Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

Academia.eduAcademia.edu

O cenário e os protagonistas da patrimonialização de arquivos no Brasil

2019, Memória & Patrimônio v.1

MEMÓRIA & PATRIMÔNIO: LUGARES, SOCIABILIDADES E EDUCAÇÃO Volume I Reitoria Reitor: Pedro Rodrigues Curi Hallal Vice-Reitor: Luis Isaías Centeno do Amaral Chefe de Gabinete: Taís Ullrich Fonseca Pró-Reitor de Graduação: Maria de Fátima Cóssio Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Flávio Fernando Demarco Pró-Reitor de Extensão e Cultura: Francisca Ferreira Michelon Pró-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Otávio Martins Peres Pró-Reitor Administrativo: Ricardo Hartlebem Peter Pró-Reitor de Infra-estrutura: Julio Carlos Balzano de Mattos Pró-Reitor de Assuntos Estudantis: Mário Renato de Azevedo Jr. Pró-Reitor de Gestão Pessoas: Sérgio Batista Christino Conselho Editorial Presidente do Conselho Editorial: Ana da Rosa Bandeira Representantes das Ciências Agrárias: Guilherme Albuquerque de Oliveira Cavalcanti (TITULAR), Cesar Valmor Rombaldi e Fabrício de Vargas Arigony Braga Representantes da Área das Ciências Exatas e da Terra: Adelir José Strieder (TITULAR), Juliana Pertille da Silva e Daniela Buske Representantes da Área das Ciências Biológicas: Marla Piumbini Rocha (TITULAR), Rosangela Ferreira Rodrigues e Raquel Ludke Representantes da Área das Engenharias e Computação: Darci Alberto Gatto (TITULAR) e Rafael Beltrame Representantes da Área das Ciências da Saúde: Claiton Leoneti Lencina (TITULAR) e Giovanni Felipe Ernst Frizzo Representantes da Área das Ciências Sociais Aplicadas: Célia Helena Castro Gonsales (TITULAR) e Sylvio Arnoldo Dick Jantzen Representante da Área das Ciências Humanas: Charles Pereira Pennaforte (TITULAR), Edgar Gandra e Guilherme Camargo Massaú Representantes da Área das Linguagens e Artes: Josias Pereira da Silva (TITULAR) e Maristani Polidori Zamperetti MEMÓRIA & PATRIMÔNIO: LUGARES, SOCIABILIDADES E EDUCAÇÃO Volume I Coordenadoras Juliane Conceição Primon Serres Maria Letícia Mazzucchi Ferreira organizadores Darlan de Mamann Marchi Eduardo Roberto Jordão Knack Rita Juliana Soares Poloni Chefia Ana da Rosa Bandeira Editora-Chefe Seção de Pré-Produção Isabel Cochrane Administrativo Seção de Produção Suelen Aires Böettge Administrativo Filiada à A.B.E.U. Rua Benjamin Constant, 1071 - Porto Pelotas, RS - Brasil Fone +55 (53)3284 1684 editora.ufpel@gmail.com Anelise Heidrich Revisão Guilherme Bueno Alcântara (Bolsista) Design Editorial Seção de Pós-Produção Morgana Riva Assessoria Madelon Schimmelpfennig Lopes Administrativo Revisão Técnica Ana da Rosa Bandeira Revisão Ortográfica Anelise Heidrich Projeto Gráfico Guilherme Bueno Alcântara Suélen Lulhier Diagramação & Capa Guilherme Bueno Alcântara Dados de Catalogação na Publicação Simone Godinho Maisonave – CRB-10/1733 M533 Memória & patrimônio [recurso eletrônico] : lugares, sociabilidades e educação: Volume I. / coordenadoras: Juliane Conceição Primon Serres e Maria Letícia Mazzucchi Ferreira ; Organizadores: Darlan de Mamann Marchi, Eduardo Roberto Jordão Knack e Rita Juliana Soares Poloni - Pelotas: Ed. da UFPel, 2019. 240 p. E-Book (PDF) ISBN: 978-85-517-0060-0 (v.1) 1. Memória 2. Patrimônio 3. Educação 4. Cultura 5. Museus 6. Arquivos I. Serres, Juliane Conceição Primon, coord. II. Ferreira, MariaLetícia Mazzucchi, coord. III. Marchi, Darlan de Mamann, org. IV. Knack, Eduardo Roberto Jordão, org. V. Poloni, Rita Juliana Soares, org. CDD 363.69 SUMÁRIO 8 APRESENTAÇÃO 11 PREFÁCIO 15 MEMÓRIA, ARQUIVOS & MUSEUS 94 137 16 O cenário e os protagonistas da patrimonialização de arquivos no Brasil 32 “A razão” de um patrimônio fotográfico: a descrição arquivística das fotografias de jornal 50 Arquivos de esporte: a importância do patrimônio documental do Riograndense Futebol Clube para a Memória de Santa Maria-rs 68 Leopoldo Gotuzzo e o Malg (1887-1986) 82 Patrimônio e Musealização Virtualizada MEMÓRIA & EDUCAÇÃO 95 Extensão universitária: conexões com a comunidade (Santa Maria - rs) 107 Práticas escolares de Educação Física na década de 1970: memórias de normalistas na escola Assis Brasil, Pelotas/rs 124 A participação de alunos secundaristas na formação da Universidade Federal do Rio Grande MEMÓRIA, SOCIABILIDADES & PATRIMÔNIO URBANO 138 Clube Caixeiral de Rio Grande/rs: a recreação entre os anos de 1930 a 1950 155 “Ô Chora Makamba, Chora Nauê”: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário no Litoral Negro do Rio Grande do Sul 176 Memória e patrimônio na atividade turística: aspectos explorados para o desenvolvimento do turismo no Brasil 188 Registrando para o futuro: fotografia e patrimônio histórico-documental de São Gabriel 203 Patrimônio industrial e memória: o antigo edifício da Cervejaria Miranda Corrêa 221 Artes pictóricas em forros de madeira do século XiX: uma comparação entre casa urbana e casa senhorial rural APRESENTAÇÃO O livro que apresentamos ao público interessado nos temas, problemas, debates e questões que envolvem os estudos da memória e do patrimônio é o resultado dos trabalhos apresentados e das conferências que ocorreram durante o iV Colóquio Internacional Memória e Patrimônio (que ocorreu entre os dias 08 e 09 de novembro de 2018), promovido pelos docentes e discentes do Programa de Pós-graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural - PPgMP, da Universidade Federal de Pelotas. As operações de seleção da memória, envolvendo também o esquecimento, em uma perspectiva individual e coletiva, fundamentais para compreensão da identidade e do patrimônio cultural de uma comunidade, foram amplamente debatidas durante os dias em que o evento foi realizado. Dessa forma, o iV Colóquio abriu um espaço para discutir questões sobre memória, patrimônio cultural, conservação e gestão de acervos, espaços de memória, trajetórias e relatos de Apresentação MEMÓRIA & PATRIMÔNIO atividades dos profissionais das áreas de atuação do PPgMP. O evento contou com mesas que debateram temas como “memórias e ditaduras”, “memória, patrimônio e esquecimento no Uruguai”, “instituições brasileiras de tutela do patrimônio cultural”, com conferências que envolveram temas referentes ao patrimônio e à memória na Argentina e os monumentos e contramonumentos no Brasil. Pesquisadores com importante, sólida e abrangente trajetória profissional, em âmbito nacional e internacional, foram convidados para as conferências e mesas do evento. Participaram ainda com apresentação de trabalhos pesquisadores de diferentes instituições brasileiras, com trabalhos desenvolvidos dentro do escopo do tema do colóquio. Os trabalhos apresentados nos simpósios temáticos e nas conferências proferidas nas mesas de debates foram reunidos e publicados em uma coletânea composta por três livros. Cada um desses volumes foi organizado em função da afinidade entre os temas, o que fica claro a partir dos subtítulos expostos em cada obra. Além desse critério para a organização da coleção, também foi levado em consideração o estado de cada pesquisa (trabalhos iniciais, com considerações gerais; estudos de caso, com conclusões avançadas e consolidadas). Devido à quantidade de trabalhos recebidos no iV Colóquio, cada volume corresponde a etapas e enfoques diferentes do processo de pesquisa. Dessa forma, o primeiro volume, “Memória e patrimônio: lugares, sociabilidades e educação”, além de agrupar trabalhos com temas próximos, apresenta pesquisas que trazem, em sua maioria, reflexões, mapeamentos iniciais sobre temas, problemas e objetos de estudo. Constituem, em geral, pesquisas que estão em desenvolvimento pelos respectivos autores. O segundo volume, “Memória e patrimônio: identidade, emoção 9 Apresentação MEMÓRIA & PATRIMÔNIO e ditaduras”, além de reunir trabalhos em torno de temas como identidade, questões envolvendo processos de patrimonialização, emoção patrimonial, memória e regimes autoritários, de uma forma geral, apresenta, em âmbito geral, estudos de casos específicos, indicando trabalhos que apresentam resultados concretos no âmbito de suas pesquisas. O terceiro e último volume da coleção, “Memória e patrimônio: preservação, políticas e acesso”, envolve trabalhos que se debruçaram sobre temas como cidades e preservação patrimonial, políticas públicas de memória e urbanização, patrimônio, acessibilidade e ensino. Tal como o segundo volume da coleção “Memória e patrimônio”, o último livro congrega estudos de casos, mas com o olhar voltado para questões técnicas, políticas e metodológicas, também apresentando, assim como no segundo volume, pesquisas em um estado mais avançado de desenvolvimento. Finalizando, é importante ressaltar que o iV Colóquio Internacional Memória e Patrimônio resulta do esforço de pesquisadores para debater, refletir e aprofundar seus temas de pesquisa. Também assinala o esforço para a divulgação desses trabalhos, tanto para a comunidade profissional e acadêmica como demais interessados pelos temas. Desejamos a todos uma ótima leitura! 10 PREFÁCIO Rita Juliana Soares Poloni O primeiro volume desta obra organiza-se em torno de três subcapítulos, que buscam congregar, a partir de temáticas afins, reflexões que se apresentam como fruto de pesquisas em processo de desenvolvimento ou de recortes temáticos de objetos de investigação outrora explorados de forma mais aprofundada por seus autores. Procura ser uma obra que objetiva provocar os leitores acerca de temáticas de interesse, despertando questionamentos em torno de objetos com grande potencial de investigação, além de apresentar ao público resultados específicos de pesquisa que permitam, desde já, contribuir com o desenvolvimento de seus campos e temáticas de estudo. Assim, o primeiro subcapítulo, denominado MeMÓria arQUiVos & MUseUs, congrega pesquisas em torno de museus e arquivos, ressaltando a importância de tais objetos, não somente na compreensão dos temas a que os acervos em questão se referem, mas sobretudo aos campos científicos que os Prefácio MEMÓRIA & PATRIMÔNIO investigam e à sociedade brasileira como um todo. Nesse sentido, Francisco Cougo Júnior discute o contexto de aferição de “patrimonialidade” nos arquivos brasileiros e busca compreender quais são os critérios envolvidos nesse processo ao longo de seu desenvolvimento. Já Alvaro Filho propõe a análise de campos descritivos para o tratamento arquivístico do acervo do jornal A Razão, da cidade de Santa Maria, rs, de forma a assegurar a recuperação e a contextualização de utilização e/ou reutilização das imagens nas edições do jornal, tomando como base a Norma Brasileira de Descrição Arquivística (noBrade). Também Daiane de Souza e Glaucia Konrad procuram demonstrar a importância dos arquivos relacionados a práticas desportivas, tendo como foco o Riograndense Futebol Clube, em pesquisa que procurou reunir o acervo documental do Clube, contando, assim, parte de sua história, enquanto Raquel Schwonke, por sua vez, busca subsídios para comprovar a intencionalidade e a participação do artista Leopoldo Gotuzzo na constituição do Museu de Arte que leva seu nome e que pertence à Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Finalmente, Valdir Morigi e Rafael Chaves propõem reflexões acerca das transformações do conceito de museu no mundo contemporâneo, das informações digitais que divulga, de como se dá o compartilhamento entre instituições e seus públicos e de como se configuram os novos patrimônios a partir dos museus e dos acervos virtualizados. No segundo subcapítulo, MeMÓria & edUCaÇÃo, reúnem-se textos que procuram estabelecer diálogo entre pesquisas em Memória social e contextos escolares do estado do Rio Grande do Sul, levando-nos a refletir sobre a importância de tais instituições na constituição do sujeito e de suas identidades e 12 Prefácio MEMÓRIA & PATRIMÔNIO memórias, tanto em âmbito local quanto em contextos políticos de grande impacto social, como é o caso do período ditatorial militar brasileiro. Assim, o texto de Roselâine Corrêa fala sobre o Projeto de Extensão Santa Maria da Boca do Monte: tempos de memória (1858-2018), nos seus objetivos de discutir a história sociocultural do município, valorizando os campos da memória, das artes visuais, da literatura, das religiosidades, da arquitetura, da historiografia, do teatro, do vestuário, da culinária, da música, do mobiliário e dos espaços de sociabilidade. Já Tânia Teixeira busca analisar as práticas escolares de Educação Física no Curso de Magistério no Instituto de Educação Assis Brasil (Pelotas/rs), durante os “anos de chumbo” da ditadura civil- militar no Brasil, destacando nas narrativas das normalistas e na documentação escolar e legislativa a existência de um conjunto de práticas pedagógicas que visavam a garantir o controle corporal das jovens estudantes. Finalmente, Karin Schwarzbold fala do processo de criação da Universidade Federal de Rio Grande e da participação de alunos secundaristas nesse processo. O último subcapítulo da obra, intitulado MeMÓria, soCiaBiLidades & PaTriMÔnio UrBano, reúne, por sua vez, textos em torno de temáticas variadas, que têm como ponto de convergência a importância do patrimônio material e imaterial na constituição dos sujeitos e na compreensão das sociedades nas quais se inserem. Nesse sentido, Gianne Atallah e João Fernando Nunes tratam das representações locais sobre o Clube Caixeiral de Rio Grande, rs, abordando as suas transformações ao longo do século XX e a forma como essas mudanças relacionam-se a questões socioeconômicas de cada período; Claudia Daiane Molet analisa a Irmandade de Nossa Senhora do 13 Prefácio MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Rosário, fundada em Mostardas, durante o século XViii, e ainda existente, a partir do Ensaio de Pagamento de Promessas, um ritual afro-católico; Charlene Del Puerto e Maicon Vieira procuram debater a relevância da memória e do patrimônio para a existência e desenvolvimento do turismo no Brasil. Já Melina Pereira e Glaucia Konrad analisam o registro fotográfico de edificações de São Gabriel, rs, realizado entre as décadas de 20 a 40 do século XX, com o objetivo de identificá-las, traçar sua contextualização histórica e perceber as modificações e a preservação dessas edificações. Mais um importante objeto, desta vez do norte do País, é abordado por Rosanna de Mendonça, que debate as questões de patrimônio industrial na cidade de Manaus através do olhar dos moradores do bairro de Nossa Senhora de Aparecida para com o antigo edifício da Cervejaria Miranda Corrêa, procurando compreender se, e como, ela se constitui como patrimônio industrial. De retorno ao Rio Grande do Sul, ainda uma última abordagem, de autoria de Mônica Praz, fala das artes pictóricas produzidas na zona rural do estado no século XiX e início do XX, mais especificamente em três casas de fazenda da Região da Campanha. Concluindo, ressalta-se, uma vez mais, que em suas múltiplas abordagens e objetos, a presente obra tem por intuito instigar o leitor acerca das abordagens multidisciplinares no campo da Memória Social e do Patrimônio Cultural e de convidá-lo ao estudo de temáticas com importantes potenciais de análise, constituindo-se, assim, em um instrumento de fomento para futuras pesquisas nos campos em questão. 14 MEMÓRIA, ARQUIVOS & MUSEUS MEMÓRIA & PATRIMÔNIO O cenário e os protagonistas da patrimonialização de arquivos no Brasil Francisco Alcides Cougo Junior 1 Este trabalho apresenta e esquematiza, em linhas gerais, o projeto de tese de doutorado intitulado “O processo de patrimonialização cultural de arquivos no Brasil”, desenvolvido junto ao Programa de Pós-graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural (PPgMsPC/UFPel). Basicamente, o projeto discute o contexto de aferição de “patrimonialidade” (PoULoT, 2009) nos arquivos brasileiros e busca compreender quais são os critérios envolvidos nesse processo ao longo de seu desenvolvimento. Nas linhas a seguir, um compilado dos debates presentes no Exame de Qualificação do trabalho (realizado em outubro de 2018), as premissas gerais que levaram à problematização e algumas definições iniciais a respeito do objeto em estudo são apresentadas. Arquivos e patrimônio cultural: em busca de um conceito Em um texto recentemente traduzido no Brasil, a pesquisadora estadunidense Margaret Hedstrom chama a atenção para as cotidianas “simplificações” que a Arquivologia faz dos conceitos de memória. Segundo a autora, há uma “hipergeneralização” no uso de tais definições, característica que acaba por interditar um debate mais profundo sobre suas implicações no âmbito 1. Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor do curso de Arquivologia do Departamento de Documentação, Universidade Federal de Santa Maria. Contato: francisco.cougo@ufsm.br 16 O cenário e os protagonistas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO arquivístico (2016, p. 237). A atenção que Hedstrom dispensa à memória pode ser estendida ao conceito de patrimônio, pelo menos no caso brasileiro. Apesar da existência de publicações, da realização de eventos e até do desenvolvimento de linhas de pesquisa em pós-graduação sobre o tema, a relação entre arquivos e patrimônio ainda é nebulosa do ponto de vista conceitual. Em um “estado da arte” ainda incompleto sobre os conceitos, foram mapeados 126 trabalhos produzidos entre 1999 e 2017 que apresentam os termos “patrimônio documental”, “patrimônio arquivístico”, “patrimônio documental arquivístico” e/ ou “patrimônio arquivístico documental” em seu texto. Das mais de 100 produções, apenas seis definem em termos teóricos o conceito. Os números corroboram resultados obtidos pelo trabalho de Blaya & Chaves (2014) sobre os termos presentes nos trabalhos apresentados em diferentes edições do Congresso Nacional de Arquivologia, até 2012. Há, em geral, muita menção e pouca definição sobre o que é, afinal, essa categoria de patrimônio. A generalização do relacionamento entre arquivos e patrimônio, acompanhada por uma ausência de definições de fôlego, pode ser explicada por diversos fatores. No Brasil, durante décadas, a política e as análises sobre o patrimônio cultural nacional debruçaram suas atenções e ênfases no patrimônio material edificado, em especial aquele reconhecido pelo Estado através de seu organismo maior, o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (iPHan) 2. Ao mesmo tempo, é conhecida também a ascensão apenas recente do reconhecimento e estudo sobre o chamado patrimônio imaterial – passível de 2. Para análises mais profundas a respeito, ver os trabalhos de Fonseca (1994) e Gonçalves (2006). 17 O cenário e os protagonistas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO registro público somente a partir de 2000. A opacidade dos debates sobre o patrimônio relacionado aos arquivos, nesse sentido, parece até certo ponto condizente com tal realidade. O esmaecimento da questão, entretanto, conta com ingredientes extras: no interior da própria Arquivologia há fatores dúbios que conduziram a relação entre os conceitos ao quadro atual. Uma rápida leitura sobre um par de conceituações comumente presentes nos estudos que envolvem arquivos e patrimônio já permite antever a complexidade envolvida neste contexto. O programa Memória do Mundo (MoW), mantido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), por exemplo, utiliza como referência o termo “patrimônio documental” para definir a categoria de patrimônio vinculada aos arquivos. Para o MoW, o patrimônio documental refere-se ao conjunto de documentos ligados à história, às tradições, costumes culturais e ao modo de operação administrativo dos povos. O conceito se caracteriza, ainda neste entendimento, por ser composto por bens movíveis, integrados por símbolos e códigos, sons e imagens, preserváveis, reproduzíveis e transladáveis (edMonson , 2002, p. 11). Por outra parte, o Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística, responsável por propor a homogeneização do vocabulário em Arquivologia no Brasil, considera o termo “patrimônio arquivístico” como o mais correto. De acordo com a produção, que leva a chancela do Arquivo Nacional brasileiro, a definição trata do “conjunto de arquivos de valor permanente, públicos ou privados, existentes no âmbito de uma nação, de um estado ou de um município” (arQUiVo naCionaL, 2005, p. 130, grifos do original). Para além das definições conceituais, é preciso salientar a própria dubiedade interpretativa presente na relação entre 18 O cenário e os protagonistas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO arquivos e patrimônio. Como se pode depreender da bibliografia sobre o tema, aparentemente não existem dúvidas fundamentais a respeito da pertinência dos arquivos como parte integrante do patrimônio cultural das nações, das cidades e dos grupos sociais. Mesmo assim, distingui-los nesse universo não é tarefa simples. Os arquivos são dotados de duas dimensões patrimoniais distintas, mas complementares, e isso, muitas vezes, torna confusa a ativação deste patrimônio pelo viés cultural 3. Basicamente, as duas dimensões patrimoniais dos conjuntos de documentos arquivísticos estão diretamente vinculadas aos seus produtores/acumuladores e aos motivos de sua existência. A primeira dimensão se coaduna à ideia de posse e de propriedade, é atrelada ao âmbito administrativo, tem ênfase no caráter jurídico, econômico e fiscal dos documentos e interessa mais a quem os produziu e acumulou do que às demandas culturais. Já a segunda dimensão é justamente aquela de viés cultural, que traz consigo as ideias de legado, de representatividade do passado e de caracterização das sociedades de que faz parte. Do ponto de vista do patrimônio cultural, é justamente a segunda dimensão que interessa. Acontece que as fronteiras entre ela e sua antecessora nem sempre são de fácil limitação. É, nesse sentido, a ativação do patrimônio para fins culturais nos arquivos (ou sua patrimonialização) quem dita a passagem de um momento a outro. Mais do que compreender o conceito, portanto, torna-se mister entender como se dá tal processo nos mais múltiplos contextos possíveis, quem são os atores envolvidos na transição e de que forma eles estruturam as justificativas 3. O termo “ativação” é aqui empregado no sentido apresentado por Prats (1998, p. 68). 19 O cenário e os protagonistas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO de suas escolhas (levando em consideração que a patrimonialização cultural parte sempre de uma seleção proporcionada por aqueles agentes individuais, coletivos ou institucionais munidos de legitimidade para tal). Atualmente, no Brasil, a ativação do patrimônio cultural arquivístico (como passo a tratar a dimensão patrimonial cultural dos arquivos, doravante) se dá a partir de pelo menos quatro processos institucionais. O primeiro e mais sólido é o processo de seleção/avaliação de documentos, referendado desde 1991 pela Lei Federal Nº 8.159 (Lei dos Arquivos). O procedimento é reconhecido e legitimado pela prática arquivística e se baseia na análise e no reconhecimento de “valores”, marcas definidoras estabelecidas através das possibilidades apresentadas pelos conjuntos de documentos em auxiliar na escrita da História, manter e fomentar traços culturais dos povos, respaldar a memória coletiva, ou contemplar motivações culturais específicas. A “valoração” dos documentos ampara-se em critérios técnicos e teóricos estabelecidos, em geral, pelos arquivistas, com o auxílio de comissões de avaliação, agrupamentos multifacetados formados com o intuito de analisar as possibilidades patrimoniais presentes nos arquivos. Os arquivos considerados dignos de patrimonialização são reconhecidos como “arquivos permanentes”, dotados dos “valores secundários”. O segundo processo de ativação patrimonial cultural nos arquivos é o tombamento, previsto na legislação brasileira desde 1937. Como na seleção/avaliação, o tombamento é um ato baseado em critérios “técnicos” e “científicos”, avalizado pelo Estado através de seus agentes. É também, no caso brasileiro, uma forma de “estatização” parcial do passado, pois limita os poderes privados sobre os bens culturais, impedindo que seus 20 O cenário e os protagonistas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO donos os destruam ou alterem suas características originais. Apesar de sua relevância, são escassos os arquivos tombados no Brasil. Além da prevalência da seleção/avaliação como instância mais comum de patrimonialização – e da predominância de outros bens culturais como preferencialmente tombáveis –, a legislação brasileira prevê outras formas de ativação que, por suas peculiaridades, acabam por se sobrepor ao tombamento. A “declaração de interesse público e social” (dips) é um bom exemplo de tais formas. Instituída em 1991, com a Lei dos Arquivos, a “dips” pode ser caracterizada como uma espécie de tombamento exclusivo para os arquivos. Trata-se de um instrumento jurídico destinado aos arquivos particulares, tanto de pessoas físicas, quanto de pessoas jurídicas, através do qual julga-se o interesse “histórico”, “cultural”, ou para o “desenvolvimento” do país presente em determinado conjunto de documentos arquivísticos. De acordo com o Decreto Nº 4.073, de 2002, cabe ao Conselho Nacional de Arquivos (ConarQ) – órgão máximo do Sistema Nacional de Arquivos – provocar ou acolher o pedido de análise a respeito do interesse público e social que determinado arquivo possa conter. Esta análise, por sua vez, é feita por comissão escolhida pelo próprio ConarQ. Quando entendido como pertinente à cultura do país, o arquivo analisado é reconhecido pela autoridade máxima da nação, o próprio presidente da República – que promulga e certifica o interesse pelos documentos, tornando-os parte do patrimônio nacional. Fora destes três dispositivos, há ainda uma quarta via de patrimonialização – menos impactante sob o ponto de vista jurídico, mas importante pelo viés simbólico. Trata-se do registro de arquivos no já mencionado programa Memória do Mundo, 21 O cenário e os protagonistas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO da UnesCo. O MoW, criado em 1992, funciona nos moldes da “dips”, mas tem como enfoque o âmbito internacional. São contemplados pelo Memória do Mundo arquivos públicos e privados cuja importância “transcende os limites do tempo e da cultura, e que devem ser preservados para as gerações atuais e futuras e serem postos de alguma forma à disposição de todos os povos do mundo” (edMonson, 2002, p. 8). Atualmente, o Brasil conta com cerca de uma centena de acervos arquivísticos nominados no programa. Independente da forma, o processo de “ativação” do patrimônio e/ou patrimonialização cultural de arquivos necessariamente lida com dualidades como memória e esquecimento, seleção e descarte, valoração e eliminação. O estabelecimento dos “valores secundários” é uma escolha que se dá a partir da agência de indivíduos, instituições, Estado e comunidades. A “elevação” dos arquivos à categoria de patrimônio cultural não é, portanto, um procedimento simples. Ao contrário, ele apresenta nuances extremamente complexas, seja em sua aplicação prática, seja em seu entendimento teórico. Mais do que isso: conduz indivíduos e entidades envolvidas para o centro do debate sobre o que e porque preservar – por fim, o grande tema dos estudos sobre patrimônio. Independente das instâncias de ativação deste patrimônio, o processo não é imparcial. Essa problemática, inclusive, chamou atenção de Pierre Nora, em Le lieux de memoire. Na apresentação da obra, o autor constatou que a contemporaneidade histórica é marcada pelo frisson inveterado do colecionismo, da musealização e do arquivamento de objetos e informações que não param de se avolumar. Nesse sentido, enquanto “produzir arquivos é o imperativo da época”, selecioná-los, eliminá-los ou preservá-los, são uma 22 O cenário e os protagonistas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO tarefa difícil, marcada pela ação daqueles que dominam a “arte da destruição controlada”, os arquivistas propriamente ditos (nora, 2008, p. 27). Entender as características de agentes e ações, portanto, é parte fundamental da compreensão sobre o processo. O patrimônio cultural arquivístico brasileiro: cenário e protagonistas Em texto só recentemente traduzido para o português, o canadense Terry Cook defende que a Arquivologia se debruce sobre sua própria história e passe a analisar, sistematicamente, as “realidades sociais em constante mudança” e as “lutas pelo poder” na qual seus agentes se inserem (2018, p. 19). De acordo com o autor, trata-se de desnaturalizar a produção de documentos no âmbito administrativo e pessoal, de compreender, enfim, que o ato de documentar é uma ação artificial na qual estão contidas intencionalidades, projetos e disputas de poder. Para Cook, as instituições arquivísticas são “casas da memória” e compreender os (des)caminhos percorridos pelos documentos até que eles passem à custódia destas casas é dever daqueles que desejam compreender o próprio processo de patrimonialização que envolve a Arquivologia. Em concordância e partindo desta reflexão, tenho proposto uma análise ampla sobre o processo de patrimonialização cultural de arquivos no Brasil, uma visão panorâmica, até certo ponto introdutória, capaz de lançar luzes sobre um contexto ainda pouco conhecido, mas repleto de peculiaridades que devem ser apropriadas e debatidas por arquivistas. A visão proposta – e que se encontra em plena construção – busca compreender 23 O cenário e os protagonistas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO quem são os agentes institucionais da ativação patrimonial de arquivos com fins culturais no âmbito brasileiro, como eles agem como “mediadores simbólicos” e, em alguma medida, quais são os discursos predominantes nesse processo. Trata-se de compreender, ainda, o que se entendeu e se entende como critério de patrimonialização cultural nos arquivos brasileiros e até que ponto esse entendimento se refletiu (ou reflete) nos próprios fundos documentais protegidos por instituições de arquivo no Brasil. Esse caminho não é necessariamente novo no que diz respeito à Arquivologia brasileira. Ivana Parrela (2012) analisou parte desse cenário em seu principal trabalho, no qual investiga o processo de patrimonialização de arquivos em Minas Gerais. Sua obra é, certamente, norteadora do caminho que proponho, ainda que meu escopo seja significativamente mais amplo: uma análise de caráter nacional, tendo por foco a “malha arquivística” centralizadora, imaginada primeiro pelo poder real (ou colonial), e seguida pelos poderes sucessores do império e da república, sempre em âmbito federal. Portanto, o cenário que busco reconstituir é o das instituições de caráter nacional, importantes não só por sua característica centralizadora, mas pelo seu poder legitimador no âmbito do patrimônio. Certamente, caberá a outros investigadores a análise apurada das características regionais que, por certo, definirão novas e significativas visões sobre o patrimônio cultural arquivístico brasileiro. Dentro desse escopo nacional, atenho-me precisamente aos atores institucionais que estabeleceram (ou tentaram estabelecer) as definições sobre a ativação patrimonial arquivística no País. A opção por investigar os atores intelectuais do processo é rica e certamente produtiva, mas quiçá ainda prematura. 24 O cenário e os protagonistas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO A Arquivologia brasileira parece ainda não ter clareza sobre os pilares que definem seu próprio campo e, nesse sentido, defendo que uma análise primeiramente institucional é mais produtiva. Obviamente, as instituições foram e são integradas por pessoas que, à medida que galgaram espaço, submeteram suas ideias ao debate público sobre os processos que concernem à área. Por ora, entretanto, guio-me pelo resultado objetivo de suas ideias e ações, ou seja, sobre como as instituições de que fizeram parte se comportaram a partir de suas concepções sobre patrimônio no âmbito dos arquivos. Ainda no terreno dos esclarecimentos, cabe salientar que o papel dos atores institucionais analisados provém de um profundo estudo baseado em fontes documentais primárias, a maioria delas produzida por estes mesmos personagens. A divisão temporal na qual os insiro, no entanto, é uma opção, sob minha inteira responsabilidade. Como em qualquer divisão “didática” destinada a dar lógica à narrativa histórica, os processos que envolvem os atores não começam ou terminam exatamente nos pontos de transição assinalados em uma cronologia dedicada a ser o mais explicativa possível. Que ninguém leia a divisão apontada a seguir, portanto, como estática ou acabada em si. Creio mesmo que o aprofundamento proporcionado por novos estudos (meus ou de colegas) levará à redefinição dos períodos propostos. Portanto, a partir das fontes previamente analisadas, proponho uma leitura do processo de patrimonialização cultural de arquivos no Brasil a partir de quatro fases. Estas etapas têm início no ano de 1808, quando da chegada da Família Real ao País, mas se acentuam a partir de 1838, com a criação do Archivo Publico do Império, a principal instituição arquivística nacional 25 O cenário e os protagonistas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO brasileira. Tal ator, mais tarde transformado em Arquivo Nacional, não foi o organismo público pioneiro na patrimonialização de fundos documentais da nação, mas seu papel é protagônico. A ativação patrimonial realizada por ele – importante salientar – é atribuição que só aparece de forma cifrada em suas missões institucionais e regulamentares – uma vez que praticamente não se falava em patrimônio cultural à época de sua fundação. Neste primeiro período, inclui-se uma hipótese de análise que orienta parte da investigação e que já foi sugerida, mas não aprofundada, por Parrela (2012): trata-se da suposta “concorrência” entre o Archivo Publico do Império e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (também criado em 1838) pela legitimidade da patrimonialização nos arquivos. De acordo com essa hipótese, o iHgB não apenas teria sido concorrente do Archivo Publico, como também teria se valido de sua composição e do trânsito político de seus intelectuais integrantes para definir qual seria o rol dos documentos dignos de guarda para a história do Brasil. Enxerto à hipótese a Bibliotheca Nacional, cujo trabalho nesta primeira fase também deixa transparecer certa concorrência pelo objeto estudado. Esse período inicial se encerra em 1917, quando encontramos os primeiros movimentos efetivos do Estado brasileiro em direção à regulamentação dos critérios, das instâncias e dos mediadores autorizados da ativação patrimonial no Brasil. Tais movimentações redundaram, em parte, no contexto da outorgação do Decreto Nº 25, que criou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (sPHan) e deu início aos primeiros tombamentos, em 1937, estabelecendo uma política patrimonial de fato no País. O Sphan tem um significado importante para o processo de patrimonialização cultural de arquivos no 26 O cenário e os protagonistas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Brasil. Aponto como hipótese central para a compreensão deste período o acirramento dos conflitos antes descritos e uma nova relação, marcada por sombreamentos, agora entre o Arquivo Nacional e o próprio sPHan. O detalhe importante é que, com a ênfase depositada sobre o patrimônio edificado, a nova política parece ter deixado de lado as instituições arquivísticas e seus fundos documentais, que não foram tombados. O período pós-1937, portanto, parece ser marcado pela opacidade dos arquivos enquanto patrimônio cultural. Estima-se, nesse sentido, que além do foco no patrimônio de pedra e de cal, a política patrimonial instituída no bojo do Sphan voltou-se à proteção do patrimônio privado, principalmente. Os arquivos, constituídos preponderantemente por documentos produzidos no âmbito da administração pública (e guarnecidos como patrimônio público tanto pelo Código de Processo Civil de 1916 quanto pela Constituição de 1937), teriam sido ofuscados pela lógica implementada. Essa segunda fase da patrimonialização cultural de arquivos no Brasil se estende até 1958, data-chave que marca uma espécie de “guinada histórica” da arquivística no Brasil – e um novo período. É nesse ano, durante o governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, que ascende à direção do Arquivo Nacional o intelectual José Honório Rodrigues e, com ele, um “novo regime” para os arquivos custodiados e tratados por aquela instituição. Hipoteticamente, essa fase parece se caracterizar pela consolidação de critérios arquivísticos de patrimonialização, fatores baseados, sobretudo, em experiências desenvolvidas no exterior (especialmente nos Estados Unidos) e que terminaram por ser implementadas parcialmente no Brasil. A fase também coincide com a mudança da capital federal para Brasília, um processo que deu origem ao questionamento sobre, afinal, quais 27 O cenário e os protagonistas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO arquivos deveriam ser transferidos para a nova sede do governo. Trata-se ainda de um período que se estende pelos anos 1960 e 1970, fase em que os arquivos ganharam destaque graças à lógica dos sistemas e serviços de informação, implementada pela ditadura de segurança – que, desde 1964, passara a esforçar-se no sentido de impor uma identidade nacional (para a qual os arquivos viriam a se somar). O período supracitado atravessa três décadas e se encerra em 1991, quando se inicia uma nova fase, marcada pela aprovação da Lei dos Arquivos, que coloca em vigência um aparato definitivo e poderoso – do ponto de vista da legitimidade – para a ativação patrimonial cultural arquivística no Brasil. De acordo com mais uma hipótese de trabalho, esse período pode ser caracterizado pela formação e consolidação dos critérios de patrimonialização cultural e de ênfase legal atribuídos ao Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) e ao Sistema Nacional de Arquivos (Sinar). É nele que se cristaliza uma pretensa hegemonia da arquivística como disciplina capaz de dirimir (ainda que por vias muitas vezes autoritárias) as contradições da ativação patrimonial de arquivos no Brasil. Essa fase, em meu entender, se estende até 2015, quando os fenômenos da externalização de arquivos públicos, da pressão pela destruição de documentos digitalizados e do decréscimo na importância e nos investimentos no Arquivo Nacional leva a um novo e ainda desconhecido cenário. Conclusão Em 2012, Terry Cook propôs quatro paradigmas de análise para compreender o desenvolvimento da arquivística no mundo. De 28 O cenário e os protagonistas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO acordo com sua divisão, até a década de 1930 predominou o paradigma da “evidência”, caracterizado por encarar os arquivos como “resíduos naturais” a serem guardados justamente por seu caráter de prova “autêntica” sobre o passado. A partir dos anos 1940, os arquivos passaram a ser dominados pelo paradigma da “memória”, cuja orientação central põe na avaliação de documentos seu cerne. Esse modelo foi substituído, nos anos 1970, pelo paradigma da “identidade”, que buscava nos arquivos um “recurso social” pluralista, voltado para a busca por identidade e justiça. Cook assinala que, no alvorecer do século XXi, o paradigma que se torna vigente é o da “comunidade”, direcionado à “democratização de arquivos apropriada ao ethos social, aos padrões de comunicação e requisitos comunitários da era digital” (2012, p. 155). Com algum descompasso temporal, podemos assinalar a periodização brasileira que aqui proponho aos paradigmas sugeridos por Cook. Os arquivos brasileiros, neste sentido, teriam sido patrimonializados culturalmente a partir de 1808, primeiro por suas características evidenciais e, depois, como pretensos “instrumentos” para uma “memória nacional”. A partir do final dos anos 1950, sugiro um desencontro limitado na equiparação, já que o paradigma vigente no Brasil parece ter-se guiado menos pela ideia de uma identidade pluralista e democrática e mais por um enviesamento autoritário e impositor de características identitárias uniformes. Assinala-se, ainda, que o paradigma da “comunidade”, sugerido pelo investigador canadense, parece ter ingressado na análise patrimonial arquivística brasileira só muito atualmente – e de maneira ainda muito tímida. De qualquer forma, a comparação entre a periodização aqui proposta e a divisão paradigmática de Cook é 29 O cenário e os protagonistas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO interessante, pois colabora na compreensão mais ampla sobre os caminhos percorridos pelo Brasil em relação ao que poderíamos chamar de uma “arquivística ocidental”. As reflexões aqui expostas, por fim, pretendem apenas introduzir o debate no campo da Arquivologia e nas discussões sobre memória e patrimônio. A coleta de fontes e a verificação empírica tanto das divisões assinaladas, quanto da atuação dos agentes citados e seu papel ainda carecem de tempo. Reconstituir as cenas do amplo processo de patrimonialização cultural de arquivos no Brasil é caminhar em um terreno pantanoso, de fontes fragmentárias e – como que por ironia – pouco preservadas. Ainda assim, trata-se de uma tarefa fundamental, para a qual desejo não apenas alcançar êxito, como também amplificar o diálogo com outros colegas, através de novos trabalhos. Ao fim e ao cabo, compreender como se dá a ativação patrimonial nos arquivos brasileiros é escrever um capítulo da própria história do pensamento arquivístico. Referências CooK, Terry. Entrevista. In: Revista Ciência da Informação e Documentação. Ribeirão Preto, v.3, n.2, jul./dez. 2012. CooK, Terry. O passado é prólogo: uma história das ideias arquivísticas desde 1898 e a futura mudança de paradigma. HeYMann, Luciana; nedeL, Letíca (org.). Pensar os arquivos: uma antologia. Rio de Janeiro: FgV Editora, 2018. FonseCa, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFrJ; MinC – Iphan, 2005. HedsTroM, Margaret; easTWood, Terry; MaCneiL, Heather. Correntes atuais do pensamento arquivístico. Belo Horizonte: Editora UFMg, 2016. 