, é claro; as
primeiras constituíam um componente normal da
vida literária, os segundos, uma forma de agressão totalitária), de algum modo ratificavam sua importância. (GŁOWIŃSKI, 2007, p. 283)
A partir da morte do autor, porém, a situação muda17:
já não se concede a ele “um posto tão insigne”, seu legado
criativo não merece o “o mesmo interesse que a obra de
outros grandes poetas ativos na primeira metade do séc. XX”
(GŁOWIŃSKI, 2007, p. 283-284). Convicto quanto à excelência das realizações mais consumadas da poesia tuwimiana e
ao papel de primeira ordem por ela representado na história
da literatura polonesa, Głowiński ventila a hipótese de que o
“tempo de purgatório” crítico que se infligiu a Tuwim está
perto do fim18 e sugere algumas balizas para efeito de
revisitação do escritor nos começos do séc. XXI.
A princípio, são objeto de ressalva as categorias de
“tradicionalista” e “vanguardista”: “Se alguém desejasse
empregar a fórmula ‘inovador passadista’, daria vida a um
oxímoro quiçá algo bizarro [...], mas não privado de sentido,
As exceções a registrar são justamente os poemas para crianças e
a obra tradutória, âmbitos nos quais Tuwim continua(rá) gozando
de sólido apreço e de credenciais superlativas.
18 Estudos vindos a lume em seguida – como os do já mencionado
MATYWIECKI (2007 e 2013) – parecem dar prova do acerto da
conjectura de Głowiński. Mencione-se ainda OLCZYK (2010) e
GRIMSTAD (2010).
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pois expressa bem” a peculiaridade do caso tuwimiano
(GŁOWIŃSKI, 2007, p. 277). Os escamandritas não se autodefinem como vanguarda e, na arena literária de sua época,
ocupam trincheiras de adversários dos grupos vanguardistas.
Mais importante, seus versos contraem franco e polpudo
débito junto à tradição. E em que pese isso, exibem um
indiscutível viés de inovação. Tuwim, em particular, possui
o mérito de haver elaborado uma nova concepção de linguagem poética, sem abandono do lastro da poesia do passado,
nem menosprezo pelas ferramentas e modulações da língua
do falatório cotidiano. Assim, rimas, modelos estróficos,
padrões métricos, entre outros itens do arcabouço tradicional
da arte do verso, não são postos fora, mas como que
submetidos à prova da invenção. Zeloso de tais convenções,
o trabalho de criação verbal lida experta e desenvoltamente
com elas, rebusca-as – infringe-as, inclusive –, servindo-se
dos achados espontâneos e das potências do discurso coloquial para dilatar o léxico, revigorar a sintaxe e multiplicar
os ritmos do poema.
Destaco esses elementos das considerações do analista porque me parecem fornecer parâmetros de bastante
utilidade para o tradutor de Tuwim. A orientação que deles
se deduz tem cunho genérico, evidentemente, e não pode
levar longe sem a varredura pontual e exaustiva dos territórios de cada texto. Grosso modo, no entanto, demarca-se aí o
norte poético que tomei em meu traslado. No ir e vir
subsequente, entre arroubos eufóricos em face de um miúdo
acerto e flagelos depressivos por força do que não se solucionava, mantive em mira todo o tempo os escritos tuwimianos
sobre tradução19, bem como o magistral exemplo de sua
Pegaz dęba traz dois textos sobre o assunto (“Traduttore – traditore” e “Czterowiersz na warsztacie”; ver TUWIM, 1986, p. 165-209),
para não mencionar apontamentos e reflexões tradutológicas em
prefácios a traduções e/ou dispersos em outros escritos do autor.
19
Sumário
106 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas...
própria oficina tradutória. Na célebre Lutnia Puszkina (A lira
de Púchkin), por exemplo, cuja introdução arremata com um
punhado de penetrantes comentários sobre “o método e o
resultado” (TUWIM, 1952, p. 12) de seu trabalho vertendo “o
Apolo cita” (p. 5) para a língua polonesa, Tuwim deixa
patente antes de qualquer outra coisa um ouvido absoluto
para as propriedades rítmicas e melódicas do verso. Salientando a carência de rimas masculinas no polonês – abundantes no russo, pelo contrário – e a “consolidada muralha do
acento das palavras polonesas” – ao passo que a acentuação
russa é “cambiante e móvel” –, lamenta os incontáveis
“danos” que causou aos característicos iambos de Púchkin e
seu apurado rimário (TUWIM, 1952, p. 1220). A despeito das
faltas e desdouros da lira do tradutor, contudo, cabe “sem
falsa modéstia” a assertiva de que suas versões puchkinianas
revelam “algumas [...] virtudes”. O critério de última
instância aqui é dar conta da “totalidade” do original. A noção não deve ser entendida, recomenda Tuwim, literalmente
apenas, “a totalidade do poema é sobretudo sua dominante
poética: esta cumpre sentir, fixar e conquistar.”
Não descuidemos da sutileza do argumento. A noção
de totalidade não deve ser compreendida tão só literalmente.
Ou seja, é preciso tomá-la em sentido literal e não literal ao
mesmo tempo. Em sentido literal, porque a visada tradutória
se debruça por definição sobre todos os componentes formais da obra que elege. Em sentido não literal também, no
entanto, porque o roteiro do traslado há de se pautar pela
dominante poética da obra, pela dinâmica de conjunto que,
resultando da soma de suas partes, transcende-a, imprimindo-lhe de fato a fisionomia de um todo artisticamente
organizado. Concordaria com a eventual objeção de que o
preceito talvez crie mais dificuldades do que resolva. Em vez
Todas as expressões citadas até o fim do parágrafo provêm da
mesma página.
20
Sumário
Tradução e Autoria
| 107
de atacá-las uma a uma, proponho um atalho – pois já passa
da hora de terminar. Reproduzo a seguir “Abecadło” (“O
abecê”), “Ptasie plotki” (“O tititi das aves”), “O Panu
Tralalińskim” (“Seu Tralaliński”), “Spóźniony słowik” (“O
rouxinol atrasado”) e “Zosia Samosia” (“Neusinha
Euzinha”), os cinco poemas tuwimianos para crianças que
traduzi. Minha esperança é que sua leitura mesma explique e
ateste o juízo que faço deles: constituem um esplêndido
brinquedo verbal, nisto exatamente consistindo seu tônus
criativo, sua dominante poética. Se não, vejamos.
ABECADŁO
O ABECÊ
Abecadło z pieca spadło,
O ziemię się hukło,
Rozsypało się po kątach,
Strasznie się potłukło:
O abecê caiu da estante,
Levou um tombo tremendo,
Foi letra pra todo canto,
Estrepou-se que só vendo:
I - zgubiło kropeczkę,
H - złamało kładeczkę,
B - zbiło sobie brzuszki,
A - zwichnęło nóżki,
O - jak balon pękło,
aż się P przelękło,
L - do U wskoczyło,
T - daszek zgubiło,
R - prawą nogę złamało,
S - się wyprostowało,
W - stanęło do góry dnem
i udaje, że jest M.
o I – ficou sem pinguinho,
no H – já era o tracinho,
o B – ‘spremeu as pancinhas,
o A – luxou as perninhas,
o O – feito um balão – pou!
o P até se assustou,
o T – está destelhado,
o L – é um U deitado,
o S – sem silhueta,
o pobre R – perneta,
o W – meio lelé:
eu pareço o M, né?
PTASIE PLOTKI
O TITITI DAS AVES
Przyszła gąska do kaczuszki,
Obgadały kurze nóżki.
A gansa e a marreca, vizinhas,
Reprocham os pés das alinhas.
Sumário
108 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas...
Do indyczki przyszła kurka,
Obgadały kacze piórka.
A perua e a galinha, a sós,
Criticam a pata sem dó.
Przyszła kaczka do perliczki,
Obgadały dziób indyczki.
A galinha d’angola e a pata
Desancam a perua chata.
Kaczka kaczce wykwakała,
Co gęś o niej nagęgała.
Outra pata quaquá se esgoela,
Essa gansa, ahn, gue guer
dela?
Na to rzekła gęś, że kaczka
Jest złodziejka i pijaczka.
A gansa na hora revida:
Pata beberrona, bandida.
O indyczce zaś pantarka
Powiedziała, że plotkarka.
Dona angola peita a perua:
Sua linguaruda, urubua.
Teraz bójka wśród podwórka,
Że aż lecą barwne piórka.
Que rebuliço no quintal!
Tem pena voando geral...
SEU TRALALIŃSKI
O PANU TRALALIŃSKIM
W Śpiewowicach, pięknym
mieście,
Na ulicy Wesolińskiej
Mieszka sobie słynny śpiewak,
Pan Tralisław Tralaliński.
Mora um cantor de fama
insólita,
Tralisław Tralaliński, lá
Na comarca de Cantigópolis,
Centro, Avenida Felicińska.
Jego żona – Tralalona,
Jego córka – Tralalurka,
Jego synek – Tralalinek,
Jego piesek – Tralalesek.
Sua patroa – Tralaloa,
Sua filhota – Tralalota,
O seu filhote – Tralalote,
Seu lindo cão – o Tralalão.
No a kotek? Jest i kotek,
Kotek zwie się Tralalotek,
Oprócz tego jest papużka,
Bardzo śmieszna Tralalużka.
Gatinho? Também tem gatinho,
Ele se chama Tralalinho,
E tem também a papagaia,
Engraçadona, a Tralalaia.
Sumário
Tradução e Autoria
| 109
Co dzień rano, po śniadaniu,
Zbiera się to zacne grono,
By powtórzyć na cześć mistrza
Jego piosnkę ulubioną.
Todo dia, após o café,
A turma unida e bem alerta
Ensaia, em honra ao caro mestre,
Sua cantiga predileta.
Gdy podniesie pan Tralisław
Swą pałeczkę – tralaleczkę,
Wszyscy milkną, a po chwili
Śpiewa cały chór piosneczkę:
Seu Tralisław,
concentradíssimo,
Ergue a batuta – tralaluta;
Calam-se todos, e em uníssono
Então eis que a canção se escuta.
“Trala trala trala trala
Trala trala trala trala!”
Tak to pana Tralisława
Jego świetny chór wychwala.
“Tralala trala tralala
Tralala tralala trala!”
Vejam que coro do barulho,
Enche seu Tralisław de orgulho.
Wyśpiewują, tralalują,
A sam mistrz batutę ujął
I sam w śpiewie się rozpala:
“Trala trala tralalala!”
Cantam bem no tom, tralalom,
E o mestre mesmo, alto e bom
som,
Na bela cantiga se embala:
“Tralala tralala trala!”
I już z kuchni i z garażu
Słychać pieśń o gospodarzu,
Już śpiewają domownicy
I przechodnie na ulicy:
Já na cozinha e na garagem
A cantoria quer passagem,
O canto não cessa um instante,
Já se ouvem na rua os
passantes:
Jego szofer – Tralalofer
I kucharka – Tralalarka,
Pokojówka – Tralalówka
I gazeciarz – Tralaleciarz,
I sklepikarz – Tralalikarz,
I policjant – Tralalicjant,
I adwokat – Tralalokat,
I pan doktor – Tralaloktor,
Nawet mała myszka,
O motorista – Tralalista,
A cozinheira – Tralaleira,
Uma empregada – Tralalada,
Um jornaleiro – Tralaleiro,
Um engraxate – Tralalate,
O policial – Tralalal,
Um advogado – Tralalado,
O geriatra – Tralalatra,
Até o pobre camundongo,
Sumário
110 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas...
Szara Tralaliszka,
Choć się boi kotka,
Kotka Tralalotka,
Siadła sobie w kątku,
W ciemnym tralalątku
I też piszczy cichuteńko:
“Trala – trala – tralaleńko…”
O pequenino Tralalongo,
Muito embora tema o gatinho,
Aquele fofo Tralalinho,
Sentou-se ali no seu cantito,
Um apertado tralalito,
E cantarola assim baixim:
“Tralala – trala – tralalim...”
SPÓŹNIONY SŁOWIK
O ROUXINOL ATRASADO
Płacze pani Słowikowa w
gniazdku na akacji,
Bo pan Słowik przed dziewiątą
miał być na kolacji,
Tak się godzin wyznaczonych
pilnie zawsze trzyma,
A już jest po jedenastej – i
Słowika nie ma!
A dona Rouxinol na acácia
está aos prantos;
Voltaria pro jantar às nove, se
tanto,
Seu Rouxinol, sempre ali na
hora marcada,
Mas lá se vão as onze e seu
Rouxinol – nada!
Wszystko stygnie: zupka z
muszek na wieczornej rosie,
Sześć komarów nadziewanych
w konwaliowym sosie,
Motyl z rożna, przyprawiony
gęstym cieniem z lasku,
A na deser – tort z wietrzyka w
księżycowym blasku.
Esfriou a sopa de orvalho
vesperal,
As moscas recheadas ao
molho floral,
A borboleta no espeto pra
petiscar,
A torta de vento com raio de
luar.
Może mu się co zdarzyło?
może go napadli?
Szare piórka oskubali, srebry
głosik skradli?
To przez zazdrość! To
skowronek z bandą
skowroniątek!
Piórka - głupstwo, bo odrosną,
ale głos - majątek!
Terá havido algo? Talvez
assaltantes?
As peninhas, meu Deus, a voz
de diamante?!
Inveja! Foi a tal cotovia,
decerto!
As peninhas, vá lá, a voz – é
um concerto!
Sumário
Tradução e Autoria
Nagle zjawia się pan Słowik,
poświstuje, skacze...
Gdzieś ty latał? Gdzieś ty
fruwał? Przecież ja tu płaczę!
A pan Słowik słodko ćwierka:
"Wybacz, moje złoto,
Ale wieczór taki piękny, że
szedłem piechotą!"
ZOSIA SAMOSIA
“Sama! Sama! Sama!”
Ważna mi dama!
Wszystko sama lepiej wie,
Wszystko sama robić chce,
Dla niej szkoła, książka, mama
Nic nie znaczą - wszystko
sama!
Zjadła wszystkie rozumy,
Więc co jej po rozumie?
Uczyć się nie chce - bo po co,
Gdy sama wszystko umie?
A jak zapytać Zosi:
– Osiem!
- A kto był Kopernik?
– Król!
- A co nam Śląsk daje?
– Sól!
De repente, seu Rouxinol:
trina, saltita...
Onde o senhor estava? Eu
aqui aflita!
E seu Rouxinol chilreia:
“Perdão, docinho,
Tão linda a noite, que voltei a
pé pro ninho!”
NEUSINHA EUZINHA
Jest taka jedna Zosia,
Nazwano ją Zosia-Samosia,
Bo wszystko
- Ile jest dwa i dwa?
| 111
Tem uma certa Neusinha
Que chamam de NeusinhaEuzinha,
Com ela é tudo
“Eu! Eu! Eu!”
Que prima donna, Deus meu!
Tudo ela só já conhece,
Tudo ela faz e acontece,
A escola, o livro, a mamãe –
balela
Pura e simples, pois tudinho é
ela!
Não é uma sabe-tudo,
De que serve então juízo,
estudo?
Aprender – não faz por onde,
Na hora ela não responde?
Mas pergunte a Neusinha na
prova:
- Quanto é quatro mais
quatro?
– Nove! Nove!
- Dr. Oswaldo Cruz foi?
– Presidente!
- Sete de setembro é?
– Tiradentes!
Sumário
112 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas...
- A gdzie leży Kraków?
– Nad Wartą!
- A uczyć się warto?
– Nie warto!
Bo ja sama wszystko wiem
I śniadanie sama zjem,
I samochód sama zrobię,
I z wszystkim poradzę sobie!
Kto by się tam uczył, pytał,
Dowiadywał sie i czytał,
Kto by sobie głowę łamał,
Kiedy mogę sama, sama!
– Toś ty taka mądra dama?
A kto głupi jest?
– Ja sama!
- Come-se vatapá em?
– Belém!
- E estudar, não convém?
– Nem vem!
Eu sei tudo tintim por tintim
E a sobremesa é toda pra mim,
Faço euzinha até um avião,
Comigo não tem perrengue
não!
Quem vai aprender, e perguntar,
E ler, e descobrir, e errar,
Queimar pestana e toutiço
Sem que se precise disso!
– Grande sabichona!
E a boboca de quem se
escreveu?
– Eu, eu!
Muito tentado, confesso, a deitar a lupa sobre esses
textos, saboreando cada ingrediente, esmiuçando cada surpresa e perícia infusas em sua luminosa arte, devo proibirme esse prazer. Pinço uma ou duas engrenagens de seu
delicado maquinismo, a fim de ilustrar por meio delas a
índole do trato tradutório incutido pela dominante poética
que linhas atrás se apontou. Falei em brinquedo verbal;
donde o corolário – versões brincadas. Conforme as referidas
ponderações de Tuwim, a fórmula deve ser entendida de
duas maneiras. Primeiro, sugere que a totalidade de cada
versão – assim como a de cada original – compõe-se de uma
série de brincadeiras de linguagem. Examinemos a esse
respeito um fragmento de “Zosia Samosia”. A sabatina
aventada no poema para pegar em flagrante a egocêntrica
criaturinha surte efeito jocoso graças à combinação de vários
artifícios verbais: a segura cadência das respostas, como que
sublinhadas pelas rimas, faz reverberar ironicamente a fieira
de cincadas com que a sabichona atina... A graça depende,
Sumário
Tradução e Autoria
| 113
porém, do conhecimento de um background polonês. Cabe
supor que qualquer estrangeiro desconfiaria de algo diante
do monossilábico “Rei!” (“Król!”) que retruca a “E quem foi
Copérnico?” (“A kto to był Kopernik?”). No entanto, a
exigência de saber geográfico em “E Cracóvia, onde fica?/
Às margens do Warta!” (“A gdzie Kraków leży?/ Nad
Wartą!”) já acarretaria encrenca. Sabe-se lá que é às margens
do Vístula que Cracóvia se situa?! A estratégia adotada,
então, foi brincar como Tuwim – com meu leitor alvo,
substituindo as referências originais por matéria brasileira,
para que se reconfigurasse o trecho sem prejuízo de seu
cristalino vetor cômico. Cada parte do todo, assim, era uma
nova partida a jogar, uma outra brincadeira tuwimiana a
requerer o devido equacionamento21.
Viu-se todavia que a matemática do todo artístico não
fecha com uma singela soma das partes. Cumpre pensá-lo
igualmente como complexo estruturado à roda de certo
fulcro de forças, como arranjo dinâmico dotado de um
princípio ordenador. Nesse sentido, chamo os versos para
crianças de Tuwim de poemas de brinquedo na medida em
Faço neste ponto uma ressalva, antes que me veja acoimado de
inclinações etnocêntricas e domesticadoras. No caso em tela, quer
por conta da galhofeira “prova” discutida, quer por conta do título
do poema – cujas propriedades formais só consegui reter à custa
da troca do diminutivo Zosia (de Zofia) por Neusinha – não tive
escrúpulos perante o abrasileiramento. Noutros lances, ao contrário, cismei que o divertido seria estrangeirizar. Vide, a título de
ilustração, “O Panu Tralalińskim”. O nome da rua do caro mestre
cantor, Felicińska (“feliz” + “ińska”), híbrido neológico bilíngue,
corresponde a Wesołyńska: o adjetivo “wesoła” (“alegre”), acoplado a desinência característica de nomes próprios femininos poloneses. Para cotejo, leiam-se os quatro primeiros versos do poema
em tradução italiana: “A Canterino, città graziosa,/ Viale Allegro
Contentini,/ Vive un celebre cantante,/ Trallislao Trallallini” (TUWIM, 2010, sem nº de pág.; o grifo é meu).
21
Sumário
114 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas...
que têm por móvel um espírito lúdico e folgazão, na medida
em que sua arte tem por traço distintivo capital brincar
inventivamente com seus receptores, e com a linguagem. Daí
minhas tentativas de versões de brinquedo. Um segundo
fragmento textual deve oferecer esclarecimento suficiente
sobre a lógica do modus operandi tradutório de que lancei
mão. Leiamos o excerto em italiano, na ótima tradução de
Marco Vanchetti – trata-se da terceira estrofe de seu “Il
signor Trallallini”: “E il gatto? C’è anche un gatto,/ Che si
chiama Trallallatto,/ E poi c’è un papagallo,/ L’assai buffo
Trallallallo” (TUWIM, 201022). Excetuado o fato de que
Tuwim emprega diminutivos: “kotek”, não “kot”,
“papużka”, não “papuga”, tudo em Vanchetti confere com o
original. Na casa de seu Tralaliński tem um gatinho, e além
disso um papagaiozinho muito engraçado (“[...] papużka/
Bardzo śmieszna”). Meus esboços iniciais iam na mesma
direção do traslado italiano (a que só tive acesso, ressalto,
após concluída minha tradução). O diminutivo de papagaio
alongava em demasia o verso, portanto não podia contar
com ele. Mas afinal a própria palavra polonesa veio em meu
socorro. “Papużka” pertence ao gênero feminino, atento ao
que arrisquei: “papagaia”. A desinência, em si mesmo engraçada, ainda recebia a seguir o apoio rímico de “Tralalaia”. E
como o bicho era muito engraçado, decidi: “engraçadona”.
Na brincadeira, me pareceu ter incrustado no lavor formal
dos versos brasileiros o ânimo de folguedo poético que
irradiava dos originais.
A via que assim se me deparou merece talvez ser
descrita, à guisa de escorço, ao menos, com um vocabulário
teórico condizente. Remonto às proposições clássicas de Jiří
Levý:
22
Obra sem numeração de página.
Sumário
Tradução e Autoria
| 115
De um ponto de vista teleológico, a tradução é um
processo de comunicação [...]. Do ponto de vista da
situação de trabalho do tradutor, em qualquer momento de sua atividade (isto é, de um ponto de vista
pragmático), a tradução é um processo de tomada de
decisões: uma série composta de certo número de situações sucedendo-se umas às outras – de movi-mentos,
como em um jogo –, situações que impõem ao tradutor a necessidade de efetuar uma escolha entre certo
número de possibilidades (com bastante fre-quência
passíveis de definição rigorosa). (LEVÝ, 2009, p. 72)
Qualquer ocorrência tradutória dada, argumenta o
pesquisador tcheco, implicará o delineamento de um paradigma – “um conjunto de soluções potenciais” (LEVÝ, 2009,
p. 73) –, no bojo do qual ato contínuo se há de efetuar uma
escolha, segundo um rol específico de critérios – Levý
designa-os “instruções seletivas” (p.74). A singularidade da
situação a que aludi parece ganhar contornos bem nítidos
nessas molduras conceituais. O paradigma inicialmente
definido em função do passo em que nos detivemos proviame do necessário para uma decisão motivada (por critérios
de adequação de sentido, de registro e de metro): papagaio,
pequeno papagaio, papagaiozinho, periquito etc. A dominante poética da obra, contudo, obrigou a uma insuspeita
ampliação desse paradigma. Era preciso que ele contivesse
alternativas mais afins ao tônus de travessura criativa que, a
meu sentir, organiza esteticamente a linguagem dos versos
tuwimianos para crianças e notabiliza-os.
Decorreu dessa guinada um aumento substancial dos
obstáculos a inçar o já tortuoso caminho do traslado. Faço
votos de que terá valido a pena, mas, afinal, a questão é de
incumbência de quem lê. Em respaldo da diretriz que prevaleceu, alinhavo apenas – concluindo – mais um apontamento. Na metáfora título d’O Pégaso empinado, Jadwiga
Sumário
116 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas...
Sawicka divisou a cifra de “um fazer poético dificultado”23,
de um trabalho de criação que se compraz com os percalços.
A pesquisadora reconhece em Tuwim o poeta doctus, dotado
de erudita consciência de seu ofício, da dilatada problemática a ele concernente. Não menos do que as vanguardas
que lhe eram contemporâneas, Julian Tuwim mobiliza esse
sofisticado saber técnico em diversos experimentos de
linguagem; à diferença delas, todavia – em tácita polêmica
com elas, quem sabe, e com a severa disciplina de suas
cartilhas –, experimenta como poeta ludens, como quem
reclama para si, apesar de todos os pesares, a traquinagem e
o disparate, a fantasia avoada da criança e do louco.
E é coisa sabida: brincadeira boa dá vontade no outro
de brincar. Né?
REFERÊNCIAS
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rozszerzone; oprac. Michał Głowiński. Wrocław: Zakład
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A pesquisadora emprega a expressão em “Poetyka sformułowana w Panopticum”, texto introdutório que redigiu para a reimpressão de Pegaz dęba aqui já referida. Ver TUWIM, 1986, p. V.
23
Sumário
Tradução e Autoria
| 117
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JOVANOVIĆ, Aleksandar (org., estudo introd., notas biog. e trad.).
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Sumário
118 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas...
Sumário
Tradução e Autoria
| 119
Marta Pragana Dantas
Artur Fragoso de A. Perrusi
O espaço internacional de circulação das obras, no
seio do qual a tradução desempenha um papel preponderante, é regido por assimetrias, relações de dominação e
coerções de ordem econômica, política e cultural. Esses
fatores interferem com maior ou menor intensidade, dependendo sobretudo – mas não exclusivamente – das línguasculturas envolvidas, bem como do contexto sócio-histórico
em que se dão tais trocas culturais. Pode-se afirmar que as
razões que dificultam a tradução de determinadas obras
numa cultura, ou seja, os obstáculos à circulação das obras,
situam-se para além de critérios inerentes à avaliação da
obra em si. Eles podem ser de ordem econômica, política ou
cultural. No âmbito deste artigo, daremos ênfase à dimensão
cultural, tomando como estudo de caso a circulação das
obras francesas no Brasil.
