José Rios
Leonardo Boccia
Natalia Coimbra de Sá
(orgs.)
DESAFIOS IntErmodais
Leituras da composição analógico-digital —
culturas, memórias e sonoridades
Simões Filho,Ba
2012
© 2012 by Autores
d441
Sumário
desaios intermodais: Leituras da composição
analógico-digital — culturas, memórias e sonoridades /
organizado por josé rios, Leonardo Boccia e natalia Coimbra. –
Simões filho: Kalango, 2012.
214 p.
ISBn 978-85-89526-42-5
1. Sociedade da Informação. I, rios, josé. II. Boccia Leonardo.
III. Coimbra de Sá, natalia.
Cdd 303.483
jovenice ferreira Santos – Bibliotecária CrB-5/1280
IntroduçÃo
7
rESuMoS/ABStrACtS
13
LEIturAS dA CoMpoSIçÃo SoMátICo-dIgItAL —
CuLturAS E SonorIdAdES
Leonardo Boccia
Introdução
Descrição dos termos
Multimodalidade/ Intermodalidade
Complexidade intermodal
Concordância de gêneros
Novos formatos para documentos acadêmicos
Variações somático-digitais
Conclusão
27
28
28
31
33
34
37
39
o uSo dE MúLtIpLAS pLAtAforMAS MIdIátICAS pArA A
ConStruçÃo dE projEtoS CoLABorAtIvoS: uma análise do
caso hitrECord.
Editora Kalango
rod BA 093 Km 07 Caixa postal 029
Simões filho - Bahia - CEp 43700-000
contato@editorakalango.com.br
www.editorakalango.com.br
natalia Coimbra de Sá
Introdução
A construção da hitRECord: ou como desenvolver uma
produtora cultural a partir de uma comunidade
online colaborativa?
A expansão da hitRECord: da internet aos festivais,
teatros, livrarias e televisão
Mídias sociais e mediação pública: a importância do
envolvimento ativo
Considerações inais
41
42
48
56
60
A MuLtIModALIdAdE tECno-CoMunICACIonAL nAS
IntErfACES do Corpo EXpAndIdo
AproprIAçÕES EX-votIvAS nA oBrA dE
fArnESE dE AndrAdE
juliana Cunha Costa
Camila Xavier nunes
Aline Aver vanin
Aninha duarte
Os desaios da linguagem multimodal na
intermodalidade tecnológica
O desenvolvimento de técnicas comunicacionais
para a ampliicação da intermodalidade informativa
As novas tecnologias e cognição corporalizada
O corpo como interface
63
64
69
72
MúSICA E podEr: algumas questões
josé rios
O poder da música
Poder político
O casamento: música e poder político
Ideias e questionamentos
81
85
88
95
janos Schettini
EX-votoS: comunicação, documentos e
memória social
pAtrIMônIo CuLturAL, EduCAçÃo pAtrIMonIAL E
CIdAdAnIA: relato de uma experiência com trabalhadores informais
no entorno da Igreja do Bomim
fernanda daniela Chaves rocha
giordanna Laura da Silva Santos
Contextualização
Patrimônio cultural, educação patrimonial e cidadania:
o caso do Bonim
Igreja do Bomim como patrimônio material e imaterial
Análise dos dados: pesquisa com os vendedores
informais do Bomim
Oicina com vendedores ambulantes do Bonim
141
145
149
152
155
rEfLEXÕES SoBrE AS rELAçÕES online: indivíduos, redes e
comunidades
Cecilia tamplenizza
AfECtoS SErtÂnICoS: A Ópera da Caatinga
Bênção
Apresentação: O Cantador e seu habitat
Primeiro Ato: Erudito e Popular, Sertão Armorial
Entre(ato): Estilos e Inluências
Ato Finale: Ópera da Caatinga
127
99
101
104
108
109
Do imaginário para a carne
De modelos de análise à padrões de atuação
De indivíduos à comunidades online
Das comunidades virtuais à sua concretização
Considerações inais
165
173
177
181
186
A ArtE dE ContAr hIStÓrIAS noS MuSEuS vIrtuAIS
Ivana Carolina Souza
113
josé Cláudio Alves de oliveira
Ex-voto como documento
117
O ex-voto e as conjunturas: relexos dos problemas sociais 121
Valores individuais e coletivos expressos
124
Quando começa o contar
Eu conto, ele conta, nós contamos histórias
Os museus também contam histórias
Contando histórias no ciberespaço
Musealizando histórias na web
191
195
198
202
205
INtRODuçãO
Este livro reúne ensaios de pesquisadores atuantes em áreas distintas do
conhecimento. o presente volume volta-se para as atuais mudanças culturais
provocadas por inovações tecnológicas e as consequentes revisões de padrões e
formas de produzir e organizar o conhecimento humano. É também o terceiro
volume de uma série de cadernos do grupo de pesquisa ECuS (Espetáculos
Culturais e Sociedade) que, desde 2009, seleciona e organiza os diversos ensaios por uma perspectiva interdisciplinar e ao mesmo tempo experimental.
o presente experimento surge do diálogo entre os grupos de pesquisa ECuS e
grEC (grupo de Estudos sobre Cibermuseus), cujos membros se concentram
em decifrar a complexidade simbólica de criações e produções na sociedade e
no ciberespaço — sua codiicação e decodiicação no mundo contemporâneo.
o interagir com modalidades diversas na composição de documentos
acadêmicos — procedimentos sempre mais usados para favorecer a convergência desses arquivos analógico-digitais em diversas plataformas de mídia — é
aqui descrito como desaio intermodal, i.e., as tentativas de superar limites impostos por cada modo de composição, sejam estes escritos, audiovisuais, sonoros ou gestuais. Com este livro, os autores propõem dialogar com lexibilidade
interdisciplinar sobre a interação de modos visuais e sonoros agregados à escrita criando desaios intermodais que vão para além do texto quando alcançam
as plataformas da mídia digital e a rede mundial de computadores.
Baseados na discussão de temas complexos e contrastantes, as composições deste livro se articulam por uma peculiar irregularidade interdisciplinar
— característica contemporânea da incerteza que nos cerca, na incansável disputa entre teorias e práticas. o ágon entre os estudiosos citados nos capítulos
desta coletânea é parte essencial para os conlitos que envolvem a busca de
cada autor por algo novo e ao mesmo tempo original. Enredados na malha
virtual que cerca boa parte do mundo contemporâneo em contraposição à necessidade de viver a experiência diária da ação corpórea, a maioria das pessoas
tem mudado de hábitos vivendo transformações culturais intensas e contínuas.
Essa ramiicação que se estende para além do corpo e toma forma no ambiente
virtual e vice versa caracteriza a faculdade de cada indivíduo de interagir por
modos diversos em busca da experiência plena.
desta maneira, com suas experiências de pesquisa, os autores aqui selecionados, com a diversidade dos temas propostos, contribuem para a disputa
altamente competitiva do conhecimento versus formas claras de organização e
rESumOS/AbStrActS - 7
transmissão do mesmo para os diversos níveis de recepção. nesse transporte
de um plano intelectual avançado e convencionado como acadêmico para formatos acessíveis a todos — incluso crianças e pessoas não iniciadas — a intermodalidade pode ser o método de composição atual para que temas complexos
alcancem dimensão lexível necessária à transmissão desse conhecimento em
níveis variados. o termo intermodal designa um tipo de transporte de pessoas
ou mercadorias feito por dois ou mais modais. Aqui, no entanto, serve para
designar o transporte de dados de pesquisas e formas diversas de composição
de dois ou mais modi.
Com o primeiro ensaio deste livro, apresento as ideias que impulsionaram a realização da presente publicação. Além de deinir termos e conceitos
dessa nova etapa da pesquisa, analiso procedimentos da ação psicofísica de colher e produzir signos fora do ambiente virtual e sua transposição por meio da
linguagem binária dos computadores para o ciberespaço. Enquanto, em seu
artigo, natalia Coimbra de Sá propõe “mapear e analisar exemplos de sucesso
de comunidades online pelo mundo que estimulam processos de criação participatórios e desaiam as formas de produção tradicionais da indústria cultural
e do entretenimento,” josé rios volta-se para o “poder da música e sua representatividade enquanto elemento atuante em favor da legitimação do poder
político de um governante,” esse poder de convencimento encontra na retórica
musical um forte aliado. A música, além de ser meio de transporte de uma
ideologia, é também transportada em carros de som para os diversos bairros de
uma cidade durante o período da campanha eleitoral.
Membro do grupo ECuS e doutoranda da Escola de humanidades e Ciências Sociais da jacobs university de Bremen na Alemanha, juliana Cunha
Costa, junto a duas colegas, Camila Xavier nunes e Aline Aver vanin, discute
o luxo de conteúdos textuais, visuais e sonoros e de como esses conteúdos se
combinam em mensagens multimodais. de acordo com as autoras, “o entendimento dessa multimodalidade é essencial para fomentar a discussão acerca
do papel da cognição humana.” As contribuições dos pesquisadores, membros
do grupo ECuS, se encerram com o ensaio de janos Schettini, mestrando do
programa de pós-graduação em Artes Cênicas, com estudos da ópera Auto da
Catingueira do compositor Elomar figueira de Mello, em que janos propõe
“analisar o que caracteriza essa ópera da caatinga e como ela se articula com
costumes anteriores do gênero.”
8
o encontro dos grupos de pesquisa ECuS e grEC se realiza com os
ensaios que seguem. o professor josé Cláudio Alves de oliveira, em seu artigo,
“apresenta o ex-voto, objeto colocado, através do ato da desobriga, em santuários católicos, em especíico, nas salas de milagres” como estudo que elucida
questões socioculturais. Enquanto Aninha duarte, em seu “ensaio crítico, guiado de análises formal, iconográica e iconológica,” discute acerca das apropriações ex-votivas na obra de farnese de Andrade, Cecilia tamplenizza propõe
“uma relexão que visa evidenciar como a internet transforma as maneiras dos
homens se relacionarem.” Em suas relexões sobre as relações online, Cecilia
discute acerca das “transformações reais” nos indivíduos conectados à internet
e considerando a web um espaço de acesso individual, se pergunta: “até que
ponto podemos ainda falar de uma dimensão comunitária?”
patrimônio cultural, educação patrimonial e cidadania são temas discutidos por fernanda daniela Chaves rocha e giordanna Laura da Silva Santos,
cujo artigo é um relato de experiência do “projeto de Extensão Inclusão Social
e Capacitação digital no entorno do Santuário de São Lázaro, Salvador, Bahia.”
As contribuições do grupo de pesquisa grEC se encerram com o artigo de
Ivana Carolina Souza que propõe uma relexão sobre “a arte de contar histórias
nos museus virtuais.” A autora conclui que: “os museus virtuais emergem como
alternativas de elaboração coletiva do conhecimento, de socialização e intercâmbio de informações, saberes e culturas, e principalmente como um reduto
potencialmente interativo e compatível às necessidades que emergem no contexto educacional contemporâneo.”
A diversidade dos temas apresentados neste livro torna possível uma
série de interfaces entre as pesquisas em curso. no afã de decifrar conexões,
condições e contextos, o desaio intermodal nos arremessa da ação corpórea
para as redes virtuais, onde, traduzidos em dígitos, tentamos ocupar lugar de
destaque no ciberespaço. Entretanto, a disputa para alcançar novos territórios
no ambiente virtual revela uma arena de combate feroz, onde criatividade e conhecimento interagem em produções multimodais que seduzem e conquistam
pessoas. As ideias transitam do corpo para as mídias e vice versa, mas sua convergência para diversas plataformas de mídia depende de ações intermodais e
estas precisam ser ensaiadas no âmbito educacional em todos os níveis.
Leonardo v. Boccia
Salvador-Bahia, novembro de 2012
rESumOS/AbStrActS - 9
rESumOS/ASbtrActS
LEItuRAS DA COMPOSIçãO SOMátICO-DIgItAL –
CuLtuRAS E SONORIDADES
Leonardo Boccia1
Resumo: Este artigo volta-se para a complexidade da criação somático-digital e sua (de-) codiicação no mundo contemporâneo. o entrelaçamento de
modalidades diversas na composição de textos acadêmicos — procedimentos sempre mais usados para favorecer a convergência de arquivos digitais
em diversas plataformas de mídia — é aqui lançado como desaio intermodal, i.e., ensaios e tentativas para superar os limites impostos por cada modo
de composição, sejam estes escritos, audiovisuais, sonoros ou gestuais. Com
este artigo, procuro dialogar com lexibilidade interdisciplinar acerca do
surgimento de novos formatos para documentos acadêmicos. partindo da
interação de modos visuais e sonoros agregados à escrita criam-se desaios
intermodais que vão para além do texto quando alcançam as plataformas da
mídia digital e a rede mundial de computadores.
Palavras-chave: organização multissensorial do saber; Composição intermodal;
Criação somático-digital; Interdisciplinaridade, desaios intermodais.
Abstract: his article turns to the complexity of somatic-digital creations
and its (de-) coding in the contemporary world. he interweaving of different modalities in the composition of academic texts — procedures always more used to promote the convergence of digital iles on various media
platforms — is here launched as intermodal challenge, i.e., rehearsal and
attempts to overcome limitations imposed by each mode of composition,
whether written, audiovisual, sound or gesture. With this article, I try to dialogue with interdisciplinary lexibility about the emergence of new formats
for academic documents. Starting from the interaction of visual and audio
modalities added to the written texts, it creates intermodal challenges that
go beyond the text when they reach the digital media platforms and World
Wide Web.
Keywords: Multisensory organization of knowledge; Intermodal composition;
Somatic-digital creations; Interdisciplinarity, Intermodal challenges.
1. professor Associado da universidade federal da Bahia. E-mail: lvboccia@uba.br
rESumOS/AbStrActS - 13
O uSO DE MúLtIPLAS PLAtAFORMAS MIDIátICAS
PARA A CONStRuçãO DE PROJEtOS COLABORAtIVOS:
uma análise do caso hitRECord
natalia Coimbra de Sá
2
Resumo: Este artigo é resultado de uma pesquisa exploratória sobre a hitrECord – uma produtora cultural participativa criada pelo ator/diretor/
produtor joseph gordon-Levitt que se iniciou como uma comunidade online de projetos colaborativos. Este trabalho é parte de um estudo mais amplo
que tem por objetivo mapear e analisar exemplos de sucesso de comunidades online pelo mundo que estimulam processos de criação participatórios
e desaiam as formas de produção tradicionais da indústria cultural e do
entretenimento. nesta primeira comunicação de pesquisa, são apresentados
os estágios de transformação da hitrECord desde sua origem até os dias
atuais, através de uma perspectiva sobre o peril midiático de seu fundador
“regular joe” e como este desempenhou um papel de destaque para o seu
desenvolvimento.
Palavras-chave: mídias sociais; comunidade online; projetos colaborativos;
cultura participatória; indústria do entretenimento.
Abstract: his paper is the result of an exploratory research I have conducted on hitrECord – a collaborative production company created by actor/
director/producer joseph gordon-Levitt that started as a non-professional
online crowdsourcing community. he research on hitrECord is part of a
broader study that aims to map and analyze successful examples of worldwide online communities fostering participatory and creative processes that
challenge traditional entertainment forms of production. however, in this
irst communication, I present a perspective on how his socially mediated
public persona “regularjoE” plays a key role in its development.
Keywords: social media; online community; crowdsourcing; participatory
culture; entertainment business.
2. doutora em Cultura e Sociedade pela universidade federal da Bahia (ufBA). professora do departamento
de Ciências humanas I (Salvador) da universidade do Estado da Bahia (unEB). E-mail: natalia.coimbra@gmail.
com
14
A MuLtIMODALIDADE tECNO-COMuNICACIONAL
NAS INtERFACES DO CORPO EXPANDIDO
juliana Cunha Costa 3
Camila Xavier nunes4
Aline Aver vanin5
Resumo: o desenvolvimento das tecnologias da comunicação é responsável
pelo rápido e amplo compartilhamento de informações e também por signiicativas mudanças de paradigmas conceituais e técnicos. o luxo de conteúdos textuais, visuais e sonoros se combina em mensagens multimodais que
inluencia o comportamento dos indivíduos por meio de modos diversos de
dizer seu mundo. o entendimento dessa multimodalidade é essencial para
fomentar a discussão acerca do papel da cognição humana, que está integrada a um grande luxo de informação em um duplo movimento: ao mesmo
tempo que ressigniica, é moldada pelas próprias experiências.
Palavras-chaves: tecnologia; comunicação; corporalidade; linguagem; multimodalidade.
Abstract: he development of communication technologies is responsible
for the fast and widespread sharing of information and also for meaningful conceptual and technical paradigm changes. he low of textual, visual
and audible contents is combined in multimodal messages that inluence
the individuals’ behavior through diferent ways of talking about the world.
he understanding of this multimodality is essential to foster the discussion about the role of human cognition, which is integrated to a large low
of information in a double movement: it ressigniies and is shaped by their
own experiences.
Keywords: technology; communication; embodiment; language;
multimodality.
3 Mestre em geograia pela universidade federal da Bahia/Brasil, doutoranda pelo programa de pós-graduação
em humanidades Interculturais da Escola de humanidades e Ciências Sociais da jacobs university Bremen/
Alemanha. Contato: hello.juliana@gmail.com.
4 Mestre em geograia pela universidade federal da Bahia/Brasil, doutoranda pelo programa de pós-graduação
em geograia da universidade federal do rio grande do Sul. Bolsista Capes. Contato: camilagauche@gmail.com.
5 Mestre e doutora em Letras, ênfase em Linguística, pela pontifícia universidade Católica do rio grande do
Sul. Contato: aline.vanin@ymail.com.
rESumOS/AbStrActS - 15
MúSICA E PODER: Algumas questões
josé rios6
Resumo: Este artigo pretende trazer à tona alguns questionamentos relacionados ao poder da música e sua representatividade enquanto elemento
atuante em favor da legitimação do poder político de um governante, bem
como despertar a simpatia entre os ouvintes através de elementos musicais
familiares ao imaginário coletivo dos sujeitos objetivando o esvaziamento
do senso crítico. Essa estratégia pode representar certo encurtamento de
caminhos para que um postulante a cargo eleitoral alcance o poder. A retórica musical fará parte do escopo desse trabalho para mostrar que não só
a palavra escrita e falada pode persuadir. Aspectos de cunho psicológicos
são imprescindíveis para sublinhar a gênese da música e os ambientes para
o qual o espectador pode ser transportado, mesmo de forma imaginária, e
o como seus sentimentos podem ser despertados no sentido de uma luta
política ou de um bem estar transmitido de forma que o individuo sinta-se
atraído com a possibilidade de ser conduzido para a ação política mesmo
sem se dar conta do que o está levando a agir. por im, esse trabalho é parte
de nossa dissertação de mestrado intitulada Compassos Chave na politica:
música e marketing eleitoral na Bahia em 2008 e 2010.
Palavras-Chave: Música, poder, política, retórica musical.
the environments to which the viewer can be transported, even if only in an
imaginary way, and how their feelings can be awakened towards a political
struggle or a welfare transmitted so that the individual feel attracted by the
possibility of being led into political action without even realizing what is
taking him into action. finally, this work is part of our dissertation entitled
Key Measures on politics: music and electoral marketing in Bahia in 2008
and 2010.
Keywords: Music, power, politics, musical rhetoric.
Abstract: his article aims to bring to light some questions related to the
power of music and its representation as an active element in favor of the
legitimacy of the political power of a representative as well as to arise sympathy among listeners through musical elements which are familiar to the
collective imagination of individuals aiming to emptying the critical sense.
his strategy may represent certain ways of shortening the paths for a candidate to reach electoral power. he musical rhetoric will be part of the scope
of this paper to show that not only written and spoken word can persuade.
psychological aspects are essential to underline the genesis of the music and
6. doutorando em Cultura e Sociedade pelo Instituto de humanidades, Artes e Ciências professor Milton Santos
(IhAC) da universidade federal da Bahia (ufBA). Mestre pelo mesmo programa. graduado em comunicação
Social. Membro do grupo de pesquisa Espetáculos Culturais e Sociedade - ECuS (ufBA/Cnpq). Atua em
estudos voltados para o campo. principais interesses: culturas, artes, estudos da propaganda político eleitoral e
governamental, música, teoria dos afetos e produções audiovisuais.
16
rESumOS/AbStrActS - 17
AFECtOS SERtÂNICOS: A Ópera da Caatinga
EX-VOtOS: Comunicação, documentos e memória social
janos Schettini7
josé Cláudio Alves de oliveira9
Resumo: A teoria dos afetos é o estudo da representação dos afetos (alegria,
majestade, tristeza) através da música. o termo Afectos sertânicos faz referência a esta teoria e ao universo do sertão, o imaginário sertanez, no qual
habita a obra de Elomar figueira Mello. Elomar é um compositor/intérprete
cuja obra abrange óperas, antífonas, cantatas e concertos. Apesar da inluência da música erudita europeia, o compositor sempre articula com gêneros
e formas musicais naturais do povo sertanez8. recupera mitos, linguagens e
cenários medievais, ligando memórias de outras eras com as formas populares do sertão. neste artigo, me proponho a analisar o que caracteriza essa
ópera da caatinga e como ela se articula com costumes anteriores do gênero.
Palavras-chave: Ópera; Elomar; sertanez; teatro e música; dramaturgia musical.
Resumo: o presente texto apresenta o ex-voto, objeto colocado, através do
ato da desobriga, em santuários católicos, em especíico, nas salas de milagres. Aqui, um recorte das produções do projeto Ex-votos do Brasil (20062011), vinculado ao Cnpq, que incursionou em pequenas e grandes salas
de milagres de santuários brasileiros, espaços sagrados que trazem, dentre
suas riquezas, a natureza dos ex-votos, objetos que testemunham a fé e que
apresentam histórias de vidas, retratadas em pinturas, fotograias, bilhetes,
esculturas, objetos orgânicos e objetos industrializados, apresentando situações individuais e coletivas, com questões que se voltam à saúde, ao medo,
ao prazer, à felicidade, tristeza, enim, situações que, além de especiicar a
natureza do indivíduo relete na história local, regional e nacional.
Palavras-chave: Ex-voto, documento, comunicação, memória social.
Abstract: he theory of afections is the study of the representation of afect
(joy, majesty, sadness) through music. he term “Sertânicos afects” refers to
this theory and the sertão universe, the sertanez imaginary, wherein dwells
Elomar figueira Mello´s work. Elomar is a composer/performer whose
work encompasses operas, anthems, cantatas and concerts. despite the inluence of European classical music, the composer always articulates with
natural musical forms and genres of sertanez people. he retrieves myths,
medieval languages and scenarios, linking memories of another era with the
popular forms of the dwells. In this article, I propose to analyze what characterizes this caatinga opera and how it articulates with previous customs of
the genre.
Keywords: opera; Elomar; sertanez; theater and music; musical dramaturgy.
Abstract: his paper presents the ex-voto, object placed, through the religious act in Catholic sanctuaries, in particular, in the halls of miracles. here,
an excerpt productions project Ex-votos from Brazil (2006-2011), linked to
Cnpq, which researched in small and large rooms miracles Brazilian sanctuaries, sacred spaces that bring, among its riches, the nature of ex-votes,
objects that testify to faith and shows stories of lives portrayed in paintings,
photographs, letters, sculptures, organic and industrial objects, presenting
individual and collective situations, with questions that focus on health, fear,
pleasure, happiness, sadness, so, situations that, in addition to specifying the
nature of the individual in history that relects local, regional and national
stories.
Keywords: Ex-voto, document, communication, social memory.
7 . Mestrando do programa de pós graduação em Artes Cênicas (ppgAC) na universidade federal da Bahia
(ufBA).
9 doutor em Comunicação pela universidade federal da Bahia (ufBA). professor Adjunto da ufBA.
8. É o habitante do “estado” sertão. Serve também para diferenciar da música das duplas sertanejas, segundo
Elomar.
18
rESumOS/AbStrActS - 19
APROPRIAçÕES EX-VOtIVAS
NA OBRA DE FARNESE DE ANDRADE
PAtRIMôNIO CuLtuRAL, EDuCAçãO PAtRIMONIAL E
CIDADANIA: Relato de uma experiência com trabalhadores
informais no entorno da Igreja do Bomim
Aninha duarte – Ana helena da Silva delino duarte10
Resumo: A obra desenvolvida por farnese de Andrade em diversos momentos é construída por meio de apropriações de objetos ex-votivos, que
são re-habitados na maioria de suas assemblagens ou re-apresentados bidimensionalmente, utilizando-se da linguagem pictórica. dado o viés autobiográico explícito que suas obras possuem, o presente texto faz uma
apresentação sumária do artista e aponta algumas nuances de seu processo
criativo e de seu repertório poético. de forma detida apresenta-se um ensaio
crítico, guiado de análises formal, iconográica e iconológica. sobre a obra
intitulada “Anunciação” datada de 1989, temática essa diversas vezes utilizada por farnese de Andrade.
Palavras-chave: Assemblage; ex-voto; objeto; religiosidade
Abstract: he work developed by farnese de Andrade at various times is
constructed by means of ex-appropriation of votive objects, which are re-inhabited in most of their “assemblages” or , in other cases, re-presented
two-dimensionally, using the pictorial language. given the autobiographical
explicit style that his works have, this paper makes a brief presentation of
the artist and points out some nuances of his creative process and his poetic
repertoire. So detained presents a critical essay, guided by formal and icnograical-iconological analysis about the opus titled “Annunciation” dated
1989 (the issue related to religiousness was several times used by farnese
de Andrade .
Keywords: Assembly, ex-voto; object; religiosity
10. Aninha duarte – Ana helena da Silva delino duarte Artista plástica, professora da universidade federal
de uberlândia - ufu /Mg / Brasil. doutora em história Social puC/Sp – Com estágio na universidade de
Évora (uE) / portugal, Mestre em história e Especialista em Ensino de Arte (ufu). pesquisadora dos núcleos
de pesquisa nuppE (ufu) nupEA (ufu), grEC (ufBA), nEhSC (puC/Sp), nEhSC (ufu - uberlândia).
anaduarte@ufu.br .
fernanda daniela Chaves rocha, universidade federal da Bahia (ufBA) 11
giordanna Laura da Silva Santos, universidade federal da Bahia (ufBA) 12
Resumo: Este artigo é um relato de experiência do “projeto de Extensão Inclusão Social e Capacitação digital no entorno do Santuário de São Lázaro, Salvador, Bahia: Memória Social, patrimônio Cultural e Cidadania”, que abrange
também o Santuário do Bomim, localizado na mesma cidade. o objetivo é
promover a cidadania, por meio da inclusão social e capacitação digital, bem
como possibilitar aos moradores dos bairros de São Lázaro e Bonim o aprendizado da educação patrimonial, de noções de informática e do universo da
web 2.0, como mídias sociais. para a presente análise, aborda-se um desdobramento prático do projeto, que foram as oicinas de capacitação sobre patrimônio, turismo e comunicação realizadas com trabalhadores informais localizados no entorno do Santuário do Bomim.
Palavras-chave: patrimônio Cultural; Cidadania; Inclusão Sociocultural;
Abstract: his paper is an experience report, and part of the project “projeto de Extensão Inclusão Social e Capacitação digital no entorno do Santuário de São Lázaro, Salvador, Bahia: Memória Social, patrimônio Cultural
e Cidadania”, which also covers the Bomim’ Church, located in the same
city. he aim is to promote citizenship through social inclusion and capacity
digital and to enable the residents of the neighborhoods of São Lázaro and
Bonim learning the heritage education, notions of computer science and
the universe of Web 2.0 as social media. for this analysis, we report a practical of the project, which was the training workshops about tourism, heritage
and communication with informal workers located in the surroundings of
the Bomim’s Church.
Keywords: Cultural heritage; Citizenship; Sociocultural’s inclusion.
11 pós-graduanda do Curso de Especialização em Metodologia do Ensino na Educação Superior, pela facinter.
Mestre pelo programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade, pela universidade federal da Bahia (ufBA);
Bacharel em turismo, pela universidade federal da paraíba (ufpB).
12 doutoranda do programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade, pela universidade federal da Bahia
(ufBA); Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea, pela universidade federal de Mato grosso (ufMt);
graduada em Comunicação Social - jornalismo, pela ufMt.
20
rESumOS/AbStrActS - 21
REFLEXÕES SOBRE AS RELAçÕES online: Indivíduos,
redes e comunidades
Cecilia tamplenizza13
Resumo: neste artigo propomos uma relexão que visa evidenciar como a
internet transforma as maneiras dos homens se relacionarem. A internet é
aqui vista como um espaço para a produção cultural e como o resultado
dos sonhos e das aspirações do homem ocidental, o ciberespaço, que hoje
inluencia e materializa os desejos do mesmo homem. Modelos de interpretação da sociedade se convertem em padrões de relacionamento. palavras
como compartilhar e personalizar se tornam sempre mais necessárias e frequentemente atreladas à dimensão online. A web é um espaço ao qual acessamos de uma maneira solitária, em que criando os nossos peris de usuários
reletimos sobre nossa personalidade: até que ponto podemos ainda falar de
uma dimensão comunitária?
Palavras-chave: Cibercultura, ciberespaço, comunidade, rede, relacionamento.
Abstract: In this article we propose to think about the way in which Internet
transforms men’s relationship. here we understand the Internet as a space
for cultural production, the cyberspace, and as the result of desires and imaginations of the occidental man. he cyberspace today inluences and makes
possible the desires of that man. Models to interpretate the society become
patterns for relationship. Words as share and customize become ever more
necessary and oten linked to the online dimension. he web is a space to
which we access in a lonely way, and in which, to create proiles of our users,
we relect on our personality: shall we still speak of community dimension?
Keywords: Cyberculture, cyberspace, community, network, relationship.
A ArtE dE ContAr hIStÓrIAS
noS MuSEuS vIrtuAIS
Ivana Carolina Souza14
Resumo: o presente artigo se apresenta como um recorte teórico de
uma pesquisa de mestrado que está em fase de análise e discussão teórica. neste sentido, a nossa intenção é apresentar o construto de algumas
categorias de análise do referido estudo. para tanto, buscamos aqui apresentar de que maneira os museus virtuais potencializam novas formas de
contar histórias. deste modo, realizamos uma trajetória contextualizada
do ato de contar histórias; das formas de contar inerentes aos museus e,
por im como estas categorias se conectam no ciberespaço, potencializando processos formativos e educativos.
Palavras-chave: Museus virtuais; histórias; Ciberespaço.
Abstract: his article is presented as a theoretical framework of a research that is being analyzed and theoretical discussion. In this sense,
our intention is to introduce the construct of some categories of analysis of the study. to this end, we present here the ways in wich virtual
museums leverage new forms of storytelling in this way, we conducted
a contextualized history of storytelling, the ways of telling inherent in
museums, and inally, how these categories connect in cyberspace, increasing educational and training processes.
Keywords: virtual Museums; Stories; Cyberspace.
14. Bacharel em turismo, Mestranda do programa de pós graduação em Educação e Contemporaneidade
(unEB); professora universitária e pesquisadora do grupo de pesquisa Comunidades virtuais (unEB) e do
grupo de Estudos em Cibermuseus (ufBA). Atua no segmento de jogos eletrônicos, museus virtuais, educação
turística e patrimonial. E-mail: ivanacarolina.souza@gmail.com
13. Mestre do programa Mutidisciplinar em Cutura e Sociedade da universidade federal da Bahia. título da
dissertação: “Capoeira angola nas redes sociais online: comunidades, memória e tradição no facebook e orkut.“
possui graduação em Comunicação Audiovisual - universidade pompeu fabra - Espanha (2007) e graduação em
Scienze umanistiche per la Comunicazione - universidade Statale de Milão - Itália (2005). tem experiência na
área de Comunicação, com enfoque em cibercultura, redes sociais na internet, capoeira angola e cultura das novas
tecnologias. E-mail: ceciliatamplenizza@gmail.com
22
rESumOS/AbStrActS - 23
DESAFIOS IntErmo dais
dESAfIoS IntErModAIS: Leituras da composição
somático-digital — culturas e sonoridades
Leonardo Boccia
Introdução
desaios Intermodais cercam a arena da produção acadêmica. Interação
e convergência são chaves mestras na inovação e distribuição do conhecimento em diversas plataformas de mídia. o ato somático de compor, considerado
aqui como ação psicofísica de colher e produzir signos fora do ambiente digital
se completa com a digitalização dos mesmos por meio da linguagem binária
dos computadores. Alimentados por hipertextos, imagens, imagens em movimento, gestualidade, som, música, simulações em 3d, telas tácteis, múltiplos
sensores interativos, e outras possíveis combinações, essas criações saem do
papel e alcançam mais plataformas de mídia e, ao mesmo tempo, modiicam
intensamente culturas e hábitos na contemporaneidade.
para jenkins (2009): “Estamos realizando essa mudança primeiro por
meio de nossas relações com a cultura popular, mas as habilidades que adquirimos nessa brincadeira têm implicações no modo como aprendemos, trabalhamos, participamos do processo político e nos conectamos com pessoas de
outras partes do mundo” (p. 51). Além disso, surgem implicações que interessam diretamente à universidade em seus currículos, bem como a produção
acadêmica como um todo.
Considerada ação efetiva para alcançar novo patamar de conhecimento,
a interdisciplinaridade leva à interação de grupos de pesquisa e estudiosos em
áreas distintas do saber. grande parte desse conhecimento foi tradicionalmente
transposta para textos e distribuída em formato de livros. Atualmente, o livro
resulta das digitalizações de textos que, além de imagens, pode conter referências e endereços eletrônicos de sítios na Internet, para acessar vídeos, músicas,
gravações de textos, entre outros elementos intermodais.
portanto, o livro assume posição estratégica que favorece a convergência e se qualiica como meio de múltiplas vias de comunicação. A composição
intermodal tem como parte essencial a publicação do texto escrito interligado
a outros modos possíveis para alcançar a diversidade cultural dos indivíduos
dentro e fora da universidade. Esses modi podem ser lidos, ouvidos, vistos,
combinados, revistos e retocados por todos os que participam dessas leituras-decodiicações e oferecem a possibilidade de inovar o dialogo entre gerações
de estudantes e professores.
Descrição dos termos
Multimodalidade/ Intermodalidade
Apesar do crescente interesse nos sistemas multimodais, em geral, persiste certa confusão sobre o que é de fato multimodalidade. Esta
descrição de multimodalidade não pretende esgotar o leque de combinações possíveis, no entanto se torna necessária para deinir melhor os
demais termos e conceitos deste artigo.
Com o termo multimodalidade entendemos as combinações de fala,
texto, hipertexto, áudio, gestos, desenhos, imagens, imagens em movimento,
processamento de imagem, simulações em 3d e outras modalidades (modi)
de expressão e elaboração de sistemas interativos. para as composições intermodais, entretanto, basta alternar dois modi distintos, como: texto e imagens,
imagens e som ou ainda, a gravação áudio de um texto; combinações feitas de
poucos modi interligados e essa interação modal pode se dar em níveis diversos
de complexidade; deste tópico detalharemos alguns critérios básicos a seguir.
A combinação de mais modalidades de comunicação é aqui considerada multimodal. Algumas combinações multimodais são mediadas por equipamentos eletrônicos, mídias de telas e computadores. A interação humana com
computadores e sistemas de processamento de sinais leva à criação de novas
formas expressivas de comunicação, em que a dimensão geralmente discursiva
do texto se funde às modalidades não-discursivas das imagens, sons e gestos.
o conceito de multimodalidade é considerado essencial para estudiosos de outras disciplinas. por exemplo, gunther Kress, professor de semiótica
e educação da universidade de Londres; com o livro Multimodality (2010),
entre outras publicações anteriores, desde 1976, elabora conceitos ligados à
linguagem e à disciplina da semiótica social para entender e explicar os processos da comunicação contemporânea.
Inspirada principalmente nas ideias de Susanne Langer (1957) e nas teorias de Antonio damásio (1990, 1994, 2001, 2003), outra linha de pesquisa
aborda a questão multimodal como combinação retórica discursiva e não-discursiva, i.e., da simbolização não-discursiva como expressão mais abrangente
para fazer sentido do que o texto discursivo em si. Murray (2009) adverte:
“Ao invés de considerar a simbolização sendo a primeira comunicação,
na ausência de ruído, eu preiro pensar a simbolização como englobando
todos os nossos poderes para criar e manipular signiicado e emoções
através de uma ampla variedade de símbolos, para além da palavra discursiva” (MurrAY, 2009, p. 12-13). 1
outra valiosa contribuição sobre procedimentos intermodais pode ser
lida no artigo de Cynthia Selfe (2009) nele, a autora chama a atenção para
a dimensão audível (aurality) como modalidade pouco explorada na
composição acadêmica:
Meu objetivo inal em explorar aurality como um caso em questão não
é fazer um / ou argumentos para sugerir que devemos prestar mais
atenção à aurality do que à escrita. Em vez disso, eu sugiro que precisamos prestar atenção para ambas, e para outras modalidades de compor,
também. Espero encorajar os professores a desenvolver uma compreensão cada vez mais sensata de toda uma gama de modalidades e recursos
semióticos em suas atribuições e, em seguida, para fornecer aos alunos
as oportunidades de especialização em desenvolvimento, com todos os
meios disponíveis de persuasão e de expressão, de modo que possam
trabalhar como cidadãos alfabetizados em um mundo onde as comunicações atravessam fronteiras geopolíticas, culturais e linguísticas e que
1 rather than consider symbolization to be primarily communication in the absence of noise, I prefer to think
of symbolization as encompassing all of our powers to create and manipulate meaning and emotions through a
wide variety of symbols beyond the discursive word (MurrAY, 2009, p. 12-13).
DESAFIOS IntErmodais
- 29
sejam enriquecidos ao invés de diminuidos pela dimensionalidade semiótica (SELfE, 2009, p. 618). 2
Como parte integrante do artigo, à página 619, Selfe convida o leitor a
deixar o texto e visitar um sito na Internet, em que estão disponíveis arquivos
de música e falas gravadas em Mp3: http://people.cohums.ohio-state.edu/
selfe2/ccc/. os exemplos áudio integram-se e complementam o artigo de Selfe
e, de fato, os arquivos audíveis e um poema gravado transformam o escrito em
documento intermodal de extrema sensibilidade e criatividade, além de enriquecer as ideias da autora e a interação multissensorial dos estudantes e demais
interessados. Essa dimensão audível, ainda pouco explorada em sala de aula e
na composição de trabalhos acadêmicos, é considerada central em nossos estudos e precisa ser desenvolvida em ensaios e experimentos acadêmicos.
As Chaves Audíveis3 merecem ser estudadas, selecionadas, gravadas e
distribuídas na Internet ou em gravações anexas aos textos e a composição
intermodal ser parte do dia-a-dia de estudantes e professores. Chaves Audíveis são arquivos sonoros interligados com os estudos acadêmicos e podem
ser produzidos, gravados e selecionados, mas se coniguram principalmente
em ações educativas conscientes, para ensaiar a dimensão multissensorial, na
construção-composição de documentos intermodais e na apresentação de estudos realizados durante os diversos cursos.
Complexidade intermodal
o desenvolvimento das artes e os avanços da tecnologia propiciam novos conceitos estéticos, poéticos, sensoriais, técnico-sintéticos, de manipulação
2. My ultimate goal in exploring aurality as a case in point is not to make an either/or argument—not to suggest
that we pay attention to aurality rather than to writing. Instead, I suggest we need to pay attention to both writing
and aurality, and other composing modalities, as well. I hope to encourage teachers to develop an increasingly
thoughtful understanding of a whole range of modalities and semiotic resources in their assignments and then to
provide students the opportunities of developing expertise with all available means of persuasion and expression,
so that they can function as literate citizens in a world where communications cross geopolitical, cultural, and
linguistic borders and are enriched rather than diminished by semiotic dimensionality (SELfE, 2009, p. 618).
disponível em: <www.carrielamanna.com/E501online/Selfe_original.pdf> acessado em maio de 2011.
3. As Chaves Audíveis incluem ícones de som, efeitos de espaçamento sonoro, passagens melódicas, ambiente
acústico e uma ininidade de recursos semióticos audíveis a serem selecionados e analisados para os exercícios da
composição intermodal.
30
somática e de digitalização para leitura ao computador. “... na realidade, quanto
mais as artes se desenvolvem tanto mais dependem uma das outras” (forStEr, 1927 apud EISEnStEIn, 2002, p. 51). no seu livro “o sentido do ilme”,
no terceiro capítulo, Sergei Eisenstein traz de volta o diálogo dos processos de
hibridação nas artes. As ideias elaboradas por Eisenstein em sua teoria do cinema mostram apurada percepção em relação aos meios usados para compor
uma obra cinematográica. Ele se propõe a examinar as novas tarefas, métodos
e diiculdades propostas pelo cinema sonoro. E, em suas relexões, Eisenstein
propõe questionamentos que por deinirem a essência da montagem cinematográica, apesar de todas as metamorfoses de mídia ao longo das décadas recentes, continuam atuais.
A tecnologia transforma os procedimentos de produção e traz novos resultados na elaboração das linguagens. por meio da digitalização de imagens,
som e texto, transforma-se sensivelmente a qualidade das gravações e das reproduções. Mas, o que a tecnologia mal pode resolver, é a medição das irregularidades dos sentidos ou iligranas das medidas e decisões pessoais tomadas
por cada artista na composição/interpretação de uma obra de arte. A complexidade interpretativa humana é feita de soisticadas combinações sensoriais,
variáveis segundo a ousadia criativa do artista: “não se deve haver limites arbitrários à variedade dos meios expressivos que podem ser usados pelo cineasta”
(EISEnStEIn, 2002, p. 52). os fenômenos audiovisuais deverão, portanto, ser
analisados de forma abrangente contemplando as diversas combinações intermodais.
Segundo Eisenstein, “devemos ter plena consciência dos meios e dos elementos através dos quais a imagem se forma em nossa mente” (ibid., p. 53).
para isso, ao analisarmos obras clássicas torna-se importante observar as anotações do processo de criação e as primeiras impressões do artista envolvido
naquele processo criativo. para explicar suas ideias e mais especiicamente o
conceito de montagem vertical, Eisenstein volta-se para a prática constitutiva
do ilme “Alexandre nevsky” (1939). Assim como Stanislawski para o teatro, na
montagem do ilme, Eisenstein se remete às analogias com a partitura orquestral e airma que da imagem de partitura orquestral para a da partitura audiovisual é necessário adicionar uma “pauta” de imagens visuais. Seguindo suas
próprias leis, essa pauta acompanha o movimento da música e essa estrutura de
montagem “polifônica”, segundo o autor, pode ser extraída da experiência com
o cinema mudo.
DESAFIOS IntErmodais
- 31
foi exatamente este tipo de “colagem”, além de tudo complicada (ou talvez
simpliicada?) por outra linha — a trilha sonora —, que tentamos obter em
Alexandre nevsky, especialmente na sequência dos cavaleiros alemães que
atacavam avançando no gelo. Aqui as linhas da tonalidade do céu — nebuloso ou limpo, do ritmo acelerado dos cavaleiros, dos rostos em primeiro
plano e dos planos de conjunto, a estrutura tonal da música, seus temas,
seus ritmos, seus tempi etc. — criaram uma tarefa não menos difícil do que
a da sequência muda acima. Muitas horas foram gastas para fundir estes
elementos num todo orgânico (EISEnStEIn, 2002, p. 56).
As ideias de Eisenstein quanto à montagem do ilme “em música” se reportam aos tempi musicais-afetivos em relação às imagens e revelam ainda as
relações entre tonalidades nebulosas ou limpas do céu com a estrutura tonal da
música, seus temas, seus ritmos. de fato, a relação entre os elementos sonoros
e visuais se processa por parâmetros de relexão e vibração e favorece o amalgama ou seu contrário, entre outros matizes. neste caso, o todo orgânico a que
Eisenstein se refere não é necessariamente um todo unânime ou consonante.
neste sentido, a montagem polifônica pode ser entendida como uma montagem “ponto contra ponto”, em que linhas independentes realçam as qualidades
estéticas do ilme e dos sonidos.
A interação de tempi e modi, de imagens e sonidos, essa (des-) sincronização em busca do amalgama — de um todo orgânico —, seja este consoante
ou dissonante, simétrico ou assimétrico, agradável ou não, é a chave procurada
por cada compositor. uma chave sempre mais personalizada, reveladora de tipos e estilos diversos de composição, com que se torna possível qualiicar as diversas composições intermodais. todavia, são ainda possíveis simples colagens
de elementos visuais e sonoros, nas quais trechos de músicas compostas para
outro contexto acompanham imagens e imagens em movimento sem maiores
preocupações, i.e., quando fatores de concordância de gêneros e/ou casualidade combinatória dominam a interação dos tempi e modi. portanto, a discussão
acerca da complexidade dos níveis de interação é uma constante fundamental e
as tentativas de descobrir novas combinações intermodais podem levar o autor
a concepções intelectuais contrastantes.
Concordância de gêneros
A música pode acompanhar imagens, imagens em movimento, composições visuais, vídeos ou encenações ao vivo, entre outras combinações intermodais pela justaposição de várias passagens musicais, mesmo de épocas distintas
ou de compositores diversos. Isto pode resultar em concordância de gêneros ou
casualidade combinatória como discutido em outro artigo de minha autoria, no
qual analisei a trilha sonora do ilme “Kill Bill vol. 1” de Quentin tarantino.4 na
maioria dos casos, a música para o ilme acompanha a ação no plano de fundo,
contudo, em alguns ilmes, o tipo de música escolhido pode enfatizar a maioria
dos planos fílmicos e se tornar dominante assumindo o primeiro plano.
de acordo com donnelly (2005), para o ilme “he Shining” (o Iluminado) (1980), uma adaptação do romance de Stephen King, a escolha do diretor
Stanley Kubrick traz a música para o primeiro plano. Muitas partes da trilha sonora de “o Iluminado” são trechos de composições de música erudita, criadas
para serem apreciadas em salas de concerto como obras de arte em si. para esse
ilme, além da partitura original de música eletrônica composta por Wendy
Carlos e rachel Elkind, o diretor, em busca de uma interação efetiva, entrelaça as imagens de terror do ilme com trechos de músicas dos compositores
clássicos modernistas Béla Bartók, györgy Ligeti, Krzysztof penderecki, entre
outros. Com isso, muitas combinações sonoras usadas em suas músicas pelos
compositores citados favorecem o gênero do ilme de terror. não propriamente
o efeito de sons onomatopeicos que parecem recorrer nessas composições reforçam o suspense e o terror das cenas, mais do que isto: os fatores de tensão
e de surpresa das combinações sonoras, pouco conhecidas pela maioria dos
espectadores-ouvintes, marcam a ação fílmica com vigor visceral, assim como
imaginado por Stanley Kubrick.
nesse ilme de Kubrick, a concordância de gêneros resultaria de fatores como tensão e surpresa de composições pouco conhecidas pela maioria
dos espectadores-ouvinte, com ênfase em caracteres sonoros da orquestração
modernista. Apesar disso, o conteúdo dessas orquestrações não pode ser comparado meramente a efeitos de terror e suspense, essas novas combinações or-
4. BoCCIA, Leonardo. do imaginoso em música: o caso “KillBill vol. 1”. In dALMontE, fernando Edson.
diálogos possíveis, ano 5, n.1 p 123-140, jan.-jun., 2006. disponível em: <http://www.faculdadesocial.edu.br/
dialogospossiveis/artigos/8/09.pdf>.
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DESAFIOS IntErmodais
- 33
questrais são, de fato, pouco conhecidas e isto reforça a sensação imponderável
do incógnito.
As músicas escolhidas para essa composição intermodal de Kubrick,
especialmente aquelas dos compositores modernistas com combinações orquestrais surpreendentes, estão disponíveis na Internet: no You tube é possível
escutar as obras dos compositores acima citados selecionando “he Shining
Soundtrack”. 5
Novos formatos para documentos acadêmicos
os avanços tecnológicos parecem alcançar as universidades em muitas
regiões do Mundo. Apesar da exclusão digital que atinge milhões de pessoas,
mesmo nos países industrializados, a produção de documentos acadêmicos
vem se transformando. As apresentações em seminários e congressos já não
são exclusivamente lidas e, na medida em que equipamentos multimídia foram
disponibilizados em auditórios e sala de aula, novos formatos foram se irmando. Aplicativos para computador permitem projetar o texto digitalizado para
uma tela, do mesmo modo, tudo que pode ser digitalizado passa a ser visto e
ouvido em diversas plataformas de mídia. Imagens, músicas, vídeos e trechos
de ilmes passam a integrar o texto original e o artigo digitalizado é adaptado
para apresentações intermodais.
Contudo, os novos formatos para documentos acadêmicos se encontram
ainda em fase inicial de experimentação e distantes de alcançar originalidade intermodal. Esses documentos acadêmicos apresentados por computador e
projetor multimídia resultam da colagem de textos com imagens, vídeos, sons e
músicas disponíveis na Internet, além de outros arquivos correlacionados, raramente originais ou produzidos pelo próprio autor. Mas, considerando que muitos textos analisam a produção audiovisual e o cinema, além de discutir textos
de estudiosos, cujas fotos estão disponíveis na Internet, esse procedimento de
apropriação dos arquivos áudio e visuais é considerado normal.
Com desaios intermodais, imagino a criação original de cada parte que
compõe o documento, com a criação de imagens e desenhos, assim como sono5. As obras de, Béla Bartók, györgy Ligeti e Krzysztof penderecki para o ilme estão disponíveis em: <http://www.
youtube.com/watch?v=pz8niKQA3u4>, <http://www.youtube.com/watch?v=gn0vqog6dqI> e
<http://www.youtube.com/watch?v=vg5anAe_p1Y>, acessado em maio de 2011.
34
ridades e músicas próprias para cada composição. Aqui, estaria em jogo a criatividade do autor e suas tentativas de interagir com os elementos propostos no
texto, mesmo em se tratando de temas conhecidos; uma releitura das fontes na
tentativa de recompor o texto pela interação dos modi.6 já é possível notar diferenças nas composições das diversas apresentações multimídia. nas laminas
do Microsot Power Point e de outros aplicativos podem ser apresentadas desde
a simples colagem de um texto até sequências de elementos visuais e sonoros
em movimento, arquivos que podem atingir originalidade.