30 O cenário e os protagonistas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO ParreLa, Ivana. Patrimônio documental e escrita de uma história da pátria regional: Arquivo Público Mineiro 1895 - 1937. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPgH-UFMg, 2012. PoULoT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente: séculos XViii-XiX. Do monumento aos valores. São Paulo: Estação da Liberdade, 2009. PraTs, Llorenç. El concepto de patrimonio cultural. In: Politica y sociedad. Madri, n. 27, 1998. 31 MEMÓRIA & PATRIMÔNIO “A razão” de um patrimônio fotográfico: a descrição arquivística das fotografias de jornal Alvaro Pouey de Oliveira Filho 4 Introdução Este artigo apresenta os resultados preliminares de pesquisa sobre a Descrição Arquivística das fotografias analógicas do extinto jornal A Razão, hoje pertencentes ao Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria. O Jornal A Razão esteve presente cotidianamente na vida da comunidade de Santa Maria, município da região central do Rio Grande do Sul, desde a década de 1930 até 25 de fevereiro de 2017, relatando os acontecimentos que envolviam essa sociedade, também trazendo relatos jornalísticos do Estado, País e mundo para a cidade e região de abrangência. As fotografias de imprensa são documentos particularmente especiais dentro do universo da comunicação jornalística e sujeitas a metodologias específicas de utilização nos espaços dos jornais impressos. Compreender como as fotografias se articulam com as outras informações que compõe a notícia e os valores impostos pela sua distribuição espacial na página, a diagramação, podem aportar dados importantes e substanciais a serem incorporados na descrição arquivística. Para que seja possível transportar esses novos dados para a descrição, seja somente da fotografia utilizada ou do conjunto 4. Arquivista (Universidade Federal de Santa Maria), fotógrafo. Contato: pouey2@gmail.com 32 "A razão" de um patrimônio... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO fotográfico que nasceu em função de uma reportagem, é necessário explorar as teorias jornalísticas referentes ao assunto proposto, para então, construir a forma com que os novos dados serão demonstrados para os usuários. Por se tratar de um documento revestido de uma série de elementos informativos, alguns plenamente identificáveis e outros que são trabalhados conforme prerrogativas escolhidas pelo próprio meio de comunicação, a Descrição dos Documentos de Arquivo, em especial a norma nacional que busca padronizar esse trabalho técnico, Norma Brasileira de Descrição Arquivística (Nobrade), deve necessariamente dialogar com esse conjunto informacional. Na construção teórica para se alcançar a incorporação de tais dados à descrição das fotografias de jornal é necessário primeiro compreender o significado e objetivos da descrição arquivística, para então analisar as teorias da comunicação no concernente à fotografia de jornal. Discute-se aqui uma análise das alternativas que atendam ao tratamento técnico do acervo fotográfico deste veículo de comunicação, doado ao Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria. O primeiro conjunto que chegou à posse do Arquivo Histórico Municipal corresponde, segundo o ex-assessor de direção do jornal, Gaspar Miotto, em entrevista ao site claudemirpereira.com.br 5, aos jornais impressos do ano 1934 a 2017. No mês de outubro de 2018, somou-se ao arquivo as fotografias analógicas do mesmo jornal. Segundo estimativa da Arquivista 5. https://claudemirpereira.com.br/2018/02/imprensa-acervo-de-jornais-de-a-razao-sera-doado-para-o-arquivo-historico-municipal-de-santa-maria/ Acesso em: 29 nov. 2018 33 "A razão" de um patrimônio... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO responsável, Daniéle Calil, o acervo contém cerva de 30.000 fotografias e um número ainda desconhecido de negativos. Halbwachs diz que “fazemos apelo aos testemunhos para fortalecer ou debilitar, mas também para completar o que sabemos de um evento do qual já estamos informados de alguma forma” (HaLBWaCHs, 1990, p. 25). Assim, o fotojornalismo e a matéria jornalística possuem, na sua essência, a capacidade de fornecer um amparo à recuperação do passado e complementar o saber em relação aos acontecimentos cotidianos. A fotografia jornalística e as normas de descrição Arquivística A fotografia jornalística é possuidora de informação, o que a transforma em testemunho, e esse testemunho, mesmo que entre para a esfera do esquecimento, ainda assim estará fixado nas páginas à disposição da sociedade. A soma do acervo fotográfico traz um novo veículo interpretativo e nesse sentido, segundo Zelizer: “diferentes veículos de memória oferecem formas distintas de dar sentido ao passado” (zeLizer,2012, p. 19). Essa possibilidade de análise do conjunto fotográfico das reportagens e o seu resultado nas páginas impressas só serão possíveis se existirem uma conexão entre os dois acervos. A conexão entre o texto e a fotografia, e sua importância de inter-relação, é colocada por Zelizer como uma potencialização representativa: “colocando-as lado a lado, que a dimensão persuasiva de cada formato representativo emerge” (zeLizer, 2012, p. 20). Com base nessa assertiva surge a questão que envolve a questão central deste trabalho. 34 "A razão" de um patrimônio... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO O problema que estimula a análise proposta está planteado na transformação do acesso aos documentos fotográficos a que esse arquivo sofreu ao ser transferido sua guarda da iniciativa privada para o domínio público. No primeiro contato com esse acervo constatou-se que as fotografias são organizadas por assunto, e essa estrutura provavelmente atendeu as necessidades do jornal nas suas pesquisas de recuperação da informação. No entanto, a pergunta de pesquisa que se faz é, tomando como base a ordem original do acervo, se essa organização atende aos requisitos técnicos da Descrição Arquivística? Também cabe ressaltar que o Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria utiliza a Norma Brasileira de Descrição Arquivística (Nobrade), do Arquivo Nacional e, por se tratar de um acervo especializado da área da Comunicação, essa norma atende aos requisitos particulares desse produto? Compreende-se “Organicidade” como um princípio de grande valia para a Arquivologia, que se refere à relação entre os documentos. O Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística trata de forma muito simples esse tema: “a relação natural ent re documentos de um arquivo em decorrência das atividades da entidade produtora” (arQUiVo naCionaL, 2005, p.127). Para complementar o sentido de Organicidade Cruz Mundet 6 (1996), diz: A inter-relação como princípio geral as peças isoladas (documentos soltos) não têm sentido ou têm muito pouco, sua razão de ser vêm dada por sua relevância a um conjunto – a unidade arquivística ou expediente – e pelas relações estabelecidas entre si (MUndeT, 1996, p.100). 6. A tradução de Mundet é uma tradução livre do autor. 35 "A razão" de um patrimônio... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Essa “inter-relação ou organicidade”, quando trazida ao objeto desta pesquisa, aporta a necessidade de evitar o isolamento do documento fotográfico, que teve sua gênese em função de uma atividade e está vinculada a uma série de textos que formam um conjunto informativo. A Descrição dos documentos de Arquivo visa a muito mais do que a recuperação da informação e o consequente acesso, mas também criar a possibilidade de contextualizar o uso e o reuso das fotografias no decorrer das edições do jornal. Segundo Yeo (2016): Os produtos descritivos atuam como ferramentas de gestão de conjuntos documentais – inventários cuja função é impedir possíveis perdas ou extravios. Eles cumprem um papel de preservação ao reduzirem o manuseio dos documentos originais. Acima de tudo, eles captam e reúnem informações sobre contexto (Yeo, 2016, p. 136). Além de trazer a possibilidade de proteger o acervo de danos e perdas, como cita Yeo, o fato de a Descrição Arquivística ser capaz de criar o elo entre a fotografia e/ou o conjunto fotográfico criado para uma reportagem com o texto vinculado, dando organicidade à informação, agrega informações que a fotografia isolada é incapaz de trazer. Essa incapacidade da fotografia de imprensa em trazer certas informações e necessitar de um texto que traga ancoragem à informação é comentada por Sousa (2011): Uma verdadeira implicação do leitor na descodificação da imagem fotográfica impõe que esta seja acompanhada de elementos referenciais que permitam a sua leitura clara. Uma legenda capaz de ancorar o sentido da foto, a autoria, a fonte, informação sobre a hipotética submissão da imagem a alterações digitais são, neste campo, dados que 36 "A razão" de um patrimônio... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO devem ser facultados ao receptor, pois o contexto informativo referencial é relevante para a obtenção de informação (soUsa, 2011, p. 9). Vários elementos são destacáveis dessas palavras de Sousa para a descrição arquivística das fotografias de imprensa. Além da relação entre o texto e fotografia na capacidade de dar sentido, também se salienta a autoria e a fonte da fotografia. É muito comum encontrar nos jornais a referência ao produtor sendo dada ao “arquivo” ou ao “banco de dados”. Esse fato pode decorrer em virtude da reutilização de uma fotografia já previamente vinculada a outra reportagem ou uma fotografia pertencente a um conjunto fotográfico produzido também para outra reportagem. O autor é um campo essencial em qualquer descrição, independente da espécie documental. No quadro que segue demonstra-se as mais usuais fontes das fotografias de jornal. Cidadão Fotógrafo da empresa Fotógrafo freelancer Internet Fotografia jornalística Agências especializadas Figura 1: Fonte das fotografias de jornal Fonte: O Autor O ponto que se refere às alterações, o que no caso do objeto aqui tratado, por ser analógico, somente é possível com uma descrição detalhada da edição feita pelo diagramador e pelo 37 "A razão" de um patrimônio... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO editor de fotografia do jornal. Alguns exemplares analisados apresentam o futuro recorte para impressão demarcado por linhas que delimitam a área a ser extraída da fotografia a ser impressa. Essa delimitação do espaço, ou qualquer outra alteração na fotografia, que será utilizada na impressão, também deve somar informação à descrição. Na figura abaixo podemos observar a demarcação para os cortes na fotografia que foi vinculada à reportagem: Figura 2: Exemplo de marcações de diagramação Fonte: O Autor 38 "A razão" de um patrimônio... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO A relação fotografia-texto é também descrita por Barthes (1990): “a fonte emissora é a redação do jornal, seu grupo de técnicos, dos quais alguns fazem a foto, outros a selecionam, a compõem e retocam; e outros, enfim, a intitulam, a legendam, a comentam (BarTHes, 1990, p. 11). Outro ponto se agrega à fotografia de imprensa: o meio o qual a fotografia é vinculada. Esse ponto não será analisado neste momento. Assim como Sousa, Barthes também revela a relação existente entre a fotografia e o texto na construção da informação nas páginas do jornal. Desta forma, reconhece-se o primeiro elemento a ser desenvolvido na descrição das fotografias de imprensa, o uso dos textos que acompanham a fotografia para titular esta nas fichas de descrição. O primeiro é o título da notícia. Com esse elemento a compreensão da informação fotográfica não fica atrelada ao entendimento ou capacidade do descritor no domínio das técnicas de análise iconográficas. O exemplo que segue é um demonstrativo da ambiguidade que uma fotografia pode trazer na sua leitura. Na fotografia que segue foram retirados os elementos textuais que compõem a capa do jornal Diário de Santa Maria, de 24-25 de fevereiro de 2018, a manchete e o lide. Ao se observar a fotografia percebe-se que se trata da sombra de alguma pessoa projetada num pavimento de paralelepípedo. Várias perguntas podem ser feitas para essa fotografia na busca de termos que a descrevam: qual o assunto tratado? Estaria a reportagem querendo ilustrar uma testemunha oculta de algum crime? Seria um adulto ou um adolescente? Homem ou mulher? Enfim, diversas perguntas poderiam ser feitas na tentativa de estruturar um título que seja capaz de recuperar e contextualizar a fotografia. 39 "A razão" de um patrimônio... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Na fotografia seguinte os elementos que compõem a notícia são recolocados. Nesse momento o título é aclarado e revela-se o conteúdo. Figura 3:Fotografia jornalística sem título Fonte: Disponível em: www.diariosm.com.br Acesso em: 14 mar. 2018. Reconstruindo a capa do jornal encontramos a mensagem vinculada à fotografia e esta pode aportar elementos essenciais à descrição do objeto fotográfico. Neste caso o título “Um dia tem policial, no outro, não” servirá como elemento de descrição no campo “Título”. No campo “título agregado”, o descritor pode servir-se do lide da matéria. Figura 4: Fotografia com título e lide Fonte: Disponível em: www.diariosm.com.br Acesso em: 14 mar. 2018. 40 "A razão" de um patrimônio... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO É importante salientar que no caso de reutilização desta fotografia, o novo título e demais textos que acompanham a nova reportagem devem ser agregados à informação já utilizada para a descrição, criando assim a possibilidade de rastrear as utilizações destas no veículo jornal. Outros elementos são também de grande importância para a descrição das fotografias de imprensa. Para a descrição das fotografias de jornal, um ponto que se compreende vital é a “data de edição/publicação”. Salienta-se que esse campo não é definido na Norma Brasileira de Descrição Arquivística (Nobrade). Uma vez que a data de publicação de uma ou mais fotografias de um conjunto for inserida na descrição, facilitará a recuperação e demonstrará as diversas relações que possam existir entre a fotografia e os textos das reportagens. A Norma Brasileira de Descrição Arquivística (Nobrade) possui em sua estrutura oito áreas de informação descritiva, sendo essas: área de identificação, área de contextualização, área de estrutura de conteúdo, área de condições de acesso e uso, área de fontes relacionadas, área de notas, área de controle de descrição e área de pontos de acesso e descrição de assuntos (Nobrade, 2001, p. 18). Para compreendermos melhor do que se trata cada uma dessas áreas recorremos à própria norma. A Área 1, de identificação, é onde registra-se a informação essencial para identificar a unidade. Nessa área, todos os elementos são obrigatórios: 41 "A razão" de um patrimônio... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Código de referência Título Data Nível de descrição Dimensão e suporte Quadro 1: Elementos da Área 1 da Nobrade Fonte: Conarq, 2006 A Área 2, de contextualização, é onde se registra informação sobre a proveniência e custódia. Nesta área, o elemento “nome do produtor” é o único elemento obrigatório. Identificação do produtor História administrativa-biográfica História arquivística Quadro 2: Elementos da Área 2 da Nobrade Fonte: Conarq, 2006 Na Área 3, de conteúdo e estrutura (quadro 3), é onde se registra informação sobre o assunto e a organização da unidade de descrição. Nenhum dos elementos desta área é obrigatório. Na Área 5, de fontes relacionadas, é onde se registra informação sobre outras fontes que têm importante relação com a unidade de descrição. É na área 5 que encontramos o primeiro 42 "A razão" de um patrimônio... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO ponto a ser desenvolvido no âmbito do fotojornalismo no que tange aos acervos dos veículos de comunicação. Aqui, demarca-se a relação entre o texto e a fotografia. Para o objeto dessa pesquisa, que demonstrou a relação orgânica entre texto-fotojornalismo, o preenchimento do elemento “unidade de descrição relacionada” vemos ser de fundamental importância, contextualizando todo o conjunto fotográfico. A Nobrade traz para o preenchimento deste item a seguinte regra: Registre informação sobre a existência de unidades de descrição que sejam relacionadas por proveniência ou outra(s) forma(s) de associação na mesma entidade custodiadora ou em qualquer outra. Se necessário, justifique essa relação (Conarq, 2006, p.51). Caso as fotografias jornalísticas produzidas para uma determinada notícia ou reportagem sejam separadas e armazenadas em outro local, diferente daquele onde estará situado o texto original do repórter responsável, ou o exemplar digital, o preenchimento deste campo será capaz de demonstrar a relação orgânica entre ambos. Identifica-se como importante o elemento que se refere às cópias. O texto da Nobrade informa que: “aplica-se igualmente a situações em que as cópias integrantes de um fundo são de originais integrantes de outro fundo, mesmo que sob a custódia da mesma entidade” (Conarq, 2006, p. 49). O primeiro elemento é o “título” que, segundo entende-se, baseado nos resultados desta pesquisa, quanto à relação entre fotografia-texto no âmbito jornalístico, defende-se seja aquele utilizado na manchete da notícia/reportagem em que o conjunto fotográfico teve sua origem. Tendo em vista que a produção 43 "A razão" de um patrimônio... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO de fotografias, no fazer jornalístico, durante a cobertura de uma pauta, não produz somente uma fotografia, mas sim um conjunto que passará pela escolha daquela(s) imagem(ns) que comporá(ão) a matéria, todo o conjunto deveria receber como título, na sua descrição, a manchete da matéria em questão. Outra questão importante é a inserção de um campo referente à data de publicação, o qual poderá facilitar o acesso e criar um rastreamento de possíveis reutilizações da fotografia de certo conjunto fotográfico em outras matérias que não aquela originária. Um exemplo fictício, apresentado na Figura 6, mostra os usos distintos para um mesmo conjunto. Datas hipotéticas de uso e reutilização Conjunto fotográfico Primeira utilização [30/03/2015] Segunda utilização [25/10/2017] Terceira utilização [16/02/2018] Figura 4: Uso de fotografia jornalística digital Fonte: O Autor, 2018 Na Figura 4 temos uma ilustração que representa a reutilização de um conjunto fotográfico em diferentes datas e finalidades (notícia, fotolegenda, reportagens, etc.). Havendo essas datas na descrição do conjunto fotojornalístico, habilita aos pesquisadores uma ferramenta de compreensão dos discursos e também facilitaria para a inserção dos créditos, que muitas vezes são omitidos. 44 "A razão" de um patrimônio... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO É preciso lembrar, oportunamente, que esse campo, data de publicação, não está explícito na Norma Brasileira de Descrição Arquivística. Porém, compreendemos ser de vital importância para as fotografias de veículos de comunicação do tipo jornal, porque esta possibilita rastrear e contextualizar o uso das fotografias jornalísticas. O estudo preliminar, feito com base na Norma Brasileira de Descrição Arquivística (Nobrade), demonstra que ainda é necessário realizar adequações. Para que o produto final, os instrumentos de recuperação da informação sejam eficazes, é necessário que outros campos sejam inseridos. Os usuários dos Arquivos mudaram e, segundo Bellotto: Não mais aqueles diletantes “historiadores de fim de semana” a reconstruir a evolução histórica de suas ciências, mas sim profissionais que buscam dados e procedimentos passados como referência técnica ou cultural em temas que abordarão em seu estado atual para embasar propostas de projetos e de pesquisas (BeLLoTTo, 2014, p.283). Tendo em conta a especificidade dos usuários, referidos por Bellotto, a descrição das fotografias de jornal deve levar em conta, também, elementos da construção visual do jornalismo impresso. Um dos campos descritivos que devem ser inseridos é o que se refere à diagramação, uma vez que, segundo Silva (1985), esta é a “atividade de coordenar corretamente o material gráfico com o material jornalístico, combinar os dois elementos com o objetivo principal de persuadir o leitor” (siLVa, 1985, p. 45). Basicamente, pode-se compreender que é por meio da diagramação que se coloca intensidade, atenção e vigor a uma notícia, e consequentemente à fotografia que forma o conjunto informativo. 45 "A razão" de um patrimônio... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Os dados gerados pela diagramação do jornal trariam a posição em que a fotografia ocupa na página, isso é, as zonas visuais. Na figura abaixo vê-se um exemplo de esquema de visualização elaborado por Edmund Arnold: Figura 5: Esquema de Edmund Arnold para zonas visuais Fonte: (Silva, 1985, p. 49) A Região 1, segundo Silva, é considerada a zona óptica principal ou primária, onde o elemento toma força e mais atenção. As demais regiões são descritas por Silva como sendo: 2 (secundária ou terminal), 3 (morta ou sem atração), 4 (morta ou sem atração), 5 (centro óptico) e 6 (centro geométrico) (siLVa, 1985). Cabe salientar que, segundo esse autor, não existe uma regra fixa. Tendo em conta que a posição da fotografia na página influencia na sua leitura e recepção pelo leitor, este é um campo que deve ser colocado na descrição por demonstrar um “valor” informativo à fotografia. Neste caso, quando realizada uma pesquisa, o investigador possuirá mais elementos construtivos de análise. Conclusão Mesmo que a Norma Brasileira de Descrição Arquivística não contemple as especificidades que as fotografias de jornal 46 "A razão" de um patrimônio... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO apresentam para a sua devida descrição, tomamos as palavras de Couture que diz: “reexaminar não é rejeitar, revisar não é demolir” (CoUTUre, 2015, p.148). Portanto, criar novos campos que tragam uma maior capacidade de recuperação, contextualização e compreensão, para as fotografias do acervo do jornal A Razão, beneficiará os futuros usuários. Cabe salientar que os campos descritivos “data de publicação” e “posição de diagramação” são apenas alguns dos contributos da área do fotojornalismo e comunicação analisados no presente trabalho. Este artigo termina fazendo um novo questionamento, baseado nas experiências compartidas entre a Arquivologia e o Jornalismo: sabendo-se que a descrição documental arquivística funciona como um facilitador de acesso e proteção ao patrimônio, qual seu alcance, como processo, nas instituições jornalísticas e/ou detentoras de acervos jornalísticos do País? Também se questiona se os arquivistas devem seguir a norma descritiva, sem dialogar com a teoria jornalística, responsável pela criação e uso da fotografia do extinto jornal A Razão? A generalização das espécies documentais trazida pela Norma Brasileira de Descrição Arquivística não atende plenamente esse processo no âmbito das fotografias de jornal, necessitando que sejam acrescentados novos e importantes campos à descrição dessa espécie documental, fotografia de jornal. Referências arQUiVo naCionaL. Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística. Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005. Disponível em:<http://www.arquivonacional.gov.br/images/pdf/ 47 "A razão" de um patrimônio... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Dicion_Term_Arquiv.pdf> Acesso em: 03 fev. 2018. Brasil. Conselho Nacional de Arquivos. NOBRADE: Norma Brasileira de Descrição Arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006. Disponível em: <http://conarq.arquivonacional.gov.br/images/publicacoes_textos/nobrade.pdf> Acesso em: 10 nov. 2018. BarTes, Roland. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira S.A. 1990. BeLLoTTo, Heloísa Liberalli. ARQUIVO. Estatutos e reflexões. Belo Horizonte: Editora UFMg, 2014. Canadian CoMMiTTee on arCHiVaL desCriPTion. Rules for ArchivalDescription, 2ª ed. Bureau of CanadianArchivists, Ottawa, 2008. Disponível em: <http://www.cdncouncilarchives.ca/rad/radcomplete_july2008. pdf> Acesso em: 09 jan. 2018. CoUTUre, Carol. A arquivística, os arquivistas e os arquivos no Canadá. In: Revista Acervo, Rio de Janeiro v.28, nº2, p.147-163, Jul./Dez. 2015. HaLBWaCHs, Maurice. A memória coletiva. Edições Vórtice, São Paulo, sP. 1990. MUndeT, José Ramón Cruz. Arquivística. Gestíón de documentos y administración de archivos. Madrid (es): Alianza Editorial S.A., 2012. PadrÓn, DúniaLlanes. La representación normalizada de los documentos: estudio comparado de normas de descripciónarchivística. 2011. Tese de Doutorado. Tese (Doutorado em Biblioteconomia e Documentação) - Facultad de Traducción y Documentación, Universidad de Salamanca. Salamanca, Espanha, 2011. siLVa, Rafael Souza. Diagramação. O Planejamento visual gráfico na comunicação impressa. São Paulo. Summus, 1985. soUsa, Jorge Pedro. Estatuto e expressividade da fotografia jornalística. Um ensaio. Universidade Fernando Pessoa e Centro de Investigação. In: Media & Jornalismo. Portugal. 2011. Disponível em: <http://www. bocc.ubi.pt/pag/sousa-jorge-estatuto-e-expressividade-da-fotografia. pdf> Acesso em: 09 out. 2018. zeLizer, Barbie. “Voz” da visual da memória. In: Media & Jornalismo, Lisboa, Nº20, Vol.11, nº1, 2012. Yeo, Geoffrey. Debates em torno da descrição. In: easTWood, Terry; 48 "A razão" de um patrimônio... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO MaCneiL, Hearther. Correntes atuais do pensamento arquivístico. Belo Horizonte: Editora UFMg, 2016. 49 MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Arquivos de esporte: a importância do patrimônio documental do Riograndense Futebol Clube para a Memória de Santa Maria-RS Daiane de Souza 7 Glaucia Vieira Ramos Konrad 8 O trabalho pretende demonstrar a importância dos arquivos de esporte, no qual o Riograndense Futebol Clube foi o foco da pesquisa. Para isso a mesma procurou reunir o acervo documental do Clube, contando assim, sua história. O Riograndense Futebol Clube de Santa Maria faz parte do início do desenvolvimento da cidade, foi quando os ferroviários chegaram para trabalhar e logo pensaram em ter uma atividade de lazer, como jogar futebol. A intenção deste estudo foi colocar em pauta os arquivos de esporte como fator importante para a preservação da história do futebol, tendo o Riograndense de Santa Maria como centro da pesquisa, identificando a importância dos arquivos de esporte para memória de Santa Maria, discutindo sua relação com a cultura, recuperando a história através do acervo documental, conscientizando os dirigentes para recuperar e manter o acervo da instituição. Para a elaboração do trabalho, foi realizada uma pesquisa bibliográfica sobre os arquivos de esporte e sua importância na 7. Autora: Bacharel em Arquivologia, Universidade Federal de Santa Maria-RS E-mail: daianesouzapg@hotmail.com 8. Orientadora: Profª. Drª Departamento de Documentação, Curso de Arquivologia, Universidade Federal de Santa Maria-RS E-mail: glaucia-k@uol. com.br 50 Arquivos de esporte: MEMÓRIA & PATRIMÔNIO teoria arquivística, na cidade de Santa Maria, rs. A coleta de dados se deu através de visitas à sede do Clube e de conversas informais com funcionários e conselheiros, e com o professor responsável pela obra feita em comemoração aos 100 anos do Riograndense, tendo como finalidade compreender a atuação da instituição quanto a seus arquivos. As anotações foram feita na intenção de não perder pontos importantes na pesquisa, principalmente o histórico do Clube. Este estudo justifica-se pela necessidade de aliar a teoria arquivística com o tema dos arquivos esportivos, contribuindo para que a história de um Clube de futebol, com mais de um século de existência, seja conhecida através da organização e preservação do acervo documental. A pesquisa sobre os arquivos esportivos se mostra com poucas publicações, para isso buscou-se abranger estudos neste campo inovador de preservação da história do Riograndense na cultura desportiva de Santa Maria. Neste sentido, esta história deve ser escrita e preservada para que a comunidade possa ter ciência da valorização do Riograndense Futebol Clube, como parte do seu patrimônio esportivo, histórico e cultural. Com base em informações encontradas em Clarke (2000, p.9-12), “os maiores usuários de informação esportiva são gestores desportivos, especialistas, pesquisadores, treinadores, atletas e em último lugar o público em geral buscando biografias”. Por isso, defende-se a necessidade de mostrar e instigar a curiosidade do público sobre o esporte e suas necessidades de informações e as possíveis fontes. Sjöblom (2014, p.13-17), no seu artigo Esportes e arquivos: um panorama internacional”, debate sua preocupação com a 51 Arquivos de esporte: MEMÓRIA & PATRIMÔNIO preservação de arquivos de esporte, reconhecendo a falta desse entendimento entre os arquivistas. Por ser um tema moderno/contemporâneo os arquivos onde se guardam a memória esportiva, ainda é pouco estudado e restrito na formação dos acadêmicos de arquivologia. Preservar e se preocupar com os arquivos de esporte é uma necessidade que os gestores e arquivistas das unidades esportivas devem dar atenção. Segundo Lima (2010, p.13), “Um resgate do esporte de Santa Maria é necessário, pois em seus 150 anos não foi registrada sua memória no esporte”. Assim, a cidade poderá transmitir quão importante é a retomada da memória do Riograndense para a cultura de Santa Maria. O arquivista deve se preocupar com a gestão documental, sendo futebolística ou não. Por se tratar de um arquivo esportivo, há pouco estudo e trabalho sobre o tema, dificultando a pesquisa bibliográfica. Os arquivos esportivos tratam da trajetória de uma cidade e ou clube e o Riograndense tem mostrado preocupação com a sua gestão documental. Para tal ação, no entanto, é preciso um estudo detalhado na instituição, buscando-se, assim, sua história na cidade de Santa Maria. Sobrinho (1989, p.31) cita que “se todos os clubes se preocupassem em preservar o acervo completo da sua história, as pesquisas e trabalhos seriam mais positivos neste quesito". Nestes termos, justifica-se a importância da intervenção de um arquivista para preservar e difundir esses documentos. Arquivos de esporte O esporte tem uma relevância para a história e memória da cidade onde é locado, por isso buscou-se destacar esse tema 52 Arquivos de esporte: MEMÓRIA & PATRIMÔNIO no referencial e ações dos arquivistas, demonstrando a necessidade da preservação com seu acervo documental, no propósito inicial de estabelecer condições estruturais capazes de contribuir para a recuperação, preservação e difusão de documentos que tratam do esporte na cidade. Importante destacar a reflexão de Sjöblom (2014, p.13-17) sobre sua trajetória como arquivista. Naquele momento, eu li um artigo em um boletim australiano, alegando que o esporte se situava em uma obscuridade arquivística. Como um jovem arquivista, trabalhando em um dos poucos arquivos especializados em esporte no mundo, e também dedicado à pesquisa da história do esporte, julguei necessário reagir àquela declaração. O autor destaca a importância do arquivista na gestão desses arquivos e da necessidade das instituições esportivas obterem responsabilidade sobre seus acervos. Neste sentido, pode-se tomar como exemplo a realidade do Riograndense, onde sua história está na memória dos seus antigos dirigentes, acarretando dificuldades de passar sua trajetória aos dirigentes atuais, como para os pesquisadores dos arquivos esportivos e a sociedade. No âmbito do Conselho Internacional de Arquivos (Cia), na década de 1990, alguns esforços tiveram a finalidade de iniciar algum tipo de cooperação. “Antes do Congresso do Cia, de Beijing, em 1996, foram reunidas informações sobre coleções e instituições de documentos de esporte ao redor do mundo, com a ideia de criar algum tipo de registro ou diretório que pudesse ajudar pesquisadores a localizar materiais de interesse” (2014, p.2). Esta seção busca “uma crescente compreensão da importância do esporte como um fenômeno na sociedade”, como 53 Arquivos de esporte: MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Sjöblom declarou em seu artigo intitulado Esportes e arquivos: um panorama internacional do debate. Segundo o autor, os arquivos de esporte podem ser considerados uma área especializada da arquivologia, que pretende preservar a história e memória de um clube de futebol e de outros esportes. No Brasil essa preocupação teve mais foco com o Comitê Olímpico Brasileiro, criado em 1914, cujo acervo do Departamento Cultural contém tochas, mascotes, medalhas fotografias, cartazes oficiais dos Jogos Olímpicos, uniformes e selos. Mesmo assim, as pesquisas sobre o esporte ainda permanecem incipientes na área de arquivologia, pois estão mais voltadas à biblioteconomia e à museologia. O interesse também deverá partir dos arquivistas, pesquisadores e gestores de clubes de futebol para que tenham ciência de que esses arquivos são importantes para a vida dos seus torcedores, assim como para os acadêmicos e profissionais que trabalham na área. A gestão arquivística é um aspecto fundamental para qualquer organização, entidade ou pessoa, e com os times de futebol não é diferente, pois como poderão registrar as suas atividades esportivas imediatas e também manter documentação com valor histórico e comprobatório, sem documentos que atestem os seus atos? Mas não é isso que acontece, pois ainda temos poucos investimentos em preservação de documentos de clubes esportivos. Nessa estrutura completamente desigual, projetos relacionados à história, memória e preservação de acervo, dentro de um clube de futebol, mas também noutras instituições são rotineiramente descartados por não apresentarem resultados imediatos e retorno financeiro para os clubes” (sanTos,2014,p.14) . 54 Arquivos de esporte: MEMÓRIA & PATRIMÔNIO A instituição esportiva que se preocupa com a gestão documental terá uma ferramenta a mais para conquistar seu torcedor ao estádio, incentivando o mesmo a ver os documentos de valor histórico, como os relacionados à fundação e fotos do primeiro título do clube. Arquivo de esporte como patrimônio cultural O esporte deveria ser defendido como patrimônio cultural, pois se enquadra no que prevê a Constituição Brasileira (1998) em seu artigo 216. Constituem Patrimônio Cultural Brasileiro os bens de natureza material e imaterial tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira… poder público, com a colaboração da comunidade tem a responsabilidade de promover e proteger tal patrimônio. Neste sentido, o futebol e seu acervo documental estariam incluídos nesta categorização, como patrimônio cultural imaterial. Mesmo que não existam políticas públicas que salvaguardem a memória e o patrimônio cultural dos esportes nacional, neste caso, o futebol, nada impede que os próprios clubes, as federações, a confederação de futebol, assumam o papel de documentar e preservar os acervos que tenham referências às práticas esportivas e às atividades administrativas que envolvem a gestão documental. Gusso e Tobar (2015, p. 521) entendem o futebol como “um epifenômeno social total aqui também discutido, não ficou alheio a essa discussão, especialmente quando é cada vez mais 55 Arquivos de esporte: MEMÓRIA & PATRIMÔNIO forte o entendimento do esporte – e do futebol – como um bem cultural e os estádios como lugares de memória coletiva”. Destacam que, mesmo o futebol ainda “não sendo reconhecido como patrimônio cultural brasileiro, a nível legislativo ou institucional, pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional)”, existe o reconhecimento da sociedade brasileira, “representação de brasilidade no exterior e, obviamente”, e por isso, é “parte da cultura contemporânea, possibilitando interessantes debates entre os mais diversos segmentos da sociedade e das ciências”. As informações contidas nos documentos esportivos poderá convencer a sociedade da importância de se manter viva a história de um clube de futebol. Teja e Santarelli (2005, p.8592), como exemplo, citam o Clube Lazio, da cidade de Roma, que “levantou novamente o interesse pelos arquivos de esporte e, em 1997, o trabalho reiniciou pela Intendência Arquivística de Puglia, que continuou então com a Superintendência do Lazio-Roma”. Tal constatação reforça que há um interesse crescente, mundialmente, pelos arquivos de esporte e pela sua pesquisa. Para não perdermos esses arquivos, tão importantes para a sociedade, é necessário um diálogo entre pesquisadores de diversas áreas, como Arquivologia, História, Ciências Sociais, entre outros, pois um trabalho interdisciplinar poderá produzir conhecimento acerca do tema, ao mesmo tempo em que a sociedade terá mais informação para que os vestígios da história do futebol não se percam. No Riograndense tal atividade precisa de um tempo para conscientizar a todos do clube. 