Este estudo foi realizado no âmbito de um projeto
mais amplo sobre a circulação, por meio da tradução, de
obras francesas em diferentes áreas linguísticas: Inglaterra,
Estados Unidos, Holanda e Brasil1. No Brasil, foram reali-
1.
A pesquisa foi realizada sob a coordenação da socióloga Gisèle
Sapiro (Centre européen de sociologie et de science politique / CNRS /
Sumário
120 | A Circulação de Obras Francesas no Brasil...
zadas, entre fevereiro e novembro de 2010, 27 entrevistas
com atores intervindo no campo das traduções do francês,
mais precisamente atores sediados no Rio de Janeiro e em
São Paulo: 15 editores (sendo dois universitários) e onze
tradutores com diferentes perfis, além de um intermediário
ligado ao governo francês (Embaixada da França no Brasil).
Entre as mudanças que vêm ocorrendo nas últimas
décadas no que diz respeito à circulação mundial de obras, a
mais marcante delas talvez seja o aumento substancial das
traduções do inglês, que passaram de 45% a 59% entre 1980 e
1990, segundo dados do Index translationum. Como se sabe,
esse aumento não se fez acompanhar de um crescimento
proporcional no sentido inverso, ou seja, de traduções de
outras línguas para o inglês, revelando, entre outras coisas, o
baixo prestígio da prática tradutória num país como os
Estados Unidos, para citar a nação de onde mais se traduz
do inglês. A tradução representa entre 3% e 4% da produção
editorial estadunidense, proporção que vem caindo desde a
década de 1970, contrariando a tendência verificada nos
demais países, conforme aponta Gisèle Sapiro (2012). Ainda
nesse mesmo país, a baixa valorização da tradução se reflete
também em outras práticas editorias: por exemplo, na
estratégia de omitir o nome do tradutor da capa do livro,
privilégio reservado somente aos tradutores de renome, que
agregam capital simbólico à obra (SAPIRO, 2012, p. 70).
Num país emergente como o Brasil, a tradução ocupa
um lugar relevante no sistema cultural, enquanto via de
acesso à circulação internacional de ideias. Acompanhando a
tendência verificada em outros países, as traduções da língua
inglesa representam aqui mais da metade dos títulos
traduzidos, seguidas pelo francês e pelo espanhol, línguas
cujas traduções ficam em torno de 10% dos títulos traduEHESS – Paris), a parte brasileira tendo ficado sob a responsabilidade dos autores deste artigo.
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Tradução e Autoria
| 121
zidos. Nesse contexto de hegemonia linguística do inglês, a
reflexão sobre os obstáculos à tradução de obras francesas se
inscreve num quadro de “reclassificação” (ou revalorização
negativa) dessa cultura no cenário nacional (DANTAS;
PERRUSI, 2012). Esse processo, evidentemente, não se
restringe ao contexto brasileiro, estando vinculado à situação
internacional de perda de influência da França e supremacia
estadunidense, iniciado no segundo quartel do século
passado.
Obstáculos culturais
Especificamente no Brasil, a hegemonia da língua
inglesa sucede a trezentos anos de influência da cultura
francesa, conforme salienta Lia Wyler em Línguas poetas e
bacharéis: uma crônica da tradução no Brasil (2003). Historicamente, pode-se afirmar que essa mudança da referência
cultural francesa – ocorrida, em grande parte, paralelamente
à colonização portuguesa – para a anglo-americana é um
tanto recente, os traços daquela cultura sendo ainda relativamente fortes em alguns segmentos da cultura das elites
dominantes do país.
Esta influência penetrou diferentes setores do tecido
social, inclusive o mundo acadêmico. O elo entre a universidade brasileira e o pensamento francês, em particular no
domínio das ciências humanas e sociais, é bastante estreito
ainda hoje. Não é, portanto, por acaso que, na origem de
várias editoras importantes, tais como Forense Universitária,
Jorge Zahar Editor, Cosac Naify, Companhia das Letras,
editora universitária Unesp e Edições Loyola, a Europa – e a
França em particular – constitua uma referência em matéria
editorial, cultural e de tradução.
De fato, as editoras, empresas de origem familiar,
foram em grande parte fundadas por pessoas possuidoras de
Sumário
122 | A Circulação de Obras Francesas no Brasil...
uma cultura de formação europeia. Há cinquenta anos, era
sinal de distinção demonstrar gosto pela leitura em francês,
alemão e italiano, e as elites culturais de São Paulo e do Rio
de Janeiro formavam-se na França. O livro gozava de certo
prestígio no seio da elite brasileira, e fundar uma editora
significava, em larga medida, ter uma visão cosmopolita.
O avô de um dos editores entrevistados, por
exemplo, cuja editora, à época da entrevista, acabara de ser
incorporada a um grupo editorial, foi embaixador do Brasil
na França. O editor menciona a importância deste país na
formação intelectual da antiga capital do Brasil, sublinhando
a influência francesa na origem da empresa familiar. Afirma
ele:
Os antigos donos, um deles é a minha tia, tiveram
formação clássica, estudaram na França quando
tinham 15, 16 anos. Acho que ela foi pra Suíça ou pra
França, eu não sei. E se foi pra Suíça deve ter ido pra
algum lugar que falasse francês. Eles têm uma ligação
muito grande com a França, de admiração. Até hoje,
todo ano eles vão pra lá. (Entrevista com M, editor).
Atualmente, a situação mudou bastante, ao ponto de
esta relação privilegiada com a França e a Europa quase não
mais existir nas editoras e nas novas gerações. Alguns editores e tradutores não encontram, na literatura francesa contemporânea, nenhuma obra digna de ser traduzida e publicada. É o que evoca esta editora de uma empresa de porte
médio, recentemente incorporada a um grande grupo editorial do Rio de Janeiro, para quem a “novidade” literária não
se encontra mais na França nem no mundo ocidental:
Eu acho que a literatura da França mesmo deu uma
parada. Não há novidade, a meu ver, ultimamente. Eu
vejo que as novidades estão vindo de países chamados exóticos. As literaturas que estão fazendo mais
Sumário
Tradução e Autoria
| 123
sucesso hoje em dia são dos indianos, dos afegãos,
essa gente que a gente não conhecia muito até agora e
que agora está aparecendo. Os chineses... Agora a
gente tem lançado muito os chineses. (Entrevista com
H, editora).
Ou ainda esta tradutora ligada a uma prestigiosa casa
editorial de São Paulo:
Eu ouvi gente dizendo que os franceses ultimamente
têm escrito coisas que não são... Não tem nada de
grande valor, quer dizer, não é “grande valor”, de
grande interesse, não tem nada de muito universal,
que eles estão olhando para o próprio umbigo. Sei lá,
sei lá... não sei, não sei. Isso é fato... (Entrevista com Q,
tradutora).
Semelhante argumento comporta a ideia de um esgotamento, ao menos conjuntural, da literatura francesa contemporânea, sentimento que parece compartilhado também
por outra editora de uma importante casa editorial generalista:
A literatura francesa contemporânea tá meio chata em
geral! E isso é uma coisa que você não fica com muita
vontade... Não tem muito assim... A americana é mais
interessante... Não é? A americana não, a de língua
inglesa, que pode ser inglesa... tem vários... (Entrevista com C, editora).
Esta ideia de esgotamento deve ser também associada
à concorrência de outras literaturas, com ao aumento do
número de traduções disponíveis no mercado editorial brasileiro – fato este que não deixa de ter relação com o recente
desenvolvimento de cursos de formação de tradutores e a
institucionalização do exercício da profissão.
Sumário
124 | A Circulação de Obras Francesas no Brasil...
Outro aspecto a salientar diz respeito à ideia difundida de que o livro francês em geral não vende, sobretudo a
ficção contemporânea. No circuito de grande produção, as
obras francesas seriam de difícil comercialização por terem
um teor pretensamente mais reflexivo ou, simplesmente,
porque o público brasileiro estaria mais habituado à produção anglo-americana, associada ao consumo de satisfação
imediata incarnado no modelo da indústria de entretenimento. É o que emerge deste comentário da editora de um
importante grupo editorial do Rio de Janeiro:
A nossa impressão é que o leitor brasileiro não acredita na literatura de entretenimento francesa e menos
ainda acredita na autoajuda, psicologia... francesa. Um
livro de autoajuda francês não vende, só vende se for
americano. (Entrevista com J, editora).
A cultura francesa está associada à imagem de sofisticação, ao consumo de artigos de luxo como vinhos, perfumes e moda. No contexto editorial, isto se traduziria na alta
literatura ou produção de circulação restrita – aqui sinônimo
seja dos autores clássicos, seja de uma produção contemporânea de difícil consumo, acessível apenas aos “iniciados”.
Para esses editores, a produção francesa (ou mesmo a
tipicamente europeia) não interessaria o leitor brasileiro,
cujas categorias de gosto estariam atualmente mais afinadas,
de uma forma geral, com o que vem do espaço angloamericano.
Por trás desse argumento, percebe-se uma visão do
público como grupo homogêneo, cujas categorias de percepção e gosto são tratadas em bloco. É possível lançar a
hipótese de um mimetismo em relação ao sistema editorial
estadunidense, cujo comportamento é similar, conforme
aponta o estudo já mencionado de Gisèle Sapiro sobre o
mercado editorial dos Estados Unidos (2012, p. 66). Como o
Sumário
Tradução e Autoria
| 125
desenvolvimento do setor de marketing e gestão empresarial
brasileiro segue de perto o modelo estadunidense, inclusive
na área editorial, não seria de estranhar que nossos editores
tenham incorporado atitudes e disposições profissionais
típicas de outra realidade, que passam dessa forma a moldar
as práticas nacionais.
Seria ainda o caso de se indagar até que ponto os
editores se apoiam numa explicação justificadora de seu
desinteresse pela cultura francesa (e, nesse sentido, também
europeia), alinhando-se à pressão do mercado e da indústria
de entretenimento estadunidense. Nessa linha de raciocínio,
não haveria exatamente um desinteresse do leitor brasileiro
pela cultura francesa, e sim um direcionamento da produção,
por parte de atores do mercado editorial nacional, para a
cultura anglófona. Nesse sentido, é oportuno lembrar a
política de tradução maciça implementada no Brasil pelo governo estadunidense na década de 1960 e que, estendendo-se
por mais de 25 anos (de 1960 a 1987 aproximadamente), foi
responsável pela publicação em média de 1 título por dia,
segundo Lia Wyler (2003). Ou seja, durante ¼ de século o
governo dos Estados Unidos, por meio do Book Program,
aclamado pela maioria dos editores nacionais, selecionou e
subsidiou grande parte das obras estadunidenses que deveriam ser publicadas no Brasil, financiando tanto a tradução
quanto a produção.
As diferenças culturais entre Brasil e França também
emergiram como elementos que podem dificultar a circulação de obras, sobretudo no que diz respeito à literatura
infantil. Por um lado, a criança francesa seria mais precocemente formada para a leitura do que a brasileira. Assim, o
editor precisa levar em conta essa defasagem na hora de
lançar a obra no Brasil, redirecionando-a para crianças, em
média, dois anos mais velhas. Por outro lado, além desse
cuidado com a faixa etária, o editor brasileiro precisa ficar
atento ao tratamento, considerado cru ou muito direto, dado
Sumário
126 | A Circulação de Obras Francesas no Brasil...
a determinados temas, a exemplo do divórcio e do homossexualismo, nos livros infantis franceses. Assim, para esta
editora de livros infantis de uma importante casa editorial:
Não é o tema, mas é o tratamento duro. Duro, eu digo,
a verdade nua e crua assim. Porque na França tem o
debate aberto, é uma impressão que eu tenho. Então é
bem assim, a verdade nua e crua, não tem muito
lirismo, não tem muita fantasia. Então eu acho que é
isso que, talvez, não bate muito, não é muito o jeito
daqui. Aqui as pessoas vão bem pelas beiradas pra
chegar, tem sempre alguma imagem que alude e tal...
(Entrevista com D, editora).
Conclusão
Após este breve relato de alguns obstáculos culturais
à circulação de obras francesas no Brasil, caberia indagar até
que ponto as dificuldades enfrentadas por essas traduções
não seriam de ordem mais ampla, comuns às outras línguasculturas, num contexto marcado pela hegemonia avassaladora do inglês. Afinal, à exceção da língua inglesa, as traduções do francês, do espanhol, do italiano e do alemão
coabitam o mercado editorial brasileiro de forma mais ou
menos equilibrada ou, pelo menos, não tão assimétricas
quanto as traduções do inglês.
A hegemonia do inglês seria também a hegemonia da
cultura anglo-americana e de seus valores, inclusive de
mercado. Nesse sentido, a aproximação do modelo de gestão
das editoras brasileiras em relação às estadunidenses, por
maior que seja a distância que separa esses dois mercados
editoriais, não deve causar espanto.
Contudo, numa cultura aberta ao estrangeiro como a
brasileira, onde, para usar um lugar comum, quase tudo o
que vem de fora é valorizado, soa paradoxal os editores
Sumário
Tradução e Autoria
| 127
evocarem que as obras francesas não vendem, que não há
espaço para elas. Até que ponto estamos diante de uma falsa
questão, de mais um “mito” do mercado editorial, dessa vez
importado da realidade editorial estadunidense, esta sim
tida como fechada à cultura do outro e hostil à tradução?
Desenvolver esta hipótese exigiria trazer para a discussão a
lógica econômica como princípio norteador por excelência
do mercado editorial na era da globalização – mas isso já
seria uma outra conversa...
REFERÊNCIAS
DANTAS, Marta Pragana; PERRUSI, Artur Fragoso de A. Le
reclassement d'une tradition: la traduction du français dans le
marché éditorial brésilien. In: SAPIRO, Gisèle (Org.) Traduire La
littérature et les sciences humaines. Conditions et obstacles. Paris,
DEPS, 2012, p. 163-198.
SAPIRO, Gisèle. Revaloriser la traduction dans um environnement
hostile: le marché éditorial aux États-Unis. In: SAPIRO, Gisèle
(Org.) Traduire La littérature et les sciences humaines. Conditions et
obstacles. Paris, DEPS, 2012, p. 69-70.
WYLER, Lia. Línguas poetas e bacharéis: uma crônica da tradução no
Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
Sumário
128 | A Circulação de Obras Francesas no Brasil...
Sumário
Tradução e Autoria
| 129
Pedro Heliodoro Tavares
Michel Foucault, em seu texto de 1967 publicado em
Cahiers de Royamont, intitulado Nietzsche, Freud, Marx, alia o
criador da Psicanálise, justamente, aos dois autores com os
quais mais se ocupou ao longo de sua obra. A tríade seria
composta por se tratarem de pensadores que apresentam
diferentes “técnicas de interpretação”. Seriam fundadores
de outra relação da linguagem com suas representações,
“fundaram novamente a possibilidade de uma hermenêutica” (FOUCAULT, 1967 p.42). Constituiriam espécies de
espelhos que nos rodeiam e nos possibilitam fazer-nos
enxergar, para além do narcisismo puro, também nossas
falhas e nossas feridas narcísicas. “Eles não deram um sentido novo a coisas que não tinham sentido. Na realidade, eles
mudaram a natureza do signo e modificaram a maneira pela
qual o signo em geral podia ser interpretado.” (Idem, p.42).
A interpretação é, de fato, tema central no pensamento freudiano. Não à toa, a sua obra fundamental se
chama a Interpretação dos Sonhos, em alemão, Die
Traumdeutung. Mas se pensássemos nessa nova hermenêutica como outra que desvela um sentido unívoco e verdadeiro por trás das brumas encobridoras do discurso manifesto, estaremos muito distantes das proposições psicanalíticas. Como já colocamos em outra ocasião (TAVARES,
2011), a Deutung, a interpretação, freudiana, em sua língua
de expressão é etimologicamente ligada ao vocábulo que dá
Sumário
130 | Desafios de Traduzir Freud como Autor...
nome a essa mesma língua: Deutsch. Mais do que significar
os teutos ou os germânicos, o termo refere-se ao que é do
povo, sendo, por extensão, a designação da língua vernácula,
comum, vulgar, e compreensível ao popular. Em relação ao
latim, a outrora língua culta e consagrada da Roma dos
Papas, thiudisco (deutsch) chegou a significar o que era pagão
(GOLDSCHMIDT, 1988), em oposição à língua da Bíblia
Sacra, da Vulgata latina na versão do patrono dos tradutores,
São Jerônimo.
Curioso que a língua em questão tenha justamente a
sua fundação relacionada à outra tradução dos textos
sagrados do cristianismo. Trata-se da Bíblia de Lutero, que
chamou de Verdeutschung a sua fundamental empresa de
tradução. Verdeutschung, com o uso do prefixo ver-, que serve
de forma semelhante ao grego meta- ou ao de origem latina
trans-, dá conta de uma travessia transformadora, nesse caso,
do suposto inacessível ao suposto acessível. Retornando aos
parentescos etimológicos, o verbo deuten está também ligado
ao adjetivo deutlich, (compreensível, inteligível, claro). Não à
toa, portanto, nesse livro fundamental de Freud, vemos a
clara analogia entre a interpretação analítica e a tarefa
tradutória no seguinte trecho:
Pensamentos do sonho e o conteúdo do sonho nos são
dados como duas apresentações do mesmo conteúdo
em duas línguas diferentes, ou melhor, o conteúdo do
sonho aparece como uma transposição dos pensamentos de sonho em um outro modo de expressão
cujos caracteres e leis sintáticas podemos conhecer
através da comparação do original com a tradução.
(Traumgedanken und Trauminhalt liegen vor uns wie
zwei Darstellungen desselben Inhaltes in zwei
verschiedenen Sprachen, oder besser gesagt, der
Trauminhalt erscheint uns als eine Übertragung der
Traumgedanken in eine andere Ausdrucksweise,
deren Zeichen und Fügungsgesetze wir durch die
Sumário
Tradução e Autoria
| 131
Vergleichung von Original und Übersetzung kennen
lernen können) (FREUD, 1900 p. 283 grifo meu).
Na nossa língua portuguesa, entretanto, temos no
vocábulo interpretação justamente uma ambiguidade referente à hermenêutica e à tradução. Interpretar dá conta de
deuten, mas também de dolmetschen, verbo alemão, de origem
turca, utilizado para caracterizar principalmente a tradução
oral. Finalmente, interpretar é a ação de quem dá uma configuração artística ou cênica para o que foi escrito ou pensado
por outrem, o que em alemão se traduziria por darstellen,
como no caso da interpretação que um ator dá a um papel.
Em se tratando de Freud e do seu livro fundamental,
lembremos aqui justamente que, ao levar em consideração as
travessias e traduções entre os conteúdos latentes e manifestos de uma construção do inconsciente, devemos ter em
conta não somente as condensações (Verdichtungen) e deslocamentos (Verschiebungen), mas também a “consideração à
figurabilidade” (Darstellbarkeit), relativa ao darstellen, portanto.
Eis um ponto fundamental para pensarmos a tradução da obra de um autor tão complexo como é o caso de
Freud. Com a noção de consideração à figurabilidade, associando os desvios da Verschiebung, e as faculdades poéticas
(dichterisch) da Verdichtung,1 à figuração, mostra-se um grande desafio às traduções entre o inconsciente e o consciente e,
por extensão, do saber formulado em língua alemã por
Freud, que procurou com tal descoberta associar estilo e
epistemologia, forma e conteúdo, estética e razão.
Este é, aliás, o tema central da tese de Walter Schönau
(2006) sobre os elementos estéticos da prosa freudiana, segundo ele, sempre trabalhando em favor das suas formuPensamos aqui na clara remissão de Verdichtung (condensação) à
Dichtung (arte poética) e aos Dichter (escritores ficcionais).
1
Sumário
132 | Desafios de Traduzir Freud como Autor...
lações científicas. Já outros estudiosos, tais como Walter
Muschg (2009), pensam ser menos simples a distinção entre
meio e fim ao tratar das qualidades estéticas e argumentativas
da escrita freudiana. Patrick Mahony, talvez por ocupar uma
posição dupla ou intermediária entre a Psicanálise e as
Letras, caracteriza a escrita freudiana em seu Freud as a
Writer (Freud como escritor) como uma espécie de cabeça de
Jano:
A prosa de Freud não apenas dramatiza e reflete, ela
tem também valor racional e reflexivo. Mais do que
qualquer outro analista, a prosa de Freud é bilateral,
como o rosto de Jano, anfíbia, equilibrando entre mostrar e fazer, entre desempenho e descrição, refletindo
e dando testemunho, processo primário e secundário,
afeto e racionalidade, impulso e análise. Ela paira
entre o consciente e o inconsciente é uma prosa limítrofe, por isso autenticamente “psicanalítica”. Janela e
espelho juntos constituem a imagem apropriada para
caracterizar sua prosa especulativa. (MAHONY 1989,
p. 59)
Retornando a Michel Foucault, em O que é um Autor?
ele apresenta Sigmund Freud, novamente com Karl Marx,
como um pensador ou escritor que cumpre uma função
muito específica e diferenciada em relação à grande maioria
dos demais: ambos seriam, em suas palavras, autores
“fundadores de discursividade”.
Esses autores têm em particular o fato de que eles não
são somente autores de suas obras, de seus livros. Eles
produziram alguma coisa a mais: a possibilidade e a
regra de formação de outros textos. Nesse sentido,
eles são bastante diferentes, por exemplo, de um autor
de romances que, no fundo, é sempre o autor de seu
próprio texto. Freud não é simplesmente o autor da
Traumdeutung ou de O chiste: (...) eles estabeleceram
Sumário
Tradução e Autoria
| 133
uma possibilidade infinita de discursos. (...) eles não
tornaram apenas possível um certo número de analogias, eles tornaram possível (e tanto quanto) um certo
número de diferenças. Abriram espaço para outra
coisa diferente deles e que, no entanto, pertence ao
que eles fundaram (FOUCAULT, 1969 p. 280).
Quer dizer, a noção de autoria aqui não se limita aos
textos, mas estende-se ao discurso. Eis um ponto fundamental para pensarmos a migração de seu vocabulário do
campo exclusivamente médico-cientificista para o de um
novo saber clínico por ele criado tendo a Literatura, a Antropologia, a Filosofia, a Historia das Religiões, entre outros
aliados para a sua constituição. Tendo usado para a formação de seu saber terminologias de origens mais diversas:
mitologia (narcisismo, complexo de Édipo), Sociologia
(pulsão gregária), Antropologia (totem, tabu, horda), Medicina (afecção, etiologia), entre outros, tais conceitos sofrem em
seu uso por Freud um processo de anassemia, noção
introduzida por Nicholas Abraham (apud DERRIDA, 2000 p.
109) para demonstrar os novos sentidos de que um vocábulo
comum se reveste ao ser introduzido na teoria psicanalítica.
Nesse sentido, aliás, Foucault nos adverte sobre o quanto a
descoberta ou o resgate de um novo texto de um autor como
Freud tem um peso completamente distinto para a sua
compreensão do que no caso de outros autores, não-fundadores de discursividade.
Não há nenhuma probabilidade de que a descoberta
de um texto desconhecido de Newton ou de Cantor
modifique a cosmologia clássica ou a teoria dos conjuntos. (...) Em compensação, o reexame dos textos de
Freud modifica a própria psicanálise. (...) a reedição
de um texto como o Projeto de Freud corre sempre o
risco de modificar não o conhecimento histórico da
Sumário
134 | Desafios de Traduzir Freud como Autor...
Psicanálise, mas seu campo teórico (FOUCAULT, 1969
p. 285).
Coordenando, no momento, um novo projeto de
traduções da obra de Freud, a coleção Orbas Incompletas de
Sigmund Freud (Ed. Autêntica), percebemos justamente algo
desta ordem no processo de tradução de um texto de Freud
até o momento inédito no Brasil, seu primeiro livro: Sobre a
Concepção das Afasias – Um Estudo Crítico de 1891. Trata-se de
um livro sui generis, que permanece no Brasil e em grande
parte do mundo como uma espécie de texto “apócrifo”
(TAVARES in FREUD, 2013 p. 7), visto que não figura nas
mais conhecidas compilações de suas obras ditas completas.
Escrito ainda pelo Freud neurologista, é um livro
anterior à fundação da Psicanálise, mas certamente um livro
que prepara o seu terreno. Trata-se, logo, de um texto de
rupturas, por um lado, mas de inícios, por outro, e também
por esse motivo foi o escolhido para abrir a coleção ao lado
de outro importante escrito de Freud: seu derradeiro
Compêndio de Psicanálise [Abriss der Psychoanalyse] de 19392.
Com o primeiro e o último trabalhos de Sigmund Freud, não
somente apresentamos “o alfa e o ômega” de seu pensamento, como apontamos também para as origens e transformações de seu vocabulário teórico fundamental.
Oriundo das problemáticas neurológicas, gradativamente ele vai se revestindo de novos sentidos, à medida que
a atenção às estruturas físico-biológicas – nas quais se supunha poder “localizar” a linguagem – dão lugar às abstrações estruturais que fazem da própria linguagem o substrato
para a compreensão do psiquismo. Se Sobre a concepção das
afasias nos aporta a noção de um “aparelho” de linguagem
através do conceito apresentado na palavra composta
Sprachapparat, o último livro de Freud, que condensa o
2
Volume em fase de preparação.