Assim como para um livro, as composições intermodais precisam de
tempo para ser produzidas. Com a seleção e entrelaçamento de suas partes, em
fase avançada, os arquivos intermodais podem ganhar dimensão estética favorável a sua apresentação pública, facilitando assim a transmissão do conteúdo
e dados de pesquisa. A apresentação deverá ainda ser favorecida por boa infraestrutura, equipamentos e tecnologia de ponta, condições acústicas adequadas
e uma excelente atuação dos expositores.
de acordo com Edward Said (1994): “os intelectuais são indivíduos com
vocação para a arte de representar, seja escrevendo, falando, ensinando ou aparecendo na televisão” (p. 27), mas a maioria tem pouca prática em representar,
por vezes, alguns procuram cursos de dicção ou de artes cênicas para melhorar
o desempenho em público. Muitos trabalhos acadêmicos apresentados publicamente se desvalorizam por falta de cuidados com a produção dos eventos, que
frequentemente acontecem em auditórios inadequados, projetados sem maiores investimentos no tratamento acústico do espaço cênico. por considerar a
audição uma dimensão em segundo plano e dando maior ênfase ao visual, a
parte audível é desvalorizada; muitos esquecem as conexões áudio, os cabos, a
regulagem do volume, os alto-falantes e os constrangimentos na hora da apresentação são frequentes.
os novos formatos de documentos acadêmicos trazem a dimensão audível para frente, i.e., o áudio se torna indispensável e a reprodução da fala
carece dos cuidados acústicos que permitem a inteligibilidade do texto. Além
disso, as relexões e reverberações7 da voz na sala de aula causam, ao longo do
tempo, esgotamento físico e falta de atenção por parte dos estudantes, embora
não estejamos acostumados a atribuir esse cansaço à falta de conforto acústico
6 A produção de documentos intermodais originais depende principalmente da atividade interdisciplinar e da
atuação de membros dos grupos de pesquisas; estudantes e professores de áreas distintas do conhecimento.
7 ver também: <http://pt.wikipedia.org/wiki/reverbera%C3%A7%C3%A3o>, acessado em junho de 2012.
DESAFIOS IntErmodais
- 35
nas salas de aula e nos auditórios. Este extremo desconforto acústico é também
comum em grandes centros urbanos, onde o problema do ruído é considerado
insolúvel e, portanto, mal inevitável na vida das grandes cidades. Sabe-se, entretanto, que o nível de decibéis em poucas metrópoles do mundo vem sendo
controlado constantemente e os excessos punidos severamente.
A preocupação ecológica para com o lixo sonoro esparramado por todos
os cantos em muitas cidades caóticas do mundo poderia evitar uma geração de
deicientes auditivos para os quais as nuanças dinâmicas dos sons e da música
não fazem menor sentido. Baseado na deiciência auditiva do homem contemporâneo, a intensidade do volume de inluentes produções musicais torna-se
estrela maior. para obter o ‘Big Sound’ almejado, as músicas gravadas passam
por processos de mixagem e de pós-produção em que aditivos tecnológicos —
os plug-ins de compressão, equalização e de contensão das ondas sonoras (limiter), entre outros — permitem intensiicar o volume dos sons para altíssimos
níveis sem resultar em desagradáveis distorções. Compromete-se assim o equilíbrio de uma gama maior e variada da dinâmica musical; o jogo entre o som e o
silêncio, sua presença e movimentos orgânicos são profundamente atingidos e
outros elementos fundamentais à audição de qualidade são limitados ao poder
excessivo do volume.
A cultura do ‘Big Sound’ compromete a reprodução dos documentos intermodais. torna-se difícil criar arquivos de reinada camada sonora, pois nas
apresentações ao vivo, a reprodução áudio está, na maioria das vezes, muito
acima dos níveis recomendados: entre 50 e 60 decibéis. 8 Em geral, equipamentos de ar condicionado e projetores multimídia produzem grande quantidade
de ruído. Com isso, o auditório pode estar acusticamente comprometido e o
público a priori prejudicado tendo que seguir uma exposição de dados acadêmicos dividindo a atenção entre o conteúdo exposto e os constantes ruídos
de fundo. uma série de obstáculos atinge os espectadores-ouvintes. nas universidades, estudantes e professores após curto período de tempo percebem a
falta de conforto acústico nas salas de aula, salas geralmente iluminadas sem os
devidos cuidados e, apesar de todas essas carências, essas nuanças raramente
são discutidas.
portanto, antes de idealizarmos os resultados da reprodução ao vivo dos
novos formatos de documentos acadêmicos, a discussão acerca de infraestru8. ver também: <http://www.bauru.unesp.br/curso_cipa/4_doencas_do_trabalho/4_ruido.htm>, acessado em
junho de 2012.
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tura, condições de trabalho, qualidade de ensino, conforto acústico-visual, entre outros, torna-se prioritária sem, com isso, comprometer a premência em
aprimorar documentos acadêmicos intermodais. novos formatos intermodais
podem ser criados e aprimorados ampliando a possibilidade de conquistar a
atenção dos presentes no momento da exposição de cada autor e essas apresentações precisam de espaços devidamente projetados que assegurem o conforto
necessário à fruição do evento.
Variações somático-digitais
fora do contexto eletrônico-digital, as experiências somáticas dos indivíduos são compostas de múltiplos modos de comunicação que alcançam seus
sentidos. na recepção e decodiicação dos estímulos recebidos, os cinco sentidos dos humanos se alternam segundo a necessidade psicofísica para melhor
compreender o que está sendo comunicado. tocar, cheirar, saborear, ver e ouvir
são partes de uma mesma experiência que raramente se processa desvinculada
desse concatenamento de sentidos. Ações somáticas são multimodais por natureza e o processamento das informações que alcançam os sentidos é feito de
maneira multissensorial para decodiicar os estímulos recebidos.
no entanto, transpor resultados dessas interpretações para o contexto
eletrônico-digital i.e., transcrever as experiências para um texto digitalizado,
por exemplo, signiica descrever em detalhes partes dessas experiências somáticas concentrando-se especialmente na visão e nos movimentos dos dedos ao
teclado. na digitalização de textos — a mais recorrente das transposições somático-digitais — a linguagem binária do computador emite pacotes compostos unicamente pelos dígitos 1 e 0, que codiicam as letras digitadas. o espaço
virtual onde é gravado o texto digitalizado pode receber mais dados digitais de
imagens ou reproduzir sonidos, músicas e outros efeitos audiovisuais. os limites impostos pelo contexto eletrônico-digital cercam o ambiente virtual, onde
se simulam experiências somáticas possíveis e/ou impossíveis para imaginar
como estas se dariam na realidade. Mas, a transposição dessas simulações virtuais para o espaço físico real e vice-versa, dele para sua codiicação em dígitos,
mantendo toda complexidade, enfrenta desaios intermodais.
para pierre Lévi (2007), na troca de informações, as técnicas de controle
das mensagens podem ser classiicadas em três grupos principais. Essas ações
são: somáticas, midiáticas ou digitais. nesse contexto, um dos principais desaDESAFIOS IntErmodais
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ios é que: “uma mensagem somática não é jamais reproduzida exatamente por
meio de técnicas somáticas (...) o produtor da mensagem somática modula,
adapta, faz variar continuamente o luxo de signos do qual ele é fonte” (LÉvI,
2007, p. 51).
das adaptações somáticas gravadas no ambiente digital, o autor da composição intermodal poderá reproduzir inúmeras cópias e transportá-las para
outros espaços virtuais em vários formatos de mídia. “As mídias ixam, reproduzem e transportam as mensagens em uma escala que os meios somáticos jamais
poderiam atingir.” (ibid., p. 52). Contudo, nessa transposição perdem-se pesos
e características da ação somática; corpo e espaço arquitetônico. no ambiente
virtual, sonoridades e acústica resultam de simulações calculadas por soisticados
algoritmos, com os quais é possível reproduzir o impacto dos sonidos em espaços
de tamanho diferente. Mas, apesar do impressionante impacto acústico reproduzido por soisticados sistemas surround de áudio das salas de cinema, onde os
sonidos literalmente ‘cercam’ os espectadores-ouvintes por todo lado, a dimensão
somática da representação ao vivo não será a mesma. Com isso, conquista-se
uma dimensão hiper-real, na qual é possível reproduzir simulações digitais que
vão para além das possibilidades somáticas de produção.
A informática é uma técnica molecular, pois não se contenta em reproduzir e difundir as mensagens (o que, aliás, faz melhor que a mídia clássica), ela permite sobretudo engendrá-las, modiicá-las à vontade, conferir-lhes capacidade de reação de grande sutileza, graças a um controle
total de sua microestrutura. o digital autoriza a fabricação de mensagens,
sua modiicação e mesmo a interação com elas, átomo de informação
por átomo de informação, bit por bit (LÉvI, 2007, p. 53).
As variações somático-digitais estão em constante movimento. os cálculos sensíveis que o corpo humano é capaz de processar sem a extensão da mídia
digital sacodem o espaço físico e deixam testemunho na arquitetura milenar,
nas artes e na mídia clássica das gravuras e da imprensa. Mas, a qualidade e o
barateamento dos equipamentos de mídia digital fascinam por suas características hiper-reais. o trânsito entre ambientes distintos de atuação e interação
somático-digital revela novas formas de composição dos documentos acadêmicos e os desaios intermodais impõem mudanças de hábitos na disputa acirrada por novos territórios. A capacidade de inovar os documentos acadêmicos
é, ao mesmo tempo, ligada à superação dos limites impostos pelo uso de arqui38
vos preexistentes e disponíveis em rede utilizados para imitar, citar, enfeitar e
menos para compor e inovar.
Conclusão
na inovação da produção acadêmica, o dialogo e a lexibilidade interdisciplinar são chaves mestras. As disputas para conquistar mais espaço e novos
territórios encontram no ambiente virtual uma arena de combate feroz. Luta-se
contra gigantes — coronéis do ciberespaço — que se apropriaram do ambiente
tecnologicamente controlado fechando acordos coercitivos que favorecem as
poucas e hegemônicas companhias de mídia e seus milionários proprietários.
As referidas chaves mestras poderiam ser uma alternativa à retórica da convergência. na arena do ciberespaço, a originalidade e propriedade intelectual
ainda fazem a diferença. Com isso, a criação de documentos intermodais originais, produzidos por estudiosos em seus grupos de pesquisa, resultaria do
esforço coletivo de criar, selecionar, transferir para arquivos analógico-digitais
e distribuir informações e dados de pesquisa superando os limites impostos
pela apropriação, uso e divulgação contínua de arquivos produzidos em outro
contexto e disponíveis em rede.
Em outras palavras, atitudes criativas, que se coniguram como complexas e estafantes, podem modiicar o quadro atual da imitação e falta de inovação. As universidades são território ideal para o fomento de ideias criativas,
contudo, perdemos boas oportunidades lutando contra a infraestrutura irregular, a falta de laboratórios e a carência de grupos interdisciplinares produtivos,
além da pouca solidariedade entre os pares. desaios intermodais poderão favorecer o exercício criativo na inovação da produção acadêmica e, apesar das
diiculdades, os resultados dessas interações pode ainda fazer a diferença.
DESAFIOS IntErmodais
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rEfErênCIAS
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o uSo dE MúLtIpLAS pLAtAforMAS
MIdIátICAS pArA A ConStruçÃo dE projEtoS
CoLABorAtIvoS: uma análise do caso hitrECord.
natalia Coimbra de Sá
Introdução
o presente artigo busca discutir o papel que o ator, produtor e diretor
americano joseph gordon-Levitt, criador do projeto hitrECord, desempenha
nas mídias sociais como moderador de uma comunidade que surgiu ao redor
de um projeto pessoal paralelo à sua carreira na indústria do cinema. A análise
aqui apresentada é baseada em entrevistas gravadas ou publicadas por diversos
jornalistas e canais de mídia e coletadas através da internet1. nestas, ele pesso1. As entrevistas consultadas, no decorrer do texto, aparecem citadas pelo nome da publicação e jornalista
responsável. todas foram acessadas online entre agosto e dezembro de 2011. Elas incluem: uSA today - “Shorts:
joseph gordon-Levitt’s Sparks” por Anthony Breznican em 24/01/2009. disponível em: <http://content.usatoday.
com/communities/livefrom/post/2009/01/61858844/1>. Wired - “joseph gordon-Levitt feels Like a natural
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por Casey (Equipe de redação) em 05/10/2011. disponível em: <http://kroq.radio.com/2011/10/05/josephgordon-levitts-hitrecord-comes-to-the-orpheum>. he new York times Style Magazine - “he Author as
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com/2011/11/28/the-author-as-your-average-joe>. Los Angeles times - “Interview: joseph gordon-Levitt on he
Tiny Book of Tiny Stories” por Yvonne villarreal em 05/12/2011. disponível em: <http://latimesblogs.latimes.com/
40
DESAFIOS IntErmodais
- 41
almente discute suas opiniões sobre privacidade e imagem pública, propriedade intelectual e seu impacto nas artes de forma geral, e também sobre a própria
produtora/comunidade colaborativa. Além disso, foram analisados registros de
textos, áudios e vídeos divulgados pelo seu peril virtual “regular joe” no site
da hitrECord e informações postadas nas suas páginas do Youtube, facebook,
twitter e tumblr. A pesquisa consistiu em acompanhamento desses canais de
mídia, redes sociais e comunidades online no período de agosto de 2011 a janeiro de 2012.
o texto está dividido em três seções principais que buscam demonstrar a
importância da estratégia de joseph gordon-Levitt como a razão principal pela
aglutinação de tantas pessoas ao redor de um projeto bastante público, mas,
simultaneamente, muito pessoal. na primeira parte, é apresentado um breve
contexto sobre a hitrECord e como esse híbrido de website, comunidade e produtora tem funcionado online desde a sua criação, em 2005, até janeiro de 2012.
na segunda parte, são discutidos os eventos e espetáculos ao vivo promovidos
pela hitrECord e como essas performances foram fundamentais para criar um
novo momentum que possibilitou levar o empreendimento a maior nível de
reconhecimento público. também são analisadas as principais produções lançadas pela hitrECord nesse período e como suas estratégias inicialmente independentes e alternativas estão sendo negociadas com agentes tradicionais do
mercado do entretenimento, sem perder de vista os benefícios coletivos para a
manutenção da ideia de comunidade. por im, é discutido que, apesar de que
nem todas as experiências que as pessoas buscam ao se unirem à hitrECord
são exclusivamente motivadas pela igura carismática e socialmente mediada
de “regular joe”, a construção do seu peril midiático e dedicação pessoal ao
projeto contribui de forma decisiva para o seu sucesso.
A construção da hitRECord:
ou como desenvolver uma produtora cultural a partir de uma
comunidade online colaborativa?
o projeto hitrECord começou como uma ideia dos irmãos joseph e
dan gordon-Levitt. desde 2004, joseph adotou como lema a frase “to hit the
record button” (apertar o botão de gravação) como inspiração pessoal para
jacketcopy/2011/12/interview-joseph-gordon-levitt-on-the-tiny-book-of-tiny-stories.html>.
42
criar de forma despretensiosa vídeos, músicas e textos. Ao mesmo tempo, essas criações se tornavam registros (records) que ele decidiu começar a divulgar
para o mundo em 2005. naquela época, dan (1974-2010), o irmão mais velho
de joseph, o ajudou a desenvolver a primeira versão do website hitrecord.
org. Alguns anos mais tarde, em 2007, eles adicionaram um fórum ao site,
de forma que outras pessoas também pudessem enviar comentários e postar
seus próprios registros e criações online. de acordo com joseph, aquele foi o
momento em que ele percebeu que possuía ali uma plataforma colaborativa
positiva. Conforme conta na história em quadrinhos “An Illustrated history
of hItrECord” disponível em seu produto multimídia ReCollection Vol.
1: “para a minha surpresa, as pessoas eram legais! Em pouco tempo, nosso
quadro de mensagens estava abrigando centenas de humildes colaborações”
(hItrECord.org, 2011, não paginado, tradução nossa).
uma comunidade colaborativa crescente de artistas amadores e semiproissionais começou a se formar ao redor do seu projeto pessoal. Como
observador externo, é possível detectar diversas razões para que isso acontecesse. A ideia por trás da hitrECord consistia principalmente em compartilhar variadas criações artísticas de pessoas de todo o mundo que não eram
necessariamente artistas proissionais – e que incluíam trabalhos em desenvolvimento – e a crença de que, a partir da combinação desses “registros”, seria possível criar coletivamente algo que fosse mais belo, signiicativo e mais
proissional do que as partes originais separadamente.
Essa não é uma ideia nova. Muitos autores têm discutido a questão
através de várias perspectivas e como ela tem mudado a forma como a sociedade contemporânea produz conhecimento, informação, arte, entretenimento e cultura dentro de um novo contexto sociocultural, tecnológico e
econômico. pierre Lévy e seus estudos sobre inteligência coletiva (1999); jef
howe (2008) e suas explicações sobre o fenômeno do desenvolvimento coletivo de projetos, popularmente conhecido como crowdsourcing; as discussões de Lawrence Lessig (2008) sobre a cultura remix; os escritos de henry
jenkins (2006a) sobre cultura participatória na era da convergência; e, mais
recentemente, a análise de Aram Sinnreich (2010) sobre cultura conigurável
são apenas alguns exemplos da crescente produção acadêmica que tem se
dedicado a esses temas.
Levando em consideração as discussões atuais sobre difusão na era digital (jEnKInS; LI; KrAuSKopt; grEEn, 2009), os próximos passos para a
hitrECord seriam entender como a comunidade vinha trabalhando e melhoDESAFIOS IntErmodais
- 43
rar alguns dos seus aspectos tecnológicos para que os processos continuassem luindo. “nós queríamos codiicar nossa crescente comunidade e facilitar
formalmente o processo de criação coletiva da hitrECord. Então [...] lançamos um novo website que dan e eu criamos do zero” (hItrECord.org,
2011, não paginado, tradução nossa). Isso aconteceu em janeiro de 2009 durante o festival de Cinema de Sundance, nos Estados unidos, quando joseph,
dan e alguns colaboradores estavam realizando a estreia de “Sparks” (Sparks,
2009), um curta-metragem de 23 minutos adaptado do conto homônimo de
Elmore Leonard, dirigido e produzido por joseph gordon-Levitt e estrelando Carla gugino e Eric Stoltz. nesse mesmo ano, seu projeto paralelo hitrECord recebeu a primeira cobertura da mídia tradicional2 (http://hitrecord.org/
records/10640).
A estratégia de utilizar sua carreira de ator e conexões em hollywood
como uma plataforma para, simultaneamente, promover a hitrECord tem sido
utilizada por gordon-Levitt desde então, mesmo enquanto o projeto não se tratava ainda de uma produtora formalmente constituída. Como citado, ele usou
sua estreia como diretor para lançar um novo website, o que foi uma ferramenta fundamental para que a comunidade pudesse continuar se desenvolvendo.
Como a maioria das atividades da hitrECord acontecem online – e a comunicação dos colaboradores, entre eles e com “regular joe”, é elemento chave
para que os trabalhos sejam produzidos – a qualidade do site deve ser uma das
prioridades.
no entanto, apesar de ser quase impossível pensar em crowdsourcing atualmente sem a mediação da internet, essas experiências só podem ser apenas
parcialmente analisadas por essa perspectiva. Sua essência – se é que existe uma
– não é apenas tecnológica (hoWE, 2008). para além da democratização da tecnologia e dos novos canais de mídia alternativos, incluindo a popularização das
redes sociais – que obviamente não ocorrem de maneira simultânea em todo o
planeta – comunidades que incentivam criações coletivas são baseadas em outras
importantes tendências que atualmente são consideradas valiosas em nossa sociedade: o crescimento do protagonismo amador; o interesse da opinião pública
em questões como sotware livre e iniciativas em código aberto (open source); o
desejo de obter resultados de forma mais rápida, barata e sustentável.
2. filmmaker Magazine. “Collaborators required” por jason guerrasio em abril de 2009. <http://www.
ilmmakermagazine.com/issues/spring2009/hitrecord.php>
44
Além disso, algumas características pessoais são observadas em ambientes onde se desenvolvem projetos colaborativos, principalmente online: desejo de resolver tarefas e problemas em pouco tempo; sentir-se confortável com
processos decisórios descentralizados; o desejo de fazer parte de algo maior
que é tido como mais signiicativo, mas não necessariamente valorizado em
termos monetários; ser considerado e valorizado pelos pares que compartilham os mesmos interesses.
durante uma entrevista gravada com o jornalista joel Stein da time Magazine e postada no site hitrECord como fonte para um projeto colaborativo
(he regularity #45, 31/08/2011, http://www.hitrecord.org/records/489592),
joseph tentou responder à pergunta sobre o peril da comunidade hitrECord.
Eles tendem a ser pessoas criativas. Eles normalmente possuem câmeras.
Eles não querem apenas icar lá, sentados. Eles querem vir e ser parte de
algo. [...] há pessoas de todas as idades, com certeza. Mas eu deinitivamente diria que [...] as pessoas mais jovens estão mais acostumadas a
usar seus computadores para coisas desse tipo (tradução nossa).
durante quatro meses, foram consultados arquivos postados no site hitrECord, vídeos e textos sobre tudo o que foi possível obter de informações
oiciais e divulgadas pela mídia sobre o projeto. também foram analisados dois
de seus lançamentos mais recentes: he Tiny Book of Tiny Stories (2010) e ReCollection Volume 1, 2010-2011 (2011). Após realização da pesquisa, se tornou
notável que a iniciativa não se trata apenas de um modismo online de adolescentes, como alguns poderiam apressadamente julgar. o nível de organização
do banco de dados e o número de registros postados, utilizados como fontes
para outros trabalhos e remixados, é impressionante. por exemplo: quando o
ReCollection Vol. 1 foi lançado (entre agosto e setembro de 2011), o projeto
multimídia contava com 1.201 contribuições dos 202.836 registros armazenados no site hitrecord.org. Em 21 de dezembro de 2011, eles já somavam 582.971
registros (entre áudios, vídeos, imagens e textos) disponíveis online, o que mostra um crescimento exponencial em poucos meses.
E, além disso, também há uma grande preocupação com a qualidade dos
trabalhos que são divulgados. Enquanto a comunidade online é o local para
experimentar, gordon-Levitt usa seu conhecimento de mercado como curador
para selecionar o que vale a pena dedicar seus esforços proissionais e transformar em produções lucrativas a serem lançadas comercialmente. durante esse
DESAFIOS IntErmodais
- 45
processo, ele é basicamente ajudado pelos membros mais dedicados da comunidade, que tomam tempo não apenas para trabalhar nas colaborações em si,
mas também para avaliar e recomendar tudo o que está sendo postado na plataforma hitrECord. Esse processo coletivo é o que torna possível para “regular
joe” identiicar a maior parte dos trabalhos que realmente têm potencial entre
os que estão sendo colocados no site. Isso porque, apesar de que todos são bem
vindos para participar do projeto e contribuir, nem tudo está em um nível de
qualidade considerado aceitável pelo mercado.
Socialmente, a comunidade online é organizada quase que organicamente, uma vez que é administrada por um pequeno time, além de joseph e seu
pai dennis Levitt que é o diretor inanceiro. Até o início de 2012, a equipe era
formada apenas por Marke johnson (diretor de criação), jared geller (produtor), Christina gardner (gerente da loja online) e gregory Abraham (editor).
Isso revela porque há uma preocupação crescente em melhorar o website com
atualizações técnicas e mecanismos para facilitar a vida do usuário. os frequentadores podem navegar na base de dados por categorias básicas: registros (Featured Records) ou colaborações (Featured Collaborations). As buscas podem ser
reinadas em tipos especíicos de registros: vídeo, imagem, áudio, texto, álbum,
colaborações, pessoas e todos. A plataforma também permite visualizações por
postagens recentes, número de acessos, número de recomendações (que são
feitas atribuindo corações) e a taxa percentual de corações recebidos. ou ainda, alternativamente, pelos registros mais recomendados, mais utilizados como
fonte ou mais recentes.
Em 2010, “após mais um ano de intenso planejamento com jared, design
detalhado com Marke e ininitas negociações com ‘a economia’ e ‘as leis’ – hitrECord estava pronta para se tornar uma produtora proissional e de pleno
direito” (hItrECord.org, 2011, não paginado, tradução nossa). para que
fosse possível transformar uma comunidade online que tinha sido fundada em
valores como colaboração, produção coletiva e remixagem em uma companhia
lucrativa e que pudesse trabalhar em um mercado tradicional como é o caso
da indústria cultural americana – com suas rigorosas leis de propriedade intelectual e direito de autor – a equipe da hitrECord desenvolveu de forma cuidadosa alguns documentos básicos que estão divulgados no website e com os
quais os usuários devem concordar ao realizar seu cadastro. Estes consistem em
termos de Serviço, Acordo de política de privacidade e também regras para as
produções com fins Monetários. Este último explica que, após uma produção
pagar seus próprios custos, os lucros são divididos em 50% entre a companhia
46
e todos os artistas que contribuíram (segundo termo constante na planilha de
Lucro para Artistas Colaboradores). Além disso, também é disponibilizada
uma seção de Ajuda, onde os usuários podem encontrar a seção de Suporte e
perguntas Mais frequentes.
Até o inal de 2011, a hitrECord havia lançado curtas-metragens, livros
com bônus Cd, dvd e vinil, e realizado turnês pela América do norte e Europa. Certas iniciativas podem ser consideradas como independentes, enquanto
outras contaram com parcerias de estúdios de cinema e editoras de livros. Algumas dessas questões particulares serão detalhadas nas seções seguintes, uma
vez que são importantes para explicar porque as conquistas alcançadas nos últimos cinco anos estão diretamente relacionadas com os esforços pessoais de
joseph gordon-Levitt em transformar seu projeto pessoal inicialmente amador
em algo que atualmente está equiparado em projeção à sua carreira cinematográica. Como destacou durante entrevista à time Magazine, anteriormente
mencionada, atualmente ele sente que ambas as carreiras possuem a mesma
importância e que foi sua intenção fazer com que as coisas chegassem a esse
ponto: “São equivalentes para mim. Elas funcionam em paralelo agora. E, para
mim, minha carreira de ator tem muito a ver com a hitrECord agora, para ser
honesto” (tradução nossa).
nas seções seguintes, será apresentada uma análise de como ele faz a
mediação de sua pessoa pública através de peris nas mídias sociais e utiliza
uma estratégia interessante – ao se aproveitar de suas obrigações de ator em
hollywood durante campanhas de divulgação de ilmes, participações em
eventos e programas de tv, nos tapetes vermelhos, entre outros – para promover a hitrECord. A habilidade que tem demonstrado ao conciliar seu tempo
de exposição e sua atenção proissional entre a carreira no mainstream e seu
projeto pessoal paralelo é chave para o crescimento da hitrECord nos últimos
cinco anos.
dito isso, não está no escopo desse artigo apresentar a interessante dinâmica social presente no ambiente virtual da comunidade hitrECord. o foco
está em duas situações especíicas que o criador destacou nos seus peris sociais
durante o período da pesquisa: as apresentações ao vivo e a cobertura da imprensa sobre os projetos que foram lançados em 2011. os dados foram coletados a partir de informações públicas disponibilizadas na internet e na mídia
tradicional pelo próprio gordon-Levitt.
DESAFIOS IntErmodais
- 47
A expansão da hitRECord:
da internet aos festivais, teatros, livrarias e televisão
vale argumentar que existem três tipos de experiências importantes, diferentes e, ainda assim, complementares, que até o momento a comunidade de
hitrecorders – como eles se autodenominam – tem investido e que joseph gordon-Levitt tem conseguido estimular com sucesso como diretor da hitrECord.
Em primeiro lugar, há o senso de comunidade previamente mencionado. Isso é
fundamental, como howe (2008) explica: todas as bem sucedidas experiências
de crowdsourcing são baseadas em um profundo comprometimento com a comunidade. As pessoas querem sentir que também são donas das criações; e são
capazes de entender quando estão sendo usadas ou exploradas. nesse contexto,
é importante compreender que a empresa é apenas um membro da comunidade, uma parte dela, e não a sua razão de existir.
Em segundo lugar, há a noção de viabilizar oportunidades para as pessoas exercitarem sua vontade de ter um papel ativo no contexto da mídia da
convergência. E, por im, há a possibilidade de se tornar parte de produções
artísticas, culturais e de entretenimento que estão sendo feitas através de um
novo tipo de processo de desenvolvimento. Essas experiências podem ser relacionadas a três conceitos principais: cultura participatória, convergência midiática e inteligência coletiva. Esses são elementos chave que, combinados, sustentam o sucesso da proposta da hitrECord. E isso não seria possível fora do
contexto atual que nos permite o uso de múltiplas plataformas midiáticas e que
nos apresenta o desaio possível de interconectar os diversos tipos de criação –
escrita, audiovisual, musical etc. – de forma coletiva, colaborativa e em grande
velocidade.
Muito do que é observado ao analisar as ideias por trás da hitrECord,
tanto como uma comunidade online como quanto uma produtora cultural, está
baseado em alguns dos debates teóricos recentes do campo dos estudos culturais e de mídia. É possível identiicar nas entrevistas momentos em que as
airmações de gordon-Levitt sobre o projeto poderiam se referir às ideias de
pierre Lévy sobre inteligência coletiva como sendo: “uma forma de inteligência distribuída universalmente, em constante evolução, coordenada em tempo
real, e resultando na efetiva mobilização de habilidades” (LÉvY, 1999, p. 13,
tradução nossa). E, de fato, em suas convocações para colaborações postadas
no hitrecord.org, é comum que joseph admita que, apesar do prazo ser apertado, ele sabe que os hitrecorders trabalham muito rápido quando um novo pro48
jeto é proposto. pode-se tomar essa observação como uma comparação direta
aos calendários de pré-produção, desenvolvimento e pós-produção mais longos que esses tipos de projetos precisam para serem concluídos em processos
mais tradicionais de mercado.
É possível, ainda, acrescentar a esse cenário outra característica que Lévy
(1999, p. 14) considera importante: que “a base e o objetivo da inteligência coletiva é o reconhecimento mútuo e o enriquecimento dos indivíduos, em vez
do culto às comunidades fetichizadas ou hipoestáticas” (tradução nossa). por
essa razão é fundamental para o sucesso de qualquer tipo de comunidade de
produções colaborativas que os membros se sintam como o seu mais valioso
elemento, especialmente se essa comunidade estiver atuando como uma empresa aberta e que depende desse tipo de participação.
observa-se um exemplo de como essa situação tem sido discutida publicamente por gordon-Levitt na entrevista que ele concedeu a Yvonne villarreal do jacket Copy Blog, do jornal Los Angeles times, quando foi publicado
o livro he Tiny Book of Tiny Stories Volume 1 (It Books/harperCollins, 2011):
Esse livro foi criado de uma forma bastante não convencional. Eu não diria que sou o autor. Eu normalmente me autodenomino diretor [...]. Mas
há dezenas de autores ligados a ele. Esse livro é o resultado de colaborações nas quais participaram mais de 8.000 pessoas. E eu estava dirigindo
isso. Eu editei muitos dos contos e fui o curador – com a ajuda de muitos
outros – desse livro. Mas certamente não fui só eu escrevendo e ilustrando. [...] A colaboração “tiny Stories” [Contos minúsculos] começou em
2010 com um artista chamado Wirrow, que é um anônimo virtuoso que
mora no reino unido. [...] Eu gostei tanto da ideia que resolvi destacá-la
[no hitrECord.org]. Eu comecei a participar e então milhares de outros
começaram a escrever contos, e todos começaram a construir a partir
dos trabalhos dos demais – eles desenharam imagens inspiradas pelos
contos, ou editaram os contos, ou escreveram um conto inspirado por
alguma ilustração. todos estavam remixando os trabalhos dos demais
(tradução nossa).
outra questão que inluencia tanto os ideais quanto a operacionalização
da hitrECord é a preocupação em fazer com que a empresa e suas produções
sejam comercialmente viáveis e legais, mesmo mantendo o desejo de gordon-Levitt de que a plataforma continue sendo aberta e colaborativa. Ele aborda
DESAFIOS IntErmodais
- 49
esse assunto em muitas de suas entrevistas como, por exemplo, quando conversou com Stephen heyman da revista he new York times Style Magazine: “nós
[em geral] colocamos um prêmio para aquilo que chamamos de ‘originalidade’.
Mas isso é uma ilusão e, mais do que tudo, só serve para os empresários que
fazem dinheiro com os direitos da propriedade intelectual” (tradução nossa).
Além disso, é comum que durante suas apresentações ao vivo o evento
seja aberto com um convite ao público para ligar todos os seus equipamentos
de gravação e que depois postem o material gravado no website para que os
outros possam editar e remixar. toda a prosa e poesia que é lida durante o
show, as músicas que são apresentadas e os vídeos projetados podem e devem
ser registrados. A única exceção é quando ele toca ou canta canções de outros
artistas. Então, em tom de brincadeira, lembra aos presentes que não podem
colocar essas gravações no site da hitrECord mas, se desejarem, poderão colocar em outros sites na internet. Inevitavelmente, a maioria desses covers acaba sendo postada no Youtube, como suas versões de “Bad romance” da Lady
gaga, “Lithium” do nirvana ou “La valse à Mille temps” de jacques Brel3.
Muitas das questões discutidas pelos trabalhos de Lawrence Lessig – especialmente em free Culture (2004) e remix (2008) – parecem ressoar nas
falas de gordon-Levitt sobre criação e criatividade, propriedade intelectual e
regulação de direitos autorais. Quando perguntado se icava surpreso com o
fato de que tantas pessoas estão abertas à ideia de colaboração, ele declarou na
entrevista já citada ao jornal LA times:
não me surpreende porque, na verdade, eu acho que essa é a forma mais
natural das coisas. Que os seres humanos são instintivamente comunais
com sua criatividade. Eu acho que é por isso que parece natural para nós
remixar as coisas, e isso é ilegal hoje em dia porque as leis são mantidas
para proteger modelos de negócios ultrapassados do século XX (tradução nossa).
Ele se refere a Lessig de forma direta em algumas de suas entrevistas,
incluindo uma palestra que ministrou na faculdade de direito da universidade
3. vídeos disponíveis online: “joseph gordon-Levitt singing Bad romance (SitC)” <http://www.youtube.com/
watch?v=x6zMwgkY7z4>; “joseph gordon-Levitt - Lithium (nirvana Cover)” <http://www.youtube.com/
watch?v=u-dgX9dQXAs>; “joseph gordon-Levitt singing La valse à Mille temps (SitC)” <http://www.youtube.
com/watch?v=3otulQ4wvLY>.
50
de Stanford4. Além disso, no livro contido no projeto multimídia ReCollection
Vol. 1, incluiu uma citação da artista sul-africana Candice Breitz que está presente em um livro do autor (LESSIg, 2008, p. 7) e que ele também mencionou
durante sua entrevista com joel Stein:
na cultura africana e em outras culturais orais, é dessa forma que a cultura tradicionalmente funciona. na ausência da cultura escrita, estórias
e histórias eram compartilhadas comunitariamente entre os apresentadores e suas audiências, abrindo possibilidades para uma versão após
a outra, cada nova versão ultrapassando a anterior, à medida em que
incorporavam as contribuições e opiniões do público; cada nova versão
trazia novas camadas com detalhes e reviravoltas, pois vinha inluenciada pelo coletivo. Isso não era visto como cópia ou roubo ou violação
de propriedade intelectual, mas aceito como a forma natural pela qual
a cultura evolui e se desenvolve e segue adiante. À medida em que cada
nova camada de interpretação era pintada na estória ou na canção, ela se
via enriquecida, e não esgotada, por aquelas camadas (tradução nossa).
nota-se também que a maioria dos esforços feitos por joseph estão
direcionados para uma perspectiva da convergência “onde a antiga e a nova
mídia colidem, onde a mídia das bases e a corporativa se interceptam e onde o
poder do produtor midiático e do consumidor midiático interagem de formas
imprevisíveis”, como jenkins (2006a, p. 2, tradução nossa) apresenta em seu
livro que trata da relação entre convergência de mídia, cultura participatória
e inteligência coletiva. Esses conceitos – sejam de maneira conscientemente
planejada ou não – claramente estão por trás da criação e desenvolvimento da
hitrECord.
por convergência, quero dizer o luxo de conteúdo através de múltiplas
plataformas, a cooperação entre múltiplas indústrias de mídia, e o comportamento migratório das audiências midiáticas que vão praticamente
para qualquer lugar em busca das experiências de entretenimento que
elas querem. [...] o termo cultura participatória contrasta com noções
4. palestra disponível online: “Copyright, remix and the Art of Collaborative Media: A conversation with joseph
gordon-Levitt and Anthony falzone” no Stanford Center for Internet and Society (vídeo): <http://www.youtube.
com/watch?v=Wy07Iotl0Sg>.
DESAFIOS IntErmodais
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antigas e passivas de espectadores. Em vez de falar sobre produtores e
consumidores de mídia ocupando papeis separados, nós devemos agora
vê-los como participantes que interagem uns com os outros de acordo
com um novo conjunto de regras que nenhum de nós compreende completamente (jEnKInS, 2006a, p. 2-3, tradução nossa).
Algo importante a considerar é que a hitrECord está de acordo com
quase todos esses requisitos e é exatamente por isso que tem crescido de forma
tão rápida. trata-se de um projeto que atrai potencialmente diferentes tipos de
fãs da indústria do entretenimento que, após assistir a um ilme, buscam na
internet por mais informação sobre as pessoas envolvidas no mesmo. E, nesse
sentido, as escolhas proissionais de gordon-Levitt estão a seu favor.
Ele iniciou sua carreira de ator aos seis anos e, enquanto ainda era um
adolescente, estrelou um seriado de comédia na rede de tv americana nBC
chamado “uma família de outro Mundo” (3rd Rock from the Sun, 1996-2001) e
que, até hoje, conta com reprises na tv a cabo em todo o mundo. A partir de então, construiu uma sólida e diversiicada carreira no cinema. fez parte de projetos de variados gêneros cinematográicos, direcionados a diversos públicos e com
todos os tipos de orçamento: de ilmes pequenos, alternativos e independentes
a grandes sucessos do tipo blockbusters. Sua ilmograia inclui trabalhos considerados cult como “Maníaco” (Manic, 2001), “Mistérios da Carne” (Mysterious
Skin, 2004), “A ponta de um Crime” (Brick, 2005), “o vigia” (he lookout, 2007)
e “hesher” (Hesher, 2010); os indicados ao globo de ouro, “500 dias Com Ela”
(500 Days of Summer, 2009) e “50%” (50/50, 2011). E também fez parte do elenco
de grandes sucessos de bilheteria e crítica como “A origem” (inception, 2010) e
do mais recente ilme da trilogia “Batman – o Cavaleiro das trevas ressurge”
(he Dark Knight Rises, 2012), ambos do diretor Christopher nolan.
Em sua conversa com joel Stein da time Magazine, joseph destacou o
fato de que ele está ciente do potencial que tem em mãos para desenvolver seu
projeto paralelo devido à sua carreira cinematográica:
Bem, quando [o ilme] A origem foi lançado, a qualidade dos trabalhos
artísticos na hitrECord passou por esse aumento notável e nunca mais
retrocedeu. Cresceu e icou lá. É por isso que cronometramos o lançamento da ReCollection para ser simultâneo à estreia do [ilme] 50%. [...]
E eu sei [...] que você estava querendo escrever uma matéria sobre mim
52
e a hitrECord há algum tempo. Mas provavelmente a razão pela qual
seus editores inalmente autorizaram é porque 50% está sendo lançado
(tradução nossa).
A maior parte do que normalmente é escrito sobre o ator destaca o fato
de que ele não está interessado no seu status de celebridade. na verdade, muitas
vezes ele declarou isso em entrevistas5. Mas, uma vez que há certas consequências que não são possíveis de ser evitadas quando um ator está envolvido em
ilmes de grande escala, ele decidiu usar seu espaço sob os holofotes para promover não apenas suas crenças pessoais6, mas transformá-lo em momentos que
possam resultar em benefícios mais subjetivos e em oportunidades para outros
talentos. Quando questionado por Stephen heyman, da nYt Magazine, se ele
precisava contar com sua celebridade para fazer de seu projeto colaborativo
uma realidade, objetivamente respondeu:
Atores de cinema recebem – vamos admitir – uma quantidade desproporcional de atenção, não apenas dentro da indústria do entretenimento,
mas no mundo todo. A ideia da nossa companhia está baseada na crença
que um cara como Wirrow [seu colaborador na hitrECord] – só porque
ele não está em posição de conseguir um agente em hollywood, não signiica que ele é um artista menor (tradução nossa).
gordon-Levitt explica com mais detalhes esse argumento durante uma
palestra proferida na faculdade de direito da universidade de Stanford, anteriormente citada. Ele constrói um argumento a respeito de como, em sua versão mais recente – uma produtora formalmente constituída –, a hitrECord
5. As ideias de gordon-Levitt sobre jornalismo são importantes para compreender sua pessoa publicamente
mediada: “Minha opinião pessoal sobre o jornalismo é que este é tão escorregadio quanto a icção. [...] A verdade
é que a maioria das entrevistas que concedo são frustrantes, porque as pessoas colocam aspas ao redor de palavras
que eu não disse, elas usam meu nome e então escrevem uma história sobre esse personagem que, para mim, não
tem nada a ver comigo. [...] Mas se você vai escrever meu nome verdadeiro e dizer que o que você está dizendo
é verdade, eu icaria feliz se as pessoas dissessem: ‘Essa é a história de um cara chamado jef e está vagamente
baseada em uma conversa que tive com joseph gordon-Levitt’. [...] Mas não é isso o que eles dizem. Eles dizem:
‘Esse cara é assim. Ele disse isso’. E eu penso: ‘uau, isso não é verdade’.” (Entrevista gravada com joel Stein para a
time Magazine, tradução nossa).
6. “Eu acho que o que estou fazendo com a hitrECord é muito inluenciado pelo fato de que meus pais foram
ativistas sociais nos anos 1960 e 1970”, ele diz, “não é tanto sobre [a questão da] propriedade, mas sobre o que
podemos alcançar enquanto comunidade” (Entrevista publicada na BlackBook Magazine, tradução nossa).
DESAFIOS IntErmodais
- 53
foi conscientemente pensada tendo em vista a lógica do mercado do entretenimento, mas trabalhando de uma forma alternativa durante o processo de
desenvolvimento dos projetos.
nesse último ano [2010], decidi que o que eu gostaria de fazer seria combinar esse processo caótico, divertido e informal que eu tinha num website
que comecei por diversão – e combinar isso com o fato de que a minha
carreira como ator chegou a um ponto em que eu poderia começar uma
produtora. [...] Se os ilmes que você participa dão um certo retorno inanceiro, então as pessoas começam a te dar dinheiro para iniciar outros
projetos do zero. Assim, chegou a minha hora de fundar uma produtora,
e eu percebi – por que em vez de começar uma produtora tradicional de
hollywood, onde seria apenas eu, produtores de hollywood e a minha
agência – e se eu combinar isso com a comunidade que já existe? E, ao
invés de trabalhar apenas naquele ambiente insular da indústria do entretenimento, eu poderia trabalhar com todos esses artistas, de todas as
partes, que estão fazendo um ótimo trabalho em seus laptops, seja em suas
cozinhas ou em seus estúdios caseiros, com diversos níveis de proissionalismo. Então, nós pensamos em uma forma de fazer isso, de transformar
esses processos criativos em produções proissionais (tradução nossa).
desde então, gordon-Levitt tem estrategicamente sincronizado o tempo
dos compromissos de sua carreira em hollywood para simultaneamente promover as iniciativas da hitrECord. Ele fez isso duas vezes durante o festival de
Cinema de Sundance, em 2009 e 2010. na primeira vez, enquanto estava em
park City (utah) para a celebração anual do cinema independente organizada
pelo Sundance Institute de robert redford, ele participou da apresentação de
“500 dias Com Ela” (2009), fez sua estreia como diretor com “Sparks” (2009) e
também lançou um novo website da hitrECord – até então apenas uma comunidade online. no ano seguinte, eles oicialmente se tornaram uma produtora
colaborativa, que foi apresentada durante a seção new frontier 2010 de Sundance com o evento “hItrECord At he Movies”. Isso foi feito de forma simultânea à sua participação no festival para a estreia do ilme “hesher” (2010).
Como já mencionado, ele também pensou a publicação do seu lançamento independente ReCollection Vol. 1 para coincidir com a estreia do ilme
“50%” (2011). Ao fazer isso, foi capaz de realizar outro evento “hItrECord
At the Movies”, dessa vez durante o festival de Cinema de toronto, onde o ilme
54
foi lançado. também pôde falar sobre seu envolvimento com a hitrECord durante todas as entrevistas que concedeu enquanto promovia o ilme, tanto para
a mídia tradicional quanto online. E, mais importante, utilizou suas aparições
como convidado em populares programas de entrevista noturnos dos Estados
unidos, como he Tonight Show with Jay leno (Episódio #4113, exibido em 21
de setembro de 2011) e late night with Jimmy Fallon (Episódio #511, exibido
em 27 de setembro de 2011), não apenas para falar sobre a hitrECord, mas
para exibir o projeto multimídia ReCollection Vol. 1 (composto de livro ilustrado, Cd, dvd e vinil).
Como joel Stein ressaltou na matéria para a time Magazine, em que traça
um peril de gordon-Levitt e da hitrECord: “para aproveitar-se da campanha de
divulgação de 50%, [joseph] está lançando o primeiro grande projeto da hitrECord, ReCollection Vol. 1, que contém um dvd com 36 curtas-metragens, um livro de 64 páginas, e um Cd de 17 faixas, composto pelo trabalho de 471 pessoas”.
E, em seguida, o jornalista destacou o fato de que “todo o projeto hitrECord, na
verdade, está alimentado tanto pela mística de celebridade que o envolve, quanto
pela sua atitude de menosprezo em relação a isso” (traduções nossas).
Além disso, outra importante estratégia de mediação pública para atrair
atenção para seu projeto paralelo é recrutar outras pessoas famosas para se
envolverem no projeto, utilizando suas conexões pessoais e proissionais. dessa
forma, consegue fazer com que circule mídia espontânea relativa a essas colaborações e participações especiais; e não apenas para os iniciados sobre o
projeto, mas de forma ampla, através das redes sociais.
Em 2010, gordon-Levitt e a hitrECord exibiram no festival de Sundance o curta-metragem “Morgan M. Morgansen’s date with destiny” (http://
hitrecord.org/records/40939) que foi criado a partir de 180 colaborações, entre roteiro, ilustrações, animação, atuação, música, edição etc. no mesmo ano,
durante o festival South by Southwest – que acontece anualmente em Austin
(texas) – eles lançaram a sequência “Morgan and destiny’s Eleventeenth date:
he Zeppelin Zoo” (http://hitrecord.org/records/65444) nos eventos Spring
Spectacular e Midnight Matinee. Como participações especiais, ele contou
com o ator Channing tatum para estrelar esse ilme que foi exibido no SXSW;
e também com os músicos Sean Lennon e Charlotte Kemp Muhl (da banda
goAStt) para falar sobre os projetos da hitrECord e também se apresentar
ao vivo no evento Spring Spectacular.
Em 2011, a atriz Anne hathaway participou tanto do “hItrECord At
the Movies” em Londres (realizado no British Film institute em julho) quanto
DESAFIOS IntErmodais
- 55
do “hItrECord fall formal” em Los Angeles (realizado no orpheum heatre em outubro), onde ela cantou “Le petit Soldat”. também no evento de Los
Angeles, joseph contou com outros convidados de destaque, como o ator gary
oldman que leu um conto chamado “he Man with a turnip for a head”; e
a cantora Sia que se apresentou com duas canções originais da hitrECord –
“American Scrimp n Save” e “telephone”. Esses são apenas alguns dos artistas
que gordon-Levitt tem convidado ao longo dos últimos anos para colaborar
em seu projeto, aumentando sua visibilidade.
Contudo, ele não conia apenas em formas de colaboração resultantes de
contatos informais e de amizade. Apesar de que essas participações especiais
são uma interessante estratégia para criar reconhecimento simbólico e subjetivo em relação à validade de seus projetos, adicionalmente, ele também negocia
formas mais tradicionais (e igualmente participativas) de oportunidades para
suas produções. Entre os bônus do Blu-ray de “A origem” (Warner Brothers,
2010) está incluído um documentário de 45 minutos dirigido por roko Belic
chamado “dreams: Cinema of the Subconscious”, que aborda a natureza cientíica dos sonhos e contou com a contribuição de mais de 100 usuários do site
hitrECord. um tipo semelhante de colaboração – cujo tema é tragédia/Comédia – foi proposto no inal de 2011 pelo ator e os criadores do ilme “50%”, Will
reiser e Seth rogen. o resultado desse projeto deverá ser um curta-metragem
previsto para ser incluído no dvd do ilme ou exibido em festivais.
Mídias sociais e mediação pública: a importância do
envolvimento ativo
A partir da presente perspectiva de análise, a estratégia mais relevante
que joseph gordon-Levitt está levando a cabo é a combinação das prerrogativas que um projeto aberto e colaborativo precisa cumprir para produzir conteúdos que sejam relevantes e, simultaneamente, que interessem a uma grande
variedade de peris consumidores. ou seja, algo que seja lucrativo para os produtores; que possa ser promovido pelos distribuidores – e, ao mesmo tempo,
que esses conteúdos permitam um processo coletivo de criação e sejam desaiantes o suiciente para que os consumidores ativos possam se apropriar deles,
transformá-los e remixá-los.
produções culturais luindo através de diferentes plataformas não é algo
novo na sociedade, uma vez que os grandes conglomerados do entretenimento
56
têm feito ações em cross media há algum tempo. Entretanto, esse é um contexto
que tem se intensiicado nos últimos anos, despertando interesse não apenas
dos agentes de mercado, mas também da academia. Considera-se particularmente relevante a ideia de que “a convergência não acontece através de dispositivos de mídia, por mais soisticados que estes se tornem. A convergência ocorre dentro do cérebro dos consumidores individuais e através de suas interações
sociais com os demais” (jEnKInS, 2006a, p. 3, tradução nossa).