56 Arquivos de esporte: MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Futebol na identidade cultural e memória de Santa Maria-RS Em Santa Maria o futebol chegou como uma prática inicial de lazer e logo foi aceito com grandes expectativas. Assim fundou-se o Riograndense, que faz parte da história e cultura da cidade. O clube teve seus momentos de glória e derrotas, mas o que é nítido em seus conselheiros são a perseverança e amor pelo Periquito, como é conhecido na cidade. Entretanto, sua história se mantém mais em memórias individuais do que em documentos e fotografias. Ao longo da sua trajetória, teve seus arquivos extraviados, ficando sem documentos na sede, os quais “fazem parte da sua história cultural”. Para Gagnon-Arguin (1998 apud CUnHa, 2011, p.21), “[...] a faceta cultural [ dos arquivos] está ligada ao conceito de memória”, ou seja, onde não existe arquivo, não existe memória. Para Alabarces (1998 Apud sCHiMiTz FiLHo 2005, p103), “há possibilidade de o esporte ser visto como cultura, privilegiando-se sua centralidade metafórica, seu renovado convite a sua persistência identificatória, transformando-o num objeto da vida cotidiana”. Schimitz Filho (2005, p.107) também coloca que “o jogo tem sua funcionalidade integra toda a ambientação cultural, adquirindo singularidades”, porque no futebol acontece a integração da comunidade com o time. O Riograndense Futebol Clube passou por gerações de torcedores e chegou ao século XXi com grandes histórias memorizadas pela torcida, dirigentes e conselheiros, porém seu arquivo contém poucas informações importantes do clube e isso faz com que perca um pouco de sua trajetória, o que não é empecilho para uma torcida apaixonada por seu time. Os arquivos podem mostrar muito sobre a instituição ao longo dos 57 Arquivos de esporte: MEMÓRIA & PATRIMÔNIO anos, por isso têm grande valor comprobatório para si mesmo e para a sociedade, pois Cunha (2011.p.12) coloca que “O estado-nação solidifica e associa cultura a objetos [..] e instituições encarregadas de preservar a dita memória coletiva sob a forma de patrimônio”. Assim, o Periquito que tem o reconhecimento da coletividade Santa-Mariense e agrega valor cultural e histórico. Os arquivos não são citados diretamente como cultura, mas são contextualizados na preservação da memória e da história de todas as entidades esportivas. Cunha (2011,p.12) coloca que “já com o surgimento de nação, manifestações simbólicas da cultura são “apropriadas” pelo Estado visando a formar uma identidade nacional". Como os clubes de futebol levam nações aos seus estádios para torcer pelo seu time, essa prática vem ser natural do ser humano torcedor. Seus arquivos também são importantes para que os mesmos sejam usados de forma cultural, inicialmente como direitos públicos. Conforme Shellemberg (2006.p.27), “Os documentos da sociedade antiga foram preservados principalmente e, talvez, sem a intenção para usos culturais”, aproximando uma nação com sua história. Para relacionar os arquivos com a cultura, Cunha (2011,p.21) diz que “a relação entre cultura e arquivos no referencial teórico da área ”arquivística” configura-se como elemento secundário e superficialmente explorado”, indicando que ainda precisamos nos aprofundar mais sobre os arquivos como cultura. Dessa forma, independente do suporte em que foi fixado à escrita, o documento serve para a instituição esportiva apresentar valores documentais perante a sociedade. O Riograndense faz parte da história e cultura da cidade, pois teve seu início em 1912, acompanhando o crescimento 58 Arquivos de esporte: MEMÓRIA & PATRIMÔNIO territorial de Santa Maria e aumentando os seus admiradores. Consequentemente, o Clube também produziu documentos de arquivo, mas, para que sejam acessados, o arquivista precisa entrar no mundo esportivo, conhecer a trajetória do Periquito – só assim será possível atender à comunidade, possibilitando a ela acessar a documentação. Os arquivos públicos existem com a função precípua de recolher, custodiar, preservar e organizar fundos documentais originados na área governamental, transferindo- lhes informações de modo a servir ao administrador, ao cidadão e ao historiador. Mas, para além dessa competência, que justifica e alimenta sua criação e desenvolvimento, cumpre-lhe ainda uma atividade que, embora secundária, é a que melhor pode desenhar aos seus contornos sociais, dando- lhe projeção na comunidade, trazendo-lhe a necessária dimensão popular e cultural que reforça e mantém seu objetivo primeiro. Trata-se de seus serviços editoriais, de difusão cultural e assistência educativa, Bellotto (2004 apud CUnHa, 2011, p.22). Os arquivos continuam sua função de passar informações aos usuários, pois através dessas atividades os torcedores, pesquisadores e dirigentes podem ter acesso a tudo que aconteceu no Clube e/ou até em cada partida disputada. Para Cunha (2011, p.27), “desse modo, a instituição e o conjunto documental seriam, assim como cultura, produtos coletivos da vida humana refletidos nos processos sociais que levaram a sua criação, institucionalização e adjacente desenvolvimento teórico e prático". Tendo sido o Riograndense criado pela comunidade, tornou-se de grande valor cultural para a mesma, pois teve origem num grupo de ferroviários que viu na sua criação a possibilidade de uma vida social e de lazer mais intensa. “Independente dos 59 Arquivos de esporte: MEMÓRIA & PATRIMÔNIO usuários ou organizações para quem os arquivos direcionem seus serviços acredita-se que eles (instituição e documento) consistem em reflexos culturais do seu contexto de produção e uso, tornando indissociável a cultura dos arquivos” (CUnHa 2011, p.30). Com isso, o acervo do Clube integra a cultura de Santa Maria e seus usuários tenderão a serem torcedores e pesquisadores. É fundamental a existência de arquivos para difundir à comunidade a história de toda a sua trajetória. O futebol é um esporte conhecido, famoso no Brasil e no mundo, e logo que crescemos já aprendemos algo sobre ele. Tem uma magnitude inexplicável, capaz de mover multidões aos estádios. Segundo D’Onofre, Barbosa e Fernandes (2009, p.11), “está inserido no nosso imaginário como fator de identidade cultural e é propagado de geração em geração, já constituindo dentro de nossa sociedade um valor histórico patrimonial". Neste caso o torcedor é o agente da identidade cultural. Em Santa Maria não foi diferente, pois o esporte já estava inserido naturalmente na cidade, e o Riograndense surgiu para fazer parte de sua história, integrando seu desenvolvimento aliado à criação de colégios e de um hospital para a comunidade da viação férrea. Todas essas instituições foram criadas e pensadas para o melhor atendimento das famílias dos ferroviários e o lazer das mesmas. O futebol se tornou um elemento identificador da cultura santa-mariense, interligando etnias e classes sociais, com um time com diversos jogadores de diferentes cores e regiões. De acordo com Maragon (2017, p.5), através da identificação do brasileiro com o futebol, culturalmente vão sendo enraizados hábitos, formas de se relacionar e de usar a linguagem, entre outros, que constituem a identidade da nossa nação: “Brasil, 60 Arquivos de esporte: MEMÓRIA & PATRIMÔNIO país do futebol, paixão nacional“. Assim, na cidade fundadora do Riograndense, o sentimento não poderia ser diferente de paixão. O Riograndense e sua trajetória em Santa Maria-RS A cidade de Santa Maria¨, no século XX, tornou-se destaque como polo ferroviário do estado, considerado um símbolo de modernidade. Um novo público surge na cidade, do aprendiz das ferrovias até os mais experientes apoiadores operacionais da viação férrea. Muito deste crescimento populacional deveu-se aos ferroviários que chegavam à cidade para trabalhar na via férrea que se instalava na cidade nos anos de 1905 e 1919, trazendo efeito positivo na economia e desenvolvimento cultural e social. Essa evolução histórica da cidade decorreu em função do transporte ferroviário que trazia mercadorias e passageiros (FLÔres, 2012, p.34). Com uma concentração alta de ferroviários, Santa Maria cresceu em número de habitantes e em quantidade de prédios. Flôres destaca que “em realidade, a ferrovia [assim como o Riograndense] movimentava praticamente toda a cidade, trazendo progresso econômico e desenvolvimento social e cultural” (2012, p.48). A primeira gestão do Riograndense Futebol Clube ficou a cargo de Álvaro A. Silva como presidente e de João Baptista Bolli como vice. Nas primeiras reuniões foi escolhido pela diretoria, entre duas propostas, o nome de Football Club Riograndense e de sua mascote um periquito, devido à localização do estádio e de seu nome “Estádio dos Eucaliptos". 61 Arquivos de esporte: MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Figura 2: Equipe principal no ano de 2001, uniforme verde e encarnado. Fonte: Blog gloriosoesmeraldino.com Figura 2: Mascote“Periquito” Fonte: http://reliquiasdofutebol.blogspot O clube pode ser considerado um dos mais importantes símbolos do apogeu da Viação Férrea e da Cidade de Santa Maria. Com essa responsabilidade, e com o passar dos anos, suas cores, que num primeiro momento eram branco e encarnado; e atualmente são verde e encarnado (aprovadas em 1914) receberam muito destaque. “A escolha do nome e das cores tinha influência cultural da forte polarização política existente no Rio Grande do Sul, que acontecia desde o império” Flôres (2012,p.50). O contexto citado pelo autor sobre a origem do esporte verificou-se da mesma forma em Santa Maria. Segundo Sobrinho (1989), “o futebol foi implantado pelos irmãos maristas do Colégio Santa Maria”, começando assim efetivamente a prática do esporte. No ano de 1912, a cidade contava com uma população pequena, mas já possuía a Viação Férrea do Rio Grande do Sul, responsável por um novo ciclo na sua economia, bem como pela 62 Arquivos de esporte: MEMÓRIA & PATRIMÔNIO parte esportiva. Mais tarde a Cooperativa dos Ferroviários da Viação forneceu seu mais importante cenário: a fundação do “Foot Ball Riograndense”. A criação do Clube foi relatada: Aos 7 dia do mês de maio de 1912, na residência do Sr Antônio G.Izaguirre e João Avancini, situada na rua Garibaldi “Vila Familiar”, apartamento 2. Estiveram presentes os Srs Antônio G.Izaguirre, João Avancini, Álvaro Silva, Armando F.Barra, Manuel Martins de Oliveira, Jorge Jung Filho, João Baptista Bolli e Affonso Togni. Considerado fundado o Clube (soBrinHo,1989,p.42). Após a fundação, começou a procura por sócios. A grande maioria de associados trabalhava na Ferrovia sendo o valor da mensalidade descontado direto na folha de pagamento. Nessa época já havia contato entre os ferroviários e o futebol, a prática já era de primeiro escalão. Os associados tinham que pagar em torno de “um mil réis” de mensalidade, mas todos os que se associaram até 30 de maio de 1912 eram considerados fundadores do clube e estavam isentos do pagamento. De acordo com Flôres (2012, p.47), “o Clube começou suas atividades no Bairro Itararé, típico das famílias dos trabalhadores ferroviários que foi secundado pela Chacará das Flores, que engloba a Vila Perpétuo Socorro”. Nesse local temos o berço de constituição e desenvolvimento do Riograndense. Para manter-se, o Clube necessitava de apoio e ajuda financeira para compra de materiais esportivos, comida e hospedagens. As viagens foram, por muitos anos, franqueadas pela Viação Férrea do Rio Grande do Sul (VFrgs). Com isso a relação entre viação férrea e o Riograndense era mútua, um alavancava o outro. 63 Arquivos de esporte: MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Entre as muitas partidas disputadas pelo Riograndense podemos citar várias com o Grêmio FBPa e Sport Club Internacional. Em 1921, conquistou o vice-campeonato estadual ao perder por 1X0 para o Grêmio, que se sagrou campeão. Nesse jogo, realizado em novembro daquele ano, a equipe de Santa Maria era formada por: Marcelino, Lino, Correa, Tealdo, Lauda, Ginitz, Salles, Willy, Lobo, Mosquito e Marques. Em sua campanha, o time ficou com 4 pontos (em 3 jogos, 2 vitórias,0 empates e 1 derrota; 6 gols). Conclusão Os documentos de um clube esportivo não se limitam só ao futebol, mas também às questões administrativas. Para manter sua história viva é importante preservá-los, com a preocupação de garantir que no futuro o usuário interno e externo tenha êxito em sua pesquisa. Tal preocupação deve passar pela administração do clube, que deverá ter uma gestão documental em sua organização, juntamente com arquivista - um profissional necessário para desempenhar essa função. O Clube não tem realizado a gestão desses documentos por conta do pouco espaço físico que tem e de gestões anteriores, que tomaram para si os documentos. O acervo é composto de documentação, em diversos suportes, que preservam a história do futebol, de esportes amadores e de toda e qualquer ação que preserve a trajetória desportiva regional e/ou nacional. O trabalho buscou preservar a história do Riograndense Futebol Clube, mostrando sua importância cultural e desportiva na cidade de Santa Maria através do acervo documental ao qual tivemos acesso, mostrando assim a realidade da instituição. 64 Arquivos de esporte: MEMÓRIA & PATRIMÔNIO A importância dada ao Riograndense Futebol Clube ocorreu por ter seu histórico já enraizado na cultura de Santa Maria. Através do futebol a instituição teve trajetórias gloriosas e também de derrotas, mas o foco do trabalho demonstra que esse Clube não pode simplesmente ser esquecido pela sociedade e tampouco por pesquisadores, pois é rico em história e títulos durante esses 105 anos de existência. Está pesquisa levará ao mesmo saber do significado do que representa um acervo que trata do arquivo voltado a sua história e trajetória com o devido cuidado com estes documentos. Assim foi possível mostrar o quanto este clube é importante para está cidade. Esta ênfase na preocupação com arquivos de esporte deu-se para que os clubes tenham grandes gestões do seu arquivo para que seus torcedores e visitantes possam assim conhecer sua história em diferentes suportes (fotografias, documentos e demais). Trazendo o seu público torcedor ou admirador para mais perto do clube, tendo também maiores visualizações e revivendo memórias de seus fundadores que começaram sua jornada na área esportiva. Referências BrasiL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Texto constitucional promulgado em 05 de outubro de 1988. Dispõe Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial. Da Educação, da Cultura e do Desporto. Bernardes, I; deLaTorre, H. Gestão Documental Aplicada. São Paulo: Arquivo Público do Estado de São Paulo, 2008 54p. CUnHa, C.S. Arquivos e cultura: análise da inserção teórica e prática na legislação. 2011.54f. Monografia (Especialização em Gestão em 65 Arquivos de esporte: MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Arquivos)- Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2011. D’onoFre, Dan Gabriel; BarBosa, Juliana Gomes; Fernandes Luciana. Futebol, o patrimônio imaterial da Cidade Maravilhosa: o carioca esua fome de gol. In: Revista Itinerarium v.2 2009 Ferreiraa, R. P. Futebol e ferrovia: o trem da industrialização que parte para o interior. sP/Campinas, 2008. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas. FLÔres.J.R.A. Riograndense Futebol Clube: No coração gaúcho, 100 anos de rubro-esmeraldino. Santa Maria, 2012,145p. gLorioso esMeraLdino. Disponível em: http://www.gloriosoesmeraldino.com.br/. Acesso em 10. out. 2016 grÊMio.http://www.gremio.net/page/view.aspx?i=memorial. Acesso em 10.mai.2016 gUss, Luana de Carvalho Silva; ToBar, Felipe Bertasso. O futebol e o discurso da patrimonialização cultural: consequências legais e econômicas em decorrência dos processos de tombamento e registros de entidades desportivas. In. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2015, vol. 7, n. 13, Jul.-Dez. p. 517-543. sanTos ,P.R. Criando uma Nova História: A Experiência do Centro de Memória Vasco da Gama. Acervo, [S.1.], v.27,n.2 jul-dez,p. 28-37,jun.2014. Disponível em: http://revista.arquivonacional.gov.br/ index.php/revistaacervo/article/view/436 .Acesso em: 23 Nov.2016. soBrinHo,H.L. Futebol e Reminiscência Relembrando o futebol do passado. Santa Maria, 1989.429p. sCHiMiTz Filho,A.G. A CPI do futebol: agendamento e processualidades sistêmicas. 2005.Tese (Ciência da Comunicação)- Universidade do Vale dos Sinos, Porto Alegre,rs,2005. sJÖBLoM, Kenth. Esportes e arquivos: um panorama internacional do debate. Acervo, [S.l.], v. 27, n. 2 jul-dez, p. 13-17, set. 2014. issn 22378723. Disponível em: http://revista.arquivonacional.gov.br/index. php/revistaacervo/article/view/434. Acesso em: 12 Jun. 2017. TiTTeLMeYer,A.R. Recuperação de fotografias de agremiações 66 Arquivos de esporte: MEMÓRIA & PATRIMÔNIO futebolísticas profissionais de Santa Maria-RS através do sistema gerenciador de conteúdo.2012.Dissertação(Mestrado em Patrimônio Cultural)-Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria,rs, 2012. 67 MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Leopoldo Gotuzzo e o Malg (1887-1986) Raquel Santos Schwonke 9 Introdução O trabalho, que ora apresentamos, sobre Leopoldo Gotuzzo e o Malg (1887-1986), faz parte de uma pesquisa maior, de doutorado, desenvolvida no Programa de Pós-graduação de Educação (PPge) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Busca refletir sobre a participação de Leopoldo Gotuzzo na constituição do Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo (Malg) da UFPel. São escassos os estudos disponíveis e sistematizados sobre o museu e sobre a vida e obra do artista. A pesquisa pode contribuir para a valorização do acervo, bem como para o conhecimento de Leopoldo Gotuzzo e da própria instituição. O recorte temporal definido compreende os anos de 1887 a 1986, sendo o primeiro de nascimento do artista e o seguinte da fundação do museu. O estudo está inserido no campo da História da Educação e foi analisado na perspectiva teórica da História Cultural. Dentre alguns referenciais teóricos trabalhados, destaca-se Burke (1992, 2004); Chartier (1990, 1992, 2004); Certeau (1982); Bourdieu (1986, 2003) e Abreu (1996). As fontes documentais escolhidas, escritas e iconográficas, fazem parte do acervo do Malg, entre elas: o Arquivo Histórico do Museu; o Arquivo Histórico da eBa; o Arquivo de Marina de Moraes Pires e a Coleção Leopoldo Gotuzzo. Essa coleção é composta por obras de arte, medalhas, mobiliário, documentos pessoais, 9. Doutora em Educação. Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Professora adjunta. Centro de Artes (UFPel). raquel.ufpel@gmail.com 68 Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986) MEMÓRIA & PATRIMÔNIO fotografias, livros e cartas. Para complementar o trabalho foram utilizadas fontes orais, conseguidas através de entrevistas. O método da análise documental baseou o trabalho de investigação, a partir de alguns questionamentos da pesquisa, tais como: o contexto que leva o artista a doar suas obras para que fosse constituído o museu; a trajetória de Gotuzzo; o lugar social/cultural que ocupava; as doações e sua implicação; a participação do artista na constituição do museu. A partir do corpus documental reunido foi possível organizar uma cronologia dos acontecimentos que antecederam a fundação do Malg, em 7 de novembro de 1986, e elencar o percurso artístico de Leopoldo Gotuzzo, a partir do que ele deixou escrito, desse modo foi sendo construída uma narrativa. Pode-se identificar, na ampla documentação, momentos importantes que colaboraram na gênese do museu, como as doações do artista à eBa, a participação da UFPel e da sociedade pelotense. O desenvolvimento da pesquisa foi possível porque o museu, um espaço de pesquisa ensino e extensão, ligado à UFPel, tem reunido e salvaguardado sua história, que inicia bem antes de 1986, ano de sua fundação. Pode-se dizer que Leopoldo Gotuzzo, desde seu nascimento em 1887, guardou e organizou seus documentos para a posteridade. Através deste precioso acervo, podemos ter conhecimento do tempo passado, do contexto social, da cultura e do ensino da Arte em Pelotas, o que justifica e possibilita esta e tantas outras pesquisas que venham a ser realizadas. A trajetória artística de Leopoldo Gotuzzo Para estudar a obra de Leopoldo Gotuzzo, há que considerar seu percurso artístico e sua trajetória. A partir de um critério 69 Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986) MEMÓRIA & PATRIMÔNIO cronológico, o ponto de partida será em Pelotas. Gotuzzo teve aulas de arte no curso particular de Desenho e Pintura de Frederico Trebbi, sendo colega de Marina de Moraes Pires, que mais tarde funda a Escola de Belas Artes. Como aluno de Trebbi, em 1903, expõe na Bibliotheca Pública Pelotense. Voltando no tempo, um pouco antes, aos 13 anos de idade, quando estudava na Escola São Luiz Gonzaga 10, recebeu uma distinção em desenho. De acordo com Amaral (2003, p. 21), a Escola em que Leopoldo Gotuzzo estudou – hoje Colégio La Salle Gonzaga – era “a priori, destinada aos filhos das famílias mais abastadas e/ou tradicionalmente católicas [...]”. Então Gotuzzo participava desse grupo social. Aproveitando a provada habilidade artística e as condições financeiras da família de Gotuzzo, ele escolhe seguir sua vocação e ser artista pintor 11. Sentia que, em Pelotas, não poderia ir além daquilo que já havia conseguido 12. Conforme sugestão de seu professor Trebbi e satisfazendo a vontade do rapaz, seus pais o mandaram para a Itália. Seu pai, Caetano Gotuzzo, italiano de Porto Fino, era proprietário do Hotel Aliança, estabelecimento importante na cidade. Sua mãe, Leopodina Netto Gotuzzo, pelotense, cuidava dos seis filhos. Em 1909, Gotuzzo chega a Roma e permanece por cinco anos, três anos e meio dos quais, em atelier particular, orientado pelo pintor francês Joseph Nöel. O artista referia-se ao mestre: “professor extraordinário que generosamente transmitia a seus alunos todos os 10. Hoje Colégio La Salle Gonzaga. Sobre o tema ver Amaral (2003). 11. Artista pintor é a profissão que consta no Titulo Eleitoral e na Certidão de Procuração que faz Leopoldo Gotuzzo a Jorge Bailly. Fonte: Acervo do Malg. 12. Excerto da carta de Leopoldo Gotuzzo, sem data e sem assinatura. Nº de inventário: 1485/2014. Acervo do Malg. 70 Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986) MEMÓRIA & PATRIMÔNIO seus conhecimentos, grande mestre” (Carta, escrita por Leopoldo Gotuzzo, sem data e sem assinatura. Acervo do Malg). Figura 1: Fotografia. Atelier do Professor Joseph Nöel. Roma. Fonte: Acervo do Malg. Data provável: 1909-1913 Segundo Gotuzzo, o período vivido na Itália (1909-1914) foi dedicado exclusivamente aos estudos. Suas primeiras influências 13 foram diante dos grandes mestres, admirando os murais de Ticiano e Tintoreto. A partir de 1915, começa a participar de salões. Primeiramente no Rio de Janeiro, onde recebe prêmios em anos consecutivos: medalha de bronze, medalha de prata e medalha de ouro. Depois de cinco anos em Roma, transfere-se para Madri, lá passa a admirar as obras de Diego Velasquez, Joaquín Sorolla e Ignacio Zuloaga. Nesse período envia obras para o Salão Oficial 13. Fonte: Boletim de Belas Artes. Nº 3. Março de 1945. Rio de Janeiro. Acervo da autora. 71 Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986) MEMÓRIA & PATRIMÔNIO de Belas Artes no Rio de Janeiro e obtém menção honrosa e medalha de bronze. Em 1916, o Almanach de Pelotas14 publica uma foto do artista e destaca: “o pintor Leopoldo Gotuzzo, premiado na exposição[...]” (aLManaCH, 1916, p. 231). Na mesma edição, ainda outras consagrações: “[...] Leopoldo conquistou os primeiros louros em sua carreira de artista, fadado a outros brilhantes triunfos” (aLManaCH, 1916, p. 231). Figura 2: Almanach de Pelotas. Retrato de Leopoldo Gotuzzo. Fonte: Acervo de Eduardo Arriada. Os almanaques no século XiX são relevantes como documentos culturais atrelados ao projeto civilizatório ocidental por serem veiculadores dos valores morais e comportamentais da modernidade (dUTra, 2005). Pelotas tinha o seu Almanach, e Gotuzzo foi inserido no contexto e consagrado. 14. Conforme LIMA; MICHELON; LESCHKO (2010), o Almanach de Pelotas é um periódico de publicação anual impresso por Florentino Paradeda nas OfficinasTypographicas do jornal pelotense Diário Popular. Começa a circular em 1913, e o seu último exemplar, disponível na Bibliotheca Pública Pelotense, é do ano de 1935. 72 Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986) MEMÓRIA & PATRIMÔNIO No final de 1918, Gotuzzo retorna ao Brasil e realiza exposições em vários estados. Em 1919, depois de uma exposição no Rio de Janeiro, adquire um atelier junto ao Bairro do Catete. Reside por toda sua vida na Capital da República. Integra-se à cidade rapidamente, através de sua arte. Em plena belle époque, período de mudança artístico, cultural e político do Brasil, Gotuzzo compra uma casa no Bairro Santa Teresa, que tinha o status de bairro nobre na época, sendo habitado pela classe alta, muitos deles imigrantes europeus. Nesta casa, um “prédio apalacetado assobradado 15”, na Rua Monte Alegre, nº 312, ele constrói um atelier e são criadas muitas de suas obras até a década de 1967, ano em que o imóvel é vendido. No Bairro Santa Teresa, Gotuzzo convive com membros da sociedade carioca e artistas. Frequentava a casa de Laurinda Santos Lobo, dama da sociedade carioca e herdeira de uma família de muitas posses, a qual tinha o hábito de realizar saraus. Era um dos pontos mais badalados da vida cultural carioca, local de festas que reunia famosos, como Villa-Lobos e Tarsila do Amaral, bem como os irmãos Leopoldo e Humberto Gotuzzo. Leopoldo, mais do que assíduo frequentador dos salões, era amigo de Laurinda e, conforme Machado (2002, p. 125), “era um dos protegés mais queridos de Madame Santos Lobo”. Na residência de Madame Santos Lobo havia dois retratos feitos por Gotuzzo. Em 1949, é inaugurada a Escola de Belas Artes de Pelotas (eBa). A diretora, Marina de Moraes Pires, convida Leopoldo Gotuzzo para ser o Patrono. Ele sente-se honrado com a homenagem e passa a auxiliar a escola. Mesmo morando no Rio de Janeiro, sempre que vinha à cidade visitava a escola, ministrava 15. Fonte: Anúncio número 0770 da casa de Leilão Palladio, no Rio de Janeiro, de abril 1935. Fonte: Acervo da autora. 73 Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986) MEMÓRIA & PATRIMÔNIO aulas de desenho para os alunos, manteve um elo com a instituição. Ao ser convidado para ser professor na Escola ele recusa. Ele preferiu ser pintor e não professor. Após essa breve trajetória artística de Leopoldo Gotuzzo, busca-se contextualizar a história da instituição museal Malg. A criação do museu Os primeiros passos para a criação do museu surgem na Escola de Belas Artes em Pelotas, conhecida como eBa, uma escola de nível superior em arte, particular e gratuita, dirigida por Marina de Moraes Pires, que era amiga e colega de Leopoldo Gotuzzo desde as aulas de pintura com Frederico Trebbi, em 1902. Leopoldo Gotuzzo morava no Rio de Janeiro, em uma de suas vindas para uma exposição em Pelotas, em 1949, Marina Pires o convida para ser o Patrono da eBa. Ao aceitar, ele faz a doação de uma de suas obras, perante os alunos, professores membros da sociedade pelotense e imprensa local - “A Espanhola”, uma pintura em óleo sobre tela. Este é o seu primeiro presente para a instituição e que marca o início da futura coleção Leopoldo Gotuzzo. Alguns trechos de reportagens veiculadas pelo jornal pelotense Diário Popular, do mês de julho de 1949, referentes à doação, definem como o artista era visto no meio social de Pelotas, e a importância dada à Arte e à eBa naquele momento. O título da matéria é: “Leopoldo Gotuzzo é recebido na Escola de Belas Artes”: [...]Gotuzzo, o laureado pintor conterrâneo, ilustre patrono, doou uma de suas melhores telas – a qual poderá ser admirada na vitrine das Casas Levy. A sessão foi encerrada 74 Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986) MEMÓRIA & PATRIMÔNIO sob uma vibrante salva de palmas, repetição aquela com que ele fora saudado ao penetrar no recinto. Foi registrado pelo fotógrafo o momento em que Leopoldo Gotuzzo, rodeado pelas alunas, em uma das salas da Escola, exibia a obra doada (Diário Popular, 12 de julho de 1949). Figura 3: Pintura. A Espanhola. Ano 1942: técnica: pintura, óleo sobre tela. Dimensões: 56 x 46cm. Fonte: Acervo do Malg O fotógrafo Ildefonso Robles registra o momento: Gotuzzo, na sala de aula, sentado entre os alunos, em pé o professor italiano Aldo Locatelli16. Nesse período, a eBa estava provisoriamente instalada na Bibliotheca Pública Pelotense. Figura 4: Leopoldo Gotuzzo com Aldo Locatelli e os alunos da EBA. Fonte: Acervo do Malg 16. Pintor e professor italiano. 75 Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986) MEMÓRIA & PATRIMÔNIO As notícias publicadas no jornal do Patrono da Escola de Belas Artes reforçam a imagem de Leopoldo Gotuzzo como importante artista, legitimando a sua arte, dando-lhe reconhecimento social e agregando valor também à nova escola. Em 1955, aos 68 anos de idade, Leopoldo Gotuzzo, presenteia novamente a eBa. Agora são 16 obras. Junto à doação, uma carta, onde descreve o título das obras, importância delas, períodos e premiações. O artista estabelece que as mesmas devem ser guardadas e cuidadas em um “pequeno Museu Gotuzzo”, quando a Escola tenha condições de criá-lo. Nessa concepção de ensino, a sua arte seria modelar e seguida pela instituição. Marina de Moraes Pires o apoia plenamente. Foi registrado em atas da eBa, deste ano de 1955, o “Museu Gotuzzo”. A Escola de Belas Artes criou, em suas dependências, o Salão Leopoldo Gotuzzo para guardar as obras recebidas. Gotuzzo, ao saber que suas obras estavam em um salão, diz: “salão de honra não é museu 17”. Dessa forma, reforça sua intencionalidade de querer um espaço museológico que recebesse seu nome e que servisse à sua memória. Assim, surgem questões dos confrontos entre um acervo deixado pelo artista, com o propósito estabelecido de ser memorável, e o contexto da instituição na cidade. A reflexão foi motivada pela circunstância na qual o Malg surge e no contexto indissociável de uma sociedade que se deseja afirmar memorável e memoriosa. Ao confrontar diversos documentos, o depoimento de Luciana Araujo Renck Reis colaborou para reforçar que havia o interesse da escola de ter um museu, da própria diretora Marina Pires e também da sociedade pelotense. 17. Relato de Luciana Reis em conversa com o artista. Fonte: audiovisual acervo do Malg, 2008. 76 Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986) MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Luciana Reis era aluna da eBa, amiga de Gotuzzo e sobrinha de Marina Pires. Figura 5: Montagem da autora com as obras de Leopoldo Gotuzzo, referentes à doação de 1955. Fonte: Acervo do Malg 77 Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986) MEMÓRIA & PATRIMÔNIO A análise, em relação à temática das obras doadas, consta que não há quadros com flores. A seleção do artista inclui somente paisagens, figuras, nus e uma natureza morta: “Os pêssegos”. É possível elencar que algumas das obras que fazem parte desse conjunto haviam participado de outras exposições e foram premiadas, conforme catálogo do acervo do Malg. Para refletir sobre a atuação de Leopoldo Gotuzzo, fica claro que o que doa é muito mais do que simples obras de arte. Cada uma delas representa um período de sua vida, um local, as premiações, erros e acertos, saudades, como ele mesmo diz ao descrever cada uma das obras que incluem essa primeira doação. O pintor, mesmo tendo doado a coleção voluntariamente, sente-se triste, pois cada quadro tem uma história. Estava consciente de que sua carreira como artista estava definida, tendo em vista que iniciou seu trabalho independente em Madri, no ano de 1914. O período mais produtivo do seu percurso já se havia dado. Conforme Candau (2011), as coleções funcionam como extensões de memória. Se pensarmos no caso de uma coleção biográfica, ela pode ser considerada como extensões da própria pessoa. Preservar a coleção seria o mesmo que preservar e valorizar o seu autor, por isso Gotuzzo almeja o museu. Trazendo as ideias do autor para a pesquisa, posso dizer que Gotuzzo doa uma parte de si, mas não sem intenção. Conclusão A pesquisa sobre Leopoldo Gotuzzo e o Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, da Universidade Federal de Pelotas, buscou fazer uma reflexão sobre o artista e sua influência na formação da 78 Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986) MEMÓRIA & PATRIMÔNIO instituição. Pautou-se em apresentar os primeiros resultados do trabalho. O amplo corpus documental permitiu fazer um entrecruzamento de informações e estabelecer um panorama a partir de uma cronologia. Desde Pelotas, início da carreira de Leopoldo Gotuzzo na Escola Gonzaga, às aulas particulares de Desenho e Pintura de Frederico Trebbi até sua ida para Roma, Madri, Paris e Rio de Janeiro, suas premiações, reconhecimento de seu investimento com a arte. Com isso, firma-se a ideia de projeção nacional e internacional. A gênese do Malg está relacionada diretamente a Leopoldo Gotuzzo, no ano de 1955, quando ele doa 16 obras para a eBa com o objetivo que fossem cuidadas pelo maior tempo possível e expostas em um espaço museológico, que não existia na escola. As obras ficaram espalhadas pelas salas de aula. Inicia-se nesse período a formação da coleção, a primeira do futuro museu. O artista deixa em testamento que doará o resto que sobrar de sua produção ao morrer. Insiste por diversas vezes que quer ver suas obras em um museu com seu nome. O contexto histórico, social e político colaboraram para a abertura do museu e a ideia de sua criação foi de Leopoldo Gotuzzo. Em Pelotas aceitava-se a sua notoriedade em face de sucessos expressivos na sua carreira. Tinha-se um acervo, havia uma escola de arte, amigos eram dirigentes da eBa e da UFPel, a sociedade pelotense apoiou e concretizou sua ideia. Ao doar suas obras para a formação de um museu, doa muito mais do que simples objetos, ele doa parte de si, de seu trabalho, construído durante toda sua vida. O referencial teórico, baseado na História Cultural, possibilitou analisar e entender os mecanismos de construção de memória, do sujeito, no caso o artista, que faz uma construção 79 Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986) MEMÓRIA & PATRIMÔNIO de si, de como ele queria ser lembrado, e nunca esquecido. Foi possível perceber que há outros fatores no simples gesto de doação, que em um primeiro momento não eram visíveis. A coleção doada é significativa por ter sido formada pelo próprio autor, intencionalmente. O conjunto volumoso do acervo produzido exibe os diversos momentos da vida do artista, constituindo o discurso de Gotuzzo a respeito de seu próprio trabalho. Seu gesto interfere no ensino de Arte na Escola de Belas Artes em Pelotas e no modelo em que o museu se constituiu. Referências aBreU, Regina. A fabricação do Imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco: Lapa, 1996. aBreU, Regina; CHagas, Mário. Memória e patrimônio – ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Uni-rio: FaPerJ: dP&A Editora, 2003. aLManaCH de Pelotas. (Anno iV): Ferreira e C. Officinas Typographicas do Jornal Diário Popular. Pelotas, 1916. aMaraL, Giana L. Gatos pelados e galinhas gordas: desdobramentos da educação laica e da educação católica em Pelotas (décadas de 1930 a 1960). 2003. 338 f. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003. BoUrdieU, Pierre. A ilusão biográfica. In: aMado, Janaina e Ferreira, Marieta de Moraes (Org.) Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, pp.183-191, 1986. BoUrdieU, Pierre. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Zouk, 2003. BUrKe, Peter. A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo, Editora da UnesP, 1992. BUrKe, Peter. Testemunha ocular. História e Imagem. Bauru, sP: edUsC, 2004. CandaU, Joel. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2011. 80 Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986) MEMÓRIA & PATRIMÔNIO CerTeaU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. CerTeaU, Michel de. A Escrita da História. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. CHarTier, Roger. Conversa com Roger Chartier. Entrevista concedida a Isabel Lustosa, 2004. Disponível em:<https://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2479,1.shl>. Acesso em: 15 abr. 2017. CHarTier, Roger. História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. CHarTier, Roger. Textos, impressão e leitura. In: HUnT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. CHarTier, Roger. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. dUTra, Eliane de Freitas. Rebeldes literários da República: história e identidade nacional do Almanach Brasileiro Garnier (1913-1914). Belo Horizonte: Editora UFMg, 2005. MaCHado, Hilda. Laurinda Santos Lobo: mecenas, artistas e outros marginais em Santa Teresa. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002. MagaLHÃes, Clarice Rego. A Escola de Belas Artes de Pelotas: da Fundação à Federalização (1949/1972) - uma contribuição para a História da Educação em Pelotas. 2008. 107 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2008. MagaLHÃes, Clarice Rego. A Escola de Belas Artes de Pelotas (1949-1973) -Trajetória institucional e papel na História da Arte. 2013. 316 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2012. 