Sumário
Tradução e Autoria
| 135
essencial de sua obra e vocabulário teórico, tem como título
do capítulo de abertura: O Aparelho Psíquico [Der Psychische
Apparat], por vezes também referido pela composição
Seelenapparat, ou aparelho anímico.
Quanto a tais relações entre o vocabulário inaugural
de Sobre a Concepção das Afasias e o derradeiro, do Compêndio,
percebe-se no primeiro texto a origem neurológica do
conceito de associação [assoziieren], inicialmente relacionado
às comunicações nervosas, mas posteriormente utilizado
para nomear o método clínico da livre associação de ideias
através da fala. Está ali também a transferência [Übertragung]
dos impulsos nervosos, posteriormente ressignificada para
tratar da relação substitutiva do analisante perante o
analista. Da mesma forma, estão ali presentes o estímulo
[Reiz], e suas excitações [Erregungen], como perturbações
fisiológicas posteriormente relacionadas às pulsões [Triebe] e
suas moções [Regungen]. Vemos ali igualmente de modo
inaugural a representação de palavra e representação de objeto
[Wortvorstellungen e Objektvorstellung]; a via [Bahn] nervosa e
o respectivo verbo trilhar/facilitar [bahnen], “abrindo o caminho” para o conceito posterior de trilhamento ou facilitação
[Bahnung].
Talvez o exemplo mais instrutivo de “migração dos
conceitos” se refira ao verbo besetzen e seu respectivo
substantivo derivado Besetzung. No Estudo vemos a tradução
por ocupar e ocupação, para o que é tão evidente na morfologia da palavra alemã relacionada ao verbo setzen [sentar/
assentar]. Freud descreve inicialmente como “a ocupação de
um território livre” o processo neurológico da aquisição
linguística. Curiosamente, porém, este termo foi introduzido
no Brasil através do neologismo catexia a partir de cathexis da
edição inglesa, sendo posteriormente difundida a opção por
investimento, possível interpretação do conceito pelo viés
econômico de leitura.
Sumário
136 | Desafios de Traduzir Freud como Autor...
Pois bem, Freud dedicou sua careira intelectual e sua
obra escrita à construção de um campo do saber, de uma
Ciência, como ele se referia à Psicanálise, e parece de elevada
importância a renovação de uma discussão a respeito da sua
terminologia, de seu vocabulário especializado, no momento
atual, quando a partir de 2010 suas obras entraram para o
domínio público e finalmente temos a oportunidade de ver
surgir as primeiras versões diretas3 de seus escritos para a
língua portuguesa.4 Ao mesmo tempo, sabemos que a
discussão em torno do vocabulário freudiano envolve
aspectos muito mais complexos do que a mera identificação
de um conjunto de termos técnicos. Ao lermos um texto
deste autor nos confrontamos, para muito além de um pensée
pensée, das típicas exposições objetivas e inequívocas do
pensamento científico, com um pensée pensante de um mestre
da escrita, da crítica, da reflexão. Os escritos de Freud
refletem uma experiência de um saber em formação e em
constante revisão, a partir do qual nem sempre é simples um
posicionamento sobre quais vocábulos devem ser elevados à
categoria de conceito.
Valendo-se sempre de sua grande erudição e de
ensinamentos obtidos das mais diversas áreas do conhecimento, em seu trabalho Über die Psychotherapie (Sobre a
psicoterapia) (1905) Freud se faz valer das observações de
outro gênio eclético, Leonardo da Vinci, para estabelecer um
símile entre o trabalho analítico e a escultura, sua grande
As duas compilações disponíveis da obra de Freud em língua
portuguesa ao longo do século vinte foram elaboradas de modo
indireto partir do francês (Editora Delta) e do inglês (Editora Imago).
4 Partes do que segue foi previamente apresentado em meu artigo
TAVARES, Pedro Heliodoro M. B. O vocabulário metapsicológico
de Sigmund Freud: da língua alemã às suas traduções. Pandaemonium germanicum. [online]. 2012, vol.15, n.20, pp. 01-21. ISSN 19828837.
3
Sumário
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| 137
paixão de colecionador. Na escultura, diferentemente da
pintura, que opera per via di porre, ajuntando as cores à tela
vazia, o trabalho se daria per via di levare, retirando-se do
bloco bruto todos os excessos, para que fique somente a
forma essencial almejada. Nesse sentido, tanto na sua técnica
quanto nas suas proposições teóricas, Freud buscava algo
além de acrescentar mais e mais conceitos, regras e axiomas,
promovendo um acúmulo de fórmulas e termos. Assim
como o trabalho de análise visava à remoção dos excessos,
livrando o analisante dos sentidos e sofrimentos excedentes
e inconscientemente autoimpostos, seus escritos – via de
regra amparados numa estilística apurada que unia beleza e
razão – estavam mais comprometidos em desvencilhar o
leitor de concepções e conceitos equivocados, do que um
apresentar novos conceitos a serem incorporados e admitidos.
Raramente um escrito do criador da psicanálise pode
ser lido como um mero texto técnico-descritivo, o que até
hoje faz com que seus leitores se aproximem de sua obra
também pela via da Literatura, da Ensaística ou da Crítica
Cultural. Walter Muschg, em seu histórico ensaio Freud als
Schriftsteller (Freud como escritor) declara que o escritor
Freud não poderia ser separado do cientista (1930, p. 303) e
neste sentido faz coro com a impressão de outros grandes
nomes da literatura e da cultura de expressão alemãs.
Thomas Mann teria afirmado em seu ensaio Freud und die
Zukunft (Freud e o Futuro): “Freud escreve de modo geral
em uma prosa de forte cunho ilustrativo, é um artista do
pensamento tal qual Schopenhauer e, como ele, um escritor
europeu.”5 (1955 p. 499). Einstein, em carta a Freud, declara:
“Admiro especialmente sua produção, como a todos os seus
“Freud schreibt überhaupt in eine höchst anschauliche Prosa, er
ist ein Künstler des Gedankens wie Schopenhauer und wie er ein
europäischer Schriftsteller“.
5
Sumário
138 | Desafios de Traduzir Freud como Autor...
escritos, do ponto de vista literário. Não conheço nenhum
contemporâneo nosso que apresentou seus objetos de
investigação com tanta maestria na língua alemã”.6 (apud
SCHÖNAU 2006 p. 265). Hermann Hesse, por fim, teria
escrito em resenha à Neue Rundschau: “Sua obra desperta
convicção também fora do seu milieu devido às suas elevadas
qualidades tanto humanas quanto literárias. (...) O Freud
pesquisador esmerado, lógico da clareza, criou um instrumento privilegiado em uma linguagem altamente intelectualizada, mas também de um agudo esplendor, de exata definição, bem como de lúdica capacidade combatida e satírica”.7
(idem)
Quer dizer, através de sua refinada prosa, Freud
supera em muito o objetivismo formal dos cientistas ou
filósofos com suas articulações terminológicas, o que também não implica dizer que o autor estaria descomprometido
com um rigor intelectual e que deveria ser relegado
simplesmente ao plano da Beletrística. Se muitos justificam a
aproximação de Freud da literatura, e com isso quase que
um decorrente afastamento do científico, por ele ter sido o
agraciado com o Prêmio Goethe em 1930, valeria lembrar que,
mais do que um prêmio “literário”, este era destinado aos
grandes nomes da cultura que, tal qual Goethe, desenvolviam um pensamento movidos por uma curiosidade que
„Ganz besonders bewundere ich Ihre Leistung, wie alle Ihre
Schriften, vom schriftstellerischen Standpunkt aus. Ich kenne
keinen Zeitgenossen, der in deutscher Sprache seine Gegenstände
so meisterhaft dargestellt hat”.
7 “Sein Werk überzeugt auch außerhalb der Gilde durch ganz hohe
menschliche wie literarische Qualitäten. (…) Der sorgfältige
Forscher und klare Logiker Freud hat sich ein vorzügliches
Instrument in seiner ganz intellektualistischen, aber prachtvoll
scharfen, genau definierenden, gelegentlich auch kampf- und
spottlustigen Sprache geschaffen“.
6
Sumário
Tradução e Autoria
| 139
atravessava às fronteiras entre literatura, ciência, política,
filosofia, etc.
O Prêmio Goethe, ao contrário do que muitos pensam,
não é literário. Embora a maioria dos agraciados com
essa distinção tenham sido escritores e poetas, o
prêmio já foi concedido ao arquiteto Walter Gropius
(1961), ao cineasta sueco Ingmar Bergman (1976) e à
dançarina e coreógrafa Pina Bausch (2008), entre
outros. (BRACCO 2011, p. 253)
Como esclarece Walter Plänkers, o prêmio é destinado a "reconhecidas personalidades, cujas realizações criadoras são dignas de honrar a memória de Goethe" (PLÄNKERS
1993, p. 169 apud BRACCO 2011, p. 253). Se o primeiro a
ganhar o prêmio foi um poeta, Stefan George, o segundo foi
um médico que também se ocupou com a Música e a
Filosofia; a saber, Albert Schweitzer. Entre a Medicina de sua
formação e prática profissional, e a prosa que lhe rendeu o
reconhecimento até mesmo dos maiores escritores contemporâneos seus, é comum se comentar que Freud jamais teria
recebido o Prêmio Nobel por ter sido “demasiado médico”
para receber o de Literatura e “demasiado literário” para
receber o de Medicina.
Freud foi agraciado na quarta edição do Prêmio
Goethe, segundo Alfons Paquet, membro do Kuratorium
responsável, muito mais em decorrência de sua “afinidade
espiritual” com o talentoso, ousado e influente Goethe do
que unicamente por seus méritos como escritor: “A
homenagem que lhe é destinada, vale tanto ao intelectual,
quanto ao escritor e ao combatente, que em nossos tempos
abalados por cáusticas questões, afirma-se como referência
de uma das faces mais vivas do espírito/ser (Wesen)
Sumário
140 | Desafios de Traduzir Freud como Autor...
goetheano”.8 (in FREUD 1930, p. 546). Talvez aí a identificação com o pensamento do inquieto, combativo, polêmico
Freud mais lembre uma personagem de Goethe, seu Fausto,
do que o próprio intelectual que dá nome a premiação.
Goethe, autor do drama sobre o doutor pactário, foi o
“autor literário” mais citado por Freud em seus símiles
teóricos, mas era também o grande investigador da natureza
(geologia, botânica, teoria das cores) contribuindo com tais
características para se tornar, juntamente o também tão
genial como polivalente Leonardo, um modelo intelectual ao
nosso autor desde os tempos de juventude. A bem da
verdade, são os três, Goethe, Leonardo e Freud espíritos
fáusticos que não se conformam aos limites acadêmicos,
estilísticos, desta ou daquela área específica do saber ou do
fazer.
Não à toa utilizei como epígrafe ao livro Versões de
Freud – Breve panorama crítico das traduções de sua obra um dos
mais famosos versos do Fausto de Goethe: “Du gleichst dem
Geist den du begreifst, nicht mir”, sem apresentar uma
tradução. O verso perde muito em qualquer tradução e não
somente em sua beleza sonora e de aliterações. Se numa
tradução mais direta teríamos: “Igualas o espírito que
apreendes, não a mim”, não seriam essas para os dois verbos
e para o único substantivo aí presentes soluções tão simples
na passagem de uma língua à outra. Pedimos aqui licença
para certa digressão no tocante aos elementos desta frase,
que nos serão úteis em nossas questões sobre o vocabulário
freudiano.
Comecemos pelo complexo caso do substantivo Geist,
vocábulo tão comum para o falante nativo da língua alemã, e
“Die Ihnen zugedachte Ehrung gilt im gleichen Masse dem
Gelehrten wie dem Schriftsteller und dem Kämpfer, der in unserer,
von brennenden Fragen bewegten Zeit dasteht als ein Hinweis auf
eine der lebendigsten Seiten des Goetheschen Wesens”.
8
Sumário
Tradução e Autoria
| 141
ironicamente tão fugidio para aquele que busque traduzi-lo.
Na passagem do drama em que aparece a frase, Fausto se vê
desiludido por não poder absorver, igualar-se em poder,
conhecimento ou gozo ao que é de ordem sobre-humana,
como o caso do “gênio” ou “espírito” evocado. Para além da
Literatura e da Ciência, no mito de Fausto a alegoria do
pacto com o demônio / renegação de Deus, implica também
um contato com o metafísico. Geist é afinal o termo que
aparece no “conceito” cristão de Espírito Santo (Άγιος
Πνεύματος - heiliger Geist). Etimologicamente próximo do
ghost inglês, o vocábulo remete também às assombrações, ao
desconhecido e unheimlich a ser temido e evitado, como no
caso do nunca traduzido Poltergeist. Alladin, das Mil e uma
noites, encontra também em sua lâmpada maravilhosa o Geist
(Gênio), ente maravilhoso que pode conceder-lhe a realização de seus desejos. Mas também na tão racional Filosofia
o mais célebre tratado de Hegel versa sobre o Geist, sendo
traduzido o título Phänomenologie des Geistes, hora como
Fenomenologia do Espírito, hora como Fenomenologia da Mente.
Por fim, no âmbito científico, temos a famosa divisão
proposta por Dilthey entre as Naturwissenschaften (Ciências
Naturais) e Geisteswissenschaften (Ciência Humanas/Ciências
do Geist).
Com este exemplo de um termo tão comum da língua
alemã, podemos ter ideia de algumas das dificuldades que se
impõem a um tradutor de Freud visando “apreender-lhe o
espírito/gênio”. Como ocorre com muitos outros intelectuais
germanófonos – caso do mencionado Hegel – Freud se utilizava geralmente de termos de uso cotidiano da língua numa
trama teórica muito particular. No caso freudiano algo
semelhante se daria em relação aos seus usos do também
fronteiriço (Religião, Filosofia, misticismo) vocábulo Seele.
Praticamente equivalendo ao uso do vocábulo de origem
grega Psyche (Ψυχή), numa tradução direta de Seele teríamos
a palavra alma, palavra que no português está tão comproSumário
142 | Desafios de Traduzir Freud como Autor...
metida com o discurso místico-religioso. Dificilmente Seele
poderia equivaler no contexto científico ao parente etimológico soul na língua de Shakespeare. Mesmo assim, sabemos
o quanto foi criticada a opção por mind (mente), na Standard
Edition inglesa, sendo inclusive defendida a opção por soul
na polêmica levantada por Bruno Bettelheim (1983).
Retornaremos mais adiante aos conceitos-substantivos, mas voltando à citação do Fausto, temos ali dois
verbos – gleichen e begreifen – que aparecem de forma
reiterada em suas variantes nesta obra máxima da cultura
germanófona tão influente nas elaborações teóricas de Freud.
Se é que números significariam algo em tal contexto, há
somente no Faust – Erster Teil setenta e nove ocorrências de
palavras com o étimo gleich e vinte e cinco com greif ou grif.
No Zweiter Teil chegam a cem as ocorrências para variantes
de gleich e quarenta e oito para greif/grif (GOETHE, 1996).
Quer dizer, mais do que uma mera citação, a frase reproduz
algo de essencial do drama e da personagem hibrística em
questão numa dicotomia que nos parece fundamental ao
espírito epistemifílico de Freud.
Se a frase citada vem no início da Primeira Parte,
lembremos que no segundo Fausto, aparece o paradigmático
episódio do Grifo (Greif) na Noite de Walpurgis clássica, que
com suas garras nada apreende/agarra (greift) que lhe traga
satisfação; passagem que nos remete à melancolia do velho
Fausto no início do drama. Igualmente paradigmática seria a
conclusão do drama, quando nos versos finais aparece
também um derivado de gleich, a saber, Gleichnis (parábola,
símile, metáfora).
Alles Vergängliche / Ist nur ein Gleichnis; / Das
Unzulängliche, / Hier wird`s Ereignis; / Das
Unbeschreibliche, / Hier ist`s getan; / Das Ewig-Weibliche /
Zieht uns hinan.
Sumário
Tradução e Autoria
| 143
(Todo o transitório / Não passa de um símile / O inacessível
/ Aqui se torna fato / O indescritível / Aqui é elaborado / O
eterno-feminino / Atrai-nos para si)
Patrick Mahony, como vimos, trata desta dupla
natureza da escrita freudiana – espécie de cabeça de Jano –
entre as capacidades estético-representacionais do gleichen e
racionais-argumentativas do begreifen, ainda que para isso se
utilize em sua bela análise as noções verbais do mostrar e do
fazer. Mas um ponto fundamental no tocante ao verso extraído do Fausto e o tema deste trabalho diz respeito à relação
que se coloca entre o verbo begreifen (entender, apreender) e
seu substantivo mais diretamente aparentado: Begriff, ou
seja, conceito. Quer dizer, o vocábulo conceito (termo técnico)
na língua de Freud denota uma busca de “agarrar”
determinada noção (Vorstellung). Se levantamos a questão do
estilo e vimos o quanto a sua obra é perpassada por
Gleichnisse (símiles, parábolas, comparações) tão minuciosamente analisados na tese de Schönau (2006), certamente há
também em seus escritos a preocupação com a elaboração de
conceitos, ou Grundbegriffe (conceitos fundamentais) como os
teria chamado. Se na tradução do trecho supracitado procuramos recuperar o semântico, maltratando tanto as outras
facetas da poesia é porque na própria tradução algo deste
“inalcançável” (das Unzulängliche), “indescritível” (das
Unbeschreibliche) se manifesta na busca pelos “símiles”
(Gleichnisse).
Freud com suas ideias e sua tradução em palavras foi
fáustico ao tentar confluir o gleichen (igualar/assemelhar) e o
begreifen (apreender/compreender). Walter Jens usou como
título a um importante trabalho seu sobre a escrita de Freud
Ein jüdischer Faust (Um Fausto Judeu), tamanha a influência
da personagem goetheana sobre o psicanalista e sua criação.
A elaboração da imagem biográfica de Freud tão diretamente relacionada à do herói pactário foi direta ou
Sumário
144 | Desafios de Traduzir Freud como Autor...
indiretamente analisada por vários autores conforme demonstrado em outra publicação nossa (TAVARES, 2008).
Entendemos que a tradução de Freud – autor tão
multifacetado – deve, portanto ser encarada de forma complexa. Sua tradução não envolve tão somente o conhecimento das duas línguas e de uma boa técnica de tradução.
Do texto de Freud, traduz-se também o substrato teórico que
sustenta uma prática clínica amparada nas capacidades
representacionais e transformadoras da palavra. A questão é
que na estilística de Freud e nas suas opções de vocabulário,
como vimos ao início, forma e conteúdo confluem. Para usar
os vocábulos de Freud a respeito da formação dos sonhos,
chiste, atos-falhos ou de outras construções do inconsciente,
há que se levar em conta as Vorstellungen, representações
ideativas, e as Darstellungen, representações figurativas,
presentes e conjugadas em seus escritos.
É fundamental, portanto, proceder à “escuta do
texto” para que alguém possa desse autor se tornar “intérprete”. Freud, afinal, usou palavras muito comuns e cotidianas, tais como Lust (desejo, prazer, vontade), Drang (ímpeto,
pressão, ânsia) ou Angst (medo, angústia, ansiedade), dandonos a impressão de tanta facilidade de leitura e, consequentemente, de tradução. Entretanto, ele soube de tais palavras
explorar ao extremo suas polissemias, chegando às anassemias. Logo, uma tradução que levasse em consideração
somente a superfície do discurso perderia muito do Spiel
(jogo / brincadeira / representação cênica) com os vocábulos
envolvidos nos seus construtos.
Na cena inconsciente, assim como na escrita de Freud,
a consideração à figurabilidade é um requisito essencial ao
tradutor em sua montagem-tradução, com as palavras de
que pode dispor na língua de chegada. Nesse sentido, lembremos que Übertragung, a “transferência” que Freud utilizou para falar do envolvimento afetivo por substituição na
clínica, funciona como excelente sinônimo de tradução
Sumário
Tradução e Autoria
| 145
(Übersetzung) em sua língua, o que nos convida a pensar a
importância do “envolvimento” de um tradutor com o teor
do que ele transfere de um autor-fonte a determinado leitoralvo.
REFERÊNCIAS
BETTELHEIM, Bruno. Freud and man’s soul. Nova Iorque: Knopf,
1983.
BRACCO, Mariangela Oliveira Kamnitzer. Freud e o Prêmio
Goethe. J. psicanal. [online]. 2011, vol.44, n.81, pp. 253-258.
DERRIDA, Jacques. Eu – A psicanálise – Introdução à tradução – A
casca e o ovo (de Nicolas Abraham). Trad. de Maria José Coracini.
in Alfa – Revista de Linguística. Volume Especial: Tradução
Desconstrução e Pós-Modernidade. São Paulo: Editora da UNESP,
2000, No. 44, pp. 189-195.
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud, Marx. in Ditos & Escritos II
– Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Trad.
Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1967/2000.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? in Ditos & Escritos III – Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Trad. Inês Barbosa. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1969/2001.
FREUD, Sigmund. Gesammelte Werke - Chronologisch geordnet.
Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1999.
FREUD, Sigmund. Sobre a concepção das afasias – Um estudo crítico.
Trad. Emiliano de Brito Rossi. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
GOETHE, Johann Wolfgang. Faust I und II. Colônia: Könnemann,
1996.
GOLDSCHMIDT, Georges-Arthur. Quand Freud voit la mer - Freud
et la langue allemande 1. Paris : Buchet-Chastel, 1988.
JENS, Walter. Ein jüdischer Faust. Portal do jornal Die Zeit.
Disponível em : http://www.zeit.de/1961/08/ein-juedischerfaust. Acesso em 02/02/2011.
MAHONY, Patrick. Freud as a Writer. Nova Iorque: Yale University
Press, 1987.
Sumário
146 | Desafios de Traduzir Freud como Autor...
MANN, Thomas. Freud und die Zukunft in Adel des Geistes.
Frankfurt am Main: Fischer 1955.
MUSCHG, Walter. Freud als Schriftsteller. In Die Zerstörung der
deutschen Literatur. Berna: Diogenes. 2009.
SCHÖNAU, Walter. Sigmund Freuds Prosa - Literarische Elemente
seines Stils. Giessen: Psychosozial-Verlag, 2006.
TAVARES, Pedro Heliodoro. O mito de Fausto na construção da
imagem biográfica de Freud. Acheronta – Revista de Psicoanlálisis y
Cultura [online]. 2008, vol.25.
TAVARES, Pedro Heliodoro. Versões de Freud – Breve panorama
crítico das traduções de sua obra. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.
Sumário
Tradução e Autoria
| 147
Tito Lívio Cruz Romão
Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (Breslau,
21.11.1768; Berlim, 12.02.1834) estudou Teologia Evangélica
em Halle. Antes de se formar, foi preceptor, até o ano de
1793, na casa de uma família de boa estirpe na cidade de
Schlobitten, Prússia Ocidental, e professor em um orfanato
de Berlim, até terminar seus estudos superiores e ordenar-se.
Em 1794, assumiu funções eclesiásticas em Landsberg/
Warthe. Escreveu várias obras de cunho filosófico e teológico, além de ter-se consagrado como tradutor das obras
platônicas. Tornou-se célebre o seu ensaio “Ueber die
verschiedenen Methoden des Uebersezens”1 [Sobre os diferentes métodos de traduzir], apresentado em forma de
conferência na Academia Real de Ciências em Berlim no dia
24 de junho de 1813 e publicado em suas obras completas em
1838 pelo editor G. Reimer.
No referido ensaio2, Friedrich Schleiermacher faz
seus primeiros questionamentos sobre a necessidade que o
Os excertos citados a partir de obras alemãs escritas em alemão
serão mantidos na ortografia da edição original. Na versão em português, os nomes próprios serão escritos na versão original e apresentados, na tradução, na atual ortografia alemã (p.ex.: Voss /
Voß).
2 No tocante às informações aqui apresentadas sobre o ensaio de
Friedrich Schleiermacher, o autor deste artigo toma por base, na
1
Sumário
148 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher...
ser humano amiúde tem de comunicar algo apresentado por
outrem num discurso. Nesta situação, alguém poderá servir
de intermediador, sem todavia utilizar as mesmas palavras
do enunciador, pois a estas imprimirá uma menor ou uma
menor força, dependendo de como as perceba. Destaca ainda
que isso também ocorre com os nossos próprios discursos,
que, depois de certo tempo, precisam ser recontados, devendo ser “retraduzidos” dentro de uma língua ou dialeto.
Schleiermacher aponta que tal fato costuma ocorrer nos mais
diversos campos do conhecimento humano: ciências,
comércio, diplomacia etc. Aborda igualmente a dificuldade
maior que se nos apresenta, ao termos de traduzir ideias de
uma língua estrangeira para a nossa respectiva língua vernacular. Neste campo, distingue duas tarefas básicas: a do
intérprete, que atua no campo dos negócios, e a do “verdadeiro tradutor”, que atua basicamente no campo da ciência e
da arte. Revela que “traduzir produções científicas e
artísticas de boca a boca”, sem a forma escrita, como pode
ocorrer no campo dos negócios com intérpretes, seria
desnecessário e até parece impossível. Chega a ressaltar a
importância da escrita para os negócios, embora afirme que a
oralidade é própria do métier dos negócios. Na sua distinção
entre o trabalho do intérprete e o do tradutor, a qual deve ser
entendida à luz da sua época, também indica que a tarefa de
quem traduz relatos de jornais ou de viagens muito mais se
inseriria no campo de trabalho de um intérprete. Em
contrapartida, reconhece a importância e a gravidade de
temas discutidos em negociações jurídicas, que, por seu
cunho científico, demandam a atuação de um tradutor.