Após analisar o exemplo de operação da hitrECord, é possível veriicar
que trata-se de um modelo viável para empresas colaborativas. Contudo, é fundamental compreender que merece destaque o papel que joseph gordon-Levitt
desempenha como seu criador e diretor artístico. Seu envolvimento pessoal e
dedicação ao projeto – não apenas inanceiramente, mas também investindo
tempo; sua preocupação com a lógica do show business; e seus esforços para
mediar de perto todos os processos – mesmo tendo outros compromissos com
sua carreira de ator – certamente permitiram, nos últimos anos, a transição de
um website pessoal para um fórum de debates, em seguida para uma comunidade online e, por im, uma produtora aberta e colaborativa. Simultaneamente,
ele produziu eventos, ilmes e livros de forma independente, mas também conseguiu irmar contratos comerciais, como é o caso do acordo para três livros
fechado com a editora It Books/harperCollins. Contudo, vale ressaltar que,
mesmo antes desse fato, a hitrECord já estava dando lucro e enviando cheques
para seus colaboradores, de acordo com o que é registrado no seu próprio site.
nessa estratégia, encontrar um equilíbrio entre a criação coletiva de arte
e as possibilidades comerciais dos produtos resultantes depende da sensibilidade e conhecimento da pessoa que efetivamente comanda a empresa. A mediação do processo é o principal desaio que gordon-Levitt deve enfrentar, pois
sem um curador cuidadoso e atento para direcionar os esforços, muitas das
iniciativas seriam desperdiçadas. joseph declarou em diversas oportunidades
sua visão ideal da hitrECord. para que isso seja atingido, ele tem sistematicamente utilizado seu peril público “regular joe” de duas maneiras diferentes,
porém complementares: a) dentro da comunidade hitrECord; b) em outras
plataformas de mídia social.
no site hitrecord.org, ele frequentemente posta solicitações em vídeo,
como as que constam se seção “he regularity” (praticamente semanalmente). também é comum observar que, em certos períodos, ele posta quase diariamente, sejam posts em vídeo ou texto. o estilo que utiliza para os vídeos é
casual – a maioria é feita em seu estúdio caseiro, em quartos de hotel ou nas
DESAFIOS IntErmodais
- 57
ruas. o discurso é informal e ele grava com uma câmera pessoal. Além dos
frequentes vídeos, a maior parte de sua interferência no site inclui comentários
sobre registros que estão em destaque na comunidade, de uma forma geral, ou
solicitações para colaborações em projetos especiais que ele propõe. Em alguns
casos, fornece orientações diretas ou sugestões para peças musicais ou escritas,
animações etc. E, comumente, ele também adiciona pessoalmente algo ao que
está sendo desenvolvido por outros usuários como, por exemplo, gravação de
narrações ou trabalho de edição.
durante sua entrevista para o LA times, a jornalista Yvonne villarreal expressou surpresa pelo fato de que gordon-Levitt era capaz de detalhar tantos dos
contos presentes no livro he Tiny Book of Tiny Stories Volume 1 (It Books/harperCollins, 2011). Ele respondeu: “Claro. Eu trabalhei duro nisso. não se trata de algo
do tipo ‘Ah, o ator está tentando promover como seu algo pelo qual não trabalhou’.
A hitrECord é a minha paixão” (tradução nossa).
na verdade, a mediação que ele realiza com a hitrECord exige mais dedicação agora que eles efetivamente estão atuando como uma produtora. por exemplo,
ele explica o processo decisório em relação aos contos que foram selecionados para
a versão inal do livro em conversa com o jornalista Stephen heyman:
Eu acho que tem menos a ver com a metodologia e mais com o meu
gosto pessoal e também desse artista chamado Wirrow, que começou a
colaboração das “tiny Stories” em 2010. [...] A questão da colaboração
coletiva, agora que nós temos a internet e as ferramentas para fazer isso
– como funciona? há muitas formas de se fazer. Algumas delas são totalmente democráticas. “Quem tiver mais votos ganha o concurso!” Mas
aqui não foi assim. A hitrECord está disposta a abrir a porta permitindo
que qualquer pessoa possa contribuir, mas eu também quis que tivesse
a voz de um indivíduo... do ponto de vista logístico, é um desaio pagar
às pessoas. uma parte disso é automatizado. Mas, ao inal, nós chegamos
à conclusão que cada trabalho artístico é diferente e não existe uma fórmula para quanto pagar. Então, nós dizemos isso logo de cara, eu que
decido... Eu sempre digo que sou o diretor (tradução nossa).
Esse é o tipo de mediação que ele desempenha quando está trabalhando
com a comunidade hitrECord. Mas há ainda outro aspecto que é muito especíico, por ser uma pessoa pública, e especialmente por se tratar de uma celebridade de hollywood. trata-se da questão de que a iniciativa pode despertar
58
interesse simplesmente pelo fato de atrair uma comunidade online composta de
fãs do ator7. Como discutido anteriormente, o projeto paralelo de gordon-Levitt tem se beneiciado da sua carreira em hollywood. Mas, se a fama pode ser
benéica por um lado, pode também ser negativa por outro. Ao se considerar
apenas um ator, ele compartilha sua visão sobre a atual “cultura das celebridades” – alimentada em todo o mundo por paparazzi, revistas e blogs de fofocas
– com o jornalista nick haramis, durante uma entrevista para a BlackBook:
Quando eu vou ao mercado e vejo as capas das revistas – elas me fascinam
– mas eu não trago essas porcarias para a minha casa porque acho que elas
são cruéis e venenosas. É fácil pensarmos que se trata de simples entretenimento, mas eu não acho. nós somos muito inluenciados pelas histórias
que escolhemos para preencher os nossos dias (tradução nossa).
Apesar disso, não é possível escolher estar apenas parcialmente envolvido com a indústria do entretenimento quando se está trabalhando em ilmes
de grande orçamento dos grandes estúdios. Então, joseph tenta encontrar conforto ao parafrasear a famosa frase de Walt disney, na qual ele teria airmado
que não fazia ilmes apenas para ganhar dinheiro, mas que precisava ganhar
dinheiro para desenvolver os projetos que amava. E inaliza explicando porque
seu amor verdadeiro se tornou esse híbrido de produtora e comunidade online.
você não está apenas lançando um ilme para o público assistir e acabou. Quando eu faço algo e naquela mesma noite coloco no site hitrECord, bem, no dia seguinte as pessoas já remixaram. Elas adicionaram
algo. Elas pensaram sobre aquilo. E isso é tão emocionante. É muito mais
emocionante para mim do que uma boa crítica ou uma salva de palmas.
ter alguém tomando liberdade criativa com algo que eu iz é fascinante.
É ininitamente fascinante. É como “uau, eles entenderam!” ou então
7. não é o objetivo desse artigo discutir a relação entre joseph gordon-Levitt, a comunidade hitrECord e seus fãs,
ainda que considere que essa dinâmica pode desempenhar uma inluência signiicativa em como a comunidade
online de uma forma mais ampla (tanto os usuários da hitrECord como seus seguidores e amigos nas diversas redes
sociais) veem seu trabalho – especialmente sua carreira de ator em hollywood – e como isso relete nas contribuições
que ele pode receber para seus projetos paralelos com a hitrECord. para referências sobre comunidades de fãs e
cultura participatória, ver: jenkins (1992, 2006b). para uma análise sobre as diversas formas como os fãs aumentam
o valor de produtos culturais, ver: ford, jenkins et al. (2006). Em relação à complexidade das comunidades online,
ver: Baym (2007) e Boyd (2006). Sobre a importância dos estudos sobre comunidades de fãs e suas práticas sociais no
mundo mediado, ver: gray, Sandvoss e harrington (2007); hills (2007); harrington e Bielby (2007).
DESAFIOS IntErmodais
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“Eles não entenderam”. você consegue sentir pela arte que eles fazem.
Muito mais do que você poderia sentir pela resposta de bilheteria ou
coisas desse tipo (tradução nossa).
Assim, pela análise, ele se mostra disposto a aceitar ambos os lados da
fama, contanto que permita que alcance o tipo de benefícios proissionais que
está procurando e que, nesse caso, é o desenvolvimento da hitrECord.
Considerações inais
A partir do exposto, foi apresentada uma perspectiva sobre o projeto
hitrECord de joseph gordon-Levitt, desde a sua concepção até os dias atuais,
analisando sua transformação pública de um website pessoal em uma produtora de participação aberta e colaborativa. Argumentou-se que a mediação desse
processo está diretamente relacionada à sua pessoa pública e àquilo que ele
escolhe por compartilhar – tanto através da mídia tradicional quanto das mídias sociais – sobre suas experiências pessoais, crenças, decisões proissionais e
perspectiva subjetiva sobre arte, cultura e entretenimento. Assim, pretende-se
contribuir para discussões a respeito dos tênues limites entre o que é percebido
atualmente como artista amador ou proissional, mercado independente, alternativo ou mainstream, e como esses conceitos afetam (e são afetados pelas)
mediações públicas e práticas comunitárias.
Como mencionado previamente, é possível aprender a partir de diferentes inciativas que estimulam processos criativos e participativos. E, especialmente no caso da hitrECord, pode-se observar que dentro dessa comunidade,
os papeis de produtores e consumidores, performers e audiências, proissionais
e amadores, estão intrinsecamente misturados. Eles não estão apenas produzindo para outras pessoas, mas também para si mesmos e entre si. Eles estão
consumindo suas próprias criações (e dos outros) online, mas também estão
adquirindo os produtos que são lançados através de vendedores independentes
ou tradicionais, ao mesmo tempo em que compram ingressos para as apresentações ao vivo em teatros, cinemas ou festivais. Essas experiências podem
ser analisadas como produções comunitárias de arte e cultura, mas elas também permitem – dentro do contexto da sociedade contemporânea mediada
pela tecnologia e mídias sociais – repensar as perspectivas para a indústria do
entretenimento.
60
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62
A MuLtIModALIdAdE tECno-CoMunICACIonAL
nAS IntErfACES do Corpo EXpAndIdo
juliana Cunha Costa
Camila Xavier nunes
Aline Aver vanin
Os desaios da linguagem multimodal na intermodalidade
tecnológica
o surgimento de novos tipos de mídia associado ao desenvolvimento
tecnológico expande-se com uma surpreendente velocidade e, ao mesmo tempo em que altera e potencializa a cognição humana, modiica o modo como os
sujeitos se comunicam. o intensivo, volátil e frenético luxo de informação na
contemporaneidade se relete em uma linguagem multimodal. Moran (2009,
p. 14) airma que é essencial expandir as “[...] novas técnicas de investigações,
de conhecimentos e de procedimentos derivados de outras áreas disciplinares
para serem incorporadas no campo de pesquisa a im de auxiliar investigadores
no seu entendimento de realidades com as quais estão lidando” (tradução nossa). Essa interdisciplinaridade proporciona uma melhor compreensão dos processos sociais devido a sua elasticidade no que se refere ao compartilhamento
de informações e de abordagens metodológicas variadas.
devido à tecniicação dos sistemas de comunicação, a nova coniguração
da rede mundial de computadores se apresenta hoje como o meio essencial
pelo qual é possível socializar e compartilhar informações textuais, sonoras e
visuais; as relações humanas, reletidas na linguagem, são intensiicadas na sua
DESAFIOS IntErmodais
- 63
multimodalidade. Mudanças sociais e técnicas perpassam a experiência e levam a uma reelaboração do próprio sistema cognitivo.
Este estudo é sistematizado em três argumentos básicos. primeiro, é
oferecido um breve panorama do desenvolvimento tecnológico da sociedade
ocidental a partir da popularização da imprensa ao desenvolvimento de uma
intermodalidade técnica e de uma multimodalidade comunicacional. Segundo, é abordado o processo de construção de conhecimentos como experiência
corporalizada e a reorganização adaptativa da cognição às dimensões técnicas
coletivas ao longo da história humana. terceiro, é defendido que a construção
de sentidos se relete na forma como nos expressamos linguisticamente, e a interação com essas novas tecnologias promove o surgimento de novos conceitos
para realidades constantemente reelaboradas.
O desenvolvimento de técnicas comunicacionais para a
ampliicação da intermodalidade informativa
As mudanças de paradigmas se relacionam intimamente com o desenvolvimento técnico, e possuem considerável signiicância para a compreensão
do fenômeno do avanço tecnológico e as suas consequências para o processo de
globalização. neste texto, as técnicas são entendidas como “[...] um conjunto de
meios instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida, produz
e, ao mesmo tempo, cria espaço” (SAntoS, 2006, p. 16).
na cultura da oralidade, a transmissão de conhecimento era conduzida
presencialmente por uma pequena parcela da sociedade letrada que detinha
o controle e o acesso às matrizes informacionais manuscritas. Ainda que restrita a um grupo seleto, o surgimento da imprensa no século Xv modiicou as
técnicas de transmissão dessas mensagens: “[...] a interiorização da tecnologia
do alfabeto fonético faz passar o homem do mundo mágico do ouvido para
o mundo neutro da visão” (MCLuhAn, 1965, p. 18, tradução nossa). A implementação de outras técnicas de aprendizagem e comunicação, por meio da
leitura de textos escritos utilizando o alfabeto fonético e outros símbolos visuais requerem um esforço cognitivo maior para interpretar tais códigos visuais,
“[...] uma vez que o universo acústico é um mundo quente e violentamente hiperestésico” (MCLuhAn, 1965, p.19); entretanto, o alfabeto fonético também
possui um poder pelo qual as palavras “[...] têm de impor o seu conteúdo de
forma implacável” (MCLuhAn, 1965, tradução nossa).
64
devido ao avanço técnico, outras formas de comunicação foram ampliicadas, a exemplo da instituição da impressa e do barateamento dos custos de
produção na disseminação de materiais impressos. A partir dos anos setenta do
século XIX, os jornais e as revistas foram considerados as principais fontes de
informação e entretenimento. As telecomunicações de longa distância começaram mais e mais a difundir-se graças ao uso do telefone, das ondas de rádio
e, posteriormente, das transmissões televisivas em meados dos anos de 1950,
dando origem ao fenômeno da comunicação de massa.
É na década de 1950 que a televisão se apresentava como uma das mais
importantes mídias de massa que incluía, em uma única mensagem, texto, áudio e imagem, além de transmiti-los para uma audiência que crescia em escala
geométrica. para Castells (2009), essa difusão da televisão, nas últimas três décadas depois da Segunda guerra Mundial, tornou-a a instituição mais importante da indústria cultural porque uma única mensagem, audiovisual, poderia
ser “[...] simultaneamente emitida a partir de poucos e centralizados emissores
para uma audiência de milhões de receptores” (CAStELLS, 2009, p. 359, tradução nossa).
Castells (1996, 2000, p. 1) já anunciava que muitos eventos de importância histórica vinham modiicando signiicantemente “[...] a paisagem social
da vida humana” (tradução nossa). Em sua introdução, ele enfatiza a revolução que estava centralizada, especialmente, nas tecnologias da informação, que
favoreceram o surgimento de um novo sistema comunicacional no qual uma
linguagem universal emerge. Essa linguagem, também entendida pelo autor
como digital, vai integrando a produção e a distribuição de dados, imagens
e sons de uma determinada cultura e se personaliza ao mesmo momento em
que se adapta às diversas identidades emergentes. Ele ainda conclui que “redes
interativas de computadores estão crescendo exponencialmente, criando novas
formas e novos canais de comunicação, moldando a vida e sendo, ao mesmo
tempo, moldado pela vida” (CAStELLS, 1996, 2000, p. 2, tradução nossa).
desde a década de 1970, a Internet revolucionou o luxo de informação e
o modo como os seres humanos passaram a se comunicar. A tecnologia digital
permitiu a junção de vários tipos de mensagens textuais, sonoras e visuais em
uma rede de comunicação com a ausência de um controle central, pois todos
são os emissores e receptores dessas mensagens. “A universalidade da linguagem tecnológica e a pura lógica do sistema de comunicação criou a condição
tecnológica para uma comunicação horizontal, ou seja, global” (CAStELLS,
1996, 2000, p. 45, tradução nossa).
DESAFIOS IntErmodais
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Muitos estudos cientíicos enfocam na análise de diferentes aspectos da
revolução da tecnologia da informação no inal do século XX, início do século
XXI. nesse período, ocorreu uma transformação signiicativa na estrutura da
Internet, pois, ela passa de um sistema orientado no abastecimento de informação para um sistema mais dirigido para comunicação e construção de comunidades (fuChS, et all., 2011). Atualmente, o termo Web 2.0 ou Web Social não
se refere apenas às mudanças nas características dimensionais tecnológicas da
rede mundial de computadores, mas especialmente, na forma como os usuários
fazem uso dessa rede, uma vez que são eles os principais responsáveis pela sua
manuteção.
Web 2.0 / Plataformas sociais de mídia são baseadas nas plataformas de
rede que predominantemente sustentam redes sociais online, construção
e manutenção de comunidades online, produção e compartilhamento de
informação colaborativa, e produção, difusão e consumo de conteúdos gerados pelos usuários (FUCHS et al., 2011, p. 5, tradução nossa).
Ao contrário da televisão – que na metade do século passado foi considerada o meio mais importante para a comunicação de massa quando uma
única mensagem era direcionada para uma larga audiência –, a Internet vai
proporcionar o surgimento de um novo modelo comunicacional, o qual Castells (2009) denominou de autocomunicação de massa. nesse novo arquétipo,
há uma audiência altamente segmentada: “[...] há poucas ocorrências de compartilhamento simultâneo em massa de mensagens de mídia, o que é amplamente compartilhado é a cultura de compartilhamento de mensagens para
múltiplos emissores/receptores” (CAStELLS, 2009, p. 417, tradução nossa). os
atores essenciais para a esta transformação da Internet são as redes sociais e as
plataformas colaborativas de compartilhamento de dados textuais, sonoros e
imagéticos.
Precisamente porque o novo sistema de comunicação é tão versátil, diversiicado e aberto, que integra mensagens e códigos de todas as fontes,
abrangendo mais da comunicação socializada em suas redes multimodais
e multicanais. Portanto, se as relações de poder são construídas em grande
parte na mente humana, e se a construção de sentido na mente humana é
essencialmente dependente dos luxos de informação e imagens processadas nas redes de comunicação, seria lógico concluir que o poder reside nas
66
redes de comunicação e em seus donos corporativos (CASTellS, 2009, p.
417, tradução nossa).
de acordo com Stanković e jovanović (2009) a nova coniguração da
Internet ocorreu porque sites como facebook, twitter, Youtube, google+, entre
outros, são resultados de uma socialização, abertura e colaboração dos usuários
que são estimulados a participar do aumento de suas bases de dados e, consequentemente, no desenvolvimento global do conteúdo da rede mundial.
um bom exemplo a ser ilustrado é a plataforma de vídeos Youtube. Ela
surge em 1995 no mesmo momento em que outras plataformas de redes sociais
estão se popularizando. “o Youtube parecia explorar os desejos que os humanos tinham de serem conhecidos e de conectar-se um com o outro” (roWEL,
2011, p. 8). Esse site é composto essencialmente por conteúdos gerados tanto
por usuários que publicam vídeos amadores, como por empresas que lançam
propagandas e vídeos de programas televisivos. rowel (2011, p. 9) ainda enfatiza que os usuários conectam seus interesses com seus amigos, familiares ou
estranhos na busca por compartilhar interesses e experiências.
não somente o Youtube, mas também outras plataformas de compartilhamento de vídeos já fazem parte do cotidiano de muitas pessoas, uma vez
que, os indivíduos têm a capacidade de gravar – usando os seus próprios telefones celulares ou aparelhos portáteis eletrônicos – acontecimentos, vídeos
caseiros ou eventos diários em tempo real publicando-os diretamente em plataformas de vídeos em redes. Muito mais do que a televisão e o rádio, essas plataformas são objetos de investigação, particularmente instáveis, marcados por
mudanças dinâmicas, tanto em termos de conteúdo, bem como de organização
(BurgESS; grEEn, 2009).
o fenômeno de pessoas comuns equipadas com câmeras digitais e telefones celulares registrando freneticamente o seu cotidiano a ponto de apenas
enxergarem o mundo por iltros variados leva a um intenso e contínuo luxo
de criação e compartilhamento de conteúdos nas múltiplas plataformas online.
Isso é descrito por Aranha (2009) como A era do Autor, que narra: “[...] está
crescendo a disponibilidade da tecnologia para transportar, armazenar e exibir
conteúdos. A tecnologia tornou-se um meio para servir ao usuário e não mais
um im em si mesmo” (ArAnhA, 2009, p. 28). Essa discussão é ainda sustentada por Santaella (2007) que associa as câmeras digitais e os celulares como
os objetos mais importantes dessa era. Ela compara o “[...] enxame de câmeras
digitais” e a “[...] invenção de realidades possíveis” (SAntAELLA, 2007, p.393),
DESAFIOS IntErmodais
- 67
como resultado do barateamento dos produtos, acesso à Internet, além do conhecimento que as pessoas vêm adquirindo para o uso dessas novas tecnologias e dessas plataformas.
tudo parece urgente, e vive-se a sensação de estar sempre atrasado. o
timing das pessoas está mudando. há uma neurose tecnológica por
processadores e conexões cada vez mais rápidas. vive-se a síndrome do
segundo parágrafo. As pessoas têm diiculdades em parar e ler com calma e atenção as mensagens com mais de três parágrafos. As mensagens
tornam-se mais e mais reduzidas e surge uma linguagem cada vez mais
iconográica (ArAnhA, 2009, pp. 27-28).
A linguagem pode ser considerada um dos elementos da cultura humana
que mais a tecnologia modiicou. de acordo com gee e hayes (2011) a linguagem sempre englobou a combinação entre som, palavra, ícone e imagem,
elaboradas pela cognição humana, a qual, segundo esses autores, sempre foi
multimodal. todavia, essa multimodalidade hoje em dia é muito mais intensa
do que no período em que existiam apenas os jornais impressos ou as transmissões televisivas, pois os impressos possuem muito mais imagens, e os jornais
online ainda são acompanhados por imagens e vídeos que muitas vezes estão
conectados por hiperlinks para outras imagens e vídeos relacionados aos seus
conteúdos, em um looping a uma dispersão focal. os conteúdos enviados por
meio de plataformas de compartilhamento, como portais de notícias e de entretenimento, levam ao uso de uma composição linguística notoriamente multimodal.
Essa multimodalidade se faz essencial, pois as tecnologias da comunicação avançam ao ponto em que a Internet se apresenta, em alguns casos muito mais do que a televisão, como a principal responsável pela rápida e ampla
transmissão e recepção de conteúdos imagéticos, sonoros e textuais. Esse luxo
global dissemina ideias, tendências e conceitos que levam ao compartilhamento de representações de diferentes lugares do mundo, facilitando a interação
entre culturas (SturKEn; CArtWrIght, 2009).
finalmente, abranger o entendimento dessa multimodalidade é essencial para fomentar a discussão acerca da cognição humana, pois atualmente
os indivíduos estão muito mais expostos a um grande luxo de informação
provindo e gerado por diferentes fontes. A multimodalidade informacional da
contemporaneidade inluenciou e alterou o sujeito a interpretar a combinação
68
de todos os elementos fragmentados em um único panorama. As habilidades
desenvolvidas pelos seres humanos também são multimodais, pois, inúmeras
imagens, sons e textos compõem ao mesmo tempo múltiplos elementos informacionais, conjuntos que são processados em um ritmo mais veloz se comparado anteriormente com a apreciação isolada da leitura de um jornal, de um
livro, ou de uma transmissão televisiva.
As novas tecnologias e cognição corporalizada
temos nos contentado em analisar supericialmente a mudança dos métodos de produção e a reorganização dos luxos informacionais; mas não
temos medido e levado em consideração a inteligência invisível que as
antigas técnicas e as coletividades de trabalho que se contruíam sobre
elas possuem (LÉvY, 1993, p. 145).
A cognição humana desenvolveu-se signiicativamente devido à capacidade de transgredir as leis naturais associadas a sua corporalidade. o corpo é
um campo expressivo que nos dá acesso ao mundo e participa do processo de
formação de conceitos e de sistemas de representação, de tal modo que funciona como um meio e não um im. A construção conceitual se estabelece
primeiramente no corpo a partir das experiências vividas e constantemente
reelaboradas pelo sistema cognitivo. teorizar é uma experiência corporalizada, uma vez que a parceria cérebro-corpo interage indissociavelmente com o
ambiente: “[...] o pensamento se dá em uma rede na qual neurônios, módulos
cognitivos, humanos, instituições de ensino, línguas, sistemas de escrita, livros
e computadores se interconectam, transformam e traduzem as representações”
(LÉvY, 1993, p.135).
A maioria das palavras antes de utilizadas discursivamente existe sob
forma de imagem: a base para a adaptabilidade no processo evolutivo teria
começado pela elaboração de imagens do corpo em funcionamento ao representar o meio externo e as modiicações produzidas no corpo a partir dessa
interação (dAMáSIo, 2000). Se o cérebro gerasse representações minuciosamente organizadas de qualquer parte do organismo, a subjetividade humana e
a consciência da própria existência estariam excluídas do processo de criação
de imagens do corpo.
DESAFIOS IntErmodais
- 69
A consciência do corpo ocorre a partir dos estados em que ele se encontra, ou seja, não ocorre de forma fragmentada. As imagens internas são
derivadas dos estados do corpo, os quais estão em curso, e as representações
estão intimamente relacionadas tanto à regulação do corpo, à sobrevivência e
à mente – que não está vazia no começo do processo de raciocínio – quanto à
compreensão desses mecanismos biológicos associados à capacidade de criação de imagens do corpo1 resultantes do luxo comunicacional.
A suspensão do mapeamento do corpo2 também suspende a mente, uma vez que o sistema sensório-motor e o raciocínio abstrato não
são instâncias separadas na constituição humana: “[...] retirar a presença
do corpo é como retirar o chão em que a mente caminha” (dAMáSIo,
1996, p. 203). o sistema cognitivo produz suas metáforas a partir das
signiicações constituídas pela mediação sígnica na intersecção entre as
imagens internas (procedentes de cada uma das modalidades sensoriais
— visual, auditiva, olfativa, gustatória e sômato-sensitiva) – do corpo e as
informações do meio externo: “[...] se nossos organismos fossem desenhados
de maneiras diferentes, as construções que fazemos do mundo que nos rodeia
seriam igualmente diferentes” (dAMáSIo, 1996, p. 124).
A mente resulta da comunicação corpo-cérebro e das interações que
provêm desse diálogo: “[...] a inluência do corpo na organização da mente
também pode ser detectada nas metáforas que os nossos sistemas cognitivos
têm criado para descrever os acontecimentos e qualidades do mundo que nos
rodeia” (dAMáSIo, 2004, p.216). As imagens internas que emanam do organismo são imagens-construção que se estabelecem no diálogo corpo-mente-cérebro, os quais são base para uma mente essencialmente corpórea. Metáforas
conceituais não estão limitadas à linguagem, mas a todo o sistema conceitual
humano, que se ocupa em representar algo ao mesmo tempo em que está representando seu próprio estado de mudança corporal: “[...] o organismo constituído pela parceria cérebro-corpo interage com o ambiente como um conjunto,
não sendo a interação só do corpo ou só do cérebro” (dAMáSIo, 1996, p.
113-114).
1. para damásio (2004), o cérebro produz duas espécies de imagens do corpo: as imagens da carne, provindas
do interior do corpo (vísceras e meio interior), e imagens de ondas sensitivas especiais derivadas dos órgãos
sensitivos periféricos (retina e/ou ouvido).
2. “podemos imaginar esses mapas como coleções de correspondências entre todo e qualquer ponto do corpo e as
regiões somatossensitivas” (dAMáSIo, 2004, p.122).
70
Situar o corpo como categoria ético-estética e a corporalidade como
processo de enunciação traz importantes inferências epistemológicas: o corpo
como base da experiência humana e como matriz da cognição e comunicação e a corporalidade como um paradigma estabelecido em uma perspectiva
metodológica que recoloca o sujeito no cerne do processo de signiicação e
representação do mundo. para Csordas (2008, p. 19), “[...] a própria linguagem
torna-se compreensível como processo de self quando é entendida não como
representação, mas como desempenho de um modo de estar-no-mundo”. desse modo, o corpo não é mais apenas um elemento situado no mundo, mas ele
expande-se como o próprio mundo.
o conceito expandido de corpo é uma totalidade; ele não é apenas objeto, mas é também sujeito e, sob essa perspectiva, outras dualidades são diluídas
– corpo/mente, razão/emoção, ambiente/sociedade, natureza/cultura, digital/
analógica. A contínua e constante troca de informações entre corpo e ambiente
ocorre praticamente por contaminação, uma vez que ambos se alteram e acabam por estabelecer novas conexões: “[...] ambos são ativos o tempo todo. A
informação internalizada no corpo não chega imune” (grEInEr, 2005, p.43).
A investigação das dimensões técnicas e coletivas da cognição ao longo da história humana – que Lévy (1993, 1996) denomina de ecologia cognitiva – torna-se indispensável uma vez que “[...] uma modiicação técnica é ipso
facto uma modiicação da coletividade cognitiva, implicando novas analogias
e classiicações, novos mundos práticos, sociais e cognitivos” (LÉvY, 1993,
p. 145). todavia, a ecologia cognitiva não se constitui por esquemas rígidos
e classiicações estruturalistas; pelo contrário, deve ser analisada como uma
multiplicidade ininitamente aberta, já que o sentido de uma técnica não é estabelecido apenas em sua concepção. nesse sentido, as coletividades cognitivas
constituem-se a partir das ações dos sujeitos que a compõem e também pelas
técnicas de comunicação e processamento das representações. uma tecnologia
intelectual em si contém muitas outras tecnologias; é um sistema múltiplo e
deve ser analisado como uma rede de interfaces que possibilita conexões ainda
não existentes, pois cada sujeito a interpreta de modo diferenciado atribuindo
novas signiicações: “[...] o sentido de uma técnica nunca se encontra determinado em sua origem” (LÉvY, 1993). É preciso compreender que a tecnologia
[...] é um conceito de relações, conceitos, uma lógica que rege o seu funcionamento e sua interação com o ambiente (SAntAnA, 2006, p.79).
Sob essa ótica, o corpo enquanto mídia interage constantamente com
os aspectos do ambiente em um contínuo processo de troca de experiência
DESAFIOS IntErmodais
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de signiicativa intensidade semiótica – em um looping de representações de
objetos imagéticos, sonoros e textuais. devido a sua capacidade de incorporar
novas tecnologias ao reinterpretar as já existentes, novos conceitos e metáforas
surgem desse luxo intenso de informações e das adaptações tecnológicas.
O corpo como interface
o corpo num mundo cada vez mais tecnológico passa a tomar um lugar que se estabelece de mero espectador/coadjuvante a protagonista das novas
mídias. nessa indissociabilidade do(s) corpo(s) com o meio em que interage,
percebe-se que a relação do indivíduo com as novas tecnologias tem mudado
até mesmo a sua maneira de ver o mundo. Enquanto há algumas décadas a audiência da televisão se portava passivamente frente aos estímulos que recebia,
hoje os indivíduos interagem com aquilo que não só assistem, mas com um
conteúdo que ajudam a construir – e o site Youtube é um bom exemplo disso.
numa sociedade midiática, normatizada por tecnologias, há novas formas de percepção: elas são invisíveis e, portanto, multissensoriais. Assim, não
é possível controla-las (grEInEr; AMorIn, 2010), pois permeia todas as
instâncias de interação e, consequentemente, de comunicação. graças à Internet, principalmente, os movimentos de socialização passam a se expandir com
maior velocidade, e os modos de dizer tornam-se possíveis de maneira plural.
Em outras palavras, não sendo mais necessário um lugar físico para comunicar,
as interações passam a ser multimodais: as conexões são elaboradas com base
no mundo físico, mas seus movimentos se estendem para relações amplamente
virtuais.
para Martins (2008, p. 21), “[...] o sentido de estar em contato ganha
extensões e a percepção se virtualiza”. há uma nova realidade, que vai além daquela criada no corpo a corpo; há, agora, uma hiper-realidade da comunicação
e do sentido (BAudrILLArd, 1991), em que o real tal como o senso comum
o entende é quase que anulado por essa nova possibilidade. Sob inluência das
mídias, o corpo passa a ter extensões: o objeto com que se interage – corpo virtual – leva a novos gestos, comportamentos e rituais. Assim, tal como previra
M. McLuhan, as tecnologias modernas passaram a ser extensões do homem, e
esse, adaptável a meios distintos, ajusta-se a essas novas realidades. de fato, a
realidade pode ser virtual, e a virtualidade também pode ser real (dELEuZE;
72
guAtArrI, 1995; LÉvY, 1993), o que mostra que à medida que o indivíduo se
relaciona com as máquinas, vai incorporando da sua materialidade.
para greiner e Amorin (2010, p. 136), “a presença virtual é de fato uma
conquista de não lugares, mas o corpo físico, que não acompanha isicamente
esta operação, perde-se no universo atemporal das simulações”. para as autoras, o corpo se “deinha” em suas capacidades de percepção, sem conseguir se
posicionar em um só papel de protagonista, de coadjuvante ou até mesmo de
igurante da paisagem. Contudo, essa incapacidade de deinir o próprio lugar
relete a plasticidade do corpo em adaptar-se aos meios. Com o bombardeio
de informações e de novas tecnologias, as percepções acabam se sobrepondo.
A publicidade, por exemplo, utiliza-se não só de estímulos visuais, mas muitas
vezes requer do consumidor que ele interaja pelo toque, que sinta seus cheiros, que seja envolvido por suas palavras. os diversos recursos tecnológicos
que surgem no mercado exigem uma mudança de postura: os novos gadgets
são capazes de reconhecer, pelos movimentos do seu usuário, as suas possíveis
preferências. Máquinas são programadas para simular uma realidade, levando
à crença de que se está, de fato, interagindo com alguém. Basta observar uma
criança que brinca com tablets ou simula um diálogo em celulares3 com uma
desenvoltura espantosa para entender que a relação com os objetos nos
mundo – em especial aqueles que permitem a criação de uma realidade
própria – mudou drasticamente.
de fato, o uso desses recursos parece estabelecer uma nova dimensão, em
que a lógica é de que eles não são apenas elementos que servem a propósitos
especíicos, mas passam a ser uma parte do próprio corpo. A função primeira
dos telefones celulares acaba sendo relegada a um segundo plano. Com aparelhos multifuncionais, os indivíduos não precisam necessariamente dialogar com
outros seres humanos; eles passam a simular a comunicação, ainda que consigo
mesmos. presenciar um concerto por meio da câmera de celulares ou assistir a
uma transmissão pela Internet passa a ser indistinta daquilo que se vê a olho nu.
trata-se de uma mediatização por meio de iltros que criam uma realidade editada, e não uma experiência a ser compartilhada, sentida e ressigniicada.
Essas mudanças não só ocorrem do meio para o homem, mas elas se dão
principalmente a partir dele. para Martins (2008), há um duplo movimento:
3 ver os seguintes exemplos: (1) http://www.youtube.com/watch?v=govj6r-uSBM; (2) http://www.youtube.
com/watch?v=8v9KZo0rat0&feature=related (acesso em 20/10/2012).
DESAFIOS IntErmodais
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“uma vida estimulada externamente e, aparentemente, ser o seu próprio estímulo” (p. 24).
o corpo é mais do que o seu limite físico-biológico (grEInEr; AMorIn, 2010); a interação com o espaço é tão básica quanto a relação com o próprio corpo. Essas relações – intersubjetivas – do corpo consigo mesmo, com o
mundo e com os demais corpos tomam forma em um cenário compartilhado.
roher (2001) corrobora essa ideia ao airmar que o estabelecimento de referência compartilhada é algo que toma forma em meio a um contexto cultural; o
corpo se desenvolve em interação com as pessoas e a cultura em que se insere,
bem como em interação com o espaço.
varella, hompson e rosch (1991) mostram que o sujeito que percebe e o mundo especiicam-se reciprocamente. há um acordo tácito entre os elementos do mundo físico e aquele que é parcialmente idealizado
ao longo da vida, que se molda à medida que interage. E essas mudanças
se projetam na linguagem. para os mesmos autores, é necessário transpor essa geograia lógica de interior versus exterior pela compreensão de
que a cognição não apenas recupera conteúdos mais ou menos estáveis
para a elaboração de conceitos, nem apenas de projeção; trata-se de uma
ação incorporada. Isso decorre do fato de as experiências que moldam a
cognição estarem diretamente conectadas às capacidades sensoriomotoras individuais e por estas últimas estarem inscritas em um contexto
biológico, psicológico e cultural abrangente (vArELLA; thoMpSon;
roSCh, 1991, p. 172-173).
vale enfatizar que os processos sensoriomotores, os mecanismos
de percepção e a ação não estão apenas ligados, mas estão em uma condição de evolução inextricável. É por isso que não podemos mais assumir uma separação entre relações sociais e os aspectos cognitivos, muito menos na dicotomia homem-ambiente. A cognição, essencialmente
corpórea, é vista como fundada e situada socialmente: é, nos termos de
vereza (2010), uma sociocognição.
Assim, corpo e ambiente estão em um continuum – mas não em
looping, pois sem ressigniicação, não há experiência –, em que estabelecem novas interfaces a cada movimento. o mundo físico não é meramente objetivo: há uma elaboração de uma realidade objetiva “entre
parênteses”, nos termos de Maturana (2001), que ocorre pelas experiências. o autor airma que a experiência e a explicação da experiência são
fatos distintos, mas que são vistos como se fossem únicos. o que emerge
74
linguisticamente é aquilo que se pode elaborar pela experiência, o que se
pode dizer do que se vivencia. desse modo, constrói-se uma objetividade que vai além daquela que independe da nossa relexão, imutável, que
é mero ponto de referência em um espaço dito “real”: numa objetividade
entre parênteses, a existência depende do espectador. por isso, essa realidade depende de quem a elabora e esse construto se relete e é moldado
pela linguagem. o movimento por meio da linguagem leva a domínios
de realidades distintas, que são estabelecidas conforme a perspectiva assumida.
Cabe aqui enfatizar que a construção de sentidos depende não
apenas da recepção das experiências, mas pela forma como as pensamos corporeamente. E quando se menciona um pensamento corpóreo,
fala-se em uma subjetividade que também se molda pela ação incorporada. Maturana e varela (1997) mostram que nossos corpos devem ser
compreendidos como estruturas vivas e experienciais, em que interno
e externo, biológico e fenomenológico estão em interação. o corpo, em
constante devir, serve de base para a experiência e nos leva ao entendimento dos conceitos que nós mesmos construímos pela linguagem, pela
socialização, pela cultura. Ao fazermos parte do mundo, colocamo-nos
em uma posição indissociável a ele: somente produzimos signiicados
para ele porque ele próprio é construto. desse modo, pelo fato de entendermos o corpo como um modelo semântico que se molda no luxo da
vida cotidiana (grEInEr, 2005), a tese da corporalidade sustenta que
muitos dos conceitos que construímos surgem a partir de elementos advindos dessa tricotomia corpo-mente-mundo. Essa ica evidenciada na
expressão linguística, tendo em vista que os conceitos que elaboramos
emergem de nossas experiências, por meio de um sistema cognitivo altamente metafórico (LAKoff; johnSon, 1980).
Conceitos de tempo e espaço, por exemplo, só se tornam compreensíveis quando elaborados pela experiência: atividades pregressas icam
para trás; planos futuros serão adiados para mais adiante; um escritório
pode ser pequeno demais para uma reunião com oito pessoas, mas muito grande para uma só pessoa. Conceitos ligados à tecnologia passam a
ser estabelecidos pelo status das interações corpóreas. Lévy (1996) corrobora essa airmação ao demonstrar que as interações situadas no luxo
das informações e das adaptações tecnológicas promovem o surgimento
de novos conceitos.
DESAFIOS IntErmodais
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nesse sentido, é possível acessar uma página da Web, quando antes
qualquer pessoa podia ter acesso ao outro pela simples aproximação física; o movimento que se faz por meio de dispositivos operados via touch
screen nada mais é que uma derivação e uma alteração do toque humano, que hoje se adapta para interagir e acessar esse não lugar disponibilizado pelas redes wi-i. Mencionando essas redes, há ainda a metáfora
da ligação: estar em rede signiica estar ligado a outros indivíduos, ainda
que virtualmente. o contato não é mais concreto, mas é possível ter amigos virtuais, curtir (no sentido de gostar e de apoiar) certa postagem,
compartilhar uma informação numa rede social, entre outros movimentos. palavras associadas à tecnologia incorporam-se ao léxico cotidiano e
até mesmo extrapolam os limites (se é que eles existem) da virtualidade:
alguém pode deletar um amigo não só na rede social e ter uma forte conexão com alguém; pensar bastante sobre algo pode ser referido como
queimar o HD (metáfora da mente como computador). relações amorosas já são possíveis virtualmente, substituindo percepções físicas – pelo
contato com o outro – por genéricos elaborados pela distância: a era digital promove romances iniciados por chats, e as formas de aproximação
apenas se assemelham àquelas abordagens face a face.
A reorganização adaptativa estimulada pela evolução técnico-tecnológica leva a uma reelaboração de sentidos e abre outras perspectivas para o estar no mundo. o caráter multimodal das novas formas de
comunicação, propiciado pelas tecnologias, se evidencia pela expressão
linguística por meio de metáforas cujos domínios estão relacionados ao
contexto digital. Além disso, essas novas formas de dizer estão atreladas
ao modo como se interpreta e ressigniica o mundo: a expansão do corpo
sob esse viés não signiica uma fragmentação de relações, mas uma reorganização na maneira como se alcança e se produz informação. o corpo
expandido reina as combinações multimodais a partir das quais se movimenta pelo mundo, e apesar de esse arranjo acarretar focos múltiplos
de atenção, a cognição é capaz de readaptar-se de forma a não perder
as habilidades desenvolvidas ao longo da vida, mas apenas a aprimorá-las de acordo com determinada/o ação/objeto. hutchins (1996) corrobora essa airmação ao dizer que o uso de artefatos – como os gadgets
– promove uma mudança na natureza cognitiva da ação a ser realizada;
contudo, os saltos de uma composição conceptual para outra não excluem os processos cognitivos elaborados anteriormente; o que ocorre,
76
de fato, é uma reorganização adaptativa: a cognição molda os artefatos,
que moldam a própria cognição. Assim, a composição cognitiva passa a
ser, também, a própria tecnologia com a qual se interage; trata-se, portanto, de um sistema que se retroalimenta, em que o corpo se hibridiza
nos artefatos, reinando a sua percepção, expandindo-se e reinventando-se. A tecnologia se ajusta às capacidades desse corpo, conigurando-se
não só como objeto, mas também como sujeito dos processos cognitivo-conceptuais.
DESAFIOS IntErmodais
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MúSICA E podEr: Algumas questões
josé rios
O poder da música
tratar a música enquanto mera abstração seria o mesmo que deixar
de lado seu poder de apaziguamento do instinto humano ou até mesmo
a quebra desse sentimento. As emoções podem sofrer as mais diversas
alterações a depender dos códigos e intenções musicais moldadas por
habilidosos criadores. Apesar da sua subjetividade enquanto objeto empírico, não reconhecê-la como linguagem com grande poder de despertar sentimentos e, em muitos casos, moldar a ação de indivíduos, seria
ingenuidade. Existe a capacidade de mudanças comportamentais através da música, fruto de uma trama com objetivos bem deinidos em que
autores como Sloboda (2008) em seu livro “a mente musical” remeteria
aos afetos que são cambiáveis por uma linguagem musical graças a um
extraordinário poder de construção simbólica mesmo sem pronunciar
uma única palavra. o diálogo e som dos instrumentos musicais não podem ser deixados de lado por possuir a capacidade de remeter o ouvinte
aos mais variados ambientes a depender do instrumento e sua forma
melódica, rítmica e harmônica. o contexto social em que uma música
é executada é outro fator que merece observação no que diz respeito
à educação através da música. nesse caminho Adorno (1999) relembra
a função disciplinadora da música como um bem supremo, porém no
sentido de domínio econômico mediado por contornos musicais imposDESAFIOS IntErmodais
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tos sem que o sujeito se dê conta de que sua preferência musical está
sendo modelada por certa massiicação imposta pela indústria cultural.
Apesar de suas críticas direcionadas à música popular comercial e suas
intenções claras condução das massas se abstraindo da experiência estética e desempenhando uma função alienante através de uma “obediência
rítmica” (coletivismo direcionado às massa de viés autoritário que inclui marcha e dança) e “efeito emocional” através da catarse. A deinição
normativa de Adorno, que coloca a musica popular como inferior, não a
afasta de sentimentos que podem ser despertados nos ouvintes sendo ela
erudita ou “ligeira”. As premissas adornianas apontam para a repetição
exaustiva na música popular e isso acaba afastando o ouvinte de uma
posição crítica e o torna escravo sem exigências. o cientista da escola
de frankfurt pode ter razão em determinados aspectos e contextos em
que esse tipo de música está inserido, mas não todos. provavelmente a
música ligeira tenha sido rotulada desta maneira devido a suas intenções
comerciais de tornar um individuo em ouvinte passivo para que as necessidades mercadológicas sejam atendidas. o que também não deixa
de ser uma forma de moldar e educar o sujeito. Com isso não queremos
elucidar modelos de educação enquanto bons ou ruins, mas salientar o
direcionamento de indivíduos a atos graças a contornos musicais. Em
relação à repetição exaustiva de uma música ou elementos musicais, as
intenções não podem tomar um viés simplista que a reduz a objetivos
comerciais ou ideológicos, pois existem países em que certas repetições
nas iguras musicais são bastante recorrentes e tem relação com determinados rituais com o exemplo do que acontece em alguns países dos
continentes asiático e africano. Sejam ritos cívicos solenes, religiosos ou
políticos, a música é executada como forma manifestação ou até mesmo
diálogos entre divindades e que são marcados por alguns elementos musicais que se repetem. um mantra, na visão ocidental, segue o mesmo
formato o tempo inteiro. na música indiana é possível perceber um instrumento fazendo variações em torno de outro que faz um movimento
repetitivo e único até se indar a execução. rivière (1989) nos mostra que
os ritos podem ser vistos como manifestações públicas que exibe uma
identidade exprimindo uma vontade de existência na comunhão de certos ideais conseguidos através da integração da coletividade. A música
poder ser vista como um dos importantes instrumentos desta integração
e que já acontecia desde antes de Cristo.
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na antiguidade a música já era vista como o princípio de todos os
encantos da vida. Aristóteles a sinalizava enquanto importante elemento
na educação das crianças colocando-a como um bem útil ao prazer e
caminho da felicidade. na grécia a música estava sempre ligada a manifestações sociais, culturais e religiosas e com grande poder de mudar a
natureza moral do homem e do Estado. Seguindo as pistas deixadas por
platão, a música é responsável pela busca do equilíbrio da alma e capaz
de produzir conhecimento. nasser (1997) mostra que os gregos acreditavam que os sons musicais e processos naturais poderiam inluenciar a
conduta humana podendo induzir à ação, manifestar a força, o ânimo,
possui o poder de provocar a fraqueza no equilíbrio moral e pode produzir temporariamente um estado de inconsciência e levar ao êxtase e
o delírio (nASSEr, 1997). há uma dimensão psicológica e importante
que a música pode alcançar e com isso atingir os objetivos estabelecidos
pelos fomentadores dessa arte que pode ser colocada dentro do campo
da retórica. para platão havia indícios de uma seleção das músicas para
que só sejam escolhidas aquelas que contribuam para a formação moral
do cidadão. Se há a possibilidade de formar intelectualmente um indivíduo através da música, baseado nos critérios morais gregos, também é
possível conseguir o efeito contrário e isso só faz reforçar o grande poder
que os elementos musicais possuem no que diz respeito a trabalhar os
“ânimos” e conduzir à ação.
não só a música, enquanto estrutura, contribuía e contribui para
a mudança de humor entre os indivíduos, o timbre dos instrumentos
carrega toda uma semântica, construída culturalmente, que remete os
ouvintes para os mais diversos ambientes cognitivos. Aqui retornemos
mais uma vez para nasser (1997) quando cita os dois instrumentos musicais que eram mais utilizados na grécia: a citara e o aulos. o primeiro
possui um som suave e o segundo uma emissão mais penetrante e com
isso, segundo os gregos, eram detentores de qualidades éticas que podiam ir da exaltação dos nobres até violência e degradação moral. Sekef
(2007) aponta para esse mesmo olhar em relação ao som enquanto fenômeno físico/acústico com a capacidade de alteração comportamental.
para a autora o som afeta o sistema nervoso autônomo que é a base da
reação emocional. As vibrações sonoras nos facultam associações, evocações e integrações de experiências, mas essas emoções sofrem também
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inluência da cultura para que atinja a dimensão afetiva do ouvinte propiciando respostas comportamentais. (SEKEff, 2007).
o campo da retórica abordado por Aristóteles afasta-se da arte da
persuasão e se aproxima da dialética. “Sua tarefa não consiste em persuadir, mas em discernir os meios de persuadir a propósito de cada questão,
como sucede com todas as demais artes” (ArIStÓtELES, 1964:31). A
música pode ser considerada um desses meios de persuasão e que atua
num modo coercitivo indireto, ou seja, o individuo sempre acha que está
agindo por vontade própria e nunca pela força de uma “ordem” dada.
Evoquemos, portanto, o termo “retórica musical” para demonstrar mais
um campo de estudo importante para a compreensão do poder da música. As autoridades da contra-reforma aprovaram a palestrina não pelo
fato de sua estética, mas por emocionar os leigos em música para que
eles pudessem tratar o texto da missa se apropriando deles. Seguindo as
pistas de Elias (1995) em que ele narra um Mozart, num ambiente palaciano, contratado para tocar música de entretenimento onde o instrumentista inventava efeitos no piano que agradavam bastante aos seus ouvintes. Esses dois exemplos servem para abrir uma discussão relacionada
ao poder da música nas mãos de habilidosos criadores e fomentadores.