81 MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Patrimônio e Musealização Virtualizada Valdir Morigi 18 Rafael Chaves 19 Introdução A revolução tecnoinformacional e comunicacional possibilitou a sociedade em rede e com ela sugiram as mídias sociais, diferentes dispositivos comunicacionais virtuais (blogs, Instagram, sites de compartilhamento, fóruns, etc.). Essa revolução comunicacional museológica começa a traçar diretamente com os museus na rede, a criação de sites e plataformas museais ganham um novo fazer, com propostas de interlocuções diferentes. As mídias sociais ampliaram as possibilidades de interação e participação do público com as instituições museais virtualizadas em diferentes âmbitos. Os ambientes virtuais possibilitam acessibilidade e a difusão de informações sobre o patrimônio cultural, constituindo os novos suportes da memória no ciberespaço. Entretanto, os usos das mídias sociais pelas instituições museológicas são recentes. As instituições museológicas começam a utilizar as mídias sociais para divulgações de suas exposições e horários 18. Universidade Federal do Rio Grande do Sul- UFRGS, Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação - FABICO. Departamento de Ciências da Informação. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP. Professor titular do DCI/FABICO/UFRGS e do Programa de Pós-graduação em Museologia e Patrimônio (PPGMUSPA)/UFRGS. E-mail: valdir.morigi@gmail.com 19. Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS, Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação- FABICO. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Museologia e Patrimônio (PPGMUSPA)/UFRGS. Email: rafateixeirachaves@gmail.com 82 Patrimônio e Musealização Virtualizada MEMÓRIA & PATRIMÔNIO de funcionamentos. As novas tecnologias revelam às instituições museais novas possibilidades de aumentar o seu contato com os visitantes, a partir da velocidade de comunicação no ciberespaço. Com essa visão, cada vez mais os museus buscam investir nas ferramentas virtuais, de forma a aumentar a sua conexão com os visitantes, tendo em vista que estes podem acessar a instituição em tempo real e de qualquer lugar, desde que estejam conectados à internet. Com as transformações nos espaços museológicos na contemporaneidade, e com a disseminação das informações na internet, cada dia mais utilizada, seja por dispositivos móveis ou por outros dispositivos, a comunicação virtual vem tomando conta dos espaços museológicos. As tecnologias info-comunicacionais trouxeram mudanças na forma de perceber os espaços museais, alterando o próprio conceito de museu no mundo contemporâneo a partir da constituição dos museus virtuais. Nesse sentido, levantamos as seguintes indagações: A partir das plataformas digitais e do compartilhamento de informações como se configuram os novos patrimônios a partir dos museus e dos acervos virtualizados? As mídias sociais podem aproximar os visitantes dos museus através da comunicação museológica. O museu virtual, através dos usos das tecnologias digitais, realiza a mediação entre os objetos musealizados difundidos no ambiente virtual, possibilitando que cada visitante faça a sua interpretação das informações sobre os acervos documentais da instituição. Nesse processo, a comunicação museológica auxilia na apropriação das informações ao mesmo tempo em que possibilita maior visibilidade ao patrimônio documental que está sob o seu domínio. 83 Patrimônio e Musealização Virtualizada MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Os museus virtuais na rede, a partir das plataformas oficiais trazem novas práticas ao fazer museológico, pois permitem novas interlocuções com os usuários e a sociedade. O compartilhamento de informações digitalizadas em rede permite o acesso e também a preservação dos documentos originais, pois pode diminuir a manipulação dos objetos. Assim, os usos das mídias sociais pelos museus, auxiliam na acessibilidade das informações sobre os acervos ao mesmo tempo que possibilitam mostrar transparência nas ações museológicas e democratização destas instituições. Museus Virtualizados As formas de comunicação nos museus, ao decorrer do tempo, vêm passando por constantes mudanças. Os museus passam a utilizar da digitalização de seus acervos, e compartilhando nas suas mídias, possibilitando a quebra do limite geográfico, tornando o acervo acessível. Apresentando um novo cenário museal, onde o acervo virtual se torna uma fonte de representação das instituições museais. No presente, com a perspectiva da museologia crítica, com os usos das tecnologias de informação e comunicação aumentou o número de pessoas conectadas na rede, possibilitando uma aproximação dos cidadãos com os museus. A cultura do compartilhamento auxilia na interação dos visitantes com os museus. Entretanto, o uso das mídias sociais nas instituições museológicas brasileiras é algo recente e as discussões sobre o tema precisam avançar. Os gestores das instituições começam a rever seus olhares em relação aos sites de museus, inicialmente como um facilitador de comunicação de eventuais informações, 84 Patrimônio e Musealização Virtualizada MEMÓRIA & PATRIMÔNIO tais como: como informes de data, local de abertura de exposições, notícias, para um novo formato de site de museu. O que significa que o objeto museal deverá ser compreendido pela gênese das teias de relações e, não apenas como um produto que por si só, representa um espaço tempo histórico definido a priori por seus aspectos físicos que são determinados numa ação documental que busca resgatar ‘informações’ sobre este bem cultural. (nasCiMenTo, 1994, p.30) Os museus virtualizados, são instituições virtuais que se apropriam das redes sociais como suporte de interação e disseminação do acervo museológico digital. Para Carvalho (2008) a evolução da comunicação dos museus na Internet é atualizada também por análise de artigos da mídia impressa e online. Segundo a autora, o museu virtual é aquele construído sem equivalência no espaço físico, com obras criadas digitalmente, não sendo substituto equivalente ou evolução dos primeiros. A mudança paradigmática acerca dos formatos que museus assumem, questiona esses espaços como apenas locais para contemplação. Ele é, acima de tudo, um espaço de possibilita questionamentos e reflexões sobre a vida e o cotidiano. O museu virtual pode se tornar um local de reflexão e discussão acerca de objetos musealizados na virtualidade à medida em que ele incorpora novas dinâmicas que vão além da preservação dos objetos. Os museus virtuais na rede, a partir das plataformas oficiais trazem novas práticas ao fazer museológico, pois possibilitam novas interlocuções com os usuários e a sociedade. “O patrimônio, portanto, deve ser compreendido como o conjunto de 85 Patrimônio e Musealização Virtualizada MEMÓRIA & PATRIMÔNIO informações que caracterizam as ordens de significado dentro de um grupo, povo ou nação”. (dodeBei, 2005, p. 47) Assim, patrimônio digital pode ser considerado tanto as digitalizações de acervos documentais, registros fotográficos digitais de monumentos e patrimônios, como as próprias bases de dados que armazenam e fazem a gestão desses materiais. Na atualidade, com as mídias sociais, a documentação museológica se torna um potencial vetor entre o material e o imaterial, pois a digitalização dos acervos, passam a ter outro valor, não somente o de salvaguardar, mas de comunicar. Os museus passam a ver as mídias sociais como um local de cativar o público sem distinção geográfica, tornando o acervo acessível a todos e não restrito em quatro paredes. As mídias sociais possibilitam uma cultura de compartilhamentos, tornando dentro da plataforma digital uma experimentação de uso para museus. O uso das mídias sociais nos museus traz impactos no fazer social museológico, pois os objetos deixam de ser o centro das atenções, em contrapartida as ideias e sua fruição passam a ser o centro da instituição e o público deixa de ser o expectador para ser participante ativo. Assim como profissionais de museus, há um novo olhar sobre o fazer museológico a partir dos acervos na rede, com isso vários museus brasileiros estão adotando este novo modo de comunicar. Portanto, a comunicação se tornou mais ampla e com espaço para que o visitante tenha mais interação no feedback. A projeção do objeto museal virtualizado expõe a noção de valor e de conservação do patrimônio ressoando o sentido desse tipo de comunicação, através da qual o público se torna um consumidor digital, usando a interação na rede para suas apropriações. 86 Patrimônio e Musealização Virtualizada MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Pensar a comunicação em museus é refletir e questionar o potencial do uso de mídias sociais como ferramentas de conexão entre o museu e o público a partir do objeto musealizado. Nesse novo cenário, os museus utilizam as mídias sociais como um viés para comunicação, pois enfrentam os resquícios do paradigma anterior que distanciava o museu do visitante - nesse novo modelo o público se torna parte do processo. O processo museal ocorre através de etapas de formação de acervo, pesquisa, salvaguarda pelos processos de conservação e documentação museológica, comunicação por meios de exposição e ações educativas para o patrimônio cultural. A exposição é o resultado da soma de diferentes métodos museológicos que dão fruto a ela. É uma forma de comunicação do que está sendo exposto, onde os museus expõem objetos materializados, seguindo o modelo europeu, no qual os objetos são geralmente o centro da exposição. Assim, é na exposição que o visitante tem a oportunidade de conhecer o processo museológico em seus conceitos básicos como a aquisição, a documentação, a conservação e a comunicação. Esse fenômeno museológico é um grande desafio, pois é necessário conhecer as potencialidades das formas de comunicação museológica em rede, adotando terminologias para que os usuários tenham compreensão desse novo fazer museológico. Nos Museus a comunicação é feita quando o emissor codifica para o receptor, sendo comunicação museológica virtual ou não, ela tem que ser convidativa, que faça o visitante ficar por alguns segundos contemplando (em síntese, procura-se a interação entre a mensagem expositiva e o visitante, para que a exposição permita uma experiência de apropriação de conhecimento) (CUrY, 2010, p.39). 87 Patrimônio e Musealização Virtualizada MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Os museus virtualizados, portanto, são potência de patrimonialização. Em sua história, a comunicação com público estabelecia uma relação de receptor passivo da informação e a instituição o transmissor que já apresentava um código pronto para o acesso, sem que o público pudesse passar suas impressões sobre os acervos. Segundo Horta (1997, p.112), cabe ao museólogo desconstruir, decodificar e desmistificar os elementos da teia de relações de significados, que configuram o espaço e o objeto museal, “de modo a levar o público a perceber esses inúmeros sentidos deles decorrentes”. Faz-se importante colocar que o trabalho do museólogo transcende este “espaço museal”, atingindo as próprias práticas sociais e culturais, pois é por um lado dos artefatos e por outro da ação social que as formas culturais encontram articulação. Dessa forma, a expografia e a comunicação museológica, pelo seu caráter de informação do conteúdo e de importância comunicacional, permitem que esse estudo sobre os museus e as redes sociais seja concebido como fonte constituidora de novas sociabilidades. A exposição passou de ser realizada em um ambiente estático, pois na rede a exposição se torna mais próxima do público, com isto quero dizer que, no ambiente virtual, os visitantes se sentem mais livres para experimentar diferentes níveis de interação. Não só em uma curtida na página da instituição, mas se sentindo na instituição, ao fazer um comentário sobre o acervo, no envio de acervo digital, familiarizando-se com o mesmo, além de, como se notou na pesquisa, muitas vezes tornar-se, além de virtual, um visitante em potencial em museus físicos. 88 Patrimônio e Musealização Virtualizada MEMÓRIA & PATRIMÔNIO ‘Museu Virtual’ é uma poderosa metáfora que pode ser aplicada para a apresentação de atividade criativa assim como repositório de conhecimento. Certamente é no melhor interesse da comunidade museológica estabelecida aproveitar este potencial em vez de travá- lo (KarP, 2004). Pensar a comunicação em museus é refletir e questionar o potencial do uso de mídias sociais como ferramentas de conexão entre eles e o público a partir do objeto musealizado. Nesse novo cenário, os museus utilizam as mídias sociais como um viés para comunicação, pois enfrentam os resquícios do paradigma anterior que o distanciava do visitante. Nesse novo modelo o público se torna parte do processo. Assim, a rede deve ser aproveitada para estabelecer relações sociais através da virtualidade, musealizando em novos formatos e novas ferramentas. Os museus virtuais são potências de comunicação museológica de comunicar, expor e salvaguardar. Conclusão É possível identificar que a cultura do compartilhamento, através de plataformas digitais museológicas, traduz uma nova forma de mediação entre instituição museal virtualizada e o público usuário das mídias sociais. No cenário atual se configuram os novos patrimônios digitais, criando uma relação mais próxima com seu público. A divulgação do acervo virtualizado gera novos arranjos através dos níveis de interações disponíveis na rede, como comentários, curtidas, compartilhamentos. Isso possibilita aos visitantes participarem da construção dos conteúdos através de suas experiências de vida, o que pode gerar laços sociais via a virtualidade. 89 Patrimônio e Musealização Virtualizada MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Os acervos das instituições museológicas virtualizadas passam por uma reprodução que possibilitam aos objetos saírem da sua materialidade, ainda que a materialidade objetal seja forte nos museus tradicionais. Na era da conectividade, eles passam a serem representados digitalmente, constituindo os novos patrimônios culturais digitais. Assim, os museus virtuais podem democratizar os seus acervos e torná-los acessíveis para toda a população usuária das mídias. A virtualidade passa a se constituir em um suporte, tornando o fazer museológico mais dinâmico. O compartilhamento nas mídias sociais das instituições museais possibilita uma maior aproximação dos usuários com o museu. Além disso, possibilita que as instituições museais conheçam quem são seus públicos virtuais. O compartilhamento de informações digitalizadas em rede permite a preservação dos documentos originais, pois pode diminuir a manipulação dos objetos. Assim, o uso das mídias sociais pelos museus auxilia na acessibilidade das informações sobre os acervos ao mesmo tempo em que possibilita mostrar transparência nas ações museológicas e democratização dessas instituições. Na cibercultura, os territórios e o cotidiano urbano se reconfiguram a partir da emergência de novos formatos comunicacionais, que passam a incluir as tecnologias sem fio, o espaço conectado e virtual e as redes e relações cada vez mais digitalizadas, “as cidades se desenvolvem como sociedades em rede” (LÉVY e LeMos, 2010, p.12). Os museus passam a utilizar da digitalização de seus acervos, compartilhando nas suas mídias, possibilitando a quebra do limite geográfico, tornando o acervo virtual acessível. Nesse novo cenário, os acervos virtuais se tornam uma fonte de 90 Patrimônio e Musealização Virtualizada MEMÓRIA & PATRIMÔNIO representação das instituições museais virtualizadas. Entretanto, novos estudos fazem-se necessários para desvendar os impactos das tecnologias de informação e comunicação nos espaços museais. O museu virtual, através dos usos das tecnologias digitais, afeta as práticas e o fazer museológico, proporcionado novas interlocuções com os usuários e a sociedade. Além disso, o uso das mídias sociais pelos museus auxilia na acessibilidade das informações sobre os acervos ao mesmo tempo em que possibilita a transparência nas ações museológicas e democratização dessas instituições. A mediação entre os objetos musealizados difundidos no ambiente virtual possibilita que cada visitante faça a sua interpretação das informações sobre os acervos documentais da instituição. Nesse processo, as TiCs auxiliam na visibilidade do patrimônio. Entretanto, são necessárias novas pesquisas sobre os impactos das tecnologias de informação e comunicação nos museus. Referências CarVaLHo, Rosane Maria Rocha de. Comunicação e informação de museus na Internet e o visitante virtual. In: MUSEOLOGIA E PATRIMÔNIO - vol. I no 1 - jul/dez de 2008. Revista Eletrônica do Programa de Pós-graduação em Museologia e Patrimônio – PPg-PMUs Unirio - MasT. 2008. Disponível em: <http://revistamuseologiaepatrimonio.mast. br/index. php/ppgpmus.> Acesso em: 17.01.2019 ConseLHo internacional de Museus (iCoM). MESA-REDONDA DE SANTIAGO DO CHILE. Santiago do Chile: iCoM,1 972. CUrY, Marilia, Xavier. Comunicação e pesquisa de recepção: uma perspectiva teórica de educação patrimonial. In: soares, a,l.r, e Klamt, s.c 91 Patrimônio e Musealização Virtualizada MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Brasília, v3, n1, p. 27-46, jan/dez. 2010. Disponível em: http://docplayer. com.br/8242943-Declaracao-unesco-ubc-vancouver-a-memoria-domundo-na-era-digital-digitalizacao-e-preservacao.html . Acesso em: 12/07/2018. HenriQUes, Rosali. Museus virtuais e cibermuseus: a Internet e os museus. Lisboa. 2004. p. 11. Disponível em: http://www.museudapessoa.net/public/editor/museus_virtuais_e_cibermuseus_-_a_internet_e_os_museus.pdf. Acesso em:12/07/2018. HorTa. Maria de Lourdes Parreiras. I Seminário sobre Museus-casas. In: Anais do I seminário sobre museus-casas. Rio de Janeiro, rJ, 1997. JULiÃo, Letícia. Pesquisa histórica no museu. In: Caderno de diretrizes museológicas 1. Brasília: Ministério da Cultura, iPHan, Departamento de Museus e Centros Culturais de Belo Horizonte, 2006. KarP, Gary. A Legitimidade do Museu Virtual. In: ICOM News, Paris, v. 57, n. 3, 2004. LÉVY, Pierre. A Inteligência Coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. 6.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2010. Monique B. Magaldi. Navegando no Museu Virtual: um olhar sobre formas criativas de manifestação do fenômeno Museu. 2010 perspectiva. nasCiMenTo, Rosana. O Objeto museal como objeto de conhecimento. In: Cadernos de Sociomuseologia. Lisboa: v. 3, n. 3, 1994. Disponível em: http://revistas.ulusofona.pt/index. php/cadernosociomuseologia/ article/view/. Acesso em: 14/06/2018. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UnesCo). Carta sobre a Preservação do Patrimônio Digital: UnesCo, 2003. Disponível em: http://www2.dem.inpe.br/ijar/UnesCoCartaPreservacaoDigital_PTfinal.pdf. Pierre, Lévy. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 2010. Pierre, Lévy. O Que é Virtual. São Paulo: Editora 34, 2011. PinHeiro, Marcos José. Museu, Memória e esquecimento: um projeto da modernidade. Rio de Janeiro: E-Papers, 2004. Piza, Mariana Vassallo. O fenômeno Instagram: considerações sob a perspectiva tecnológica. Disponível em: <http://bdm.unb.br/bitstream/10483/3243/1/2012_MarianaVassalloPiza.pdf>. Acesso em: 09 jul. 92 Patrimônio e Musealização Virtualizada MEMÓRIA & PATRIMÔNIO 2015, 20:15. PoMian, Krzysztof. Coleção. In: Enciclopédia Einaudi, volume 1, Memória História. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1997. 93 MEMÓRIA & EDUCAÇÃO MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Extensão universitária: conexões com a comunidade (Santa Maria - RS) Roselâine Casanova Corrêa 20 A História de Santa Maria é comumente conhecida pela produção de dois memorialistas: João Belém (2001) e Romeu Beltrão (2012). Ambos sistematizaram por escrito as primeiras versões da história local. Antes, porém, João Cezimbra Jacques havia escrito o Conto Indígena de Imembuí (1912), que se transformou no mito fundador do povoado. Na construção da identidade da cidade mesclam-se mito, história, etnias, hábitos, religiões, culinária, festas, profissões, valores. Em síntese, Santa Maria é marcada por particularidades que tornam difícil uma afirmação efetiva acerca de seu processo histórico, isso tanto sob a perspectiva acadêmica quanto pela mobilidade e instabilidade de sua ocupação. O Projeto de Extensão Santa Maria da Boca do Monte: tempos de memória (1858-2018) possui como objetivo geral recuperar a história sociocultural do município, atualizando sua formação política em alusão aos 160 anos de emancipação, a ser comemorado em 2018. Dos objetivos específicos priorizar-se-á a valoração dos campos de memória; a problematização da temporalidade, expressa nas artes visuais, na literatura, na religiosidade, na arquitetura, na historiografia, no teatro, no vestuário, na culinária, na música, no mobiliário e nos espaços de sociabilidade. A partir da recuperação de aspectos socioculturais de Santa Maria (rs), 20. Mestre em História. Professora da Universidade Franciscana (UFN). E-mail: casanova@ufn.edu.br 95 Extensão universitária MEMÓRIA & PATRIMÔNIO se espera que a comunidade local e acadêmica possa refletir e ressignificar esses elementos, tendo presente suas demandas contemporâneas. Do ponto de vista da historiografia local, a origem e a organização do povoado estão vinculadas à chegada das tropas da Comissão Demarcadora de fronteiras (1797) e, posteriormente, à Igreja Católica. Em 1804, já um aldeamento com população tanto lusitana quanto indígena, o local ganhou a condição de Oratório; em 1814, a de Capela Curada; em 1837, a de Freguesia. Salienta-se que, até então, essas terminologias estavam ligadas à evolução político-administrativa de um povoado. Em 1857, foi elevada à Vila e, no ano seguinte, à categoria de município. A cerimônia de sua oficialização ocorreu em 17 de maio de 1858, com o Te-Deum de ação de graças pelo Padre Antônio Gomes Coelho do Valle (rUBerT, 1963). Para Beltrão (1979), Santa Maria possui uma matriz luso-brasileira (tendo em vista, sobretudo, o assentamento da Comissão Mista Demarcadora, em 1797, em São Pedro do Passo dos Ferreiros). Embora tenha significativa relevância tanto a presença de militares na região quanto a doação de sesmarias a vários proprietários, pesquisas mais recentes dão conta de uma população diversa, “típica de região de fronteira em construção [...], que atrairá [...] colonos contrabandistas, negros fujões, índios mais ou menos aculturados ao mundo branco, desertores das tropas coloniais” e outros tipos sociais (riBeiro apud WeBer & riBeiro, 2010, p. 229). Antes, porém, havia os povos Tupi-Guarani, que habitavam as matas e serras da Depressão Central. Escavações no Sítio da Cabeceira do Raimundo, no distrito de Boca do Monte, concluiu a existência “de uma aldeia de número reduzido de Guaranis”, 96 Extensão universitária MEMÓRIA & PATRIMÔNIO em que os utensílios encontrados datam de 500 a 1060 d. C. (MiLder; sanTi; zUse apud WeBer & riBeiro, 2010, p. 95). Ora, essa assertiva, por si só desconstrói a ideia de Beltrão (1797) de uma população essencialmente luso-espanhola na região, no século XViii. Essa seria uma das desconstruções históricas que este projeto pretende demonstrar. A região também sofria ataques frequentes, pois Santa Maria “não deixou de ser assolada pela presença de tropas da Guerra da Cisplatina (1825-1828), [...] a localidade estava sofrendo frequentes ataques de bandidos à época chamados ‘facinorosos’, que se escondiam nos matos do campestre de São Martinho” (sainT-HiLaire, 1997, p. 338). Isto por volta de 1820, quando a povoação contava com “30 casas, que formam um par de ruas, onde existem várias lojas comerciais bem montadas” (p. 230). Há um consenso entre a população de Santa Maria, e também para a maioria dos pesquisadores, de que a instalação da Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fera au Brésil na Boca do Monte, em 1885, significou “um grande surto de desenvolvimento social, cultural e populacional” (Padoin apud WeBer & riBeiro). Há que lembrar, contudo, que o surto imigratório no mesmo período contribuiu para a expansão do comércio e desenvolvimento urbano. Dos estabelecimentos de propriedade de judeus, constam “lojas de tecido, armarinhos, confecções, móveis, [...] armazéns, ferragens” (gUTFreind, 2010, p. 42). Da etnia sírio-libanesa, por volta de 1914, havia na cidade “de 250 a 300 pessoas de sessenta famílias [...]” (MoraLes apud MiLder, 2008, p. 68). Além da mascateação, registrou-se 19 empresas santa-marienses, cujos proprietários eram imigrantes sírio-libaneses ou seus filhos [...]. Dez dos negócios [...] dedicavam-se ao ramo de tecidos e de calçados, 97 Extensão universitária MEMÓRIA & PATRIMÔNIO um era estabelecimento farmacêutico, 03 eram armazéns de secos e molhados, além de uma olaria que produzia e comercializava tijolos (MoraLes apud MiLder, 2008, p. 76). Isto posto, entende-se que o fato da chegada da ferrovia por si só não proporcionaria tamanha alteração na configuração socioeconômica e cultural da cidade. É claro que possibilitou uma modernização nos serviços antes nunca vista. Na educação foi responsável pela criação da Escola de Artes e Ofícios (1922) e da Escola Santa Therezinha do Menino Jesus (1923); na área da saúde a “Cooperativa dos Empregados da Viação Férrea cria a Casa de Saúde, centro de assistência hospitalar aos associados” (Padoin apud WeBer & riBeiro, 2010, p. 326). Criou também a fábrica de café, de sabão e de gelo. A expansão da educação santa-mariense no início do século XX, contudo, tem na atuação do Padre Pallottino Caetano Pagliuca significativa relevância, considerando que por meio dele chegaram à cidade “as Irmãs Franciscanas e os Irmãos Maristas”, em 1905 (BiasoLi, 2010, p. 145-146). Essas duas congregações fundaram o Colégio Sant’ Anna e o Colégio Marista, respectivamente. No mesmo período há a inauguração do Colégio Centenário (1923). Tais escolas viriam a formar uma elite letrada oriunda das regiões de latifúndio da fronteira e região central do Estado do Rio Grande do Sul. Por volta de 1930 surgiu a identificação da localidade como ‘cidade cultura’, por conta de suas escolas, cineteatros, cafés, clubes e espaços de sociabilidade que agregavam a chamada sociedade de school. Trata-se de uma identidade inventada e intensificada com a criação da Universidade Federal de Santa Maria (1960). No entanto, a primeira instituição de ensino superior foi criada em Santa Maria em 1955, pelas Irmãs 98 Extensão universitária MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Franciscanas, a Faculdade Imaculada Conceição (FiC). E a “1ª. Feira do Livro da cidade” ocorreu somente “em 1962” (CorrÊa, 2005, p. 33). Dito isto, indaga-se o conceito sociológico de uma cidade autodenominada cultura enquanto as pessoas de posses, para estudar, deveriam se deslocar até a capital do estado e a Feira do Livro ocorreu somente na segunda metade do século XX. Situada na região centro do estado sulino, Santa Maria conta atualmente com cerca de 280 mil habitantes, sob um clima tropical úmido e temperatura média de 18 º C, sendo a quinta cidade mais populosa do Rio Grande do Sul, segundo dados do iBge (2017). Embora configure no senso comum que grande parte da população seja flutuante, por conta das várias ies que se estabeleceram na cidade, pesquisas demonstraram que tal população oscilante é de apenas 20 %. Como se vê – e o próprio Conto Indígena de Imembuí, mito fundador, comprova – a cidade está encharcada de meias verdades, muitos equívocos, uma identidade forjada e um sentimento de pertença ainda em construção. O que se pretende com este projeto de extensão é, sobretudo, olhar para a história da cidade com menos romantismo e maior realismo. Ou seja, perceber seus 160 anos de forma reflexiva, de maneira que a comunidade local e acadêmica possa ressignificar seus próprios símbolos citadinos. Espaços de realização do projeto: Espaços acadêmicos: Conjuntos I e iii do Centro Universitário Franciscano; Espaços públicos e privados: Praças Saldanha Marinho, Saturnino de Brito e João Pedro Menna Barreto (Bombeiros), Largo da Locomotiva, Mancha Ferroviária, Cemitério Ecumênico Municipal, Biblioteca Pública Municipal Henrique Bastide, Arquivo 99 Extensão universitária MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Histórico e Municipal de Santa Maria, Foro da Comarca de Santa Maria, oaB- Subseção de Santa Maria, Câmara Municipal de Vereadores, Prefeitura Municipal de Santa Maria. Impacto da extensão na instituição O Centro Universitário Franciscano possui três conjuntos de prédios, chamados Conjunto I, ii e iii. Da comunidade acadêmica, somam 4.760 estudantes de graduação; 532 estudantes em cursos lacto sensu e 219 em cursos stricto sensu. O número atual de professores é de 410 e de técnicos-administrativos somam 240. Trata-se, portanto, de uma ies de médio porte em termos locais. Colocado esses dados, cabe refletir o ‘fazer’ docente e o compromisso das ies em formar cidadãos mais críticos e reflexivos, mas também melhor preparados para o mercado de trabalho. Há desafios para alcançar tais pretensões. Um deles – e talvez o que apresenta maior fragilidade – refere-se à precariedade de ensino-aprendizagem com o qual boa parte dos estudantes chega às universidades. Sem um suporte básico em nível intelectual, tais estudantes apresentam fragilidades para um aproveitamento mais satisfatório e global ao chegar à educação em nível superior. Além disso, os estudantes entendem a rotina acadêmica cansativa e conteudista, além de distante da realidade do mercado de trabalho e de sua vivência social. Ou seja, apontam para um distanciamento da academia em relação ao seu posicionamento no contexto socioeconômico e cultural, além de expressarem o estresse em relação ao cotidiano universitário. 100 Extensão universitária MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Dito isso, entende-se a necessidade de repensar a formação acadêmica em âmbito institucional, mas também reconsiderar o ofício docente. O Centro Universitário Franciscano tem discutido, ao longo de 2017, com seu corpo docente, propostas de curricularização da extensão. A ideia institucional de reexaminar currículos, em um formato mais democrático e abrangente, que inclui o ensino/pesquisa/extensão/gestão, instiga o docente a repensar suas propostas de projetos e seu fazer docente. Em reunião da Câmara de Graduação, no mês corrente, onde foi tratada a qualificação da gestão para os próximos anos, a pró-reitora de Graduação, professora Vanilde Bisognin, demonstrou sua preocupação com as aulas tradicionais e expositivas, que não colocam o estudante como protagonista de sua própria formação acadêmica. A pró-reitora – sinalizando as preocupações institucionais com as novas demandas – afirmou: [...] vamos reformular, em 2018, todas as matrizes curriculares, visando a aumentar a interdisciplinaridade, proporcionando ao aluno mais vivência na Universidade, além de deixar nossos cursos mais atrativos, competitivos e alinhados com o mercado de trabalho e as necessidades da pesquisa [e extensão] (Bisognin, 2017). Assim, afirmou a pró-reitora, as aulas ficarão mais “dinâmicas e produtivas” (Bisognin, 2017). Ora, essa assertiva coaduna com a percepção do amadurecimento acadêmico e a formação diferenciada de estudantes que tiveram a oportunidade de vivenciar na academia, além do ensino, a participação em projetos de pesquisa e extensão. Tem-se aí um importante impacto na comunidade acadêmica, a participação em projetos 101 Extensão universitária MEMÓRIA & PATRIMÔNIO institucionais, tanto de estudantes quanto de docentes, sobretudo com propostas multidisciplinares. O Plano Nacional de Educação 2014-2024 também tem metas orientadas para a democratização do acesso à educação, com inclusão e qualidade. O Pne aponta a necessidade de “assegurar, no mínimo, 10% (dez por cento) do total de créditos curriculares exigidos para a graduação em programas e projetos de extensão universitária, orientando sua ação, prioritariamente, para áreas de grande pertinência social” (BrasiL, 2014). É imensurável o impacto de um projeto de extensão com atividades várias e em áreas distintas, não somente institucional, mas na comunidade, visto que a mesma, a partir das ações propostas, terá subsídios para examinar seu próprio sentimento de identidade e pertença – ainda cambiante – e, a partir disso, também ser provocada a ‘agir’ em prol do conhecimento e da construção de sua própria história e da comunidade onde vive. A extensão universitária é uma das formas de alcançar o conhecimento acadêmico e, portanto, é parte de um processo formativo de estudantes, professores, mas também do corpo técnico-administrativo, onde igualmente surte impacto. As ações aqui propostas dependerão diretamente da participação dos técnico-administrativos, uma vez que a maior parte delas (as ações) ocorrerão nas dependências do Centro Universitário Franciscano. Tem-se observado a participação dos funcionários em eventos, palestras, discussões. Ao longo do ano de 2018, esse segmento estará oferendo apoio técnico nas atividades aqui propostas. Isso os colocará no centro das discussões e, obviamente, também serão tocados pelas reflexões e reproduzirão suas vivências em seu circuito social. 102 Extensão universitária MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Em sua pesquisa acerca das propostas inovadoras nas universidades, Couto afirma: Um projeto é inovador quando pensa o currículo no eixo da interdisciplinaridade e/ou transdisciplinaridade, com vivências extracurriculares para os estudantes; quando rompe as barreiras entre saber científico/popular, ciência/ cultura, teoria/prática; quando busca um questionamento de questões referentes à vida e ao ser humano levando em consideração ideais democráticos; quando a construção da ciência está pensada dentro de valores éticos e morais; quando há uma produção do conhecimento pautada nas transformações sociais; e quando a formação do graduando não é encarada como acabada no período delimitado pela graduação (CoUTo, 2013, p. 98-99). Entende-se que a proposta aqui colocada está coadunada com a assertiva de Couto, no que tange à interdisciplinaridade, às vivências extraclasses e extracurriculares, na compreensão de seu lugar na sociedade. Tais vivências certamente terão impacto nas atitudes dos estudantes, após vivenciar uma história que, não raro, foi-lhe contada de maneira idealizada ou romantizada. É necessário avançar. É urgente repensar nosso próprio passado e origens. Finalizando, indica-se o texto do Plano de Desenvolvimento Institucional – 2016-2021, sobretudo ao que tange às Políticas de Extensão. Não é da natureza da academia estar à parte do que ocorre além de seus muros. Ao contrário, a universidade deve manter um diálogo contínuo com a sociedade, pois esta também se renova a partir da dinamicidade que a academia produz. Das diretrizes da extensão universitária no Centro Universitário Franciscano, destacam-se: 103 Extensão universitária MEMÓRIA & PATRIMÔNIO a) articular conhecimentos técnico-científicos e demandas da sociedade, aproximando a produção científica de aplicações práticas, por meio da colaboração entre a universidade e a sociedade; [...] d) promover a integração entre a Instituição e o contexto social interligando atividades de ensino e de pesquisa com demandas da sociedade, de maneira a formar profissionais comprometidos com a melhoria da realidade social; [...] h) realizar eventos culturais e técnico-científicos que complementem o processo de formação acadêmica (Pdi, 2016-2021, p. 15). Entende-se que os pressupostos constantes nos objetivos e na justificativa ratificam a aderência das diretrizes citadas neste projeto de extensão. Além disso, tais diretrizes estão coerentes com aquelas presentes nos Projetos Pedagógicos dos Cursos envolvidos e já mencionados. Acerca do impacto na Instituição, pode-se perceber que o projeto supracitado poderá proporcionar à mesma, de forma ampla e recíproca, “a expressão dos valores institucionais na abrangência de todas as atividades que lhe são inerentes: ciência, cultura, inovação e tecnologia”. E, ainda, “integra a formação acadêmica, colabora para a renovação do conhecimento e fortalece a responsabilidade social da universidade” (Pdi, 2016-2021, p. 14). O Centro Universitário Franciscano possui uma longa experiência com Projetos de Extensão, nas mais diversas áreas do conhecimento e sob um leque de possibilidades de trabalho e convívio com a comunidade local. A Instituição, por ora, discute – junto ao seu corpo docente – o Plano Nacional de Educação-Pne (BrasiL, Lei 13.005, 2014), que define as estratégias de integralização de, no mínimo, 10% do total de créditos curriculares exigidos nos cursos de graduação. Essa percentagem, segundo o Plano, poderá ocorrer por meio de programas e/ou 104 Extensão universitária MEMÓRIA & PATRIMÔNIO projetos de extensão em vários setores socioculturais. Considerando que até então a extensão era vista com certa parcimônia pelas ies e pelos próprios docentes, sem vínculo direto com o ensino e a pesquisa, essa nova forma de perceber as bases da extensão/ensino/pesquisa/gestão como complementares, retroalimentadores e colaborativas no ensino-aprendizagem, torna a extensão em si mais criativa e producente. Outro elemento previsto no Pne e de suma importância para a execução deste projeto diz respeito ao fator indissociável da interdisciplinaridade nos programas e ações extensionistas. Assim, os programas são considerados “conjunto[s] articulado[s] de projetos e outras ações extensionistas de caráter multidisciplinar e integrado a atividades de pesquisa e de ensino, executado a médio e longo prazos por alunos orientados por um ou mais docentes da instituição” (MeC, 2014). Referências aLMeida, Luiz Gonzaga Binato de. Retratos & Memórias. Santa Maria: Pallotti, 2003. BeLÉM, João. História do Município de Santa Maria – 1797-1933. 3ª. ed. Santa Maria: Editora da UFsM, 2000. BiasoLi, Vitor. O Catolicismo Ultramontano e a conquista de Santa Maria (1870-1920). Santa Maria: Editora da UFsM, 2010. Bisognin, Vanilde. Reunião da Câmara de Graduação do Centro Universitário Franciscano. Disponível em <https://www.facebook.com/Unifra/ photos/a.186832331377233.45997.186327921427674/1595583427168776/?type=3&theater> Acesso: 09 nov 2017. ConseLHo MUniCiPaL da CULTUra. Santa Maria, Cidade Cultura. Santa Maria: Pallotti, 2003. CorrÊa, Roselâine Casanova. Cenário, cor e luz: amantes da ribalta em 105 Extensão universitária MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Santa Maria (1943-1983). Santa Maria: Editora da UFsM, 2005. CoUTo, Lígia Paula. A pedagogia universitária nas propostas inovadoras de universidades brasileiras. 2013. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. FonseCa, Orlando; QUeVedo, Júlio (Orgs.). João Cezimbra Jacques: passado e presente. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2000. gUTFreind, Ieda. Comunidades judaicas no interior do RS: Santa Maria. Santa Maria: Ed. Da UFsM, 2010. iMPeraTore, Simone Loureiro Brum; Pedde, Valdir. “Curricularização” da Extensão Universitária no Brasil: questões estruturais e conjunturais de uma política pública. Disponível em http://www.congresoextension.mes.gob.cu/documentos/CLeU%20(VF). pdf Acesso: 29 out 2017. Jezine, Edineide. As Práticas Curriculares e a Extensão Universitária. Disponível em < https://www.ufmg.br/congrext/Gestao/Gestao12.pdf> Acesso: 29 out 2017. MarCHiori, José Newton; noaL FiLHo, Valter. Santa Maria: relatos e impressões de viagem. 2ª. ed. Santa Maria: Editora da UFsM, 2008. MeC. Edital PROEXT 2014. Disponível em < file:///C:/Users/Jorge/Downloads/EditalProext014_09_2013.pdf> Acesso: 29 out 2017. MiLder, Saul Eduardo (Org.). Recortes da História Brasileira. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2008. riBeiro, José Iran; WeBer, Beatriz Teixeira (Orgs.). Nova história de Santa Maria: outras contribuições recentes. Santa Maria: Câmara Municipal de Vereadores, 2012. WeBer, Beatriz Teixeira; riBeiro, José Iran (Orgs.). Nova história de Santa Maria: contribuições recentes. Santa Maria [s.n.], 2010. rUBerT, Arlindo. A diocese de Santa Maria. Santa Maria: Pallotti, 1957a. sainT-HiLaire, Augusto de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Belo Horizonte: Itatiaia: São Paulo: edUsP, 1974. 106 MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Práticas escolares de Educação Física na década de 1970: memórias de normalistas na escola Assis Brasil, Pelotas/RS Tânia Nair Alvares Teixeira 21 Introdução A presente proposta de comunicação intitulada Práticas Escolares de Educação Física na década de 1970: memórias de normalistas 22 na escola Assis Brasil, Pelotas/rs busca analisar as práticas dessa disciplina efetuadas no Curso de Magistério no Instituto de Educação Assis Brasil (Pelotas/rs), durante os “anos de chumbo” da ditadura civil-militar no Brasil, através das memórias das alunas que estudaram nesse período, assim como de professoras que lecionaram essa disciplina. Tomamos esse balizamento para observar os entendimentos das alunas e professoras sobre as aulas de Educação Física, porque é possível perceber certas mudanças nas políticas educacionais alinhadas às convicções do período ditatorial em relação à educação. Localizada inicialmente na rua XV de Novembro, a escola Assis Brasil, ocupou mais dois endereços distintos até o ano de 1942, momento em que se instalou na Rua Antônio dos Anjos, 296, onde permanece até hoje. Entre as décadas de 1960 e 1980, o Curso Normal ocupou um lugar de destaque na formação de 21. Doutoranda em Educação – UFPel. Estudante de pós-graduação. E-mail: tanialvares@yahoo.com.br 22. Na década de 1970, o Curso Normal deu lugar ao Curso de Magistério. No entanto, neste trabalho, utilizaremos a nomenclatura “normalista”, por constatarmos que as estudantes entrevistadas se autorrepresentam dessa forma. 107 Práticas escolares de Educação Física... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO docentes na cidade de Pelotas, sendo bastante procurado pelas jovens de diferentes grupos sociais. Através das documentações produzidas pela própria instituição, especificamente alguns decretos e regimentos, identificamos que a educação mobilizada pelo Instituto Assis Brasil estava em conformidade com as Leis de Diretrizes e Bases da Educação (LdB) dos anos 1960 e 1971. Nesse sentido identificamos nas narrativas das normalistas a existência de um conjunto de práticas pedagógicas que visavam a garantir o controle corporal das jovens estudantes. Fosse através do acatamento de ordens, ou da regulação de exercícios físicos, a componente Educação Física tornou-se eficiente para o disciplinamento das alunas do Instituto de Educação Assis Brasil. Interpretamos os aspectos históricos e as correntes teóricas que influenciaram a disciplina, especialmente nos anos 1970 no Brasil. Diante desse contexto, investigamos, através das narrativas de alunas e professoras da época, bem como da análise dos documentos preservados na instituição (diários de classe, álbum de fotografias), além das leis e decretos, em que medida detectamos que o ensino na escola, oferecido às discentes, era carregado de sujeições e se existia a ocorrência de certas marcas da imposição dos governos ditatoriais da época, sobre o disciplinamento na escola. Também empreendemos um exame acerca das afinidades entre tais documentos com as leis e decretos nacionais promulgados no período, na intenção de verificar a ocorrência de certas marcas da imposição dos governos ditatoriais da época sobre o disciplinamento na escola. Para responder a esta problematização, buscamos uma série de fontes, sejam aquelas produzidas na própria instituição de análise e nas legislações vigentes ao período, mas, sobretudo, 108 Práticas escolares de Educação Física... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO através de entrevistas 23 com as normalistas do ieaB daquele período. Ao todo foram realizadas sete entrevistas, assim como uma entrevista estruturada 24 em forma de questionário. As memórias das normalistas e a documentação escolar e legislativa nos permitiram compreender como eram realizadas as práticas pedagógicas de Educação Física e quais os significados eram atribuídos a este disciplinamento no ieaB. Tomamos como ponto de partida para a discussão a reforma educacional 5.692/71- LdB (Lei de Diretrizes e Bases) que produziu significativas alterações no processo de formação de professores. Tais diretrizes são vistas como efeitos das mudanças sociais daquele tempo e também das feições políticas do regime de governo. Por se tratar de um estudo envolvendo as memórias de mulheres, alunas e professoras, o trabalho se respalda em autores clássicos como CandaU (2014), HaLBWaCHs (2003) e Le goFF (2013), bem como em autores da História da Educação que discutem essa categoria. A partir dos pressupostos teórico e metodológico que operam com a memória, percebemos através das narrativas que as lembranças das normalistas sobre o educandário Assis Brasil, no período analisado, demonstram que havia uma disciplina rígida. O Curso de Magistério valorizava muito as competições, 23. As entrevistas com as normalistas do Instituto de Educação Assis Brasil foram realizadas ao longo do ano de 2016 e 2017. Num primeiro momento foi definido o objeto e o propósito a que se propõe a pesquisa que se utilizará da História Oral como sua metodologia. Num segundo momento escolhemos as pessoas que iriam fazer parte dessa entrevista, pensamos que seria interessante entrevistar duas normalistas de cada década, para ter uma ideia mais ampla de como se deram as práticas pedagógicas de educação física em cada período. 24. Branca Ramil Linhares, mora atualmente na cidade do Rio de Janeiro, por esse motivo, foi realizada uma entrevista estruturada e enviada por e-mail. 109 Práticas escolares de Educação Física... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO ou seja, as aulas de Educação Física eram voltadas para o esporte e as alunas que não tinham essa aptidão acabavam por perder o interesse pela disciplina. A seguir apresentamos um panorama a respeito do Instituto de Educação Assis Brasil e após apresentamos uma contextualização a partir da memória das normalistas sobre a disciplina. Instituto de Educação Assis Brasil em Pelotas Neste ponto, vamos apresentar um breve histórico da escola (da fundação até os anos 1970), para, em seguida, destacarmos seu funcionamento, em termos regimentais, pedagógicos e vivenciais na década de 1970. O Assis Brasil surgiu na conjuntura da sociedade brasileira da primeira metade do século XX que buscava formar e educar meninas tanto para o mercado de trabalho quanto para a vida doméstica após o casamento. Em Pelotas, a falta de uma escola para formação de normalistas, de professoras para atuar no Ensino Primário, foi logo sentida, uma vez que famílias com interesses de que suas filhas cursassem magistério necessitavam deslocar-se para Porto Alegre (aMaraL; aMaraL, 2007). Desse modo, no final da década de 1920, mais especificamente em 13 de Fevereiro de 1929, foi fundada a Escola Complementar, 25 e se instalou na cidade de Pelotas em 30 de junho de 1929 26. O educandário foi primeiramente localizado na Rua 25. Decreto nº 4.273, de 5 de março de 1929. Em 1929, João Py Crespo, que era o intendente, intercedeu junto ao governador para a criação da instituição, que teve como patrono Joaquim Francisco Assis Brasil. Daí o nome da escola. 26. Decreto nº 4.213, de 5 de março de 1925, que regulamentava a criação e instalação das Escolas Complementares. 110 Práticas escolares de Educação Física... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO XV de Novembro, esquina com a Rua Uruguai, ocupando, assim, posição central na cidade de Pelotas. Abaixo, na figura 1, podemos identificar a primeira edificação ocupada pela instituição. Notadamente, uma importante construção da época, visto que seguia o estilo arquitetônico dos grandes casarões do centro pelotense. Depois, a escola ainda se fixou em outros dois endereços até 1942, ano em que, definitivamente, se instalou na Rua Antônio dos Anjos, 296, prédio este construído para abrigar uma Escola Normal e onde permanece até o presente momento, cuja fachada pode ser percebida na primeira das imagens do conjunto apresentado abaixo (figura 1), bem como na Figura 2. Figura 1: Acervo do Instituto de Educação Assis Brasil Fonte: Imagem cedida pela professora Lourdes Helena DummerVenzke. 111 Práticas escolares de Educação Física... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Figura 2: Edificação do Instituto de Educação Assis Brasil, Pelotas/ RS, atual Fonte: Acervo da 5ª Coordenadoria Regional de Pelotas 27. No ano de 1940, a Escola Complementar passa a ser denominada de Escola Complementar Assis Brasil 28. Em 15 de Abril de 1943, foi decretado pelo governo que todas as Escolas Complementares passassem a se chamar Escola Normal 29. Em 1947, o Curso Normal recebeu a denominação de “Curso de Formação de Professores Primários”, sendo que a primeira turma 27. Disponível em: http://05crepelotasrs.blogspot.com.br/2016/01/12-alunos-do-iee-assis-brasil-foram.html Acesso: 30/08/2016. 28. Decreto nº 91, de 7 de junho de 1940. 29. Decreto-lei nº 248. 112 Práticas escolares de Educação Física... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO realizou sua formatura em 23 de dezembro de 1949. E, por sua vez, em 1962, a Escola Normal Assis Brasil foi transformada em Instituto de Educação Assis Brasil 30. E, em 1997, passou a ter a denominação de Instituto Estadual de Educação Assis Brasil, que mantém até os dias atuais. O prédio atual, conforme destacamos acima, instalado em 1942, foi detalhadamente descrito por (aMaraL e aMaraL, 2007, p.13), principalmente, ter sido construído especialmente para esta finalidade. As “dependências e tipos de salas de aula” estavam “de acordo com as últimas exigências da moderna pedagogia da época”. O Assis Brasil na cidade de Pelotas nos anos 1970, através do Curso de Magistério (antigo Curso Normal), atendia a uma parcela da população pelotense, especialmente meninas de diversos segmentos sociais, dentre as quais aquelas que poderíamos identificar como sendo de “classe média”. Como estamos tratando de uma instituição escolar, torna-se relevante pensar alguns aspectos da “história das instituições”. Nesse sentido, (JUsTino MagaLHÃes, 2004, p. 124) aponta que “a história da escola não é [...] a história de uma instituição uniforme no tempo e no espaço”, pois “desenvolve-se desde os aspectos [...] funcionais e organizacionais até os aspectos curriculares, pedagógicos e vivenciais, numa complexa malha de relações intra e extramuros”, cuja dinâmica histórica “se apresenta profundamente marcada pela sua inscrição nas conjunturas históricas locais”. A escola crescia em número de alunos e em evidência social na cidade, tornando-se, segundo (aMaraL e aMaraL, 2007, p. 30. Decreto nº 13.420, de 17 de abril de 1962. 113 Práticas escolares de Educação Física... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO 13), uma “escola modelo”, na medida em que era buscada “uma formação profissional mais eficiente, atenta às adaptações que a tecnologia moderna exigia, fazendo-a, assim, abandonar o antigo título de Escola Complementar para passar à Escola Normal e, finalmente, à instituição de Educação”. Este histórico da instituição que faz referência aos espaços físicos ocupados pela escola é importante, porque, segundo Magalhães, a disposição arquitetônica dos prédios, a distribuição e ordenação dos espaços, a orientação estética, a acessibilidade influenciam o cotidiano educacional, quanto à materialidade e à funcionalidade, mas também afetam as representações e os modos de estar, vivenciar, relacionar-se, referenciar e projetar por parte de todos os membros de uma comunidade educativa (MagaLHÃes, 2004, p. 144). Assim, o ieaB, na década de 1970, já estava afirmado em Pelotas como uma grande escola, tanto em termos do espaço físico quanto do reconhecido trabalho de formação de professoras (aMaraL; aMaraL, 2007). O Curso de Magistério (antigo Curso Normal) formava professoras que, ainda nos anos 1970, intitulavam-se “normalistas”. Embora não fosse a única instituição escolar, era a escola pública que atendia a diversos segmentos sociais, consolidado no ideal de magistério da época: formar profissionais que seguissem a ordem (trabalhista, doméstica, cívica, política) e à configuração de padrões de comportamento e de papéis sociais esperados para os diferentes gêneros e segmentos sociais. No próximo item passaremos a tratar das aulas de Educação Física, porém contextualizando com a memória das normalistas que lá estudaram na década de 1970, especialmente em relação aos modos como lembram, dizem e silenciam a 114 Práticas escolares de Educação Física... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO respeito da disciplina, do seu funcionamento, das atividades pedagógicas e das relações estabelecidas com professoras. Memórias de normalistas sobre as aulas de Educação Física Entre o fim do Estado Novo até 1961, houve um grande debate a respeito do ensino brasileiro. Após esse período, na década de 1970, deu-se também a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LdB nº 5692/71) em que ficou determinada a obrigatoriedade da Educação Física no ensino primário e secundário, como vimos no capítulo 2. Durante o período da Ditadura civil-militar no Brasil, a influência deste modelo foi determinante nas aulas de Educação Física escolar. Conforme nos mostra a autora, no interesse do desenvolvimento de um maior grau de eficiência produtiva no mundo do trabalho e, pressupondo a importância da educação escolarizada para se atingir este fim, a tecnicização do ensino patrocinada pelo governo teria como premissa básica a disciplinarização, a normatização, o alto rendimento e a eficácia pedagógica. Esse pressuposto seria orientado pelo alinhamento do país a uma ordem mundial calcada no desenvolvimento associado ao capital internacional, mais explicitamente, ao norte-americano (oLiVeira, 2002, p. 53). Este contexto de disciplinarização calcado na busca pelo eficaz rendimento e eficiência pedagógica também se verificou na disciplina de Educação Física. A narrativa da normalista Mara Elaine de Lima Elias (2016), estudante entre 1979 e 1982, revela aspectos interessantes nesse sentido. Ela conta que, naquele período, a escola se mostrava exigente no cumprimento das 115 Práticas escolares de Educação Física... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO normas e a competição esportiva era estimulada nas aulas. Desse modo, as normalistas acabavam por participar de vários eventos esportivos, tanto na cidade quanto em outros municípios. Esses eventos competitivos evidenciam, de certa forma, a busca do modelo produtivo que imperava na Educação, buscando o alto rendimento das escolas e dos estudantes. Nesta narrativa, questionamos se a aluna tinha, ou não, determinado entendimento crítico do momento político que o País atravessava, quando ela se referia às práticas escolares subordinadas ao estímulo das competições desportivas. No entanto, sabemos que a memória é criada e recriada no momento em que ela é acionada, partindo sempre do presente, nesse caso, a ocasião da entrevista. De todo modo, Mara Elias (2016) demonstrou pensamento crítico ao se posicionar em relação à competitividade então existente. A narrativa da aluna Sandra Regina dos Santos Moraes (2017), que estudou entre os períodos de 1974 a 1977, vem ao encontro da fala de Mara Elias quando relata que “era só vôlei, vôlei, vôlei. Exercício era muito pouco. Era basicamente aulas de vôlei e eu nunca gostei de jogar vôlei, tinha pavor da bola. Aquilo, para mim, era um horror [...]”. Percebe-se, então, que estava presente a obrigatoriedade da realização de esportes como o vôlei. As duas narrativas – de Mara Elias e de Sandra Moraes, se complementam e se diferenciam. Complementam-se na medida em que ambas apontam para o caráter indispensável de participação nos jogos que as competições esportivas assumiam. Por outro lado, diferenciam-se na forma como elas percebem, hoje, ao serem entrevistadas, apontando os efeitos políticos que estavam implicados na dinâmica da organização curricular. 116 Práticas escolares de Educação Física... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Estas diferentes percepções estão de acordo com a configuração da própria memória, pois, como destacou (CandaU, 2014, p. 16), “A memória, ao mesmo tempo em que nos modela, é por nós modelada”. Percebemos, então, que os efeitos do período civil-militar, no que se refere à política educacional, ao entendimento de formação humana e de desenvolvimento do País são subjetivamente perceptíveis por algumas das entrevistadas, que apresentam diferentes níveis de percepção crítica. Conforme os relatos das alunas, percebemos que o esporte e a competição foram valorizados na disciplina de Educação Física do ieaB, ministrada no Curso de Magistério durante a ditadura civil-militar brasileira. Indo ao encontro destas narrativas, podemos verificar, na figura a seguir, um recorte de jornal 31 em que aparece uma notícia sobre as comemorações do aniversário da escola, no dia 25 de junho de 1970. Figura 3: Comemorações pela passagem do aniversário do IEAB (Diário Popular, 18/06/1970) Fonte: Acervo da escola Assis Brasil. 31. Os recortes de jornais utilizados neste trabalho fazem parte do acervo da escola Assis Brasil e poderiam ser simplesmente transcritos. No entanto, optamos por fotografá-los, com a finalidade não apenas de ilustrar, mas de demonstrar a própria configuração e seleção desse acervo como um importante elemento da memória da instituição. Em termos analíticos, não estamos tomando a fotografia do recorte como uma imagem a ser analisada, mas estamos interessadas em perceber e analisar o conteúdo destes recortes de jornais. 117 Práticas escolares de Educação Física... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Entre as festividades, aparece, no recorte do jornal, um torneio de vôlei organizado pelo Curso Normal, que se realizaria entre as diversas escolas normais de alguns municípios da região, enfatizando a importância dada às competições pela instituição Assis Brasil. Em relação à Educação Física escolar, podemos dizer que o esporte enquanto prática disciplinar e estímulo / imposição do governo federal tornava-se uma referência para as práticas corporais, tanto nas instituições quanto fora delas (oLiVeira, 2002). Ainda nos apoiando na autora, Isso teria ocorrido, em parte, porque numa certa perspectiva o esporte codificado, normatizado e institucionalizado pode responder de forma bastante significativa aos anseios de controle por parte do poder, uma vez que tende a padronizar a ação dos agentes educacionais, tanto do professor quanto do aluno; noutra, porque o esporte se afirmava como fenômeno cultural de massa contemporâneo e universal, afirmando-se, portanto, como possibilidade educacional privilegiada. Assim, o conjunto de práticas corporais passíveis de serem abordadas e desenvolvidas no interior da escola resumiu-se à prática de algumas modalidades esportivas. As práticas escolares de educação física passaram a ter como fundamento primeiro a técnica esportiva, o gesto técnico, a repetição, enfim, a redução das possibilidades corporais a algumas poucas técnicas estereotipadas (oLiVeira, 2002, p. 53). Corroborando a citação acima, a aluna Denise Requião Farias (2017), que cursou o magistério no período de 1973 a 1976, narra que as aulas de Educação Física se limitavam a jogos de vôlei. “A nossa aula se baseava mais em vôlei, davam a bola para gente e nós íamos jogar” (Farias, 2017). Nesta mesma 118 Práticas escolares de Educação Física... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO perspectiva, a aluna Moraes (2017) relata que não gostava das aulas porque se resumiam a jogos de vôlei. No mesmo sentido, temos a afirmação da professora Yeda Chiviacowiski (2017): “Naquela época, o esporte era muito valorizado, a escola participava de todos os campeonatos da cidade”. Como confirma a aluna Mara Elias (2016), o esporte era bastante estimulado e as turmas de normalistas participavam seguidamente de competições de vôlei, tanto na escola quanto em eventos interescolares e intermunicipais. Percebemos, a partir das narrativas, que, entre os diversos esportes, o jogo de vôlei era o foco principal. Também observamos que algumas alunas tinham dificuldades em acompanhar e, por vezes, acabavam criando certa resistência às aulas, mas esta não era a situação mais comum. Em geral, eram participantes das atividades esportivas, especialmente dos jogos de vôlei. Por outro lado, não havia opções, de modo que, mesmo contrariadas, as normalistas precisavam participar dos jogos e das competições. Percebemos, pelo relato da professora Loide Montezanno, que trabalhou nos anos finais do período ditatorial, durante a abertura política, 32 que a Educação Física começa a repensar os seus objetivos, mudando sua concepção de uma disciplina que visava primordialmente às competições, elegendo o esporte como conteúdo principal, para uma nova compreensão da sua identidade. Surge, então, um novo cenário da Educação 32. A abertura política foi um processo gradual de abrandamento da repressão ditatorial, marcado, inicialmente pela extinção do AI-5 em 1978. Nesse mesmo ano, foi revogado o decreto que bania 120 exilados políticos. Em 1979, foi enviado ao Congresso Nacional o projeto para concessão da anistia (sendo que o Brasil tinha por volta de 7 mil exilados), que também libertava os presos e concedia aos então clandestinos a possibilidade de reassumirem as suas identidades (STARLING; SCHWARCZ, 2015, p. 479). 119 Práticas escolares de Educação Física... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Física escolar na perspectiva de romper com os modelos vigentes até então. Retornando às narrativas das alunas que estudaram no período em que o governo investia na ascensão do esporte, verificamos que havia o intuito de promover o Brasil para que as competições de alto nível se destacassem. Prosperaria, assim, um sentimento de nacionalismo, contribuindo para inibir as ações sociais contra o governo. Essa valorização do esporte esteve presente nas entrevistas das normalistas, destacando-se o crescente investimento nas atividades esportivas na escola. Nesse sentido, vale mencionar a fala da aluna Rosangela Rachinhas (2016) ao relatar que “todos” os esportes eram trabalhados, inclusive que elas eram levadas para o quartel da cidade a fim de praticar atletismo. Também relatou que, com frequência, jogavam modalidades variadas, sendo realizadas principalmente competições de vôlei. Desse modo, as lembranças das experiências das normalistas selecionadas para as entrevistas, relatando como eram as práticas das aulas de Educação Física, podem (não necessariamente) representar também as lembranças de boa parte do grupo, uma vez que resultam das suas relações com o referido grupo. Halbwachs reforça que o grupo social reelabora uma memória coletiva, No primeiro plano da memória de um grupo se destacam as lembranças dos acontecimentos e das experiências que concernem ao maior número de seus membros e que resultam quer de sua própria vida, quer de suas relações com os grupos mais próximos, mais frequentemente em contato com ele (HaLBWaCHs, 2003, p. 51). 120 Práticas escolares de Educação Física... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO As memórias das normalistas aqui selecionadas podem então demonstrar a memória de uma parte do grupo de alunas, podendo silenciar lembranças proibidas, assim como omitir segredos e conflitos com o objetivo de preservar o grupo de normalistas. Entendemos que, ao relatar as suas lembranças como alunas e/ou professoras da escola Assis Brasil, as entrevistadas trazem consigo recordações também de suas companheiras, relembrando o seu dia a dia, suas aulas, suas viagens para competir em outros municípios, seus ensaios para cantar o hino da escola ou no próprio coral e suas construções coletivas de planos de aula para depois aplicarem aos alunos. As aulas de Educação Física constituíam, talvez, um momento de descontração entre elas, porém com disciplina, pois precisavam ter uma postura esperada de uma normalista, assim como ter um cuidado com o uniforme escolar. Assim, o referido discurso retoma, nas lembranças, os ensinamentos das aulas de Educação Física. Vale destacar a observação do autor de que, As ‘lembranças encontram sua justificativa não apenas em assegurar uma continuidade fictícia ou real entre o passado e o presente [...] o ato de memória [...] se manifesta no apelo à tradição’ e ‘consiste em expor, inventando se necessário, ‘um pedaço de passado moldado às medidas do presente’ (CandaU, 2014, p. 122). Desse modo, consideramos que as lembranças das normalistas, como já destacamos, estão sendo perpassadas e moldadas pelo presente, possibilitando inclusive que indiquem, por exemplo, a ausência de uma interferência da ditadura civil-militar 121 Práticas escolares de Educação Física... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO nas práticas escolares e pedagógicas nas aulas de Educação Física. Vejamos, então, na sequência algumas reflexões finais. Algumas reflexões Este texto mostrou o resultado de uma proposta de comunicação intitulada Práticas Escolares de Educação Física na década de 1970: memórias de normalistas na escola Assis Brasil, Pelotas/rs, que buscou analisar as práticas dessa disciplina efetuadas no Curso de Magistério no Instituto de Educação Assis Brasil (Pelotas/rs), durante os “anos de chumbo” da ditadura civil- militar no Brasil. As memórias das normalistas, a documentação escolar e legislativa nos auxiliaram a compreender como eram as práticas pedagógicas de Educação Física e quais os significados eram atribuídos a este disciplinamento próprio de um ambiente escolar. Diante disso nos propusemos a investigar, através do depoimento das alunas e professoras da época e também da análise das leis e decretos promulgados, as percepções das alunas sobre as aulas, porque é possível perceber certas mudanças nas políticas educacionais alinhadas com as convicções do período ditatorial em relação à educação. Buscamos perceber também em que medida essas práticas pedagógicas carregam as marcas da imposição dos governos ditatoriais da época e de suas compreensões a respeito do ensino na escola Assis Brasil. Convém reforçar que interpretamos, conforme o contexto, a constituição da disciplina de Educação Física nos aspectos históricos e nas correntes teóricas que influenciaram esta disciplina, especialmente nos anos 1970 no Brasil. A disciplina, 122 Práticas escolares de Educação Física... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO encarada como fundamental na escola, desempenhava função social pautada na construção do patriotismo e do nacionalismo, especialmente a partir da Copa do Mundo de Futebol de 1970. Logo, a própria legislação educacional, como o decreto 69.450/1971, apontava para a obrigatoriedade do ensino de Educação Física por ser a disciplina responsável por despertar e desenvolver forças físicas, morais e cívicas. O ensino de Educação Física estava pautado na concepção de educação tecnicista e primava pela competitividade, pela prática da esportivização e pelo disciplinamento do corpo, baseado na racionalidade, eficiência e produtividade. Referências aMado, Janaína; Ferreira, Marieta de Moraes. Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FgV, 2006. aMaraL, Giana Lange do; aMaraL, Gladys Lange do (Org.). Instituto Estadual de Educação Assis Brasil: entre a história e a memória (19262006). Pelotas: Seiva 2007. CandaU, Joël. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2014. Le goFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2013. MagaLHÃes, Justino Pereira de. Tecendo nexos: história das instituições educativas. Bragança Paulista: Editora Universidade São Francisco, 2004. oLiVeira, Maria Augusta Martiarena de. Acervos escolares e história das instituições educacionais: o caso da Escola Estadual General Osório/rs. In: Revista Linhas. Florianópolis, v.15, n. 28, p.154-174, jan./jun., 2014. riBeiro, Ivanir e siLVa, Vera Lúcia Gaspar da. Das materialidades da escola: o uniforme escolar. In: Educação e Pesquisa. São Paulo, v.38, n.03, p.575-588, jul./set., 2012. 123 MEMÓRIA & PATRIMÔNIO A participação de alunos secundaristas na formação da Universidade Federal do Rio Grande Karin Christine Schwarzbold 33 Introdução A Furg completa 50 anos em 2019. Esse fato me levou a pensar sobre como se deu o processo de criação da Instituição. Ao conversar com demais pesquisadores que em seus trabalhos de alguma forma tiveram contato com o histórico da criação da mesma, foi-me relatada a possível mobilização dos estudantes secundaristas inclusive com a probabilidade de manifestações públicas como passeatas pelas ruas da cidade. Além da curiosidade inerente ao ser humano, como pesquisadora fiquei instigada a me perguntar se eles foram agentes passivos ou ativos nesse processo. Após buscar dados para compor o estado da arte, percebi que o envolvimento de estudantes secundaristas na criação da Furg não foi utilizado como tema de pesquisa até a presente data. Assim, trago como uma hipótese provável de que as manifestações das mais variadas formas dos estudantes secundaristas foram relevantes para a criação da Universidade, mas que estas têm sua história apagada tendo em seu lugar uma supervalorização na participação da classe política e empresarial. O presente artigo integra os estudos referentes a minha proposta de doutoramento e possui como objetivo analisar a participação de estudantes secundaristas no movimento de 33. Doutoranda PPGE- UFPel. Orientadora PatriciaWeiduschadt 124 A participação de alunos secundaristas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO criação da Universidade Federal do Rio Grande- Furg, bem como averiguar a presença da Une nos movimentos relativos ao Ensino Superior, em especial a possível participação da mesma no Município. Desenvolvo minhas atividades de doutoranda na linha da História da Educação e pesquisar a criação da Furg é considerado por alguns colegas complicado devido à falta de fontes. Quando ouço isso logo meus pensamentos se voltam para a Nova História, conhecida como a terceira geração de Annales, disposta a dialogar com diversas áreas e, principalmente, “ampliar seu olhar sobre as fontes” (Alves e Mattos, 2011). Iniciada em 1968, “marcada pela fragmentação” (Alves e Mattos, 2011), foi liderada por Jacques le Goff e Georges Duby. Indo um pouco além, temos uma quarta geração, conhecida como a Nova História Cultural (nHC) liderada por Roger Chartier e Jacques Revel e influenciada por Michel Foucault. Dessa forma, sinto-me contemplada pela nHC num contexto metodológico mais amplo e utilizarei a pesquisa documental especificamente neste artigo. A ideia desta pesquisa surgiu no momento em que encontrei um documento com diversas assinaturas de alunos secundaristas do Colégio Técnico Científico São Francisco, o que indicia a hipótese inicial de que os alunos secundaristas realmente manifestaram-se sobre a criação da Furg. O município do Rio Grande Na segunda metade do século XX 34 a realidade do Município do 34. Informações baseadas no site da FURG, item Catálogo Geral. Infelizmente o mais atual disponível é o de 2015. Maiores informações em: Catálogo Geral – vol. 19 – Rio Grande: Universidade Federal do Rio Grande – FURG, 2015 125 A participação de alunos secundaristas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Rio Grande – rs revelava a carência de escolas de nível superior. Com isso há uma significativa evasão do número de estudantes com condições econômicas, os quais se dirigiam a outros centros em busca de continuidade para seus estudos. Aqueles que não possuíam condições financeiras acabavam não dando continuidade aos seus estudos. Depois de concluídos os cursos, essa força jovem raramente retornava à cidade de origem a fim de participar do seu processo histórico, cultural e socioeconômico. A sensibilização dessa realidade, aliada ao propósito de modificá-la, resultou em um movimento cultural, cuja finalidade era a criação de uma Escola de Engenharia no Rio Grande, justificada pelo elevado número de profissionais na área sem qualificação superior específica e pelo parque industrial que aqui já existia. Atendendo aos anseios da sociedade em 24 de maio de 1955, pelo Decreto n.o37.378, foi autorizado o funcionamento da Escola de Engenharia Industrial, reconhecida pelo Decreto n.o 46.459, de 18 de julho de 1959, e federalizada pela Lei n.o 3.893, de dois de maio de 1961, como estabelecimento isolado. A partir de então outros cursos e faculdades passaram a existir no Município. A Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas surge pela Lei Municipal n.o 875, de 22 de julho de 1956, e foi autorizada a funcionar pelo Decreto n.o 43.563, de 24 de abril de 1958. Em 1959, ano do centenário de nascimento de Clóvis Beviláqua (autor do Projeto do Código Civil Brasileiro, 1899), foi iniciado um movimento visando à instalação de uma Escola Informações gerais. Universidade Federal do Rio Grande – FURG Os dados para a elaboração deste Catálogo têm como base o 1.o semestre de 2015. Publicação elaborada com base na Portaria MEC Nº2.864, de 26 de agosto de 2005. Disponível em: https://sistemas.furg.br/sistemas/paginaFURG/arquivos/menu/000000406.pdf . Acesso em: 21 nov. 2018. 126 A participação de alunos secundaristas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO de Direito em Rio Grande, a ser mantida financeiramente pela Mitra Diocesana de Pelotas. Contava com a colaboração de professores do Município, da União Sul - Brasileira de Ensino (fornecendo as instalações para o funcionamento) e Bibliotheca Riograndense que disponibiliza o seu acervo à clientela. Visando ao bem maior, a qualificação de pessoal no Ensino Superior, instituições privadas do Município, bem como da região, não mediram esforços em auxiliar o setor público para a consecução desse objetivo. Os esforços conjugados garantiram que, em 2 de fevereiro de 1960, pelo Decreto n.o 47.738, fosse autorizado o funcionamento da instituição, que recebeu o nome de Faculdade de Direito “Clóvis Beviláqua”. À medida que o tempo transcorria, novas expectativas surgiam, e com elas se ampliava a gama de possibilidades oferecidas aos jovens rio-grandinos. Ainda em 1960, tendo em vista o grande número de candidatos que desejavam outros cursos de nível superior, surge em 19 de janeiro de 1961, através do Decreto n.o 49.963, a autorização para o funcionamento dos cursos de Filosofia e Pedagogia, em salas cedidas da Escola Normal Santa Joana d’Arc. Esta escola, fundada em 1918, tem como objetivo atender à carência de formação da juventude feminina 35. Como um processo dinâmico, em 1964 era autorizado o 35. O termo juventude feminina encontra-se na justificativa do Bispo da Diocese de Pelotas, Dom Francisco de Campos Barreto, com relação à criação de uma escola no Município. Para maiores informações sugiro a leitura do artigo de SANTOS, Rita de Cássia Grecco dos. Vargas, Francisco Furtado Gomes Riet. TAMBARA, Elomar. Colégio Santa Joanna d’Arc: uma narrativa histórica acerca da escola complementar e da primeira escola normal de Rio Grande/RS. IX ANPED/Sul. 2012. Disponível em: http://www.ucs.br/etc/ conferencias/index.php/anpedsul/9anpedsul/paper/viewFile/2194/44. Acesso em 21 nov. 2018. 127 A participação de alunos secundaristas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO funcionamento do Curso de Letras, com habilitação para Inglês e Francês; em 1966 entrava em funcionamento o curso de Matemática; em 1967 instalavam-se os cursos de Ciências e Estudos Sociais. Nesse mesmo ano, na sessão de 4 de outubro, o Conselho Federal de Educação reconheceu a Faculdade Católica de Filosofia de Rio Grande, ato oficializado pelo presidente Arthur da Costa e Silva, através do Decreto n.o 61.617, de 3 de novembro de 1967. Até que, por fim, em 20 de agosto de 1969, foi assinado o Decreto-Lei n.o 774, pelo então presidente da República Arthur da Costa e Silva, autorizando o funcionamento da Universidade do Rio Grande – Urg. Impressos como fonte de pesquisa A imprensa teve seu início oficial no Brasil em 13 de maio de 1808, com a fundação da Impressão Régia, no Rio de Janeiro, pelo príncipe Regente Dom João. A Gazeta do Rio de Janeiro foi o primeiro jornal publicado no Brasil em 10 de setembro de 1808. Mas ele não foi o primeiro a circular no País. O marco inicial se dá em 1º de junho, quando o Correio Braziliense, editado em Londres por Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça, chega ao País. Por sua vez, a gazeta Idade d’Ouro do Brazil, da Bahia, é a primeira publicação de propriedade privada. Teve início em maio de 1811 e circulou até 1823. Até o século 19, a imprensa era principalmente regional. No início do século 20, os jornais eram os principais meios de comunicação em massa no mundo. A concorrência era grande e existiam jornais matutinos e vespertinos. 