Schleiermacher aborda, ainda, a problemática das línguas
que não têm, entre si, um forte grau de parentesco e que, por
maioria das vezes, a antologia bilíngue Clássicos da Tradução, Vol. 1,
Alemão-Português, organizada por HEIDERMANN (2001), em que
o referido ensaio foi traduzido por Margarete vonMühlenPoll.
Sumário
Tradução e Autoria
| 149
isso, não contam sequer com relações morfológicas e
gramaticais coincidentes, e ainda menos no que tange à
semântica e ao léxico. Tal situação agrava-se, afirmava o
ensaísta, quando o tradutor vê-se diante de produções nos
campos das artes e das ciências, onde domina, sobremaneira,
o pensamento. Além disso, na tradução de textos literários e
científicos, não se tem, em geral, a ajuda de um intérprete in
loco. Para Schleiermacher, é relevante e decisivo ser dominado pela língua que se fala, já que se é, pois, um produto
desta. Corroborando sua ideia, diz:
Uma pessoa não poderia pensar com total certeza
nada que estivesse fora dos limites dessa língua; a
configuração de seus conceitos, a forma e os limites de
sua combinabilidade lhe são apresentados através da
língua na qual nasceu e foi educada, inteligência e
fantasia são delimitadas através dela.
(SCHLEIERMACHER, 2001, p. 37)3
Não esquece, todavia, de ressalvar que toda pessoa
pensa de forma intelectualmente livre e também acaba
formando, reformando e transformando a língua por meio
de suas idiossincrasias. Dentro dessa linha de raciocínio,
admite que “todo discurso livre e mais elevado” será marcado por dois fatores: a) pelo espírito da língua de cujos
elementos o discurso é formado; e b) pela alma do enunciador. Sem um entendimento dessa interação, o discurso não
seria, portanto, compreendido.
Após reconhecer o grau de dificuldade de comunicação nessa esfera do discurso dentro de uma mesma língua,
Er kann nichts mit völliger Bestimmtheit denken, was außerhalb
der Grenzen derselben läge; die Gestalt seiner Begriffe, die Art und
die Grenzen ihrer Verknüpfbarkeit ist ihm vorgezeichnet durch die
Sprache, in der er geboren und erzogen ist, Verstand und Fantasie
sind durch sie gebunden.
3
Sumário
150 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher...
Schleiermacher volta-se para a problemática do discurso a
ser intermediado entre duas línguas distintas. Ressalta com
veemência a necessidade de os leitores, para entenderem o
autor lido, captarem o modo particular de pensar e sentir de
cada autor. Diante da tarefa de mediação entre autor e leitor
com experiências distintas, Schleiermacher esclarece que,
antes de se falar em tradução, é preciso registrar que há duas
outras formas de mediação, de comunicação, por assim
dizer, entre dois mundos linguísticos distintos. Por um lado,
haveria a paráfrase e, por outro, a imitação. Schleiermacher
esclarece o papel da paráfrase desta forma:
O parafraseador lida com os elementos de ambas as
línguas como se fossem sinais matemáticos que se
deixam levar aos mesmos valores por adição e subtração, e nem o espírito da língua traduzida, nem o da
língua original conseguem aparecer nesse procedimento. (SCHLEIERMACHER, 2001, p. 41)4.
A imitação, por sua vez, é o ato de quem, por não
poder ou não querer dominar a “irracionalidade das línguas”, não veria outra solução a não ser apresentar “um todo
composto de elementos visivelmente diferentes dos do original, que, contudo, aproximasse o seu efeito daquele, tanto
quanto as diferenças de material ainda lhe permitissem”
(SCHLEIERMACHER, 2001, p. 41).
Por fim, Schleiermacher apresenta quem seria o
verdadeiro tradutor, aquele profissional “que realmente
pretende levar ao encontro essas duas pessoas tão separadas,
seu autor e seu leitor, e conduzir o último a uma compreDer Paraphrast verfährt mit den Elementen beider Sprachen, als
ob sie mathematische Zeichen wären, die sich durch Vermehrung
und Verminderung auf gleichen Werth zurükkführen ließen, und
weder der verwandelten Sprache noch der Ursprache Geist kann
in diesem verfahren erscheinen.
4
Sumário
Tradução e Autoria
| 151
ensão e uma apreciação tão correta e completa quanto
possível e proporcionar-lhe a mesma apreciação que a do
primeiro, sem tirá-lo de sua língua materna”
(SCHLEIERMACHER, 2001, p. 43). Abrindo suas explicações, logo aponta “os dois únicos caminhos” a serem
percorridos por esse profissional: ou o tradutor deixa o autor
em paz e leva o leitor até ele; ou deixa em paz o leitor e leva
o autor até ele. Essas duas vias, segundo o ensaísta,
implicariam, naturalmente, metodologias distintas, a saber:
No primeiro caso, a saber, o tradutor está empenhado
em substituir, através de seu trabalho, a compreensão
da sua língua de origem, que falta ao leitor. Ele tenta
transmitir aos leitores a mesma imagem, a mesma
impressão que ele próprio teve através do conhecimento da língua de origem da obra, de como ela é, e
tenta, pois, levá-los à posição dela, na verdade estranha para eles. Mas se, por exemplo, a tradução
quer deixar seu autor romano discursar como ele teria
discursado e escrito em alemão para alemães, então
ela não leva o autor apenas até a posição do tradutor,
pois também para este o autor não discursa em alemão, mas em romano, muito mais ela o empurra
diretamente para dentro do mundo dos leitores
alemães e o torna igual a eles, e este é o outro caso.
(SCHLEIERMACHER, 2001, p. 43s.)5
Im ersten Falle nämlich ist der Uebersezer bemüht, durch seine
Arbeit dem Leser das Verstehen der Ursprache, das ihm fehlt, zu
ersezen. Das nämliche Bild, den nämlichen Eindrukk, welchen er
selbst durch die Kenntniß der Ursprache von dem Werke, wie es
ist, gewonnen, sucht er den Lesern mitzutheilen, und sie also an
seine ihnen eigentlich fremde Stelle hinzubewegen. Wenn aber die
Uebersezung ihren römischen Autor zum Beispiel reden lassen
will wie er als Deutscher zu Deutschen würde geredet und
geschrieben haben: so bewegt sie den Autor nicht etwa nur eben so
bis an die Stelle des Uebersezers, denn auch dem redet er nicht
5
Sumário
152 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher...
Segundo Schleiermacher, no primeiro caso haveria
uma tradução que, a seu modo, atingiria o grau da perfeição,
imaginando-se que, na situação descrita por ele, em que o
tradutor alemão assumisse a função do escritor, seria como
se, na verdade, o próprio autor romano soubesse alemão
como o tradutor sabia romano e naquela língua houvesse
escrito. No outro caso, mostrar-se-ia o autor como ele teria
escrito originalmente em alemão, mas como alemão. Diante
desse dilema, lembra ainda a existência de um terceiro
método:
Ambos os partidos separados (sic)6 precisam ou se encontrar em algum ponto intermediário, e esse sempre
será o tradutor, ou um tem de se dispor completamente ao outro, e aqui somente aquela forma entra no
campo da tradução; a outra entraria se, no nosso caso,
os leitores alemães tivessem domínio total da língua
romana ou, antes ainda, se esta se apoderasse completamente deles e até a transformação.
(SCHLEIERMACHER, 2001, p. 45)7
deutsch, sondern römisch, vielmehr rükkt sie ihn unmittelbar in
die Welt der deutschen Leser hinein, und verwandelt ihn in ihres
gleichen; und dies eben ist der andere Fall.
6 O autor deste artigo optaria por “ambas as partes”.
7 Die beiden getrennten Partheien müssen entweder an einem
mittleren Punkt zusammentreffen, und das wird immer der des
Uebersezens sein, oder die eine muß sich ganz zur andern
verfügen, und hiervon fällt nur die eine Art in das Gebiet der
Uebersezung, die andere würde eintreten, wenn in unserm Fall die
deutschen Leser sich ganz der römischen Sprache, oder vielmehr
diese sich ihrer ganz und bis zur Umwandlung bemächtigte.
Sumário
Tradução e Autoria
| 153
Karl Schäfer e seu ensaio Ueber die Aufgabe
des Uebersezens
Johann Albrecht Karl Schäfer nasceu em Ansbach,
uma pequena cidade do atual Estado alemão da Baviera, em
22 de maio de 18008 e faleceu no dia 30 de setembro de 1862.
Assim como muitos outros eruditos alemães de sua época,
Karl Schäfer ressaltava as bases que os autores clássicos greco-romanos emprestaram à cultura alemã. Em seu ensaio
Ueber die Aufgabe des Uebersezens [Sobre a tarefa de traduzir]9,
Schäfer critica de forma direta o modelo de tradução proposto por Friedrich Schleiermacher, tomando como ponto de
partida, além do próprio Schleiermacher, o tradutor Johann
A primeira notícia que o autor deste artigo teve sobre Karl
Schäfer e seu ensaio Ueber die Aufgabe des Uebersezens foi em através
do livro Theorie der Übersetzung antiker Literatur in Deutschland seit
1800. Transformationen der Antike (KITZBICHLER; LUBITZ;
MINDT, 2009). Entretanto, as organizadoras do livro afirmam,
numa nota de rodapé, que não havia sido possível encontrar as
datas de nascimento e morte de Karl Schäfer. Além disso,
agradecem as gentis informações que lhes foram repassadas pelo
administrador do Arquivo Fridericianumde Erlangen. Durante sua
pesquisa de doutorado, o autor deste artigo teve acesso a um
necrológio de Karl Schäfer, com farta biografia, publicado no
Jahresberichtvon der KöniglichenAnstaltzu Erlangen (Relatório Anual do
Liceu Real de Erlangen) em 7 de agosto de 1863 (SOERGEL, 1863), ou
seja, quase um ano após a morte de Schäfer. Obteve também um
necrológio
publicado
no
ano
de
1864,
nos
NeueJahrbücherfürPhilologieundPädagogik (Novos Anuários de Filologia
e Pedagogia), editados por Hermann Masius (MASIUS, 1864) em
Leipzig, além de uma resenha sobre o ensaio Ueber die
AufgabedesUebersezens,
publicado
nos
NeueJahrbücherfürPhilologieundPädagogik (JAHN, J. C.; KLOTZ, R;
SEEBODE, G., 1841).
9 O ensaio, publicado em 1839, foi traduzido para o português pelo
autor deste artigo, mas a tradução ainda não foi publicada.
8
Sumário
154 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher...
Heinrich Voß. Schäfer defendia uma posição claramente
oposta ao método de tradução de Schleiermacher. A seguir,
algumas citações extraídas do ensaio de Schäfer permitirão
que se vislumbre uma nesga de suas ideias:
“Como deve fazer o tradutor”, pergunta ele
[Schleiermacher], “para transplantar também em seus
leitores justamente essa sensação de estar perante
conteúdos estrangeiros?” “A exigência indispensável
do traduzir”, responde ele, “é uma postura da língua
que não apenas não é cotidiana, mas que também
sempre deixa pressentir que ela não se desenvolveu
tão inteiramente livre, que ela, muito mais, curvou-se
em direção a uma semelhança estrangeira.” Portanto, em
resumo, uma tradução não deveria ser totalmente
alemã, mas apenas meioalemã, e o próprio tradutor
somente deveria ter conduzido o leitor a uma meia
compreensão do autor, deveria estar no meio entre o
iniciante e o mestre, ou seja, ser um engabelador; e a
tradução, no final das contas, não deveria valer sequer
como um fim em si mesmo, mas tão-somente servir
como um recurso auxiliar para compreender o autor e
assumir o lugar de um comentário permanente. 10
(SCHÄFER, 1838, p.6s.)
Wie soll, fragt er, der Uebersezer es machen, um eben dieses
Gefühl, dass sie Ausländisches vor sich haben, auch auf seine
Leser fortzupflanzen? Das unerlässliche Erforderniss des
Uebersezens, antwortet er, ist eine Haltung der Sprache, die nicht
nur nicht alltäglich ist, sondern die auch stets ahnen lässt, dass sie
nicht ganz frei gewachsen, vielmehr zu einer fremden Aehnlichkeit
hinübergebogen ist.“ Also, um es kurz zu sagen, eine Uebersezung
soll nicht ganz, sondern nur halb deutsch sein, und der Uebersezer
selbst soll es nur zu einem halben Verstehen des Autors gebracht
haben, soll zwischen Anfänger und Meister in der Mitte stehen,
das heisst ein Stümper sein, und die Uebersetzung soll endlich
nicht einmal als Zwekk für sich gelten, sondern nur als
10
Sumário
Tradução e Autoria
| 155
Karl Schäfer era, pois, partidário da ideia de que uma
tradução deveria ser, antes de tudo, deutsch [alemã] e atender
aos critérios de uma formulação naturalmente vernacular,
evitando deste modo as influências estrangeiras de ordem
semântica, lexical, idiomática etc. Em oposição aos termos
deutsch/Deutsch, faz uso, em seu texto, de termos diametralmente opostos a este, para definir aquilo que, em tradução, feriria o vernáculo alemão idealizado por ele: o substantivo Undeutschheit [caráter não-alemão da língua], o substantivo Undeutsch [o não-alemão], o adjetivo undeutsch [nãoalemão] e o advérbio undeutsch [de forma não alemã]. Para
Schäfer, a língua alemã dispunha e podia fazer emprego de
meios suficientes – de natureza semântica, lexical, estilística,
gramatical etc. –, sem necessitar, nas palavras de
Schleiermacher, “curvar-se a uma estranha semelhança”11
(SCHLEIERMACHER, 2011, p. 37). As críticas tecidas por
Schäfer dirigiam-se igualmente ao tradutor Voß, uma vez
que este, a título de exemplo, transportava para a língua
alemã uma métrica grega, recorrendo a uma espécie de leito
de Procusto12: por um lado, o afamado tradutor das obras
Aushilfsmittel zum Verstehen des Autors dienen, und die Stelle
eines fortlaufenden Kommentars vertreten.
11 Cita-se aqui a tradução de Mauri Furlan (SCHLEIERMACHER,
2011).
12 Sobre o mito do leito de Procusto, conta GRAVES (2008, p. 389s.):
“Quando chegou a Coridalo, na Ática, Teseu matou Polipômeno,
pai de Sínis, apelidado de Procusto, que vivia às margens da estrada e tinha duas camas em casa, uma pequena e outra grande. Ao
hospedar os viajantes que por ali passavam, ele colocava os homens baixos na cama grande e os torturava estirando-os até que se
ajustassem ao tamanho do leito; e os homens altos ele colocava na
cama pequena, cortando-lhes a parte das pernas que não coubesse
na cama. Há quem afirme que ele tinha uma só cama, portanto estirava ou amputava seus hóspedes para que nela se encaixassem.
De qualquer modo, Teseu fê-lo sentir na pele o sofrimento infligido
Sumário
156 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher...
homéricas13 para o alemão recorria a construções e a
palavras gregas que resolvia adotar no léxico alemão e, por
outro, utilizava vocabulário alemão equivalente aos termos
gregos, forjando-os, contudo, dentro de uma matriz de
versos gregos em grande parte não aplicáveis à língua alemã,
dadas as diferentes estruturas de versificação existentes em
ambas as línguas. Em seu empenho de querer salvaguardar
o idioma alemão, uma língua que, àquela época, ainda não
se encontrava totalmente consolidada, Karl Schäferagudiza
suas reprimendas a Schleiermachere a Voß:
Como já foi observado anteriormente, Voß, desde
longa data, já exercitava na prática o que
Schleiermacher executa de forma sistemática, embora
aquele fique para trás em relação às exigências deste,
pois lhe falta o insinuar, o entrar nos mais diferentes
aos outros.” De uma forma ou de outra, a figura pode ser aqui empregada para mostrar o grande desagrado sentido por Karl Schäfer
ao ver que a língua alemã precisava ser moldada a partir de outras
línguas, perdendo parte de sua natureza original.
13 Ainda no presente, as traduções feitas por Johann Heinrich Voß
são publicadas na Alemanha. Na orelha da edição da Ilíada [Ilias]
(HOMER, 2010), publicada pela editora Anaconda, pode-se ler,
dentre outras informações, esta: “SingedenZorn, o Göttin, desPeleiadenAchilleus”, solautet die ersteZeiledesEpos in der berühmtenHexameter-Übersetzungvon Johann Heinrich Voß” [“Canta-me,
ó deusa, do Peleio Aquiles a ira tenaz” (trad. de Odorico Mendes,
1874), esta é a primeira linha da epopeia na célebre tradução de Johann Heinrich Voß em hexâmetros]. Também em 2010, a mesma
editora Anaconda republicou a Odisseiade Homero. Na página reservada aos créditos, lê-se: “Die Übersetzung von Johann Heinrich
VoßerschienunterdemTitelHomersOdysseeerstmals 1781 aufKostendesVerfassersimSelbstverlag in Hamburg” [A tradução de Johann
Heinrich Voß foi publicada sob o título de Odisseia de Homero, pela
primeira vez em 1871, às expensas do autor da tradução em edição
de sua própria responsabilidade].
Sumário
Tradução e Autoria
| 157
elementos, em suma, aquele caráter proteiforme que
Schleiermacher exige. Mas aquele greciza e latiniza a
língua materna da mesma maneira que este, estando,
assim, na mesma categoria que ele, embora tenham
chegado à mesma prática a partir de diferentes posições. Na verdade, Schleiermacher acredita ser preciso
expressar-se à moda estrangeira para ser fiel, e Voß
acredita ser fiel, se traduzir literalmente; mas como
não consegue fazê-lo sem falar à moda estrangeira,
sua linguagem é, portanto, tão não-alemã quanto a de
Schleiermacher, e vice-versa. Não obstante, a fidelidade
que o método de tradução de Voß exige para si põe-se
a nu, curiosamente, através do fato de ele haver
traduzido todo e qualquer autor da mesma maneira,
naquela linguagem que ele havia criado, de uma vez
por todas, naquele período em que formara originalmente seu ponto de vista.14(SCHÄFER, 1838, p. 11)
14
Voss hatte, wie bereits bemerkt, längst praktisch geübt, was
Schleiermacher systematisch ausführt, ob er gleich hinter den
Anforderungen desselben zurükkbleibt, weil ihm das
Anschmiegen, das Eingehen in die verschiedensten Elemente, mit
Einem Worte, das Proteusartige fehlt, was Schleiermacher fordert.
Aber er gräzisirt und latinisirt die Muttersprache wie jener, und
steht insofern in gleicher Kategorie mit ihm, wenn sie gleich von
verschiedenen Stand punkten aus zur nämlichen Praxis gelangt
sind. Denn Schleiermacher glaubt fremd sprechen zu müssen, um
treu zu sein, und Voss glaubt treu zu sein, wenn er wörtlich
übersezt; da er aber diess nicht thun kann, ohne fremd zu
sprechen, so ist seine Sprache so undeutsch, wie die
Schleiermacherʼs und umgewendet. Die Treue aber, welche die
Uebersezungsmethode Vossens für sich in Anspruch nimmt, zeigt
sich sonderbarer Weise dadurch, dass er jeglichen Schriftsteller in
gleicher Weise übersezt hat, in diejenige Sprache, welche er sich
ein für allemal in jener Periode geschaffen hatte, wo er sich seinen
Standpunkt originell gestaltete.
Sumário
158 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher...
A Karl Schäfer, irritava profundamente o modo de
traduzir em que não se buscavam as formas próprias,
aquelas já forjadas e existentes na língua alemã. Quem assim
agia, renunciava, segundo ele, a uma série de “palavras
alemãs, construções alemãs, locuções alemãs (...), sistemas de
conceitos e de seus símbolos”, preferindo recorrer, de forma
arbitrária, a soluções cheias de invencionices e arbitrariedades. Ao abordar esse ponto crítico, Schäfer chega a
afirmar, em seu ensaio, que “colocam-se os elementos uns ao
lado dos outros desordenadamente: numa permuta mecânica, coloca-se símbolo após símbolo e crê-se seriamente ser
possível criar, mediante esse amálgama de palavras e
construções, uma nova língua”.
Na opinião de Karl Schäfer, a língua alemã não
precisava “curvar-se em direção a uma semelhança alheia”.
Destacava que, enquanto Schleiermacher acreditava precisar
expressar-se à moda estrangeira para ser fiel,Voß acreditava
ser fiel, se traduzisse literalmente. Como Voß não lograva
traduzir literalmente “sem falar à moda estrangeira”, sua
linguagem acabava por ser “tão não-alemã quanto a de
Schleiermacher, e vice-versa”. Em diversas passagens,
Schäfer usa, em seu ensaio, diferentes palavras e imagens
para trazer à baila a necessidade de se respeitar também a
língua-cultura de chegada. Uma das imagens que ele utiliza
é a da casca que envolve um fruto. Segundo ele, não se pode
separar o ser humano de sua língua como o fruto de
suacasca, já que ambos coexistem em uma relação orgânicofuncional, não sendo a casca do fruto “uma roupa que se
despe a alguém para nele vestir outra” (SCHÄFER, 1838, p.
22). Na visão de Schäfer, o tradutor alemão de
Schleiermacher veste-se como o romano ou como o grego, de
acordo com a necessidade. Tudo não passaria, portanto, de
uma farsa, de uma encenação: o tradutor vestia-se,
apresentava-se em seu disfarce e dava início à sua comédia.
Sumário
Tradução e Autoria
| 159
Para Karl Schäfer, um dos lemas principais era “traduzir do Belo para o Belo”. Ou seja: a tradução não deveria
ser escrita em alemão ostentando um sabor da língua original. Seguindo o exemplo de Ludwig Seeger15, Schäferexigia
que a tradução fosse, antes de tudo, alemã, como deixa
patente em seu ensaio Ueber die Aufgabedes Uebersezens [Sobre
a tarefa de traduzir]: “o caráter da nossa língua, enquanto
forma de nossa maneira popular de pensar e sentir, ali
precisa apresentar-se, conforme sua singularidade, com suas
características puras e nítidas”16 (SCHÄFER, 1838, p. 17).
Ainda segundo ele, cada um dos elementos da tradução,
nomeadamente, “a ordem das palavras nas frases, a construção dos períodos, a combinação de orações, o uso dos
modos, bem como a formação de palavras, a elocução, a
escolha das metáforas e imagens –, em resumo, tudo e cada
um dos elementos” (SCHÄFER, 1838, p. 17s.), somente pode
ser extraído da própria língua alemã. Embora concorde com
que um tradutor de poesia deva ser, de certo modo, um
poeta, observa, porém, que não seria viável esperar que
viesse a surgir um Ésquilo alemão para se poder traduzir o
conjunto de obras do eminente poeta e dramaturgo grego:
Mas com isso não está dito que se exigiriam um
talento e um gênio igualmente grandes, e que nós primeiramente teríamos de esperar um Ésquilo alemão, a
fim de obtermos uma cópia alemã do original. Não se
trata disto, o tradutor não tem de ser igual, apenas
15 Ver o prefácio de Ludwig Seeger “Epistel an einen Freund als
Vorwort” [Epístola a um amigo à guisa de prefácio], SEEGER,
1845, p. 7: “Wir müssen, das ist jetzt die Aufgabe, vor allen Dingen
deutsch und poetisch ubersetzen” [Precisamos, esta agora é a
tarefa, sobretudo traduzir em alemão e poeticamente].
16 (...) der Charakter unsrer Sprache, als der Form unsres
volksthümlichen Denkens und Empfindens, muss sich darin nach
seiner Eigenthümlichkeit rein und klar ausgeprägt darstellen.
Sumário
160 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher...
precisa ser capaz de absorver em si seu escritor,
equiparar-se de certa maneira a este. A capacidade de
entrar no espírito do protótipo, de pôr-se na sua pele e
identificar-se com ele, é inteiramente bastante para
representar a originalidade.17(SCHÄFER, 1838, p. 20s.)
Se, por um lado, criticava veementemente Johann
Heinrich Voß, Karl Schäfernutria, por outro, grande admiração por um contemporâneo seu, o também tradutor
Johann Gustav Droysen (1808-1884). Este deixou alguns
prefácios, em que evidencia, dentre outras coisas, a necessidade de se recorrer a algum paratexto editorial – em geral,
prefácios – para facilitar a compreensão dos leitores que quisessem se aventurar pelo mundo das comédias de Aristófanes, muito ricas em conteúdo político, social e cultural.