É racional mencionar que os compositores, antes de qualquer coisa, são
também ouvintes que utilizam “modelos” musicais mesclados para dar
sentido à sua obra. Até os grandes compositores eruditos trabalhavam a
partir de algumas fórmulas misturadas para dar coloridos diferenciados
para suas composições e com isso conquistar a audiência da corte e das
autoridades da igreja para qual prestavam serviços como no caso de Mozart. piedade (2006) traz-nos uma importante contribuição alicerçada
na história e mostra que a música passou a ser estruturada, principalmente no período barroco, e sua criação era pensada como um grande
discurso com intenções a serem alcançadas bem deinidas. Esses estados
emocionais idealizados foram cristalizados em iguras musicais que despertam amor, ódio, felicidade, dúvida, tristeza dentre muitos outros. o
autor ainda faz uma relação análoga com a literatura como se cada igura
retórica representasse a versão musical de cada palavra e pensamento e
com isso atingir os afetos dos ouvintes.
A retórica musical pode ser colocada como um recurso que busca
o convencimento através impulsos de natureza psicológica o psicólogo e pesquisador Maslow estabelece uma hierarquia de impulsos e com
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isso é aberta uma perspectiva para uma melhor compreensão acerca dos
recursos da música. Em seus estudos ele cita os impulsos isiológicos
(asseguram a sobrevivência); impulsos de segurança física (sentimento de estabilidade e equilíbrio); impulsos de afetos (de receber, de dar
amor e fazer parte de um grupo); impulsos de autoestima; impulsos de
prestígio pessoal (de valorização, individualização); impulso de auto-realização (concretização de potencialidades, de aptidões e aspirações
do individuo). partindo para um nível de envolvimento podemos dizer que esses impulsos possuem natureza psicossocial, psicobiológica e
psicoespiritual (MASLoW, 1969 apud SEKEff, 2007). Apoiado nesses
conceitos percebe-se que a retórica musical atinge diretamente a mente
humana através de um caminho que pretende dar a sensação de que as
necessidades do indivíduo podem ser atendidas ou até mesmo remetê-lo a ambientes que podem mudar e transformar sua racionalidade em
torno de uma ideologia. tratando-se de política o efeito é similar e a música torna-se um elemento de grande importância por estar carregada de
signiicações explícitas e implícitas para legitimar quem está no poder e
acentuar os anseios dos expectadores para colocar alguém no poder.
Poder político
para início de discussão de um tema que pode ganhar dimensões
extensas e fugir do escopo desse trabalho, é necessário elucidar que o
poder político observado aqui será relacionado à construção de imagem
de um governante. para isso pretendemos alcançar certo distanciamento
entre as palavras “força” e “poder” mesmo sabendo que o poder, em seus
estágios profundos, tem como sua forma antecedente a força. Canetti
(1995) abre caminho para uma discussão epistemológica sobre essa relação entre força e poder. o autor faz uma analogia à “natureza” para dar
mais clareza a essa premissa citando o exemplo do gato quando está a
brincar com o rato antes de devorá-lo. nesse momento o felino exerce
uma “força” sobre o roedor quando o deixa à sua mercê. Ele só o solta
para brincar antes de devorá-lo porque sabe que possui o “poder” de
capturá-lo outra vez e até o ponto em que ele estiver certo que pode pegá-lo, a situação está sobre controle, ou seja, está sob seu poder. A política
não se difere muito desse exemplo citado por Canetti onde o gato pode
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ser representado pelos governantes e o rato pela população governada.
o rato, quando é solto pelo gato, tem a sensação que está livre o pode
correr. A sensação dos governados numa república não teria que ser a
mesma do rato citado por Canetti para alçar ainda mais a hegemonia de
quem está no poder? não há dúvida que existe o sentimento de liberdade é iminente, porém ela é controlada através das regras (leis) impostas
pela política dos governantes. gramsci (1989) sinaliza para um processo
formador da vontade coletiva em busca do convencimento através de
uma fantasia artística para dar forma mais concreta às paixões políticas
e com isso formar a ideologia que leva alguém ao governo ou faça com
que suas leis sejam bem aceitas pelos governados. na política narrada
por Aristóteles é possível perceber sua pretensão em mostrar que um Estado também pode ser considerado uma sociedade e a esperança de um
“bem”, com a possibilidade ser visto como uma vantagem no âmbito de
sociedade política. Ele faz distinções entre poder de um rei e de um magistrado da república. o primeiro governa sozinho e enquanto for vivo
e o segundo segue uma constituição. devemos, portanto, reinterpretar
esse pensamento, pois um rei precisa de conselheiros para governar e
ainda existe a igreja com o seu poder de abençoar um novo monarca em
nome de “deus” como cita Burke (1989) em relação a coroação de Luiz
XIv. política e religião sempre formaram um par importante que atende
aos objetivos dos dois lados.
A religião possui sua ação política em relação à sociedade e dentro das muralhas dos templos ocorre fenômeno similar que reverbera
posteriormente na sociedade. um bom exemplo que podemos citar são
os conclaves para eleição de um papa que será o chefe da igreja. gramsci (1989) evoca o papel hegemônico da igreja em relação ao modo
de pensar da sociedade e principalmente dos camponeses. um dos seus
argumentos paira em torno de que todo homem deveria ser cristão colocando a igura humana e o cristianismo como sinônimo. de acordo
com a bíblia, jesus deixa claro que sempre existirão ricos e pobres e essa
questão da pobreza ganhou grande importância para a igreja que teria
que passar a imagem cristã de protetora dos pobres e oprimidos. o professor oro (2003) desenvolve uma discussão importante em relação ao
poder ideológico associado ao modo coercitivo da igreja de mãos dadas
com a política eleitoral. Ele faz alusão a uma eicácia política associada
ao carisma da igreja em relação aos ieis. os candidatos apoiados pela
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instituição religiosa tinham seus nomes e números de candidatura mencionados em todos os cultos das igrejas universais, principalmente nas
celebrações religiosas mais importantes como os cultos dominicais e em
alguns deles o candidato era apresentado em pessoa como um representante da igreja no congresso nacional. outro dado importante levantando pelo antropólogo diz respeito a estratégia da igreja em fazer um
levantamento de todos os eleitores com 16 anos de idade, pertencentes à
instituição religiosa, para aglutiná-los aos demais eleitores já cadastrados
e completar os dados para execução de um recenseamento que aponta
quantos candidatos apoiados pela igreja cada estado pode obter. A partir
daí nota-se que existe uma estratégia importante que desponta para uma
possibilidade de eleição de representantes apenas com o voto dos ieis
e um dentre os mais variados argumentos está pautado na “vontade de
deus”. voltemos aqui para a arte retórica de Aristóteles onde o ilosofo
diz que a persuasão é obtida por efeito do caráter moral, “quando o discurso procede de maneira que deixa a impressão do orador ser digno de
coniança” (ArIStotELES, 1964, p.33). A representatividade religiosa
da igreja pode servir de grande ajuda para direcionar a opinião dos ieis
na escolha de um candidato, pois, para muitos, esses pastores representam deus ou a palavra do Senhor. É o poder da igreja a serviço do poder
político ou ela mesma com a possibilidade representar esse poder através
da escolha de candidatos próprios que supostamente legislarão em favor
do povo quando eleitos. É evidente que existem outras religiões servindo
de importante apoio para os objetivos políticos, mas não ampliaremos o
assunto e nem o deixaremos aprisionado dentro das paredes dos mais
variados templos religiosos. nossa meta é ilustrar as relações de poder
sem adentrar no viés da religiosidade.
o poder político não é algo que nasce com o indivíduo, apesar de
que o próprio Aristóteles já mostrava que existe talentos para governar
e talento para ser governado. A construção de poder de um governante não se dá de forma ingênua, ela é tramada para que o indivíduo do
“poder” seja visto com grande representatividade pelos governados. Essa
construção se dá no campo simbólico com os mais variados instrumentos e a música está dentre eles com força surpreendente. As ferramentas
de construção da imagem de um governante são bastante diversiicadas.
Burke (1994) trás à luz as técnicas de persuasão utilizadas para propagação da imagem de um rei forte enquanto muitos escritores do século
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XvII consideravam Luiz XIv como um rei fraco. As pinturas eram como
mídias que expunham um rei imponente cercado de objetos que levavam
à associação com o poder e a magniicência. As mídias que ajudaram a
construir a imagem do rei Sol (como era chamado Luiz XIv) iam de
moedas até poemas e a música fazia parte dos ritos de entrada triunfal do
rei com se fosse um homem “santo” que merecesse reverência de todos.
Ao soar os clarins era como se um deus estivesse chegando para ser aclamado. nesse sentido, rivierè (1989) traz importantes contribuições no
que diz respeito ao cortejo e ritos de honras prestados aos poderosos. o
autor ressalva a entrada de um governante em forma de recepção pública
onde eram (e ainda são) mesclados o protocolo da nobreza, o jubilo popular, o espetáculo cristão e o simbolismo das tradições urbanas, civis e
militares. A música estava sempre presente, seja ela com bandas marciais
ou cantadas por aqueles que supostamente serão governados. É um ritual que busca colocar o poderoso como forte, imponente, justo e piedoso.
os ritos de coroação antecedem a saída do governante para que todos
tenham um contato visual. É uma liturgia, segundo rivierè, que envolve
a religiosidade e a política. no caso dos reis e imperadores, os gestos
simbólicos são associados a orações que abençoam os ornamentos reais
e a espada. Após a coroação segue o ritual de saudação com o soar dos
clarins. Atualmente, quando um chefe de Estado é recebido, ou até eleito
pelo “povo”, um grande cortejo é organizado e é possível perceber reminiscências das entradas triunfais dos reis na idade média. É a ligação dos
acontecimentos políticos com a festa, no sentido de cerimônia ou rito,
que é tramada como forma de legitimação do poder que confere status
político ao governante e a música exerce um papel sui generis nessas celebrações.
O casamento: música e poder político
para uma discussão sobre música e poder é importante pensar em
duas esferas: de um lado os governantes (os que estão no poder e aqueles
que desejam chegar ao poder) e de outro a “massa” e seus extratos sociais
que aqui podemos chamar de dominados. Esses indivíduos “governados”
ou “governáveis” também possuem o poder de lutar e até derrubar quem
está no governo, mas a hegemonia ou poder hegemônico do soberano
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geralmente silencia esses anseios sem que os governados se deem conta
que correntes simbólicas estão os aprisionando. Esse silêncio acontece
através da formação de uma vontade coletiva em favor do governante.
gramsci (1989) nos mostra esse processo quando aponta para a existência de uma trama que trabalha a fantasia artística dos indivíduos para
formatar concretamente as paixões políticas. A música é um importante
recurso nessa legitimação de poder, pois ela atua diretamente nas emoções dos indivíduos deixando-os, dentre muitos outros sentimentos, incitados, excitados, inebriados e até acometidos. A música pode ser também uma ferramenta importante para rebelar a “massa” expondo todas
suas revoltas e anseios podendo também ser um caminho importante
para derrubar um governo ou regime político. dentro de uma hierarquia
social a música pode ser elemento importante na difusão de idéias como
cita Ikeda:
Comumente, nos grupamentos humanos hierarquizados, tanto por parte
dos setores hegemônicos quanto pelo lado daqueles que se lhes opõem,
a música tem uso político. de um lado, como elemento de distinção e
identidade classista, servindo aos processos de dominação ideológica,
de outro, como contestação desta se/ou como motivação para ações que
visam a transformação da sociedade e também como forma de identidade e resistência, ou, ainda, apenas para o desvelamento da realidade.
(IKEdA, 2001, p.5)
Moura (1977) também apresenta um importante pensamento em
relação aos muitos lados que a música pode servir para difundir uma
ideologia. o autor usa o termo “produção de consciência” nos homens
como considerável elemento da prática criativa de um compositor de
canções políticas. o criador musical pode estar ao lado do governo (legitimar o poder); ao lado de quem quer chegar ao governo (espetáculo
que pretende dar a sensação de que todas as necessidades da sociedade
serão atendidas); e ao lado dos opositores do sistema hegemônico (grupos sociais que pretendem derrubar um governo ou sistema político).
As preferências musicais dos ouvintes podem ser determinantes para a
composição de uma música de viés político. Se voltássemos na história
para a revolução francesa veríamos que a Marshelesa só se tornou hino
oicial depois de quase 100 anos após sua criação devido ao gosto musiDESAFIOS IntErmodais
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cal de napoleão. Segundo Squef (1989), o imperador só permitiu o seu
canto pelos soldados na grande vitória de Austerlitz e nunca mais. não é
possível dissociar o “gosto” musical do grupo social para o qual a música
será composta, pois o que pode parecer familiar para um pode representar tortura para outro grupo.
o poder da música possui tamanha representatividade que muitas
vezes ela era até utilizada como instrumento de tortura como no caso
da utilização em interrogatórios pelas forças de segurança israelenses.
Conforme o relatório produzido pela organização Human Rights Watch,
a programação musical variava de acordo com a ala dos interrogatórios,
ou seja, cada espaço poderia ter uma música diferente como forma de
tortura cultural. Segundo o relatório, um preso conta que foi amarrando
a um poste a ao ouvir a música em volume alto ele tinha a sensação que
ia morrer e muitos dos torturados acreditavam que se tratava de música
clássica operística ocidental, para muitos encarcerados ela soava como
não familiar e até bizarra.1 vemos, portanto, que a cultura pode exercer
inluência no tipo de sentimento despertado através da música. outro
exemplo que merece destaque é o da própria revolução francesa e a criação de músicas voltadas principalmente para as massas. Segundo Squef
(1989), nesse período a dramaticidade na música era geralmente feita
por encomenda, mas em Beethoven essa dramaticidade surge a partir da
existência de novos tempos. Seria como se a criação artística se transformasse no real ou até mesmo a realidade político social fosse traduzida em
formas musicas. A sinfonia “Eroica”2 tem no seu segundo movimento a
conhecida marcha fúnebre que pode perfeitamente remeter os ouvintes
a um ambiente contrito que faz referência aos recentes mortos dos primeiros anos de revolução. vê-se, portanto, a criação musical sofrendo
intervenções dos fatos vividos numa sociedade e as obras de compositores pondo-se a serviço de uma política voltada para as massas, mesmo
algumas possuindo intenções claras de domínio de classes superiores.
Segundo Weber (1995), a igreja colocava a música como a mais
interior das artes, porém as forma musicais não poderiam exercer auto1. huMAn rIghtS WAtCh. torture and Ill treatment, Israel’s Interrogation of palestinians from the occupied
territories. junho/1994. disponível em: <www.hrw.org/reports/1994/israel/>. Acesso em: 25/01/2010.
2. Sinfonia composta em 1804 que é grafada sem o “h” , pois a palavra italiana parecerá mais forte para Beethoven
e seus editores. (SQuEff, 1989)
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nomia já que isso representava grande perigo para a vivência religiosa.
Se a instituição religiosa temia esse perigo era porque a música não era
tão inofensiva assim. o sociólogo mostra o poder da música como concorrência aos dogmas da igreja que, por sua vez, como fez com outras
artes, controlou as criações musicais para que essas fossem instrumentos
importantes de legitimação do magistério da Igreja. Aqui podemos ver,
seguindo as pistas de Weber, que a racionalização da música parte de um
pressuposto da autonomização da arte que a coloca com valores próprios
que acabam competindo com os da religião. por isso Weber nos traz
o termo “ingenuidade original” mostrando que arte e religião podem
se encaixar desde que a arte seja um acessório apenas. o pensamento
Weberiano mostra a existência de dois poderes (música e religião) com
suas retóricas que podem inluenciar uma sociedade. o mesmo pode
acontecer quando se fala de outro grande poder: a política. vemos, portanto, que as celebrações político religiosas têm a música com elemento
fundamental.
Seja numa cerimônia de coroação, visita de um governante a outra
localidade ou um processo político-eleitoral, a música está sempre presente e repleta de modelos musicais que se repetem para irmar a mensagem nas mentes dos ouvintes. Contrariando as formas repetitivas da
música criticadas no pensamento Adorniano, no âmbito do rito rivierè
(1989) aponta para as repetições dessas formas enquanto importantes
para enunciar as intenções de alcançar a obediência e integração social.
retomando nosso raciocínio em relação à música para legitimar o poder
e àquela que objetiva levar um individuo ao poder, podemos discutir as
premissas de rivierè de obediência e integração social. nos dois casos o
autor pode encaixar essas colocações. na legitimação do poder a música
vai servir para dar o tom entre governo e governados e mostrar que todos precisam seguir leis e decretos para que haja integração entres os
indivíduos. de certa forma é uma maneira de mostrar de quem é o poder
hegemônico. no âmbito eleitoral a obediência pode ser eiciente através
da repetição das formas musicais que tem por objetivo ixar uma mensagem política através do despertar de afetos nos ouvintes. Com isso
muitos podem vir a obedecer a uma mensagem que pretende persuadir
os indivíduos através da memória fazendo com que estes não esqueçam
o nome do candidato no momento do pleito. A integração social, no
caso do poder eleitoral, situa-se do campo das relações entres as pessoas.
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talvez seja o maior objetivo numa eleição: ter maior número de votos.
não se pode esquecer que a integração social depende também da esfera
cultural e a música precisa estar dentro deste contexto para que sua eicácia seja ampla no sentido de proliferar ideias de cunho político. A música
faz com que indivíduos partilhem entre si ideias que são proliferadas
sob formas musicais que abrem caminho para que o discurso verbal seja
melhor assimilado.
para Moura (1977) uma música pode representar um produto
cultural ou ideológico e, portanto, é sempre um produto da consciência
social. Com isso podemos dizer que toda canção política desempenha
um papel social na medida em que sua intervenção direta objetiva certa
integração daquilo que é vivido por boa parte da sociedade para que
esses elementos sejam vistos num quadro mais amplo no âmbito da
produção de sentido. o autor ainda defende que a música possui um importante papel de despertar consciências e mobilização de pessoas que
entram em contato com ela. Essa movimentação social pode ser motivada não só através de canções, mas também pelo poder sinestésico3
da música em favor da política. Mais uma vez entraremos num campo
multidisciplinar para elucidar a relação da música de intervenção com
objetivos políticos bem deinidos, tramados e reproduzidos em formatos melódico, harmônicos e rítmicos para despertar afetos dos ouvintes.
Sloboda (2005) traz uma importante contribuição para os estudos sobre
investigação direcionada à psicologia cognitiva da música e ele coloca
como fundamentais os fatores emocionais para que a música possua a
capacidade de inluenciar as pessoas. A consciência e mobilização, discutida por Moura (1977), pode perfeitamente ser associada à emoção
que possui papel decisivo na construção (ou desconstrução) no nosso
agir e pensar. A partir daí é possível dizer que a música pode ser considerada forma de expressão de sentimentos e constituem uma das maneiras em que o “real” se relete na consciência dos homens. A música
pode ser vista como um diálogo e exerce inluências nas esferas do consciente e do inconsciente. os gregos, segundo nasser, entendiam que a
música era capaz de agregar os princípios éticos, estéticos e intelectuais,
3. A palavra sinestesia é de origem grega signiica a reunião de múltiplas sensações ( Sin + aisthesis ). desde o
princípio este conceito teve fundamento na interrelação de todos os sentidos, com a estimulação de um órgão
sensitivo o pela estimulação de outro. É uma experiência de caráter pessoal (poLI, 2008)
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e sua prática tinha grande representatividade para determinar as normas
de conduta moral. A educação musical na grécia visava a estruturação
do indivíduo com o Estado. Evoquemos, portanto, a doutrina do ethos
como expressão de ordenação, diferenciação e equilíbrio dos componentes rítmicos, melódicos e poéticos. “A sincronicidade de todos esses elementos constituía um fator determinante na inluência da música sobre
o caráter humano. Essa concepção revela o porquê a música era considerada atributo fundamental no sistema político e educacional do estado.
(nASSEr, 1997, p.243).
Em diversos momentos históricos a música esteve sempre presente. Squef (1989) cita como exemplo o dia da morte de Luiz XvI em que
os soldados que acompanharam o cortejo fúnebre do rei com um tempo
rítmico alegre muito usado nas canzonettas, uma das peças mais características da opera bufa. nesse sentido é possível salientar uma determinada emoção que poderia reletir a alegria dos algozes do rei. Squef abre
caminho para mais uma relexão interessante em relação ao casamento
da música com o poder político mostrando que as criações musicais são
direcionadas para as massas. o autor mostra que a orquestração possuiu
grande importância na frança do Século XvIII e não apenas para recintos fechados. o conservatório de música, através de seu criador (Sarrette) excluiu os instrumentos de cordas do ensino gratuito em que o
Estado era mentor. Com isso foram formados pelo conservatório mais
de 1800 músicos de sopro em poucos anos. o objetivo disso não tem
nada de ingênuo e reside na forma sonora de grandes proporções para
que a revolução também se izesse ouvir como música, e através disso, os
instrumentos de sopro, principalmente os metais, cumpriam esse papel.
(SQuEff,1989).
falar em música como mera arte do sensível, seria como mergulhar num mar de ingenuidade, pois ela, no âmbito político, é geralmente
usada para manipular e convencer. Boccia (2007) aponta para uma importante relexão e mostra que a música pode possuir interesses dúbios
mesmo sendo ela aplicada a rituais religiosos, entretenimento ou educação. na política isso não se difere e o convencimento através de formas musicais se torna tão fundamental ao ponto do ouvinte se sentir tão
satisfeito como se tivesse bebido água quando estava com sede. Sekef
(2007) sinaliza arte como forma organizadora de experiências e emoção
aparece como agente propulsor da atividade artística. Isso mostra que
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o fazer musical é sempre animado pela afetividade. A música que serve
à política, assim como a música que serviu e ainda serve à igreja, está
sempre objetivando a legitimação de algo, portanto, as experiências cognitivas do grupo para o qual ela será criada são de grande importância
para quem vai compor a música.
no âmbito da construção da imagem de um governante essa trama
se torna ainda mais acintosa no que diz respeito ao despertar de emoções
e até mesmo tensões. A massiicação toma formato de um ritual político,
mesmo efêmero, que promove a festa (no caso de quem pretende ascender ao poder) e o que visa a legitimação de autoridade ou conirmação hegemônica (daqueles que estão no poder). nesse caminho rivierè
(1989) elucida as liturgias políticas. o autor defende que o ato político
sempre tendeu à ritualização, pois o rito é uma maneira teatral de dar
crédito a uma superioridade obtendo respeito e honra através de símbolos variados. A música pode, nesse caso, ser considerada uma importante
ferramenta que pode remeter o indivíduo aos mais variados ambientes
causando-lhe emoções que conduzem à ação. Esses objetivos podem ser
atingidos através o inconsciente do ouvinte que muitas vezes é colocado
enquanto passivo segundo a premissa adorniana, A política, enquanto
rito, exige momentos solenes e de exaltação coletiva em que a música
torna-se elemento central de uma estratégia de convencimento. A gênese
da música política, segundo Ikeda (2001), pode ser observada a partir
de dois setores: o hegemônico e aqueles que se opõem. no primeiro a
música serve aos interesses de dominação ideológica e no segundo pode
ser marcado pela contestação em relação ao poder hegemônico ou motivações das ações que visam transformar a sociedade. dentre outras
funções sociais da música o autor ressalva o lazer, a identidade social
e a sociabilidade. Esse papel social da música não poderia ser desempenhado se ela não despertasse nenhum tipo de emoção nos indivíduos
mesmo que esteja sendo executada em rituais religiosos. retornemos a
Sekef (2007) quando a autora fala das mobilizações das massas através
da música e que esta possui um importante poder que é o de atenuar as
funções críticas e incitar a ação. geralmente é uma música com linha
melódica simples dotada de frases curtas e repetitivas para a fácil memorização da “massa” e seu caráter afetivo pode abrir a possibilidade de
transformação em canção de luta. Com isso é possível retornar ao pensamento de Moura (1977) e a canção política de intervenção direta onde
94
o autor destaca essas criações como produções ideológicas que passam
a um primeiro plano do quotidiano e possuem grande responsabilidade
no esvaziamento das consciências através de um suborno onde a moeda
é o bem-estar e que possui o objetivo de ocultar e deixar inquestionados
alguns atos que fogem das regras da sociedade em que a canção será
inserida. É para esse “bem estar” que a música política, através do formato estético musical citado por Sekef (2007), consegue despertar sentimentos individuais (que se transformam em coletivos através da integração social das pessoas) e direcionar a ação de um grupo. na período da
revolução francesa a criação musical foi voltada principalmente para as
massas e teve grande contribuição histórica para a música de propagandas políticas e os jingles das sociedades modernas devem muito a esse
acontecimento histórico. A música pode ser considerada um elemento
invisível e sensitivo com um grande poder de convencimento que pode
conduzir a uma ação sem sequer que o indivíduo perceba que está agindo por impulsos de ordem psicológica.
Ideias e questionamentos
É importante relembrar que a dimensão desse estudo contempla a música sem nenhum discurso verbal. uma análise que incluísse a letra (discurso
verbal) na música é bastante instigante e ampliaria bastante esse trabalho o que
não vem ao caso no momento, mas que pode ser observado em outra oportunidade. Muitas são as dimensões que a relação da música com o poder pode ser
observada, porém nosso estudo concentrou-se no poder que a música possui
em despertar afetividades e sua utilização no sentido de moldar grupos sociais
na direção de um objetivo previamente tramado por políticos e proissionais
do marketing.
A música já era vista como arte desde a antiguidade e os gregos acreditavam que ela era capaz de produzir conhecimento, despertar afetos e conduzir o indivíduo à felicidade. Evidentemente precisamos destacar dois pontos
para que esse efeito seja atingido: a cultura e as experiências cognitivas desse
indivíduo. fica, portanto, um problema relacionado ao poder da música em
indivíduos com pouca experiência cognitiva como os bebês recém-nascidos.
Esses infantes estão se aculturando e tendo o primeiro contato com experiências estético musical. Como se explicam determinadas músicas acalmarem
DESAFIOS IntErmodais
- 95
ou excitarem essas crianças? há uma diversidade de estudos nesse sentido no
campo da psicanálise, psicologia e até mesmo na medicina. Entretanto nenhum
conclusivo.
o casamento entre música e política objetiva trabalhar a fantasia artística e a produção de consciência através do inconsciente graças a elementos
musicais cuidadosamente escolhidos por habilidosos compositores sob orientação de publicitários e marqueteiros. um dos objetivos é o esvaziamento de
qualquer pensamento negativo do ouvinte em relação ao postulante a cargo
político. A música, nesse caso, abre caminhos para a assimilação do discurso
verbal que expõe qualidades de um candidato e que é tramado por proissionais
da comunicação. É uma temática que envolve afetividades direcionadas e codiicadas na forma de elementos musicais em que um criador musical pode ser
considerado enquanto tradutor e algumas vezes manipulador de emoções de
supostos ouvintes. A música a serviço da política é feita para o entretenimento
das massas através da promoção de certo bem estar que atenua o pensamento
crítico dos indivíduos. também serve para incitar uma atitude de luta contra
um determinado poder político ou homem do poder. Existem músicas na política eleitoral que são utilizadas para desqualiicar um candidato, mas trataremos dessa premissa em outra oportunidade
Seja na antiguidade ou na revolução francesa podemos ver a música
atendendo a ins políticos nas mais diversas esferas sociais. Ela é um produto
cultural que desempenha importante papel social e é sempre um produto da
consciência social e que agrega princípios éticos, estéticos e intelectuais que
interferem no caráter humano. no caso da política eleitoral a música representa
um dos elementos de um rito marcado por elementos codiicados e repetitivos
com o objetivo de legitimação de um candidato. Ela é parte integrante de momentos solenes e de exaltação coletiva como comícios, caminhadas, carreatas,
dentre outros.
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AfECtoS SErtÂnICoS: A Ópera da Caatinga
janos Schettini
Bênção
Assim como o cantador chegante
Peço licença nesse instante
Ao sinhô e à senhora,
Pra contar essa história
Que a obra de elomar
A caatinga vem mostrar
Que me traz um grande alívio
evoé, meu São Dionísio!
um gênero artístico, até a sua consolidação, tem de experimentar vários
elementos para no momento oportuno eclodir. Logo, com o gênero operístico
não foi diferente - desde os trovadores que atravessavam a Europa acompanhados de suas cantigas, que em sua maioria, tratavam das aventuras, anseios, perigos, emoções realmente vividas ou não. As narrações epopeicas trovadorescas
traziam imbricados os contos, o drama popular e, desde os errantes menestréis,
os primeiros traços do pomposo gênero operístico começavam a surgir. outros
contornos surgiram nas cerimônias religiosas, nas escadarias das catedrais - a
pergunta do narrador e a resposta do coro de iéis é um espetáculo bem simples
de teatro religioso, o oratório, outro gênero que com suas práticas exerceu um
grande peso na arte musical até o século XvIII.
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DESAFIOS IntErmodais
- 99
Segundo Berthold, um dos eventos que marcaram o surgimento da ópera foi uma confusão envolvendo vicenzo galilei, pai de galileu galilei, também matemático que publicou a obra altamente erudita sobre teoria da música,
Dialogo della Musica Antica e della Moderna. Sendo assim:
vicenzo pertencia ao cenáculo lorentino de conde givanni de’ Bardi,
um círculo acadêmico. (...) Bardi, com seu Amico Fido (o Amigo fiel)
encenado em 1585 por Buontalenti, foi aclamado por toda florença. Este
amigo e patrono escolheu vincenzo como seu interlocutor no animado debate sobre a polifonia contemporânea e composição instrumental.
Enquanto Bardi defendeu a posição mais moderna nesse diálogo, pois,
ainal, devia a seus amigos, os músicos lorentinos, a música festiva e os
intermédios de dança de seu Amico Fido, vicenzo atacou com palavras
duras a música cortês de seu tempo. Acusava-a de impropriedade e chamava-a de “prostituta depravada e sem pudor”. Exigiu a subordinação
da música a poesia e, como exemplo de que pretendia dizer com stilo
representativo da composição do futuro, musicou algumas passagens da
Divina Comédia de dante e as lamentações de jeremias. Em 1594, três
anos depois da morte de vicenzo galilei, a primeira obra no novo estilo
dramático foi encenada diante de um círculo pequeno e seleto em florença. foi esta a famosa primeira ópera do mundo, Dafne, com música
de jacopo peri para um texto de ottavio rinuccini e intermédios cantados de giulio Caccini.(BErthoLd, 2004, p. 324.)
Com essa subordinação da música à dramaturgia e consequentemente à cena, costumes foram se desenvolvendo por parte dos compositores e se
associando aos fazeres teatrais, por exemplo: os mocinhos geralmente eram
interpretados por tenores, os vilões, geralmente por barítonos, e as donzelas e
princesas, sopranos; intervalos e efeitos musicais com maiores sensações de resolução eram usados em canções dos mocinhos (alcançavam uma oitava), nas
árias dos vilões eram abusadas as dissonâncias e intervalos que sugerem tensão;
compositores foram criando um “vocábulo” de efeitos musicais para exprimir
sentimentos: surgiu a “teoria dos afectos”1.
1. teoria dos afectos – teoria em música, que consiste em conhecer os fazeres musicais, para exprimir os
sentimentos não apenas do artista, mas sim para representar os afectos num sentido genérico. foi surgindo pouco
a pouco um vocabulário de recursos e iguras musicais para exprimir sensações (grout).
100
foi quando se decidiu “reviver” a arte helênica através do drama per musica, no im do século XvI, que surgiu o gênero operístico, o qual foi se moldando ao longo dos anos. no início, apenas textos clássicos, na maioria intelectualizados, eram encenados, sendo basicamente feitos por recitativos simples
acompanhados por alguns instrumentos. Aos poucos o número de músicos foi
aumentando até se chegar à orquestra, tentou-se explicar os sentimentos através dos sons, surgiram as teorias da retórica musical. Ao longo das produções,
costumes musicais foram surgindo e se relacionando com a cena, chegaram as
famosas árias com suas complexidades e/ou virtuosidades, o que muito atraiu
o público. Com o tempo, as encenações passaram a representar o “homem comum”, o que trouxe um sucesso extraordinário para o gênero, considerado até
o século XX como uma das melhores formas de lazer (grout, 1994).
Aqui poderiam ser observados os “afetos” e/ou costumes musicais provenientes de qualquer canto do mundo, mas é impossível que essa escolha não
venha de experiências do observador. nesse sentido, trago em questão a obra
operística de Elomar figueira Mello, por me ser familiar, e os principais trabalhos sempre encontram diiculdades em abarcar as especiicidades regionais da
música do compositor. É importante ressaltar que esse artigo também se divide
como uma opereta popular, começando com a bênção ao sagrado e à licença,
seguido da apresentação, o primeiro ato, em que é feita a relexão, e o ato inale
com arremate, sem contar com o entre(ato) que refere-se a um intervalo descontraído entre as maiores partes.
Apresentação: O Cantador e seu habitat
Elomar figueira Mello nasceu na cidade de vitória da Conquista
no interior da Bahia (sudoeste) no dia 21 de dezembro de 1937. passou
a infância na fazenda de São joaquim, vem de família de fazendeiros.
Seu pai era sanfoneiro, o que foi determinante para que Elomar tivesse
contato com grandes cantadores do sertão.
Com essa inluência dos músicos do sertão, Elomar logo desenvolveu uma técnica violonística diferenciada que inluenciou outros músicos da região. A música dos menestréis2 do sertão é uma das principais
2. Menestrel, como é conhecido o poeta medieval, termo usado também para poetas, cantadores e músicos
ambulantes.
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- 101
inluências usadas por Elomar que imbrica artifícios das formas mais
populares e modelos eruditos. Elomar não escreve apenas canções de
voz e violão, a obra dele ainda abrange peças instrumentais para violão solo, concertos de violão e orquestra, óperas, cantatas e antífonas.
do universo sertanez, onde habita sua obra, resgata raízes mouras. tem
como tema a natureza, os ofícios do homem e a religiosidade. os cantadores, vaqueiros, tropeiros e retirantes castigados pelo sol do sertão
são personagens vistos com frequência, e a “patra” do sertão é sempre
evocada em seus versos. Elomar é um dos poucos compositores que continuam a atualizar a ópera brasileira, trazendo toda a linguagem dialetal
do povo sertanez e a cultura nela retratada.
Elomar, assim como o armorial Ariano Suassuna, é um dos artistas resistentes da “mudernage” da arte contemporânea. Esses artistas
têm dentro de sua obra um io condutor, uma alma, um farol, um norte,
que no caso desses artistas, é esse “imaginário sertanez”, como admitiu o
próprio Elomar no último concerto dos cantadores no dia 13 de outubro
de 2012. o próprio Elomar integrou ao repertório do último concerto
um samba, samba do jurema (referência a um bairro popular de vitória
da Conquista), composto ainda quando o artista não tinha esse “farol”
especíico, sendo uma espécie de “peixe fora d’agua” em meio à obra do
artista.
Segundo guerreiro (2007), é preciso distinguir na Bahia duas porções
poéticas: a africana, essa litorânea, politeísta, das chuvas – porção que é explorada por outras vertentes da música e da cultura brasileira, como as músicas de
dorival Caymmi e do tropicalismo; e a outra porção é o imaginário sertanez,
que é a da fome, da seca, da luta, da crença e do cristianismo – porção da qual
a obra elomariana se alimenta, que se identiica em um imaginário de um passado europeu, mouro e nordestino.
A musicalidade e poesia autênticas e singulares de Elomar serviram
como norte para vários artistas renomados, entre eles: Saulo Laranjeira, vital
farias, geraldo Azevedo, Xangai, Chico César, entre outros. não é à toa que,
durante os concertos, todos estes artistas se dirigem a Elomar o chamando de
“mestre”, pois ele foi o precursor dessa trilha que os violeiros vêm percorrendo
na música brasileira.
A trajetória de sua obra está muito ligada à origem de Elomar, com a
infância na caatinga conquistense, aos mitos da região que sempre ouvira,
menciona em suas músicas artistas da região do São joaquim como Zé Crau e
102
Alexô, espécie de menestréis que por aquelas bandas passaram. o romanceiro
medieval dos reis cavaleiros se encontra com o cordel dos cantadores sertanezes, a música de Elomar tem raízes fortes como a vegetação catingueira que
enfrenta a grande escassez das águas. Quando saiu da caatinga em direção à
capital para os estudos, Elomar teve contato breve com a Escola de Música da
ufBa - teve aulas com a professora heddy Cajueiro, com quem aprendeu a
ler partitura em 1955. Com 18 anos, Elomar era concertista de violão erudito,
tocava peças de compositores renomados como: villa Lobos, Alberto napomuceno, Enrique granados, joaquín rodrigo, francisco tárrega, Moreno-toroba,
Castelnovo tedesco, fernando Sor e Isaac Albéniz. Até os 25 anos de idade,
Elomar atuou como concertista com esse peril. (guErrEIro, 2007)
Contudo é no imaginário popular do sertão onde sua obra vai habitar, a
fonte de toda a inspiração do cantador é todo esse imaginário que lhe rondou
durante a vida, ancorado na tradição oral dos cantadores que mantém vivos os
mitos da região. na Abertura de sua primeira ópera (Auto da Cantigueira), intitulada “Bespa”, que começou a ser composta aos 17 anos de idade, essa tradição
é expressa de maneira até metalinguística - o personagem que conta o drama de
dassanta é um cantador, menestrel do sertão, que diz:
“Sinhores, dono da casa
o cantadô pede licença
pra puchá a viola rasa
Aqui na vossa presença
pras coisa que vô cantando
Assunta imploro atenção
Iantes porém eu peço a
A nosso Sinhô a benção”
(...)
“pra qui no tempo currido
Cumprido tenha a missão
foi lá nas banda do Brejo
Muito bem longe daqui
Qui essas coisa se deu
num tempo qui num vivi
nas terra do qui meu avô
herdô do meu bisavô e pai seu
dindinha contô cuan’ meu avô morreu
DESAFIOS IntErmodais
- 103
E hoje eu canto para os ilhos meus
E eles amanhã para os ilinhos seus...”
(CunhA. 2009, p.44)
nesse trecho da abertura, Elomar mostra a inluência épica, no canto introdutório ele deine os tempos, os cantos e as histórias que serão apresentados,
pede a bênção do divino e transfere sua inspiração para coisas do “além”. Essa
tradição da bespa é ibérica como nos “Lusíadas”, em que Camões abre o primeiro canto com a invocação dos deuses. na continuidade da canção, o cantador
exprime a importância da missão que tem a cumprir, espera que a memória
não falhe e que cumpra sua missão de passar os fatos ocorridos em tempos que
ele nem viveu. A tradição oral passou pelo bisavô, depois pelo avô, que dindinha contou, para contar para os ilhos, e ele amanhã para os ilhos seus.
Primeiro Ato: Erudito e Popular, Sertão Armorial
Com a vontade de defender uma música da terra, que brota do mesmo
chão onde está enterrado o umbigo3, Elomar bebe da fonte da cultura popular
da região, termo movediço esse “popular” que Idellete começa reletindo em
sua obra:
“popular” é um termo literalmente repleto de deinições, verdadeiras ou
falsas, que gerações de estudiosos tornaram problemáticas. o termo traz
em si, como herança, a complexidade da palavra povo, que designa, ao
mesmo tempo, uma multidão de pessoas, os habitantes de um mesmo
país que compõem uma nação e a parte mais pobre dessa nação “em
oposição com os nobres, ricos, esclarecidos”. “popular” acrescenta ainda
a ambivalência de um adjetivo substantivado: ao conceito, substitui o
critério aproximativo de identiicação. num feixe semântico concorrente
e, às vezes, contraditório, “popular” designa o que vem do povo, o que é
relativo ao povo, o que é feito para o povo e, inalmente o que é amado
pelo povo. (SAntoS, 1999, p.14).
3. tradição comum na região; não é apenas o nascimento que determina de onde o sertanez vem, o lugar onde o
seu umbigo é enterrado é a terra dos que “incam” ali suas raízes - o que não é tão difícil de encontrar na região,
principalmente pela migração para outra terra em busca de uma vida melhor.
104
Esse “popular” que já perde um pouco a ligação com essa designação com a massa de pessoas, devido ao grande turbilhão de informação e
a imposição de outras culturas de maneira “maquiada” por grande parte
da mídia jornalística, começa a se transformar em vestígios, e cada vez
é menor o número de artistas que continuam a navegar por essas ondas,
colocando várias tradições populares em risco de extinção. Inclusive, é
por esse motivo que Elomar se considera um artista da resistência, por
falar dos problemas, rituais e cultura do povo que lhe cerca.
A ópera Auto da Catingueira foi composta de modo bastante intuitivo, pois, na ocasião, ele não havia estudado composição de “música
culta”. Composta de um prólogo (“Bespa”) e cinco cantos (“da catingueira”, “dos Labutos”, “das visage e das Latumia”, “do pidido” e “das
violas e da morte”), os 790 versos são construídos na linguagem dialetal
sertaneza, o regionalismo se funde à origem clássica do gênero. A ópera
conta a história de dassanta, uma pastora de cabras, e as paixões que
ela inspirou. os personagens apresentam seus modos de vida, desejos e
angústias; acontece inclusive um duelo pelo amor de dassanta, só que ao
invés de armas são violas que os desaiantes têm nas mãos, os tiros nesse
caso são o fuzilo de vários estilos da “música regional”, como a parcela, o
coco voltado e a tirana, estilos esses que com o passar dos tempos foram
se tornando mais raros.
Como dito anteriormente, a inluência épica na obra é clara, a divisão é
feita por cantos, e assim como nos “Lusíadas”, o narrador é um cantador que
vai trazer outro conto. Staiger faz uma relexão na tentativa de explicar o entendimento do estilo épico, que traz as mesmas características dessa ópera de
Elomar, por exemplo:
(...) É evidente que procura ser admirado tão somente como narrador,
o homem que vê e mostra as coisas dessa maneira, que aí está com uma
vareta na mão — como diz vischer — e que aponta os quadros que vão
aparecendo. Indo assim ao encontro de suas iguras, tudo que se passa
torna-se objeto. o objeto pode ser mutável. Ele próprio, porém, conserva
sempre o mesmo humor, a impassibilidade que se distingue também na
simetria do verso.” (StAIgEr, 1977, p.39).
DESAFIOS IntErmodais
- 105
A aproximação da música regional com modelos eruditos não é uma
característica exclusiva de Elomar. na catedral de São pedro dos Clérigos, com
a construção no estilo barroco, porta em jacarandá, ladeada por esculturas em
pedra calcária e cercada de casinhas em estilo colonial, pintadas em cores fortes, nesse cenário aconteceu:
(...) no dia 18 de outubro de 1970, um concerto e uma exposição de artes.
o evento foi chamado de “três Séculos de Música nordestina: do Barroco ao Armorial”. Era ali anunciada a estréia de um movimento artístico
e cultural no país: o Movimento Armorial. A idéia central era, e é até
hoje, criar uma arte erudita baseada nas raízes populares de nossa cultura. A palavra “armorial” é, originalmente, um substantivo – o nome que
se dá ao livro onde são registrados símbolos, ensina-nos o dicionário.
Mas Ariano Suassuna, idealizador do Movimento Armorial, explicaria
no programa distribuído no concerto de 1970: “passei a empregá-lo também como adjetivo. primeiro, porque é um belo nome. depois, porque
está ligado aos esmaltes da heráldica, limpos, nítidos, pintados sobre
metal, ou por outro lado, esculpidos em pedra com animais fabulosos,
cercados por folhagens, sóis, luas e estrelas.” (...) “o nome “armorial” servia, ainda, para qualiicar os “cantadores” do romanceiro, os toques de
viola e rabeca dos Cantadores – toques ásperos, arcaicos, acerados como
gumes de faca-de-ponta, lembrando o clavicórdio e a viola-de-arco da
nossa Música Barroca do século XvIII.” (vICtor 2007, p. 75 - 76)
A época do surgimento do movimento também é marcada pelo processo de “industrialização”, na expansão dos veículos de comunicação, pela repressão política imposta pelo regime militar, além do surgimento do tropicalismo,
outro movimento cultural com ideias diferentes dos “armoriais”.
Integrante do movimento, a “Música Armorial” deveria ser erudita e
nordestina e partir das raízes das músicas primitivas conservadas no sertão,
com suas inluências em melodias primitivas indígenas e do canto gregoriano,
exportado pelos missionários na colonização. Câmara Cascudo exempliica as
semelhanças dos cantos sertânicos com as toadas mouras:
Quem ouviu melopéias mouras nos mercados da áfrica Setentrional,
recorda a impressão do indeinível, do indeciso, do inacabável naquelas
106
lamúrias que terminavam quando julgávamos continuar e continuavam
nos momentos de indiscutível inalização. (...) Essas “constantes” eram
indispensáveis no velho canto sertanejo de outrora: a entonação intencionalmente lastimosa, a modulação lenta, “molenga” e doce (...) o timbre nasal, infalível, natural, perfeitamente compreensível. todo cantador
era fanhoso. (CASCudo, 1978, p. 77)
Essas características podem ser observadas na obra de Elomar, presentes tanto em sua produção musical quanto nas narrativas que evocam os seus
personagens. Apesar da obra elomariana se tocar em vários pontos com as características “armoriais” descritas por Suassuna, Elomar não se considera integrante do movimento - importante lembrar que suas primeiras composições
são datadas de 1955.
o próprio Elomar costuma dizer que seu sertão vive nas “dobras dos
tempos”, ele acredita em mundos paralelos, com temporalidades “diferentes”.
recupera mitos, linguagens e cenários medievais. nas histórias, liga as memórias de outras eras, mas mesmo com as “origens” medievais, de suas canções
trovadorescas, não se distancia das origens populares do sertão.
A relação do imaginário sertanez com os rastros da península ibérica se
traduz também em obras de outros tantos artistas nordestinos. na revista o
Percevejo, nº8, ano 8, do programa de pós-graduação em teatro da universidade do rio de janeiro (unIrIo), Suassuna fala da riqueza da galeria de tipos
do teatro brasileiro e da relação desses tipos com as heranças europeias:
(...) passam reis, rainhas e príncipes, ora personagem do teatro, como
os reis das cheganças, ora históricos: (...) como dom joão vI, dom pedro I, dom pedro II e a princesa Isabel (...) passam heróis brasileiros
(...) o mundo é dividido em dois partidos: o azul e o vermelho, o bem e
o mal. Anjos, com asas de papel dourado, cantam e dançam ao som da
música de Carreteiros, violeiros, flautistas, homens do Bombo e toca
rabequistas. passam os reis Índios, coroados de penas, dos Cabocolinhos, e os Cavaleiros das Cavalhadas; e doido, e juízes e Acrobatas, e
tangerinos, e Ciganos e palhaços. E há Cantadores, que são os rapsodos
nordestinos, e cantadeiras de Excelências, mulheres terríveis que como
as Carpideiras, as fúrias e as harpias do teatro grego, salmodiam, impassíveis, os cantos dos mortos. E há raptos, violações, assassinatos san-
DESAFIOS IntErmodais
- 107
grentos, histórias terriicantes, como, por exemplo, a do rei hermínio,
que, cego, (...) come, juntamente com o ilho, a carne de sua esposa (...)
(SuASSunA, 2000, p. 106 - 107.)
Essas características citadas por Suassuna são vistas na obra de Elomar
com frequência. no programa de tv “Arrumação”, o compositor airma que a
ópera é o grande gênero artístico, pois abrange vários campos da arte, como a
música, teatro, dança, artes visuais, entre outras. Isso que o motivou a compor
as óperas - além do compromisso de como artista levar essa “preciosidade” para
o sertão, que tem projetos de serem montadas inclusive no teatro de ópera que
está sendo construído na zona rural de vitória da Conquista.
Entre(ato): Estilos e Inluências
no processo da pesquisa do mestrado, queria estudar a ópera o
Auto da Catingueira e pedi durante muito tempo que um amigo entendedor de dramaturgia me desse um retorno a respeito da obra, deixei
com ele a cópia do libreto (texto da ópera) e um Cd contendo as gravações em áudio. Esperei por algum tempo o retorno e tive uma surpresa
quando esse chegou. E dizia algo do gênero: “foi um impacto, procurei
ópera e não achei! É tão cordel. É muita falação, parece-me que o autor
fez uma provocação ao chamar sua composição de ópera, deve ser algo
MuIto ideológico”.
Claro que, diante dessa obra especíica de Elomar, quem pensar em encontrar uma orquestração complexa, cantores que abusem do
belcanto italiano, quartetos, ou quintetos certamente se frustrará. Entretanto, é um grande engano pensar que ópera se resume a isso, e o compositor faz inclusive o processo parecido com os compositores do velho
continente, como airmou:
(...) principalmente a partir do romantismo, a dança e a cantiga populares tiveram um papel fundamental nesse gênero dramático. na Itália, as
cançonetas e baladas; na Espanha, as zarzuelas; na rússia, as bilinas; etc.
É fato conhecido que Carlos gomes inseriu a melodia de “Fui no itororó”
na protofonia de o Guarani. Sabe-se, também, que puccini abusou das
canções populares: incluiu muitos motivos das canções americanas na
108
ópera feita por encomenda para a inauguração do Metropolitan opera
House, em nova York; há canções populares chinesas em turandot, etc.
Quase metade de Magdalena, opereta de villa-Lobos, é constituída de
músicas brasileiras de brincadeira de roda. E os exemplos se multiplicam.” (SIMÕES, 2006, p.45)
Elomar é mais um exemplo que se multiplica nesse sentido. Ainda
falando da relação da ópera com cultura popular mesmo na Europa, a
autora continua:
percorrendo as formas musicais populares conhecidas, chegamos à comédia madrigalesca. (...) Assim, as monodias puderam ser superpostas
em duas, três e quatro melodias, formando, no caso da península itálica,
nos séculos XIv e Xv, pari passu com a música sacra, um tipo de música muito popular chamada frótola, que apresentava a mesma polifonia
da música sacra. da junção desse tipo de música popular à igualmente
popular Commedia dell’arte, nasceu o que se conhece por comédia de
madrigais: à frente, no palco, os atores encenavam intrigas e apresentavam descrições sociais em pantomima; mais atrás, no bastidor, os demais
artistas cantavam o texto. (SIMÕES, 2006, p.45)
Mais conirmações que os compositores procuram na maioria
das vezes os temas, problemas, gêneros musicais, contexto em geral onde
estão inseridos.