128 A participação de alunos secundaristas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Conforme Traquina (2005), muitos fatores sociais colaboraram para a expansão do jornalismo, como a escolarização da sociedade e o processo de urbanização. Também afirma que o jornalismo como conhecemos hoje na sociedade democrática tem suas raízes no século XiX. Foi durante o século XiX que se verificou o desenvolvimento do primeiro mass media, a imprensa. A vertiginosa expansão dos jornais no século XiX permitiu a criação de novos empregos neles; um número crescente de pessoas dedica-se integralmente a uma atividade que, durante as décadas do século XiX, ganhou um novo objetivo –fornecer informação e não propaganda (TraQUina, 2005. p. 34). Até 1825, ao menos Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia, Minas Gerais, Maranhão, Pará e Pernambuco eram sedes de jornais e/ou tipografias. Ainda sob regência de leis portuguesas a Nova Constituição portuguesa trata da seguinte forma a imprensa: A livre comunicação do pensamento é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo cidadão pode, consequentemente, sem dependência de censura prévia, manifestar suas opiniões em qualquer matéria, contanto que haja de responder pelo abuso desta liberdade nos casos e na forma que a lei determinar (sodrÉ, 1999, p. 41). Ao utilizarmos os impressos como fonte de pesquisa, Luca (2010) amplia a visão dos mesmos ao afirmar que Os debates ultrapassaram as fronteiras dos novos objetos, abordagens e/ou problemas e introduziram outras fissuras no trato documental. Como assinalou o historiador Antoine Prost, alterou-se o modo de inquirir os textos, que “interessará menos pelo que eles dizem do que pela maneira como dizem, pelos termos que utilizam, pelos 129 A participação de alunos secundaristas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO campos semânticos que traçam” e, poderíamos completar, também pelo interdito, pelas zonas de silêncio que estabelecem (p.114). Através dessa mudança de olhar sobre os impressos, eles se tornam uma fonte riquíssima de pesquisa. Anteriormente considerada pelos historiadores como uma fonte passível de manipulação de dados, hoje eles não apenas são fontes complementares na pesquisa como o próprio objeto, onde, como citado acima por Luca, o próprio silêncio, as entrelinhas do dito são capazes de gerar fascínio nos pesquisadores e elucidar muitos fatos. Para a autora é possível, através da sua análise, pesquisar o comportamento da sociedade através dos anúncios (como o trabalho pioneiro de Gilberto Freyre), obtenção de dados econômicos, o estudo do próprio suporte e conservação, da tipografia, da diagramação, editorial, charges, a coluna do leitor. Se o tema da pesquisa for manifestações, greves, trabalho, economia, educação, mundo operário, políticas públicas (em especial as municipais), atividades culturais, questões de gênero, técnicas de impressões, o uso ou não de letras miúdas, para todos pode-se ter os impressos como fonte primária de pesquisa. Carvalho, Araújo e Gonçalves Neto (2002), por exemplo, trazem em seu artigo a questão econômica em Uberlândia e a falta de profissionais capacitados para o trabalho. Através da análise do editorial de um jornal local foi possível verificar que a reivindicação dos munícipes na criação de uma escola profissionalizante estava de acordo com as diretrizes gerais do Plano Nacional de Educação. Diferente de Uberlândia, a carência no município do Rio Grande era de profissionais do nível superior. Pretende-se verificar através dos impressos a participação dos estudantes 130 A participação de alunos secundaristas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO secundaristas em movimentos e manifestações públicas para a criação da Universidade Federal do Rio Grande – Furg. Para dar início a essa proposta busquei identificar os jornais de Rio Grande existentes no Município com data anterior ao da criação da Furg. Identifiquei o jornal Rio Grande e localizei um acervo considerável de exemplares, ainda que não completo, junto à Bibliotheca Riograndense, fundada em 15 de agosto de 1846. Ao buscar os exemplares do primeiro semestre de 1967 encontro uma notícia do dia 18 fevereiro tratando do vestibular unificado entre os municípios de Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande para o Curso de Medicina. O processo se constituía de uma prova única onde os qualificados eram divididos conforme sua nota entre as Faculdades em Porto Alegre, em Pelotas ou em Rio Grande. Na já mencionada reportagem, há a notícia de que ninguém do Município do Rio Grande havia se classificado, fazendo com que as vagas existentes fossem ocupadas por pessoas de outras localidades. Ainda enfatiza que o sistema unificado é injusto, haja vista que os moradores de Porto Alegre possuíam acesso a uma preparação auxiliar, como os cursinhos preparatórios para o Enem nos dias atuais. Já no dia 21 tem uma pequena nota informando que duas pessoas que não moravam mais no Município, mas que eram nascidas no mesmo, tinham logrado êxito na seleção. No mesmo exemplar há uma manifestação dos alunos secundaristas publicada na íntegra pelo jornal conforme imagens 1, 2 e 3. Figura 1: Nota URES (parte 1) 131 A participação de alunos secundaristas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Fonte: Bibliotheca Riograndense, 2018 Figura 2: Nota URES (parte 2) 132 A participação de alunos secundaristas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Fonte: Bibliotheca Riograndense, 2018 Figura 3: Nota URES (parte 3) 133 A participação de alunos secundaristas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Fonte: Bibliotheca Riograndense, 2018 Através dessa nota publicada na íntegra no jornal ficou perceptível a preocupação dos estudantes secundaristas com a situação do ensino superior no Município. Demonstra preocupação inclusive com a situação psicológica dos concorrentes à vaga, bem como quanto à limitação de acesso a serviços de aulas particulares, conhecidos como cursinhos pré-vestibulares, disponíveis apenas na capital do Estado. Foi interessante observar a participação da sociedade do Município através de uma arrecadação de valores para aquisição de livros para o referido curso e a preocupação do Presidente da Ures de que, talvez, nem todos os que doassem tivessem seus familiares participando dos próximos processos seletivos. A partir desse fato, o não preenchimento das vagas do curso de Medicina por discentes rio-grandinos, deu-se início a toda uma movimentação no Município para efetivar a criação 134 A participação de alunos secundaristas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO da Universidade do Rio Grande, atual Universidade Federal do Rio Grande-Furg. A busca pela informação através dos impressos, especificamente de jornais locais, possibilitou a comprovação de que existia uma entidade representativa dos estudantes secundaristas no Município do Rio Grande. Os dados são inicias mas relevantes para a consecução desse artigo e corrobora com a ideia inicial de que, infelizmente, o movimento estudantil secundarista, é pouco lembrado pela sociedade e consequentemente raramente é tema de pesquisas acadêmicas. Conclusão A proposta deste artigo foi contemplada, uma vez que foi possível constatar, através dos impressos consultados, que existia um movimento de alunos secundaristas em Rio Grande organizados na chamada União Rio-grandina dos Estudantes Secundários e que os mesmos participavam ativamente no Município. Esse êxito deu-se graças à preservação de impressos, especificamente jornais da época, pela Bibliotheca Riograndense. Esse foi o primeiro passo para dar andamento em uma pesquisa mais ampla sobre o movimento dos estudantes secundaristas no Município. Pretende-se buscar esses estudantes e através da Historia Oral compreender melhor a sua atuação e participação para a criação da Universidade Federal do Rio Grande- Furg. Referências aLVes, Francisco das Neves. MaTTos, Julia Silveira. Teoria e Historiografia no Rio Grande do Sul: ensaios históricos. Rio Grande: Universidade 135 A participação de alunos secundaristas... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Federal do Rio Grande – FUrg, 2011. 178p CarVaLHo, Carlos Henrique, araÚJo, José Carlos Souza, gonÇaLVes, Wenceslau Netto. Discutindo a história da educação: a imprensa enquanto objeto de análise histórica (Uberlãndia- Mg, 1930-1950). In: araÚJo, José Carlos Souza; gaTTi, Décio Júnior (org). Novos temas em História da Educação Brasileira: instituições escolares e educação na imprensa. Campinas, Autores Associados, 2002, p. 67-90. LUCa, Tânia Regina. Fontes impressas: história dos, nos e por meio dos periódicos. In: BaCeLLar, Carlos. Fontes documentais: uso e mau uso dos arquivos. In: PinsKY, Carla Bassannezi (org). Fontes Históricas. 2ª ed. São Paulo, Contexto, 2010. sodrÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil.São Paulo: Mauad, 1994. TraQUina, Nelson. Teorias do jornalismo: Por que as notícias são como são. 2 ed. Florianópolis: Insular, 2005. 136 MEMÓRIA, SOCIABILIDADES & PATRIMÔNIO URBANO MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Clube Caixeiral de Rio Grande/RS: a recreação entre os anos de 1930 a 1950 Gianne Zanella Atallah 36 João Fernando Igansi Nunes 37 Introdução Neste artigo, intitulado Clube Caixeiral de Rio Grande/rs: a recreação entre os anos de 1930 a 1950, analisamos as lembranças pontuadas como atividades socioculturais, rememoradas através de vestígios materiais e imateriais tanto de caráter institucional quanto privado de pessoas que frequentavam o clube, mantendo mais do que um contato familiar, ou a extensão do lar, mas um encontro em si mesmo. Para isso ressaltamos que a consagração da categoria em sua sede social, através de ações culturais que reforçavam o papel dos caixeiros na cidade de Rio Grande, a estruturou para as mudanças políticas a partir da Era Vargas, onde o espaço permitiu a preponderância recreativa sobre a política. Nessa trajetória está implícito o papel da memória, ela é a principal propulsora do grupo, a partir do momento em o que o interesse em comum o reuniu. O passado antes de 1930 36. Doutora em Memória Social e Patrimônio Cultural/ICH-UFPel/RS. Dirigente da Fototeca Municipal Ricardo Giovannini e Pinacoteca Municipal Matteo Tonietti. Professora Municipal de História da Prefeitura Municipal de Rio Grande/RS 37. Doutor em Comunicação e Semiótica, PUC/SP. Professor Adjunto do Centro de Artes da UFPel/RS 138 Clube Caixeral de Rio Grande/RS MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Até o fim da República Velha, os salões tinham outra configuração social. Segundo Needell (1993), Dois elementos, portanto, eram comuns aos salões do Segundo Reinado e aos da Belle Époque [...]. Em ambas as épocas, o salão era primeiro, um aspecto importante e informal do sistema de poder na estrutura socioeconômica [...] e, segundo, algo definido e expresso em termos culturais idênticos [...] Evidentemente, este aspecto instrumental aplica-se também ao salão da Belle Époque. Na verdade, considerando o crescimento da população da cidade e o ritmo acelerado das mudanças, a importância do salão seria logicamente realçada. Ele ajudou a manter como antes os relacionamentos convenientemente personalizados. [...] era uma sociedade familiar cujas portas ninguém procurava forçar. [...] Este âmbito restrito, ao lado das instituições aqui discutidas, proporcionava as condições ideais para aquela atmosfera seleta tão útil à condução dos negócios da classe dominante (needeLL, 1993: 136-137). Essa citação que destacamos adaptava-se muito bem ao CC de Rio Grande. Até meados de 1930, veremos o quanto algumas atividades proporcionadas aos seus sócios mantinham a recreação social e familiar, e ao mesmo tempo mantinham uma hierarquia comportamental: as regras da entidade e sua própria administração, estabelecendo uma hierarquia patronal externa e internamente, como forma de manter a integridade da luta Caixeiral nos espaço de trabalho e no principal ponto de encontro: o Clube. A partir dos anos de 1930, com a Era Vargas, novo cenário começa a se delinear com a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio 38 além do Decreto n°19.770 de 1931, que 38. Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, criado em 1930, pelo Pre139 Clube Caixeral de Rio Grande/RS MEMÓRIA & PATRIMÔNIO promulga a Lei da Sindicalização 39, os quais irão reorganizar a política trabalhista, que até então se configurava com leis que já existiam antes de 1930, mas que além de não serem cumpridas não incluíam todas as categorias profissionais, tanto quanto direitos e deveres do trabalhador e patrão - essas novas expectativas sugestionavam a valorização do trabalhador. Nesse contexto, o CC de Rio Grande enfrentou uma situação de transição, assim como tantos outros clubes classistas, principalmente, entre a sua formação original e as suas expectativas com relação a novos desafios. Antes de 1930, havia uma busca política enquanto classe e a respeitabilidade pela sua sede, que demonstrava o equilíbrio diante de uma sociedade em transformação. Após 1930, o aspecto sociocultural comprometia-se pela salvaguarda de uma memória coletiva amparada pelo costume, que segundo Hobsbawn (1997), sidente Getúlio Vargas, teve como primeiro ministro do Trabalho Lindolfo Collor. A ele coube colocar em andamento um conjunto de medidas destinadas a mudar o padrão das relações de trabalho no País. Partia-se do pressuposto de que apenas com a intervenção direta do poder público seria possível amortecer os conflitos entre capital e trabalho presentes no mundo moderno (Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos3037/PoliticaSocial). 39. Decreto n° 19.770 de 1931- Lei de Sindicalização: a nova lei tinha como objetivo geral fazer com que as organizações sindicais de empresários e trabalhadores se voltassem para a sua função precípua de órgãos de colaboração do Estado. A intenção, portanto, era colocar em prática um modelo sindical baseado no ideário do corporativismo (Doutrina que propõe a organização da sociedade com base em associações representativas dos interesses e das atividades profissionais, ou corporações. Graças à solidariedade dos interesses concretos e às fórmulas de colaboração daí derivadas, seriam removidos ou neutralizados os elementos de conflito, como a concorrência no plano econômico, à luta de classes no plano social, ou as diferenças ideológicas no plano político). Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/ anos30-37/PoliticaSocial. 140 Clube Caixeral de Rio Grande/RS MEMÓRIA & PATRIMÔNIO nas sociedades tradicionais, tem a dupla função de motor e volante. Não impede as inovações e pode mudar até certo ponto, embora evidentemente seja tolhido pela exigência de que deve parecer compatível ao precedente. Sua função é dar a qualquer mudança desejada (ou resistência à inovação) a sanção do precedente, continuidade histórica e direitos naturais conforme o expresso na história. [...] A decadência do “costume” inevitavelmente modifica a “tradição” à qual ele geralmente está associado (HoBsBaWn, 1997:10). Entender as atividades que estavam por trás das portas do CC Rio Grande nos permite cotejar o passado e o presente, sobre aquilo que era entendido como ‘tradição’, e que com o tempo perdeu elementos que ressignificassem. Essa perda está em sinais que definem o espaço, as situações, ligações ao corpo e ao espírito, e codificados no local, percebendo quando o costume não se preparou para o seu próprio entendimento, mesmo ressignificando um passado através de elementos simbólicos. Nos anos de 1930, com a nova visibilidade do Estado – trabalhador é possível perceber as ações de clubes classistas, mais contidas, com um olhar mais profissional, do que familiar. A separação da recreação social com relação à recreação institucional começa a acontecer de maneira gradual. A recreação social pós 1930 As décadas que se sucederam pós 1930-1950 configuraram o Clube mais como um espaço recreativo e de encontro de famílias do que como uma extensão do lar. Os bailes temáticos e festas tinham por intuito fazer prevalecer um código de comportamento para aqueles que o frequentavam. Os anseios da classe caixeiral estavam mais implícitos nas atividades sociais, 141 Clube Caixeral de Rio Grande/RS MEMÓRIA & PATRIMÔNIO como forma de manifesto não só político, mas sociocultural. E, assim, famílias que desfrutavam de condições financeiras e prestígio profissional e social vantajosas mantiveram a importância do Clube diante da sociedade. De acordo com Bergson o que a vida e a sociedade exigem de cada um de nós é uma atenção constantemente vigilante, a discernir os contornos da situação presente, é também certa elasticidade do corpo e do espírito, que nos dê condições de adaptar-nos a ela. Tensão e elasticidade, aí estão duas forças complementares entre si que a vida põe em jogo (Bergson, 2007:13) (grifo do autor). Assim a memória se mostra em constante vigilância, mesmo que esteja retida no espírito. A sua maleabilidade só se revela quando encontra em si mesmo o poder simbólico do relembrar. Ela estabelece pontos de referência para manter um encadeamento memorial. O CC Rio Grande mantém pontos de referência a partir de sua herança material, e também através da memória de quem passou por lá, como frequentador, funcionário, integrante da diretoria, admirador, entre outros. Segundo Halbwachs (2006), Se pusermos em primeiro plano os grupos e suas representações, se concebemos o pensamento individual como uma série de pontos de vista sucessivos sobre os pensamentos desses grupos, então compreendemos que possam retroceder no passado mais ou menos segundo a extensão das perspectivas que lhe oferece cada um desses pontos de vista sobre o passado tal como representado nas consciências coletivas de que participa (HaLBWaCHs, 2006, p.155). A senhora Ydna Martinez, uma de nossas entrevistadas, 142 Clube Caixeral de Rio Grande/RS MEMÓRIA & PATRIMÔNIO rememora esse passado, ou seja, ela retrocede até ao ponto onde as suas lembranças se encontram com o afeto coletivo, e assim dialoga com o passado relatando como iniciou seu contato com o Clube, ainda quando jovem, quando seu pai, o senhor Mario Correa Álvaro, foi presidente por várias gestões 40. “Então, o papai foi muitos anos presidente do Caixeiral, ele gostava muito, o papai era muito de baile, de festa, muito animado, ele procurava esse entusiasmo e passar para clube 41". Segundo o senhor Péricles Gonçalves, outro entrevistado, Mario Correa Álvaro foi presidente durante um bom tempo, pois o Caixeiral foi presidido por uma pessoa só, no sentindo de não haver alternância de poder, a diretoria ficou durante muitos anos na pessoa do senhor Mario Correa Álvaro, que era dono de um cartório aqui na cidade. Quando se fala no nome do Mario Correa Álvaro, se ligava ao Caixeiral, quer dizer, eles se misturavam, ele e o Caixeiral, porque ele deve ter sido presidente por mais de 20 anos, né? Então esta pessoa se dava bastante com o meu pai, até por conta do meu pai participar dos bailes, como a sociedade de Rio Grande participava, porque o baile do Caixeiral era na segunda-feira de Carnaval, quando as outras sociedades não davam baile 42. Essa introjecção entre o “eu” e o fazer dentro do espaço privado e do público, proporciona a confluência de memórias, tanto a individual quanto a coletiva, sendo que a coletiva se sobrepunha às lembranças individuais, a personificação do 40. O CC Rio Grande, nas primeiras décadas de existência, elegia uma nova diretoria para mandatos de 01 (um ano), a partir dos anos de 1950 esse mandato passou a ter prazo de 02(dois) anos (Acervo Documental do CC Rio Grande). 41. Entrevista realizada em 21/10/2017. 42. Entrevista realizada em 24/07/2017. 143 Clube Caixeral de Rio Grande/RS MEMÓRIA & PATRIMÔNIO espaço social, onde essas lembranças forma produzidas, mantinham as outras lembranças produzidas pelos outros círculos sociais em estado de espera. Na data magna do Clube, o senhor Mario fazia aniversário, segundo ela [...] 3 de maio, justamente no dia do aniversário do meu pai. Faziam banquetes, eram famosos pelos pratos gostosos e diferentes que apresentavam. O papai não entendia nada de francês, entendia de inglês porque ele trabalhou na Swift, não, no banco inglês, os irmãos dele trabalharam na Swift. Então ele sabia inglês, mas francês ele não sabia, mas eu não sei como ele colocava os nomes no cardápio tudo em francês, [...] tudo em francês. Eram festas muito bonitas e a gente gostava também de festejar (fig.01) 43. Figura 01: Jantar em Comemoração ao Aniversário do Clube. Ano: década de 1950. Fonte: Acervo Pessoal da Sra. Ydna Martinez De acordo com Ecléa Bosi, “A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a Igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos e referência peculiares a esse indivíduo” (Bosi, 1994. p.17). 43. Entrevista realizada em 21/10/2017. 144 Clube Caixeral de Rio Grande/RS MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Assim a relação com o Clube na família da senhora Ydna a instiga a trabalhar a sua memória, mais do uma simples lembrança, os seus pontos de referência perduram pelo elo que a família mantinha. Ao escutá-la, foi possível perceber o sentimento de reencontro com a saudade, a importância de recontar um tempo vivido. Os outros bailes, dos quais eu me lembro, eram assim, no Natal e na Páscoa. Na páscoa o pai comprava na Leal Santos, uma fábrica que havia aqui muito famosa, comprava latas e latas de bolacha daquela bolacha Maria para a criançada. Então ele distribuía bolachas e guaraná, e houve um ano que ele sorteou coelhinhos vivos para as crianças, era uma festa. [...] E quando era natal (fig), ele armava no centro do salão uma grande árvore de Natal, eu me lembro de que houve um ano... Que ele sempre festejou o Natal na nossa família. Então eu tinha muitos enfeites bonitos que emprestei um dia pra colocar naquela árvore de Natal também, como era muito grande não havia enfeite que chegasse... Então eram também muito animados os bailes de Carnaval, de Natal. E ele fazia muito baile infantil, no Natal e na Páscoa44. Figura 02: Jantar de Natal. Ano: Década de 1950. Fonte: Acervo pessoal da Sra. Ydna Martinez 44. Entrevista realizada em 21/10/2017. 145 Clube Caixeral de Rio Grande/RS MEMÓRIA & PATRIMÔNIO A senhora Ydna também nos conta a respeito do Carnaval, que com o passar do tempo acabou tornando-se um dos eventos mais importantes para o Clube. Além disso, durante a festa popular era mantido um ritual evidenciado por pequenos detalhes, como a farta distribuição de confete e serpentina pela entidade, símbolo do modo burguês. Ao olhar as fotografias de seu acervo pessoal, ela nos relata: O Clube Caixeiral de Rio Grande era famoso pelos bailes que dava, eram os de Carnaval os mais famosos, então todo mundo no Carnaval gostava de correr, os que eram sócios e os que não eram queriam conseguir convites porque eram bailes muito animados. [...] Quando era Carnaval, eu sei que ele encomendava de fora da cidade sacos de confete, serpentina, ventarolas de papelão, reco-recos, apitos e tudo aquilo ele distribuía no Carnaval. Na segunda-feira de Carnaval era o ponto alto do Carnaval, porque as senhoras iam de vestido de baile, as moças de fantasias, até as senhoras também. Eu digo as senhoras porque geralmente a gente não se fantasiava, mas se vestiam de traje de gala e os homens iam de smoking e gravatinha. Era o ponto alto. Não era por isso que não havia entusiasmo. [...] E no salão do Caixeiral, no lado direito e no lado esquerdo uma parte mais alta, feito uma plataforma de madeira, não sei se existe até hoje... Ruiu tudo. [...] Não tem mais vestígios. E ali ficavam mesinhas e as cadeiras, então quem quisesse comprar uma mesa pras festas, ficava na mesa, naquela parte mais alta. Quando chegava o entusiasmo do carnaval, nos bailes, as pessoas dali faziam carnaval atirando serpentina, confete, tocando reco-reco, então era entusiasmado 45. A tradição do confete e serpentina, também é relatada pelo senhor Péricles Gonçalves: “Era um baile (fig.03) com 45. Entrevista realizada em 21/10/2017. 146 Clube Caixeral de Rio Grande/RS MEMÓRIA & PATRIMÔNIO abundância de distribuição de serpentina e confete. O salão ficava com centímetros de confete e era uma coisa muito interessante, era uma coisa bem farta, a distribuição de apito, língua de sogra”46. Além disso, a memória dos sentidos aqui se caracteriza pelo tato. Pelo relato é possível perceber sua precisão sobre a textura, quando se refere à abundância de confete e serpentina. Figura 03: Baile de Carnaval. Ano: Década de 1950. Fonte: Acervo Fototeca Municipal Ricardo Giovannini Além disso, o Carnaval no CC Rio Grande tentava manter uma tradição, onde o ponto alto era o baile de segunda-feira, as vestimentas de gala nos salões preservavam o padrão aristocrático urbano, já que a fantasia remetia à folia de rua e isso só foi sendo aos poucos inserido no clube. As memórias desse baile vão ao encontro das palavras do senhor Péricles Gonçalves Na década de 40, foi à década que meu pai começou a frequentar, os bailes, por exemplo, de Carnaval do Clube Caixeiral eram bailes de meia gala, não poderia entrar com qualquer roupa, tinha que entrar com camisa branca, 46. Entrevista realizada em 24/07/2017. 147 Clube Caixeral de Rio Grande/RS MEMÓRIA & PATRIMÔNIO calça preta e uma faixa na cintura porque era um baile não comum. Inclusive, eu não sei se outra sociedade de Rio Grande exigia esse tipo de vestimenta para um baile de Carnaval, já na minha época poderia até entrar fantasiado, eu participei muitas vezes de bailes com máscara, e nesta época, segundo o meu pai, as mulheres iam com vestido condizente, com meia gala e os homens com essa faixa... Eu me lembro de um... está na minha memória apenas: deles indo para o baile, e o meu pai com uma faixa vermelha na cintura47. Esse ritual que envolvia o Carnaval do CC Rio Grande, com relação à vestimenta, era um código definidor de grupos. Aquelas pessoas que podiam adquirir um determinado padrão de roupas pertenciam ao grupo seleto. O traje de gala era para festas superformais, isso demonstrava que o Carnaval era reservado e que no Clube a importância ao evento era relevante para a manutenção de uma recreação institucional. Mesmo com essa formalidade, entre nossos entrevistados foi possível perceber que o lugar suscitava a alegria, o divertimento era componente importante que transparecia no sorriso, nas músicas. Figura 04: Sra. Ydna Martinez (à esquerda), Ubirajara Martinez (ao centro) e Angela Guimarães.Ano: 23/02/1952. Fonte: Acervo Pessoal da Sra. Ydna Martinez 47. Entrevista realizada em 24/07/2017. 148 Clube Caixeral de Rio Grande/RS MEMÓRIA & PATRIMÔNIO A alegria era algo contagiante, entusiasmante, como nos relatou a Sra. Ydna, e, segundo Bergson (2007), O riso deve ser alguma coisa desse tipo, uma espécie de gesto social (fig ). Pelo medo que inspira, o riso reprime as excentricidades, mantém constantemente vigilante, e em contato recíproco, certas atividades de ordem acessória que correriam o risco de isolar-se e adormecer; flexibiliza enfim tudo o que pode restar de rigidez mecânica na superfície do corpo social (fig.04 ) (Bergson, 2007, p.15). A organização do Clube, quanto aos seus eventos, demonstrava o interesse pelo seu associado, o reconhecimento e, ao mesmo tempo o cuidado com quem ali transitava. A seleção musical do baile fazia um apelo à memória musical do Caixeiral, as músicas emitiam um código de sinais através das letras rememoradas por muito tempo. Segundo o senhor Péricles Gonçalves, Eu acho que também faz parte de um contexto, os próprios bailes de Carnaval fazem partem de um contexto, os bailes de hoje não são os mesmos, até porque os carnavais de hoje não são mais os mesmos, nós nos preparávamos para o Carnaval (fig. 03), era antecedido inclusive com publicações das músicas que tocariam naquele Carnaval, tinham mais ou menos parecido com palavra cruzada, daquele tamanho, os livretos, era Melodia o nome do livreto, que traziam as letras do próximo Carnaval, e a gente ficava decorando as letras pra poder cantar nos bailes [...] tinha lá o “Índio quer Apito”, cada um no seu tempo,”Jardineira”, coisas que até hoje a gente lembra. Qual a música do último Carnaval? Não teve no último Carnaval, não tem mais isso. Então eu acho que é tudo fruto de uma época, não há mais preparação para o Carnaval. O Carnaval em algumas partes do Brasil são trios elétricos, não tem Carnaval. No Cassino, meio que reergueu esse tipo de Carnaval popular, 149 Clube Caixeral de Rio Grande/RS MEMÓRIA & PATRIMÔNIO que antigamente nossas escolas de samba e as academia: Império Serrano, As Mariquitas, Quebra Osso, Marilu, esse aí desfilava pelo Marechal e atrás tava todo mundo, hoje não, hoje é desfile. O pessoal ficava na arquibancada vendo como se fosse um desfile militar, sem participação. No Rio de Janeiro o pessoal participa um pouco, canta, mas o samba enredo também era antecipado, todo mundo sabe o tema da Portela. Era mais ou menos o acontecia com o povão antes, hoje é só quem vai lá à Sapucaí. E eu tenho a impressão que com o passar do tempo também isso diminuiu, porque há uns anos atrás a gente sabia de cor os sambas- enredo48. Figura 05: Imagem do Baile de Carnaval. s/d. Fonte: Acervo Fototeca Municipal Ricardo Giovannini Essa ritualização, à qual o sócio e o seu espaço eram submetidos, fez com essas lembranças se transformassem num trabalho da memória, o exercício de recriar cada momento e exteriorizar somente aquilo que pode contribuir com a memória coletiva. Existe, não que declaradamente, uma conivência memorial entre o corpo e o espírito, lembrar para não esquecer, exteriorizar para não ser esquecido. 48. Entrevista realizada em 24/07/2017. 150 Clube Caixeral de Rio Grande/RS MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Dentre outras festividades, havia as festas temáticas. Essas remetiam a um encontro onde a garantia de estar no coletivo era a continuidade do espaço privado. Em 1935, encontramos o registro da Festa da Neve (fig.06), é importante observar que o traje era algo sempre muito importante dentro do espaço do Clube. Figura 06: Imagem da Festa da Neve. Ano: 1935. Fonte: Acervo Fototeca Municipal Ricardo Giovannini A importância em manter um calendário tradicional era também uma forma de refletir as vontades dos sócios. Mas será que, ao refazermos uma releitura do tempo vivido, conseguimos de fato perceber onde o objeto de estudo fraqueja diante de sua memória e sucumbe ao esquecimento? Sabemos o que é o esquecimento? Buscamos um passado que muitas vezes não vivenciamos, pois essa busca são as nossas inquietações quanto ao presente e não por um tempo vivido. O passado é formado por ciclos temporais, que se entrelaçam entre si, até encontrar o presente e esse tornar-se novamente passado. 151 Clube Caixeral de Rio Grande/RS MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Figura 07: Imagem da Festa Junina. Aproximadamente década de 1950. Algumas pessoas identificadas da esquerda para a direita: Olenca Miranda Neves, Maria Amelia Rey Barlem, Walter Britto Neves, Geter Oliveira, Cecy Ramos, Antonio Salomão Faria, Sr. e Sra. Machin, Maria Araújo, Tereza, Amadeu, Caroline Costa Miranda, Recaman, Perez. Fonte: Acervo Fototeca Municipal Ricardo Giovannini Em 1950, uma das festas mais movimentadas era a junina (fig. 07), agregando a família, o Clube e a recreação, dentro de um caráter regionalizado. Assim, foram mantidas plenamente até os anos de 1970, quando a partir de então começou uma luta contra o tempo, causada pela perda material, financeira e de sócios. Como a própria sociedade em que vivemos, e que se reiventa em valores e costumes, os espaços culturais não são diferentes, mas nem todos conseguem sustentar essa reinvenção. 152 Clube Caixeral de Rio Grande/RS MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Conclusão Com a mudança nos anos de 1930, com a Era Vargas, o entendimento que nos cerca sobre a memória histórica do grupo concentra-se no papel do Estado, como o principal centralizador das ações político-econômicas. Observamos, então, que, para as sociedades mutualistas de um modo geral, era preciso inovar, sem perder a tradição no seu espaço social. No CCrg não foi diferente, a projeção que o Clube adquiriu a partir do incentivo aos bailes de Carnaval, além de outras festas temáticas oferecidas a seus sócios, estão até hoje no imaginário daqueles que por ali passaram e as vivenciaram, fossem para si mesmos ou para sua família, principalmente. Percebemos que a separação do espaço temporal armazena uma resistência que se apropria de suas lembranças para não esquecer. Mas devemos refletir com veemência: por qual motivo devemos lembrar? Por que nos inquieta a necessidade da permanência do passado no tempo presente se, de fato, o presente e o passado não se correlacionam? Mesmo o passado estando presente, a ausência de sinais entre ambos impõe uma agressividade, o luto que não aceita a perda. Referências Acervo documental do Clube Caixeiral de Rio Grande. Arquivo Público e Histórico Municipal/ Prefeitura Municipal do Rio Grande/rs. Acervo fotográfico do Clube Caixeiral de Rio Grande. Fototeca Municipal Ricardo Giovannini/Prefeitura Municipal do Rio Grande/rs. Bergson, Henri. Matéria e memória. Tradução: Paulo Neves. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Bergson, Henri. O Riso. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BiTTenCoUrT, Ezio da Rocha. Da rua ao teatro, os prazeres de uma cidade: 153 Clube Caixeral de Rio Grande/RS MEMÓRIA & PATRIMÔNIO sociabilidades e cultura no Brasil meridional - panorama da história de Rio Grande. 2ª edição revista e ampliada. Rio Grande: Editora da FUrg, 2007. HaLBWaCHs, Maurice. Memória coletiva. Tradução: Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006. HoBsBaWn, Eric J. Mundos do Trabalho: novos estudos sobre a história operária. São Paulo: editora Paz e Terra, 2015. HoBsBaWn, Eric J..Os trabalhadores: estudos sobre a história do operariado. São Paulo: editora Paz e Terra, 2015. HoBsBaWn, Eric J.. ranger, Terence (orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. needeLL, Jeffrey D. Belle Époque Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 154 MEMÓRIA & PATRIMÔNIO “Ô Chora Makamba, Chora Nauê”: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário no Litoral Negro do Rio Grande do Sul Claudia Daiane Garcia Molet 49 Neste artigo analisarei a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, que foi fundada em Mostardas 50 durante século XViii e resiste até a atualidade, a partir do Ensaio de Pagamento de Promessas, um ritual afro-católico. Para investigar as peculiaridades deste ritual utilizei entrevistas que foram realizadas com a Irmandade e com outros devotos da Santa. Atualmente, os membros da Irmandade são homens, negros, oriundos das comunidades remanescentes quilombolas 51 ainda que a fé na Santa esteja presente por todo litoral negro 52 do Rio Grande do 49. Doutora em História. Bolsista Capes. E-mail: claudiamolet@yahoo.com. br 50. Mostardas emancipou-se do município de São José do Norte na década de 1960. 51. O decreto federal 4.887 determinou que os remanescentes de quilombos fossem aqueles grupos étnico-raciais, segundo critério de autoatribuição e que tivessem uma trajetória própria. Também deveriam possuir relações territoriais específicas, bem como ter uma ancestralidade negra que fosse relacionada com a resistência a uma opressão histórica sofrida. Com este decreto, ficaram evidentes algumas especificidades para uma comunidade ser considerada como quilombo: ancestralidade negra, territorialidade e resistência histórica. 52. O termo “litoral negro” designa tanto um espaço geográfico, marcado pela presença de diversas comunidades quilombolas remanescentes, na faixa de terras entre a laguna dos Patos e o Oceano Atlântico, mas também um conceito que possibilita entender as diversas interligações qualificadas pelos laços de amizades, parentescos, compadrios e compartilhamento de práticas culturais por escravizados, libertos e livres desde o século XIX à atualidade. 155 "Ô Chora Makambra, Chora Nauê" MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Sul. Nas entrevistas emergem as memórias do Ensaio, sendo corriqueiras as informações de que o ritual está presente desde que eram crianças ou jovens, quando acompanhavam os pais ou avós, desse modo, o Ensaio é passado de geração a geração, por isso a fé na Santa é enorme, pois são inúmeros os milagres contados. Sobre o significado do termo Makamba que aparece na cantiga entoada no começo do Ensaio de Pagamento de Promessa, Lopes (2005) elucida que representa os “pares”, aquelas e aquelas que estão passando pelas experiências da escravidão. Acima de tudo, destaco que Makamba poderia designar os amigos, camaradas. Desse modo, no Ensaio, os Makambas são aqueles irmãos unidos da fé em Nossa Senhora do Rosário. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Preto: a fé de senhores, de escravizados e de libertos A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em Mostardas, parece ter sido criada por volta de 1773 53, sendo uma das primeiras a serem construídas no Rio Grande do Sul; posteriormente, apenas Viamão, estabelecida em 1754. Alguns anos mais tarde, no dia 12 de julho de 1804, os irmãos solicitaram a confirmação de compromisso a D. João Vi, então príncipe regente, conforme documento “Dizem os irmãos da Irmandade da Senhora do Rosário da Freguesia de São Luís de Mostardas, do Continente do Rio Grande, que eles (?) da 53. Não encontrei nenhuma documentação da Irmandade desta data, mas ela é mencionada por alguns sítios eletrônicos, como aquele da pesquisadora Marisa Guedes, que informa que a Irmandade já existia em 1773. Disponível em: http://marisaguedeshistoriadora.blogspot.com/2009/05/ensaio-de-promessa.html. Acesso em 10 de maio de 2018. 156 "Ô Chora Makambra, Chora Nauê" MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Irmandade (?) compromisso junto o qual (?) confirmação de Vossa Alteza (?)”. 54O documento possui poucas palavras, bem menos do que esta historiadora esperava; além disso, não foi possível fazer a leitura completa, mas sabemos que em 1804 os irmãos pediram a confirmação do compromisso, um indicativo de que já estavam em atividade antes da data da emissão do pedido. Infelizmente, há uma lacuna de documentos escritos sobre a Irmandade do Rosário de Mostardas, mas felizmente ela ainda está em atividade, especialmente para realizar o Ensaio de Pagamento de Promessas. Reis (1991), ao analisar a Bahia, informa que as irmandades possibilitavam a tessitura de solidariedades entre seus membros. No caso da Irmandade de Rosário de Mostardas, nota-se que a mesma resiste até a atualidade, como no caso do Ensaio de Pagamento de Promessas, cujos membros, muitos deles ligados por laços de parentescos, unem-se com outros irmãos para juntos realizarem o ritual religioso que remonta ao período da escravidão. Podemos compreender a fé em Nossa Senhora do Rosário a partir da perspectiva do catolicismo negro. Azevedo (2003), ao investigar as experiências culturais dos africanos e de seus descendentes, no Brasil, no século XiX, argumenta que a igreja católica, ao permitir a existência do catolicismo negro, involuntariamente garantiu que africanos e seus descendentes pudessem vivenciar seus valores religiosos. Entretanto, o convívio com o catolicismo negro nem sempre foi tolerado. No caso das 54. Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino. Brasil - Rio Grande do Sul. Caixa 7, n° 521. Requerimento dos Irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da freguesia de São Luiz de Mostardas. Disponível em: http://resgate.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=019_RS&PagFis=4965&Pesq=. Acesso em 30 de maio de 2018. 157 "Ô Chora Makambra, Chora Nauê" MEMÓRIA & PATRIMÔNIO experiências dos fiéis do litoral negro há relatos de perseguição de membros da Igreja Católica para tentar coibir e regrar as manifestações religiosas. Além disso, o Estado, no período da ditadura civil-militar, a partir do uso da força policial coibiu as manifestações do Ensaio de Pagamento de Promessas a Nossa Senhora do Rosário. Azevedo (2003) destaca que a Igreja Católica manteve a unidade do seu dogma, porém a “pesada” influência das culturas africanas propiciou um novo catolicismo engendrado a partir de uma perspectiva cultural diferente. Diante dessa nova realidade a Igreja Católica passou a conviver com o catolicismo negro composto por irmandades religiosas negras e suas distinções étnicas africanas; pelos santos negros e suas festas específicas; pelos anjinhos negros abrindo as procissões sagradas dos fiéis negros, e particularmente pelas Congadas, momentos que inclusive as igrejas locais patrocinavam a coroação de casais negros, reis e rainhas. O catolicismo negro foi paulatinamente “acomodado” pela igreja branca que impediu assim a separação dos dois catolicismos. Há uma lacuna de documentos escritos sobre a Irmandade do Rosário, em Mostardas. Na década de 1960, o Livro Tombo da Igreja de Mostardas 55 refere-se à atuação da Irmandade de “morenos”, época em que o Padre Simão Moser, que dirigiu a Paróquia entre 1951 a 1982, proibiu as manifestações de Ensaio de Promessa. Nota-se que houve uma tentativa de proibições dos Ensaios de Promessas realizados pela Irmandade e regramentos na Festa do Rosário. De acordo com as novas normas, 55. LIVRO TOMBO, p. 6, conforme mencionado por Marisa Guedes: http:// marisaguedeshistoriadora.blogspot.com/2009/05/ensaio-de-promessa. html acesso em 31 de janeiro de 2019. 158 "Ô Chora Makambra, Chora Nauê" MEMÓRIA & PATRIMÔNIO o promesseiro deveria substituir o Ensaio por uma Santa Missa. Este ponto nos remete para uma tentativa de apagar a história de um ritual que surgiu durante a escravidão e que pela oralidade perpassou gerações de famílias negras. A Festa e o Ensaio são dois momentos distintos de devoção a Nossa Senhora do Rosário. O Ensaio envolve um momento entre a Irmandade e Nossa Senhora do Rosário, sem a participação direta da Igreja Católica. Sobre a proibição dos Ensaios, Lobo (2010, p. 89-90), ao analisar a Irmandade de Rosário de Tavares 56, comenta que escutou relatos de que o ritual foi censurado pelos padres católicos de Tavares, por um determinado período, não datado pelos informantes. Provavelmente, essa interdição ocorreu na década de 1960, conforme documento analisado anteriormente. Leite (2004, p. 172), por sua vez, ao analisar a comunidade remanescente quilombola de Casca, traz o depoimento de dona Adolfina, remanescente quilombola, que com uma expressão muito triste e saudosa relembra que um padre católico proibiu o Ensaio, alegando que o ritual era “coisa de batucaria”. A memória e a oralidade Alguns estudos abordam sobre a oralidade e a memória nas Comunidades Quilombolas. Hebe Mattos (2005, 2006, p. 109), ao estudar os remanescentes de quilombolas do centro-sul do Brasil (Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo), afirma que nas narrativas destacam-se os aspectos simbólicos da memória familiar da escravidão que são “elaboradas e 56. Tavares emancipou-se de Mostardas, na década de 1980. 159 "Ô Chora Makambra, Chora Nauê" MEMÓRIA & PATRIMÔNIO reelaboradas em função de relações tecidas no presente, como em todo o trabalho de produção de memória coletiva”. Este aspecto é muito importante, pois as memórias estão relacionadas com o presente e, portanto, não são fixas, já que são elaboradas e reelaboradas. Importante ressaltar que a memória do passado está intimamente relacionada com o presente, como nos casos das lembranças da longevidade do Ensaio de Pagamento de Promessas. Outra pesquisa que traz subsídios é a dissertação de Joelma Tito da Silva (2009), que investiga a comunidade quilombola Negros do Riacho 57, localizada no município de Currais Novos, no Rio Grande do Norte. A historiadora faz uso das memórias quilombolas e conclui que há uma construção, por parte dos narradores, de uma temporalidade mítica e ancestral onde viveu o primeiro ancestral da comunidade. Destaca ainda uma associação entre arte, tradição oral e memória na produção de cerâmica. A autora destaca que, até a última década do século XX, houve uma grande produção de potes e panelas na comunidade. Esta arte era ensinada pelos pais e avós, porém atualmente apenas algumas mulheres ainda fazem louças de barros. Para a autora, isso ainda acontece porque “a louça é um suporte de memória que ritualiza a tradição, faz lembrar o tempo dos antigos e da infância”. Memórias que viajam pelos tempos, vão e voltam em um passado que não é dividido cronologicamente, pois está imerso também nos anseios do presente. Por todas essas memórias, fiz uso da metodologia da História Oral 58, em que a memória 57. Silva (2009) informa que a comunidade dos Negros do Riacho foi reconhecida como “remanescente de quilombo” em 2006. 58. Para Alberti (2005, p. 155), a História Oral é “uma metodologia de pesqui160 "Ô Chora Makambra, Chora Nauê" MEMÓRIA & PATRIMÔNIO é de extrema importância. Conforme pontua Alberti (2005, p. 155), a partir desta metodologia é possível ter acesso a “histórias dentro da História”. A autora destaca que, a partir da década de 1960, começou a fase da “História Oral Militante” cujos historiadores que a faziam acreditavam que História Oral possibilitaria “dar vozes” às minorias. Porém, a autora considera que é pertinente ter precaução quanto às influências dessa história militante, pois é necessário levar em consideração que o relato, resultado da História Oral, não é a própria “História”. Desse modo, a entrevista, em vez de fonte, pode passar a ser considerada a própria “revelação do real”. Além disso, outro equívoco apontado pela autora é de que, ao se fazer a história oral, usar a noção de “história vista de baixo”, como se o pesquisador concedesse aos de “baixo” a chance de se expressar, indicando que talvez eles sozinhos não fossem capazes de assim fazer 59. Um dos estudos de referência sobre a memória é a obra de Halbwachs (2004), A Memória Coletiva, em que o autor faz uma análise da memória baseada nos estudos de Durkheim, para quem os fatos sociais são externos ao indivíduo, pois a maneira de agir, de pensar e de sentir depende da sociedade em que o mesmo está inserido. Ao nascer, o indivíduo é socializado de acordo com as regras, que são internalizadas por meio de um sa e de constituição de fontes para o estudo da história contemporânea surgida em meados do século XX, após a invenção do gravador a fita. Ela consiste na realização de entrevistas gravadas com indivíduos que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos e conjunturas do passado e do presente. Tais entrevistas são produzidas no contexto de projetos de pesquisa, que determinam quantas e quais pessoas entrevistar, o que e como perguntar, bem como que destino será dado ao material produzido”. 59. Sobre as contribuições da história oral, a história da população negra, ver: ALBERTI Verena; PEREIRA, Amilcar Araújo. Possibilidades das fontes orais: um exemplo de pesquisa. Anos 90. v. 15, nº 28, Porto Alegre, 2008, p. 73-98. 161 "Ô Chora Makambra, Chora Nauê" MEMÓRIA & PATRIMÔNIO processo educativo e há obstáculos para aqueles que não aceitam as imposições da sociedade. Todavia, apesar das dificuldades impostas, as instituições são passíveis de mudanças desde que vários indivíduos tenham pelo menos combinado uma ação e que desta combinação haja um novo fato social. Conforme destacam Weber e Pereira (2010, p. 106), para Durkheim “não é o indivíduo que determina a sociedade, mas a sociedade que condiciona o indivíduo”. Halbwachs (2004, p. 31-38) afirma que as lembranças são coletivas, pois a memória está relacionada, em todos os momentos, com outros grupos que não precisam estar fisicamente com aquele que rememora, visto que estão, em cada detalhe, presentes nas ruas, nos prédios, nos parques. Os lugares, assim como as coisas, carregam; são, portanto, memórias, todavia não basta participar ou assistir a uma determinada cena em que outros homens são os expectadores ou ainda os atores, para lembrá-la, pois é necessário fazer parte do grupo. Isso porque, posteriormente, quando aqueles evocarem a cena, ou, ainda, quando reconstituírem parte por parte, aquele que não estiver inserido no grupo não recordará. É necessário fazer, portanto, parte de um grupo e ter pensamentos comuns com este e ainda permanecer em contato para assim identificar-se com o passado rememorado. Candau (2003, p. 61-63) argumenta que a noção de memória coletiva elaborada por Halbwachs serve para analisar uma série de fenômenos sociais relacionados com a memória. Desse modo, este conceito sociológico é fecundo, pois não seria possível designar de outra maneira determinadas formas de consciência do passado que aparentemente são compartilhadas por um conjunto de indivíduos. Porém, mesmo que haja uma memória coletiva em cada sociedade humana, 162 "Ô Chora Makambra, Chora Nauê" MEMÓRIA & PATRIMÔNIO no interior dessas há indivíduos com sua memória individual que depende da sua história e da organização de seu cérebro. A memória do Ensaio de Pagamento de Promessas aponta para um ritual afro-católico, transmitido pela oralidade, formada por fortes laços de parentescos e de solidariedades, conforme analisarei na sequência. O Ensaio de Pagamento de Promessas: a fé re(existe) na atualidade Assim, como a Irmandade do Rosário existe desde o século XViii, o Ensaio pode ter surgido durante a escravidão. As narrativas apontam que a Santa ensinou as danças e os cantos para um negro e, através da oralidade e da observação, ele existe até a atualidade. Pelos relatos dos entrevistados, percebi que o Ensaio ocorre quando um devoto de Nossa Senhora do Rosário, em momento de desespero, que envolva saúde, lavoura, casa e estudos, ou seja, apenas para pedidos difíceis de serem atendidos, promete que se seu pedido for atendido realizará um Ensaio de Pagamento de Promessa. A memória dos quilombolas aponta para histórias do encontro da Santa com os seus antepassados, destacando que as cantigas e as gingas foram ensinadas por Nossa Senhora do Rosário e assim, de geração em geração, os irmãos seguem ensaiando a cada ritual. Ramos (2015), ao investigar o Ensaio no litoral negro, traz uma entrevista com Seu Orlando, quilombola de Teixeiras, hoje falecido, importante personagem no ritual. Segundo Seu Orlando, o Ensaio começou em 1720 e era utilizado pelos negros para curarem-se. No começo, os negros acendiam um fogo e faziam o ritual no meio do mato, pois os brancos não o aceitavam, visto 163 "Ô Chora Makambra, Chora Nauê" MEMÓRIA & PATRIMÔNIO que consideravam a ação um batuque. Porém, os brancos começaram a adoecer e, como não existia médico na localidade e nem “meios” para ir a Porto Alegre ou outra região, decidiram autorizar o Ensaio e inclusive liberaram para que os negros cantassem dentro de casa. Esta relação do Ensaio com o passado escravista é muito acionada na atualidade. Afinal, os negros doentes e sem recursos para tratar os males receberam a proteção de Nossa Senhora do Rosário que lhes ensinou os cantos e as danças. Diante das dificuldades da escravidão e da vida no litoral negro, os negros não estavam sozinhos, a Santa poderia estender-lhe as mãos. E com isso a relação senhor-escravo ou branco-negros recebeu algumas peculiaridades, pois os brancos recorriam aos negros para fazer o Ensaio, pois também queriam ficar curados. Aciono, neste momento, os membros da Irmandade para narrarem sobre o Ensaio. A entrevista a ser analisada foi realizada no Ensaio de maio de 2018. Inicialmente, fui conversar com o Seu João Manoel, irmão do Seu Hirto Miguel, ambos filhos de Seu Antônio Zabela, já falecido, que é lembrado pelos membros da Irmandade e demais devotos de Nossa Senhora como um importante detentor da sabedoria do ritual. Porém, Seu João Manoel indicou seu filho Cristiano Silva, também membro da Irmandade e atual responsável pela organização do grupo. Decidi por gravar a entrevista com os dois, na tentativa de que Seu João Manoel conversasse comigo. Nesta entrevista, assim como nas demais, destacaram-se as memórias familiares, pois o Ensaio é um ritual passado pelas gerações de famílias negras. São histórias, de avós, tios, pais, mães que foram “criados” no Ensaio. Claudia Daiane: O que é o Ensaio de Pagamento de Promessas? 164 "Ô Chora Makambra, Chora Nauê" MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Cristiano Silva: O Ensaio de Promessas para nós é uma cultura, uma cultura dos negros. Quando alguém se sente doente, que tem uma promessa, que fez uma colheita boa, faz uma promessa para pagar um Ensaio. Faz a promessa, marca um dia conosco e viemos pagar a Promessa. É uma cultura desde o tempo dos meus avôs. Eu estou com 42 anos e já tem há uns cinquenta e tantos anos, esta cultura dos negros. Claudia Daiane: Teu avô era o Antônio Zabela? Cristiano Silva: Isso, Antônio Zabela, é o pai dos dois (Seu João Manoel e Seu Hirto Miguel). Claudia Daiane: Há quanto tempo tem o Ensaio? Cristiano Silva: Eu tenho 42 anos e acho que isso já faz uns cinquenta anos, né? S. João Manoel: Bastante tempo, bastante tempo. Claudia Daiane: Seu pai era do Ensaio também? S. João Manoel: Meu pai era e era mesmo. Eu estou com 82 anos. Eu era novo, rapaz novo, com 15 anos e ele já me puxava, mas eu não gostava, nunca quis acompanhar muito ele. Depois que eu casei fui morar perto dele, comecei a acompanhar. Ele sabia mesmo muita coisa, mas eu não aprendi muito, por causa disso, não prestava atenção. Quando ele estava perto de morrer pediu para eu ficar com outro companheiro de guia, que ele era guia, sabia mesmo. Eu não sabia quase nada, mas peguei este companheiro que sabia, então fiquei com este compromisso. Então foi indo, ele morreu, depois ficou eu e este camarada e depois o outro camarada morreu. Depois foi entregue para eles aqui, mais novos. Claudia Daiane: Há quanto tempo estás no Ensaio? 165 "Ô Chora Makambra, Chora Nauê" MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Cristiano Silva: Já faz uns 25 anos, comecei novinho, mas que peguei a responsabilidade dos Ensaios faz uns oito anos. Claudia Daiane: O que é esta responsabilidade? Cristiano Silva: O falecido Orlando era o Rei do Congo, era o falecido Orlando que puxava, assumia tudo, era ele e o pai. O falecido Orlando quando morreu pediu para eu organizar, eu e o companheiro Jaci 60. Segundo Cristiano Silva, o Ensaio faz parte da cultura negra. Na fala não há, neste momento, uma ligação com a Igreja Católica, embora Cristiano tenha sido festeiro da Festa do Rosário, de 2016, realizada na capela católica. O Ensaio é uma cultura dos negros, dos familiares negros que passaram para seus descendentes. Além disso, o quilombola ressalta a ancestralidade presente no ritual; no caso de sua família, o destaque nas narrativas é para Seu Antônio Zabela, Rei do Congo e guia-geral da Irmandade do Rosário dos Teixeiras. Seu João Manoel lamenta não ter aprendido mais detalhes com seu pai. Nas palavras narradas, ele comenta muito sobre “sabedoria”, destacando o quanto o pai era conhecedor do ritual e o quanto ele não havia aprendido por falta de interesse. Quando pergunto se Seu Antônio Zabela era do Ensaio, Seu João Manoel responde “era e era mesmo”, apontando para o comprometimento do seu familiar. Porém, cabe ressaltar que Seu João Manoel tem 82 anos de idade e, portanto, já participou de muitos Ensaios com a Irmandade e mesmo com esta idade dança e toca tambor nas noites do ritual, demonstrando fé 60. Entrevista realizada com Seu João Manoel e seu filho Cristiano Silva, Mostardas, maio de 2018. 166 "Ô Chora Makambra, Chora Nauê" MEMÓRIA & PATRIMÔNIO na Santa e comprometimento com a Irmandade. Percebi, nos relatos dos entrevistados, uma nostalgia, pois quando jovens alguns não tiveram interesse em aprender com seus ancestrais e hoje lamentam não ter aproveitado a oportunidade. Porém, ao estar presente no Ensaio, percebi o quanto os ensinamentos dos ancestrais estão presentes. Mesmo que muitos quilombolas destaquem a pouca sabedoria, é notória a dedicação de cada dançante; afinal, a Irmandade ainda persiste em pleno século XXi; são mais de 300 anos. Seu João Manoel comenta que desde adolescente o pai o “puxava” para o Ensaio, mas que somente começou a acompanhá-lo quando foi residir nas proximidades. Compreendo a fala de Seu João Manoel, pois pelo que escutei, há mais de duas mil cantigas que podem ser utilizadas no ritual; logo, é necessária muita experiência para aprender e saber em quais momentos devem ser utilizadas, pois há momentos específicos para cada uma delas. Conforme Cristiano Silva explica, há cantigas da madrugada que “mexem com as estrelas” e que não devem ser entoadas fora deste momento. Retomando a entrevista, Seu Manoel assumiu o Ensaio com o Seu Orlando, que após a morte de Seu Antônio Zabela passou a ser o Rei do Congo. Conforme argumenta Cristiano, após o falecimento de Seu Orlando, ele assumiu a responsabilidade do grupo, sendo um dos guias-gerais e guardião da caixinha de Nossa Senhora do Rosário, considerada uma relíquia pelos irmãos e devotos da Santa. Já Seu Madir, que apresentarei na sequência do texto, passou a ser o Rei do Congo. Retornando às tarefas de Cristiano, ele também mobiliza e organiza o grupo, tanto para pagamentos de promessas quanto para as apresentações. Cristiano recebe o apoio de Seu Jaci, também guia-geral da Irmandade dos Teixeiras. 167 "Ô Chora Makambra, Chora Nauê" MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Pelos relatos orais, percebe-se que somente se faz uma promessa à Santa quando é algo quase impossível de ser atendido, conforme argumenta Sandra: Sandra Lucia Lopes da Silva: O Ensaio de Pagamento de Promessa é uma promessa cara, é uma promessa muito forçada. Onde os 12 homens dançam e cantam a noite toda. Tem que manter a voz, tem que ficar forte, sem dormir. Dançar e cantar não é nenhum tipo de brincadeira. Então eu sempre comento uma promessa de pagamento de Ensaio é assim, somente... Nós, católicos, temos as nossas crenças. Faço uma promessa, se eu perco meu anel, por exemplo, ah, perdi meu anel, vou acender uma velinha para o Negrinho do Pastoreio para achar meu anel. Ou nós, que moramos na campanha, estamos com um animal que está com problema, vou acender uma velinha para o Negrinho do Pastoreio. É um certo de pagamento de promessa. Mas a promessa para pagamento em Ensaio não é dizer que perdi um anel. A promessa de pagamento de ensaio é justamente uma coisa muito forçada, para salvar uma vida. Já aconteceu na nossa Irmandade, tu estares com uma dificuldade, tu estás lá na tua faculdade, é o último bimestre, tu não tens o que fazer, já não tens condições de estudar para alcançar aquela nota. Então tu recorres à Nossa Senhora do Rosário. Já aconteceu de vir uma colega nossa de Porto Alegre, da faculdade da UFrgs. Ela ligou na época para nosso antecessor, que era o José Nilo, também meu primo, hoje já falecido. Claudia Daiane: Desculpa, não entendi o que ele era. Era guia, hoje já falecido. A nossa amiga ligou de Porto Alegre para o José Nilo e pediu “rezem por mim, eu vou a Tavares e pago a promessa se eu conseguir alcançar a média na faculdade”. E isto ela fez, ela veio de Porto Alegre a Tavares e pagou a promessa de Ensaio. Então eu sempre digo, têm vários testemunhos de salvar a vida. Como 168 "Ô Chora Makambra, Chora Nauê" MEMÓRIA & PATRIMÔNIO quando minha mãe esteve doente, depois na Furg, em Rio Grande, pegou uma infecção generalizada, ela ficou 22 dias sem colocar nem água na boca porque não podia. Foi um caso muito cruel. Eu lá dentro do hospital acompanhando minha mãe e meu irmão aqui também como devoto, sem sabermos um do outro, dizemos que se trouxéssemos nossa mãe sã e salva faríamos uma noite de Ensaio e assim fizemos. Mas, era para salvar vida. Como nós somos agricultores, moramos no interior da campanha... uma safra ameaçada, porque uma safra é todo o lucro de um ano de trabalho de um ser humano, duma família, não é um ser humano, é uma família. Então fazemos a promessa, uma safra ameaçada, salvar vida, uma dificuldade na faculdade. Eu costumo dizer quanto tudo está perdido recorremos à Nossa Senhora do Rosário. Não pela falta de fé, pela falta de crença. Mas sim por que recorremos e prometemos esta noite de Ensaio, quando é uma coisa séria e cara 61. O relato de Sandra aponta para uma fé enorme na Santa e que há pedidos específicos para serem feitos à Nossa Senhora do Rosário e pagos em Ensaio; são aqueles “sérios e caros”, ou seja, aqueles que envolvem doença, lavoura ou estudos. A afirmação “quanto tudo está perdido, recorremos a Nossa Senhora do Rosário” demonstra o tamanho da fé dos camponeses negros litorâneos na Santa, pois os camponeses negros não estão sós, pois têm a quem recorrer nos momentos mais difíceis de suas vidas. Têm de um lado a ajuda da Santa com o pedido atendido e têm a ajuda da Irmandade que, assim como na sua origem, mantém-se como uma rede de parentesco, solidariedade e fé. Cabe pontuar que a Irmandade não atende somente ao chamado de promesseiros negros, há relatos de Ensaios cujos promesseiros eram brancos. 61. Entrevista realizada com Sandra Lucia Lopes da Silva, Mostardas, maio de 2018. 169 "Ô Chora Makambra, Chora Nauê" MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Seu Hirto, quilombola de Teixeiras e pandeirista da Irmandade de Teixeiras, comenta sobre as promessas do Ensaio e traz novos elementos que ajudam a compreender este ritual. Claudia Daiane: Por que se faz um ensaio? Seu Hirto: Às vezes a gente faz uma promessa para qualquer coisa, como antigamente se fazia um Ensaio, de repente um desespero, até mesmo por que naquela época as casas eram mais ruins, dava muito incêndio. E às vezes a pessoa se via aflita em ver uma casa queimando. E a pessoa dizia “se salvasse ao menos a família ou alguma coisa eu até faria um Ensaio de Promessas”. O Ensaio era um sacrifício, não era uma tarefa fácil. Nunca se paga uma promessa com coisa fácil, tem que ser com coisa difícil. Daí de repente parece que recebiam aquela bênção, conseguiam eliminar aquele incêndio, ou até mesmo alguém afogado, então prometiam aquele Ensaio, que é uma religião de descendente de africanos que veio da África e como os africanos vieram para o Brasil... Inclusive aqui, esta nossa localidade é quilombola, que só habita negros. Hoje já está se expandido, mas era habitada só por negros, então todo negro tinha a devoção de Nossa Senhora do Rosário. Então se fazia aquela promessa e o dono da promessa tinha que fazer aquele sacrifício. As danças, a reza começava às seis horas da tarde até as seis da manhã e ele tinha que dar todas as despesas, tinha que fazer aquele sacrifício até conseguir aquilo ali para fazer. E, botava os devotos de Nossa Senhora para dançarem depois da graça alcançada 62. Seu Hirto Miguel traz suas memórias sobre o Ensaio e comenta que o promesseiro faz a promessa em um momento de “desespero”, de “aflição”. Portanto, ele retifica o que Sandra Lúcia comentou. Desse modo, para Seu Hirto, no momento de 62. Entrevista realizada com Seu Hirto Miguel, na comunidade de Teixeiras em maio de 2018. 170 "Ô Chora Makambra, Chora Nauê" MEMÓRIA & PATRIMÔNIO desespero, durante um incêndio ou afogamento, o devoto faz a promessa, momento em que assume o compromisso que, se atendido, realizará o Ensaio. O quilombola destaca que o Ensaio tem suas origens na África e aponta para um território negro em Teixeiras, salientando que o espaço é uma região quilombola. Diante deste passado com origens africanas, argumenta que a devoção estava presente em todos os negros. O promesseiro pode demorar a pagar o Ensaio, pois necessita de tempo para juntar o valor necessário, pois o pagamento é um “sacrifício”. O Ensaio de Pagamento de Promessas a Nossa Senhora do Rosário, ou Ensaio de Quicumbi que foi realizado nos dias cinco e seis de maio de 2018, visou a agradecer o pedido do promesseiro, Seu Luís Faustino, que há dois anos havia feito a promessa que se caso ficasse recuperado de um infarto pagaria com um Ensaio. Claudia Daiane: E este pagamento exige todo um preparo do promesseiro com alimentação? Seu Luís Faustino: Existe todo um preparo de alimentação. O Ensaio... quando se faz um voto pra Nossa Senhora de pagar um Ensaio de Promessa, conforme você faz, você tem que pagar. Quando você faz um voto, por exemplo, eu fiz um voto pra Nossa Senhora que eu iria pedir ajuda a todos irmãos das Irmandades para fazer este Ensaio, porque tem um custo. E tudo que sobrasse desta nossa festa iríamos fazer doação e amanhã de manhã vamos entregar tudo que sobrar, daqui vamos para uma instituição, que é Apae de Mostardas. Então, ele tem um custo. Mas, conforme eu fiz a promessa, eu paguei. Eu pedi doação para todos os meus irmãos. Um deu uma galinha, outro deu quilo de massa, outro deu meio quilo de café, outros trouxeram pão. E tudo que sobrar, eu vou doar 63. 63. Entrevista realizada com Seu Luís Faustino, Mostardas, maio de 2018. 171 "Ô Chora Makambra, Chora Nauê" MEMÓRIA & PATRIMÔNIO O relato de Seu Luís Faustino aponta para a existência de uma rede de solidariedade entre os escravizados que se estende à atualidade. O quilombola comenta que, antigamente, na época da escravidão, seus ancestrais pagavam o Ensaio a partir da arrecadação de doações depositadas na Caixinha. Neste contexto, teria surgido o dito “correndo sete Senhora”, quando uma pessoa não estava em casa fazendo alusão àqueles que iam em cada residência da comunidade solicitar doações. Seu Luís Faustino, ao fazer seu voto a Nossa Senhora do Rosário, informou que iria pedir ajuda a todos os irmãos para pagar sua promessa e assim fez,cada irmão ajudou com alguma alimentação. Além de servir para pagar parte do Ensaio daqueles promesseiros que não têm condições econômicas, o dinheiro arrecadado com a Caixinha também servia para comprar alimentos para as pessoas pobres. A fala de Seu Luís é muito rica e aponta para uma rede extremamente importante para o litoral do Rio Grande do Sul, pois no dia do Ensaio havia as duas Irmandades que unidas dançaram noite adentro pagando a promessa. Além disso, o Ensaio só foi possível porque os irmãos doaram alimentos para serem servidos durante as mais de doze horas do ritual. A Irmandade do Rosário dos Homens Pretos de Nossa Senhora, fundada no século XViii, em Mostardas, revive, em cada Ensaio, em cada devoção, em cada promessa, a fé na Santa. A fé na Santa é ativada em vários momentos do cotidiano e já analisamos o quanto o livro de arrecadação e a Caixinha possuem um significado para os devotos, mas nos momentos de “desespero”, de “aflição”, “que tudo está perdido”, os camponeses negros acionam as promessas de Ensaio. Pagar um Ensaio é uma tarefa “séria”, “pesada”, “não é nenhuma brincadeira” e 172 "Ô Chora Makambra, Chora Nauê" MEMÓRIA & PATRIMÔNIO envolve um grande gasto econômico e sabemos o quanto não pagar uma promessa pode ser perturbador para o promesseiro e, em caso de sua morte, de seus familiares. Daí a importância da Caixinha, que concentra as arrecadações dos devotos dispostos a ajudar os promesseiros sem condições econômicas. Conclusão Ramos (2015, p. 142) traz uma importante reflexão sobre o Ensaio, pois o considera não apenas como uma tradição ou devoção, pois há aspectos de territorialidade, já que “o território negro se estende e percorre a região quando ocorre o Ensaio, e, ainda, os seres extra-humanos – também relacionados ao processo – territorializam e se territorializam”. O território negro estende-se e percorre a região, pois a Irmandade vai pagar o Ensaio no local escolhido pelo promesseiro. No Ensaio que esta historiadora observou, os camponeses negros levaram sua cultura para a área urbana de Mostardas. Destaco que embora os irmãos sejam todos homens, as mulheres são de extrema importância para a manutenção do Ensaio, são elas que além de serem a memória do grupo organizam o espaço onde será realizado o ritual, cuidando da decoração do altar e da feitura da alimentação. A Irmandade só existe/ resiste por que as mulheres negras dão o suporte necessário para que os homens possam dançar por mais de 12 horas em agradecimento à Santa. Referências aLBerTi, Verena. aLBerTi, Verena. Fontes Orais - Histórias dentro da 173 "Ô Chora Makambra, Chora Nauê" MEMÓRIA & PATRIMÔNIO História. In Fontes históricas. Org. PinsKY, Carla Bassanezi. São Paulo: Contexto, 2005. AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XiX). São Paulo: Annablume, 2003 CandaU, Joël. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2011. Conselho Ultramarino. Brasil - Rio Grande do Sul. Caixa 7, n° 521. Requerimento dos Irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da freguesia de São Luiz de Mostardas. Disponível em: http://resgate. bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=019_rs&PagFis=4965&Pesq=. Acesso em 30 de maio de 2018 HaLBWaCHs, Maurice. A memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2004. LeiTe, Ilka Boaventura. O legado do testamento: a comunidade de Casca em perícia.- 2ª edição - Porto Alegre: Editora da UFrgs; Florianópolis: nUer/UFsC, 2004. LoPes, Sandra Lúcia da Silva. Sandra Lúcia da Silva Lopes: depoimento [maio de 2018] Entrevistadora: Claudia Daiane Garcia Molet. MaTTos, Hebe. Remanescentes das Comunidades dos Quilombos: memória do cativeiro e políticas de reparação no Brasil. In: Revista USP, n. 68. dez. jan. fev. 2005 e 2006, p. 104-111. raMos, João Daniel Dorneles. Identidade quilombola: mobilização política e manifestações culturais em Beco dos Colodianos, Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em Sociologia) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011. reis, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XiX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. siLVa, Cristiano. Cristiano Silva: depoimento [maio de 2018] Entrevistadora: Claudia Daiane Garcia Molet. siLVa, Hirto Miguel. Hirto Miguel Silva: depoimento [maio de 2018]Entrevistadora: Claudia Daiane Garcia Molet. siLVa, Joelma Tito da. O Riacho e as eras: memórias, identidades e território em uma comunidade negra rural no Seridó potiguar. Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade Federal do Ceará, Departamento de História. Ceará, 2009. 174 "Ô Chora Makambra, Chora Nauê" MEMÓRIA & PATRIMÔNIO siLVa, Luis Faustino.Luis Faustino Silva: depoimento [maio de 2018] Entrevistadora: Claudia Daiane Garcia Molet. 175 MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Memória e patrimônio na atividade turística: aspectos explorados para o desenvolvimento do turismo no Brasil Charlene Brum Del Puerto 64 Maicon Farias Vieira 65 Introdução A memória e patrimônio na atividade turística são utilizados para divulgar e valorizar objetos, lugares e feitos históricos que se quer, sob algum modo, mostrar e salvaguardar. Seja pela exploração comercial turística ou pela importância histórica e social que tal atrativo possua, o fato é que a memória e o patrimônio são utilizados em diversas vertentes do turismo, sendo estes os principais aspectos explorados pela atividade turística. É fato que o turismo de sol e praia é predominante no Brasil, contudo a visitação feita em função dos lugares histórico-culturais no País não pode ser desconsiderada e está mediada de certo modo pela memória e patrimônio. Pode se dizer que o turismo é um modo de sociabilizar os bens patrimoniais presentes no cotidiano de quem recebe os turistas. A memória neste caso contribui para rememorar e dar evidência àquilo que o emissor quer que seja percebido pelo visitante; tanto pela inibição ou pela recriação de fatos. 64. Mestrado em Turismo pela Universidade Federal de Pelotas; Oficial Administrativo pela Secretaria de Desenvolvimento Turismo e Inovação; charlenedelpuerto@bol.com.br 65. Mestre em Educação pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense - Campus Pelotas; Professor na Prefeitura Municipal de Pelotas; maiconfariasvieira@gmail.com 176 Memória e patrimônio na atividade... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Cabe relevar que a definição sobre o que é ou não considerado patrimônio possui relação direta com a sociedade em questão. Nesse sentido, Barreto (2003) explica que o que se reconhece como culturalmente relevante para que seja um patrimônio varia segundo a ideia que se tem de cultura, a qual respeita a história e as relações sociais. O turismo contribui para a reconstituição da memória a qual é sempre fluida, por consequência, contribui para a perpetuação do patrimônio. Tanto o patrimônio quanto a memória não podem ser definidos como algo específico e único, devido à sua diversidade de significações e interpretações possíveis. Nem é o objetivo deste texto esgotar as ideias de memória e patrimônio, mas estabelecer aqui o entendimento adotado para este debate. Isto posto, este trabalho objetiva debater a importância da memória e do patrimônio para o turismo no Brasil, com metodologia pautada em Gil (2014). Após esta introdução, segue a metodologia, o referencial teórico acrescido de interpretações, as considerações finais do trabalho e referências utilizadas neste artigo. Procedimentos metodológicos A metodologia deste trabalho caracteriza-se por ser qualitativa exploratória. Segundo Kauark, Manhães e Medeiros (2010, p. 6), na pesquisa qualitativa não é possível quantificar os dados, e a interpretação dos fenômenos e a atribuição de significados são procedimentos básicos na pesquisa neste tipo de pesquisa: [...] O ambiente natural é a fonte direta para coleta de dados e o pesquisador é o instrumento-chave. É descritiva. 177 Memória e patrimônio na atividade... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Os pesquisadores tendem a analisar seus dados indutivamente. O processo e seu significado são os focos principais de abordagem (KaUarK, ManHÃes E Medeiros, 2010, p. 6). É neste sentido de interpretação dos fenômenos que segue o curso do trabalho, já que se trata de explanações sobre a relação entre memória, turismo e patrimônio. Gil (2014) explica que a pesquisa qualitativa exploratória proporciona visão geral aproximando ideias. O trabalho não se compõe de um método rígido, estanque, mas sim de uma caminho pautado na ciência contemporânea conforme aponta Baptista (2014, p. 347) 66; “[...] caminho este de trânsito, de mistura, de costura de saberes e de questionamento a respeito da pré-visão [...] ”. Pré-visão entendida aqui como uma ideia inicial pensada a partir da reflexão da proposição deste trabalho. Para compor o corpo teórico deste estudo foram utilizados textos sugeridos pelos pares, e também, trabalhos debatidos ao longo do percurso acadêmico. Busca-se correlacionar as temáticas descritas, fazendo interpretações e inferências possíveis relativas ao objetivo do trabalho. Referencial teórico: a tríade memória, patrimônio e turismo Pensar sobre o patrimônio e a memória é uma ação sempre complexa, já que ambos estão entrelaçados e enraizados em 66. Baptista (2014) propõe em seu procedimento metodológico ‘Cartografia dos Saberes’, trilhas, caminhos a serem percorridos na investigação científica. São trilhas a serem seguidas, de forma fluida, sem aprisionamentos, que, ao mesmo tempo em que orienta o pesquisador a ter uma pesquisa coesa, permite os atravessamentos, apropriando-se de ideias que surgem durante o percurso da investigação. Ainda que tenha uma lógica coerente, não se trata de um procedimento fixo, rígido. 178 Memória e patrimônio na atividade... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO muitas interfaces. São muitas as possibilidades de compreender conceitualmente ambas as áreas, mas é significativo destacar que elas possuem relação íntima e não se limitam a uma ideia única e sintética. O patrimônio, por exemplo, não se limita ao sentido de herança, e a memória não se relaciona apenas com as lembranças, com aquilo que aconteceu um dia. Ambos possuem vínculo forte com o presente, já que trazem consigo a significação para o que representa hoje. Memória e patrimônio são, neste sentido, resultados de experiências, vivências, trazidos à tona na memória coletiva e individual 67. É o hoje revisitando o passado, relatando, interpretando e dando sentido ao que está narrado ou representado no agora. Ainda que haja fluidez nos conceitos de memória e patrimônio, cabe neste texto trazer algumas ideias adotadas para melhor entendimento da proposta do trabalho. O patrimônio, segundo Ferreira, Cerqueira e Rieth (2009, p. 92), é o “resultado de um reconhecimento e outorga de valor, o que se dá no âmbito das relações sociais e simbólicas que são tecidas ao redor do objeto ou do evento em si”. Já a memória contempla os pensamentos rememorados a partir de outros grupos ou indivíduos. Nesse sentido, segundo Halbwachs (2013, p. 72), “o funcionamento da memória individual não é possível sem esses instrumentos que são as palavras e as ideias, que o indivíduo não inventou, mas que toma emprestado de seu ambiente”. Isto significa que a memória, apesar de possuir uma relação óbvia com aquilo que já ocorreu, é recriada com os elementos que estão presentes no momento da rememoração. 67. Para aprofundar o assunto, sugere-se o livro Memória Coletiva, de Maurice Halbwachs, o qual contempla a memória coletiva e individual. 179 Memória e patrimônio na atividade... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO O patrimônio, assim sendo, é evocado pela sua representação material e imaterial através da memória como uma reminiscência do passado, no tempo presente. Estabelece-se assim, um vínculo de pertencimento que pode ser forjado pela memória. Reconhecer o patrimônio como um item da memória implica em delimitar os sentidos que irão existir nesta relação. Para Le Goff (2003, p. 419) a memória tem como prioridade, [...] conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas 68. O turismo relacionado ao patrimônio no Brasil também se pauta na evocação do passado através da rememoração, sendo estas descritas e/ou narradas aos turistas. É também este patrimônio pautado no passado e trazido à tona na memória que atrai os visitantes. Eugenia Meyer (2009) explica que o objetivo da memória é o de dar sentido as nossas vidas. “[...] trata-se permanentemente de lutar contra o esquecimento, para impedir que a memória chegue a um fim, a um término, à sua conclusão [...]” (MeYer, 2009, p. 43). O patrimônio, seja material ou imaterial, é uma forma de rememorar, sendo um vínculo com o tempo passado, recriado para o presente, para que as ações humanas sejam lembradas. Considera-se assim, o patrimônio, como um acionamento da memória existente através de objetos e espaços. Pierre Nora expôs que o ser humano precisa criar estes espaços de memória, pois […] “se habitássemos ainda nossa 68. Recomenda-se a leitura completa da obra História e Memória de Jacques Le Goff. A obra traz muitas transversalidades e possibilidades de novos acionamentos conceituais sobre memória. 