Neste sentido, afirmava:
O plano original desta tradução, como figura no
prefácio da primeira parte, prometia também, além
das peças que ficaram preservadas, os fragmentos e
uma biografia do escritor. (...) No início do meu trabalho, ainda não conseguia visualizar a dimensão que
assumiriam as introduções a cada uma das peças e
com que frequência elas forneceriam detalhes sobre as
condicionantes pessoais do escritor. Há poucas informações biográficas sobre Aristófanes, e esse pouco
que há é em parte incerto, em parte sem importância;
Damit ist jedoch nicht gesagt, dass ein gleich grosses Talent und
Genie erfordert werde, und dass wir erst einen deutschen
Aeschylus erwarten müssten, um ein deutsches Abbild des
Originals zu gewinnen. Nicht diess, nicht gleich an Kraft, nur
fähig, seinen Schriftsteller in sich aufzunehmen, ihm gleichsam
ebenbürtig muss der Uebersezer sein. Das Vermögen, in den Geist
des Urbilds einzugehen, sich in ihn einzuempfinden und
einzufühlen, reicht vollkommen hin, um die Originalität
darzustellen.
17
Sumário
Tradução e Autoria
| 161
em geral são incapazes de assegurar um retrato nítido
do autor, do seu modo de ver as coisas, do seu caráter
poético e político, das suas relações com seu tempo e
seus contemporâneos, em suma, aquilo que empresta
a uma biografia um interesse maior do que o da
erudição. (DROYSEN, 1838, p. V)18
Vê-se, aí, a preocupação do tradutor em buscar elementos sobre o autor cujas obras traduz, no afã de prestar
informações aos leitores, de modo que estes possam ter uma
imagem mais completa sobre a pessoa do escritor, sua época,
seus contemporâneos, suas idiossincrasias, ideologias etc.
Dispondo destes dados e exibindo-os ao público leitor, o tradutor dispõe de uma margem mais amplapara dotar seu
produto final – a tradução – de maior fluência na língua da
tradução, já que os leitores foram antes alimentados com
bastantes informações que lhes puderam servirde base. Para
Schleiermacher, esse tipo de preocupação parecia passar
despercebido.
No trecho a seguir, fica clara a posição de Karl
Schäfer acerca da transplantação de elementos estrangeiros e
estranhos ao vernáculo, procedimento que ele rechaça de
Der ursprüngliche Plan dieser Uebersezung, wie er in der
Vorrede des ersten Theils angeben (sic!) worden, versprach außer
den erhaltenen Stücken noch die Fragmente und eine Biografie des
Dichters. (...) Beim Beginn der Arbeit konnte ich nicht übersehen,
welche Ausdehnung die Einleitungen zu den einzelnen Stücken
gewinnen und wie oft auf die persönlichen Verhältnisse des
Dichters eingehen würden. Es giebt wenige biographische
Nachrichten über Aristophanes, und dieß Wenige ist zum Theil
unbedeutend, überall nicht von der Art, ein deutliches Bild des
Dichters, seiner Anschauungsweise, seines poetischen und
politischen Charakters, seines Verhältnisses zu seiner Zeit und
seinen Zeitgenossen, kurz das, was einer Biographie ein höheres
Interesse als das der Gelersamkeit giebt, zu gewähren.
18
Sumário
162 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher...
maneira manifesta, beirando, por vezes, o purismo exacerbado ou quase o nacionalismo:
De que meios o nosso tradutor precisa fazer uso,
como precisa proceder, resulta, por si só, do que foi
afirmado até aqui. Ele não tem permissão para criar,
nem por iniciativa própria nem por macaqueação,
nem em prosa nem em poesia. Ele não tem permissão
para querer inocular de modo direto o conteúdo
estrangeiro; inversamente, deverá escolher o correspondente a partir do já existente, e o seu maior mérito
mostrar-se-á no tato e na habilidade de extrair, com a
mão boa, o análogo a partir da esfera da vida do povo
ou da literatura existente.19(SCHÄFER, 1838, p. 21)
Karl Schäfer censura energicamente a posição assumida pelo tradutor schleiermacheriano, que, segundo ele, se
fantasiava de uma nacionalidade tal, para então dar início a
uma comédia, a uma cena macaqueada, a uma fantochada:
Sem dúvida, não se pode separar o ser humano de sua
língua como o fruto de sua casca, e ela não é uma
roupa que se despe a alguém para vesti-lo em seguida
com outra roupa. Mas será que o tradutor de
Schleiermacher trata essa verdade de modo mais digno
que nós? Ele se veste como o romano ou como o grego
se vestia, apresenta-se, em seguida, nesse disfarce e
começa a sua comédia! – Se o pensamento cria sua
forma, do modo como a alma se cerca – de certo modo
Welcher Mittel sich unser Uebersezer zu bedienen, wie er zu
verfahren hat, ergiebt sich aus dem bisher Gesagten von selbst. Er
darf nicht selbst machen, weder auf seine eigne Faust noch durch
Nachäffung, weder in Prosa noch in Poesie. Er darf nichts Fremdes
unmittelbar einimpfen wollen, sondern er muss unter dem bereits
Vorhandenem Litteratur mit glükklicher Hand das Analoge
herauszugreifen.
19
Sumário
Tradução e Autoria
| 163
por si só – do corpo que lhe convém, então ele
certamente também poderá fazer mais uma vez, em
alemão, o que já fez uma vez em grego. Portanto,
trata-se apenas de o tradutor ter afinidade de ideias e
ser dedicado o bastante para repensar o pensamento
já pensado uma vez, ou seja, registrá-lo em si e deixálo reproduzir-se com o espírito livre (da mesma
maneira como ocorre com a mulher e o embrião). Não
exigimos nenhuma fantochada, mas sim um ressurgimento num espírito homogêneo e num elemento
homogêneo.20 (SCHÄFER, 1838, p. 22s.)
Para muitos autores e estudiosos daquela época,
principalmente da metade do século XIX, assumir uma posição nacionalista era um fato quase natural, levando-se em
consideração a forte presença francesa na Europa a partir da
Revolução Francesa de 1789. Este fato causou uma série de
desordens e conflitos no Império Habsburgo. No ano de
Allerdings kann man den Menschen von seiner Sprache
nicht, wie die Frucht von der Schale, lostrennen, und sie ist kein
Kleid, das man einem auszieht, um ihm ein andres dafür
anzuziehen. Handelt denn aber Schleiermacherʼs Uebersezer dieser
Wahrheit würdiger als wir? Er kleidet sich, wie der Römer oder
Grieche gekleidet war, präsentirt sich dann in dieser
Vermummung und beginnt seine Komödie! – Wenn der Gedanke
sich seine Form schafft, wie die Seele sich gleichsam selbstthätig
mit dem ihr gebührenden Körper umgiebt, so kann er doch wohl
das Nämliche noch einmal, im Deutschen, thun, was er bereits
einmal, im Griechischen, gethan hat. Es handelt sich also nur
darum, dass der Uebersezer geistesverwandt, und dass er
hingebend genug sei, um den schon einmal gedachten Gedanken
nachzudenken d.h. in sich aufzunehmen und in freiem Geiste
(gleich wie das Weib beim Embryo) sich reproduziren zu lassen.
Nicht eine Mummerei, sondern ein nochmaliges Entstehen in
einem homogenen Geiste und homogenen Elemente wird von uns
gefordert.
20
Sumário
164 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher...
1791, a Prússia e a Áustria estabelecem um entendimento para se colocarem contra a Revolução Francesa. A França declara guerra à Áustria, e ocorre a primeira Guerra de Coligação contra a França revolucionária, que se estendeu até 1797
(FREUND, 1979, p. 434). Entre 1799 e 1802, acontece uma segunda Guerra de Coligação contra a França. Os principados
da Baviera, Württemberg e Saxônia, além de outros Estados
alemães, formam a Liga Renana [Rheinbund] (FREUND,
1979, p. 434), tornando-se satélites da França de Napoleão.
Até Napoleão ser vencido em 1815 na Batalha de Wellington,
os Estados alemães veem-se sob fortes ameaças, pois estavam a perder terras e poder para os franceses. Para os literatos, escritores, pesquisadores, professores etc., preservar a
língua e a literatura de expressão alemã era uma questão
primordial. Não é à toa que, entre os coetâneos de Karl
Schäfer que fizeram traduções e/ou versaram sobre o ato de
traduzir, alguns expressam seu nacionalismo de forma bastante clara ou até mesmo exacerbada.
Enquanto Friedrich Schleiermacher é um nome
consagrado no campo dos Estudos da Tradução, Karl
Schäfer praticamente não é notado pela maioria dos estudiosos atuais. Poucos autores citam-no e, quando o fazem, é
normal que seja no contexto do ensaio Ueber die
AufgabedesUebersezens. Mas esse fenômeno não ocorria de tal
modo à época de Schäfer. Um contemporâneo seu, August
Boeckh, ao fazer considerações sobre questões de
hermenêutica em sua extensa e muito bem elaborada
“EncyklopädieundMethodologie
der
PhilologischenWissenschaften” [Enciclopédia e Metodologia
das Ciências Filológicas], faz as seguintes considerações:
A Hermenêutica inteira somente tem por fito a compreensão dos monumentos; mas, para o fomento do
estudo em conjunto, é importante que a compreensão
seja representada de maneira adequada. A repre-
Sumário
Tradução e Autoria
| 165
sentação ocorre de dois modos, através da tradução e
do comentário. Analisaremos primeiramente o valor
da tradução. O ideal de uma tradução é que ela
represente o original; isso seria perfeitamente o caso,
se ela provocasse em nós, com nosso conhecimento
das circunstâncias históricas, a mesma impressão que
o texto original, no público original. De uma forma ou
de outra, as condicionantes históricas da obra precisam, portanto, ser dadas através de uma explicação
de outra natureza, caso a própria tradução precise ser
realizada visando a exercer o efeito intencionado da
forma mais perfeita possível. Sobre isto, existem duas
posições antagônicas. Alguns afirmam que se deveria
manter, o máximo possível, o estilo nacional da obra;
outros exigem que o elemento nacional deva ser
eliminado o máximo possível. A primeira opinião é
defendida por Schleiermacher, Sobre os diferentes
métodos de traduzir. Ensaios Acad. de 1813 (Obras
sobre Filosofia 2. Vol.), a outra, por Carl Schäfer, Sobre
as tarefas (sic!) de traduzir. Erlangen 1839. 4. Ambos os
métodos de traduzir têm suas vantagens e falhas. 21
(BOECKH, 1877, p. 158)
Die gesamte Hermeneutik hat nur das Verständniss der
Denkmäler zum Zweck; für die Förderung des gemeinsamen
Studiums ist es aber von Wichtigkeit, dass dies Verständniss in der
geeigneten Weise dargelegt werde. Die Darlegung geschieht in
doppelter Art, durch Uebersetzen und Commentiren. Wir
untersuchen zuerst den Werth des Uebersetzens. Das Ideal einer
Uebersetzung ist, dass sie das Original vertrete; dies würde in
vollkommenem Maasse der Fall sein, wenn sie auf uns bei
Kenntnis der historischen Verhältnisse denselben Eindruck machte
wie das Original auf das ursprüngliche Publicum. Die historischen
Voraussetzungen des Werkes müssen also auf jeden Fall durch
anderweitige Erklärung gegeben werden, wenn die Uebersetzung
selbst eingerichtet werden muss, um die beabsichtigte Wirkung
möglichst vollkommen auszuüben. Hierüber stehen sich zwei
Ansichten gegenüber. Einige behaupten, man müsse den
21
Sumário
166 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher...
Neste trecho em que trata especificamente de hermenêutica, August Boeckh, ao analisar a função da tradução
como via de acesso à compreensão de textos, de certa forma
expõe - ou pelo menos dá a entender - que naqueles idos de
1877, quando tanto Schleiermacher quanto Schäfer22 já
haviam morrido, estes antagonistas, embora tivessem opiniões verdadeiramente díspares sobre o traduzir, acabavam
desfrutando de igual mérito ao serem citados por um importante erudito do século XIX como os nomes que resumiam as duas tendências metodológicas da tradução. Um
dado interessante que se sobressai das palavras de Boeckh é
que, ao falar sobre a problemática das condicionantes
históricas da obra, estas talvez devessem ser dadas através
de uma explicação de outra natureza; deixava antever, aí, a
necessidade de se recorrer a algum tipo de paratexto editorial para uma melhor compreensão da obra. O célebre filólogo alemão prossegue sua análise, apresentando os pontos
positivos e negativos das duas posições defendidas pelos
dois teóricos da tradução:
Aqueles que não traduzem o elemento nacional também não têm condições de exprimir por completo o
elemento individual, já que ambos estão imbricados.
Faz-se então mister, necessariamente, deixar em primeiro plano sua própria individualidade na tradução,
nationalen Stil des Werkes möglichst beibehalten; andere
verlangen, das Nationale solle möglichst abgestreift werden. Die
erstere Ansicht vertritt Schleiermacher, Ueber die verschiedenen
Methoden edes Uebersetzens. Akad. Abh. Von 1813 (Werke zur
Philosophie 2. Bd.), die andere Carl Schäfer, Ueber die Aufgaben
(sic!) des Uebersetzers. Erlangen 1839. 4. Beide Methoden des
Uebersetzens haben ihre Vorzüge und Mängel.
22 No que pese o texto bem cuidado de Boeckh, ele comete um pequeno engano no título do ensaio de Schäfer, ao grafar o termo
Aufgabe [tarefa] com um “n” final, ou seja, no plural [tarefas].
Sumário
Tradução e Autoria
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como o faz Wieland. Além disso, eles verterão infielmente muitos detalhes, porque o significado gramatical, como já vimos, também depende de fatores
nacionais. A tradução representará, portanto, em geral, o conteúdo, a forma interna e os meios de
combinação da obra, ao passo que, em contrapartida,
as sutilezas da organização do texto e a respectiva
forma externa obliteram-se. Mas, no âmbito desses
limites, ela provoca uma compreensão como se fosse
uma obra na língua materna, já que o caráter nacional
é apagado o máximo possível. Por outro lado, no caso
do método oposto, exercer-se-á uma violência contra a
própria língua materna, com o intuito de reproduzir o
caráter nacional da língua estrangeira; e como as duas
línguas, claro, não são coincidentes, uma reprodução
do original é, todavia, impossível. Não obstante, devese preferir este método, porque ele exprime mais
daquilo que o tradutor tiver compreendido. Assim,
ele procurará renunciar, da melhor maneira possível,
à sua própria individualidade: não terá como meta
originalidade nenhuma, coisa que, na tradução, é um
erro, e assim logrará reproduzir razoavelmente também as sutilezas das formas de combinação e as da
forma externa. É óbvio que a fidelidade no detalhe
facilmente trará prejuízos à impressão que se terá do
todo.23(BOECKH, 1877, p. 158)
Diejenigen, welche das Nationale nicht übertragen, sind auch
nicht im Stande das Individuelle völlig zum Ausdruck zu bringen,
weil beides verwachsen ist. Es wird dann notwendig ihre eigene
Individualität in der Uebersetzung hervortreten, wie dies bei
Wieland der Fall ist. Ferner werden sie vieles Eizelne untreu
wiedergeben, weil ja auch der grammatische Wortsinn, wie wir
gesehen haben, national bedingt ist. Die Uebersetzung wird also
den Inhalt und die innere Form und Combinationsweise des
Werkes im Grossen und Ganzen darstellen, dagegen die Feinheiten
der Gliederung und die entsprechende äußere Form verwischen.
Innerhalb dieser Grenzen aber bewirkt sie, weil der fremde
23
Sumário
168 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher...
De acordo com suas palavras no trecho acima, fica
patente que Boeckh toma partido pela tendência seguida por
Schleiermacher de preservar os elementos nacionais da
língua-cultura estrangeira, defendendo inclusive o fato de tal
método ser seguido por aqueles tradutores que não querem
deixar sua marca individual na obra. Aos tradutores que
perfilam com Schäfer, sobraria a pecha de quererem imprimir sua individualidade na tradução. Isto aconteceria porque, à força de eliminar, o máximo possível, o caráter
nacional do original, o tradutor à la Schäfer provocaria, no
original, uma perda de seus aspectos externos (divisão de
parágrafos, métrica etc.), mas, ao mesmo tempo, faria o leitor
ter a impressão de que estaria lendo uma obra escrita em sua
própria língua. Observem-se ainda estas palavras de Boeckh:
A poesia homérica, p. ex., é toda natureza, totalmente
desprovida de artificialismos; mas toda tradução tem
algo de artificial, porque, mediante o recalcamento da
própria individualidade, é inscrita numa alma estrangeira. Na melhor das hipóteses, ela é igual a um
parque inglês simulacro da natureza; mas, não raro, a
tradução mergulha em afetação inflexível como ocorre
Nationalcharakter möglichst abgestreift ist, ein Verständnis wie ein
Werl in der Muttersprache. Bei der entgegengesetzten Methode
wird man dagegen der eigenen Sprache Gewalt anthun, um den
nationalen Charakter der fremden nachzubilden, und da sich die
Sprachen doch auch grammatischen nicht decken, ist eine treue
Wiedergabe des Originals dennoch unmöglich. Trotzdem ist diese
Methode vorzuziehen, weil sie von dem, was der Uebersetzer
verstanden hat, mehr zum Ausdruck bringt. Er wird sich so seiner
eigenen Individualität bestmöglich zu entäussern suchen: er wird
keine Originalität erstreben, die bei der Uebersetzung ein Fehler
ist, und so wird es ihm gelingen, auch die Feinheiten der
Combinationsweise und der äusseren Form einigermassen
nachzubilden. Freilich wird die mögliche Treue im Einzelnen
wieder leicht den Eindruck des Ganzen beeinträchtigen.
Sumário
Tradução e Autoria
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com a versão homérica de Voß, que é mal-ajambrada e
áspera, e ainda pior é sua tradução de Aristófanes. O
que menos se deixa traduzir são as peculiaridades do
ritmo e do timbre, uma vez que as línguas modernas
possuem uma lei rítmica diferente da existente nas
línguas clássicas, e os tortuosos metros gregos, com
suas frequentes sequências de várias vogais breves e
longas, muitas vezes não são nem representáveis24.
(BOECKH, 1877, p. 159 )
Ao apontar as imperfeições das traduções de Johann
Heinrich Voß, August Boeckh mostra que, pelo menos neste
aspecto, discorda de Schleiermacher. Desta forma comungaria, pelo menos quanto à homerização da língua alemã
realizada por Voß, com as ideias de Schäfer, o que representaria, no mínimo, um contra-senso, já que, como se viu
nos trechos anteriores, Boeckh advoga abertamente pelo
método de tradução de Schleiermacher, que, por seu turno,
coincidia com a prática tradutória de Voß.
Die Homerische Poesie z.B. ist ganz Natur, durchaus
ungekünstelt; jede Übersetzung hat aber etwas Gekünsteltes, weil
sie mit Unterdrückung der eigenen Individualität in eine fremde
Seele hineingeschrieben ist. Sie gleicht im günstigsten Fall einem
die Natur nachbildenden englischen Park; oft aber verfällt sie in
steife Künstelei wie die Vossische Übersetzung des Homer, die
stelzbeinig und rauh ist, und in noch schlimmer Weise seine
Uebersetzung des Aristophanes. Am wenigsten lassen sich die
Eigenthümlichkeiten des Rhytmus und des Klanges übertragen, da
die neueren Sprachen ein anderes rhythmisches Gesetz als die
alten haben und die verschlungenen griechischen Metra mit
häufiger Aufeinanderfolge mehrerer Kürzen und Längen oft gar
nicht darstellbar sind.
24
Sumário
170 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher...
Conclusão
Se Schleiermacher, em seu famoso artigo “Sobre os
diferentes métodos da tradução”, discorre de forma cética
sobre o conceito de Nachbildung [imitação/reprodução],
Schäfer prefere afirmar que “em parte, toda tradução, inclusive a de Voß e Schleiermacher, é reprodução”. Sustenta sua
tese, afirmando ainda que uma substituição “geral” de uma
série de coisas novas, de modo que uma obra seja totalmente
arrancada do seu ambiente e incorporado ao nosso, é
“reprodução”, mas também é, em parte, “tradução”.
Um dos principais pontos de divergências entre os
dois pensadores consiste em Schäfer acreditar no poder de
decisão do tradutor guiado por sua própria personalidade.
Para tanto, ressaltava que “a personalidade do tradutor
precisa estabelecer uma relação exata com o seu original”,
afinal de contas, seria preciso ser poeta para poder traduzir
ou reproduzir um poeta. No mesmo momento, tratava de
deixar claro que obviamente não se devia esperar que
primeiramente viesse a surgir um Ésquilo alemão, para
poder-se desfrutar das obras do célebre tragediógrafo grego
em língua alemã.
Schäfer exalta que se deve enfrentar, sim, o medo da
colisão que poderá surgir entre a personalidade do autor e a
do tradutor. Conclui que este, mediante seus atos e suas
palavras, será um guia para que o leitor conheça os contextos
originais lidos em sua própria língua materna, sem grandes
estranhamentos. Para Schäfer, um grande expoente da
prática da tradução que seguia esta mesma linha era Johann
Gustav Droysen. No sentido de sua opção pelo método
tradutório à la Droysen, fica patente a crítica ferrenha que
Schäfer tece contraVoß, por este reproduzir diferentes autores com uma mesma dicção, com uma mesma e única personalidade, numa linguagem e num estilo ásperos e repetitivos. Já Droysen defende, nos prefácios às suas traduções
Sumário
Tradução e Autoria
| 171
aristofânicas, um reconhecimento de aspectos ligados à vida
do autor, ao estilo próprio de cada autor, ao tempo histórico
do autor, mas também à necessidade de se considerar,
sobretudo no caso da tradução de comédias, o momento
histórico em que o texto antigo será apresentado ao público.
Pelas alusões que faz a Johann Gustav Droysen em
seu ensaio, pode-se concluir que Karl Schäfer realmente
refletia sobre os aspectos linguísticos internos e externos da
tradução, dando sobeja atenção a questões pragmáticas,
como costumava ocorrer nos trabalhos de Droysen. Em sua
opinião, este tencionava produzir – e, segundo acreditava o
ensaísta, lograva fazê-lo – uma tradução que não apenas era
erudita e elegante, mas também poesia, tendo ainda o
condão de apresentar um poeta clássico “realmente viçoso e
remoçado”, no espírito intelectual da língua alemã da época.
Schäfer advogava, aí, pela produção de uma tradução
erudita, mas ajustada ao momento histórico da língua-meta e
da cultura-meta no instante da produção e publicação do
texto traduzido.
Nas entrelinhas do texto de Schäfer, é possível ler que
Voß encaminhava os textos greco-latinos, em sua roupagem
totalmente original, para o rumo da língua alemã; e esta, por
possuir outro corpo, não se adaptava àquela roupagem que
nem sempre lhe servia ou se lhe ajustava. Se, a respeito dessa
transplantação de modelos greco-romanos (estilísticos, gramaticais, métricos etc.) feita por Voß para a língua-cultura
alemã, Schäferemitia duras reprimendas, admitia, como num
prenúncio de antropofagia linguístico-cultural, que Droysen
lograva fazer uma boa digestão dos clássicos e apresentá-los
aos leitores alemães em bom vernáculo. Para ambos, o
interesse maior girava em torno “de traduzir do Belo para o
Belo”.
Por conter uma série de aspectos contrários às ideias
de Friedrich Schleiermacher, o ensaio de Schäfer é de grande
relevância para os Estudos da Tradução no seu atual estado
Sumário
172 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher...
da arte, pois permite entrever sobretudo que, à época de sua
publicação, o notável artigo de Schleiermacher não encontrou, como se poderia supor, apenas franca aceitação. A
partir de leituras paralelas de outros teóricos da tradução do
mesmo século XIX, em sua maioria bastante ou totalmente
desconhecidos no Brasil, é possível construir novas teias
argumentativas, novos critérios e parâmetros, possibilitando,
assim, uma discussão mais rica de pormenores em torno do
trabalho de Friedrich Schleiermacher.
Apesar de o título do ensaio de Schäfer conter palavras muito facilmente utilizáveis em denominações de livros,
capítulos de livros e ensaios (Ueber die Aufgabe ... / Sobre a
tarefa ...), é pertinente lembrar que o título do afamado ensaio
de Walter Benjamin (Die Aufgabe des Übersetzers [A tarefa do
tradutor]), publicado em 1923, soa como um eco do título do
ensaio de Karl Schäfer (Ueber die Aufgabe des Uebersezens
[Sobre a tarefa de traduzir]). Ademais, ambos os autores
também utilizam, em seus respectivos textos, a metáfora do
“fruto” e da “casca do fruto”.25 Poder-se-ia também
simplesmente afirmar que esta talvez fosse uma metáfora
recorrente. Cumpre também enfatizar que, além da metáfora
do fruto e da casca do fruto, ainda surge certa semelhança na
metáfora do “manto real”, no texto de Benjamin, e “da
roupa”, no texto de Schäfer. Não obstante, não se pode
assegurar que Walter Benjamin tenha tido acesso ao texto de
Karl Schäfer e muito menos reproduzido algumas de suas
ideias.
O ensaio de Schäfer não turva, em geral, as grandes
ideias desenvolvidas por Schleiermacher, mas lançam
algumas indagações que precisam ser relativizadas entre os
ensaios dos dois autores. Uma delas é a questão da importância do vernáculo, da língua de chegada, o alemão: Schäfer
SCHLEIERMACHER, 2001, p. 201, tradução de Susana Kampff
Lages.
25
Sumário
Tradução e Autoria
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não quer aceitar simplesmente a existência de dois caminhos
para o ato de traduzir. Tanto o ensaio de Schleiermacher
quanto o de Schäfer, frise-se bem, consagram-se à tradução
literária e notadamente à tradução poética. Nesta perspectiva, o lema maior de Karl Schäfer era: do Belo para o
Belo.