Ato Finale: Ópera da Caatinga
desde o inicio da ópera em língua portuguesa, do nascido brasileiro, cognominado judeu, Antônio josé da Silva (1704–1739), a proposta
era atingir um público mais abrangente que não só a nobreza. depois de
um vazio no barroco brasileiro, no im do romantismo voltam óperas em
nossa língua e artistas como Alberto nepomuceno, heitor villa-Lobos,
Camargo guarnieri e Assis republicano voltaram a cravar seus nomes
como importantes compositores para ópera brasileira (SIMoES, 2006).
Elomar traz o gênero de origem europeia/erudita para dentro da
caatinga de linguagem popular que atende e atinge sua população. o
DESAFIOS IntErmodais
- 109
compositor questiona a maneira de levar, apresentar esse gênero para
essa população: uma ópera wagniana em um teatro na zona rural de
vitória da Conquista poderia não despertar tanto o interesse dos moradores da região, por aquela língua lhes ser desconhecida. porém, ao
seu “ver”, se o espetáculo utilizasse a linguagem cultural local como um
todo (língua, música, signos, problemas, espaço), o teatro alcançaria essa
população de forma muito proveitosa.
o compositor utiliza formas musicais locais para construir seu
drama. por exemplo, no último canto do Auto da Catingueira, os personagens Cantador do nordeste e o tropeiro fazem um desaio de viola
que se constitui em emendar os versos do oponente, e para construir
todo esse desaio usam a parcela, o coco voltado, tirana, entre outros. o
ritmo característico do baião, os intervalos, harmonia, costumes musicais da região sempre vêm muito forte dentro das canções. Como exemplo, obra prima do compositor, o Pidido é um dos cantos do Auto da Catingueira - dassanta canta essa canção pedindo a seu companheiro que
vá à feira, lugar que, no imaginário sertanez de Elomar, é onde de tudo
se encontra: mercadorias, mistérios e desejos. dassanta diz que, em uma
de suas idas à cidade, um cego cantador prenuncia o im de seus dias,
fala também da transformação dos pagãos em lobisomens, pede alguns
metros de chita, caso sobre dinheiro, para que possa fazer um vestido e
icar mais bonita que as outras mulheres da região. já Clariô, fragmento
do 5º canto da ópera o Auto da Catingueira. A música já começa bem
ritmada, mostrando já de início a inluência dos rasgueados comum das
músicas dos violêros do sertão. Apesar de a música ter sido composta
para ópera, ela foi lançada independente no disco Das Barrancas do Rio
Gavião lançado em 1973, já que o disco da ópera só foi lançado em 1983.
na ópera, ela é escrita para cantor solista e coro.
A maior parte do drama é cantada pelo narrador e, além dele, outros três personagens soltam a voz. A peça conta com instrumentação
reduzida: violoncelo, violão e lauta transversal - o compositor não utiliza o belcanto italiano e a voz fanhosa nordestina preenche o espaço.
Só se tem registro de uma montagem dessa ópera, a qual estreou em
abril de 2011 no grande teatro palácio das Artes em Belo horizonte.
o espetáculo teve a direção geral do próprio Elomar, direção de cena de
joão das neves e direção musical do maestro joão omar. o elenco musi-
110
cal contou com nomes que participaram das gravações originais: Xangai
(Cantador do nordeste), dércio Marques (Chico das Chagas), Marcelo
Bernardes (lauta) e duas cantoras dividiram o papel de dassanta: Luciana Monteiro e a argentina Cecilia Stanzione. o espetáculo foi montado
pelo grupo de teatro giramundo4 e foi todo representado por bonecos
produzidos pela própria companhia. na ocasião, foi gravado um dvd, o
qual ainda não foi lançado.
Existe uma série de gêneros que imbricam música e teatro e como
se pode observar nessa lista5, nenhuma vai suprir as especiicidades do
drama em questão, sendo que as diferenças entre alguns chegam a ser
mínimas. Entretanto, a intenção aqui não é a catalogação dessa obra,
mas sim advogar a importância e legitimação da ópera da caatinga composta por Elomar que, além de ancorar em outros costumes do gênero, traz inovações e perpetua essas formas musicais na história da ópera
brasileira.
4. Mais informações a respeito da montagem <http://www.giramundo.org/not_110411_auto%20da%20catingueira.htm> acessada em outubro 2012.
5. < http://pt.wikipedia.org/wiki/Anexo:Lista_de_g%C3%AAneros_oper%C3%Adsticos> acessada em outubro
2012.
DESAFIOS IntErmodais
- 111
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112
A etimologia da palavra ex-voto é originada do latin ex-voto, cuja preposição ex representa a ‘causa de, em virtude de’ e voto advém de votum, i ‘voto’,
relativo votum, originado de vovère ‘fazer voto, obrigar-se, prometer em voto,
oferecer, dedicar, consagrar’.
As enciclopédias nacionais e estrangeiras seguem a mesma linha deinidora dos dicionários, enfocando os quadros ou objetos suspensos em lugares
sânticos, em cumprimento de promessa ou de memória de graças obtidas. ou
ainda: expressão de culto que quase sempre assume forma retributiva, concretizada na oferta de elementos materiais, em agradecimento de qualquer intervenção miraculosa ou graça recebida.
de modo geral, em publicações ilustrativas e em dicionários, o ex-voto
vem a ser o quadro pictórico, desenho, escultura, fotograia, peça de roupa,
jóia, mecha de cabelo ou outro qualquer objeto que se ofereça ou exponha nas
capelas, igrejas ou salas de milagres, em regozijo de graça alcançada.
Em alguns compêndios o ex-voto aparece como oferenda entregue após
um voto formulado e atendido pelos deuses, nos tempos do paganismo, a deus,
a virgem Maria e aos Santos, na vigência do Cristianismo, em ocasiões de angústias, doença mortal, perigo de morte dos animais domésticos e semelhantes.
dessa aproximação com a entidade superior, resulta, às vezes, a confecção de ex-votos artísticos. o agraciado, na impossibilidade de comprar peças
industrializadas – como, por exemplo, as de cera – executa uma peça, em geral
DESAFIOS IntErmodais
- 113
tosca, esculpida em madeira ou modelada em barro, para o pagamento da “dívida” que tem com o santo.
Esculápio, médico na Antigüidade, na grécia, recebia daqueles a quem
curava a reprodução do braço, perna ou cabeça do doente. objetos que traziam
em suas formas os traços, as marcas e os sinais, artisticamente detalhados, dos
males ocorridos nas referidas partes do corpo. Esse costume se generalizou a
partir dos gregos, tomando conta, por volta de 2000 a.C., de grande parte do
Mediterrâneo, em locais sagrados, santuários, onde os crentes pagavam suas
promessas aos seus deuses. os santuários de delos, delfos e Epidauro, na grécia, notabilizaram-se pela quantidade e qualidade das ofertas recebidas.
os ex-votos, em termos de forma, trazem uma rica diversidade dos tipos
e materiais em muitas salas de milagres pelo mundo católico. para se ter uma
noção, porém, pode-se dizer que eles são formatados como antropomorfos, zoomorfos, simples, especiais ou representativos de valor e, por im, tradicionais.
Antropomorfos são os que representam o corpo humano, no todo ou em
parte, em desenho, esculturas, pinturas ou fotograias; zoomorfos são as representações de animais; simples são os objetos de uso cotidiano e religioso, como
as itinhas, os vestidos brancos e os sapatos, entre outros, que possuem valor
pessoal do crente; os especiais ou representativos de valor são os ex-votos que,
economicamente, têm valor monetário e de características orgânicas. A exemplo pode-se citar moedas, objetos artísticos considerados de grande valor e bens
de consumo imediato (como pequenos sacos de feijão, arroz e milho). foi-se
o tempo em que o dinheiro, em espécie, era depositado em salas de milagres!
fato que hoje não se encontra. os exemplos dos orgânicos estão, principalmente, para os miomas colocados em vidros e expostos nas salas de milagres.
Quando se fala em tradicionais, procura-se dizer dos ex-votos clássicos que, artisticamente, possuem formas
escultóricas e pictóricas, que possuem uma
tradição temporal, histórica, e que por isso
formam os denominados de “promessas” e/
ou “milagres”. Exemplos mais clássicos são
as cabeças, os braços, pernas etc., de madeira, barro ou até mesmo de cera, encontrados
nos santuários e salas de milagres. (v.ig. 1)
fig.1. Ex-votos tradicionais escultóricos e aparelhos
ortopédicosSala de milagres do Santuário de São Lázaro,
Salvador, Brasil.
114
A museóloga Maria Augusta Machado da Silva, em seu livro “Ex-votos
e orantes no Brasil”, classiica os ex-votos em duas categorias vinculadas a distintos processos culturais. A primeira é a mágica, que corresponde a estágios
primários de relacionamento com a divindade ou seus agentes. A segunda é
a mágico-religiosa, que tem como forma de expressão a paraliturgia popular.
(SILvA, 1981, p.67)
o pensamento de Silva está voltado para um processo de magia que, em
tese, é o poder do ex-voto – diante da reza, do gestual no momento da desobriga e da própria fé – concretizar o milagre. A autora, então, vê o ex-voto como
objeto que, junto à crença popular, consegue trazer ao crente aquilo que fora
almejado.
diante da deinição sobre o ex-voto, é de suma importância separar os
conceitos de votivo e ex-votivo. o primeiro diz respeito às ofertas em cumprimento de voto ou promessa ao santo, com o uso ou a tradição de manter
cerimoniais. Assim, por exemplo, pode-se dizer, o uso de igas, pingentes, de
ofertas de caruru, de ir em romaria, de levar romeiros, de acender velas em dias
determinados, de dar nomes de santos aos bebês, e outros aspectos, são modos
de ações votivas.
já o conceito de ex-votivo refere-se a apenas o ato voltado para o ex-voto.
Então, a desobriga, o ato de depositar o ex-voto, em uma sala de milagres, ou
um canto da igreja, em meio ao cerimonial de reza individualmente feita, é um
ato ex-votivo. E dessa forma ica esclarecido que, se um romeiro for à igreja,
vestindo uma bata, está cumprindo um voto. porém, se ele, além disso, retira a
bata para depositá-la em alguma parte da igreja ou na possível sala de milagres
do templo, estará cumprindo uma ação ex-votiva.
depreende-se do pensamento de Silva (Id) e de outros grandes teóricos que estudam os ex-votos, como Luiz Beltrão (2004) e Clarival valladares
(1967), o aspecto testemunhal do ex-voto, que exige um processo de comunicação social. Com isso podemos perceber as formas testemunhais ex-votivas
de representação iconográica da graça obtida, envolvendo a ocorrência que
motivou a graça (doença, obtenção da terra para plantar, da casa, do carro etc.)
à representação escultórica da doença curada que é a forma mais conhecida de
um ex-voto.
outro fator importante é o regionalismo, notadamente percebido nos
santuários e também focado por Márcia de Moura Castro (1979) e Clarival
valladares (1967).
DESAFIOS IntErmodais
- 115
para Castro o que predomina em Minas gerais são os ex-votos pictóricos. uma predominância que, quantitativamente, dá a Minas gerais “o pólo
principal dos ex-votos pictóricos”, em tese denominados tábua votivas Mineiras. (CAStro, 1979, p.111)
As tábuas votivas mineiras, à semelhança das portuguesas, são quase
sempre de aspectos ingênuo. nelas foi empregada a mesma técnica, igual disposição de elementos e em sua maioria os mesmos santos são invocados. no
primeiro plano destaca-se a igura do pagador da promessa, no seu momento
de maior alição. Como é natural, há predomínio de quadros que representam
doentes que muitas vezes encontram-se deitados na cama do quarto, cercado
por parentes que rezam juntos, diante da imagem do padroeiro que pode vir
como um pequeno quadro na parede ou surgindo entre nuvens, numa menção de presença e apoio aos pedidos. travesseiros e lençóis são sempre brancos, que demonstra o capricho do pintor nos detalhes das rendas e bordados,
assim como nos desenhos da colcha adamascada, que dá um toque colorido
ao conjunto.
Clarival do prado valladares (1967) elucida os ex-votos do sertão com
características que fogem completamente dos ex-votos de Minas e de São paulo. valladares dedica grande parte do seu texto aos aspectos dos ex-votos do
sertão, que para ele são produtos de exportação, em grande parte, para as capitais nordestinas. para o autor, os ex-votos do sertão são de extrema singeleza
de forma e indicações, ao contrário dos de desenho e pintura narrativas dos
riscadores de milagres de Minas gerais. (vALLAdArES, p. 17)
os ex-votos do Sertão caracterizam-se pelo hieratismo da igura, sempre
submetida a relevante contrição numa excessiva gravidade que é o ponto de
aferição entre a igura humana e o seu relacionamento ao sobrenatural.
porém, o que percebemos hoje é uma rica tipologia que se estende por
todas as salas de milagres, isento de quaisquer regionalismos que possam existir. podemos perceber ex-votos esculpidos, embora de paraina, em Congonhas
e em Aparecida, da mesma forma que o vemos em juazeiro do norte. o que se
deve ressalvar é que a estrutura em madeira é singular ao nordeste, mas que,
diminutamente, se encontra em São paulo e em Minas gerais. Assim como a
pintura, predominante em Matosinhos, mas pouco vista nas ricas salas de milagres da Bahia e de juazeiro do norte.
116
Ex-voto como documento
o conceito de documento se liga à noção de testemunho, de fatos acontecimentos e atitudes marcadas em um momento da história, seja ela individual, coletiva, política, econômica etc.. Este conceito nos conduz a todas as
abordagens que a ciência histórica permite numa visão abrangente da ciência
que possibilita fugir de deinições estanques e restritas. posições que conduzem
o conceito de documento a pedaços, maços e páginas de papéis encontrados
em arquivos, bibliotecas, museus e repartições públicas e privadas.
um testemunho é um documento e vice-versa. Então ele está em todas as
partes dos espaços ocupados pelo homem. o documento é um símbolo representativo das atitudes e do desenvolvimento de cada aspecto cultural. Ele está
em praças, nas ruas, nos corredores, nas lojas, no antes e no depois de um fato
cultural. Ele está em uma igreja, em um campo de futebol, no carnaval e muitos
outros – senão em todos – culturais.
o documento adentra em instâncias arqueológicas e antropológicas, apresentando vestígios os mais variados possíveis, ligados a fatores biológicos e químicos dos comportamentos humanos, encontrados nos sítios arqueológicos.
Esta noção de documento é alargada, na Antropologia Cultural, com o
conceito de monumento. para esse ramo cientíico todos os vestígios do homem
são monumentos, incluindo os fósseis orgânicos estudados, hoje, pela biossociologia. para o antropólogo ordep Serra, um simples ex-voto, humilde como
uma mortalha de pano é um monumento. na verdade há apenas a transferência
de nome – de documento para monumento –, embora a Antropologia tenha,
neste conceito, inserido novos objetos. (SErrA, 1991, p. 48)
documento, pois, é tudo. E quando ele vai marcar um momento proporciona signiicado para uma imediata ação cultual. ou seja, o objeto-testemunho será auxiliar ao homem para um fato cultural que será concretizado, mas
que, antes de sê-lo, já testemunha o tipo de acontecimento. já anuncia algo,
inclusive decodiicado por quem passa por ele.
um grande exemplo está numa prateleira de uma sala de milagres, repleta de ex-votos tradicionais. Eles são símbolos testemunhais do movimento de
crentes que pagam as suas promessas, testemunhos da permanecia da religiosidade naquele local.
o ex-voto faz parte de uma crença. Em direção ao santuário, antes da
festa do padroeiro, ele está no cantinho da carroceria do caminhão pau-de-arara. um objeto apenas. visto por todos que participam da romaria como
DESAFIOS IntErmodais
- 117
um “milagre”. Será o objeto-testemunho da graça que o iel pede ao padroeiro,
ou então da graça alcançada. fora da sala de milagres o pequeno objeto já representa a futura reza, gestual e desobriga. As pessoas no caminhão olham-no
e compreendem o porquê daquele objeto naquele canto, naquele momento.
Compreendem mais ainda, que aquele objeto artístico, dentro de algumas horas estará na sala de milagres do santuário, palco da própria romaria.
o ex-voto, após a desobriga, será o testemunho da crença religiosa. Ele,
junto a tantos outros no espaço da sala de milagres, será uma documentação,
a variedade de tantos objetos que representam vários testemunhos e que compõem o espaço da sala.
Essa documentação é o signiicado da tradição, da origem, remontada na
grécia antiga, que os romanos herdaram e legaram ao mundo por eles latinizado. ou seja, ela é o que na ciência da história veio a denominar de testemunhos
de uma “longa duração”.
Como documento, o ex-voto se expressa como testemunho de vários tipos de atitudes do homem, demonstrando ambições, medo, felicidade, amor
etc.. Essa expressão é vista em bilhetes, cartas, maquetes, cabeças, objetos industriais e uma ininidade de tipos ex-votivos que, inclusive, adentram-se nas
categorias, em tese, elencadas por estudiosos brasileiros.
os ex-votos são um dos raros meios de investigação no mundo do silêncio daqueles que não sabem escrever. Eles, no campo da história, são uma fonte
rica de investigação do social e da arte. por pouco que sejam, levam-nos aos
segredos das consciências da sociedade, dos momentos, do cotidiano, do indivíduo, dos valores que permeiam o contexto social. (vovELLE, 1989, p.88)
Como objetos expostos em uma sala de milagres, eles demonstram a fé,
a crença, a procura da comunicação do iel com o seu padroeiro. A exposição
em uma sala de milagres nos leva de imediato ao sagrado e à religiosidade das
pessoas que vêm de longe, em diversos meios de locomoção, ou até mesmo a
pé, para pagar ou pedir uma graça.
no processo da comunicação em uma sala de milagres se percebe a grandeza da fé, da dimensão da religião católica, que se estende a lugares distantes,
que não têm obstáculos que impossibilitem ao crente cumprir a sua desobriga.
o ex-voto, como já referenciado, pode ser qualquer objeto. Em sociedade, ele e visto no comércio, na venda, em pequenas barracas e armarinhos,
a frente dos santuários, que vendem diversos tipos de ex-votos, mantendo o
emprego daqueles que vivem da venda.
118
Mas e vale lembrar que apenas os ex-votos tradicionais são, nas barracas e armarinhos de venda, reconhecidos como promessas e milagres. Ao passo
que os objetos que não ganham conotação de promessas, milagres e ex-votos
serão considerados como tais quando colocados na sala de milagres. Isso pode
acontecer com objetos do porte de vestidos, chapéus, reproduções de pinturas
e esculturas de santos etc. São os ex-votos não tradicionais.
permanecendo no mundo do comércio o ex-voto tem ao seu lado o artista, o riscador de milagres e o santeiro, pessoas que ganham a vida fazendo
ex-votos.
hoje, o que mais se vê próximo a muitos santuários são pequenas barracas com ex-votos de paraina à venda. Em alguns casos, os próprios donos dos
armarinhos e barracas fabricam os ex-votos de cera. Em outros casos, donos
de armarinhos de médio e pequeno porte encomendam os objetos que vem de
fabricas das regiões de São paulo, juazeiro do norte, Caruaru e Aparecida do
norte. dessas, apenas Caruaru não pertence a um dos centros do Brasil.
hoje, em alguns centros de peregrinação, não se encontram os riscadores de milagres e os santeiros. juazeiro do norte, um dos maiores centros de
romarias, é um exemplo. nessa cidade, que ica a 680 km de fortaleza, não há
artistas que pintam quadros ex-votivos. Ao contrário das regiões de Congonhas
e Aparecida do norte, onde se pode encontrar os riscadores de milagres e os
santeiros, ainda que em número bastante pequeno.
A fotograia, uma das invenções que ocorreram no século XIX, teve papel fundamental enquanto possibilidade inovadora de informação e conhecimento, instrumento de apoio à pesquisa nos diferentes campos da ciência e
também como forma de expressão artística. (KoSSoY, 1989, p. 14)
foi a partir do século passado que pintores retratistas entraram em concorrência com os fotógrafos retratistas que, por encomenda, faziam retratos de
pessoas e do cotidiano da cidade e também passaram a trabalhar como documentadores em expedições de biólogos.
nesse processo da fotograia, os ex-votos, a partir da década de 1950, não
icaram de fora. foi a partir dessa data que o número de riscadores de milagres
começou a diminuir. A popularidade da fotograia propiciou a inusitada possibilidade de autoconhecimento e recordação, de criação artística – e, portanto de
ampliação dos horizontes da arte -, de documentação e denúncia, graças à sua
natureza testemunhal. justamente em função deste último aspecto ela se constituiria, também, para romeiros, crentes e visitantes de santuários, em ex-votos.
DESAFIOS IntErmodais
- 119
fig. 2. Ex-votos fotográicos. Sala de milagre Santuário
de Caravaggio, rio grande do Sul, Brasil. 2007
fig. 3. Ex-votos pictóricos. Sala de milagres Santuário
de Bom jesus do Iguape, São paulo, Brasil. 2011.
As pessoas passaram a “denunciar” acidentes automobilísticos através de
fotograias, depositando-as em salas de milagres. Cerimônias de casamento e
reuniões de família também foram e ainda são fotografadas e colocadas nas
salas de milagres. Mas a maior difusão de ex-votos fotográicos ica a cargo das
fotos 3X4, que em quantidade nas salas de milagres dos santuários do Senhor
do Bomim, Candeias e Aparecida do norte, é de número assustador, superando a quantidade de qualquer outro tipo de ex-voto.
o santeiro é outro personagem que ganha, mesmo que muito pouco hoje,
com a fé ex-votiva e que se projeta como proissional criador de objetos sacros.
Ele não é necessariamente um riscador de milagres. os seus santos podem ter
outros ins que não sejam uma sala de milagres. Embora hoje se encontrem em
abundância santinhos bem trabalhados em salas de milagres de santuários do
porte de n. Sra. Aparecida, Bom jesus da Lapa e juazeiro do norte. Santinhos
bem trabalhados, produzidos em Caruaru e Canindé, regiões que têm tradição
na arte escultórica de santos, sejam modelados em barro (cerâmica cozida),
sejam esculpidos em madeira.
A grande maioria dos santinhos vendidos é proveniente das indústrias
paulistas. São os santinhos de gesso, produzidos em série e que se difundiram
nesse campo a partir do inal da década de 1950 no Estado de São paulo.
Certamente que, com essa industrialização dos santinhos, o santeiro e o
riscador de milagres, perderam muito do seu campo de trabalho. tanto é que
hoje não se encontra santeiro próximo ao santuário do Senhor do Bomim ou
120
no santuário de Bom jesus da Lapa. Isso para citar apenas dois exemplos de
dois grandes centros de romarias brasileiros.
o ex-voto, hoje, além desses fatores vinculados à venda, à sua feitura enquanto objeto artístico ou industrializado, é um objeto que, através de fotograias, pinturas, esculturas e desenho, elucida questões sócio-culturais, além de,
em sua primazia, testemunhar questões de setores econômicos, habitacionais,
políticos e da saúde. É em toda essa captação do social que o ex-voto se mostra
um objeto rico.
Isso é notar o ex-voto em comunhão com a sociedade. o ex-voto e as
conjunturas formadoras dos aspectos sócio-econômicos, habitacionais, políticos e da saúde é um ponto de extrema importância, pois referencia a questão
do testemunho, do ex-voto como documento que revela situações nos anseios
individual e coletivo, os valores sociais expressos, em determinado período,
tendo como primeiro plano as atitudes individuais e coletivas do homem, visualizadas no objeto.
O ex-voto e as conjunturas: relexos dos problemas sociais
o conceito de conjuntura geralmente é deinido pela oposição a estrutura e tendo como unidade de análise um sistema. A conjuntura é entendida
como o estado momentâneo da estrutura, a maneira como num determinado
momento os fatores se combinam para inluenciar os acontecimentos. o termo
conjuntura é empregado para designar o conjunto de elementos que são mais
estáveis dentro do sistema.
A análise conjuntural apresenta a vantagem, do ponto de vista da metodologia da ciência, de substituir o estudo linear dos fatos pela possibilidade de
construir o dado histórico em função de seu caráter comparável.
no estudo de uma conjuntura, o fato histórico não é dado por si mesmo, mas elaborado ao nível dos conjuntos. os indicadores de uma conjuntura
permitem determinar as ascensões e os declínios, as tendências, a sucessão de
equilíbrios e desequilíbrios.
Aqui, em relação a objetos-testemunhos, toma-se como base as conjunturas relativas a setores organizativos da sociedade, que a história estuda em
várias áreas: econômica – que almeja, por exemplo, a questão agrária –, social
– que identiica fatores habitacionais, educacionais e da saúde – e política, que
compõe a ediicação de todos os setores e comanda o sistema ou regime da
DESAFIOS IntErmodais
- 121
nação. Mas é vale lembrar que essas áreas se deslocam, se lexibilizam, principalmente a da questão agrária, que também é social e política.
A escolha dessas ações conjunturais se dá devido às elucidações que os
ex-votos fazem de causas e questões relativas a setores da sociedade brasileira
e, em uma profundidade, à estrutura político-social do Brasil.
É evidente que o ex-voto, como documento, vinculado à religião e às
romarias, é intensamente signiicante para o estudo das mentalidades e para a
análise da estrutura psicológica da coletividade. no entanto, o presente texto
elucida o seu signiicado ligado àquilo que traz em seu conteúdo comunicacional elementos que explicitam os problemas nacionais brasileiros, revelados
temporalmente a partir de desejos individuais do crente que chega ao santuário.
para o estudo do conteúdo comunicativo dos ex-votos foi necessário,
portanto, a análise iconológica dos objetos. por iconologia entende-se a interpretação dos valores simbólicos de uma composição, que muitas vezes são
desconhecidos pelo próprio artista, podendo inclusive diferir enfaticamente do
que ele conscientemente tentou expressar.
É do estudo iconológico, então, que, veriicando dezenas de maquetes
ex-votivas (casinhas), atestando a casa nova, a conquista da moradia – embora
muitos estejam pedindo, o que se não conigura em ex-voto –, se pode perceber
a carência do sistema habitacional brasileiro.
o signiicado das casinhas passa a ser estudado com mais ênfase temática. o componente cultural casa está distante, pois, de uma grande faixa da
população. Essa faixa populacional anseia por uma simples casa, pelo mínimo
possível de moradia. E a conquista de uma residência própria é tão profunda
na população brasileira que soa um milagre para um povo carente da ajuda do
poder público.
Assim, as centenas de casinhas encontradas nas salas de milagres dos
santuários de São judas tadeu, Círio de nazaré, Bom jesus da Lapa e nossa Senhora Aparecida são um indício conjuntural do sistema habitacional brasileiro,
clamado por melhorias pela população que paga promessa ou pede a graça por
um teto.
É no estudo do conteúdo dos documentos – artísticos e não-artísticos
–, que se veriica as centenas de cartas e bilhetes ex-votivos elucidando questões individuais. Esses tipos mostram tenazmente pessoas à beira da morte por
doenças erradicadas há muito tempo em outros países, ma que permanecem
diante de um sistema de saúde fragilizado, empobrecido e pouco eiciente.
122
As cartas ex-votivas também contam muito. São mais explícitas diante
do assunto. Elas mostram a intimidade, o lado pessoal do suplicante, geralmente da mulher. Contam o medo da solidão, a vontade de arranjar um bom
partido, a vontade de dar certo com aquele que já conhece e a vontade de usar,
na igreja da Lapa, o véu de noiva.
As fotograias de acidentes violentos não brilham, nas salas de milagres
apenas pelos ângulos, cores e luminosidade que o fotógrafo conseguiu, mas
pela denúncia do alcoolismo, negligência nas pistas ou por essas estarem aos
cacos pelo Brasil a fora. junta-se a esses fatores, é evidente, o aumento do tráfego de carros, da melhoria das máquinas etc., que são fatores vinculados à
evolução dos tempos.
o ex-voto de Antonia gomes rodrigues, em Canindé, CE, ilustra bem
essa questão que envolve a tipologia dos ex-votos escritos:
parnaíba-pí, 17 de junho de 1983
QuErIdoS LEItorES:
Aos 3 anos e 5 Meses e 5 dias que tinha sido operada do Coração, tive
uma crise muito forte de dores no coração e desmaios. fiquei muito doente, e
toda a família icou preocupada. um dos membros da minha família sentindo-se muito alita, depois de uma crise muito forte que tive, dirigiu-se ao SÃo
frAnCISCo e pediu com muita fé e amor a graça de ‘eu’ icar boa. passando
aquelas crises que abalava a todos, depois de (3) três dias que o médico de coração dr. frAnCISCo XAvIEr airmava-me que o coração estava normal.
hoje é dia de Meu Aniversário e vim passar com SÃo frAnCISCo e fazer minhas penitências que prometí. Estou acompanhado de minhas duas ilhas, sendo uma de (2) dois Anos e outra de (1) um Aninho.
MInhAS pEnItênCIAS SÃo:
pedir esmola para chegar aqui.
Entrar na igreja, ajoelhada e acompanhada por minhas ilhas.
rezar (3) três terços.
Confessar-me e comungar no dia de meu Aniversário passando a
parte do dia na Igreja.
Agradecer ao meu Santo protetor a todas as graças por mim recebidas.
deixar um coração de madeira na casa dos milagres.
______________________
Antonia gomes rodrigues (sic)
DESAFIOS IntErmodais
- 123
Conseguir, alcançar, obter, são palavras almejadas pela classe mais pobre, camponesa ou urbana, carente e espoliada, sofredora diante do desgaste
social provocado por fatores político-econômicos.
Muitos outros exemplos ilustram esse desgaste, testemunhado nas salas
de milagres de diversos santuários brasileiros. Alguns são de destaque.
As maquetes de ranchos, por exemplo, representam a casa de campo, a
roça, o gado, o mato e a cerca. São produzidas em madeira, pintadas ou envernizadas. Bem detalhadas, geralmente possuem um bilhete anexo referenciando
o agradecimento pela terra conquistada, ou o pedido por um pedaço de terra
para plantar, e até mesmo o pedido pela melhoria da lavoura na região.
pedidos e agradecimentos, como no caso das maquetes de ranchos,
equivalem a uma explicação da questão agrária brasileira, a política rural, a
existência dos “sem terra”, a conduta da política na agricultura. Situações que
produzem posseiros, grileiros e latifundiários, que ocasionam diferenciações,
divergências e conlitos que geram mortes. Essas formas ex-votivas, analisadas
detalhadamente, transgridem valores individuais, caem no coletivo e exaltam
os problemas conjunturais de regiões conlituosas ou, de modo geral, do Brasil.
por outro ângulo, o ex-voto demonstra vontades, desejos, sonhos e ambições individuais.
São valores, intrínsecos aos indivíduos – reveladores do coletivo, devido
aos fatores crença e religião, à união familiar e traços culturais estarem envolvidos –, que demonstram o desejo pessoal da conquista de objetivos, do amor, da
felicidade, da sexualidade, da libertação dos vícios – como a exemplo do alcoolismo – do reencontro com o parente, da salvação da morte, e muitos outros
desejos e vontades que um ser humano almeja.
Assim, o ex-voto, exposto aos olhares de tantos outros iéis e curiosos,
airma sua coniabilidade como meio de aproximação de uma sensibilidade,
sobretudo popular, abarcando características comunitárias, portanto coletivas,
onde valores culturais estão à mostra, elucidando para o mundo as histórias de
vida que, dilatadas, mostram a face do país.
Valores individuais e coletivos expressos
As romarias são outro importante fator para a compreensão das conjunturas formadoras das áreas sociais, políticas e econômicas brasileiras, pois nelas, que têm os ex-votos como um dos seus testemunhos, estão peregrinos com
seus pedidos diversos, que explicitam os problemas individuais e coletivos, a
maioria relexo de situações setoriais marcantes do país.
É na religião do povo, fator indispensável à fé dos romeiros, que se pode
elucidar as muitas atitudes do homem diante de sua vida, sendo que dessas atitudes se pode obter compreensões das ediicações ocorrentes no país.
A crença, revelada através do ex-voto proclama, como já foi dito, a comunicação entre os iéis e o santo. Ela elucida a necessidade que muitas pessoas
têm da mínima melhoria de vida, da conquista da saúde, da casa e da terra. Mas
também ela demonstra a procura da salvação, da felicidade própria, do casamento, da carroça nova para o trabalho, ou seja: o ex-voto revela a procura das
melhorias de vida, inclusive atestando para as possíveis deiciências dos setores
organizativos da sociedade, pontos que aligem à coletividade.
124
DESAFIOS IntErmodais
- 125
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ArAújo, Alceu Maynard. documentário folclórico paulista. São paulo: prefeitura
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Superintendência de difusão Cultural da Secretaria de Educação do Estado da Bahia,
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vovELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. tradução de Maria júlia goldwesser.
São paulo: Brasiliense, 1987. 416 p.
(...) nenhum artista inventa uma experiência de vida. É impossível.
em arte, só expressamos a nossa experiência de vida e não outra coisa. É
preciso ler a vida na obra de arte. esta não são só ilustrações de problemas
teóricos, de uma equação. A obra existe antes da teoria, é o resultado de
alguma vivência1
uma obra autobiográica, guiada por retalhos de memórias de infância
é construída e (re)construída por meios de objetos especíicos: gamelas, pés,
mãos, oratórios, santos, fotograias, bonecas e vários outros objetos (artesanais
e industriais) que remetem à tradição milenar dos ex-votos, da arte popular,
do barroco. Esses são os elementos que formaram o cerne do trabalho plástico
de farnese de Andrade (1926-1996)2.nascido em Araguari, a partir de 1959
tornou-se participante ativo do cenário da arte. A fase escolhida como referên1. fayga ostrower apud. MorAES, 1998, p. 60.
2. AnrAdE, farnese de. Muitas de suas obras integram o acervo de museus, fundações e institutos, quais sejam:
Museu de Arte Moderna de nova York; Museu de Arte Moderna do rio de janeiro; Museu de nacional de BelasArtes do rio de janeiro; Museu de Arte Contemporânea da prefeitura de niterói; Museu de Arte Moderna de São
paulo; pinacoteca do Estado de São paulo; Instituto de Arte Contemporânea de Londres; Coleção de Arte LatinoAmericana da universidade de Essex, e outros. o artista participou de bienais no Brasil, Chile, veneza. recebeu
vários prêmios, entre eles “viagem ao estrangeiro” pelo MEC. realizou exposições na Espanha, Chile, frança,
Cuba, nigéria e por vários estados brasileiros.
126
DESAFIOS IntErmodais
- 127
cia para esse texto são as representações em assemblagens/esculturas/objetos
datadas de 1966 em diante.
o trabalho de farnese é construído por meio de objetos díspares. Eles
reúnem uma série de antinômias que falam sobre vida e morte, medo e coragem, céu e inferno, prisão e libertação, interno e externo, fechado e aberto, céu
e inferno, dito-não-dito, velar e revelar, memória e apagamento.
Sobre sua obra, farnese nos revela o seguinte:
[...] eu sei, por exemplo, que minhas obras, através das quais insinuo uma
constante entre a vida e a morte, causam em muitas pessoas uma certa repulsão, muito embora elas reconheçam o seu teor estético e a originalidade
de sua criação. por isso, ao criar minhas obras, procuro para mim mesmo,
antes de mais nada, aquele impacto que já me proporcionaram as obras de
alguns artistas. Acredito que todo artista criador tem essa intenção: sofrer
o impacto que causa sua obra - o resultado inal de seu ato de criação. porque somente no momento que lhe causa o impacto é que se sente a obra
de arte concluída. Ademais, criação artística é um fenômeno altamente
pessoal, razão por que admiro os colegas que conseguem unir sensibilidade à cultura. Em arte não existem regras ou dogmas deinidos [...] o objeto
estético independe da natureza e da origem dos materiais, desde que seja
revestido de dignidade. (KoSSovItCh, et al, 2000, p.124)
o trabalho de farnese é marcado por um forte caráter biográico. A presença de sua história de vida ica visivelmente colada na criação das imagens.
Ele era ilho de um tabelião de Araguari, pequena cidade localizada no interior
de Minas gerias. Sua mãe fazia lores para grinaldas e buquês, uma artesã. de
um tio fotógrafo, legou os retratos que foram usados na grande maioria de suas
composições. Antes de seu nascimento ocorreu um trágico acidente. Seus dois
irmãos ainda pequenos morreram afogados numa enchente em Araguari. A
história dos irmãos mortos nessa fatalidade icou como uma sombra marcando
sua infância, pois essa história era sempre comentada pela família. Seus pais se
separam 14 anos depois de seu nascimento. na fase adulta teve tuberculose, os
dois pulmões foram afetados. Sobre essa doença farnese conta:
para mim o mar é importantíssimo. nasci no meio das montanhas – no
triangulo mineiro – e considero-as cerceantes. Só fui ter saúde quando
em contato com o mar. Adoeci dos pulmões em Belo horizonte, conside128
rado o melhor clima para tuberculose, estive num sanatório em correias
e, se não tivesse perdido a paciência e vindo para o rio, teria morrido.
(KoSSovItCh, et al, 2000, p. 27).
A necessidade de citar essas passagens da vida de farnese possibilitam
a melhor aproximação com sua obra por ser tão autobiográica. A iconograia
de seus trabalhos releva e vela suas memórias de infância. Sobre a memória de
infância freud, faz a seguinte observação:
Quando o adulto recorda de sua infância, esta sugere-lhe como um período feliz, em que se regozijava com o momento que passava e avançava
para o futuro sem desejo e por isso ele inveja as crianças. Mas as próprias crianças se pudessem informar-nos mais cedo, dar-nos-íam a idéia,
uma idéia diferente das coisas. parece que a infância não é esse idílio
bem-aventurado, do que damos mais tarde uma idéia deformada (...).
(frEud, 2000, p.78)
no caso, a infância de farnese não foi esse idílio bem-aventurado que
romanticamente desejam os saudosos adultos.vê-se na obra do artista, cabeças
de boneca separadas do corpo, quebradas, queimadas; bonecas que não possuem mais o sentido de um brinquedo de infância, aludem à impossibilidade
de brincar, ou de uma vida terminada precocemente. os objetos escultóricos
feitos em madeira, santos(as) de corpo inteiro, cortados, escoriados, sacriicados remetem às histórias dos sofrimentos, das torturas dos santos mártires.
os suportes/obras, gamelas, oratórios, caixas, possuem em suas composições a função de nicho, quadro, moldura, casa para acolher ou aprisionar os
objetos que compõem o trabalho. As fotograias usadas nas imagens são de sua
família (pai, mãe irmão) e fotograias da cidade (vista aérea, paisagens, escola,
além de outras) e dele próprio.
As fotograias são importantes em seus trabalhos. Monta-as como forma
de documento, como um desejo de preservar uma história mesmo que dolorosa. Ele parece não querer apagá-la, protegendo essas fotograias com camadas
de resina, material muito usado por ele.
Lucy Baldan, comenta:
Araguari, ao que tudo indica, permaneceu na lembrança de farnese,
como ele a deixou em 1942, nas fotos que um tio fotógrafo lhe dera: uma
DESAFIOS IntErmodais
- 129
cidade importante em Minas gerais, que ainda conserva o bucolismo
interiorano do pais. farnese, segundo os registros que se tem, só esteve
na cidade mais duas vezes, após sua mudança para Belo horizonte: em
1960, quando o pai morreu e 1982, a convite de Abdala Mameri, para a
festa do Araguaino Ausente3.
Baldan observa que a obra de farnese é autobiográica, cheia de referências ao seu lugar de nascimento, local que trazia em sua geograia a religiosidade e um conservadorismo provinciano4.
veja também o que diz Charles Cosac sobre o peril da obra de farnese.
Ela (a obra) é exclusivamente autobiográica. farnese percorre uma linha
só, mas com muita riqueza. Acho que sendo uma obra autobiográica
naturalmente a infância, a relação com os pais, a sexualidade e os sentimentos são os aspectos mais presentes em sua obra, isso é comum em
todos seres humanos”5
Seu processo de criação é tão curioso como mostra sua obra terminada.
os objetos usados nos trabalhos eram encontrados aleatoriamente, devolvidos
pelas marés vazantes, deixados nas ruas, no lixo e também adquiridos por várias outras fontes. Eram retirados de materiais de demolições, do uso de fotograias antigas e da compra de coleções de ex-votos e peças de antiquários. Com
objetos encontrados ao acaso e os objetos perseguidos, ele cria um diálogo entre eles, elevando-os à arte, estetizando-os e criando cenários para reabitá-los.
Sobre o seu encontro aleatório com objetos, farnese revela que “o prazer que
proporcionam esses achados nas mais variadas fontes, o encontro de duas peças que se completam, às vezes até existentes no caos do meu ateliê e o ver a
obra pronta, completa, deinitiva. É ai que reside a minha grande alegria”6.
o acúmulo, o transbordamento de objetos encontrados por farnese fazia de sua casa-ateliê uma verdadeira sala de promessas . A ânsia de reunir pedaços de objetos e buscar o encaixe para esses objetos como se fossem peças de
3. CoStA, Lucy Baldan. 2007. Monograia de graduação em Ates. universidade federal de uberlândia,
uberlândia, Minas gerais. p. 36.
4. Ibid.
5. Ibid. p. 27.
6. CoSAC, C. farnese Objetos. São paulo: Cosac & naify, 2005. p. 189.
130
um “quebra-cabeças”, mostra o desejo que formar uma imagem única daquilo
que não se quer mais fragmentado e precisa ser visto por inteiro. no entanto, os
trabalhos apontam para a falta, para a incompletude. Esses objetos icavam ali
dependurados, amontoados esperando para serem “completados”. Até encontrar o seu par aguardavam na espera de sua outra “metade”.
já as peças votivas usadas nos trabalhos eram compradas. Ele comprava
coleções de ex-votos já destituídos de sua função para re-habitá-los em suas
composições. Com elas cria outras “salas de promessas”. para habitar esses (ex)-ex-votos coloca-os agora dentro de oratórios e gamelas de madeira. Em outros
momentos farnese utiliza as cabeças-ex-votos como “modelos” para fazer algumas pinturas que ele as intitula de “Ex-votos”
olhando para os bastidores dos trabalhos de farnese de Andrade,
vale lembrar as conjeturas estudadas pela
Crítica genética. Esses objetos encontrados ou perseguidos formam a gênese da obra, constroem a parte
principal do processo de criação do artista. Esses objetos reunidos por farnese
compõem o corpo “documental” anterior à obra que é tão importante quanto o
trabalho terminado, conforme airma o próprio artista.
Esse reunir objetos, os materiais para criarem um diálogo possível entre
eles, a forma, os locais que eles foram encontrados, formam o grande “dossiê
genético” para a existência futura da obra. Esse conjunto de ações que antecede
a criação da obra é o grande alvo da crítica genética, que se vale de todos os
elementos, os dados que precederam o nascimento da obra de arte.
farnese escolheu ir até o mar a esperar os objetos serem devolvidos pelas
marés, e ali selecionar quais recolher. ficava a esperar aquilo que nem ele mesmo saberia se seria devolvido. no encontrar objetos nos lixos, nos escombros
de construções, existe aí um andar à deriva, de encontrar o não-esperado. Em
outros momentos os caminhos são especíicos, quando a necessidade era de
comprar ex-votos e objetos vendidos em antiquários (cadeiras, caixas, gamelas
e oratórios), além de outros. percebe-se que existem no processo de coletar
matérias, momentos imprevisíveis e previsíveis.
Acredita-se que os trabalhos com oratórios, caixas e gamelas usados
como suporte/obras, sejam as séries mais contundentes do trabalho do artista.
os oratórios, no sentido religioso, são pequenas capelinhas feitas em
madeira (sua maioria) utilizados para colocar imagens tridimensionais de santos. podem ser encontrados em espaços públicos, mas é no espaço particular
das casas que esses objetos loresceram. São usados para as orações da família,
para fazer os terços caseiros. de forma analógica seria uma pequena missa que
DESAFIOS IntErmodais
- 131
acontecia dentro das casas. A prática do oratório marcou o período colonial
brasileiro. Ainda hoje, em muitas residências encontram-se oratórios no estilo
barroco. Em Minas gerais, estado onde nasceu farnese, o oratório integrava o
mobiliário de muitas casas, mas pode ser visto também na atualidade.
farnese fala sobre o uso do oratório em sua primeira composição em
1970 em Barcelona:
Quando ganhei um premio do salão nacional de Arte Moderna, viajei
para a Espanha e lá iquei por três anos. Lembro-me que foi a primeira
vez que usei o oratório, onde coloquei um demônio dentro empalado,
uma coisa sacrílega que deu muito desgosto à minha Mãe católica fervorosa, e que hoje pertence à coleção gilberto Chateaubriand. (AndrAdE, 2002. p. 41)
na direção desse citado trabalho localizou-se a obra intitulada “oratório do
demônio” Seus trabalhos com os oratórios denotam uma grande turbulência em
relação ao culto religioso. São colocados dentro deles, demônios, santos quebrados,
cabeças de bonecas e ex-votos virados de ponta cabeça, seios, ovos (feitos de madeira), fotograias, além de outros objetos. os mais recorrentes são ex-votos e imagens
de santos. Seus trabalhos mostram um grande “desassossego” em relação à vida, à
morte, à sexualidade e à família e sua existência.
dentre tantas composições criadas dentro dos oratórios elege-se para comentar um pouco mais a obra “Anunciação” (1989), (ig. 01) porque essa composição contém vários símbolos que
comumente se repetem em outros trabalhos, inclusive o próprio título dessa obra. foram localizados mais três
trabalhos intitulados “Anunciação”
feitos em 1972. outros nos anos de
1984, 1998/9 e (1983,1985,1987,1995).
Ao que se percebe é um título demasiadamente recorrente na pesquisa do
artista.
fig. 1 - Anunciação (1989) - farnese de Andrade.
fOnTE: farnese. São paulo: Cosac&naify, 2002. p. 146.
132
“Anunciação” trata de uma assemblage composta por um objeto em
forma de ovo (de madeira), fotograia, resina, ex-voto/seio, cabeça e fragmentos de santa e oratório com gavetas. por meio desses citados objetos o artista
presentiica o cenário de uma complexa “Anunciação”, que possui uma atmosfera menos quimérica do que as dos artistas italianos Sandro Botticelli, Leonardo da vince e Lorenzo di Credi que também trabalharam esse tema.
na parte inferior da composição vê-se uma gaveta aberta com o fundo
pintado de branco, guardando dois pés e duas mãos seguidas de antebraço. os
pés encontram-se dispostos em posições opostas. Se estivessem em movimento
estariam tomando rumos diferentes, pois um estaria indo para a esquerda e
outro para a direita. diferentemente das duas mãos que, apesar de estarem em
posições contrárias, se unem por toque leve de dedos, num gesto afetivo.
há também pés que são órgãos de locomoção, base de sustentação do
corpo humano, e o antebraço, que é o segundo segmento móvel do membro superior e fazem parte dos órgãos que indicam movimento. Eles estão cortados,
inertes e marcados por uma larga listra marrom, como se estivessem delimitando e contornando a forma mutilada desses pedaços de corpos. podem estar
fazendo alusão aos ex-votos, que geralmente possuem marcas feitas com tintas,
simulações de cicatrizes e outras incisões. podem ainda endereçar às histórias,
aos castigos dos santos, quando as súplicas não eram atendidas (os santos eram
quebrados, virados de cabeça para baixo, além de outras punições, muito bem
pontuadas por Laura Mello em seu livro “o diabo na terra de Santa Cruz”).
ou podem ainda, ser parte de um santo de roca.
na parte inferior do oratório está um ovo feito de madeira, pintado de
branco. Muitas são as signiicações atribuídas ao ovo. para os celtas, egípcios,
chineses, seria o ‘ovo “cósmico” – isto é, o mundo nasceu de um ovo. temos
ainda, “ovo de serpente”, “ovos de ouro”, “ovo de Colombo” “ovo de pássaro”,
“ovo de páscoa”, além de várias outras metáforas. Sua presença nessa composição parece nos dizer sobre a tradição cristã. o ovo tem conotação de renovação
periódica da natureza. trata-se do mito da criação cíclica, do nascimento e
renascimento: a base da vida.
Logo acima desse solitário ovo, vê-se uma fotograia coberta de resina.
A imagem encontra-se carcomida pela ação do tempo, fato esse muito presente
nas obras do artista. daniicada, a imagem não nos permite identiicar seu
conteúdo.
Mais acima da foto, encontra-se um seio feminino, que anteriormente
fora um ex-voto de madeira e agora ocupa a parte central da composição. geDESAFIOS IntErmodais
- 133
ralmente o seio é símbolo da feminilidade, alimento e aconchego. Essa parte
do corpo feminino abre fórum para muitas discussões. Ao longo da história
da Arte o seio foi representado na poética de vários artistas. Citam-se o italiano tiepolo no séc. XvIII, em sua polemica obra “A verdade revelada com
o tempo”, e delacroix, em seu quadro mais famoso “A liberdade Guiando o
Povo”, que exprime sua crença na liberdade e na vitória através de uma igura
de mulher com os seios nus.
o seio/ex-voto de farnese teria sido um objeto de promessa e cura alcançada “contra” câncer de mama? Qual seria sua função primeira antes dessa
apropriação? São muitas as indagações que icam em suspenso. Atualmente,
nas salas de promessas, encontramos um avolumado desses objetos feitos de
madeira, sabão, paraina e fotograias, como retribuição de curas de doenças
mamárias.