Estranha-se, principalmente, que o texto de Schäfer
tenha caído em esquecimento, até mesmo na Alemanha, durante mais de um século e meio. Seu ressurgimento certamente ainda representará um grande contributo para os Estudos da Tradução, justamente por se opor ao mais consagrado teórico da tradução do século XIX: Friedrich Schleiermacher.
REFERÊNCIAS
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Wissenschaften. Leipzig: Teubner, 1877.
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Berlim: Verlag von Veit und Comp., 1838.
FREUND, M. Deutsche Geschichte. Von den Anfängen bis zur
Gegenwart. Munique: Bertelsmann Verlag, 1979.
HOMER. Ilias. Trad. de Johann Heinrich Voß. Colônia: Anaconda
Verlag, 2010.
HOMER. Odisseia. Trad. de Johann Heinrich Voß. Colônia:
Anaconda Verlag, 2010.
JAHN, J. C.; KLOTZ, R; SEEBODE, G. Neue Jahrbücher für Philologie
und Pädagogik. Leipzig: Druck und Verlag von G.B. Teubner, 1841.
KITZBICHLER, J.; LUBITZ, K.; MINDT, N. Theorie der Übersetzung
antiker Literatur in Deutschland seit 1800. Transformationen der Antike.
Berlim / Nova Iorque: Walter de Gruyter, 2009.
MASIUS, Hermann. Neue Jahrbücher für Philologie und Pädagogik.
Leipzig: Verlag von G. B. Teubner, 1864.
Sumário
174 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher...
SCHÄFER, K. Ueber die Aufgabe des Uebersezens. Erlangen:
Jung’sche Universitäts-Buch-Drukkerei, 1839.
SCHLEIERMACHER, F. Über die verschiedenen Methoden des
Übersetzens/Sobre os Diferentes Métodos de Tradução, trad. de
Margarete von Mühlen Poll, in HEIDERMANN, W. Clássicos da
teoria tradução. Antologia bilíngue, alemão-português. Vl. 1 (1ª edição).
Florianópolis: UFSC, 2001.
SCHLEIERMACHER, F. Über die verschiedenen Methoden des
Übersetzens/Dos diferentes Métodos de Tradução, trad. de Mauri
Furlan, in Scientia Traductionis, n.9, Florianópolis, p. 3-70, 2011.
SEEGER, L. Aristophanes. Erster Band. 1. Die Acharner. 2. Die Frösche.
3. Die Ritter. 4. Die Wolken. Frankfurt am Main: Literarische Anstalt
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SOERGEL, J. Jahresbericht von der Königlichen Studienanstalt zu
Erlangen. Erlangen: Druck der Universitäts- Buchdruckerei von
Junge & Sohn, 1863.
Sumário
Tradução e Autoria
| 175
Luciano Barbosa Justino
Em face de um tempo em que todas as sociedades sob
o signo todo abrangente e globalizador do ocidente estão
inseridas numa dinâmica cultural e tecnológica, que tende a
uniformizar todas as técnicas, todos os gêneros e todas as
memórias, individuais e coletivas, os estudos de tradução e
de traduzibilidade se tornaram fundamentais para se compreender as dinâmicas centrípetas e centrífugas daquilo que
Fredric Jameson chamou de “lógica cultural do capitalismo
tardio”.
Para se pensar o caso brasileiro, o “entrelugar” do
Brasil numa era de pós-tudo e vale tudo, duas premissas
parecem-me fundamentais:
1. A atualidade no Brasil pós-Lula das questões levantadas por Oswald de Andrade nos vários textos
que escreveu sobre a antropofagia. Interessa o tratamento político e cultural que a proposta oswaldiana
deu às relações de alteridade, instigantes para se pensar em que medida a globalização, e sua inerente traduzibilidade imperialista, está associada à hibridação
das artes e das linguagens.
2. Esta traduzibilidade imperialista é atravessada por
meios e modos de produção, material e imaterial, que
elaboram sentidos no limite intraduzíveis nos termos
de uma economia global, mas que nem por isso deixam de se inserir, ativamente, nesta mesma globalização e em suas muitas “ferramentas”, produtos, servi-
Sumário
176 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir
ços e semioses. É exatamente do caráter oximórico da
relação entre o global e o não global, relação irredutível e inegociável, que brota a força política de uma
traduzibilidade do intraduzível.
Penso que as duas premissas acima podem ser iluminadas pela teoria da tradução e a prática tradutória dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos. Por hipótese, eles criaram uma teoria da tradução e da intersemiose que funcionam como leitura e atualização crítica do projeto antropofágico de Oswald de Andrade, cuja culminância se dá nas
Intraduções1 de Augusto, na “transluciferação mefistofáustica” e no “Sequestro do Barroco” de Haroldo2.
Quero articulá-los ao conceito de crioulização em
Edouard Glissant, de modo a podermos imaginar uma
filosofia da tradução e dos contatos interculturais latinoamericanos. Nas palavras de Glissant:
As intraduções estão disseminadas em quase todos os livros de
Augusto de Campos, tanto de poemas quanto de tradução propriamente dita, a saber: Viva vaia: poesia (1949-1979). Ateliê Editorial,
2001.; Despoesia. São Paulo: Perspectiva, 1994.; Não poemas. São Paulo: Perspectiva, 2001. Dos muitos livros de tradução, vale conferir
sob este aspecto: Verso, reverso, controverso. São Paulo: Perspectiva,
1998. E A margem da margem. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.
2 De Haroldo de Campos, Sequestro do barroco na Formação da literatura brasileira. São Paulo: Iluminuras, 2010. Sobre tradução e teoria
da tradução, Deus e o diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 2005.;Pedra e luz na poesia de Dante. 1998.;A poética do traduzir.
In: A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1977.; A
tradução como criação e como crítica. São Paulo: Perspectiva, 1996.
Dos vários trabalhos que fizeram em colaboração, Revisão de
Sousândrade. São Paulo: Perspectiva, 2001.; Panaroma de Finnegans
Wake. São Paulo: Perspectiva, 1996. Com Décio Pignatari, Mallarmé.
São Paulo: Perspectiva, 1996. e com Boris Schneidermann, Maiakóvski. São Perspectiva, 1998.
1
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Tradução e Autoria
| 177
O mundo se criouliza. Isto é: as culturas do mundo
colocadas em contato umas com as outras de maneira
fulminante e absolutamente consciente transformamse, permutando entre si, através de choques irremissíveis, de guerras impiedosas, mas também através de
avanços de consciência e esperança que nos permitem
dizer – sem ser utópicos e mesmo sendo-o – que as
humanidades de hoje estão abandonando dificilmente
algo em que se obstinaram há muito tempo – a crença
de que a identidade de um ser só é válida e
reconhecível se for exclusiva, diferente da identidade
de todos os outros seres possíveis (GLISSANT, 2005,
p. 18).
E:
A crioulização exige que os elementos heterogêneos
colocados em relação “se intervalorizem”, ou seja, que
não haja degradação ou diminuição do ser nesse
contato e nessa mistura, seja internamente, isto é, de
dentro para fora, seja externamente, de fora para
dentro. E por que a crioulização e não a mestiçagem?
Porque a crioulização é imprevisível, ao passo que
poderíamos calcular os efeitos de uma mestiçagem. A
crioulização é a mestiçagem acrescida de uma maisvalia que é a imprevisibilidade (GLISSANT, 2005, p.
22).
Para tanto é preciso compreender tradução como
uma prática que envolve contatos culturais não hierarquizantes, “não identitários”, no sentido de que identidade
como substância apriorística, e concepções de línguas como
entidades compósitas inseridas em contextos de multiplicidade e deslocamento, tanto no tempo, quanto nos espaços.
Sumário
178 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir
Walter Benjamin e a tarefa do tradutor
Um dos marcos teóricos para a teoria e a prática
tradutória contemporânea é “A tarefa-renúncia do tradutor”
(2008), na tradução de Suzana Kampff Lages, prefácio que
Walter Benjamin escreveu para a sua tradução de alguns
poemas de “Quadros parisienses” de Charles Baudelaire.
Como é sabido, os textos reunidos em “Um lírico no
auge do capitalismo” (1995) apontam no poeta de As flores do
mal as formas de experiência da modernidade em todas as
suas tensões. De certo modo, é ela que sedimenta os 3
problemas mais persistentes no projeto filosófico do autor: a
linguagem, a arte, a história. É a experiência da modernidade
“aparecida” em Baudelaire que dá estruturalidade ao projeto
benjaminiano de leitura crítica desta mesma modernidade. É
estimulante percorrer o modo como uma experiência poética
(poética?) lança as bases de uma das mais importantes
interpretações, políticas, da modernidade e após.
O autor é entre nós bastante conhecido por contribuições de grande originalidade e relevância em diversas
disciplinas acadêmicas, como suas Teses sobre o conceito de
história (1994) e A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica (1994), textos importantes para qualquer debate em
torno da relação história, historicismo e opressão e sobre as
chamadas “novas tecnologias”.
A tarefa-renúncia do tradutor abre, contudo, a possibilidade de questionamentos não só sobre a tradução
interlingual, mas sobre a pertinência política das origens, das
ruínas e da “salvação” das memórias, individuais e coletivas,
além do debate em torno do pós-colonialismo. A tarefa do
tradutor é um texto sobre a experiência da outridade, para
usar a palavra de Octávio Paz.
O prefácio à tradução de Baudelaire deste modo está
integrado às grandes questões do pensamento necessariamente inter de Walter Benjamin. Jeanne Marie Gagnebin,
Sumário
Tradução e Autoria
| 179
uma das mais importantes pesquisadoras da obra de Walter
Benjamin no Brasil, afirma que
Esta teoria da tradução e da traduzibilidade assume
em Benjamin os traços de uma filosofia da história e
de uma teoria da salvação. Porém, não se pode tratar
de uma teodiceia que quisesse justificar o caminhar da
história pela presença de um sentido transcendente,
supra-histórico. Temos aqui muito mais a figura paradoxal de uma esperança teológica que só pode se
cumprir na sua resolução totalmente profana: a língua
da humanidade redimida não significa uma volta à
língua, única e sagrada, de um paraíso perdido, mas,
pelo contrário, a exposição integral da multiplicidade
das línguas humanas históricas e imperfeitas. A compreensão universal entre as línguas só poderá nascer
do desdobramento radical desta diversidade (1994, p.
34).
Benjamin afirma que “a traduzibilidade é, em
essência, inerente a certas obras” (2008, p. 67) porque as
obras têm uma potência em maturação que só pode ser
expressa pelas suas traduções. O significado que se exprime
na tradução é a salvação da obra porque é a tradução que o
ilumina. Implica dizer, ela nunca encontra o seu tradutor
ideal porque nem o autor o pôde exprimir como totalidade
acabada. O significado “oculto” que ela exprime é infinito
em todas as direções e incompleto em todos os momentos,
por isto ele só se realiza na tradução, brota de sua traduzibilidade.
Um tal significado só pode ser pensado como
assignificante porque ele carrega um “instante inesquecível”,
“mesmo que todos os homens o tivessem esquecido” (2008,
p. 67). Em todas as línguas, existe um incomunicado que não
se reduz à comunicação ou ao sentido, só a tradução o pode
apresentar, sem alcançá-lo de todo. A recusa benjaminiana
Sumário
180 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir
da comunicação e da relação superficial texto/leitor é uma
recusa à primazia da “subjetividade dos póstumos” e uma
crítica à tradução como repetição anacrônica da história. É
aqui que a tarefa do tradutor tem muito a dizer ao debate
sobre o pós-colonialismo.
A tradução não tem que significar para o original e,
no limite, nada pode dizer a ele. Sua relação com ele é “tanto
mais íntima” quanto menos significar para ele. É este
movimento destrutivo, luciferino, para a frente, o anjo de
Klee, que não permite paralisar o processo de traduzibilidade e a operação de tradução numa temporalidade linear
à revelia dos homens e do trabalho das multidões, aprisionado por um passado ideal “resgatável” pela tradução.
A tradução coloca o original num “tempo carregado
de agoras”, muitos deles não contemporâneos3. O tradutor é
uma espécie de anjo profano cuja tarefa é necessariamente
trabalhar num médium amontoado de ruínas e de destruição.
A famosa passagem das Teses sobre o conceito de história, em
imagens que Baudelaire teria aprovado:
Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele
vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés.
Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e
juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do
paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que
ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele
irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as
costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o
céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso
(1994, p. 226).
Cf. O conceito de não contemporâneo, “resídios não integrados
de uma outra economia e uma outra cultura”, é de Martin Barbero
e German Rey em Os exercícios do ver. São Paulo: SENAC, 2001.
3
Sumário
Tradução e Autoria
| 181
A salvação do original não está numa “teodiceia”,
numa transcendência que a tudo abarca e explica, nem o
próprio capitalismo, mas na sua inserção na multiplicidade
das línguas, nem sagradas nem perdidas, imperfeitas,
históricas e infinitas. Em uma palavra, no mundo da vida.
Na tarefa-renúncia do tradutor, ele afirma que “a vida
do original alcança, de uma maneira constantemente renovada, seu mais tardio e vasto desdobramento” nas gerações
posteriores. São as gerações posteriores que dão sobrevida
ao original, pois é nelas que a traduzibilidade é uma essência
natural ou "de vida" da obra (2008, p. 69).
E a vida só pode ser reconhecida naquilo que possui
história. “É somente quando se reconhece vida a tudo aquilo
que possui história e que não constitui apenas um cenário
para ela, que o conceito de vida encontra sua legitimação”
(2008, p. 68). A história é a “vida mais vasta” e é na tradução,
radicalmente histórica, que a vasta vida do original se
manifesta como sobrevida.
Em seus últimos escritos, Michel Foucault (2008)
passou a usar o termo ‘biopolítica’ para designar as relações
entre o mundo dos saberes e os modos de vida, especificamente à maneira como os “homens infames” e marginalizados de toda ordem resistem às imposições do biopoder
disciplinar.
Creio que o conceito de sobrevida do original de
Walter Benjamin antecipa esta questão na medida em que ele
pressupõe uma relação indissociável entre salvação e destruição: “na continuação de sua vida (que não mereceria tal
nome se não se constituísse em transformação e renovação
de tudo aquilo que vive), o original se modifica”, pois “existe
uma maturação póstuma das palavras” (2008, p. 70).
A tradução revela a vida produtiva das línguas e
quero crer que ser esta produtividade o ponto de contato que
expressa “o mais íntimo relacionamento das línguas entre si”
(p. 69). Ela não é capaz de revelar ou restituir tal relacioSumário
182 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir
namento, mas só ela é capaz de apresentá-lo e atualizá-lo,
tocá-lo fugazmente, numa língua estrangeira.
É o abalo da “língua paterna” pela língua estrangeira,
do original pela tradução, que é capaz de redimir e liberar a
língua do cativeiro e a dotá-la de sobrevida no devir das
línguas. Ela nunca pode ser reduzida a identidades de
ascendência (2008, p. 71).
Suzana Kampff Lages (2002) afirma que, presa a um
passado ideal, a tradução encontra um tradutor melancólico
dependente de um outro fantasmático, eleito narcisicamente,
numa espécie avessa de narcisismo em que a dificuldade de
superação da perda do outro implica um desapego de si
mesmo, um ego frágil, indissociado do objeto perdido. Num
plano político, que outro nome dar a isso senão colonialismo?
O melancólico é prisioneiro de um passado ideal. Ele
é excludente porque seu narcisismo não observa os devires e
a produtividade do passado, sua sobrevida. Daí ser a
tradução e a traduzibilidade a crítica de uma forma falsa ou
enganosa de experiência (DUTTMANN, 1997), o colonialismo.
É aqui que a tarefa de tradutor de Walter Benjamin
faz eco com o projeto dos irmãos Campos e sua atualização
da proposta oswaldeana da antropofagia e com a crioulização das culturas de Glissant enquanto projeto de leitura
crítica, e destrutiva, das tradições homogeneizadoras, linguísticas e culturais, brasileiras e latino-americanas.
A teoria da tradução de Augusto e de Haroldo de
Campos transforma a melancolia em luto, para continuarmos na terminologia freudiana, o objeto está para sempre
perdido. As intraduções de Augusto de Campos e a tese de
uma literatura que já nasce adulta, proposta por Haroldo de
Campos no Sequestro...não aceitam nenhuma relação servil,
de dependência, de “identidade de ascendência”, como quer
Sumário
Tradução e Autoria
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Antonio Candido na Formação da literatura brasileira, segundo
a crítica do próprio Haroldo.
Os Campos via Oswald compreendem o devirmultiplicidade das línguas e das culturas, em todas as direções e em vastos tempos, inclusive para fora e além da
linguagem e da língua.
De certa forma, a culminância linguística da teoria
benjaminiana da tradução reflete um habitus modernista do
autor e a hegemonia cultural do livro e da escrita no modernismo. Mas esta “historicidade” do pensamento de Benjamin
contudo nos permite articular sua concepção do devir das
línguas a abordagens menos linguageiras da linguagem, até
porque a língua pura, cuja tradução, e só a tradução, pode
alcançar no máximo um “naco de nuvem”, necessariamente
está cheia de outras signagens e de indícios, pois, conforme
diz o próprio Walter Benjamin, alguns conceitos significam
melhor quando não são referidos a priori exclusivamente ao
ser humano, no sentido ocidental de sua “humanidade”
(2008, p. 67 e 70).
Da “transluciferação” antropofágica
Em A tradução como criação e como crítica (2002), um
dos primeiros textos que escreveu sobre o assunto, Haroldo
de Campos entende, a partir do pensamento de Albercht
Fabri e Max Bense, que a poesia e a prosa literárias, assim
como toda arte, são intraduzíveis, em virtude da relação
indissociável no objeto estético entre forma e conteúdo.
O autor comenta a diferença estabelecida por Bense
entre informação documentária, informação semântica e
informação estética; a primeira e a segunda são traduzíveis,
pois a informação documentária remete a algo observável, é
de natureza empírica; a informação semântica consiste numa
assertiva a respeito da primeira, se é verdadeira ou falsa, por
Sumário
184 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir
exemplo. Em ambos os casos, a informação pode ser veiculada com diferentes maneiras de “codificação”. A informação
estética é intraduzível pela unidade ou isomorfia forma/
conteúdo.
Induzido por Bense, Haroldo discorre sobre os conceitos de informação não estética, documentária e/ou semântica, e entende ser possível, nestes dois casos, uma
relação dissociável entre fundo e forma, diferentes formas,
mesmos fundos, enquanto que a informação estética é uma
“sentença absoluta”.
Contudo, crer num tal princípio significa pressupor a
possibilidade de conteúdos autônomos, que pairam além e
acima de sua contingência histórica, as palavras funcionando
como o futuro de uma verdade que a precede. Sob este
aspecto, os pressupostos de Haroldo são metafísicos. A relação indissociável entre forma e fundo não é uma condição
exclusiva da arte e da literatura, mas de todo discurso, pois o
sentido não prescinde de sua efetivação em palavras.
À medida em que aprofunda seu sentido da tradução, que culmina no prefácio da tradução de Goethe, Haroldo se desvencilha de seus pressupostos metafísicos ao demonstrar que a fragilidade da sentença absoluta da informação estética pode sim ser traduzida através de uma
“transcriação”, que inscreve na língua do Um uma inalienável diferença, “uma vivência interior do mundo e da
técnica do traduzido”. Posteriormente, Robert Stam (2008, p.
339), pensando na relação literatura/cinema,falou de uma
“transécriture dialógica”.
Haroldo compreende a tradução enquanto recriação
como uma espécie de equivalência na/da diferença. Aqui, o
autor demonstra o potencial criativo e inovador de seu
pensamento ao não buscar, na tradução dos textos criativos
da poesia e da prosa literárias, acrescento literatura/
cinema/Hq/TV, uma falsa equivalência do mesmo. Ele
afirma:
Sumário
Tradução e Autoria
| 185
Tradução de textos criativos será sempre recriação, ou
criação paralela, autônoma porém recíproca. Quanto
inçado de dificuldades este texto, mais recriação, mais
sedutor enquanto possibilidade aberta de recriação.
Numa tradução desta natureza, não se traduz apenas
o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua
fisicalidade, sua materialidade mesma (propriedades
sonoras, de imagética visual,enfim de tudo aquilo que
forma, segundo Charles Morris, a iconicidade do signo
estético, entendido por signo icônico aquele “que é de
certa forma similar àquilo que ele denota”). O significado, o parâmetro semântico, será apenas e tãosomente a baliza demarcatória do lugar da empresa
recriadora. Está-se pois no avesso da tradução literal
(CAMPOS, 2002, p. 35).
Haroldo propõe uma espécie de simetria dissimétrica, que não é nem similar nem equivalente, pois as línguas
e linguagens envolvidas são “estranhas” uma a outra e
apontam para a multiplicidade que as constitui.
Não obstante ainda postular a idéia modernista de
uma “fragílima beleza aparentemente intangível”, a
consciência da diversidade e do estranhamento linguístico já
traz à teoria da tradução do poeta concretista uma atualidade inegável. Se Haroldo não abre mão do conceito
modernista de uma relação “não arbitrária”, intrínseca na
literatura, da forma e do conteúdo, do significante e do
significado, em termos saussureanos, sobretudo na poesia e
na prosa de invenção, seu pensamento não se reduz a isso.
A teoria da tradução de Haroldo, e por extensão do
projeto concretista, abre-se para uma postura que problematiza a relação hierárquica entre o texto original e o texto
traduzido, o que dá um sentido político claro a sua teoria da
tradução. É nestes termos que Augusto pensa suas Intraduções:
Sumário
186 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir
A minha maneira de amá-los é traduzi-los. ou deglutilos, segundo a lei antropofágica de Oswald de
Andrade: só me interessa o que não é meu. Tradução
para mim é persona. Quase heterônimo. Entrar na
pele do fingidor para refingir tudo de novo, dor por
dor, som por som, cor por cor. Por isso nunca me
propus traduzir tudo. Só aquilo que sinto. Ou que
minto que sinto, como diria ainda uma vez, pessoa em
sua persona (1988, p. 10).
Se nos primeiros textos a concepção concretista da
relação signo/sentido em poesia e prosa de invenção possui
uma natureza até certo ponto ontológica, essencializante,
talvez como gesto inerente a toda estratégia de vanguarda,
posteriormente sua teoria da tarefa do tradutor é antilogocêntrica, anti-essencialista e pós-colonial. A tradução é a
vivência da persona, é um contato com a alteridade.
Esta postura atinge seu momento mais radical e de
maior densidade crítica em Deus e o diabo no Fausto de Goethe
(2005). Nos vários ensaios que abrem e fecham a tradução
das duas cenas finais da segunda parte do poema goetheano,
“escritura mefistofélica” e de “transluciferação mefistofáustica”:
O desideratum de toda tradução que se recusa a servir
submissamente a um conteúdo, que se recusa à tirania
de um Logos pré-ordenado, é romper a clausura
metafísica da presença (como diria Derrida): uma
empresa satânica (CAMPOS, 2005, p.180).
No capítulo dedicado a Haroldo de Campos de seu
Tradução e melancolia (2002), Susana Kampff Lages percebeu o
diálogo de Haroldo de Campos com a teoria da tradução de
Walter Benjamin e sua “desleitura” dessa mesma teoria.
O anjo da história de Benjamin deve ressuscitar a
língua pura para a qual toda linguagem conflui em sua
Sumário
Tradução e Autoria
| 187
aspiração messiânica de ressuscitar os mortos (BENJAMIN,
1995), na teoria concretista da tradução “o caráter luciferino
estaria em sua dessacralização do texto original e à reinserção da atividade do tradutor num âmbito humano de relações, trazendo-o para aquém da grande saudade” (LAGES,
2002, p. 191).
Assim, o texto original está em dívida com a tradução, não há mais resgate possível, a empresa satânica
implica numa leitura política da tradição em que o tradutor
não se prende a uma falsa reapropriação, atualização ou
equivalência para deixar intacto o sentido do mesmo e
reforçar, em terra alheia, a superioridade de “original”. O
passado só está vivo enquanto diferença crítica, a tradução é
uma ação política sobre a origem que implica seleção e
escolha, intervenção não hierarquizante e sem culpa ou
castigo:
Os móveis primeiros do tradutor, que seja também
poeta ou prosador, são a configuração de uma tradição ativa (daí não ser indiferente a escolha do texto a
traduzir, mas sempre extremamente reveladora), um
exercício de intelecção e, através dele, uma operação
de crítica ao vivo. Que disso tudo nasça uma pedagogia, não morta e obsoleta, em pose de contrição e
defunção, mas fecunda e estimulante, em ação, é uma
de suas mais importantes conseqüências (CAMPOS,
2002, p. 44).
Isto posto, os dois textos mais importantes de Haroldo sobre uma teoria da tradução confluem para seu não
menos importante Da razão antropofágica: diálogo e diferença na
cultura brasileira (2002), no qual a teoria da tradução
encontra-se com a crítica da cultura brasileira em sua relação
com as tradições europeias hegemônicas.