A tradição cristã também é rica na simbologia dos seios. temos as representações da virgem amamentando o Menino-jesus e as obras que retratam os
martírios de Santa águeda7, Santa Bárbara, Santa Eulália, Santa Cristina, – que
tiveram como seus martírios a amputação das mamas.
o Seio na obra “Anunciação” permite várias decodiicações, tanto para
a possibilidade de atributo votivo, quanto poderia ser uma referência a essas
santas mártires, que tiveram seus seios cortados. Considerando a presença da
mutilação da escultura de santa presente nessa composição, e ainda, em se tratando desse artista iconoclasta, pode-se pensar na ironização às imagens de
culto cristão, pois o artista parece relacionar-se com essas imagens numa mistura de amor e de ódio, conforme pode ser observado o conlito em quase toda
a sua obra.
na parte superior da composição, na “boca de cena”, há uma cabeça virada para baixo, de uma santa de madeira, policromada e com os olhos de vidro.
pela ausência de seus atributos, não temos como precisar o seu nome.
no repertório dos ex-votos, a cabeça pode ter várias signiicações ligadas
às doenças. para alguns devotos, mesmo que a doença tenha sido no pé, eles
oferecem a cabeça, por acreditar que ela é o centro de tudo. Segundo platão, a
cabeça humana é comparável a um universo. É um microcosmo8.
7.
Santa águeda é hoje a padroeira das mulheres com câncer de mama.
8. ChEvALIEr, jean. et al. Dicionário de símbolos, mitos, sonhos, costumes, gestos, iguras, cores, números.
rio de janeiro: josé olimpio, 1996.
134
A cabeça para baixo é um símbolo de caracter religioso, é o estar virado
para regiões tenebrosas inferiores. É a “capotagem” do vencido. o posicionamento da cabeça virada para baixo nos levar a crer que o artista pode estar
fazendo uma analogia aos santos mártires que sofreram, que foram cruciicados de cabeça para baixo, em respeito à cruciicação de Cristo, e às santas que
tiveram seus seios mutilados.
por último, o oratório que assume o peril de suporte e obra serve de nicho para habitar esses objetos sígnicos que trazem impressos em sua epiderme
muitas histórias. Atrevemo-nos a dizer que eles trazem um corpo documental
de muitas histórias de vidas, anônimas, tão distantes e tão proximas de nós. São
próteses, simulacros de corpos esculpidos, “pedaços de nós mesmos” fragmentados como um quebra-cabeças, um mosaico de histórias de vidas que buscam
encontrar os encaixes da totalidade da existência menos dórida.
A imagem desse oratório carrega resíduos do período barroco, apresentando formas circulares e em cortes ondulados, construindo arabescos em forma de rocalle, de caracois. Esses objetos de fé, que podem estar em espaços
públicos, ocupam também os interiores domésticos, sendo elevados a uma forma de altar. os oratórios muitas vezes delimitam uma função social da mulher,
numa gratidão de fé, por ser ali que ela reza pela familia. no entanto, nessa
composição, farnese faz um oratório da mutilação da mulher e da santa. num
empate de tensões, ele provavelmente não deixa brechas para vitórias, para nenhuma alegoria e arquétipo feminino.
todos os objetos compositivos expostos na ambiência desse oratório
parecem formar entre eles um isolamento silencioso, fragmentado. Mistura
apolínea – de fé e dionisíaco – de alição. São objetos enfronhados de sentidos.
Sentidos complexos, que revertem a ordem do senso comum. o oratório parece
não ser mais para orar, a santa, foi espostejada e está de cabeça para baixo com
os olhos abertos, ali, mais uma vez martirizada, uma fotograia velada de resina, um seio/ex-voto que parece não ser fruto de um milagre, o ovo ao invés de
nascimento seria o niilismo - o prelúdio para um recomeçar uma vida menos
trágica.
A obra anunciação exige outro entendimento dos objetos – objeto na
cultura, na arte e objetos, “meras coisas”. Como bem percebeu Baudrillard,
os objetos, “estes deuses domésticos” encarnam e criam vínculos afetivos em
nosso cotidiano. talvez seja por meio dos objetos, espaços, de caixas, gamelas,
armários, oratórios, que farnese de Andrade, num processo de libertação denuncia e anuncia os seus conlitos espirituais marcados em sua infância.
DESAFIOS IntErmodais
- 135
os trabalhos montados dentro de caixas e gamelas seguem na mesma
direção dos feitos dos oratórios. farnese conta-nos como descobriu as gamelas
como possibilidade de suporte de seus trabalhos, somando-as a duas coleções
de ex-votos que havia comprado. Ele diz:
no im de 1973 voltei da Europa para icar um mês em casa e fui vítima
de uma inexplicável depressão, e durante o período da doença nada mais
me interessava a não ser como morrer, sem chegar a concretizar uma tentativa de suicídio. Curado, eu comecei a subir novamente para ao ateliê, e
não podia ver nada fechado, abria os oratórios, as caixas, sentia repulsa
pelo meu trabalho (...) e na euforia da cura, passando pela cozinha e
vendo minha empregada amassando pão de queijo, vi pela primeira vez,
a forma da gamela, gamela esta que estava na família a mais de setenta
anos. foi a descoberta do novo suporte aberto, e a coincidência de ter
conseguido comprar duas esplêndidas coleções de ex-votos antigos (na
minha exposição de 1966 já havia uma peça com ex-voto, mas na época
eles estavam em moda com décor, e eram difíceis de encontrar) dessas
duas coincidências surgiu uma nova fase. (AndrAdE, 2002. p. 43).
no mais das vezes, farnese constrói um mundo com objeto e para os
objetos. Seus trabalhos são construídos dentro de caixas, oratórios, gamelas,
cubetas, vasilhas de vidro, apresentados fechados, semi-fechados ou abertos.
A opinião que se tem, é que o artista cria casas para guardar esses objetos que
inicialmente são distintos. Contudo, criam ainidades, à medida em que coabitam dentro de um mesmo espaço. Muitas dessas composições possuem uma
atmosfera meio morbíica que diiculta discernir se a vida foi interrompida ou
continuada, onde vida e morte parecem ter uma passagem só.
Escudado no que foi dito, pode-se airmar que os objetos apropriados
por farnese não são um objeto qualquer, um ready-made duchampiano, e sim,
está mais próximo, de um objet-trouvé. pois o artista, mesmo que encontrando-os ao acaso, seleciona-os e os escolhe em conformidade com a sua preferência.
direcionou seu interesse, como, pode ser visto, por objetos erodidos pelo tempo, envelhecidos, permeados de memórias e identidades, que já pertenceram a
outros lugares que, mesmo retirados deles, guardam a alma, o pertencimento
desses lugares com resíduos identiicatórios.
136
Sobre o aspecto envelhecido da grande maioria de suas peças que apontam para ação do tempo, rodrigues naves diz o seguinte:
Conheço pouca coisa mais triste que os trabalhos de farnese de Andrade. As madeiras gastas de seu trabalho guardam um tempo esponjo, que
se acumula sobre os ombros e nos paralisa os movimentos. As fotograias
e imagens presas nos blocos de poliéster falam de um passado que nos
inquieta, mas não podemos remover ou processar, já que não mais nos
pertence. (AndrAdE, 2002. p. 13)
As obras “casal com ilhos” ( 1983) , e “família (11)” (1984), mostram
esse pertencimento de uma forma muito direta. Aqui se volta a mesma área de
turbulência que de forma semelhante ocorre com algumas obras de Efrain Almeida. o que difere essas obras de uma série de cabeças que se encontram nas
prateleiras das salas das promessas? Seria o seu isolamento das demais outras?
A montagem? tudo isso seria muito pouco como resposta.
volta-se novamente a problemática de que o espaço atribui signiicados
aos objetos e também o nome de quem os fez, apropriou ou re-signiicou-os.
Sabe-se que essas perguntas vêm ecoando desde os ready meady duchampianos
e as respostas continuam lodosas.
Seus trabalhos são retratos, autorretratos feitos de pedaços de ex-votos
de madeira, bonecas e vários outros objetos entranhados de signos que evocam
uma introspecção religiosa, mistura de amor, sofrimento e castigo. São assemblagens, montagens calculadas, espaços dramáticos, que parecem um pedido
de socorro. Cada ex-voto colocado nas suas imagens tão turbulentas remete-se
a um agradecimento de um voto por aguentar viver.
É assim que se recebem os objetos de farnese9, pois mesmo aludindo
estarem em estado de vice-morte não se abstêm da coragem de viver.
9. ver também: AndrAdE, farnese de. Objetos e Esculturas. texto de frederico Morais. rio de janeiro: AM.
niemeyer Artinteriores, 1986. [16] p.il. Color.
ArtE no Brasil. prefácio pietro Maria Bardi. Introdução pedro Manoel. São paulo: Abril Cultural, 1979.
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LEItE, josé roberto teixeira. 500 anos da pintura brasileira. [s.l.]: Log on Informática, 1 Cd-roM Multimídia.
DESAFIOS IntErmodais
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AndrAdE, farnese de. farnese de Andrade. textos de rodrigues naves. São paulo:
Cosac & naif, 2002.
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1998.
CoStA, Lucy Baldan. 2007. Monograia de graduação em Ates. universidade federal
de uberlândia, uberlândia, Minas gerais.
CoSAC, C. farnese objetos. São paulo: Cosac & naify, 2005.
ChEvALIEr, jean. et al. dicionário de Símbolos, mitos, sonhos, costumes, gestos ,
iguras, cores, números. rio de janeiro: josé olimpio, 1996.
frEud, Sigmund. A recordação de infância de Leonardo da vinci. Lisboa: relógio
d’água Editores. 2007
KoSSovItCh, Leon. Et al. gravura: arte brasileira do século XX. São paulo: Itaú
Cultural/Cosac & naif, 2000.
vÍdEo
fArnESE. dvd. Cosacnaify02. produzido por Sonopress. Color. Son. 2002.
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ChILvErS, Ian. dicionário oxford de Arte. São paulo: Martins fontes, 1996.
138
DESAFIOS IntErmodais
- 139
pAtrIMônIo CuLturAL, EduCAçÃo
pAtrIMonIAL E CIdAdAnIA: relato de uma experiência
com trabalhadores informais no entorno da Igreja do
Bomim
fernanda daniela Chaves rocha
giordanna Laura da Silva Santos
Contextualização
no âmbito acadêmico, muitas vezes, os resultados das pesquisas que
têm como objeto ou fonte comunidades, grupos de pessoas ou representantes sociais de uma localidade, são direcionados apenas para a própria
comunidade acadêmica. porém, aos poucos, essa “tradição” vem sendo modificada e alguns acadêmicos, sejam eles pesquisadores discentes ou docentes, vêm tentando se aproximar da sociedade, principalmente tentando
levar resultados de sua pesquisa e/ou desenvolvendo projetos práticos nos
locais onde foram feitas as pesquisas empíricas. Algumas ações das universidades visam interagir mais com a sociedade. um exemplo disso são os
projetos de extensão.
nessa perspectiva que se insere o “projeto de Extensão Inclusão Social e digital na comunidade da Igreja de São Lázaro, Salvador, Bahia: Memória social, patrimônio cultural e cidadania”. fruto de um processo científico que teve início em 2006, com o projeto Ex-votos do Brasil, quando
aprovado pelo Conselho nacional de desenvolvimento Científico e tecnológico (Cnpq). desde então teve sua renovação, pelo Cnpq, em editais de
DESAFIOS IntErmodais
- 141
2009, para auxílio pesquisa e em produtividade (pQ). o seu objetivo inicial foi
pesquisar e documentar os ex-votos das salas de milagres dos maiores santuários do Brasil (SAntoS, 2011).
Como relexo de suas produções, o projeto objetivou dois outros caminhos extensionistas: o núcleo de pesquisa dos Ex-votos (npE) e o Museu digital dos Ex-votos, que têm vínculo com o grupo de Estudos sobre os Cibermuseus (grEC). Em 2010, uma nova etapa do projeto Ex-votos do Brasil, o
“projeto Inclusão Social e Capacitação digital da Comunidade de entorno do
Santuário de São Lázaro, Salvador, Bahia: Memória social, patrimônio cultural
e cidadania”, foi aprovado pelo Cnpq. A equipe iniciou os trabalhos no Bonim, antes da etapa São Lázaro, devido às questões de logística e de espaço para
realização das oicinas, que no Santuário do Bomim estavam disponíveis na
época (SAntoS, 2011).
o grEC tem caráter multidisciplinar e com essa perspectiva vem desenvolvendo o projeto de Inclusão Social e Capacitação digital, indo além de apenas fazer uma inclusão digital dos membros das comunidades no ciberespaço.
o objetivo principal é retornar nos santuários pesquisados, nos quais em etapa
anterior estudamos os ex-votos que neles são guardados e desenvolver ações
que incluam os moradores e trabalhadores informais em seu próprio bairro,
comunidade, para que também se possa, depois, trabalhar aspectos de cultura,
patrimônio, educação patrimonial, turismo e comunicação.
dessa maneira, este texto integra o “projeto de Extensão Inclusão Social
e Capacitação digital no entorno do Santuário de São Lázaro, Salvador, Bahia:
Memória Social, patrimônio Cultural e Cidadania”, que abrange também o
Santuário do Bomim, localizado na mesma cidade. o projeto conta com uma
equipe multidisciplinar, composta por proissionais das áreas de comunicação,
museologia, ciências sociais, cultura e turismo; bem como é realizado e desenvolvido pelos integrantes do grEC, vinculado a universidade federal da Bahia
(ufBA).
o objetivo é promover a cidadania, por meio da inclusão social e capacitação digital, bem como possibilitar aos moradores dos bairros de São Lázaro
e Bonim o aprendizado da educação patrimonial, de noções de informática
e do universo da web 2.0, como mídias sociais. ou seja, promover a inclusão
sociodigital e, por meio de trabalhos de conscientização e cidadania, fazer com
que essas pessoas possam se sentir pertencentes a seus bairros e tenham alguma
interação, seja ela presencial ou via Internet, com o seu contexto local. o projeto, realizado em 2011 no Bonim, inicia-se também em São Lázaro, em 2012.
142
para realização do projeto no Bonim foram feitas duas ações. uma delas, objeto inicial e principal das atividades do grEC no Bonim, foi a inclusão
social e a capacitação digital com moradores do bairro ou frequentadores do
Santuário do Bomim. A outra foi a realização de oicinas de educação patrimonial, museística, turística, noções de comunicação, marketing e vendas para
trabalhadores informais do entorno da Igreja do Bomim. o foco principal deste texto é relatar a experiência desenvolvida com o segundo grupo de atores
sociais (vendedores informais e guardadores de carro – lanelinhas).
Ambas as ações do projeto foram compostas por duas etapas. no caso
da experiência com os trabalhadores informais, a ideia partiu do próprio responsável pelo Santuário do Bomim, padre Edson Menezes da Silva. na primeira parte do projeto, o objetivo foi conhecer o público alvo, composto por 180
vendedores informais (responsáveis pela venda de souvenirs e comidas típicas)
e guardadores de carro (lanelinhas), que trabalham no bairro do Bonim. na
segunda etapa, foram realizadas as oicinas.
Assim, a partir dessa experiência e da observação participante em todo
o processo, esta comunicação tem o intuito de analisar a percepção desses vendedores a respeito do patrimônio cultural da localidade, que é constituído pela
Igreja do Bomim (considerado um dos bens patrimoniais mais importantes
de Salvador) e o Museu dos Ex-votos, situado dentro da própria igreja. nesse
sentido, ainda observamos se esses vendedores “utilizam” esse patrimônio e de
que forma se dá esse processo; bem como veriicamos se essa compreensão de
patrimônio é repassada aos turistas.
A segunda parte se trata da etapa prática, na qual utilizamos o método
multidisciplinar em oicinas sobre educação patrimonial, museística e turística, com a inalidade de promover a cidadania; o uso sustentável e valorização
do patrimônio: igreja e museu; e o relacionamento entre turistas e vendedores
locais. pois, acreditamos que, ao falar de patrimônio, estamos falando (e instigando) do exercício de cidadania e do direito à memória. Assim, para que esses
atores sociais, que também são frequentadores da igreja, possam exercer sua cidadania, precisam, primeiramente, sentir-se pertencentes àquela comunidade.
E o “ponto em comum” é exatamente o patrimônio cultural e a memória social.
A preservação da memória de manifestações, como interpretações musicais e cênicas, rituais religiosos, conhecimentos tradicionais, práticas
terapêuticas, culinárias e lúdicas, técnicas de produção e de reciclagem,
a que é atribuído valor de patrimônio cultural, tem uma série de efeitos:
DESAFIOS IntErmodais
- 143
1) aproxima o patrimônio da produção cultural, passada e presente;
2) viabiliza leituras da produção cultural dos diferentes grupos sociais,
sobretudo daqueles cuja tradição é transmitida oralmente, que sejam
mais próximas dos sentidos que essa produção tem para seus produtores
e consumidores, dando-lhes voz não apenas na produção mas também
na leitura e preservação do sentido do seu patrimônio;
3) cria melhores condições para que se cumpra o preceito constitucional
do “direito à memória” como parte dos “direitos culturais” de toda a sociedade brasileira;
4) contribui para que a inserção, em novos sistemas, como o mercado
dos bens culturais e do turismo, de bens produzidos em contextos culturais tradicionais possa ocorrer sem o comprometimento de sua continuidade histórica, contribuindo, ainda, para que essa inserção aconteça
sem o comprometimento dos valores que distinguem esses bens e lhes
dão sentido particular (fonSECA, 2003, p.72).
Esse trabalho prático teve início no mês de agosto de 2011 e foi inalizado
em dezembro do mesmo ano. realizadas no Centro Comunitário (figura 1),
próximo a Igreja do Bomim, as oicinas foram ministradas por pesquisadores
e proissionais que integram o projeto. na comunidade do Bonim, a própria
igreja auxiliou na disponibilização de um espaço para serem
realizados as oicinas. trata-se
do Centro Comunitário Senhor
do Bomim, que possui auditório, salas amplas e arejadas, e
um laboratório de informática
com aproximadamente 10 computadores. para atender à demanda, o grEC também possui
equipamentos próprios (computadores, notebook, câmeras
fotográicas, gpS e outros) que
também foram utilizados.
fig. 1 – fachada do Centro Comunitário, onde foram realizadas as
oicinas com comunidade do Bomim e com trabalhadores informais.
foto: Cecília tamplenizza, 2011.
144
utilizaram-se materiais didáticos, sala de audiovisual, bem como se obteve o auxílio dos membros da igreja que tiveram a iniciativa de desenvolver
esse projeto com os vendedores. Como resultado das ações realizadas no Bonim, este texto aborda o patrimônio material, a exemplo do Museu dos Ex-votos
e da Igreja do Bomim, bem como o patrimônio imaterial. o intuito é tratar da
questão da cidadania e dos direitos socioculturais relacionados aos vendedores
informais e o bem patrimonial ali presente. para isso, utilizamo-nos de conceitos de patrimônio cultural, educação patrimonial e cidadania.
Patrimônio cultural, educação patrimonial e cidadania: o caso
do Bonim
Assim como, nas últimas décadas, foi-se adotando a concepção antropológica
de cultura, o conceito de patrimônio, bem como sua aplicação e suas políticas públicas foram se ampliando. nesse sentido, como coloca nery e Santos (2011, p. 6),
As ações no âmbito do patrimônio Cultural vêm ultrapassando a monumentalidade e mesmo a materialidade como parâmetro de proteção, para
abranger os saberes, as práticas e as manifestações populares, garantindo
a preservação da memória dos diferentes grupos sociais que compõem
a sociedade brasileira. o patrimônio cultural contribui para o processo
de identiicação na medida em que permite que conheçamos os quadros
de referência do passado, percebendo as semelhanças e as diferenças na
paisagem cultural, constantemente transformada. A preservação do patrimônio cultural está, então, associada à cidadania, condição primeira
para a transformação social. o patrimônio deixa de ser herdado para ser
também estudado, discutido, compartilhado e reivindicado; e desta forma colocado no nível de abrangência devida, como direito à memória.
no que diz respeito ao direito à memória, é essencial que compreendamos as diferentes formas de memória (individual, coletiva, social), que muitas
vezes estão correlatas. porém, neste caso, trata-se, principalmente, de memória
social, como explica Marilena Chauí:
É ixada por uma sociedade por meio de mitos fundadores e de relatos,
registros, documentos, monumentos, datas e nomes de pessoas, fatos e
DESAFIOS IntErmodais
- 145
lugares que possuem signiicado para a vida coletiva. Executando-se os
mitos, que são narrativas fabulosas do passado lendário de uma comunidade e portanto só existem na mente ou imaginação da coletividade, a
memória social e histórica é objetiva, pois existe fora de nós, conservada
em objetos (textos, monumentos, inscrições, instrumentos, ornamentos,
obras de arte, etc.) (ChAuÍ, 2006, p.141).
de acordo com rocha (2012), a memória é atribuída não só ao que se diz
de fatos passados, mas se torna um elemento valorativo de uso simbólico, por
contribuir com a perpetuação de processos históricos. possibilitando, assim, a
busca dos indivíduos pela sua identidade cultural. nesse sentindo que, na contemporaneidade, a valorização do patrimônio e preservação de monumentos
está intrinsecamente ligada à questão da memória. na verdade, desde que se iniciaram as primeiras práticas voltadas para a preservação dos monumentos, já se
ouvia falar nessa atribuição da memória como condição de patrimônio (ibidem).
observa-se que na contemporaneidade a construção da memória, por
meio das manifestações do patrimônio material e imaterial, é uma construção
coletiva. no caso do projeto em questão, é uma construção de diversos atores,
sendo eles: os campos sociais (a comunidade do Bonim), o campo político e,
também, a universidade. Cada ator envolvido nesse processo vê o patrimônio
da localidade (Santuário do Senhor do Bomim, Sala de Milagres e Museus dos
Ex-votos) a partir da sua constituição social, ou seja, a partir de seu lugar de
fala e no seu tempo de fala.
nesse sentido, o conceito de patrimônio cultural passa a ser visto sob
o prisma dessa subjetividade. ou seja, para os vendedores ambulantes, o patrimônio adquire um signiicado, expressando sua memória e sua história na
localidade. para o campo político, patrimônio cultural é uma junção de conceitos, que visam atender à maioria da população e aos turistas. É por isso que,
no âmbito brasileiro, as políticas públicas para a área de patrimônio cultural,
ainda apresentam resquícios de materialidade do patrimônio. para o grEC,
responsável pela execução do projeto de extensão no Bonim e em São Lázaro, é
de grande relevância se trabalhar noções de patrimônio, utilizando técnicas da
educação patrimonial, bem como abordagens de cultura da folkcomunicação.
pois, compreendemos, que o “patrimônio é usado não apenas para simbolizar,
representar ou comunicar: é bom para agir. [...] não existe apenas para representar ideias e valores abstratos e para ser contemplado. o patrimônio, de certo
modo, constrói, forma as pessoas” (gonçALvES, 2003, p.27).
146
outro aspecto importante que não poderia deixar de levar em consideração é sobre a importância do patrimônio histórico e cultural, sobretudo de
sua preservação. Segundo Camargo (2002), esse processo de preservação teve
início no Brasil, a partir do século XX. Antes, a valorização era mais voltada
ao patrimônio material, porém, no decorrer das décadas, não só o conceito de
patrimônio ganhou um novo sentido – acrescentando-se o imaterial – como
as políticas se voltaram para esse sentido ampliado e antropológico de patrimônio. Sendo visto não mais como um aspecto negativo, e sim como algo que
representa a identidade cultural e a memória de um povo ou nação.
A princípio, o patrimônio conhecido muito mais em sua materialidade, passou a incorporar outros bens em sua constituição, como os chamados
patrimônios imateriais. dentro desses aspectos, podemos citar os saberes e fazeres; as danças; as músicas; as realizações artísticas; a culinária; o artesanato;
as festas, celebrações – sejam elas de caráter religioso ou de outra forma ritualística; as feiras, entre outros elementos signiicativos; considerados, inclusive
atrativos do turismo cultural (BrASIL, 2006).
Com os passar dos anos, o conceito de patrimônio foi sofrendo alterações e hoje cada teórico cria várias deinições a seu respeito. neste caso, optou-se em usar como conceito de patrimônio o que está presente na Constituição
federal de 1988 (BrASIL, 1988), que em seu artigo 216 entende como patrimônio cultural brasileiro, “os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação,
à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira [...]”.
Esse conceito está em conformidade com os preceitos adotados pela organização das nações unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (unESCo), que promoveu em 1972 um tratado internacional denominado Convenção
sobre a proteção do patrimônio Mundial, Cultural e natural visando promover
a identiicação, a proteção e a preservação do patrimônio cultural e natural de
todo o mundo, considerado especialmente valioso para a humanidade.
Quando começou a prática de preservação do patrimônio e de sua utilização pela atividade turística, apenas uma elite hegemônica é que tinha acesso
a esses bens. Embora, em muitos casos, atualmente ainda aconteça dessa forma.
porém, com a criação de políticas destinadas aos direitos sociais e culturais e
principalmente aplicação de políticas que se voltam às práticas de cidadania, a
sociedade, gradualmente, está adquirindo consciência de quais são seus deveres e fazeres, e, sobretudo, do que lhes pertencem de direito. neste aspecto, ao
tratar da questão de cidadania, Scocuglia (2004, p.59) cita que:
DESAFIOS IntErmodais
- 147
A ideia de cidadania que predominou durante quase todo o século XX,
esteve ligada aos espaços das elites do país que exerciam o poder, enquanto o patrimônio preservado se restringia aos monumentos que marcavam a vida dessa elite. na passagem para o século XXI, a rua, a praça,
o largo, ou seja, o patrimônio urbano foi gradativamente subvertendo a
localização dos direitos sociais para além das dimensões da vida privada.
mentos cientíicos, por meio de experiências, métodos e linguagens práticas. É
nesse sentido que se desenvolveram as oicinas do projeto de Inclusão Social e
Capacitação digital, seja com a comunidade frequentadora da Igreja do Bomim ou com os vendedores ambulantes do entorno do Santuário.
Igreja do Bomim como patrimônio material e imaterial
na contemporaneidade, apesar da forte exclusão que ainda predomina
quando se pensa em acesso dos indivíduos aos bens patrimoniais, o quadro
gradativamente vem se modiicando. pois a tendência é que as pessoas conquistem cada vez mais seu espaço, apesar de haver interesses pessoais que aparecem como entrave e desaio na busca por esses objetivos. Alguns monumentos
históricos, entre eles os museus, têm auxiliado no processo de inclusão social e
cidadania, por meio de propostas de ação educativa. Como enfatiza hermeto e
oliveira (2009, p. 93):
várias são as experiências que vêm sendo desenvolvidas nesse sentido,
cujas especiicidades relacionam-se a diversos fatores: identidade do museu, composição de acervo, estrutura física da exposição, formação da
equipe de educadores de museu, público-alvo preferencial e outros.
Essas práticas acontecem por intermédio da educação patrimonial1,
que procura desenvolver trabalhos nas escolas e nos próprios monumentos, com alunos de diferentes faixas etárias, cujo resultado esperado,
como cita Magaldi (1992) é: preservação = identidade cultural + qualidade de vida. não só a escola se utiliza da educação patrimonial, como
também as universidades. Muitos projetos de extensão no âmbito universitário vêm usando das premissas e das técnicas da educação patrimonial para se aproximar da comunidade do entorno das universidades
e/ou retornar aos locais onde realizam suas pesquisas acadêmicas. Consideramos que essa é uma forma de se ultrapassar os muros das universidades e estabelecer uma interação com a sociedade, levando-se conheci1. de acordo com o Instituto do patrimônio histórico e Artístico nacional (IphAn), trata-se do planejamento
de ações pedagógicas, permanentes e sistemáticas, na área do patrimônio cultural enquanto fonte primária de
conhecimento, junto às comunidades em geral, por meio do contato direto, para que elas possam identiicar os
bens culturais que possuem. disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/montardetalheConteudo.do?id=1
2639&sigla=Institucional&retorno=detalheInstitucional>. Acesso em: 02/07/2011.
148
Abordamos aqui especiicamente a comunidade do Bonim, por ser a
que já concluiu as oicinas e, por isso, a que já tem resultados do projeto. Mas
antes de falar sobre a prática do projeto com a comunidade da Igreja Senhor do
Bomim, é necessário mostrar a dimensão sociocultural, histórica e até mesmo
geográica do local.
o Santuário de nosso Senhor do Bomim está situado no bairro Bonim, que compreende a península de Itapagipe, ou região Administrativa II,
composta pelos bairros de Alagados, Bonim, praia da Boa viagem, ribeira,
uruguai, Monte Serrat e roma. de acordo com o Sistema de Informação Municipal de Salvador (SIM), em 2000, a população da península de Itapagipe era
de aproximadamente 160 mil habitantes (SAntoS, 2011).
A Igreja do Bomim foi construída no século XvIII, época em que o
Brasil adquiriu forte riqueza econômica, proveniente da comercialização de
escravos africanos. A Bahia se destacou, nesse sentido, por fornecer produtos
variados que eram exportados para países europeus. o que permitiu arrecadar
recursos suicientes para construir diversas ediicações religiosas. Como cita
oliveira (2007, p. 2), “o século XvIII é sinônimo de riqueza e maior profusão
religiosa nas cidades. As sobras da riqueza produzida pela economia de exportação na segunda metade deste século permitiram a construção de quase todos
os grandes templos católicos, entre os quais o Bomim”.
percebe-se que, com a vinda de escravos africanos para Salvador, houve a
junção de costumes dos afrodescendentes com costumes da capital baiana, transformando-se de forma bastante peculiar em uma “nova cultura”
da cidade de Salvador. o fato é que, no século XIX, com a abolição da
escravatura, esse elo tornou-se ainda mais expressivo, no que diz respeito
à língua, à arquitetura, e à própria religião, por meio do sincretismo religioso presente no Santuário do Bomim; embora os brancos não faziam
referência a esse sincretismo praticado (oLIvEIrA, 2007).
DESAFIOS IntErmodais
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Segundo o mesmo autor, durante o século XIX já existiam os Ex-votos2
(oLIvEIrA, 2007), que hoje estão expostos na Sala de Milagres, na parte interna da igreja, e no Museu dos Ex-votos, situado na parte superior. no entanto,
observa-se que o museu precisa de um pouco mais de divulgação, para que as
visitações aumentem. Muitos frequentadores da igreja, não conhecem o museu. já as pessoas que visitam a Sala de Milagres, que costumam fazer pedidos
ou agradecer pelas graças obtidas, têm um conhecimento maior sobre o Museu
dos Ex-votos.
na Sala de Milagres e no museu há uma diversidade de objetos deixados
pelos iéis, como bilhetes, fotos, cartões, cartas, objetos de madeira e de cera, carteiras de trabalho, convites de formatura, entre outros. todo objeto deixado está
relacionado à necessidade de cada indivíduo que teve a graça concedida. Entretanto, “no museu estão os ex-votos considerados ‘especiais’, de destaque durante
os tempos, ou aqueles ‘ofertados’ por devotos ilustres da cidade” (oLIvEIrA,
2007, p. 8). o autor ainda explica que o museu passou a existir por intermédio da
Sala de Milagres, pois como o espaço do museu é bem maior, os objetos de maior
valor e representatividade, foram sendo relocados para este espaço.
na atualidade, a Igreja do Bomim se tornou um atrativo religioso e turístico de referência não só no Brasil, mas em vários países. para quem frequenta a igreja é possível identiicar uma quantidade considerável de pessoas, vindas
de várias partes do mundo, que têm a curiosidade e o desejo de conhecer o
santuário. Muitos têm apenas a curiosidade, e vão com o intuito de tirar fotos,
apenas por “status”; outros frequentam porque querem deixar alguma graça
alcançada na sala dos milagres, ou fazer pedido, e visitar o museu; e outros, vão
simplesmente para assistir as missas, principalmente moradores das cercanias.
o entorno da igreja é constituído por trabalhadores informais (figura 2), totalizando 180 pessoas, que em sua maioria mora no próprio bairro
do Bonim. Esses vendedores, guardadores de carro e iteiros, comercializam
produtos variados, a saber: velas, utilizadas pelos frequentadores da igreja; itinhas do Senhor do Bomim, utilizadas para fazer pedidos; cordões, terços,
imagens de santos; bolsas personalizadas, feitas das próprias itinhas do Senhor
do Bomim; bem como a culinária, que não poderia deixar de fazer parte da
localidade, sendo o acarajé o mais procurado. Comida de cunho africano, com
fortes traços advindos da culinária baiana.
fig. 2 – os vendedores informais a espera dos turistas na Igreja do Bomim.
foto: fernanda rocha, 2011.
Cada objeto comercializado tem algum tipo de relação com o sincretismo religioso existente. porém, muitos visitantes não conhecem a história da
igreja nem o signiicado das itinhas, mas por essas itas terem forte comercialização, principalmente devido à atividade turística, os visitantes acabam comprando como lembrança ou as utilizam para amarrá-las no braço ou nas grades
da igreja e aproveitam para fazer pedidos ao santo.
Como o espaço ao redor da igreja não comporta os 180 vendedores
de uma só vez, por meio de uma cooperativa, esses trabalhadores dividiram as
equipes de acordo com a função de cada um. para identiicar cada equipe, os
vendedores utilizam uma camisa de cor diferenciada. por exemplo, os vendedores que tem suas barracas e permanecem ixos em um único lugar, utilizam
a camisa de cor verde e, em sua maioria, trata-se de pessoas idosas. os vendedores que icam andando por todo o largo da igreja, abordando os turistas,
utilizam a camisa de cor laranja. há outros tipos de funções, como caixeiros e
iteiros, bem como outras cores utilizadas.
2. objetos, testemunhos de várias formas, que pagadores de promessa deixam na igreja como forma de retribuição
pela graça alcançada.
150
DESAFIOS IntErmodais
- 151
Análise dos dados: pesquisa com os vendedores informais do
Bomim
A pesquisa realizada com os vendedores aconteceu no mês de junho de
2011 e teve como amostragem a participação de 15 pessoas. por meio de entrevistas semiestruturadas se buscou analisar os seguintes aspectos: originalidade;
há quanto tempo trabalham na localidade; a percepção dos sujeitos sobre o
patrimônio histórico e cultural ali presente: Igreja do Bomim e Museu dos
Ex-votos; se procuram frequentar esses espaços; como acontece a divisão de
trabalho entre eles; a forma que se organizam: quem teve a ideia de dividir o
grupo em equipes; a relação dos vendedores com os turistas: se procuram ajudar os turistas com informações a respeito dos atrativos turísticos e culturais da
cidade; possíveis diiculdades encontradas no trabalho; assuntos relacionados
à atividade turística: como a questão da alta e baixa temporada e de que forma
isso inluencia no trabalho do grupo, entre outros quesitos.
para surpresa, foram identiicados alguns vendedores que já trabalham
na localidade há 50 anos. ou seja, são testemunhas de vários acontecimentos marcantes ocorridos no lugar. A maioria já visitou o Museu dos Ex-votos
ou pelo menos sabe da sua existência, mas não o frequenta mais. pelo que se
pôde analisar, o que inibe essas pessoas a continuarem visitando, é o fato de
ser cobrada uma taxa para entrar – mesmo sendo um preço simbólico. Antes a
entrada era gratuita. porém, todos vão à missa, porque o padre Edson dedicou
toda última quarta-feira do mês para ser a missa dos vendedores ambulantes.
o que mostra, de alguma forma, o comprometimento da igreja para com os
vendedores informais.
no que diz respeito à relação com os turistas, todos falaram que procuram ajudar esses grupos, passando informações diversas sobre a cidade, seus
atrativos culturais e turísticos e o Bonim. reclamaram quando há queda na
atividade turística, pois acabam obtendo um menor lucro. os idosos icam em
locais ixos e muitos falaram também sobre os vendedores que circulam por
toda a praça. Assim, os vendedores que circulam lucram mais do que os ixos,
pois são mais visados pelos visitantes e turistas, o que compromete um pouco
a venda dos que permanecem em um único lugar. os vendedores mais jovens,
por serem mais dinâmicos, conseguem abordar os turistas com mais facilidade,
o que contribui para que se tornem o cartão-postal do Bomim.
152
Ainda se perguntou se esses vendedores da melhor idade tinham alguma
crítica, reivindicação ou sugestão a fazer. A maioria exige melhores condições
de trabalho, como construção de barracas ou quiosques com toda infraestrutura adequada para que possam exercer suas atividades com mais conforto e
qualidade. principalmente abrigos que sirvam para dias chuvosos, de modo a
não atrapalhar na comercialização de seus produtos e serviços ofertados.
Com relação à outra parte do grupo, composta por indivíduos mais jovens e que estão há menos tempo na localidade, obteve-se resultados semelhantes. Apenas uma pessoa falou que não sabia sobre a existência do Museu dos
Ex-votos e nem soube explicar do que se trata. Esse entrevistado trabalha na
localidade há três anos e também relatou que não frequenta a missa, nem mesmo a que o padre celebra em dedicação aos vendedores. neste caso, percebe-se
que existe certo receio por parte desses vendedores de passarem informações
concretas aos pesquisadores, bem como, observa-se que alguns não procuram
fazer parte das atividades, nem participam das missas e outras celebrações que
ocorrem na localidade.
Esse receio da comunidade, seja os vendedores ambulantes ou qualquer
ator social que seja parte de uma pesquisa cientíica, é relexo da própria postura da academia, bem como de alguns pesquisadores. pois, nas últimas décadas, a universidade e seus integrantes tinham costume de não devolverem os
resultados de pesquisas empíricas à sociedade. ou seja, não havia uma interação entre sociedade e universidade. porém, nos últimos anos esse cenário está
mudando. E atualmente já observamos projetos como o do grEC, que não só
retorna a um local pesquisado, como oferece projetos de extensão universitária
como forma de interação com os atores que contribuíram para o desenvolvimento do conhecimento cientíico.
nesse sentido, gonzález (2011, p. 93-94) aponta que:
repensar a natureza dos processos culturais em busca de fortalecer o
sentido humanista da universidade implica redeinir o sentido e o lugar
da cultura [...], [bem como] construir um projeto cultural que se adapte
às realidades mutantes e fortalecer a construção de identidades culturais
em toda a sua complexidade. pouco a pouco, vai sendo conseguida a
maior sincronia entre os processos, as instituições, as organizações e se
começa a olhar com maior interesse para as necessidades de reunir esforços para que, com base em todos os níveis territoriais e nos processos
que neles se realizam, seja possível contribuir para melhorar a qualidade
DESAFIOS IntErmodais
- 153
de vida e para um desenvolvimento humano, equitativo, sustentável e
que respeite as diferenças em nossa região, que construa uma verdadeira
cidadania cultural democrática.
todos os entrevistados relataram que procuram ajudar os turistas. Mas,
conforme pôde ser analisado, esses vendedores precisam passar por um curso
de aperfeiçoamento e capacitação, visto que não conhecem ou não põem em
prática a forma adequada de abordar os turistas, o que provoca o constrangimento dessas pessoas, devido ao grande assédio cometido pelos vendedores.
os mais jovens falaram que na época de baixa temporada se deslocam para
outros pontos turísticos da cidade para venderem suas mercadorias, como o
porto, devido aos turistas que chegam por meio de cruzeiros; bem como o pelourinho, no Centro histórico da cidade.
Quando questionados sobre a iniciativa de dividir os grupos por dias da
semana e a fabricação de uma camisa padrão, as respostas obtidas foram dúbias. os mais jovens relataram que a ideia partiu do próprio grupo, composto
pelos vendedores. Em contrapartida, os idosos falaram que a iniciativa surgiu
por intermédio dos membros da igreja e da delegacia que ica próxima a área,
de modo a facilitar o trabalho dos vendedores e evitar confusão entre esses
sujeitos. Segundo informações colhidas durante a pesquisa, alguns vendedores
relataram que estavam acontecendo roubos, alguns cometidos pelos próprios
trabalhadores informais. Assim, por meio das camisas personalizadas, facilitaria a identiicação de quem estava cometendo esses furtos e provocando desordens no ambiente, caso voltasse a acontecer.
foi possível observar também que, mesmo com a divisão das equipes,
existe uma concorrência entre os vendedores. Cada um que procura ser o mais
ágil para abordar primeiro o turista que chega ao santuário, o que provoca o
conlito de interesses dentro do grupo. por im, chegou-se a conclusão que todos os entrevistados, com a exceção de um, possuem algum vínculo afetivo
com o lugar. E gostam daquilo que fazem. Alguns chegaram a relatar que às
vezes nem ganham muito dinheiro vendendo os produtos, mas se sentem bem
em passar o dia naquele ambiente, considerado melhor do que icar em casa.
Essa informação partiu de vendedores que estão no Bonim há mais de 30 anos.
Apesar de ter analisado, durante a pesquisa, que os vendedores, em sua
maioria, mantêm um elo signiicativo com os bens patrimoniais presentes no
Bonim, como também, sabem a respeito do lugar e, sobretudo procuram fazer
parte das atividades desenvolvidas na localidade, eles precisam entender um
154
pouco mais sobre a importância da igreja e do museu, e do patrimônio cultural
como um todo, principalmente compreendendo que são parte integrante do
processo de valorização do patrimônio.
Após as entrevistas, se analisou que esses sujeitos, de modo geral, estavam necessitando de cursos proissionalizantes para que pudessem desenvolver suas tarefas adequadamente, bem como conhecer um pouco mais sobre a
importância do ambiente em que trabalham – formado por um conjunto patrimonial de grande valor. Sobretudo, precisavam entender um pouco sobre o
fenômeno turístico, assim como de relações interpessoais, para que pudessem
manter uma relação harmônica não só com os turistas e visitantes, mas com a
própria equipe de trabalho. E, assim, exercerem de fato seus direitos enquanto
cidadãos. por isso, a iniciativa de desenvolver as oicinas de educação patrimonial, museística e turística, de modo a obter resultados satisfatórios depois que
as inalidades pontuadas, fossem, de fato, alcançadas.
Oicina com vendedores ambulantes do Bonim
para facilitar a execução do trabalho em sala e como forma de priorizar
pela qualidade do aprendizado, a turma foi dividida em grupos. os mais jovens
foram inseridos na turma A – cujas aulas eram realizadas às segundas-feiras;
e na turma B os que participaram durante as terças-feiras. o grupo da terceira
idade icou numa turma separada, correspondente às aulas das quartas-feiras.
os dias escolhidos estavam relacionados aos dias em que o luxo de turistas era
bem menor, para não atrapalhar o trabalho dos participantes e, consequentemente, não ocorrer a evasão em sala de aula. outros atores sociais, que também
trabalham na região, foram convidados a participar das oicinas, como os guardadores de carro (lanelinhas).
As temáticas abordadas foram divididas por módulos, para que os participantes tivessem um aprendizado contínuo e satisfatório, de acordo com os
assuntos mais importantes e urgentes a serem trabalhados, levando em consideração a necessidade do grupo como um todo e dos atrativos culturais e
turísticos da região do Bonim. os módulos realizados seguiram esta sequência: patrimônio histórico e Cultural; turismo; Marketing e Competências
Interpessoais; e encerrando com o curso de idiomas, no qual se trabalhou o
Inglês, sendo o mais sugerido pelos próprios participantes. os instrutores
DESAFIOS IntErmodais
- 155
compreendiam a importância de inserir outros idiomas durante a efetivação
do curso mas, devido ao tempo limitado, não foi possível contemplá-los.
As oicinas ocorreram durante os meses de agosto e setembro de 2011.
o espaço cedido para abrigar os cursos foi o auditório do Centro Comunitário do Senhor do Bomim, localizado próximo à Igreja do Bomim. o que
facilitou, inclusive, o deslocamento dos alunos, por causa da proximidade com
o ambiente de trabalho e com a residência da maioria desses atores. A inauguração das oicinas contou com a participação dos instrutores, dos alunos, e
a importante presença do padre Edson, da Igreja do Bomim, idealizador do
projeto oicina com os Ambulantes. Após as boas vindas e a fala do padre, os
instrutores explicaram o objetivo das oicinas e informaram sobre os assuntos
que seriam debatidos durante todas as etapas estabelecidas, bem como a metodologia utilizada para cada módulo trabalhado. discutiu-se também a respeito
do limite de faltas para cada membro participante, dos certiicados que todos
receberiam depois da conclusão do curso e da importância da participação e
frequência do grupo nas aulas.
o primeiro módulo, “patrimônio histórico e Cultural”, contou com a
presença de duas instrutoras, as bacharéis em turismo fernanda rocha e Ivana
Souza, que abordaram a trajetória histórica do patrimônio, as primeiras políticas de preservação dos bens patrimoniais, a importância de se preservar o patrimônio, a relação entre patrimônio e memória e sobre o patrimônio cultural
e ambiental da cidade de Salvador e, mais especiicamente, do Bonim. houve
mostra de vídeos relacionados ao patrimônio, sua importância e signiicado
para a sociedade; vídeos mostrando pessoas sendo abordadas nas ruas para falar o que elas entendiam por patrimônio, entre outras metodologias utilizadas.
As aulas eram bastante dinâmicas e os alunos puderam participar de
forma signiicativa, contribuindo para identiicar os principais patrimônios
existentes na cidade de Salvador. E, sobretudo, se reconhecerem como patrimônio vivo do Bonim. As instrutoras falaram também a respeito da importância desses sujeitos transmitirem, por intermédio da oralidade, assuntos e
curiosidades relacionados à história da região da Cidade Baixa, tanto para os
turistas e visitantes, como para suas famílias, para que a história sociocultural
do local pudesse se perpetuar durante gerações. desse modo, como argumenta
a pesquisadora Lilia Maria da Silva (2010, p. 207):
trabalhar com conceito de patrimônio cultural é acima de tudo, a busca
pelo conhecimento de uma comunidade. Seus valores, seus bens tangí156
veis (móveis e imóveis) e intangíveis (saberes e fazeres) e tudo aquilo que
a torna singular. A análise de suas referências culturais pode elucidar
questões de preservação, de hábitos e tradições assim como seu modo de
vida, seus rituais, religiões, usos e costumes [...].
Ao inal do primeiro módulo, as instrutoras identiicaram que muitos
dos participantes já tinham certo conhecimento do que seria patrimônio cultural utilizando, como exemplos, monumentos do pelourinho e do bairro do
Comércio, como o Elevador Lacerda e o Mercado Modelo. Alguns falaram que
consideram como sendo seu maior patrimônio os produtos que comercializam
na Igreja do Bomim, como as itinhas do Senhor do Bomim. ou seja, o patrimônio sendo associado à ideia de valor econômico, como sugere Abreu (2003,
p. 30), ao citar que:
A noção de patrimônio traz em seu bojo a ideia de propriedade. Etimologicamente, traduz a concepção de herança paterna. no sentido jurídico, refere-se a um complexo de bens, materiais ou não, direitos, ações,
posse e tudo o mais que pertença a uma pessoa ou empresa e seja suscetível de apreciação econômica.
nesse conceito de patrimônio, Abreu (2003) fala do sentido do patrimônio como um todo. Mas este traduz, de alguma forma, o que os atores sociais participantes da oicina no Bonim interpretam como sinônimo de patrimônio quando relacionam aos aspectos econômicos. o segundo módulo, ainda
sobre turismo, contou com a participação de três instrutoras, fernanda rocha,
Ivana Souza e Kaline Aranha (também bacharel em turismo). foi realizado um
trabalho signiicativo com relação à área do turismo. primeiro, procurou-se
fazer uma abordagem sobre o turismo, discutindo conceitos, tendências, efeitos
positivos e negativos advindos da atividade turística; os principais segmentos
turísticos, com foco especial no turismo cultural e turismo religioso; discutiu-se sobre a necessidade de se trabalhar o atrativo primeiramente com a comunidade, para depois investir no espaço para ins turísticos; a relação entre
ambulantes e turistas; a forma de abordar os turistas e oferecer os produtos e
serviços; a relação entre os próprios ambulantes no ambiente de trabalho; a
importância de desenvolver um turismo adequado; houve exibição de vídeo
institucional da Bahiatursa sobre o turismo na Bahia; e discussão relacionada
à atividade turística e aos principais atrativos turísticos de Salvador.
DESAFIOS IntErmodais
- 157
durante as oicinas de “turismo”, os participantes contribuíram com
exemplos relacionados à rotina de trabalho deles, apontaram as principais
diiculdades para colocarem o trabalho em prática e os desaios enfrentados.
Quando as instrutoras falaram a respeito da maneira invasiva com que alguns
vendedores abordam os turistas, a maioria reconheceu a forma insistente que
eles vêm se comportando e falaram na possibilidade de tentar mudar e se posicionarem de outra forma ao receberem os visitantes. Até porque, como bem
colocado pelas instrutoras, os vendedores ambulantes são considerados um
dos cartões postais do Bomim, e ninguém melhor do que eles para atingir o
grau de satisfação no receptivo, como propõe a hospitalidade relacionada ao
turismo. Assim, a imagem deles é que vai icar na lembrança e na memória das
pessoas que visitarem o lugar. Se houver um trabalho adequado, as experiências serão as melhores possíveis mas, caso contrário, os visitantes guardarão
péssimas lembranças do Santuário do Bomim.
A oicina referente ao terceiro módulo foi dividida em duas partes. na
primeira, a instrutora e comunicóloga flávia Maciel trabalhou com assuntos de
grande relevância e que fazem parte do dia-a-dia dos participantes, sobretudo
com relação ao trabalho que eles desenvolvem no Bonim. o primeiro tema
abordado foi “Administração financeira”, em que a instrutora falou da necessidade dos participantes planejarem suas inanças, preparando-se inclusive para
acontecimentos futuros e às vezes inesperados. depois trabalharam a temática
relacionada ao “Marketing” (conceitos, produção, produtos, vendas), citando
exemplos de experiências ligadas ao turismo; ao mercado – em que discutiram
os conceitos, os tipos de mercado (consumidor, produtor, revendedor, governamental e internacional); serviços oferecidos, e nesse caso, cada participante
citou exemplos de produtos e serviços que eles oferecem e como se organizam
para comercializá-los; por último, se falou sobre produtos (conceitos e tipos de
produtos: tangível, genérico e ampliado).
A instrutora relatou que ao trabalhar a temática “vendas” enfatizou, assim como as instrutoras de patrimônio e turismo, o assédio dos vendedores
para com os turistas que visitam o Bonim e a insistência para que essas pessoas
comprem seus produtos. Alertando sobre a melhor forma de se chegar a essas
pessoas sem causar transtornos ou invasão de privacidade.
por im, a instrutora falou sobre a satisfação em participar dessa ação de
extensão universitária, fazendo elogios aos participantes que realmente tiveram
uma participação ativa, tratando-se da maioria. relatou também a vontade e a
curiosidade desses sujeitos em aprender, o desejo de compartilhar suas histó158
rias de vida por meio dos assuntos debatidos e da força de vontade de participar
e contribuir para a melhoria deles como pessoas e do patrimônio do Bonim
como um todo.
A outra instrutora responsável pelo módulo três, a comunicóloga Emanuely Marques, deu continuidade ao trabalho relacionado ao tema central, trabalhando o marketing direto de vendas e a forma de abordagem dos vendedores
na localidade da colina da Igreja do Bomim. Ela relatou que procurou chegar
mais cedo no Bonim, antes mesmo do começo das oicinas, como forma de observar os participantes do curso no seu ambiente de trabalho. durante esse momento, analisou a forma com que eles atuavam; a relação que mantinham com
os colegas de trabalho e com os turistas; a comunicação e linguagem utilizadas
pelos vendedores, que neste caso, trata-se da linguagem bastante informal; e a
abordagem deles com relação aos turistas.
Quando iniciaram as oicinas, a instrutora procurou comentar o que
tinha observado enquanto eles trabalhavam. todos, em conjunto, passaram
a discutir acerca dos pontos positivos e negativos comuns aos participantes.
Após contribuir com as noções de marketing e com as outras temáticas escolhidas para serem abordadas, a instrutora percebeu o interesse dos participantes
no que se refere aos assuntos discutidos e muitos pediram sugestões de livros e
revistas que tratassem de técnicas de vendas e abordagem ao cliente, para que
eles pudessem ter um conhecimento mais aprofundado a respeito. Emanuely
Marques inalizou relatando sobre a emocionante experiência adquirida com a
participação nas oicinas. Ela comentou que o trabalho foi muito gratiicante.
Após o encerramento do módulo no qual icou como responsável, a instrutora
e os participantes foram à Igreja do Bomim para algumas fotos, como forma
de registrar o momento. A instrutora recebeu lembrancinhas dos participantes
e procurou observar o comportamento deles pós-aula. Segundo ela, foi surpreendente os ver colocando em prática o que tinha sido ensinado e compartilhado em sala de aula.
o quarto e último módulo teve como temática o curso de Inglês, cujos
instrutores responsáveis foram o professor e coordenador do projeto de Inclusão digital josé Cláudio Alves de oliveira e Carla Souza, bolsista do projeto
do Ex-votos do Brasil. Segundo informações repassadas pelos instrutores, eles
procuraram focar nos principais termos do idioma Inglês adotados pela atividade turística. para isso, prepararam uma apostila para trabalhar com os participantes. os participantes sugeriram que os instrutores ensinassem algumas
frases formadas para que eles pudessem utilizar com os turistas que falam
DESAFIOS IntErmodais
- 159
inglês. As aulas foram bastante dinâmicas e interativas, usando-se de metodologias criativas e com uso do teatro.
Após a inalização das oicinas, houve um encontro entre todos os alunos
e alguns instrutores, no qual se buscou falar sobre a importância do curso e as
contribuições que as oicinas iriam proporcionar para a vida de cada um deles
a partir daquele momento, tanto no que se refere à vida proissional, como
pessoal. os instrutores, sem dúvida alguma, conseguiram desempenhar seu
papel da melhor maneira possível e os alunos retribuíram de forma excelente
e satisfatória. não só no que concerne à participação, mas ao entusiasmo, as
contribuições que trouxeram para dentro de sala; a sinceridade, seriedade e o
compromisso em participar, em ajudar e em aprender.
As oicinas foram fundamentais não só em relação ao processo de aprendizagem, mas também no incentivo para promover ações voltadas para a inclusão
social e a cidadania. Elementos prioritários e fundamentais para que os indivíduos possam exercer seus direitos e deveres enquanto cidadãos. Cremos que
do Bonim de forma adequada, juntamente com a ajuda dos instrumentos de
marketing, relações interpessoais e das noções de inglês trabalhados durante
as oicinas.
o entendimento e a prática da cidadania, [...] começa pelo conhecimento
da realidade onde o indivíduo está inserido, a memória preservada, os
dados do presente, o entendimento das transformações e a busca de um
novo fazer, o que não signiica uma aceitação submissa e passiva dos
valores do passado, mas o reconhecimento de que estão ali os elementos básicos com que contamos para a conservação da nossa identidade
cultural. não é uma assimilação de forma nostálgica, de formas e coisas
do passado, há, neste momento, um sujeito que analisa criticamente, que
recria, constrói, a partir de um referencial (SAntoS, 1994, p. 68).
Com essa visão entendemos também que os conceitos de cidadania, patrimônio cultural e educação patrimonial devem estar interligados para que
realmente se desenvolvam políticas públicas voltadas para o patrimônio. Ainal, por meio de ações como a oicina com os ambulantes do Bonim, pode-se
colocar esses preceitos em prática e, consequentemente, proporcionar e instigar uma formação crítica da sociedade ou de grupos sociais envolvidos. nesse
sentido, acreditamos que o patrimônio e o turismo nunca mais vão ser olhados
com os mesmos olhos por esses atores sociais. Cada um vai enxergar um diferencial antes nunca visto ou imaginado, que irá auxiliar na preservação do
patrimônio e, sem dúvida, no desenvolvimento da atividade turística da região
160
DESAFIOS IntErmodais
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162
DESAFIOS IntErmodais
- 163
rEfLEXÕES SoBrE AS rELAçÕES online: indivíduos,
redes e comunidades.
Cecilia tamplenizza
Do imaginário para a carne
para quem fala em cibercultura, a internet é um espaço no qual se produz
cultura; é o lugar onde estamos quando conectados, onde nos conhecemos,
realizamos trocas, identiicamo-nos, signiicamos, ressigniicamos e criamos
novas identiicações. Esse lugar é chamado de ciberespaço.
A palavra ciberespaço foi pela primeira vez utilizada pelo romancista
ciberpunk William gibson, no seu livro neuromancien de 1984, indicando o
universo de redes digitais como um lugar de encontros e de aventuras, um terreno de conlitos mundiais, a nova fronteira econômica e cultural.
“o ciberespaço. uma alucinação consensual vivida quotidianamente por
dezenas de milhares de operadores em todos os países....uma representação gráica de dados extraídos das memórias de todos os computadores do sistema humano. uma complexidade impensável. traços de luz
dispostos no não-espaço do espírito...” (gibson, W, neuromancien. paris: j’ai Lu, 1985, p.64). A Matrix como chama gibson, é a mãe, o útero
da civilização pós-industrial onde os cibernautas vão penetrar. (Lemos,
2004, p. 127)
DESAFIOS IntErmodais
- 165
para gibson o ciberespaço é uma espécie de caricatura do real. representa o conjunto de dados das redes de telecomunicações digitais: o que hoje
chamamos de rede internet. Cabe ressaltar que nessa época, 1984, ainda não
existia a internet como conhecemos hoje. para identiicar um lugar concreto,
acessível através de uma tecnologia de computação, nos referimos a internet
como sendo a web, um sistema de documentos hipermídia executados online
aos cuais acessamos através de programas, como também a possibilidade de
nos relacionarmos interligando serviços onlines como os de telecomunicação
e os videogames. todas essas possibilidades abertas pela internet foram, por
exemplo, inluenciadas pelas artes humanas como a literatura que contribuiu
em criar o imaginário sobre esse “mundo paralelo”.
vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi o teu rosto e senti vertigem e chorei porque meus olhos
haviam visto esse objeto secreto e conjuntural cujo nome os homens
usurpam, mas que nenhum tem olhado: o inconcebível universo. Senti
ininita veneração, ininita lástima. (BorgES, 1972, p. 134)
desde o célebre mito da caverna de platão, escrito entre o 390 e o 360
a.C. no vII livro de república (515a e ss), essas criações habitam e criam o pensamento do homem. na narração do mito, após platão ter descrito a condição
dos prisioneiros, atados dentro uma caverna e olhando para as sombras como
sendo a realidade, glaucon, seu companheiro de viajem, airma: “Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros”, “São iguais a nós” responde
platão (SArAMAgo, 2000, p. 4). hoje, ler certos mitos, lendas e narrativas
literárias, faz pensar no imaginário que permitiu conceber a internet como hoje
a conhecemos. Ao mesmo tempo, nessas narrativas encontramos o desejo de
compreensão e de explicação metafórica do sentimento de totalidade no qual a
humanidade se uniica e se reconhece. nesse sentido, para Lemos, o ciberespaço “se encontra preso em estruturas arcaicas, imaginárias e simbólicas de toda a
vida em sociedade.” (LEMoS, 2004, p. 127) hoje, estudando a web, é necessário
considerar e valorizar as características construtivas do ciberespaço. passamos
de uma época na qual a imaginação do homem criou o ciberespaço, a outra na
qual o ciberespaço passa a ser espaço de construção de virtualidade real e de
transformação do homem.
podemos entender então o espaço cibernético segundo duas perspectivas: como o lugar onde estamos quando entramos num ambiente simulado, na
166
realidade virtual, e como o conjunto de redes de computadores, interligadas, ou
não, em todo o planeta. André Lemos também deine o ciberespaço na dupla
ótica, proposta por Christina hine, que analisa a internet como artefato cultural e como espaço de criação e produção de cultura, acrescentando que:
Estamos caminhando para uma interligação total das duas concepções
do ciberespaço, pois as redes vão se interligar entre si e, ao mesmo tempo, permitir a interação por mundos virtuais em três dimensões. o ciberespaço é assim uma entidade real, parte virtual da cibercultura planetária que está crescendo sob os nossos olhos. Ele não é desconectado
da realidade mas um complexiicador do real. Como airma Kellogg, ele
aumenta a realidade, já que supre o espaço físico em três dimensões de
uma nova camada eletrônica. no lugar de um espaço fechado, desligado
do mundo real, o ciberespaço colabora para a criação de uma «realidade
aumentada». (LEMoS, 2004, p. 128)
Manuel Castells ajuda a entender desde essa perspectiva o signiicado do
termo ‘virtual’ quando airma no seu livro Sociedade em rede que:
Culturas são formadas por processos de comunicação. E todas as formas
de comunicação, como roland Barthes e jean Baudrillard nos ensinaram
há muitos anos, são baseadas na produção e consumo de sinais. portanto
não há separação entre “realidade” e representação simbólica. Em toda
as sociedades, a humanidade tem existido em um ambiente simbólico
e atuado por meio dele. portanto, o que é historicamente especíico ao
novo sistema de comunicação organizado pela integração eletrônica de
todos os modos de comunicação, do tipográico ao sensorial, não é a indução da realidade virtual, mas a construção da virtualidade real. (CAStELLS, 1999, pp. 394-395)
referindo-se a semiótica Castells complexiica a ideia de internet como
uma “realidade aumentada” dizendo que: do ponto de vista da comunicação
o virtual existe na prática e o real é de fato. desde essa perspectiva a realidade
seria, desde sempre, virtual, porque percebida por meio de símbolos, fato que
é ainda mais fácil de entender se referido à comunicação na internet. Mas, é
importante notar que essa criação virtual não acontece só no ciberespaço, mas
também na realidade física. As relações entre pessoas, segundo Lévy, produzem
DESAFIOS IntErmodais
- 167
espaços heterogêneos e entrelaçados, como no caso de uma comunicação entre duas pessoas que cria um espaço virtual, que não pode ser capturado. nas
palavras de Lévy:
As relações entre homens produzem espaços heterogêneos entrelaçados. Esses espaços plásticos se produzem nas relações entre as pessoas e
compreendem ao mesmo tempo as mensagens, as representações que ela
evocam, as pessoas que as trocam, a situação como um todo, tal como é
produzida pelos participantes. (LÉvY, 2007, p. 125)
Mas, se a comunicação envolve a situação como um todo, então, ela se
caracteriza também por sua prática e pelos efeitos materiais que essa tem sobre
as pessoas e as situações, de maneira que o virtual enquanto prática humana
desencadeia efeitos reais e materiais.
Com a criação da internet se desvela a aparente dicotomia entre uma
realidade real, física e objetiva, e uma realidade virtual, imaginada e subjetiva.
Esse dualismo se aproxima e parece ser herdeiro do antigo paradoxo da separação entre sujeito e objeto no qual o homem ocidental assume descartes e o seu:
“Cogito ergo sum”, é a partir do século XvII que é forjada à noção de sujeito e
da subjetividade.
de acordo com essa imagem, a existência do sujeito é idêntica ao seu
pensamento. A relação entre um ser interior que pensa e um exterior do
qual o ser pensante está asceticamente separado é uma relação de identidade. de um lado, o sujeito, do outro lado, os objetos. (SAntAELLA,
2004, p. 13)
hoje, entendemos a web como um espaço que, metaforicamente, permite capturar a imaginação do homem, a virtualidade e colocá-la num lugar real,
concreto. Criamos um espaço onde, em escala mundial, o homem se aproxima
isicamente à sensação de que essa dicotomia, real/virtual, matéria/mente, pode
ser superada.
Lucia Santaella (2009, p. 124-125), investigando a relação entre corpo
físico e ciberespaço, aponta uma questão interessante para essa discussão. A
autora mostra quanto a dicotomia corpo/mente seja ainda presente, tanto nas
ideias dos teóricos (hayles, 1999; heim, 1993) que diagnosticam a “atroia” e o
“esquecimento” do corpo físico no ciberespaço e que “enfatizam o papel de um
168
corpo imaterial em detrimento do corpo físico”, como também nas airmações
dos autores (Bailey, 1996; tenhaaf, 1996) que, ao contrário, enfatizam o corpo
físico airmando que “o corpo físico permanece como referente. E sem ele o ciberespaço nem faria sentido”. Santaella continua dialogando sobre esse assunto
citando tenhaaf (1996, p. 60) que, na mesma linha de Bailey, airma:
A experiência é intensiicada pelo sentido de que esse espaço projetado
tem um poder metafísico, ele parece ser ou imputa-se que seja um recurso de controle que se auto-sustenta para além da autoria, um aparato simbólico fora do eu com a capacidade de ordenar a representação e
construir o sujeito percebedor. Em vez de um luxo bidirecional, é uma
absorção que reconstitui o controle de uma poderosa fonte externa (ib).
Lucia Santaella se opõe a essa distinção e propõe substituir a terminologia corpo real e corpo virtual em corpo carnal e corpo alternativo. pois concorda que não há oposição epistemológica mais equivocada do que a oposição
entre real e virtual. para ela a diferença não está no ser real ou não sê-lo, mas
no tipo de realidade e isicalidade às quais nos referimos. retomando a teoria
ecológica da percepção, desenvolvida por gibson (1986), ela airma:
Contra quaisquer formas de dualismo entre mente/matéria e mente/
corpo, para a ecologia perceptiva, há múltiplos níveis de realidade e a
percepção resulta de fatores evolutivos e adaptativos a vários tipos de
ambiente. Ela se dá num continuum sensório em que não há como separar do seu entorno aquele que percebe. o continuum também implica o acoplamento entre percepção e propriocepção. Esta compreende o
conhecimento do corpo próprio dentro do ambiente. A propriocepção
é muscular, articulatória, vestibular, cutânea, auditiva e visual. As atividades perceptivas, por meio de sistemas exteroceptivos, proprioceptivos
e performativos, são exploratórias, implicam a reciprocidade entre a atividade perceptiva e a estimulação efetiva e estão enraizadas no ecossistema. (SAntAELLA, 2009, p. 128-129)
A autora chega, assim, a essa conclusão: se a realidade percebida em si
apresenta níveis múltiplos, o ciberespaço se apresenta como um desses níveis,
“a realidade simulada se integra ao ecossistema como um dos seus níveis”. Mantendo o continuum a percepção se adapta a esses novos espaços sem necessaDESAFIOS IntErmodais
- 169
riamente ter que determinar uma separação drástica entre o que se chama de
espaços virtuais e físicos.
o continuum perceptivo inclui a percepção do próprio corpo, do seu entorno e a estimulação efetiva e, na maior parte das vezes, sinestésica que
o ciberespaço apresenta ao percebedor e ao qual este reage como agente
performativo, pois navegar no ciberespaço signiica interagir perceptiva
e mentalmente com os estímulos sensórios voláteis que se apresentam.
(SAntAELLA, 2009, p. 129)
Essa compreensão do ciberespaço aponta para a necessidade que hoje
temos de reletir sobre as transformações que estão sendo proporcionadas no
nível do imaginário e da percepção do homem e de como elas inluem nas
maneiras de nos relacionarmos. não simplesmente porque a internet cria um
novo acesso aos outros que são distantes e que se reúnem uma vez que estão
conectados, mas também porque ela nos faz reletir sobre a nossa maneira de
nos relacionarmos. para pierre Lévy, a internet pode ser pensada como o lugar
onde se materializam as relações humanas. no sentido que:
As relações entre homens produzem espaços heterogêneos entrelaçados. Esses espaços plásticos se produzem nas relações entre as pessoas e
compreendem ao mesmo tempo as mensagens, as representações que ela
evocam, as pessoas que as trocam, a situação como um todo, tal como é
produzida pelos participantes. (LÉvY, 2001, p. 125)
Ao participar de um bate-papo online, por exemplo, no monitor observamos digitar as palavras das nossas conversações, que já não são somente
palavras, mas também emoticons, sons, imagens, vídeos, que, em ausência de
webcam tentam representar os nossos estados emocionais. Adquirimos outra
maneira de criar realidades que chamamos de virtuais.
portanto o que é historicamente especíico no novo sistema de comunicação organizado pela integração eletrônica de todos os modos de
comunicação do tipográico ao sensorial, não é a indução da realidade
virtual, mas a construção da virtualidade real. (CAStELLS, 1998, p. 395)
170
para o geógrafo Milton Santos quando airma: “se o ser é a existência
em potência, segundo Sartre, e a existência é o ser em ato, a sociedade seria,
assim, o Ser e o espaço, a Existência. É o espaço que, ainal, permite a sociedade
global realizar-se como fenômeno.” (SAntoS, 2009a, p. 119) o espaço não é
simplesmente um recipiente da história, mas, a condição da sua realização e
vice-versa. “A cada momento da história local, regional, nacional ou mundial, a
ação das diversas variáveis depende das condições do correspondente sistema
temporal.” (SAntoS, 1992, p. 22) parafraseando Santos podemos pensar no
ciberespaço como a sociedade em ato. A humanidade se reconhece como totalidade no ciberespaço e cria novas deinições, como no caso da cultura, da cibercultura. vivemos um processo deinitório em constante reajuste, de forma que
é possível distinguir entre a cibercultura antiga, ou seja, o contexto cultural da
informação tecnológica, e cibercultura contemporânea, aquela que representa
um aproximar especíico ao complexo estudo da cultura e da tecnologia. desde
esse ponto de vista não parece ser mais aceitável a célebre airmação de Mc
Luhan: “o meio é a mensagem”, mas a mensagem se apresenta como o resultado
da mudança que o próprio meio produz. na perspectiva abordada por Manuel
Castells, a rede se converte na mensagem tanto que hoje não é mais possível
entender a sociedade sem compreender seus aspectos “virtu-reais”, materiais e
organizacionais.
As novas possibilidades de criação de conteúdos são também um exemplo
eicaz para entender como o espaço transforma a sociedade e, com ela, as suas
formas da se comunicar, de existir. pensemos nas transformações sociais que hipertexto, multimídia interativa, videogames, simulação, telepresença, groupware,
vida artiicial, etc...conseguem proporcionar no cotidiano das pessoas, mudando
as relações entre cidadãos e com o espaço urbano, e no que concerne as relações
globais, aproximando sociedades longínquas, antes inacessíveis. Encontramos
hibridações entre as linguagens das novas mídias e das mídias tradicionais. para
Santella, a continuidade é a característica da hibridação:
hoje vivemos uma verdadeira confraternização geral de todas as formas
de comunicação e de cultura, em um caldeamento denso e hibrido: a
comunicação oral que ainda persiste com força, a escrita, no design, por
exemplo, a cultura de massas que também tem seus pontos positivos, a
cultura das medias, que é uma cultura do disponível, e a cibercultura que
é a cultura do acesso. (SAntAELLA, 2003, p. 27)
DESAFIOS IntErmodais
- 171
por cibercultura entendemos, então, as informações, imagens, sons, textos, etc., que circulam nas redes das telecomunicações e das informações, na
web. Comunidades e redes sociais onlines são uma parte desse universo em
construção que, hoje, estão em sua fase nascente, no seu estado “embrionário”. Mas cibercultura é também uma maneira de atuar típica do ciberespaço,
uma cultura que nos reúne num único fazer que começa com os nossos dedos
digitando num teclado na frente de um monitor, com uma conexão internet
ativa, para o que precisar ou chegar. Saindo do imaginário do homem, a internet volta-se para a sua carne, inluencia-nos em nossos hábitos cotidianos, em
nosso fazer físico.
jean Baudrillard (apud CASALEgno, 2006, p. 126) alerta para o fato de
que as palavras, os olhares e os gestos encontram-se no espaço da comunicação
numa situação de contiguidade constante, ainda que jamais se toquem.
A tela interativa, telemática, é, ao mesmo tempo, muito próxima e muito
distante: muito próxima para ser verdadeira e ter a intensidade dramática de uma cena; muito distante para ser falsa e ter a distância cúmplice
do artifício. Ela cria uma dimensão que não é mais exatamente humana,
uma dimensão excêntrica que corresponde a uma despolarização do espaço e a uma indistinção das iguras do corpo.
vemos que com a sociabilidade virtual, que é parte integrante do sistema
de relacionamento do homem e, portanto, em relação com a sociabilidade física tradicional, instaura-se um paradoxo: o ciberespaço ao mesmo tempo em
que abre espaço para novas maneiras e possibilidades de sociabilidade tanto na
distância quanto na contiguidade, também exacerba o individualismo ao ponto
de desnaturar a dimensão relacional.
para continuar essa relexão sobre a interdependência virtu-real, tomamos como exemplo as ditas redes Sociais, ou sites de relacionamento que, além
de serem sempre mais utilizados pelos usuários do mundo inteiro, estão aos
poucos modiicando a maneira de nos relacionarmos. vamos traçar uma breve história do conceito de rede social e observar a relevância da sociologia na
ideação desses sites, de maneira que modelos de analise se tornaram padrões
de atuação.
172
De modelos de análise à padrões de atuação
no meio acadêmico a terminologia ‘rede social’ começou a ser empregada há cerca de um século, para designar um conjunto complexo de relações
entre membros de um sistema social, em diferentes níveis, desde o interpessoal
até o internacional. Como apontam diversas pesquisas, a trajetória dos estudos
sobre redes sociais no cenário acadêmico internacional pode ser dividida em
quatro fases fundamentais.
Entre os anos 1930 e 1970, principalmente nos Estados unidos, no marco estruturalista e funcionalista da Antropologia (escola de Manchester), da
Sociologia (universidade de harvard) e da psicologia Social, desenvolvem-se
as análises sociométricas das organizações sociais, que procuravam identiicar quais eram os padrões que geriam os vínculos interpessoais, diferenciando
contextos sociais especíicos, como também investigavam as relações comunitárias em tribos e aldeias.
Esses estudos levaram ao desenvolvimento, a partir dos anos 70, do Social network Analysis (ou Análise de redes Sociais) uma perspectiva teórica e
metodológica especiica para o estudo das redes sociais. numa primeira fase
esses estudos aconteciam com o apoio de programas de computador restritos
a pesquisadores familiarizados com a linguagem matemática e acostumados a
metodologias quantitativas e ao uso da tecnologia. A partir da metade dos anos
‘80, com o surgimento de :
pesquisas multidisciplinares motivadas pelo aumento da complexidade
da vida urbana e pelas comunicações mediadas por computador, [...] em
que as metáforas de rede são retomadas como base para análise de luxos de informação através das interações entre pessoas, grupos humanos
e organizações, sob forte inluência da teoria dos sistemas.1 (AguIAr,
2006, p. 11)
partindo do ponto de vista de que a sociedade pode ser analisada com
um conjunto de redes ou como uma malha de redes, os pesquisadores de Social
1. veja-se o relatório inal de pesquisa, redes sociais e tecnologias digitais de informação e comunicação,
pesquisa elaborada por Sonia Aguiar, na condição de pesquisadora associada do nupef, no período de março
a agosto de 2006, disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/resultadopesquisaobraform.
do?irst=24&skip=50&ds_titulo=&co_autor=&no_autor=&co_categoria=80&pagina=2&selectaction=Submit&
co_midia=2&co_obra=&co_idioma=&colunaordenar=null&ordem=null>, acesso em 30/08/2011.
DESAFIOS IntErmodais
- 173
network Analysis observam que: “[...] la società può essere considerata come
un intreccio complesso di relazioni sociali variamente strutturate, ed è proprio
questo “intreccio” nel suo complesso a costituire il focus centrale dell’analisi;”2
A partir dessa concepção todo fenômeno social começa a ser lido em termos de condição relacional e estrutural. A estrutura é identiicada a partir das
relações geradas das ações que indivíduos e atores sociais mantém entre eles.
uma vez que é estabelecida, a estrutura social inluencia os indivíduos, levando-os a reproduzir ações deinidas e determinando a modalidade com a qual
as relações são estabelecidas. A social network é deinida como uma estrutura
social composta por nós coligados por diferentes tipos de interdependências,
como os valores, as visões, as ideias, as amizades, as ainidades, os conlitos ou
os acordos. o conjunto desses nós e laços cria a trama que compõe a rede social. os nós são os atores sociais e os laços são as relações que acontecem entre
eles. A atenção é centrada nos indivíduos como atores sociais que se relacionam
entre eles e interagem com o sistema social. de forma que a relação converte-se
numa parte constitutiva da sociedade. Sem considerá-la como tal não podemos
falar em nós, mas em indivíduos, e não podemos conceituar a rede, e então,
nem a sociedade.
Em sociologia não é exclusiva a utilização da palavra ‘rede’ para a representação da sociedade desde o ponto de vista relacional. outro conceito utilizado é o de ‘sistema’, adotado pelos que consideram a sociedade como um sistema
de relações sociais. tal como falamos em nós e laços para representar e descrever
em forma de rede as relações sociais analisadas pelos Social network Analysis,
o sociólogo niklas Luhmann descreve as relações sociais adotando a terminologia utilizada pelo sociólogo talcott parsons3, compartilhando com ele a visão
sistêmica da sociedade e mantendo um aproximação estrutural-funcionalista.
Luhmann evidencia que em sistemas sociais a importância da relação incide
para a deinição da unidade mínima de sistema, ou seja, a menor parte de um
sistema.
Segundo Luhmann, uma das possibilidades que temos para analisar um
sistema social é a de decompô-lo numa relação entre elementos (nós) e rela2. “A sociedade pode ser considerada como uma complexa teia de relações sociais estruturadas em formas
diferentes, e é este “enredo” na sua complexidade de relações sociais como um todo a ser o foco central da análise.”
(t.A.) em L’analisi delle reti sociali. disponível em: <http://sna.dss.unipi.it/Analisi%20delle%20reti.html>, acesso
em 29/08/2011.
3. para aprofundar o argumento da visão sistêmica da sociedade ver pArSonS, he social system. London:
routledge, 1991.
174
ções (laços) “onde não há elementos sem ligação relacional ou relações sem
elementos.” (apud CAvALLo, 2010, p. 19) um elemento é a unidade mínima
do sistema, mas, alerta niklas Luhmann, de fato não é possível considerar um
elemento como parte de sistema indivisível, já que, os parâmetros para as subdivisões são ininitos e sempre podemos decompor um elemento com maior
profundidade, a depender da perspectiva do sistema adotado. A relação entre
os elementos é o que permite deini-los como a menor parte de um sistema,
daquele que está sendo analisado. Estudar a sociedade desde o ponto de vista
do sistema confere a unidade dos elementos, assinando-lhes a tarefa da criação
das relações.
num sistema social não são mais os indivíduos (SnA) ou a ação (parsons) entre eles a representar a unidade mínima do sistema, mas é a comunicação.4 para Luhmann, a ação é deinida como uma parte da comunicação. Comunicar signiica selecionar e simpliicar reduzindo a complexidade do sistema.
A ação, então, há de ser considerada junto com a seleção do que é enunciado
e do que é recebido. Esse não é só o caminho para que os indivíduos criem o
sistema social (parsons), mas, constitui também uma rede de relações, que é a
comunicação. (CAvALLo, 2010, p. 29) de forma que a ação assume importância para os processos de auto-observação e auto-descrição e a comunicação se
converte na unidade mínima para a auto-criação.
Cavallo airma existir uma diferenciação importante entre a utilização
do conceito de rede e de sistema. para Luhmann, existe uma barreira que divide o sistema do ambiente. Enquanto o mundo representa a complexidade e
multiplicidade, o ambiente deine as limitações e as possibilidades realizáveis,
dependendo de cada situação. o sistema revela a seleção e realização efetiva
das possibilidades oferecidas pelo ambiente. de forma que se o indivíduo é o
sistema, seu contexto social determina o seu ambiente. Se o sistema é a sociedade, o indivíduo representa parte do seu ambiente. no modelo em rede essa
separação entre sistema e ambiente não existe mais.
A rede pode ser mutável, instável, em contínua transformação e aberta,
portanto é uma representação que combina com o pensamento da complexidade. Se o conceito de sistema pode ser usado para observar a parte mecânica
4. para aprofundar esse argumento ver LuhMAnn, social systems. 1995, cap. 4, p. 137. onde a partir dos estudos
de pearson, dicotomia sistema/ambiente, Luhmann identiica as características dos sistemas, e introduz o novo
paradigma de sistema autopoietico, onde os sistemas se orientam referente a um determinado ambiente e não
poderiam existir sem ele. do outro lado pode-se identiicar por cada sistema um ambiente diferente porque dele
se alimenta.
DESAFIOS IntErmodais
- 175
da rede, de forma funcional, a noção de rede compreende as relações não funcionais e informais, que formam a parte comunitária da vida social e relacional.
Anche l’individuo viene riconcettualizzato nella logica della rete. Che rappresenti un nodo o che faccia parte di una collettività che va a formare
un nodo, esso acquisisce importanza sia in quanto costruzione sociale
che occupa determinati ruoli e status, sia come soggetto in se e per se,
espressione della propria autonomia. Allora si può passare dal considerare la rete come espressione della società, a una analisi molto più circoscritta, che parte dal singolo individuo e studia la rete di relazioni che
appartiene al soggetto e in cui il soggetto si trova coinvolto. 5 (CAvALLo,
2010, p. 33)
observar a internet a partir da lógica dos indivíduos, dos seus humores,
instabilidades, gostos, vaidades, simpatias, etc., permite identiicar como está
sendo composto o imaginário na internet. É uma construção mundialmente
acessível que rege as atuais relações sociais e se difunde junto com valores e
formas de fazer social.
[…] um novo sistema de comunicação que fala cada vez mais uma língua
universal digital tanto está promovendo a integração global da produção e distribuição de palavras, sons e imagens de nossa cultura como
personalizando-se ao gosto das identidades e humores dos indivíduos.
(CAStELLS, 1999, p. 22)
na lógica da convergência e do princípio segundo o qual quando novas técnicas se estabelecem, absorvem as anteriores, Manuel Castells procura
as raízes dessa reestruturação das relações sociais centradas no indivíduo nos
processos da crise do patriarcalismo e da subsequente desintegração da família
nuclear tradicional ocidental. Esses processos, nas sociedades ocidentais, têm
se manifestados a partir do inal do século XIX e, hoje, continuam se disseminado entre as diversas sociedades também por meio das redes informáticas.
5. “também o indivíduo é reconceitualizado na lógica da rede. Que represente um nó ou que seja parte duma
coletividade que constitui um nó, esse adquire importância, tanto como construção social que personiica
determinados papéis e estados, tanto como sujeito em si e por si, expressão duma própria autonomia. Ao invés de
considerar a rede como expressão da sociedade, pode-se passar à uma análise mais circunscrita, que começa pelo
indivíduo e estuda a rede de relações que pertence ao sujeito e na qual o sujeito está envolvido.” (t.A.)
176
Assim não é a Internet que cria um padrão de individualismo em rede,
mas seu desenvolvimento que fornece um suporte material apropriado
para a difusão do individualismo em rede como a forma dominante de
sociabilidade. o individualismo em rede é um padrão social, não um
acúmulo de indivíduos isolados. (CAStELLS, 2001, p. 108)
não é com a internet que se cria o conceito de rede social, mas, na internet são propostos serviços e formas de comunicar que são funcionais às redes
sociais já existentes. Essa relexão coloca o conceito de rede social na internet
no continum e permite observar de uma forma complexa as duas características
que fundamentam hoje a sociedade e que, desde a chegada da internet, representam suas dinâmicas sociais principais: a relação e a comunicação.
nos sites de relacionamento online, somos convidados, como condição
necessária para participar, a encontrar pessoas e a nos comunicar com elas.
Essas ações acontecem a partir do nosso peril pessoal para o exterior, ou seja,
para os outros usuários. A criação do nosso peril é usualmente associada como
uma prática individual de projeção do próprio ‘eu’, uma verdadeira criação de
identidade. Mas então a comunicação nas redes sociais é uma prática individual ou comunitária?
De indivíduos à comunidades online
no começo dos estudos das redes sociais na internet essa discussão parecia conigurar-se como um aut-aut, entre os que valorizavam os aspetos colaborativos e comunitários e os que negavam sua existência optando para uma
visão pessimista centrada no cínico individualismo. pensamos nos intelectuais
chamados “apocalípticos da internet”, como paul virilio e jean Baudrillard, que
estimularam um discurso centrado na desumanização causada pela racionalização técnica do social, que, na falta de coniança na cultura técnico-cientíica
ocidental, considera como “estilo de vida que viola e destrói a relação autêntica
do homem consigo mesmo e com a natureza […] além de estar ligada, inelutavelmente, entre outras coisas, ao sistema de exploração capitalista e as suas
tendências imperialistas.” (CASALEgno, 2006, p. 22-23)
André Lemos (1999, p. 94) lembra que, para Baudrillard, a comunicação
mediada na internet provoca o deserto social e, para virilio, a “cibercultura é
DESAFIOS IntErmodais
- 177
simulação, uma requisição (heiddeger) digital do mundo.” Mas, para Lemos
não é possível reduzir a rede de computadores a simples computação e cita
Murphy como opositor a essa visão apocalíptica que consideraria como obsoleta, enquanto, segundo ele, a técnica não afeta o indivíduo de maneira causal.
para Murphy: “um fenômeno não tem nunca um impacto direto sobre os indivíduos e isso porque a imaginação é indissociável da realidade. [...] A realidade
é apenas uma interpretação que dura.” (apud LEMoS, 1999, p.74)
hoje, uma postura deinitiva não é possível. na internet se observam indivíduos que navegam para satisfazer suas necessidades e desejos, usuários aos
quais estão sendo fornecidas ferramentas comunicativas que lhes permitem ser
sempre mais independentes e ativos. Essa discussão remete às possibilidades
fornecidas aos usuários, que conferem o poder da criação e personalização.
A partir do indivíduo que se relaciona com outros chegamos à personalização de tais relações, ampliando o conceito de comunidade ao de rede. várias
vezes na internet os indivíduos que atuam numa comunidade ultrapassam os
espaços delimitados pelos serviços de relacionamento, estendendo sua atuação
para outros serviços, difundindo uma espécie de privatização da socialização.
formam-se redes de contatos que circulam ao redor dos ‘eus’ de cada usuário
e são mantidas graças às ligações que esses usuários têm em comum. Assim, o
centro da rede é cada indivíduo, que se converte no dono da sua comunidade,
da qual participam os contatos com os quais ele se identiica e aceita. os italianos Marino Cavallo e federico Spadoni (2010, p.72) falam em uma “network
io-centrato costruito da relazioni che Castells deinisce terziarie.”6 As relações
terciárias surgem da superação das relações primárias, os laços com a família, e
das relações secundarias, por exemplo, as associações.
no ciberespaço, nós, homens, podemos conectar-nos, observar-nos, encontrar-nos com outros, a partir do nosso computador, a nossa cadeira, o nosso
monitor. Entre o espaço físico e ciberespaço existe, então, uma relação dialética
que nos permite reinterpretar, em maneira coletiva, a indissolubilidade entre o
corpo físico e o virtual. Lúcia Santaella lembra que:
para dourish (dourish, 2006, p.6), entretanto, o mundo tecnológico não
está separado do mundo físico, mas está incrustado nele, fornecendo novos modos de compreendê-lo e se apropriar dele. A mediação tecnológica do ciberespaço condiciona a emergência de novas práticas culturais.
6. “eu-centrada e construída, pelas relações que Castells deine como terciarias.” (t.A.)
178
não é por meio de uma esfera separada que isso se dá, mas pela abertura
de modalidades diferenciais de práticas que se inserem à sua maneira
na vida cotidiana, reletindo e condicionando novas formas de acesso à
informação e ao conhecimento. (SAntAELLA, 2008, p. 96)
os usuários que participam das redes sociais na internet não somente
habitam o ciberespaço, mas determinam sua existência já que, como aponta
Santaella (2008, p. 96): “sem a manipulação remota dessa representação por
uma pessoa isicamente situada, o espaço virtual não teria existência.” Essa dimensão criativa, o ato produtivo, é feito em solidão, fato que inluencia a forma de relacionamento na rede. uma espécie de fragmentação social, na qual o
indivíduo toma consciência do seu eu, que cuida por meio da atualização do
peril, colocando fotograias e postagens de pequenas mensagens para informar o próprio estado de ânimo. Essas atualizações coincidem com airmar “eu
existo”, ao mesmo tempo, podem ser direcionadas à toda a rede, mas também é
possível que ninguém as leia. Sherry turkle (1997, p. 30) airma que “Interactive and reactive, the computer ofers the illusion of companionship without
the demands of friendship.”7 É possível ser solitário sem nunca estar só. Essa
airmação introduz outro aspecto fundamental e inovador da rede que é o de
facilitar a comunicação reduzindo a inibição do cara-a-cara, isso acrescenta as
possibilidades comunicativas e relacionais dos indivíduos, abre a porta para a
criação de múltiplos eu e cria a possibilidade de viver simultaneamente uma
dimensão relacional e uma solitária.
uma vez conectados, temos a possibilidade de nos relacionarmos com os
outros e de criar redes de contatos com os quais podemos interagir utilizando
formas de comunicação originariamente típicas do mundo da computação e,
sucessivamente, do universo da web como e-mail, chats, fóruns e blogs. todas elas têm funções e objetivos diferentes e absorvem diversas necessidades
no cotidiano das pessoas, que podem ser resumidas com esses termos: conidencialidade, instantaneidade, pluralidade, singularidade. hoje, todos esses
instrumentos comunicativos podem ser utilizados simultaneamente a partir da
criação de um único peril usuário, já que são fornecidos de forma simultânea
aos usuários desses sites. tornamo-nos responsáveis pela criação, publicação e
reprodução de conteúdos acessíveis ao público que é parte da nossa rede.
7. “Interativo e reativo, o computador oferece a ilusão de companhia sem exigir amizade.” (t.A.)
DESAFIOS IntErmodais
- 179
hoje, não é permitida só a troca de mensagens escritas, mas também
hipertextuais, visuais e sonoras. para o ilósofo pierre Lévy:
Mais do que nunca, a imagem e o som podem tornar-se os pontos de
apoio de novas tecnologias intelectuais. uma vez digitalizada, a imagem
animada, por exemplo, pode ser decomposta, recomposta, indexada, ordenada, comentada, associada no interior de hiperdocumentos multimídias. (LÈvY, 1993, p.103)
nos interessa, nesse momento, concentrar a atenção sobre a questão da
interação simultânea dos instrumentos comunicativos. Anteriormente, precisávamos de um account e-mail para poder enviar uma carta pessoal a um
amigo, mas também de outro account IrC ou similar para, de repente, resolver
em tempo real juntos com outras pessoas uma questão importante. Era necessário criar outro usuário para nos inscrever em fóruns e participar e alimentar
discussões online. Enim, para realizar um ‘diário online’, criar a nossa página
web, sem ser proissionais das linguagens informáticas htML ou CSS, mais
uma vez, precisávamos de outra senha, outro username, outro endereço... para
beneiciar de cada evolução comunicativa no mínimo tínhamos que abrir uma
conta, escolher um nome usuário, que às vezes não era disponível e nos lembrar
de cada senha. hoje, todas essas práticas comunicativas estão conluindo num
único serviço ao qual acessamos por meio de um único e-mail e a partir do qual
criamos o nosso peril.
Ainda nos encontramos numa primeira fase dessa etapa, na qual podemos observar o conluir dessas formas comunicativas e a ‘boa disposição’
das empresas provedoras dos diferentes serviços em permitir essa conjunção
e deixar os usuários se comunicarem entre os diferentes serviços, por meio,
por exemplo, do compartilhamento de contatos, postagens de links e de noticias. podemos, por exemplo, publicar um vídeo do Youtube no facebook ou no
google. Se gostamos de um vídeo no Youtube, podemos fazer de forma que os
nossos amigos do facebook sejam informados automaticamente com a sinalização desse evento no nosso peril. podemos fazer uma pesquisa dos usuários
do facebook ou google por meio do nosso endereço e-mail ou anunciar o nosso blog em das outras redes, etc.
Essa convergência acelera a possibilidade que as memórias individuais
têm de se tornarem coletivas. Se anteriormente, para que isso fosse possível, era
180
preciso muito tempo e trabalho, hoje isso acontece de uma forma muito mais
rápida. henry jenkins fala do fenômeno da convergência das formas comunicativas tradicionais com as novas, ele observa essa tendência seja desde o ponto
de vista das técnicas que dos conteúdos. “Bem-vindo à cultura da convergência,
aonde as velhas e as novas mídias colidem, onde mídia corporativa e mídia
alternativa se cruzam, onde o poder do produtor de mídia e o poder do consumidor interagem de maneiras imprevisíveis.” (jEnKInS, 2008, p. 27) o estudo
de jenkins apresenta convergências entre mídia cooperativa e alternativa, mas,
podemos apontar para a existência de outros tipos de convergências: uma ‘técnica’, que é aquela ligada ao desenvolvimento das técnicas, uma ‘comunicativa’,
outra ‘cultural’.
Segundo Manuel Castells (1999, p. 22) o entrelaçamento de culturas
no novo sistema de comunicação está proporcionando a construção de uma
“língua universal”. Como Castells, também pierre Lévy reforça essa ideia de
encontro de culturas e sublinha o caráter criativo que a internet tem que gera
“inteligência coletiva” através da construção de um “hipertexto planetário”. outros tios de convergências podem ser destacadas no desenvolvimento das redes
sociais como as de ‘conteúdos’, ‘signiicados’ e, enim, ‘usuários’. Quanto mais
todos esses aspectos convergem, mais uniformidade e estabilidade adquire o
modelo relacional das redes sociais.
Das comunidades virtuais à sua concretização
Mas se as relações na internet são centradas ao redor dos ‘eua’ é possível
falar em relações comunitárias? depois de ter reletido sobre os conceitos de
sistema e de rede, restringimos o campo ao conceito de comunidade, quais são
suas características e quais as discussões?
o conceito de comunidade surge para diferenciar a passagem da sociedade tradicional, comunitária, à sociedade moderna, a sociedade. o sociólogo
alemão ferdinand tönnies, em 1857, diferencia a gemeinshat (a comunidade),
ligada a um ambiente tradicional, familiar, primitivo, religioso, típica da época pré-industrial, dominada pelos sentimentos de pertença e participação, da
geselshat (a sociedade), conectada com a vida da cidade industrial e cientíica
que começa com a revolução industrial, baseada na racionalidade, no intercâmbio econômico e na ação funcional.
DESAFIOS IntErmodais
- 181
Esses dois conceitos são básicos nos estudos das ciências sociais, e foram
aprofundados no decorrer do tempo. durkheim, por exemplo, acentua a distinção proposta por tönnies acrescentando a relexão sobre a solidariedade, ele
diferencia entre a solidariedade mecânica e a orgânica. A primeira é típica da
gemeinshat na qual o indivíduo, a personalidade individual, se funde na coletividade. A segunda se refere à geselshat: ela surge das diferenciações e especializações que são propostas na divisão do trabalho a partir da era industrial. A
solidariedade orgânica difere da mecânica por ser centrada nos aspectos característicos e individuais das pessoas. A partir da evolução da divisão do trabalho, que para durkheim tem um valor moral, o indivíduo torna-se novamente
ciente de seu estado de dependência com a sociedade. A divisão do trabalho se
torna a base da ordem moral da vida em sociedade.
hoje, o conceito de comunidade é rediscutido pelos pesquisadores que
estudam a sociedade e a comunicação atual e propõem diversas reformulações.
devido à grande transformação, as pesquisas sobre comunidades são das mais
estudadas pela cibercultura. referência para esse assunto é a coleção de entrevistas organizada por federico Casalegno, sobre o tema: “comunidade e comunicação na era das redes.
Serge Moscovici (apud CASALEgno, 2006, p. 71), estudioso do âmbito da psicologia social, airma que num primeiro momento a ideia de comunidade se caracteriza pelo fato dessa ser conformada por um conjunto de
pessoas que vivem num mesmo lugar, baixo as regras da unidade de tempo,
de lugar e de relação. Moscovici diz que uma comunidade pode ser criada
também pelo fato de existir alguns rituais de interação e de comunhão entre
os membros da comunidade. nesse caso não é o espaço-tempo, mas os rituais
que conferem a coerência interna à comunidade, conotando o “fundamento
proximal e afetivo” da mesma.
para joël de rosnay, pesquisador do MIt na área de biologia molecular
e das tecnologias da informação, também entrevistado por Casalegno (2006,
p. 35-36), uma comunidade é ao mesmo tempo uma rede e um sistema. Ele
pensa na comunidade como uma rede quando se visualizam os nós, que representam os verdadeiros agentes, os que se comunicam, trocando informações e “regulando-se uns por meio das relações com os outros.” Mas também é
possível falar em comunidade utilizando-se da ideia de sistema, pensando que
“um conjunto complexo constituído de elementos interdependentes cria uma
dinâmica independente do conjunto.” Segundo de rosney:
182
do fato de a comunidade ser formada por seres vivos, únicos, pessoais e
originais, ela não pode funcionar senão a partir de certo número de “coações partilhadas”: as leis, as regras, os usos e costumes, os hábitos. todas
essas coações, simultaneamente emergentes e institucionais, cimentam
a comunidade. Além do cimento, é preciso notar a existência de uma
cultura comunitária, que remete às identidades territoriais e lingüísticas,
às tradições folclóricas, musicais e, às vezes também ideológicas, que são
outro cimento, noutro plano, dessa comunidade. (apud CASALEgno,
2006, p. 36)
Essas coações mostram os elementos dessa estrutura em rede, que são
maiores do que a soma dos indivíduos. Enim, o sentido da comunidade coincide também com o que Edgar Morin (apud CASALEgno, 2006, p. 132) chama de comunidade de destino. Essa ideia tem a ver com o sentimento vívido de
solidariedade entre os membros da comunidade e se estende ao sentimento dos
indivíduos de compartilhar na construção do futuro e de pertencer a uma mesma entidade “quase biológica”, considerando também os acasos, variável não
controlável pelos indivíduos. É interessante lembrar que essa variável também
é parte integrante do modelo em rede e poderia se aproximar então da noção
de internet como comunidade.
todos esses autores sublinham como hoje se tem a necessidade de rever todos os elementos característicos e fundadores das comunidades, como
a unidade de espaço e tempo e o conceito de identidade, já que esses foram
profundamente transformados pelos meios de comunicação. Com essa intenção, a primeira deinição que foi dada de comunidade online é a de howard
rheingold, autor do famoso livro he virtual Community: homesteading of
the Electronic frontier, publicado em 1993.
As comunidades virtuais são agrupamentos sociais que surgem da rede
[net], quando uma quantidade suiciente de gente leva adiante discussões públicas durante um tempo suiciente, com suicientes sentimentos
humanos, para formar redes de relações pessoais no espaço cibernético.
(rhEIngoLd, 1994, p. 20 – 1993 p.3, itálico nosso)
na internet, em um primeiro momento, as conformações identitárias
das comunidades virtuais se dão por ainidade de interesses e argumentos, não
sendo a variável espacial, no sentido estritamente físico, compartilhada. Serge
DESAFIOS IntErmodais
- 183
Moscovici prefere diferenciar as comunidades da internet daquelas tradicionais
dizendo que não podemos no primeiro caso falar em verdadeiras comunidades, mas em fantasmas de comunidade, ou em comunitarismo. para ele existe
uma demanda muito grande desse tipo de comunidade e as equipara a outras
comunidades como a comunidade internacional e a dos negócios, que também
se caracterizam por uma forte instabilidade e pela ausência física.
Segundo o meu raciocínio, a ciber-representação subentende a realidade
virtual, que não é um simulacro do real ou um complemento, mas uma
concretização da própria representação, uma inserção dos seus “objetos”
pela técnica, de entidades que podem “alucinar” e perceber as correspondentes sensações. A ciber-representação também é a condição de existência e de participação em uma comunidade virtual. Assim, uma comunidade “real” pressupõe um contrato, uma instituição ou ainda uma função
produtiva especiica. (Moscovici apud CASALEgno, 2006, p. 78)
Abordando a questão do espaço, robert Kozinets lembra que na era
do chamado “web 1.0”, se assumia que as pessoas que participavam da vida
na internet não se conheciam isicamente, e que transportar esse intercâmbio
ao mundo físico era uma tarefa que acontecia diicilmente. desenvolviam-se
com mais frequência às possibilidades ligadas tanto à ausência física, como à
tendência ao anonimato e a ter relacionamentos supericiais ou estritamente
ligados ao ambiente virtual, ou seja, simplesmente informacionais. “Social networking sites and virtual worlds carry the complex markers of many cultures
and both manifest and forge new connection and communities. 8 (KoZInEtS,
2009, p. 7)
hoje, estamos caminhando para a interdependência das comunidades
físicas e online. não se pode esquecer que antes da web já existiam as chamadas
comunidades de espírito, que não necessariamente ocupavam o mesmo espaço
físico, cuja prerrogativa era a de compartilhar determinados valores e sentimentos de pertença. Alguns exemplos são a comunidade cientíica, a cristã ou
a afro-descendente, comunidades virtuais cujos membros não se conhecem
todos, não necessariamente compartilham o mesmo espaço físico, mas partici8.