Neste texto seminal, Haroldo formula uma crítica da
tradição que é também uma teoria da tradução a partir de
Sumário
188 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir
uma releitura da antropofagia oswaldiana em termos muito
próximo do que depois escreverá no Deus e o diabo no Fausto
de Goethe:
Ela não envolve uma submissão (uma catequese), mas
uma transculturação; melhor ainda, uma “transvaloração”: uma visão crítica da história como função
negativa (no sentido de Nietzsche), capaz tanto de
apropriação como de expropriação, desierarquização,
descontrução. Todo passado que nos é “outro” merece
ser negado. Vale dizer: merece ser comido, devorado.
Com esta especificação elucidativa: o canibal era um
“polemista” (do grego pólemos= luta, combate), mas
também um “antologista”: só devorava os inimigos
que considerava bravos, para deles tirar proteína e
tutano para o robustecimento e a renovação de suas
próprias forças naturais (CAMPOS, 2002, p. 234).
A antropofagia, ou aquilo que Haroldo chama de
“razão antropofágica”, serve como rompimento com uma
relação submissa e hierarquizadora e de crítica ao etnocentrismo, de uma teoria da tradução e prática tradutória como
procura da similaridade e da equivalência; de uma visão da
cultura que tem como referência última a renúncia de sua
especificidade e diferença.
A transluciferação assume seu caráter político. Foi
neste sentido que ele pensou numa heterogênese da literatura brasileira a partir da leitura que fez da Formação da
literatura brasileira de Antonio Candido.
No Sequestro do barroco, ele faz perguntas do tipo: Que
movimentos de sentido ela, a história oficial da literatura
brasileira, clausula? Que modos de vida segrega? Que
alteridades nela foram usurpadas?
Para demonstrar sua heterogênese, Haroldo analisou
o caso Gregório de Mattos e do Barroco. Não contra Antonio
Candido, já que sua obra não pode ser reduzida à Formação...,
Sumário
Tradução e Autoria
| 189
a favor de outros movimentos de significação, nas palavras
do próprio Haroldo, “dos percursos oblíquos e das derivações descontínuas”.
A importância da trajetória intelectual de Antonio
Candido, a meu ver, não sai diminuída na polêmica aberta
pelo Sequestro... Antes sua estatura só se amplia, pois Haroldo reconhece, no ato mesmo de dedicar a ele anos de
pesquisa, sua grandeza e sua centralidade, apontando em
seu próprio livro o quanto Candido submeteu seus pressupostos a uma revisão constante. Haroldo nos sugere voltar a
“estranhar” o grande mestre, torná-lo o excêntrico que vem
contribuir, que vem nos dar uma outra vereda, muitas vezes
à revelia dele mesmo.
Haroldo critica as 2 séries metafísicas (e metafóricas)
do método de Antonio Candido: 1) a “animista-ontológica” e
2) a “evolutivo-biológica”. A crítica atinge o ideal metafísico,
forte em Candido, de “entificação do nacional” atrelado a
um outro, o “espírito do ocidente”.
O modelo historicista-teleológico, sem meias palavras, etnocêntrico, da Formação... pressupõe continuidade e
crescimento controlado, “converte o interesse particular do
Romantismo nacionalista em verdade historiográfica geral”,
reitera como princípio um “passado comum”, que no limite
nada mais é a história oficial dos colonizadores.
O Barroco e os rizomas do boca do inferno não cabem
nesta história. Ele nunca foi autor, nunca foi um sujeito,
nunca falou sua/nossa “própria língua”, nunca foi a “encarnação literária do espírito nacional”. Gregório e o barroco
são babélicos, não linguageiros, logo, não fazem “ordem” ou
“progresso”. Eles não cabem na temporalidade linear e na
derivação autoritária da origem colonialista:
Nossa literatura, articulando-se com o Barroco, não
teve infância (in-fans, o que não fala). Não teve origem “simples”. Nunca foi in-forme. Já “nasceu” adul-
Sumário
190 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir
ta, formada, no plano dos valores estéticos, falando o
código mais elaborado da época. Nele, no movimento
de seus “signos em rotação”, inscreve-se desde logo,
singularizando-se como “diferença”. O “movimento
da diferença” (Derrida) produz-se desde sempre: não
depende da “encarnação” datada de um LOGOS
auroral, que decida da questão da origem como um
sol num sistema heliocêntrico. Assim também a maturidade formal (e crítica) da contribuição gregoriana
para a nossa literatura não fica na dependência do
ciclo sazonal cronologicamente proposto pela Formação (CAMPOS, 2011, p. 67, grifos do autor).
Nossa origem não tem “nenhum caráter”. A meu
ver, a Revisão de Sousândrade, escrito em parceria com seu
irmão/poeta/tradutor Augusto de Campos, ele também
digno de todas as “vivas” – o poeta que colocou as questões
mais instigantes para a cultura brasileira, com exagero
mesmo -, é a metonímia de uma tal trajetória, que não só
reconfigura todo nosso passado “nacional” quanto transforma em expressões de pouca monta, com exagero de novo, a
grandeza da ruptura de um Charles Baudelaire, tal qual
Walter Benjamin instituiu como mestre/poeta do auge do
capitalismo. Tocando a ferida de nossos enclausuramentos.
Da nova épica crioula
A razão antropofágica tal como formulada por
Haroldo tem fortes traços de contato com o conceito de
crioulização, “equivalência de valor” e turbulência de sistemas que são colocados em presença uns dos outros, de
Édouard Glissant:
A linguagem do tradutor age como a crioulização e
como a Relação no mundo, ou seja, essa linguagem
Sumário
Tradução e Autoria
| 191
produz imprevisível. Arte do imaginário, nesse sentido, a tradução é uma verdadeira operação de crioulização, doravante uma prática nova e inevitável da
preciosa mestiçagem cultural. Arte do cruzamento das
mestiçagens que aspiram à totalidade-mundo, arte da
vertigem e da salutar errância, a tradução inscreve-se,
dessa maneira, e cada vez mais, na multiplicidade de
nosso mundo. Arte da fuga de uma língua a outra,
sem que, no entanto, a primeira se apague, e sem que
a segunda renuncie a apresentar-se (GLISSANT, 2005,
p. 56).
Partindo do conceito de rizoma de Gilles Deleuze e
Félix Guattari (1995), Glissant difere o que chama de culturas
atávicas e culturas compósitas. A cultura atávica parte de
uma gênese única e uma filiação que funda – se apropria –
de um território. Ela mata tudo a sua volta, só é capaz de ver
sob as lentes do mesmo, “uma comunidade que reafirma sua
confiança em si mesma” (GLISSANT, 2005, p. 94), fundada
numa epopeia que a legitima e a pressupõe como origem de
todas as coisas e lugar do sagrado e da divindade.
Baseada no conceito de verdade e na previsibilidade,
a ciência dominante é uma das faces institucionais das comunidades atávicas cujo fim último é paralisar o constante vir a
ser das coisas em seu movimento em direção à horizontalidade.
O pensamento do rizoma, próprio das culturas
compósitas, impuras, barrocas, na palavra de Glissant, vai ao
encontro de outras raízes, compreende o outro como inferência, pois nelas o mito fundador não funciona, senão
através de um empréstimo. Nas culturas compósitas, prevalece o resíduo, “um não-sistema de pensamento, que não seja
nem dominador, nem sistemático, mas intuitivo, frágil e
ambíguo” (GLISSANT, 2005, p.29).
O que resulta daí é “a dimensão mutante e perdurável de toda mudança e de toda troca” (GLISSANT, 2005,
Sumário
192 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir
p. 30) e uma crítica àquilo que o autor chama de “ciência do
ser”.
A ciência do ser é uma ciência vertical, progressiva,
ela sustenta e dá legitimidade à defesa do território e da
gênese, daí a relação indissociável na modernidade entre
ciência e disciplinaridade, cabendo-se inclusive explorar o
duplo sentido que a palavra disciplinar possui em português, tanto como campo autônomo e excludente quanto
princípio moralizador.
A poética da relação, que não é uma poética do
neutro, mas do encontro, pressupõe uma ciência do “sendo”:
“a ciência que duvida, que reduz suas certezas e afirma que
circulamos pesquisando na extensão, ou seja, que não nos
movimentaremos mais na linearidade” (GLISSANT, 2005, p.
90). O sendo se diferencia do ser porque, ao contrário deste,
se dirige pro “caos-mundo”, as convivências e os choques da
totalidade-mundo contemporânea.
Se o tempo linear implica na valorização da idéia de
origem sob a qual nasce toda forma de etnocentrismo, a
totalidade-mundo tem no caos sua metáfora de base por
viver numa multiplicidade de tempo imediato, sincrônico,
aquilo que Jesús Martin-Barbero e Germán Rey, pensando
nas culturas latino-americanas, chamaram de “não-contemporaneidade do simultâneo”, de “resíduos não-integrados de
outra economia” (2001, p. 27).
O não contemporâneo pressupõe o encontro entre
muitas formas de vida e de pensamento, inclusive, mas não
sobretudo, a de seus invasores coloniais. A totalidade-mundo das comunidades compósitas vive num tempo horizontal,
constelar, inclusivo, para o qual toda “língua crioula”, sem
origem e sem original:
E o que é uma língua crioula? É uma língua compósita, nascida do contato entre elementos lingüísticos
absolutamente heterogêneos uns aos outros. Uma
Sumário
Tradução e Autoria
| 193
língua crioula não é portanto nem o resultado dessa
extraordinária operação que os poetas jamaicanos
praticam voluntariamente e de maneira decidida na
língua inglesa, nem um pidgin, nem um dialeto. É
algo novo, de que tomamos consciência, mas algo que
não podemos dizer tratar-se de uma operação original, porque quando estudamos as origens de toda e
qualquer língua, inclusive a língua francesa, percebemos que quase toda língua nas suas origens é uma
língua crioula (GLISSANT, 2005, p. 25-26).
Por não podemos cair num vale-tudo dos contatos,
cujo nivelamento e indiferenciaçãoé a manutenção da ordem
capitalística a que estamos submetidos e contra a sua estandartização lutamos, a diferença entre crioulização e mestiçagem de Glissant nos dá instigantes pistas.
A crioulização pressupõe a imprevisibilidade do
caos-mundo e de formas de encontro aquém de toda estereotipia. Ela exige que as culturas em relação “se intervalorizem”, sem degradação ou diminuição. Esse encontro,
inserido na totalidade-mundo e no caos-mundo, não pode
prever o que daí advirá nem estancar suas conseqüências.
A crioulização, para o autor, nasce do direito à
opacidade e é sua consequência, ao passo que a mestiçagem
é previsível, geralmente pensada pelos grupos dominantes.
A mestiçagem hierarquiza os encontros ou diminui seus
efeitos anti-sistêmicos, como a ideologia do branqueamento
a que foram submetidas gerações e gerações de negros no
Brasil. A mestiçagem tem sempre o pé na casa-grande, a
crioulização não esquece o navio negreiro e a senzala.
Para dar conta da crioulização inerente ao caosmundo e à poética da relação, Glissant pensa em uma nova
dimensão para a literatura: 1) redefinindo sua relação com o
lugar e com a comunidade ao relacioná-la com a totalidade
mundo; e 2) fundando uma nova forma épica que não se
confunde com as grandes epopeias fundadoras.
Sumário
194 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir
A nova épica de que fala Glissant não quer fundar
uma comunidade atávica, excludente e narcísica, que reafirma sua confiança em si mesma e só em si mesma. Ela possui
uma fala multilíngue, seu imaginário, compósito e residual,
precisará de todas as línguas do mundo para dar conta do
que a constitui, a surpresa do sendo.
A nova épica, mefistofáustica, deambólica, de HaroldoGlissant, constitui uma espiral para as línguas, e os humanos
por vir. Ela é o futuro do passado num pretérito imperfeito e
num amanhã potencialmente rico, tarefa renúncia do tradutor num contexto multidinário.
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Sumário
196 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir
Sumário
Tradução e Autoria
| 197
Francisco Francimar de Sousa Alves
Introdução
Certos paratextos, como por exemplo, ilustrações,
notas de rodapé, dados sobre o autor, resumos de quarta
página, são geralmente encontrados em coletâneas de contos
de Edgar Allan Poe traduzidas para o português, elementos
informativos que se caracterizam por serem facilitadores da
leitura e que podem influenciar a recepção da obra na
cultura de chegada. Como esses discursos de acompanhamento se apresentam de forma diversificada nessas coletâneas, levando ao leitor informações relevantes, vale apontar e evidenciar suas funções. Assim, este capítulo analisa
elementos paratextuais na antologia de contos de Poe intitulada A carta roubada e outras histórias de crime & mistério,
traduzida por William Lagos e publicada pela L&PM em
2003 [2006]1, observando de que forma o autor e sua obra são
apresentados através desses discursos. A análise é fundamentada nos princípios teóricos de Gérard Genette que, em
livro intitulado Paratextos Editoriais (2009), do original Seuils
(1987), discute acerca de paratextos.
A data entre colchetes se refere a reedição/reimpressão que utilizei para este trabalho, sendo o ano de 2003, portanto, a data da
primeira edição.
1
Sumário
198 | Os Paratextos em Antologias Brasileiras de Edgar Allan Poe
Poe: o Mestre da Ficção Gótica
O contista, poeta, ensaísta e crítico literário Edgar
Allan Poe (1809-1849) teve um percurso de vida conturbado,
desregrado e aventureiro, “uma vida corrida, atribulada e
cheia de contínuos acontecimentos extraordinários, derivados do seu gênio criativo e temperamental” (ARAÚJO, 2002,
p. 17), mas apesar de seus desacertos, deixou um legado de
grandes obras como poemas românticos, histórias de horror
e mistério, sátiras, contos policiais e ensaios críticos-filosóficos. Como um artífice na construção de narrativas e
composição de poemas, Poe se tornou um dos maiores representantes do romantismo norte-americano do século XIX,
sendo hoje considerado um dos mais importantes escritores
da literatura mundial, e ainda um dos precursores da
literatura de ficção científica e fantástica modernas, o que
leva alguns estudiosos acreditarem que sua obra deu início a
verdadeira literatura norte-americana, “a primeira emergência artística da consciência moderna”2. Como afirma Kiefer
(2009, pp. 11-12), “Poe, nos tempos modernos, deve ser
considerado o primeiro escritor a refletir com rigor e método
sobre a arte da contística”.
Vale salientar que Baudelaire foi o responsável pela
divulgação da obra de Poe em nível mundial, pois foi a
partir da publicação do primeiro volume de traduções de
treze contos com o título de Histoires Extraordinaires (1856),
dos originais de Poe Tales of the Grotesque and Arabesque (25
contos), escritos entre 1832 e 1845, que o escritor estadunidense teve sua obra disseminada no cenário literário ocidental (França, Europa, América Latina). Logo, “foi através
da tradução de Baudelaire que o mundo literário ocidental
tomou conhecimento da novidade e do valor da mensagem
do autor norte-americano” (MENDES, 2001, p. 53).
2
Santaella, 1987, p. 147.
Sumário
Tradução e Autoria
| 199
A fama de Poe como o mestre da literatura gótica em
países europeus e hispano-americanos se repete no Brasil
através do impressionante número de traduções de seus
contos.
A importância e a influência literária de Poe são,
indubitavelmente, indicadores do interesse de pesquisadores, editoras, produtores de cinema e do público leitor.
Hoje podemos encontrar um elevado número de publicações
de traduções e adaptações de sua vasta obra ficcional.
No que diz respeito à importância do escritor norteamericano e a disseminação de sua obra no mercado editorial brasileiro, Daghlian afirma:
O reconhecimento e a disseminação da obra de Poe no
Brasil podem ser avaliados quando levamos em consideração as traduções de sua poesia, ficção e crítica,
bem como a quantidade de livros, artigos, teses acadêmicas e trabalhos científicos apresentados em eventos
que têm como foco sua vida e obra. (DAGHLIAN,
1999, p. 132).3
Genette e o Conceito de Paratexto
Em 1987, Gérard Genette, crítico literário francês e
teórico da literatura, publica Seuils, relevante obra para a
pesquisa em paratextos editoriais. Em 2009, 22 anos após a
publicação francesa, a Ateliê Editorial, com sede em Cotia-SP
publica, dentro da série Artes do livro 7, a tradução brasileira de Álvaro Faleiros, Paratextos Editoriais, uma importante
The recognition and dissemination of Poe’s work in Brazil can be
fairly assessed by considering the translations of his poetry, fiction,
and criticism into Portuguese as well as by the number of books,
articles, academic theses, and papers presented at scholarly meetings dealing with his life and work.
3
Sumário
200 | Os Paratextos em Antologias Brasileiras de Edgar Allan Poe
referência na área. Na contracapa, Genette (2009) afirma ser
o livro “um estímulo a examinar mais de perto aquilo que, às
escondidas e com tanta frequência, regula nossas leituras” –
o paratexto.
Com um elenco de treze capítulos e 372 páginas, o
livro apresenta uma introdução de um pouco mais de onze
páginas em que Genette define paratexto como “aquilo por
meio de que um texto se torna livro e se propõe como tal a
seus leitores, e de maneira mais geral ao público” (p. 9).
Genette ainda afirma que o paratexto é “mais do que um
limite ou uma fronteira estanque”, um “limiar” que oferece
ao leitor a possibilidade de entrar no texto ou de retroceder
(pp. 9-10). O autor expande sua definição ao chamar a
atenção para a quase impossibilidade de um texto literário se
apresentar desacompanhado de elementos paratextuais:
Esse texto raramente se apresenta em estado nu, sem
o reforço e o acompanhamento de certo número de
produções, verbais ou não, como um nome de autor,
um título, um prefácio, ilustrações, que nunca sabemos se devemos ou não considerar parte dele, mas
que em todo caso o cercam e o prolongam, exatamente para apresentá-lo, no sentido habitual do verbo,
mas também em seu sentido mais forte: para torná-lo
presente, para garantir sua presença no mundo, sua
“recepção” e seu consumo, sob a forma, pelo menos
hoje, de um livro. (GENETTE, 2009, p. 9).
Segundo Genette, não existe e nunca existiu um texto
sem paratexto, mas, em contrapartida, há paratextos sem
textos, como é o caso de muitas obras “desaparecidas ou
abortadas” que conhecemos apenas o título, por exemplo,
“numerosas epopeias pós-homéricas ou tragédias gregas
clássicas”, títulos isolados que temos um pouco mais com
que sonhar do que em muitas obras disponíveis e legíveis
em seu todo (p. 11). O autor ainda atenta para a diferença
Sumário
Tradução e Autoria
| 201
entre duas categorias de paratexto: o peritexto e o epitexto. A
primeira consiste numa “mensagem materializada” e tem
necessariamente um lugar que pode ser “em torno do texto,
no espaço do mesmo volume, como o título e o prefácio, e, às
vezes, inserido nos interstícios do texto, como os títulos de
capítulo ou certas notas” (p. 12). A segunda, discutida nos
dois últimos capítulos do livro, também se concentra em
torno do texto, porém a certa distância, e diz respeito a
“todas as mensagens que se situam, pelo menos na origem,
na parte externa do livro”, geralmente através de conversas,
entrevistas etc., ou por meio de uma comunicação privada,
como é o caso de correspondências e diários íntimos (p. 12).
Os paratextos consistem, portanto, de elementos
informativos e de relevante importância na construção de
uma obra e caracterizam-se por serem facilitadores da leitura, ajudando a explicá-la. Logo, esses elementos mediadores entre o texto e o leitor podem ser bastante variados.
OS PARATEXTOS EM A CARTA ROUBADA E
OUTRAS HISTÓRIAS DE CRIME & MISTÉRIO
A coletânea em análise tem por título A carta roubada e
outras histórias de crime & mistério, publicada pela L&PM em
2003, em tradução de William Lagos. A obra, que faz parte
da coleção de bolso L&PM Pocket, contém 208 páginas, e
narra dez contos: “A carta roubada”, “Metzengerstein”,
“Berenice”, “Ligéia”, “A queda da Casa de Usher”, “William
Wilson”, “O retrato ovalado”, “A máscara da Morte Rubra”,
“O barril de amontillado” e “O poço e o pêndulo”. Como
informa o próprio título, bem como a imagem de capa, que
exibe uma pessoa caída ao chão, o livro relata histórias de
temática relacionada a assassinatos e acontecimentos inexplicáveis.
Sumário
202 | Os Paratextos em Antologias Brasileiras de Edgar Allan Poe
O título, como sabemos, é o nome atribuído ao livro e
“serve para nomeá-lo, [...] designá-lo com tanta precisão
quanto possível e sem riscos demasiados de confusão”
(GENETTE, 2009, p. 76). As três funções do título estabelecidas por Charles Grivel: designação, indicação do conteúdo e sedução, segundo Genette, “não estão todas necessariamente presentes ao mesmo tempo”, mas apenas a primeira
delas é obrigatória, “as outras duas são facultativas e suplementares, porque a primeira pode ser cumprida por um
título de significado mudo, em nada ‘indicativo de conteúdo’” (p. 73). Poderíamos assim dizer que A carta roubada e
outras histórias de crime & mistério contempla as três funções,
pois, ao mesmo tempo que identifica a obra, indica claramente o seu conteúdo, de forma a seduzir o público com
narrativas que tem o crime e o mistério como temáticas
principais.
Sumário
Tradução e Autoria
| 203
Em geral, as antologias brasileiras de contos de Poe
trazem imagem de capa. Grosso modo, a capa é o rosto do
livro, a porta de entrada de uma obra. É ela “que destaca o
livro nas vitrines e nos mostruários” e tem por objetivo
“atrair a atenção de um possível leitor e ela pode ser mais ou
menos apelativa ou mais ou menos discreta, dependendo do
público que a edição tem em vista” (CRUZ, 2007, p. 59).
Acredito que, normalmente, uma obra traz uma imagem
indicativa ao que ela propõe. Em algumas coletâneas traduzidas de Poe, o elemento imagético às vezes revela sobriedade, outras vezes se torna apelativo. Como afirma Cruz, “A
necessidade de fisgar o leitor traz muitas vezes para a capa
um elemento ilustrativo relativo à obra veiculada” (p. 60).
No caso da antologia em discussão, a imagem de uma pessoa
caída ao chão se compatibiliza com o título e ambos refletem
a(s) temática(s) dos textos narrados.
A quarta capa ou contracapa, a exemplo da capa, é
também um lugar estratégico em que o editor pode dispor
para apresentar a obra ou trazer informações sobre o autor,
mas ainda poderá usá-la para fins comerciais, como propagar o nome da editora, da coleção ou mesmo da edição.
Assim, os textos de quarta capa podem ser considerados
como “um recurso propagandístico, que procura divulgar as
qualidades de uma obra com vistas a um determinado
público” (HORTA, 2002, p. 63). Segundo Genette, a quarta
capa é “um lugar bastante apropriado e estrategicamente
bastante eficaz para uma espécie de breve prefácio, de
leitura” (p. 104). Esse breve prefácio, denominado de pressrelease ou release “trata-se de um texto curto (geralmente de
meia a uma página) que descreve, à maneira de resumo ou
de qualquer outro meio, e de modo normalmente elogioso, a
obra a que se refere” (p. 97).
A coletânea não apresenta prefácio ou qualquer
informação introdutória, porém a quarta capa traz o sugesSumário
204 | Os Paratextos em Antologias Brasileiras de Edgar Allan Poe
tivo título, em destaque vermelho, “Os melhores contos do
mestre do mistério e do suspense”, informação que eleva o
autor e tenta atrair o leitor com a indicação de que se trata
dos contos mais lidos. Abaixo vem um release dividido em
dois parágrafos. O primeiro apresenta o enredo da metade
dos contos narrados na coletânea: “A queda da casa de
Usher”,“William Wilson”, “O barril de Amontillado”, “O
poço e o pêndulo” e “A carta roubada”. Contudo, o
comentário sobre o primeiro conto, está mais voltado à
interpretação, pois esclarece que é “a história de um estranho
casal de irmãos cuja corrupção moral e psíquica é refletida
na falência física da mansão gótica onde moram”. O segundo
parágrafo traz um resumo elogioso sobre o autor como o
grande “mestre da narrativa curta, sensibilidade privilegiada
e perturbada, precursor do romance policial, exímio explorador das profundezas psicológicas do homem e um dos
maiores escritores da literatura mundial”. Em seguida, há a
indicação, em caixa alta, de que os contos narrados têm
“texto integral”, o que deixa claro não se tratar de uma
adaptação, mas sim de uma tradução em si. A quarta capa
também fornece duas informações de caráter comercial: a
primeira, que a L&PM Pocket é “A maior coleção de livros
de bolso do Brasil”; a segunda, que o leitor pode procurar
“nas últimas páginas do livro os lançamentos da Coleção
L&PM Pocket”, o que vem divulgar a coleção de bolso da
editora.
Sumário
Tradução e Autoria
| 205
Segundo Genette, o selo de coleção é uma “duplicação do selo editorial, que indica imediatamente ao potencial leitor que tipo ou que gênero de obra tem a sua frente”
(p. 26). Portanto, é interessante para a editora divulgar uma
coleção de autores de fama nacional ou internacional, como é
o caso de Poe, considerando que isso poderá conquistar um
maior número de leitores. Do ponto de vista da editora, “a
coleção é uma forma de organização e classificação de
catálogo, com vistas a um mercado” (CRUZ, 2007, p. 52), e
esse mercado de leitores só pode ser conquistado através do
prestígio do escritor e da credibilidade da editora que
legitimam o selo da coleção. Como afirma Cruz, “Um autor
famoso contribui com a sua fama pessoal para a construção
da fama da editora. A editora em ambos os casos é qualificada de acordo com o prestígio dos autores e títulos de seu
catálogo” (p. 45), e Poe, através da coleção L&PM Pocket, é
apresentado como um dos mais renomados escritores da
literatura mundial, mestre do mistério e do suspense.