“os sites de relacionamento na internet e os mundos virtuais transportam
a complexa marca de muitas culturas e ambos manifestam e forjam novas
conexões e comunidades.” (t.A.)
184
pam de valores comuns. visualizando a representação em rede de uma dessas
comunidades, podemos perceber como esses valores não necessariamente são
veiculados de nó pra nó.
Como observa joël de rosnay, a novidade nas comunidades online é que
elas não somente veiculam alguns valores, mas permitem a “ligação concreta
entre as pessoas, via uma comunicação tangível.” Ironicamente, com internet
surge um novo aspecto da natureza da comunidade “virtual”: sua realidade. A
comunidade permanece virtual pelos valores imateriais partilhados, mas encontra o tempo e o espaço da sua concretização.
André Lemos (2004, p. 141-142), reletindo sobre as ligações que se produzem entre as pessoas na internet, cita o sociólogo belga Marcel Bolle de Bal
e o seu conceito de reliance [religação] e de “tentação comunitária”.
para de Bal, a crise dos valores modernos seria consequência de desagregações (deliances) que ocorreram no nível sociopsicológico (esquizofrenia capitalista), sociotécnico (alienação no trabalho), socioeconômico
(desemprego estrutural) e ainda ontológico (alienação pela sociedade do
espetáculo e dos simulacros). A deliance moderna é produto da lógica do
sistema tecnocientíico, da sociedade individualista e tecnicista. […] o
ciberespaço é fruto da lógica industrial moderna (fonte de deliance) e um
verdadeiro instrumento de contato (reliance).
para André Lemos, essas religações comunitárias têm um caráter quase
místico e airma que, se para de Bal elas não são proporcionadas pelas tecnologias, que têm uma função isolante e são percebidas como artiiciais, com
a tecnologia internet, essa perspectiva muda. A internet, carregada dos seus
valores e da sua história, se torna um espaço para que aconteçam as religações
necessárias a um reencontro entre a sociedade tradicional e a moderna. André
Lemos airma (2004, p. 142) que “a cibercultura se caracteriza pela utilização
da tecnologia telemática numa sociedade em busca de reliance”, como, para de
Bal, a contracultura dos anos ‘70 assumiu o papel social contra a desligação
proporcionada pela cultura moderna. Entretanto, é preciso tomar cuidado em
não confundir simples agregações eletrônicas com vínculos comunitários.
Serge Moscovici, que se deine cético sobre as noções de participação e
escolhas individuais proporcionadas pela internet, abre outro caminho para
a discussão. Ele lembra que o que tradicionalmente caracterizava as sociedades eram os laços afetivos, muito ódio e muito amor, hoje, ao contrário, nas
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comunidades online têm-se uma energia afetiva muito fraca que tira delas a
estabilidade. Aqui está a grande diferença. Antes, os aspectos negativos de uma
comunidade, os ódios, as coisas ruins representavam um valor tão alto quanto
os aspetos positivos. nas sociedades tradicionais existe uma coação que obriga
o participar dos rituais, não somente os religiosos, mas também os rituais de
conversação, mercantis, familiares, no entanto hoje, nas comunidades online
esses aspetos são facilitados.
de espaço aberta pela imaginação do homem, da teoria à prática. Conectados
apreendemos a tornarmos parte de uma rede que moldamos a nossa medida, e
nas relações passamos por transformações reais. dedicamos sempre mais tempo as nossas vidas online e graças a elas aprendemos a reletirmos sobre nós
mesmos e a saber que tipos ações queremos gerar nas redes. Mas por sermos
sujeitos às possibilidades criadas pela rede é fundamental aprender a conhecer
o funcionamento dos serviços oferecidos, para sabermos lidar com eles. Ali
qualquer ato se torna potencialmente coletivo e deinitivamente egocêntrico.
os rituais evoluem, os mitos mudam, mesmo que os esquemas de conjunto se mantenham. todos esses elementos estão em contínua mudança. As sociedades, incluídas aí as mais tradicionais, de fato são estruturas
em que se notam muitas micromudanças. não as notamos de longe, mas
quando se observa mais de perto, constatam-se mudanças na composição dos grupos, além de outras coisas. portanto, quando não há coações (não entendidas no sentido negativo do termo), quando se exclui a
obrigatoriedade de participação, não existe construção comunitária. não
creio nesse voluntarismo de corte social. não digo que ele não existe,
apenas que não creio nele. (apud CASALEgno, 2006, pp. 74-75)
Enim, atualmente, as interpretações complexas da vida em sociedade,
mostram que as duas categorias, gemeinshat e geselshat, não existem ao estado
puro, numa divisão dicotômica, mas ambas se compenetram. nesse sentido,
para Lemos (2004, p. 144), as duas interpretações podem ser observadas no ciberespaço entendendo, ao mesmo tempo, as novas tecnologias como fatores de
agregação e desagregação. “por mais radical que esta agregação eletrônica possa parecer, a ideia não é mais de uma comunidade (reliance) contra o sistema
(deliance), mas de diversas formações comunitárias indiferentes aos sistemas.”
Considerações inais
Com a internet aparece evidente que novos princípios estão sendo difundidos, eles são mundialmente reconhecíveis e sempre mais praticados, já
que há um aumento no número de pessoas que acessam a web a cada ano em
todos os continentes. Ainda assim, a utilização atual da internet se encontra
em sua fase inicial e passará por outras transformações que estabilizarão sua
utilização. por agora, é possível ver claramente que a web é mais uma tipologia
186
DESAFIOS IntErmodais
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DESAFIOS IntErmodais
- 189
A ArtE dE ContAr hIStÓrIAS noS MuSEuS
vIrtuAIS
Ivana Carolina Souza
Quando começa o contar
o ato de contar histórias é condição elementar da experiência do homem
e constitui o grupo das mais antigas atividades humanas. Contamos histórias
na tentativa de buscarmos um sentido para a vida, de desvendarmos nossas
origens e possíveis futuros. nesse sentido, as narrativas foram disseminadas
em diferentes sociedades e culturas, seja com o intuito de preservar costumes e
crenças; como forma de lazer; diversão e educação; ou simplesmente, para perpetuar valores religiosos ou morais, por exemplo. Barthes (1973) já dizia que
nunca houve lugar ou povo algum sem narrativa, pois a narrativa começa com
a própria história da humanidade. por isto, faz-se presente em todos os tempos,
em todos os lugares, em todas as sociedades, classes e grupos humanos.
desde a sua entrada na linguagem, o homem buscou ilustrar e propagar
as suas vivências na história, representando suas conquistas, sua visão mágica
da realidade, suas descobertas e invenções, temores, feitos individuais e coletivos, por meio de registros que atravessaram o tempo a partir de variados códigos. das pinturas rupestres nas cavernas primitivas aos contos populares narrados ao pé da fogueira, podemos observar signiicativas transformações, que
foram ampliadas com o advento da escrita, o avanço da internet, dentre outras
novidades que vem permitindo a incorporação de diferentes repertórios narrativos. Esta variedade de formas de contar histórias ilustra o que Leão (2004,
DESAFIOS IntErmodais
- 191
p. 164-165) concebe como “uma arte repleta de sutilezas, que compartilha as
características das tecnologias empregadas, bem como o espírito da época”.
uma das mais notáveis formas narrativas entre as sociedades é a oralidade primária, que antecedeu o surgimento da escrita e teve como função básica,
além da livre comunicação cotidiana, a gestão da memória social; uma vez que
se sustentava sobre as lembranças dos sujeitos. A representação oral traçou deste modo, os episódios dos mitos, das lendas, das epopeias, das canções e alegorias, dos contos e ditos populares, que assumiam presença cativa ao redor das
fogueiras, nas reuniões de famílias e grupos, nas celebrações, no teatro, dentre
outros ambientes e ocasiões.
para Lèvy (2000, p.3), “o tempo da oralidade primária é também o devir,
um devir sem marcas nem vestígios [...] nestas culturas, qualquer proposição que
não fosse periodicamente retomada e repetida em voz alta estaria condenada a
desaparecer”. por isto, os membros das sociedades orais exploraram ao máximo,
elementos como a dramatização, as músicas, as rimas e os ritmos dos poemas e
dos cantos, as danças e os rituais, ainal, as representações que têm mais chances
de sobreviver em um ambiente composto quase que unicamente por memórias
humanas; são aquelas que estão codiicadas em narrativas dramáticas.
Interessante observar, entretanto, que a cultura oral sobreviveu mesmo
com o advento da escrita, embora, não tenha conseguido manter-se no mesmo
patamar que se encontrava nos tempos primários. Sua posição foi logo alcançada pelo formato escrito, que surgiu junto com as culturas agrícolas da Antiguidade. o modo de produção agrícola instaurou uma nova forma de vida, caracterizada pela dependência da relação entre o tempo e o espaço, que depressa
foi reproduzida e absorvida na escrita (Lèvy, 2000), sobretudo por motivos que
beiravam a política, a economia e o poder.
os senhores dos primeiros Estados inscreviam sua nova potência sobre o
solo, erigindo os muros das cidades e dos templos. Esta ixação no espaço é uma garantia de durabilidade, anuncia o im de um certo devir sem
marcas, o declínio do tempo nômade. reduplicando a inscrição urbana,
a escrita pereniza sobre o granito dos santuários ou o mármore das estelas as palavras dos padres e dos reis, suas leis, as narrativas de seus grandes feitos, as façanhas de seus deuses. A pedra fala sempre, inalterável,
repetindo incansavelmente a lei ou narrativa, retomando textualmente
as palavras inscritas, como se o rei ou o padre estivessem lá em pessoa e
para sempre [...] (LÈvY, 2000, p. 54).
192
diferentemente da oralidade com seu caráter de incessante devir, sujeita
às modiicações do tempo, às omissões e reinvenções do narrador, a escrita em
sua origem é literal e perene, não sofre deformações. A partir do momento em
que as histórias já não estavam rendidas unicamente à memória, as representações narrativas utilizadas pelas sociedades orais cederam espaço ao caráter
sistemático, permanente e armazenador da escrita. Assim, a interpretação dos
acontecimentos foi se distanciando das alegorias, da imaginação, da dramatização, do mito e suas formas derivadas. os heróis divinos então se personiicam.
Lèvy (2000) ainda reitera que esta nova coniguração, contudo, afasta o
sujeito da sua comunidade, rescindindo um contrato antes estabelecido pela
cultura oral. o saber deixa de ser apenas aquilo que me é útil no dia-a-dia, o
que me nutre e me constitui enquanto ser humano membro de uma comunidade e passa a ser uma entidade alheia, imparcial.
na escrita, a linguagem atinge sua plena realidade independente de mediação entre as consciências. [...] Com a escrita aparece uma consciência
que já não é sustentada e transmitida na relação imediata dos vivos: uma
memória impessoal, que é a da administração da sociedade. “os escritos
são os pensamentos do Estado; os arquivos, sua memória” (dEBord,
1997, p. 91)
A exigência da verdade e do método cientíico que cercaram a história provocou, como diz Lévy (2000, p.58), uma “necrose parcial da memória
social”. graças à nova roupagem cientíica da história, as narrativas originais
foram se dissipando, e as histórias antes míticas baseadas no tempo circular, na
despretensão de imaginar fatos e representar episódios cotidianos, assumiram
um caráter cronológico, uniicado, apoiado no texto escrito e nos fatos, icando
cada vez mais próximo do status cientíico. Logo, o eterno retorno da oralidade
foi substituído pelas longas perspectivas da história. A teoria, a lógica e as sutilezas da interpretação dos textos foram acrescentadas às narrativas míticas, a
civilização da escrita acrescenta novas interpretações aos textos, empurrando
diante de si uma massa de escritos cada vez mais imponente (LÈvY, 2000).
neste sentido, a história assume uma posição que se propõe a manipular
o passado do homem, de um povo, de uma nação, em favor de determinados
interesses, e esta disposição assume maior destaque na transição entre o regime absolutista e o burguês. Igualmente, Bosi (2003) nos revela que quando
a burguesia emergente passa a concentrar seu poder nos centros urbanos, a
DESAFIOS IntErmodais
- 193
história destas cidades torna-se política e compacta e vai registrar o poder das
grandes famílias, dos reinos e da guerra entre os estados. Borges (1993) ratiica
este raciocínio nos airmando que a história que ica escrita é sempre marcada
pela visão, pelos desejos, pelos interesses da classe dominante que tenta sempre,
por mecanismos muito complexos, impor aos outros grupos seu modo de ver
a realidade, o que vai reforçar os seus interesses, pois lhe permite manter sua
situação de privilégio.
portanto, este movimento vem repelir, além das narrativas originais, os
depoimentos orais das pessoas comuns e as demais formas de expressão e representação da história que não fossem legitimadas pelo método e pelo estado,
ou seja, que não se baseassem em fatos cronológicos e comprovadamente verídicos. Entretanto, Bosi (2003, p.15) alerta que dentro dessa história cronológica
inventada pela elite, existem outras histórias, que aparecem com mais clareza
nas biograias, nas paisagens, nas pessoas, no espaço, dentre outras instâncias
nas quais os valores se adensam e se apresentam como “o avesso oculto da história político-hegemônica”.
Essas “outras histórias” que se tornam atraentes a esta pesquisa, as quais,
embora não estejam acomodadas nos padrões cientíicos, também se constituem como conhecimento legítimo, enraizado no cotidiano e na vida. E muito
dizem a respeito de episódios que a história puramente cientíica, diicilmente
conseguirá desvendar. Estes episódios camulados, outrora, reavivam histórias
negadas, de pessoas comuns, que não experimentaram a fama dos vencedores e nem se tornaram personagens históricos factuais, mas que contribuíram
expressivamente para ediicar a realidade. falo de velhos, negros, mulheres,
operários, trabalhadores manuais, professores, estudantes, dentre outros personagens que constituem as camadas da população afastadas da história ensinada
na escola, mas que passam a tomar a palavra.
fundamentando esta perspectiva, a referida autora, também nos conta
que nos anos 1970 as grandes teorias da história como a teoria evolucionista e a
hegeliana-marxista entram em colapso, assim como o sentido da história política. Esta crise, portanto, que abre espaço para o oceano de pequenas “estórias”
tomarem seu lugar, a ponto de se mostrar lado a lado com o tecido histórico
que sustenta os fatos. pois, “a história que se apoia unicamente em documentos
oiciais, não pode dar conta das paixões individuais que se escondem atrás dos
episódios.” (BoSI, 2003, p.15)
A ideia que se descortina, então, põe novamente em evidência a arte do
contar livre e despretensioso que marcou as sociedades primárias. observamos
194
assim, uma atualização dos formatos anteriores à escrita e da própria escrita, na
medida em que há o resgate dos elementos originais e a adição de ingredientes
novos. Agora, não apenas o contador de histórias, os cronistas, os anciões das
pequenas aldeias ou o próprio historiador cientista serão os únicos legitimados
a desenvolver essa arte. hoje, outros contadores e personagens também entram
em cena e se tornam tão signiicantes e criativos quanto os seus ancestrais, salientando assim um eterno recomeçar natural desta arte de contar.
Eu conto, ele conta, nós contamos histórias
Com a expansão do conhecimento histórico, logo, houve a necessidade
de distinguir a história cientíica, daquela contada tradicionalmente. na tentativa de demarcar uma diferença de natureza entre ambas, tornaram-se convencionados os termos ‘história’ e ‘estórias’. A primeira, com sua sobriedade racional, e as “demais” também chamadas de narrativas, icaria a cargo dos fatos
imaginários e considerados inverídicos.
Atualmente, essa distinção já entrou em desuso, inclusive, depois da última reforma ortográica (2009), que recomenda apenas o uso da palavra história, tanto para aquela de caráter cientíico quanto a ictícia. Contudo, a palavra
estória ainda permanece, especialmente, por uma questão de regionalismo, que
a direciona para os contos populares e folclóricos; no entanto, aqui utilizaremos
o termo história em ambos os sentidos, conforme a recomendação.
Com isto, é importante salientar, que aqui compreendemos histórias e
narrativas como estâncias correlatas e relacionadas não ao “texto” em si, mas às
representações, vivências e interpretações de cada sujeito. portanto, nos baseamos em autores como herman (2009); Murray (2003) e ryan (2006), que não
restringem a narrativa à idéia de icção, gênero literário ou a tradição oral, por
exemplo, mas a compreende como um signo portador de discurso e signiicado, capaz de possuir diferentes manifestações semióticas (ato verbal, gestual,
imagético, textual etc).
As narrativas são fenômenos que ampliam o universo mental do homem,
na medida em que permitem explorar realidades que se alternam, expondo histórias ou fragmentos de histórias povoadas por personagens e objetos, os quais
estão inseridos em dimensões espaciais e temporárias próprias, de maneira a
situar uma série de acontecimentos (rYAn, 2006).
DESAFIOS IntErmodais
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As histórias são um ato de interpretação da realidade, enraizadas nas
percepções e sentimentos particulares dos sujeitos e nos permitem exercitar
maneiras de ser no mundo, que vão além daquelas que vivemos diariamente
em nosso ambiente imediato. A arte narrativa baseada em formatos participativos, espaciais e socializantes, pode incrementar nosso repertório de ações;
ampliar os caminhos pelos quais aprendemos e interpretamos o mundo e, sobretudo; transformar os modos que pensamos uns nos outros e nos tratamos
mutuamente. (MurrAY, 2003).
um fato interessante é que narrar histórias, por vezes foi uma ação considerada típica de nossos ancestrais ou algo atrelado ao antigo, aos mais velhos;
mas, pelo contrário, trata-se de uma ação natural do nosso cotidiano. Estamos
a todo instante narrando acontecimentos; imaginando histórias e “meias histórias”; relatando casos e contando ocorridos, dos quais ouvimos de terceiros
ou que vivenciamos; reproduzindo fatos e, até mesmo, inventando alguns de
seus pormenores, e geralmente nem nos damos conta disso. Essa livre circulação, criação e reinvenção de informações que caracteriza o movimento das
narrativas. denominadas por Cardoso (1997) como uma das formas de comportamento humano, que tem um caráter imitativo, representativo e se dispõe
a serviço da comunicação de mensagens entre seres humanos.
Murray (2003) vem reiterar que a narrativa é um de nossos mecanismos cognitivos primários para a compreensão do mundo. E também, um
dos modos fundamentais pelos quais construímos nossas comunidades e relações sociais. Assim, nós contamos uns aos outros, histórias de heroísmo,
traição, amor, ódio, perdas e triunfos. nós nos compreendemos mutuamente
por meio dessas histórias, e, muitas vezes, vivemos ou morremos pela força
que elas possuem.
Estas formas e intenções se estruturam a partir da sequência viva da
memória. A partir dela o homem torna-se capaz de interligar o ontem ao
amanhã, de maneira a reter certas passagens, guardá-las ou ressigniicá-las
futuramente. deste modo, quando contamos histórias, refazemos paisagens e
acontecimentos, a partir de novas interligações e conigurações que também
contribuem para a nossa autocriação. “Evocando um ontem e projetando-o
sobre o amanhã, o homem dispõe em sua memória de um instrumental para,
a tempos vários, integrar experiências já feitas com novas experiências que
pretende fazer”. (oStroWEr, 2005, p.18).
A capacidade humana de renovar conteúdos anteriores e instantes que
são relembrados, de modo a constituir uma situação nova. Estes conteúdos
196
incorporados à memória são modiicados a cada despertar, provocando novas repercussões, delineando novos contornos com nova força vivencial. tais
conteúdos reconigurados em formatos narrativos, impregnados de valores
culturais e simbólicos, também constituem o que Lyotard (1991) defende
como saber narrativo, na medida em que extrapola o critério único de verdade dos enunciados modernos e elenca outros critérios de eiciência, de felicidade, de sabedoria ética, sensibilidade auditiva e visual. de modo a estruturar
uma via alternativa de formação, pautada em critérios e performances a respeito de se conhecer, decidir, avaliar, transformar.
Estas características induzem a processos humanos de formação, de
autorelexão, e (re)construção dos sujeitos, suas trajetórias e as de seus grupos. neste movimento, os sujeitos que contam, ouvem e signiicam os relatos, encontram nas narrativas, mais do que a possibilidade de autocriação, de
lembrar-se dos seus antepassados e de episódios vivenciados. Mas, sobretudo,
uma maneira de manter-se vinculados socialmente e vivos, o que contraria a
representação do contar história sempre atrelada à idéia de contar o que não
existe mais. Como Lyotard (1991, p.41) nos adverte: “a referência dos relatos
pode parecer que pertence ao tempo passado, mas ela é, na realidade, sempre
contemporânea deste ato. É o ato presente que desdobra, cada vez, a temporalidade efêmera que se estende entre o eu ouvi dizer e o vocês vão ouvir”.
Além disto, é importante ressaltar que os episódios e experiências relatadas individualmente expressam e materializam coletividades e sujeitos,
às vezes “invisíveis, imprevisíveis, virtuais apenas, sequer imaginados, mas
sempre ativamente presentes” (MArQuES, 2008, p.15); o que reforça a nossa
condição de sujeitos sociais, impregnados de variados discursos que circulam no interior de uma sociedade, como já airmava foucault (2000). discursos estes que se encontram marcados nos diferentes espaços e objetos,
nas imagens, letras e falas, que enlaçadas ou não, vão delineando percursos
imaginários e nos conduzem a “um museu de imagens passadas, possíveis,
produzidas e a serem produzidas” (durAnd, 2001, p.6).
Esta metáfora articulada por durand é o ponto de partida, que nos conduz a perceber o museu como um autêntico “contador de histórias”, que demarca território nas sociedades desde o período antigo, representando o homem
em suas “aventuras” enquanto sujeito autor e ator de processos criativos, descobertas e invenções.
DESAFIOS IntErmodais
- 197
Os museus também contam histórias
A necessidade de retratar fatos, objetos, acontecimentos e demais elementos que representem uma ocasião histórica, ou determinada cultura é uma
habilidade inerente à própria condição do homem enquanto sujeito social. por
variados motivos o homem coleciona objetos e lhes atribui valor, seja ele afetivo, simbólico, cultural, ou material. Isto justiica a necessidade de preservá-los
e torná-los perpétuos para que outras gerações possam ter acesso às narrativas
que emergem destes bens e objetos. pode-se entender este ato também como
uma forma de contar histórias que simboliza contextos, épocas e trajetórias, e
que é capaz de esboçar uma cultura de exaltação à memória e à história que
atravessou tempos.
Com a intenção de abrigar e preservar estas narrativas conformadas em
diferentes contornos, que os museus foram idealizados. E logo, embebidos pela
cultura colecionista, se revelaram como autênticos “contadores”. testemunhos
vivos das criações humanas, que demarcam território nas sociedades desde o
período antigo. Assim, foi com os “Mouseions”, da Antiguidade com seus objetos em dedicação à arte, à ciência e aos deuses. posteriormente na Idade Média,
com os gabinetes de curiosidades que representavam a ostentação da riqueza e
do status da nobreza e do clero. desembocando na civilização moderna, quando se constituem enquanto instituições oicializadas pela burguesia ascendente
no período revolucionário (SuAno, 1986). E culminando no museu integral
que visitamos na contemporaneidade.
Selecionar, reunir, guardar e expor coisas num determinado espaço, projetando-as de um tempo a outro, com o objetivo de evocar lembranças,
exempliicar e inspirar comportamentos, realizar estudos e desenvolver
determinadas narrativas parecem constituir as ações que, num primeiro
momento, estariam nas raízes dessas práticas sociais chamadas, convencionalmente, de museus. (ChAgAS, 2009, p.22).
na medida em que buscam reunir e representar os vestígios da humanidade, os museus se apresentam como verdadeiros reletores do mundo, o que
lhes tornam espaços de memória viva, ao passo que congregam as inspirações
do homem, de coletivos humanos, e suas subjetividades sempre em mutação.
os museus narram fatos por meio de suas telas e esculturas, objetos, manuscritos, dentre outros elementos que nos revelam e traduzem pessoas e perso198
nagens, refazem experiências e contextos; expõem obras primas e descobertas
cientíicas e também desvendam relações de domínio, poder e valores negligenciados ao longo da trajetória histórica, convidando-nos a construir associações com os cenários de hoje e amanhã.
Ler e narrar o mistério do mundo por meio de um mundo de coisas é
um desaio que se impõe antes mesmo do aprendizado das primeiras
letras e dos primeiros números; compreender e saber operar no espaço
tridimensional com o poder de mediação de que as coisas estão possuídas é a base da imaginação museal. não há museu possível sem que
essa potência imaginativa entre em movimento, pois é ela que atualiza os
museus lhes confere vida e signiicado político social. (ChAgAS, 2008.
p.113-114).
dessa maneira, estas instituições podem atuar como ponte para ligar as
diferentes dimensões e conspirar para a recuperação de signiicados e valores
(BuSAtto, 2006) “perdidos” ou “escondidos”, contribuindo para o engajamento e a formação da consciência dos sujeitos e mudanças em suas realidades. o que reforça ainda mais os laços “cosanguíneos” que existem entre os
museus e a memória social. o termo memória traz consigo considerações que
remetem a um sentido de conservação de uma lembrança, pressuposto que vai
ao encontro do que acredita Chauí (2005, p. 138), quando diz que “a memória é
uma evocação do passado, uma capacidade humana para reter e guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda total”. pensando neste sentido, a lembrança
conserva aquilo que se foi e não retornará, por isto, a necessidade de revisitar o
passado está, ainda que de maneira involuntária, cotidianamente presente em
nossos contextos de vivência, a partir da preservação de elementos e fragmentos culturais memoráveis diversiicados.
Acrescentando à perspectiva de Chauí (2005), Chiara (2001) nos conta
que o ato de recordar é mais do que uma estratégia de conservação, é uma
maneira de tornar perene o que já deixou de ser. É a capacidade de reconstituir
o passado; uma vigília da vida contra o sentimento de perda e de dissolução
diante do que já foi. neste sentido, a referida autora caracteriza a rememoração
como um ato de revivescência, na medida em que extrai do que passou o seu
caráter transitório e faz com que entre de modo construtivo no presente.
A contribuição acima nos possibilita desmistiicar o preconceito que
ainda é presente quando o assunto é memória, ao reportá-la unicamente ao
DESAFIOS IntErmodais
- 199
passado, ao que já não tem mais “serventia”. deste modo, a premissa básica que
vai nortear a memória e, inevitavelmente, os museus, é o compromisso com a
mudança.
A partir do instante que compreendemos esta categoria enquanto elemento de transformação social, abrimos precedentes para dialogar, com as
idéias de Michael pollak (1992), que trata esse construto social como um elemento básico para o estabelecimento de nossa identidade e para nos reconhecermos enquanto sujeitos sociais. Além de se apresentar como um elemento
constituinte da identidade, tanto individual, como social ou coletiva, a memória é também um fator extremamente importante para a construção de um sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua
ressigniicação de si (poLLAK, 1992). A memória tem a capacidade de transfundir vida ao passado e reconstruir os sujeitos sociais no mundo, por isto, ela
representa o reencontro do tempo perdido (ChIArA, 2001), na medida em
que por meio do renascimento daquilo que “se foi”, abrem-se fronteiras para
perspectivas futuras e renovadas.
de tal maneira, processos formativos que enaltecem a rememoração
contribuem para que o sujeito tenha conhecimento da realidade que o circunda, visto que nesses processos existem diálogos entre a memória, os dados do
presente, o entendimento das transformações e a busca de um novo fazer. o
que não signiica, entretanto, uma aceitação submissa e passiva dos valores do
passado, mas o reconhecimento de que estão ali os elementos básicos para a
transformação dos sujeitos. não é uma assimilação puramente nostálgica, de
formas e coisas ocorridas. há, neste momento, um sujeito que analisa criticamente, que recria, constrói, a partir de um referencial. por isto, é interessante
notarmos que sem o confronto passado/presente será difícil fazer com que os
sujeitos se identiiquem como sujeitos políticos e cidadãos. Com um olhar vago
sobre o passado, não podemos fazer história, nem sermos sujeitos autores da
história. (SAntoS, 1993).
A memória social, a qual, estamos nos referindo aqui, possui relação direta com a memória individual e a coletiva. Ainal, a memória coletiva representa as memórias individuais de determinado grupo social que articula suas
lembranças em quadros sociais comuns, compartilhadas por todo o grupo. A
memória social seria, portanto, o conjunto daquilo que se seleciona, que se
destaca e se registra, e, sobretudo, revela a identidade de determinado conjunto
de sujeitos que formam um todo social. deste modo, a memória é social porque
ela tem relação com o conjunto de noções que determinado grupo possui.
200
valorizar a memória social é o mesmo que reconhecer e legitimar as diferentes histórias que compõem este construto maior. É dar voz a diferentes sujeitos
e contribuir para que suas histórias sejam valorizadas e disseminadas entre vários
segmentos da sociedade. E isto signiica um estímulo para processos diversos de
formação, autoconhecimento e conhecimento de realidades distintas.
Quando fomentamos encontros entre pessoas, estamos reunindo histórias, multiplicando as conexões, ampliando a possibilidade de potencializar
toda a riqueza construída nas relações ao longo da vida, incluí-se neste circuito, a família, os amigos, a comunidade, as relações proissionais, acadêmicas,
além das relações virtuais por internet. Como seria rico poder (re)conhecer as
variadas trajetórias de vida e sentir as emoções do evento, da foto, do olhar, do
bairro, da vila, da vida. juntar todas as emoções possíveis e fazer da vida uma
grande história. (LopEZ, 2008).
E os museus estão cada vez mais se apresentando como promotores e
potencializadores destes encontros entre pessoas, realidades e tempos; o que
os coloca na posição de legítimos espelhos do mundo, espelhos da vida. desde
os anos 1970 os museus nos presentearam com uma perspectiva mais aberta e
participativa, que descaracteriza o semblante conservador e fechado de tempos
anteriores, dando voz e vez às histórias comuns do cotidiano, de maneira a
permitir a participação de diferentes camadas da sociedade, como podemos
observar nos museus itinerantes, museus comunitários, nos ecomuseus e museus virtuais, por exemplo. outro ponto de referência e apoio para estas e novas
concepções foi o Movimento Internacional para uma nova Museologia (MInoM), oicializado em 1984, o qual ratiica e expande a perspectiva nascida
na década de 1970, mantendo o objetivo de valorizar o cotidiano do cidadão,
concebê-lo como elemento basilar de ações educacionais, rompendo a tríade
edifício-coleção-público e promovendo a atuação na área do território-patrimônio-população.
Com esta emergência, os museus se tornam espaços que combinam e
integram processos complexos de constituição do sujeito coletivo da comunidade, por meio da relexão, auto-conhecimento e criatividade; ações de fortalecimento da identidade, por meio da legitimação das histórias e valores próprios
e melhoramento da qualidade de vida.
“Ao diversiicar o seu próprio espaço o museu saiu da pseudocasca que o
escondia como ‘casa das múmias’, das ‘coisas velhas’, do ‘almoxarifado da burguesia’ e outros adjetivos que o puseram como lugar que possuía, digamos, ‘cheiro
de mofo’” (oLIvEIrA, 2001, p.2). deste modo, a nova Museologia abre outros
DESAFIOS IntErmodais
- 201
horizontes para se desenvolver as ações museológicas, que agora não se processam unicamente a partir dos objetos, das coleções e do espaço arquitetônico, mas
tendo como referencial o patrimônio global, a dinâmica da vida.
portanto, estas conigurações inauguram uma nova forma de se fazer e
pensar os museus; tornando-os mais democráticos; criativos e acessíveis. o museu foi gradativamente aprendendo a viver do conhecimento, da beleza, do popular, da novidade e tantos outros elementos que hoje também aloram no ciberespaço. Ainda assim continuam nos convidando a percorrer seus labirintos, a
procura de seus tesouros mais escondidos, novas dimensões experienciais.
As potencialidades dos museus ganham outro campo de disseminação ao dialogar com o ciberespaço e se associar aos processos relacionados às
tecnologias da Informação e Comunicação (tIC), especialmente a rede web,
que vai se apresentar como elemento facilitador de redes interacionais entre
os sujeitos, de maneira a favorecer a entrada de ricas e diversiicadas histórias
e movimentos nestes âmbitos. As diferentes maneiras e possibilidades de se
contar histórias que começam a lorescer na rede, abrem novos caminhos para
os museus, que ao serem “isgados” pelas teias da web se viram motivados a
interagir com este cenário.
Contando histórias no ciberespaço
o “Mundo Ciber”, este novo mundo constituído sobre as teias da web,
foi concebido para designar uma realidade organizada por meio das tecnologias, capaz de interferir nas estruturas sociais. Entretanto, é especialmente na
rede, que as suas características se tornam ainda mais evidentes, graças à luência comunicacional proporcionada pela internet. Lévy (1999, p.92) deine o
ciberespaço como “o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial
dos computadores e das memórias dos computadores”. nestas redes conectadas luem informações digitalizadas, prontas a serem apreciadas, consumidas
e reconiguradas.
dentre os principais aspectos que ediicam o ciberespaço estão a sua interatividade, interconectividade e luidez comunicacional/informacional, que
destituem os limites geográicos, fundando seus alicerces a partir das redes hipertextuais, dos links, do compartilhamento de conteúdos e da incorporação
das tIC. deste modo observamos lorescer nesse mundo, diferentes maneiras
de se relacionar, comunicar, compartilhar, produzir saber e conhecimento, que
202
delineiam uma condição sociocultural regida pelas tecnologias digitais, na qual
cada ser humano pode participar e contribuir.
Assim podemos citar os fóruns, chats, blogs, webmails, wikis, redes sociais, museus virtuais, dentre outros ambientes e recursos, que são constituídos
e constituem processos e aprendizagens colaborativas através da web. portanto,
trata-se de um novo meio de comunicação estruturado, que institui códigos
sociais outros e comunidades que se revelam enquanto agrupamentos, em que
os sujeitos, utilizam esses ambientes para estabelecer uma nova forma de viver,
experimentando trocas intelectuais, proissionais, sociais, afetivas e culturais,
permitindo alorar os seus sentimentos, suas subjetividades, idiossincrasias
e traços de suas culturas, de maneira a estabelecer teias de relacionamentos,
mediadas pelos computadores conectados na/em rede. (ALvES et al, 2006;
rhEIngoLd, 1997).
Assistimos participativamente a emergência de uma nova forma de cultura que tem nos solicitado a estabelecer relações cada vez mais íntimas com os
meios digitais, sobretudo, a internet. os novos códigos e símbolos que regem
tais relações se hibridizam no intuito de fazer transmitir e circular mensagens,
reorganizando as estruturas de comunicação de “tempos atrás”. Escrita, leitura,
visão, audição, criação e aprendizagem são capturadas pela velocidade da informática cada vez mais avançada como aponta Lèvy (2000). do mesmo modo,
“palavras, frases, letras, sinais ou caretas interpretam, cada um à sua maneira, a
rede das mensagens anteriores e tentam inluir sobre o signiicado das mensagens futuras (LÈvY, 2000, p.13).
“A sucessão da oralidade, da escrita e da informática como modos fundamentais de gestão social do conhecimento não se dá por simples substituição, mas antes por complexiicação e deslocamento de centros de gravidade”
(LÈvY, 2000, p.5). por isto, é importante ressaltar que a digitalização não deve
ser vista como uma forma substituta às demais, ao contrário do que autores
como debord (1997) enfatizam, sobre a tela como superfície deslizante do espetáculo, que nada contém, a não ser palavras e imagens apelativas, que serão
esquecidas no dia seguinte; Lèvy (2000) nos alerta sobre a necessidade de pensarmos na imbricação, na coexistência e interpretação recíproca dos diversos
circuitos de produção e de difusão do saber, e não em ampliicar e extrapolar
tendências isoladas.
A linguagem hipertextual instaura deste modo, diferentes técnicas de armazenamento e de processamento das representações, que deixam uma grande
margem de iniciativa e interpretação para os sujeitos. os labirintos, os links e
DESAFIOS IntErmodais
- 203
a multilinearidade dos hipertextos digitais retiram, assim, a tirania do autor ao
passo em que reativam as possibilidades de uma autoria coletiva, dando aos
usuários da rede a possibilidade de comentar, adicionar, alterar ou simplesmente editar outro texto, imagem, som, etc. As narrativas nesse sentido deslizam pelos variados mecanismos de produção coletiva existentes na rede, dando
margem a escritas abertas, narrativas polifônicas e aguçando a criatividade de
artistas e autores diversos, coletivos ou não.
Esta nova roupagem muito característica do século XXI e claramente
inluenciada pelas tIC é considerada por Busatto (2006) resultado de um impulso que busca dar forma à complexidade das vivências. nesse sentido, que
as histórias estão cada vez mais dialogando com outros meios, embora ainda
sejam mediadas pela presença humana.
paradoxalmente, a arte, que pedia um tempo e corpo presente para se
desenvolver e envolver, se integrou à velocidade da virtualidade, assumindo novas feições, como as histórias mediadas pelo digital. Esta arte
já não tem como característica apenas uma provável despretensão dos
antigos contadores, que se reuniam ao redor do fogo, ao pé da cama [...]
(BuSAtto, 2006, p.10).
Interessante observar que as histórias consideradas tradicionais não
são substituídas pelos formatos narrativos emergentes, apenas assumem outro
tempo e outra aparência. Como sinaliza a referida autora, a entrada do movimento narrativo no ciberespaço, caracteriza-se por uma soisticação técnica,
com detalhes mais elaborados, a exemplo de imagens visuais e paisagens sonoras nítidas. Assim, muda-se a forma, o texto, o contexto e também a intenção
do contar, entretanto, ainda permanece a sua essência:
a condição de encantar, de signiicar o mundo que nos cerca, materializando e dando forma às nossas experiências. E, neste imaginário de
século XXI, vamos encontrar narrações tão distintas, em suportes tão
diversos, saídas de corações e bocas tão peculiares, que só nos resta constatar, com olhos esgazeados, que essa diversidade é boa e amplia a nossa
consciência ética e estética (BuSAtto, 2006, p.10).
deste modo, os usuários da web adquirem plenos poderes de acesso,
criação, participação ativa e colaborativa. Estes novos arranjos, que se carac204
terizam pela colisão de novas e velhas mídias, e pela intercepção de mídias
corporativas e alternativas, engendram o que jenkins (2008) chama de cultura
da convergência. para este autor, a cultura da convergência só ajuda a contar
melhor as histórias, uma vez que imprime alternativas para se pensar a difusão
do conhecimento e o desenvolvimento de práticas coletivas através da web, estabelecendo uma nova cultura de participação e interação por meio das mídias.
nesse movimento de mudança, os sujeitos que interagem no espaço online passam a ocupar cada vez mais papeis de autores de conteúdos e histórias
individuais e coletivas, que se expandem, integram-se e são socializadas em
rede por meio de múltiplas plataformas midiáticas. de modo a oferecer a esses sujeitos opções para interfacear com variados contextos e saberes, além de
experimentar trocas culturais, afetivas, proissionais e subjetivas que tem implicações diretas no modo como aprendemos, trabalhamos, participamos do
processo político e nos conectamos com as pessoas.
É acompanhando estas tendências que muitos museus no mundo passaram a interfacear com os mecanismos da web, encontrando outras maneiras
para representar suas histórias e discursos, expandindo ainda mais o canal de
interação, participação e comunicação com os visitantes. o que vai inluenciar
signiicativamente a maneira como as histórias contidas nesses ambientes serão
concebidas e compartilhadas. no lugar do objeto tridimensional e material, e da
arquitetura presencial, encontramos a informação e os conteúdos digitalizados e
galerias “lutuantes” que se deixam adquirir diferentes formas na rede web.
Musealizando histórias na web
Ainda que seja de maneira heterogênea, existe uma nítida expansão dos
museus de vários países no mundo da internet, já que as potências da rede web
proporcionaram diversas vias de atuação para estes ambientes. Assim, grande
parte dos museus, seduzidos por tantas inovações, permitiram-se a assumir variadas interfaces, alterar perspectivas e, especialmente, democratizar a natureza
de seus acervos, privilegiando, as “outras histórias”, produções, artistas, autores
e culturas, que por vários séculos se esconderam por trás da história cientiizada, dos fatos, das coleções e exposições.
o mundo digital revelou possibilidades para o museu se libertar do espaço tradicional e limitado e se tornar acessíveis ao grande público. o espaço
fechado utilizado para preservar e salvaguardar os testemunhos do homem adDESAFIOS IntErmodais
- 205
quire outras características, deixando-se envolver pela vertente comunicacional e desbravando novos espaços para alcançar seus objetivos.
As características da internet, a exemplo do apelo ao coletivo; a democracia da informação e do conhecimento; a interatividade e a liberdade de
expressão; inluenciaram os museus a romper com vários de seus protocolos. A
começar pelos acervos, que se tornaram mais acessíveis a partir da digitalização
e disponibilização em rede, perpassando pela ampliação do canal de comunicação entre os visitantes e as instituições, e culminando, com a participação ativa
do público, que agora além de espectador contemplativo, tem a oportunidade
de também expressar a sua criatividade e condição de autoria, legitimada pelos
museus virtuais independente da distinção de classes e prestígio social.
o endereço dos museus agora é expresso por meio de domínios “com.br;
gov.br; net; br”. Em vez do visitante temos agora o usuário da rede eletrônica
(MAgALdI, 2010) que acessa em tempo real as salas virtuais das exposições,
apresentadas na tela do computador, a cada passo dado, o click do mouse. Em
vez de deslocar-se no tempo e no espaço, basta apenas conectar-se ao museu
desejado, mesmo estando localizado em áreas geográicas distantes, basta acessar o endereço eletrônico, para nos deslocarmos num curto espaço de clicks.
diante de tais conigurações que nos remetem a idéia de imaterialidade
e irrealidade, é importante esclarecer que a virtualização dos museus, vai para
além da idéia de digitalização - transformação de átomos em bits (nEgropontE, 1995).
o mundo humano é virtual desde a origem, bem antes das tecnologias
digitais, porque ele contém em toda parte sementes de futuro, possibilidades inexploradas, formas por nascer que nossa atenção, nossos pensamentos, nossas percepções, nossos atos e nossas invenções não deixam
de atualizar (LÈvY, 2001, p.137).
para Lèvy (1996), o virtual não quer dizer o oposto do real, mas ele se
opõe ao atual. não signiica ausência de existência ou realidade. virtual vem
do latim virtus e signiica força, potência, é aquilo que existe em latência e não
em ato. o atual fecha o raciocínio, apresenta a solução, já o potencial apresenta
a problematização.
por isto, o autor considera que virtualizar é problematizar, é o processo
de criação. deste modo, o virtual enquanto produto desse processo criativo
refere-se a tudo aquilo que é latente, ou seja, algo implícito, ainda não ma206
nifestado externamente, mas que tem a capacidade de revelar-se numa ação
futura e projetar um devir outro. o virtual está em constante transformação
e compreende o complexo problemático, o nó de tendências ou de forças que
acompanham uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade
qualquer. Assim sendo, entender o virtual é compreender o nó de disposições
e as virtualidades que nos cercam em nosso cotidiano. E esta consciência nos
permite conceber o museu físico também como museu virtual.
Sendo assim, ao contrário do virtual, o digital expressa um modo de ser
fechado, que não se transforma; algo deinido, não complexo. Como já dizia
negroponte (1995, p.21) “um bit é um estado: ligado ou desligado, verdadeiro
ou falso, para cima ou para baixo, dentro ou fora, preto ou branco [...]”. Estes
dispositivos computacionais, conectados à internet, sob forma de informação textos, imagens e sons digitais -, quando funcionam sozinhos são fechados, não
problematizáveis. no entanto, antes de concluir este raciocínio, Lèvy (1996)
enfatiza que, contudo, quando ocorre a inclusão do ser humano neste circuito,
outras perspectivas são apresentadas, aí então veremos o virtual. pois, o virtual
só eclode com a entrada da subjetividade humana, quando num mesmo movimento surgem a indeterminação do sentido e a propensão do texto a signiicar.
Assim só existe complexidade, problemática, quando associamos humanos e máquinas e não processos informáticos apenas. deste modo, o museu
digital quando em diálogo com o humano, pode também ser virtual. “o digital
como suporte para o Museu virtual” (MAgALdI, 2010, p.42), que chamamos
aqui de museu virtual online. Muito embora, seja importante esclarecer que
nem todo museu digital é virtual ou vice-versa.
Se considerarmos esses aspectos, os museus virtuais online irão se apresentar enquanto meios que potencializam a criação de uma nova realidade interativa e comunicativa, em constante metamorfose, permitindo ao visitante
várias alternativas de fruição, bem como o poder de escolher, intervir e criar.
portanto, diferente do que muitos museus da rede materializam, um museu virtual online é muito mais que colocar fotos na internet de mostras e exposições
temporárias, pois, trata-se de conceber um museu totalmente novo, uma vez
que ao tentar representar o real cria-se outra realidade, paralela e coexistente
com a primeira, que deve ser vista como uma nova visão, ou conjunto de novas
visões, sobre o museu tradicional. trata-se de um museu sem fronteiras capaz
de criar um diálogo virtual com o visitante, que privilegia a comunicação como
DESAFIOS IntErmodais
- 207
forma de envolver e dar a conhecer determinado patrimônio1. (BAttro,
1999; MuChACho, 2005; hEnrIQuES, 2004).
nessa nova perspectiva, os museus passam também a existir independente de referências no espaço físico. não que isso venha signiicar a substituição dos museus tradicionais, mas sim, a concepção de uma realidade distinta
que pode ser paralela ou não ao museu físico. o que vai estabelecer a identidade de um museu no espaço virtual online, não será o seu projeto arquitetônico
ou o caráter “nobre” de seu acervo, mas, sobretudo, o desenvolvimento de suas
ações no ciberespaço, a sua função social e seus princípios, que devem, segundo o Conselho Internacional dos Museus (ICoM) enfatizar aspectos como a
abertura ao público, adquirir, conservar, estudar, comunicar e expor testemunhos materiais do homem e do seu meio ambiente, tendo em vista o estudo, a
educação e a fruição.
os museus virtuais online, sobretudo aqueles criados sem interface da
instituição tradicional deram aval à criação e informação de histórias de
qualquer personagem, de objetos artísticos (de artistas renomados e de
iniciantes) e não artísticos (iniciantes e leigos), poemas e debates, tudo
que compõe os acervos digitais, quebrando as barreiras do tempo-espaço, dos horários de visita, da comunidade local, do silêncio e mostrando
textos que partem das mais simples pessoas de um lugar qualquer. Agora
não é o viajante que se desloca ao museu, mas sim as suas informações,
enviadas a um endereço eletrônico (oLIvEIrA, 2002, p.7).
As ferramentas da web 2.0 vão facilitar signiicativamente as vias de
acesso do usuário/produtor aos museus, pois os mecanismos dessa natureza
se caracterizam pela larga acessibilidade e simplicidade no manuseio, o que
não requer conhecimento aprofundado para acessar, compartilhar e desenvolver narrativas. deste modo, o Youtube, os blogs, wikis, podcasts e redes sociais
como o facebook, orkut e twitter, quando integradas aos museus, pode permitir que o usuário teça comentários a determinadas obras, faça compartilhamentos em sua rede de amigos, e até desenvolva a sua própria narrativa, seja
texto, vídeo, poesia, áudio, animação, dentre outras possibilidades. Emerge
assim, nos museus um novo repertório narrativo que faz ecoar vozes antes reprimidas, as quais se tornam matéria viva, signiicante e transformadora.
neste sentido, assim como os museus comunitários, os museus virtuais
online podem transformar-se em espaços também construídos pela população,
onde os sujeitos podem imprimir suas histórias, raízes, ideologias e idiossincrasias, de maneira a penetrar as barreiras que sempre envolveram a trajetória dessas
instituições. temos, portanto, uma produção coletiva de pessoas com culturas
diferentes, que reúne histórias distintas, dispostas em suportes diversos, saídas de
corações e bocas tão peculiares que nos fazem constatar que essa diversidade é
rica e amplia a nossa consciência ética e estética. (BuSAtto, 2006).
Seguindo algumas destas possibilidades e ilustrando este cenário podemos destacar o brasileiro e pioneiro Museu da pessoa, que se autodenomina como um museu virtual de histórias de vida aberto à participação
gratuita de toda a pessoa que queira compartilhar sua história de vida, a
im de democratizar e ampliar a participação dos indivíduos na construção da memória social (MuSEu dA pESSoA, 2012).
neste museu o visitante além de deixar registrada a sua história, pode consultar documentos, fotos, áudios e outras narrativas de vida de pessoas de diferentes
partes do Brasil. Inclusive, a proposta do Museu da pessoa teve tamanha repercussão, que hoje seu funcionamento é em rede, já que países como Canadá, portugal e
Estados unidos também abraçaram a idéia e se tornaram núcleos do museu.
nessa via que os museus virtuais começaram a transitar, encontrando no
caminho o conceito de inteligência coletiva defendido por Lévy, que tem o ciberespaço como o seu portal de entrada, um sistema aberto de expressão das singularidades, de elaboração dos problemas, de confecção do laço social pela aprendizagem
recíproca de livre navegação dos saberes. portanto, é diante desse leque de interfaces
e possibilidades que os museus virtuais emergem como alternativas de elaboração
coletiva do conhecimento, de socialização e intercâmbio de informações, saberes e
culturas, e principalmente como um reduto potencialmente interativo e compatível
às necessidades que emergem no contexto educacional contemporâneo.
1. É o produto da capacidade humana de criar e reletir. É o processo de criação de cultura e transformação da
realidade, bem como, a produção social das pessoas, que envolve diversidade cultural. (hEnrIQuES, 2004)
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