Através dessas informações, podemos perceber que a
editora não está apenas veiculando as qualidades de um
grande escritor e sua obra, mas, por outro modo, está divulgando a edição e a coleção como um todo, o que vem ser,
Sumário
206 | Os Paratextos em Antologias Brasileiras de Edgar Allan Poe
portanto, uma estratégia comercial. Ainda, junto ao nome da
coleção, aparece a informação de que a edição traz “texto
integral”, ou seja, de que o texto de Poe é uma tradução em
si, e não uma adaptação, sendo assim uma informação útil
para o leitor mais esclarecido, visto que, há editoras que
publicam adaptações para o público infanto-juvenil, por
exemplo, a Ediouro, que editou 18 contos de Poe traduzidos
e adaptados por Clarice Lispector em Histórias extraordinárias.
A segunda página da coletânea promove a divulgação de outras obras traduzidas de Poe na coleção L&PM
Pocket (Assassinatos na rua Morgue e O relato de Arthur Gordon
Pym). As últimas páginas da obra apresentam uma cronologia acerca da vida e obra de Poe.
Outro elemento paratextual de grande importância,
principalmente no que se refere a obras traduzidas, é a nota
de pé de página, pois é através dela que a publicação se
torna mais rica em termos de conteúdo e ajuda o leitor a
interpretar o texto. Esse elemento também demonstra não
somente o vasto nível de conhecimento do autor, mas
igualmente do tradutor, que teve a preocupação de aprofundar sua pesquisa, enriquecer seu trabalho e levar ao público
um texto informativo e não apenas traduzido.
Conforme Genette, “Uma nota é um enunciado de
tamanho variável (basta uma palavra) relativo a um segmento mais ou menos determinado de um texto, e disposto seja
em frente seja como referência a esse segmento”, e que só
vieram aparecer no século XVIII (p. 282). Em notas se
encontram “definições ou explicações de termos usados no
texto, às vezes a indicação de um sentido específico ou
figurado”. As notas também podem conter “Traduções de
citações produzidas no texto em língua original ou o inverso.
Referências de citações, indicações de fontes” (p. 286), entre
outras informações que se tornarem necessárias. Jorge Pinho,
Sumário
Tradução e Autoria
| 207
ao comentar sobre as notas de tradução, sejam elas iniciais,
de rodapé ou finais, observa:
[...] a opção pelas notas de tradução [...] constitui um
suporte ao trabalho desenvolvido pelo tradutor,
servindo de justificação ou complementando o texto
traduzido. Em alguns casos as notas servem principalmente para o leitor, mas poderão servir como
referência do tradutor a elementos fundamentais na
contextualização e afirmação de conhecimento sobre o
assunto traduzido. [As notas de rodapé] servem a
propósitos mais imediatos e funcionais de prestação
de informação aos leitores. Aliás, as notas surgem
sempre como um elemento de concessão ao leitor e à
eventual necessidade de este perceber melhor o que se
encontra na obra (PINHO, 2009, p. 123).
Ao longo da obra, William Lagos enobrece sua tradução ao trazer para o pé de página 54 notas que esclarecem
sobre os diversos aspectos da narrativa de Poe, não apenas
linguísticos, mas também históricos, culturais, filosóficos,
mitológicos além de outros, riqueza de detalhes que se
encontra nas entrelinhas do texto poeano.
No conto “O retrato ovalado”, por exemplo, ao se
referir aos “Montes Apeninos”, Lagos informa que se trata
de uma “cadeia montanhosa que corta a Itália, da Ligúria à
Calábria, e se prolonga até a Sicília” (POE, 2006, p. 146), o
que vem explicitar algo relacionado ao campo geográfico na
narrativa. No conto “A máscara da Morte Rubra”, o tradutor
traz para o seu texto o teatro do século XIX e leva ao seu
leitor Hernani, polêmica peça do novelista, poeta e
dramaturgo francês Victor Hugo:
Sumário
208 | Os Paratextos em Antologias Brasileiras de Edgar Allan Poe
Drama de Victor Hugo. Sua primeira apresentação foi
no Théâtre-Français, a 25 de fevereiro de 1830, ocasionando uma verdadeira batalha nas galerias entre os
partidários do classicismo e os do romantismo. Com o
título italianizado de Ernani, transformou-se em ópera, com libreto de Piave e música de Verdi, estreada
em 1844. (POE, 2006, p. 156)
O tradutor também intertextualiza o aspecto
histórico-bíblico, no conto “A máscara da Morte Rubra”, ao
se referir à passagem: “[...] o vulto em questão excedia o
próprio Herodes em extravagância e malignidade e tinha
ultrapassado até mesmo os limites do decoro indefinido do
Príncipe” (p. 158): “Referência a Herodes I, o Grande, 73-04
a.C., rei da Judéia (como preposto dos romanos) de 40 a 04
a.C., famoso por seu luxo e sua extravagância, aliados a
assomos de crueldade, dentre os quais o mais conhecido é a
bíblica Matança dos Inocentes”. Vale salientar que o editor
apresenta apenas duas notas: uma para a locução vis inertiae,
traduzida por “força da inércia” (p. 30); outra, para a palavra
ennui, traduzida por “aborrecimento, tédio” (p. 31), ambas
no conto “A carta roubada”.
Em geral, os contos de Poe são introduzidos por uma
epígrafe. Segundo Genette (2009, p. 131), a epígrafe é “uma
citação colocada em exergo”, na borda da obra, “em destaque, geralmente no início de obra ou de parte de obra”. É
através do romance gótico que a epígrafe é introduzida na
prosa narrativa com The Misteries of Udolpho (1794) [de Ann
Radcliffe] (p. 133), e o seu lugar mais comum é o mais
próximo do texto (p.135). Esse elemento também demonstra
o elevado grau de conhecimento de Poe.
Dos dez contos que compõem a antologia, sete trazem epígrafes, que também são cuidadosamente traduzidas
por William Lagos em notas de rodapé. Em duas epígrafes, a
Sumário
Tradução e Autoria
| 209
exemplo das notas de rodapé, percebemos a preocupação do
tradutor em prestar informações mais precisas, e não apenas
traduzir. A epígrafe que abre “O poço e o pêndulo” é um
quarteto cuja origem é informada por Poe em seu texto e
traduzida por Lagos como um “Quarteto composto para os
portões de um mercado a ser construído no local em que se
erguera o Clube dos Jacobinos, em Paris” (POE, 2006, p. 172).
Lagos, portanto, explicita em nota sobre uma questão
histórico-política, o extremismo dos Jacobinos (século XVIII),
e que anuncia a temática principal do conto – a Inquisição:
Os Jacobinos (que herdaram o nome dos frades dominicanos) formaram o partido político mais extremado durante a Revolução Francesa. Robespierre, St.Just e Mirabeau, alguns de seus membros, levaram
seus adversários girondinos (chefiados por Danton)
ao cadafalso durante o Terror. Foram, por sua vez,
executados após o Thermidor, e seu clube foi arrasado
em 1794. (POE, 2006, p. 172)
Conclusão
Através da análise de elementos paratextuais em A
carta roubada e outras histórias de crime & mistério, podemos
perceber que Poe é apresentado não apenas como mestre da
narrativa fantástica e inovador do conto policial, mas, sobretudo, como um gênio em diversas áreas do saber: história,
literatura, política, religião etc. e conhecedor de outras línguas (a obra ficcional de Poe é repleta de palavras e expressões em francês e latim), o que pode ser comprovado por
meio das notas de rodapé traduzidas por Lagos ao fornecer
tão rico conteúdo, tanto de línguas como de conhecimentos
Sumário
210 | Os Paratextos em Antologias Brasileiras de Edgar Allan Poe
gerais. Portanto, devemos considerar que, sem elas, o leitor
não conheceria o outro lado fantástico de Poe – a genialidade
cultural. É importante observar que nem sempre os tradutores e/ou editores prestam ao leitor informações tão
valiosas acerca da obra de Poe e se limitam apenas a dizer o
óbvio – que Poe é o mestre do conto gótico, do terror
psicológico etc.. Logo, o leitor sente alguma dificuldade para
interpretar as narrativas e passa a consumir muito mais
tempo para completar sua leitura, porque o tradutor não
suplementou sua tradução com dados imprescindíveis à
compreensão do texto ou às vezes são insuficientes. Vale
salientar que Poe foi o primeiro escritor a discutir com ênfase
sobre os princípios que norteiam a criação da ficção curta
como um verdadeiro trabalho de arte, através da análise
crítica de “Twice-Told Tales”, do seu contemporâneo
Nathaniel Hawthorne.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Ricardo. Edgar Allan Poe: um homem em sua sombra.
Cotia/SP: Ateliê Editorial, 2002.
CRUZ, Celso. Metamorfoses de Kafka. São Paulo: Annablume;
Fapesp, 2007.
DAGHLIAN, Carlos. Poe in Brazil. In: VINES, Lois Davis. Poe
Abroad. Iowa: University of Iowa Press, 1999.
GENETTE, Gerard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro
Faleiros. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.
HORTA, Patrícia. O potencial de recepção de Jorge Amado na
Alemanha. Dissertação (Mestrado em Letras). Departamento de
Letras Clássicas e Vernáculas, FFLCH-USP, São Paulo, 2002.
Sumário
Tradução e Autoria
| 211
KIEFER, Charles. A poética de Edgar Allan Poe. Letras de Hoje,
Porto Alegre, v. 44, nº 2, p. 11-15, abr./jun. 2009.
MENDES, Oscar. Influência de Poe no estrangeiro. In: POE, Edgar
Allan. Ficção completa, Poesia e Ensaios. Org. e trad. Oscar Mendes e
Milton Amado. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001, p. 53-56.
PINHO, Jorge Manuel Costa Almeida e. Mãos à obra... da
tradução. Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 2, n0 XXIV, p. 115128, 2009. Disponível em:
http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/tradução
POE, Edgar Allan. A carta roubada e outras histórias de crime &
mistério. Tradução de William Lagos. Porto Alegre: L&PM, 2006.
SANTAELLA, Lúcia. “Estudo crítico: Edgar Allan Poe (O que em
mim sonhou o que está pensando)”. In: Os melhores contos de Edgar
Allan Poe. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.
p. 139-189.
Sumário
212 | So b r e
os Autores, Organizadores e Revisor
Sumário
Tradução e Autoria
| 213
Ana Cristina Cardoso - Professora de língua francesa
e de teorias da tradução no Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal da Paraíba. Graduada em Direito e em Letras-Francês pela UFPB e mestre
em Letras pela mesma universidade, com a dissertação “Les
Serments de Strasbourg”: importância histórica e filológica na consolidação do francês.É doutoranda do Projeto Dinter em Estudos da Tradução UFSC/UFPB/UFCG, no qual desenvolve
uma pesquisa sobre história e análise de traduções brasileiras de fábulas La Fontaine.
Andreia Guerini – Possui pós-doutorado pela
Università degli Studi di Padova (2010) e doutorado em
Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina
(2001). É professora Associado 2 do Departamento de Língua
e Literatura Estrangeiras da Universidade Federal de Santa
Catarina. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em
Teoria Literária, Teoria, crítica e história da Tradução, Literatura Italiana, Literatura Traduzida, Literatura Comparada.
Desde 1999, vem se dedicando ao estudo da obra do escritor
italiano Giacomo Leopardi, especialmente os ensaios do
Zibaldone di Pensieri. Desde 2010, coordena o Grupo de
Pesquisa do CNPq de Estudos Leopardianos, com a participação de professores brasileiros e estrangeiros. Desde 2002,
é editora-chefe da revista Cadernos de Tradução (Qualis A1)
Sumário
214 | So b r e
os Autores, Organizadores e Revisor
e a partir de 2011 da revista online Appunti Leopardiani,
editada em parceria com pesquisadoras italianas. Coordena
vários acordos internacionais com a Itália e outros países.
Atua, desde 2011, como professora visitante do programa de
Doutorado em Letteratura, Storia della lingua e Filologia
italiana da Università per Stranieri di Siena/Itália. Participou
do projeto e do grupo de pesquisadores do PROCADCAPES entre a Pós-Graduação em Estudos Literários da
UFMG e a Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFSC
(2009-2012) e do DINTER-CAPES entre a Pós-Graduação em
Estudos de Tradução da UFSC e a Universidade Federal da
Paraíba (2010-2014). Fez parte da Diretoria da Associação
Brasileira de Pesquisadores em Tradução (ABRAPT), gestão
2011-2013 e da Diretoria da Associação Nacional de PósGraduação em Letras e Linguística (ANPOLL), gestão 20122014. Atualmente, é coordenadora da Pós-Graduação em
Estudos da Tradução (2013-2016), participa como representante da área de Literatura no Conselho Consultivo da
ANPOLL (2014-2018) e coordena o GT de Estudos da
Tradução da ANPOLL (2014-2016).
Araken G. Barbosa - Graduado em Letras pela
Universidade Católica de Pernambuco (1970), Mestrado
(1989) e Doutorado (2005) em Linguística Aplicada pela Universidade Federal de Pernambuco. Atuando principalmente
nos seguintes campos: Linguística Aplicada ao Ensino de
Línguas e Tradução, Estudos em Compreensão e Produção
Inter linguística, Análise do Discurso e Fonologia da Língua
Inglesa. Publicações recentes: Haicais em Inglês – Escrevendo
com restrições, A Jornada Cósmica dos Xamãs, Tópicos de
Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas e Tradução: Fronteiras
do Sentido na Linguagem.
Sumário
Tradução e Autoria
| 215
Artur Almeida de Ataíde - Graduado em Letras pela
UFPE (2005), mestre em Teoria da Literatura (2008) pelo
PPGL/UFPE, com trabalho sobre a poesia de Mário Faustino, e doutor em Teoria da Literatura (2013), também pelo
PPGL/UFPE, com tese sobre a importância das relações
entre forma, corpo e história para o acercamento crítico,
teórico e tradutório da poesia, com base numa leitura da
obra de Dante e de suas traduções. Tem publicações em
meios acadêmicos e jornalísticos: traduções de poesia e
artigos ou ensaios sobre poesia, tradução, crítica literária,
teoria da tradução e teoria da literatura.
Artur Perrusi - Com formação médico-psiquiatra, é
mestre e doutor em sociologia (UFPE e UFPB, respectivamente). É professor efetivo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Faz parte do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia da UFPE e é colaborador do Programa de PósGraduação em Sociologia da UFPB. Atua na área de Sociologia, com ênfase em três eixos: Sociologia da Saúde, Sociologia Política e Teoria Social.
Francisco Francimar de Sousa Alves - Doutor em
Estudos da Tradução (UFSC) pelo Projeto Dinter em Estudos
da Tradução (CAPES). É professor da área de Língua Inglesa
na Universidade Federal de Campina Grande/UFCG, Campus de Cajazeiras, onde ingressou em julho/2002.
Izabela Leal - Doutora em Letras pela UFRJ e professora de literatura portuguesa da Universidade Federal do
Pará e do Programa de Pós-Graduação em Letras (UFPA).
Organizou o livro Tradução literária, a vertigem do próximo
(com Ana Alencar e Caio Meira, 2011) e No horizonte do
Sumário
216 | So b r e
os Autores, Organizadores e Revisor
provisório: ensaios sobre tradução (com Walter Costa e Mayara
Ribeiro Guimarães, 2014). Coordenou o projeto de pesquisa
“Poetas em tradução no jornal Folha do Norte” que teve apoio
do CNPq. Publicou ensaios em várias revistas e periódicos
da área de literatura e tradução.
José Temístocles Ferreira Neto - É graduado em
Letras, pela Universidade Federal da Paraíba, onde desenvolveu sua pesquisa de mestrado em Linguística, com ênfase
em Aquisição da Linguagem e Linguística da Enunciação.
Possui doutorado também em Linguística, atuando principalmente em temas relacionados à Linguística da Enunciação, à Aquisição da Linguagem, distúrbios de linguagem
e ensino de língua. Foi revisor dos Referenciais Curriculares
da Educação do Estado da Paraíba. Foi professor substituto
no Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da UFPB
no período de 2010 a 2013 e lecionou, principalmente, as
disciplinas de Semântica, Teorias da Linguística e Estágio
Supervisionado no ensino de língua. Atualmente é professor
adjunto I da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Luciano Justino - Doutor pelo Programa de Pós Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de
Pernambuco (2005), com tese intitulada "Poiesis de campos:
poesia e poética em Augusto de Campos". Tem experiência
na área de Letras, pesquisando poesia e prosa contemporâneas, com ênfase na interface literatura/intermidialidade. Atualmente, é coordenador adjunto do Programa
de Pós-graduação em Literatura e Interculturalidade da
UEPB, líder do Grupo de Pesquisa "Interações Narrativas e
Socialização" e Bolsista de Produtividade em Pesquisa do
CNPq, com o projeto "Literatura de multidão: a potência dos
Sumário
Tradução e Autoria
| 217
pobres na literatura brasileira contemporânea". É autor do
livro "Literatura de multidão e intermidialidade: ensaios
sobre ler escrever o presente".
Marcelo Paiva de Souza - Bacharel em Letras (1993) e
mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília
(1996), doutor em Ciência da Literatura pela Uniwersytet
Jagielloński, de Cracóvia, Polônia (2000). Atua principalmente nas seguintes áreas: teoria da literatura, história da
literatura e do teatro brasileiros, história da literatura e do
teatro poloneses, literatura comparada e estudos da tradução. É professor do Departamento de Letras Estrangeiras
Modernas e do Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Paraná, e tradutor.
Marie-Hélène Catherine Torres – É Professora Associada da Universidade Federal de Santa Catarina onde atua
na graduação em Letras Estrangeiras e no Programa de PósGraduação em Estudos da Tradução. Possui Pós-Doutorado
pela Universidade de Minas Gerais (2011), Doutorado em
Estudos em Tradução - Katholieke Universiteit Leuven
(2001), Mestrado em Literatura pela Universidade Federal de
Santa Catarina (1995) e Licenciatura Dupla PortuguesFrancês pela Universidade Federal de Santa Catarina (1992).
Foi coordenadora da Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFSC de 2003 a 2007 e coordenadora da Especialização em Formação de Professores de Tradução Literária
de 2008 a 2009. Foi coordenadora do Doutorado Interinstitucional (DINTER) da PGET/UFSC com a UFPB e a UFCG
de 2010 a 2014. Foi vice-coordenadora do GT de Tradução da
ANPOLL em 2012-2014 e membro da DIretoria da ABRAPT
da gestão 2011-2013. Tem experiência na área de Letras, com
Sumário
218 | So b r e
os Autores, Organizadores e Revisor
ênfase em Literatura e em Tradução, atuando principalmente
nos seguintes temas: literatura nacional e literatura traduzida, teoria e história da tradução, literatura de língua
francesa traduzida no Brasil e estudos em tradução. Publicou
recentemente entre outros Variations sur l´étranger dans les
lettres: cent ans de traductions françaises des lettres
brésiliennes (2004, pela Artois Presses Université), Literatura
Traduzida/Literatura Nacional (em co-autoria, pela 7Letras
em 2008), o Dicionário de Tradutores Literários do Brasil (em
co-autoria online), Literatura e tradução : textos selecionados
de José Lambert (em co-autoria, pela 7Letras em 2011),
Traduzir o Brasil Literário: paratexto e discurso de acompanhamento, vol 1 (2011), Tradução dos Clássicos (em coautoria, Copiart, 2013), Traduzir o Brasil Literário : Historia e
crítica, vol.2 (2014). Traduziu A tradução e a letra ou o
albergue do longinquo de Antoine Berman (1a ed. em 2007 e
2a ed. em 2013). Como pesquisadora desenvolve um projeto
sobre as escritoras francesas tradutoras do século 18 com
verba do CNPq (edital universal 2013-2016).
Marta Pragana Dantas - Doutora em Literatura Francesa
(Paris III – Sorbonne Nouvelle) e Mestre em Teoria da Literatura (PPGL/UFPE), é professora efetiva da Universidade
Federal da Paraíba. Faz parte da linha de pesquisa Tradução
e Cultura do Programa de Pós-Graduação em Letras (UFPB),
tendo recentemente organizado o livro Tradução e transferências culturais (com Luciana C. Deplagne e Wibke A. Xavier,
2012) e publicado o capítulo “Le reclassement d’une tradition: la traduction du français dans le marché éditorial brésilien” (com Artur Perrusi) na coletânea Traduire la littérature et
les sciences humaines. Conditions et obstacles (organizada por
Gisèle Sapiro, 2012).
Sumário
Tradução e Autoria
| 219
Maura Regina da Silva Dourado - Professora da
Universidade Federal da Paraíba – João Pessoa. Possui Mestrado (1991) e Doutorado (1999) em Língua Inglesa pela Universidade Federal de Santa Catarina. Realizou estágio pósdoutoral na Universidade de Estocolmo (2005-2007), período
em que trabalhou com a transposição dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Estrangeira (1998) e dos Referencias Curriculares para o ensino médio de línguas estrangeiras do estado da Paraíba (2006) para uma série didática,
posteriormente adotada pela SEC-PB. É Coordenadora Operacional do Dinter em Estudos da Tradução em parceria
com a UFSC e a UFCG (2009-2014) e Coordenadora do subprojeto Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) Letras-Inglês (2014-2018). Realiza pesquisas
sobre o processo de ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras em contexto escolar no ensino básico, currículo e
formação de professores, avaliação e elaboração de materiais
didáticos sensíveis a diferentes estilos de aprendizagem,
neurociência e educação, abordagens críticas de ensino de
línguas e letramento escolar. Traduz textos da esfera da
espiritualidade.
Pedro Heliodoro Tavares - Professor da Área de
Alemão - Língua, Literatura e Tradução da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Doutor em
Psicanálise e Psicopatologia pela École Doctorale Recherches
en Psychanalyse da Université Paris VII (Paris-França) (20052008), bem como Doutor em Literatura pela Universidade
Federal de Santa Catarina (2003-2007). Realizou PósDoutorado junto à Pós-Graduação em Estudos da Tradução UFSC (2010-2011) investigando as traduções da obra de
Sigmund Freud. Coordena com Gilson Iannini a coleção
Sumário
220 | So b r e
os Autores, Organizadores e Revisor
"Obras Incompletas de Sigmund Freud" (Ed. Autêntica),
edição da qual é também o coordenador de tradução e
revisor técnico. Autor dos livros "Versões de Freud" (7Letras,
2011), "Fausto e a Psicanálise" (Annablume, 2012), "Freud &
Schnitzler" (Annablume, 2007) e coorganizador de "Tradução
e Psicanálise" (7Letras, 2013). Tem considerável experiência
como psicanalista e professor de Psicologia.
Sinara de Oliveira Branco – É Professor Adjunto da
Universidade Federal de Campina Grande, onde atua no
Curso de Graduação de Licenciatura em Letras-Inglês e no
Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino (POSLE) da Unidade Acadêmica de Letras. Possui Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Inglês, com pesquisa na
área de Tradução, da Universidade Federal de Santa Catarina (2007), Mestrado em Linguística (2002), também pelo Programa de Pós-Graduação em Inglês da UFSC, com pesquisa
na área de Tradução, e Licenciatura em Letras-Inglês pela
Universidade Federal da Paraíba Campus II (1993), atual
Universidade Federal de Campina Grande. É Coordenadora
da Pós-Graduação em Linguagem e Ensino (POSLE) da
UFCG de 2012 a 2014. Tem experiência na área de Letras,
com ênfase em Linguística e em Tradução, atuando principalmente nos seguintes temas: Tradução e Cultura, Tradução
Intersemiótica e Cinema, Abordagem Funcionalista da Tradução, Ensino de Tradução. É Conselheira da Secretaria dos
Órgãos Deliberativos Superiores (SODS) como representante
do Centro de Humanidades. É Coordenadora do LabInfo pelo POSLE. É líder do Grupo de Pesquisa Estudos da Tradução: Teoria, Prática e Formação do Tradutor, do DGP do
CNPq. Publica artigos em periódicos Qualis A e B, tendo recentemente organizado e publicado um capítulo no livro
Sumário
Tradução e Autoria
| 221
Pesquisas em Tradução (2014), uma parceria entre UFSC,
UFPB e UFCG. Como pesquisadora, desenvolve um projeto
sobre legendagem e tradução intersemiótica em filmes adaptados de clássicos da literatura. É tradutora de artigos científicos no par linguístico inglês-português e português-inglês.
Tito Lívio Cruz Romão - Doutorado em Estudos da
Tradução (UFSC), Mestrado em Tradução (Universität
Mainz), Especialização em Interpretação Simultânea e
Consecutiva (Universität Heidelberg) e Graduação em Letras
(francês, inglês e português/UECE). Coordenador de Assuntos Internacionais da UFC, Tradutor Público e Intérprete
Comercial de Alemão (JUCEC). Professor de alemão do Curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos
da Tradução da UFC. Tradutor de diversos livros, capítulos
de livros e artigos do alemão, francês e inglês.
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Tradução e Autoria
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224 | So b r e
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