180 Memória e patrimônio na atividade... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO memória, não teríamos necessidades de consagrar lugares” (nora, 1993, p. 8). É nesse sentido, entre outros, que a memória se relaciona com o patrimônio. Os lugares patrimoniais são necessários para trazer à tona à memória sendo o patrimônio um dos suportes para que ela se mantenha. O patrimônio também se perpetua através da reconstrução da memória, a qual será contada através de uma narrativa para quem visita o lugar. No entanto, o turismo, enquanto fenômeno social, deve propor experiências e não impor culturas aos visitantes; a atividade turística precisa ser fomentadora da salvaguarda, do estímulo ao uso da memória como um recurso importante para a proteção do patrimônio. O interesse do turismo pelo patrimônio pode ter um significado positivo contribuindo para a sua proteção física e recuperação, além da divulgar sua importância estimulando, assim, a inserção dos bens na dinâmica social, dando-lhe uma função e retirando-os da condição de isolamento (sCiFoni, 2006, p. 5). O patrimônio é uma forma de rememorar, de lembrar os feitos humanos em diferentes períodos e lugares. É uma tentativa de demonstrar outros tempos cronológicos, no período presente, buscando manter as características da qual exista ainda uma identificação, uma identidade. “O que se deve ter em conta é a difusão da existência de uma série de bens e a consideração pela sua preservação enquanto elementos de identidade de outras sociedades, ou das identidades nacionais que se construíam” (CaMargo, 2010, p. 60). Isto vai ao encontro do que expõe Pollak (1992) sobre a memória, a qual “[...] é um elemento constituinte do 181 Memória e patrimônio na atividade... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si”. O autor explica também que: […] Além desses acontecimentos, a memória é constituída por pessoas, personagens. Aqui também podemos aplicar o mesmo esquema, falar de personagens realmente encontradas no decorrer da vida, de personagens frequentadas por tabela, indiretamente, mas que, por assim dizer, se transformaram quase que em conhecidas, e ainda de personagens que não pertenceram necessariamente ao espaço-tempo da pessoa. […] Além dos acontecimentos e das personagens, podemos finalmente arrolar os lugares. Existem lugares da memória, lugares particularmente ligados a uma lembrança, que pode ser uma lembrança pessoal, mas também pode não ter apoio no tempo cronológico (PoLLaK, 1992, P. 2-3). A memória e patrimônio, aqui, demonstram ser interdependentes, a memória sendo atual, também traz ao patrimônio a condição de sua relação com o hoje, com o agora. É uma acumulação e, também, a reconstrução de significados que contribuem de modo relevante para evitar o desprendimento com o passado, tentando com isto evitar o esquecimento. O turismo no Brasil, ao se apropriar do patrimônio para desenvolver suas atividades, tem forte relação com a chamada ‘história oficial’, trazendo à memória os fatos considerados como significativos para serem relatados sobre o patrimônio visitado. A história oficial é sim uma potencialidade, mas não se pode deixar de mencionar a potencialidade daquilo que não está registrado oficialmente, como, por exemplo, a memória 182 Memória e patrimônio na atividade... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO dos moradores, a qual agrega valor ao produto turístico e à experiência do visitante. No entanto, tal memória, a não oficial, dificilmente extrapola o convívio de grupos, já que precisa estar contextualizada para que faça sentido e ser transmitida a outros, neste caso, aos turistas. Os artifícios que delineiam o processo de aquisição, armazenamento e evocação da memória são extremamente complexos e sua eficiência depende do contexto em que acontecem. O estado de humor, a atenção e as emoções, presentes com o indivíduo, irão influenciar, tanto a sua obtenção, como a sua recordação (soUza E saLdado, 2015, P. 148). É no espaço construído entre patrimônio e memória que se faz necessário maior utilização pela atividade turística. Ainda que haja potencialidade no patrimônio brasileiro, material ou imaterial, essa temática parece estar marginalizada, seja pela dificuldade de manutenção dos bens, seja pela demanda ainda não ser tão significativa quanto é na Europa, já que lá, a busca pelo turismo em função do patrimônio por artefatos que contribuem para a rememoração é maior. Paoli (1992, p. 2), explica, contudo, que a cidadania está diretamente relacionada ao passado. O reconhecimento do direito ao passado está, portanto, ligado intrinsecamente ao significado presente da generalização da cidadania por uma sociedade que evitou até agora fazer emergir o conflito e a criatividade, como critérios para a consciência de um passado comum. Reconhecimento que aceita os riscos da diversidade, da ambiguidade das lembranças e esquecimentos, e mesmo das deformações variadas das demandas unilaterais. Arrisca-se a encontrar 183 Memória e patrimônio na atividade... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO as solicitações por uma memória social que venham baseadas em seu valor simbólico, mesmo que sejam locais, pequenas, quase familiares. Não teme restaurar e preservar o patrimônio edificado sem pretender conservar o antigo ou fixar o moderno. Orienta-se pela produção de uma cultura que não repudie sua própria historicidade, mas que possa dar-se conta dela pela participação nos valores simbólicos da cidade, como sentimento de ‘fazer parte’ de sua feitura múltipla. A memória acrescenta valor ao patrimônio enquanto um produto turístico. Ela é de certo modo uma estratégia importante para preservar e divulgar os aspectos identitários de um lugar, principalmente daqueles com relevância histórica e cultural que podem ter fins turísticos. A narrativa feita ao visitante durante a atividade turística surge como uma forma de descrever um feito, um acontecimento, um fato, ainda que seja de forma limitada. Camargo (2010) em seu trabalho intitulado ‘Patrimônio Histórico e Cultural 69’ aponta que “a capacidade descritiva compondo um cenário, com minúcias sobre os traços físicos dos personagens e o detalhamento dos objetos que portam ou os cercam, são referências necessárias para alcançar os objetivos desejados (CaMargo, 2010, p. 62). Entende-se com isto que a memória e o patrimônio no uso turístico são aquelas relacionadas aos fatos oficiais, chancelados, reconhecidos. O fato é que tanto a memória quanto o patrimônio possuem seus caminhos, seus eixos capaz de auxiliarem na condução de relações interpessoais ainda mais próximas com a atividade turística, no entanto, há um longo caminho a 69. O livro trata do patrimônio histórico- cultural e suas aproximações com o turismo, como, por exemplo, o valor econômico, infraestrutura, Gran Tour, entre outros. 184 Memória e patrimônio na atividade... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO se percorrer, começando pela valorização efetiva do patrimônio atrelado à memória. Conclusão A ideia de patrimônio é necessária, pois mantém ativos/vivos os elementos que compõem parte da história e da vivência da humanidade, sendo significativos para o indivíduo e para a coletividade. O sentimento de pertencimento que abarca o patrimônio é composto de acontecimentos, materializados ou não, e que são externados, narrados, através do que está contido na memória. Memória esta com dimensões múltiplas e que traz à tona um passado que por muitos motivos se interliga ao presente. É essa fluidez da memória que muitas vezes ressignifica o patrimônio rememorado e faz com que este se mantenha presente, vivo. Os usos sociais do patrimônio, que envolve passado e presente, são abarcados também pelo turismo, que tem o patrimônio e, por consequência, a memória, como os principais aspectos explorados para o desenvolvimento das atividades turísticas. Ainda assim, a utilização para o turismo do patrimônio e memória brasileira é muito insipiente. O alto custo da manutenção do patrimônio e a pouca utilização e entendimento sobre a importância da memória para o turismo implicam na dificuldade em tramar a relação entre as temáticas/áreas. No turismo a escolha de certos marcos simbólicos para uso na atividade limita todo o potencial que o patrimônio e memória podem oferecer à atividade. O fato é que há muito para se pesquisar e debater sobre a tríade: memória, patrimônio e turismo. O assunto não é estanque 185 Memória e patrimônio na atividade... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO e tampouco se esgota; seja pela complexidade no debate entre patrimônio e memória, ou ainda pela definição do papel do turismo frente a estes, a discussão precisa ser aprofundada e amplamente divulgada e debatida, para que a apropriação pelo turismo destas temáticas seja feita de forma sensível e consciente. Referências: BaPTisTa, Maria Luiza Cardinale. Cartografia de Saberes na Pesquisa em Turismo: Proposições Metodológicas para uma Ciência em Mutação. In: Rosa dos Ventos, v. 6, p. 342-355, 2014b. BarreTo, Margarita. Turismo e legado cultural: as possibilidades do planejamento. 2°ed. Campinas: Papirus, 2003. CaMargo, Haroldo Leitão. Patrimônio Histórico e Cultural. 3ª. ed. São Paulo: Aleph, 2002. Ferreira, Maria Letícia Mazzucchi; CerQUeira, Fábio Vergara; rieTH, Flávia Maria da Silva. In: O doce pelotense como patrimônio imaterial: diálogos entre o tradicional e a inovação. Revista Métis: História e Cultura, Caxias do Sul, v. 13, n.2, 2008. Disponível em:<http://www.ucs.br/ etc/revistas/index.php/metis/article/view/696> Acesso em 17/10/2018. giL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed.- 6. reimpr. - São Paulo: Atlas, 2014. HaLBWaCHs, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª ed. São Paulo: Centauro, 2013. Le goFF, Jacques. Memória. In: Le goFF, Jacques. História e Memória. 5 ed. Campinas: Editora da UniCaMP, 2003. p. 419-476. MeYer, Eugenia. O fim da memória. In: Revista dos Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FgV, vol. 22, n. 43, 2009. PaoLi, Maria Célia. Memória, história e cidadania: o direito ao passado. In. O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: dPH, 1992, p. 25-28 186 Memória e patrimônio na atividade... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO PoLLaK, Michael. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n.10, 1992, p. 200-212. nora, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto história. Revista do Programa de Estudos em Pós-Graduados em História e do departamento de História da PUC, São Paulo, n.10, 1993, p 7-28 sCiFoni, Simone. A Unesco e os patrimônios da humanidade: valorização no contexto das relações internacionais. In: JaCoBi, P; Ferreira, L. da C. (Orgs.). Diálogos em ambiente e sociedade no Brasil. São Paulo: Annablume, 2006. soUsa, Aline Batista de; saLgado, Tania Denise Miskinis. Memória, aprendizagem, emoções e inteligência. In: Revista Liberato, Novo Hamburgo, v. 16, n. 26, p. 101-220, jul./dez. 2015. Disponível em: https://www. lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/132515/000982720.pdf?sequence=1. Acesso em: 26 jan. 2019. 187 MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Registrando para o futuro: fotografia e patrimônio histórico-documental de São Gabriel Melina Pereira 70 Glaucia Vieira Ramos Konrad 71 Este trabalho visa a apresentar o registro fotográfico das edificações de São Gabriel. Os registros fotográficos utilizados nesta pesquisa compreendem as décadas de 1920 a 1941, as edificações foram construídas no período de 1800 a 1940, com o objetivo de identificar cada edificação, contar a história de cada uma, perceber as modificações e a preservação das edificações. A possibilidade de poder mostrar a consolidação do patrimônio cultural e histórico de São Gabriel, sua trajetória através do registro fotográfico, será extremamente encantadora e de grande valia para que sua memória não se perca. Parafraseando Rieth (2007, p.26), “descrevo o histórico de São Gabriel com seus casarões, que trouxeram a beleza e a nobreza à “ Terra dos Marechais ”[...]”. Este trabalho segue este sentimento de valorização deste patrimônio a partir do documento fotográfico. Cidade de origem hispano-portuguesa São Gabriel é conhecida como Terra dos Marechais. Lugar onde viveram o Coronel José Plácido de Castro, líder da revolução acriana, de Alcides Maia, primeiro gaúcho a ingressar na Academia Brasileira de Letras (aBL); e cidade onde nasceu o presidente Hermes da 70. Autora: Melina Pereira Arquivista e Técnico de Arquivo- Prefeitura Municipal de São Gabriel. 71. Orientadora: Glaucia Vieira Ramos Konrad ; Profª Drª. Universidade Federal de Santa Maria. 188 Resgistrando para o futuro MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Fonseca. Lá também morreu o índio missioneiro Sepé Tiarajú, que lutou contra portugueses e espanhóis. Aliar o estudo da arquivologia, ciência que trata os documentos, não importando seu suporte, com o fascínio da fotografia, neste sentido, a fotografia/documento, se revela num poderoso instrumento de reativar a memória e de conscientização para a preservação. Este trabalho foi realizado por meio de estudo e análise do Registro Fotográfico das edificações de São Gabriel entre o ano de 1800 a 1940, demonstrando a importância da fotografia como documento arquivístico. As etapas desenvolvidas foram: a elaboração do referencial teórico, a pesquisa do registro fotográfico foi realizada no arquivo pessoal de Isaias Evangelho, não se sabe a data específica das fotografias, as mesmas estão digitalizadas e sem nenhum tratamento arquivístico digital. A etapa final foi a seleção de 23 edificações: estação da estrada de ferro, três escolas, dois clubes, três igrejas, loja Maçônica Rocha Negra, hospital, Prefeitura Municipal, sobrado da praça, banco, Instituto Lar das Meninas, teatro e sete residências. As fotografias analisadas mostram o passado das edificações, o tratamento do patrimônio cultural de São Gabriel e a importância da sua preservação. Após a seleção das fotografias, o segundo passo foi fotografar as edificações entre 2016 e 2017. Patrimônio Cultural A Constituição Federal de 1988 define patrimônio cultural e propõe políticas para a sua manutenção e preservação. Neste sentido, no: Art. 216 Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente 189 Resgistrando para o futuro MEMÓRIA & PATRIMÔNIO ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira nos quais se incluem: I - as formas de expressão; ii - os modos de criar, fazer e viver; ii - os modos de criar, fazer e viver; iii - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; iV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (BrasiL, 1988). De acordo com Silva (2011, p.407) O Patrimônio Histórico Cultural representa uma parcela importante na riqueza de muitas cidades e regiões. É a identidade de um povo nas provas físicas que recordam os atos e feitos de nossos antepassados, embora, por muito tempo, esse patrimônio não tenha sido encarado como um bem de natureza econômica, e, portanto, de natureza produtiva, capaz de gerar uma série de serviços e benefícios para a sociedade. Concordando com a ideia de Silva de que o patrimônio é uma riqueza de natureza produtiva que gera serviços e benefícios, na mesma lógica, Horta (1999, p.9) diz que “nada substitui o objeto real como fonte de informação sobre a rede de relações sociais e o contexto histórico em que foi produzido, utilizado e dotado de significado pela sociedade que o criou”. Patrimônio arquitetônico consiste em tudo aquilo que se pode ver e se pode tocar. Patrimônio Arquivístico Documental Os documentos são criados para atender uma demanda, não importando seu suporte ou conteúdo, ou seja, estão unidos 190 Resgistrando para o futuro MEMÓRIA & PATRIMÔNIO entre si por sua organicidade, gerando uma informação. De acordo com o Arquivo Nacional, (1995, p. 11), Documento é toda informação registrada em um suporte material, suscetível de ser utilizada para consulta estudo, prova e pesquisa, pois comprova fatos, fenômenos, formas de vida e pensamentos do homem numa determinada época ou lugar. Patrimônio documental arquivístico pode ser qualquer tipo de documento que registra ou documenta algo, o conteúdo informativo ou suporte no qual se consigna também pode ser considerado um documento, tal como os casarões de São Gabriel. Uma definição de patrimônio arquivístico documental que dê conta de responder a relação entre documento fotográfico e o arquitetônico, no caso específico dos casarões de São Gabriel, encontraram em Lage uma resposta: Mais do que definir, importa-nos, no entanto, estabelecer o conceito válido de Patrimônio Documental numa perspectiva teórica que atravessa domínios do conhecimento tão vastos, consolidados e formalizados como o são as Ciências da Documentação e Informação, a História das Populações e a Demografia Histórica e os Estudos Culturais e Sociais das Ciências e das Técnicas, e na perspectiva prática da sua compreensão necessária à sua salvaguarda, difusão e desenvolvimento (Lage, 2002, p. 14). Nesse sentido, o patrimônio arquivístico documental está relacionado ao tratamento dispensado aos documentos, em razão do seu valor histórico, mas também à memória e à preservação destes. Para Rousseau e Couture, 191 Resgistrando para o futuro MEMÓRIA & PATRIMÔNIO O patrimônio arquivístico comum é composto pelos arquivos que formam uma parte do patrimônio nacional de um ou de vários estados, que não podem ser divididos sob pena de perderem o seu valor administrativo, legal ou histórico (roUsseU e CoUTUre, 1998, p.113). Rousseau e Couture destacam que os arquivos não podem ser divididos, porque é uma parte do patrimônio, se forem divididos perdem o seu valor; conforme o Princípio da Organicidade os documentos têm que ter uma relação entre si. Fotografia Como forma de memória a fotografia trás a preservação da sua essência intrínseca do significado do passado, mostrando a mudança ao longo do tempo. A fotografia nada mais é que a luz esculpida, dando forma a algo que queremos guardar para sempre. A relação entre a noção de tempo, lugar e memória também é destacada por Dubois. De acordo com ele, É evidente que num primeiro tempo a fotografia pode intervir em tais práticas como simples meio de arquivagem, de suporte de registro documentário do trabalho do artista in situ, ainda mais porque esse trabalho se efetua na maioria das vezes num lugar (e às vezes num tempo) único, isolado, cortado de tudo e mais ou menos inacessível, em suma, um local e um trabalho que, sem a fotografia, permaneciam quase desconhecidos, letra morta para todo o público (dUBois, 1993, p. 283). Dubois evidencia que a fotografia é um trabalho único. A fotografia certamente é um tempo único que faz com que as lembranças sejam retomadas e guardadas, com um passado em comum. 192 Resgistrando para o futuro MEMÓRIA & PATRIMÔNIO O patrimônio documental está inserido num campo denso e complexo de conhecimentos multidisciplinares, que trata tanto de conhecimentos específicos (arquivologia/fotografia) quanto amplos (História e Arquitetura), mas todos ligados à memória e preservação do patrimônio cultural. Breve História de São Gabriel A História da cidade de São Gabriel teve início com os conflitos entre portugueses e espanhóis, a partir do Tratado de Tordesilhas, que repartiu esses dois países. Mais tarde foram definidas as fronteiras com os Tratados de Madri e Santo Ildefonso. Assinado, o Tratado de Madri entregaria os Setes Povos das Missões a Portugal, e em troca receberia a Colônia de Sacramento. Em 1° de outubro de 1777 foi firmado o Tratado de Santo Ildefonso, uma linha demarcatória foi seguida, que recuou bastante para o interior do Rio Grande do Sul. O Tratado mencionava um dos pontos que era divisor das águas: o Cerro do Batovi em São Gabriel. Segundo Myskiw (2015, p. 55), “a assinatura do Tratado de Santo Idelfonso, em outubro de 1777, por sua vez, pôs fim aos conflitos entre castelhanos e portugueses na porção meridional da América do Sul”. Fundada pelo espanhol Dom Félix de Azara, que era naturalista, matemático, historiador e antropólogo, em 02 de novembro de 1800 estabeleceu a primeira povoação denominada Vila do Batovi, que tinha como padroeiro o Arcanjo São Gabriel, no mesmo dia foi feita a planta da Vila, a primeira construção a ser levantada foi a igreja. 193 Resgistrando para o futuro MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Dom Félix de Azara correspondia-se com Miguel Lastaria, que era secretario do Vice-Rei Marquês de Avilez. Ao todo foram 36 cartas trocadas, mas somente sete conhecidas. As sete cartas que foram transcritas por Figueiredo e, na primeira carta, constava o sofrimento de Dom Felix com a situação do povoado. Dizia a carta de 12 de dezembro de 1800: Segundo Figueiredo, Não há dúvida que Deus dirige estas cousas, pois vemos que tem prosperado, mais do que se podia pensar, num desterro como este centro de todas iniquidades. Sofro sem embargo e tudo ofereço a Deus por meus pecados e sofrerei se assim merecer até quando deixar a pele (FigUeiredo, 1984, p.68). Em 1801, Dom Félix de Azara parte da Vila do Batovi para regressar à Corte. Após ser incendiada a Vila do Batovi foi deslocada para uma região chamada “Entre Rios”. O segundo povoado teve o nome de São Gabriel, que se formou ao nordeste do Cerro do Batovi, não muito longe da primeira povoação. Em 1817 São Gabriel do Batovi é transferida para a margem esquerda do Vacacaí e surge então a atual São Gabriel. O renomado romancista francês Alexandre Dumas, ao escrever as memórias de seu amigo Giuseppe Garibaldi, relata que este passou rapidamente por São Gabriel antes de ir para Montevidéu no Uruguai, e fez um grande amigo, Anzani um oficial italiano exilado revolucionário que lutou na França. Dumas enfatiza, Aproximando-me de São Gabriel, por ocasião da retirada que não fazia muito tempo efetuáramos, eu ouvira falar de um oficial italiano dotado de um grande caráter, de uma 194 Resgistrando para o futuro MEMÓRIA & PATRIMÔNIO grande bondade e instrução, que, exilado como arbonaro, lutara na França no 5 de junho de 1832, depois no Porto, em Portugal, durante o longo cerco que valera `aquela cidade o título de “inexpugnável’’, e que enfim, forçado como eu a deixar a Europa, viera empregar sua coragem e seu saber a serviço das jovens repúblicas sul-americanas. Os atos de coragem, de sangue-frio e de força que se lhe atribuíam haviam-me feito dizer e repetir: “Ao encontrar este homem, ele será meu amigo’’. Este homem chamavase Anzani (dUMas, 1999, p.144). Somente em 15 de dezembro de 1859 São Gabriel foi elevada como cidade, pela lei nº 433. Edificações - Igreja do Galo Em 1817, conhecida como Igreja do Galo, a Igreja Nossa Senhora do Rosário Bom Fim foi o primeiro templo de alvenaria levantado em São Gabriel, sua torre tinha um galo de bronze, que em 1985 foi roubado. Figura 1: Igreja Nossa Senhora do Rosário Bom Fim Fonte: Isaias Evangelho 195 Resgistrando para o futuro MEMÓRIA & PATRIMÔNIO A Igreja Nossa Senhora do Rosário Bom Fim, em 1994, foi tombada pelo Iphae (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado). Restaurada em 2011, hoje é o Museu Municipal Nossa Senhora do Rosário Bom Fim, que é aberto ao público com várias exposições como: Lanceiros Negros, artes visuais, fotografias e fósseis. O galo roubado acabou sendo substituído por outro, e não houve nenhuma alteração na fachada do Museu - apenas colocada uma grade de ferro e a identificação. Figura 2: Museu Municipal Nossa Senhora do Rosário Bom Fim Fonte: Melina Pereira Loja Maçônica Rocha Negra nº 1 Foi fundada no ano de 1873, por um grupo de 11 maçons, liderado pelo Dr. Jonathas Abbott, o primeiro Venerável, nos princípios de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Um fato histórico marcante da Rocha Negra foi a luta em prol da extinção da escravidão. No ano de 1884 foram expedidas aproximadamente 900 cartas de alforria. Figura 3: Loja Maçônica Rocha Negra Fonte: Isaias Evangelho 196 Resgistrando para o futuro MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Loja Maçônica Rocha Negra nos dias atuais, não recebeu nenhuma alteração. Figura 4: Loja Maçônica Rocha Negra- 2017 Fonte: Melina Pereira Prefeitura Municipal A Prefeitura Municipal começou a ser construída em 1918 recebendo o nome de Palácio Plácido de Castro (em homenagem ao desbravador do Acre). A planta da obra era a cópia fiel do “Capitólio” norte-americano. Em 1924 foi concluída, sendo inaugurada no mesmo ano. Figura 5: Prefeitura Municipal Fonte: Isaias Evangelho 197 Resgistrando para o futuro MEMÓRIA & PATRIMÔNIO A Prefeitura Municipal fica localizada no centro da cidade, sofrendo apenas uma alteração - o muro foi trocado por grades. Figura 6: Prefeitura Municipal - 2017 Fonte: Melina Pereira Sobrado da Praça Construído no ano de 1826 pelo português Francisco José de Carvalho, era uma edificação particular. Em 24 de setembro de 1974 foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O Sobrado possui algumas histórias orais, entre elas a de que o Imperador Dom Pedro ii ali se hospedou em 13 de janeiro de 1846. Figura 7: Sobrado da Praça Fonte: Isaias Evangelho 198 Resgistrando para o futuro MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Hoje o prédio é o Centro de Cultura Sobrado da Praça, que abriga a Biblioteca Pública Municipal, o Conservatório Municipal e a Secretaria Municipal de Turismo. No Centro de Cultura ocorrem palestras, recitais e exposições fotográficas. O Sobrado fica localizado em frente à Praça Dr. Fernando Abbott, no centro da cidade. Figura 8: Centro de Cultura Sobrado da Praça Fonte: Melina Pereira Cine Teatro Harmonia O prédio foi fundado em 1874, no início chamava-se Sociedade Harmonia Gabrielense. Somente em 1929 passou a se chamar Cine Teatro Harmonia, quando sofreu uma remodelação. Tinha 56 camarotes para 92 pessoas e plateia de 408 lugares, havia três portas onde o público era selecionado para entrar no prédio, com preços diferenciados. Figura 9: Cine Theatro Harmonia Fonte: Isaias Evangelho 199 Resgistrando para o futuro MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Em 2007, o Theatro Harmonia foi comprado pela Prefeitura Municipal. Atualmente o prédio está na primeira etapa de restauração, através do projeto Pró-Cultura rs, Lei nº 13.490/10 - lei de incentivo à cultura que antecipa a compensação de recursos destinados ao pagamento do iCMs por parte das empresas que financiam projetos culturais. Figura 10: Theatro Harmonia –restauração/2017 Fonte: Melina Pereira Conclusão O Patrimônio Cultural e Histórico da cidade de São Gabriel apresenta diversas edificações com histórias e arquitetura bem diversificadas. Essas edificações foram apresentadas, a partir do ano de 1800 a 1940, através dos registros fotográficos do período de 1921 a 1941, demonstrando a fotografia como documento arquivístico, que nada mais é do que uma fonte da preservação como forma de memória para mostrar o que ocorreu no passado. As fotografias, quando foram selecionadas, já estavam digitalizadas e sem tratamento arquivístico digital. Nelas, constata-se o antes e o depois das casas, contando a história de cada uma. 200 Resgistrando para o futuro MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Como resultado, das 23 edificações pesquisadas, nos dias atuais, encontraram-se algumas com alterações e outras como estavam de 1921 a 1941, quando foram registradas. Notou-se, através da análise das fotografias, a situação das edificações: uma edificação em restauração, duas em reforma, dois clubes com alterações na fachada, uma igreja com alteração, um prédio tombado pelo Iphan e outro pelo Iphae, um prédio demolido, uma igreja com alterações na fachada e as outras edificações sem alterações. Conclui-se que o trabalho desenvolvido é de extrema importância para mostrar a preservação da memória do Patrimônio Histórico Cultural de São Gabriel e servir para futuras pesquisas na arquitetura, arquivologia e história. Referências arQUiVo naCionaL (Brasil). Gestão de documentos: conceitos e procedimentos básicos. Rio de Janeiro, 1995 (Publicações Técnicas, 47). BrasiL. Constituição de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www2.planalto.gov.br/acervo/constituicao-federal Acesso 07 jun.2016. dUBois, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas, sP: Papirus, 1993. dUMas, Alexandre. Memórias de Garibaldi. Porto Alegre. L& PM, 1999. FigUereido, Osorio Santana. São Gabriel desde o Princípio. Santa Maria: Pallotti, 1984. HorTa, Maria de Lurdes Parreiras; grUnBerg, Evelina; MonTeiro, Adriane Queiroz. Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília: iPHan; Museu Imperial, 1999. iPHan, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Patrimônio Cultural Disponível em: < http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/218 Acesso em: 08 jun.2016 201 Resgistrando para o futuro MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Lage, Maria Otília P. Abordar o património documental: territórios, práticas e desafios. Guimarães: Éden Gráfico, 2002. (Coleção Cadernos nePs 4). LoJa roCHa MaÇÔniCa negra. São Gabriel. RS. Disponível em: < http: // www.rochanegra.com.br/?pg=principal Acesso em: 08.abr.2017 oLiVeira, Guilherme Silva. Acervo Isaias Evangelho. São Gabriel, 2016. Parnaso arQUiTeTUra. Restauração da Igreja Nossa Senhora do Rosário Bom Fim (Igreja do Galo) Disponível em: <http://parnasoarquitetura. blogspot.com.br/2017/03/restauracao-igreja-nossa-senhora-do.html rieTH, Myrta Luza. Casarões – história e arquitetura de São Gabriel. Porto Alegre: Alcance, 2007. rosseaU, Jean-Yves; CoUTUre, Carol. Os Fundamentos da Disciplina Arquivística. Lisboa: Dom Quixote, 1998. seCreTaria da CULTUra do rio grande do sUL. Sistema Unificado Pró-Cultura/RS. Disponível em: < http://www.cultura.rs.gov.br/v2/home/ proculturars/ Acesso 03 jun.2017 siLVa, Rogério Piva. O patrimônio arquitetônico histórico cultural do Rio Grande- RS: uma investigação sobre o seu valor contingente. Rio Grande 2011. Disponívelem:<http://guaiaca.ufpel.edu.br/bitstream/123456789/773/3/O%20patrimonio%20arquitetonico%20historico%20cultural%20da%20cidade%20de%20Rio%20Granders%20%20 uma%20investigacao%20sobre%20o%20seu%20valor%20contingente. pdf Acesso em : 02 jul.2016. 202 MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Patrimônio industrial e memória: o antigo edifício da Cervejaria Miranda Corrêa Rosanna Lima de Mendonça 72 Refletir sobre o patrimônio é um processo que demanda tempo e constante análise dos agentes envolvidos direta e indiretamente. O antigo edifício da Cervejaria Miranda Correa se encontra dentro do contexto urbano da cidade de Manaus, no bairro de Nossa Senhora de Aparecida. Nas ruas laterais há vilas e casas nas quais os moradores diariamente convivem com uma fábrica desativada vista tão próxima de suas residências, e qual é o sentimento pelo monumento industrial? De alguma forma isso afeta a vivência deles? Suas memórias estão ligadas ao local? De que forma? O presente trabalho visa a debater as questões de patrimônio industrial na cidade de Manaus através do olhar dos moradores do bairro de Nossa Senhora de Aparecida para com o antigo edifício da Cervejaria Miranda Corrêa. O objetivo principal da pesquisa é entender se e como a Cervejaria Miranda Corrêa se constitui como patrimônio industrial. A análise se dará através de levantamento histórico sobre a fábrica, discussões das definições de patrimônio industrial por meio da bibliografia e levantamento do parecer através das falas e memórias dos moradores do bairro. 72. Graduada em Turismo pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Aluna regular do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas – PPGICH, UEA. Pesquisa realizada com o apoio da Capes. E-mail: rosannamendonca@hotmail.com 203 Patrimõnio industrial e memória MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Para se entender as problemáticas devemos partir primeiramente do conceito de patrimônio industrial. Para o autor Álvarez-Areces (2008), somente pode-se considerar um patrimônio industrial se houver ligações através da memória individual e coletiva. Assim sendo, a antiga Cervejaria Miranda Corrêa se enquadra como patrimônio industrial através do olhar da comunidade ao entorno? Por meio da pesquisa puderam-se testar colocações dos autores que debatem a temática, aplicando a teoria e a prática do patrimônio industrial dentro do contexto de Manaus e dos morados do bairro de Aparecida. O estudo sobre o patrimônio industrial nos permite entender, por meio das memórias coletivas, as mudanças nas relações de trabalho, nas transmissões de saberes técnico e nas formas de se fazer. Entender as formas de trabalho do passado atreladas ao sentimento do espaço pode contribuir para compreendermos problemas sociais e econômicos do presente. Por meio desta pesquisa, concluiu-se que o patrimônio industrial é testemunho de um cotidiano vivo, da memória coletiva do espaço físico e do trabalho, estando presente no lugar de fala da população. Assim sendo, o antigo edifício da Cervejaria Miranda Corrêa, atualmente pertencendo à Cervejaria Heineken, constitui-se como uma peça do quebra-cabeça histórico da cidade de Manaus, sendo patrimônio industrial através do olhar da população. Cervejaria Miranda Corrêa A ocupação europeia e a posse da Amazônia, no decorrer do século XVii e XViii, se desenvolveram a partir de intensos processos de luta e disputa entre Portugal, Espanha, França, 204 Patrimõnio industrial e memória MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Inglaterra e Holanda. No processo de posse e ocupação, os portugueses transplantaram e difundiram os valores e símbolos culturais de Portugal (BenCHiMoL, 2009, p. 73). O saber, o conhecer, o viver e o fazer na Amazônia primeiramente foram processos predominantemente indígenas. Aos valores e às culturas indígenas foram sendo incorporados por meio de adaptações, assimilação, competição, incentivos, motivações e difusão de novos instrumentos, práticas e técnicas transplantadas pelos colonizadores e povoadores (BenCHiMoL, 2009, p. 17). Dessa forma, o encontro de culturas possibilitou as diversas transformações em ambos os lados. Novas técnicas europeias foram se difundindo às técnicas indígenas criando e transformando-se em novos significados. Os colonizadores e povoadores europeus da Amazônia desenvolveram funções na modelagem da sociedade, principalmente no quesito econômico. Através do estabelecimento das atividades agrícolas e florestais-extrativistas, puderam dominar os setores produtores, mercadores, exportadores e comerciantes por longos períodos (BenCHiMoL, 2009, p. 17). Conforme o historiador Antonio Loureiro (2007), o comércio na cidade de Manaus no século XiX provinha em parte de mercadorias oriundas de outras colônias e da Europa. Segundo o autor, as produções extrativistas na Amazônia auxiliaram na troca de informações, tecnologia e de produtos diversos que provinham por embarcações de outros lugares (LoUreiro, 2007, p. 13). De acordo com os registros de comércio do século XiX, as cervejas juntamente com outras bebidas alcoólicas eram negociadas na capital amazonense em grande quantidade, provinda principalmente de países europeus. Há alusão da Mercearia Braguinha que comercializava “vinhos finos e do 205 Patrimõnio industrial e memória MEMÓRIA & PATRIMÔNIO pasto, licores, cerveja de diferentes marcas (...)” (A ePoCHa, 1889, p.4). Há registros também de espaços de lazer que eram oferecidos na cidade, como no caso da Mercearia Abelha de Ouro que oferecia a seus clientes “um local muito arejado onde os apreciadores podem tomar seu copo de cerva a sua satisfação” 73(aMazonas CoMMerCiaL, 1895, p. 3). Assim sendo, os comerciantes da cidade adquiriam as mercadorias em grande quantidade para revender com preços diferenciados. Conforme os documentos da Província, o Almanach Adm Histórico Estatístico e Mercantil da Província do Amazonas (1884, p. 210) reporta sobre o custo do envio de “barrica ou caixa” de cerveja de Manaus para Santarém – Pa. Aqui se observa que os grandes navios de mercadorias europeias buscavam principalmente fazer negócios com as capitais, como Belém e Manaus. Após abastecer as grandes cidades, as mercadorias eram enviadas para serem comercializadas com povoados e cidades menores. Com o comércio tendo elevação crescente ocasionado pela economia gomífera e o aumento populacional em Manaus, houve também uma progressiva demanda de produtos importados, inclusive a cerveja. Dessa forma, os comércios da cidade passaram a ter grandes giros de mercadorias, aumentado os lucros. A família Miranda Corrêa, no início do século XX, possuía a fábrica “Gelo Cristal” que além de comercializar gelo, cigarros e bebidas geladas também comercializava outras mercadorias vindas da Europa (aMazonas, 1985, p. 31). Conforme registros documentais, os barcos e navios atracavam no porto da cidade, no qual traziam barricas de cervejas 73. Nota-se a forma de expressão portuguesa da escrita na propaganda da mercaria e também, a colocação de “um local muito arejado..". fazendo referência ao clima quente tropical da cidade. 206 Patrimõnio industrial e memória MEMÓRIA & PATRIMÔNIO para serem comercializadas. Os principais fornecedores de cervejas eram os navios alemães, que traziam a cerveja e o chope (aMazonas 1884). Assim sendo, a Gelo Cristal adquiria os barris e os armazenava na fábrica de gelo, na qual poderia revender a seus clientes (aMazonas, 1985, p. 31). Em 1905, Antônio Carlos Miranda Corrêa juntamente com outros três irmãos idealizaram a construção de uma cervejaria. Movido pela ideia, Antônio Carlos de Miranda Corrêa viaja para a Alemanha em busca de conhecer as práticas mais modernas da época na especialidade de cervejas. Ao retornar para Manaus, traz consigo dois técnicos e as melhores máquinas alemãs da época em navios (Baze, 1997, p. 59). Em homenagem à família, os irmãos nomearam a empresa de Cervejaria Miranda Correa S.A. (CorrÊa, 1995 apud Baze, 1997, p. 63). O espaço escolhido para a localização da fábrica foi o bairro de Nossa Senhora de Aparecida 74, à margem do Rio Negro, ao lado do igarapé do São Raimundo. O edifício apresenta o estilo das cervejarias alemãs, com riquezas de detalhes e de construção “industrial familiar” descrita pela própria família (CorrÊa, 1969, p. 50). A pedra fundamental do edifício foi posta em 1910, e a cervejaria foi inaugurada em 12 de outubro de 1912 (aMazonas, 1985, p. 31). A fabricação da cerveja obedecia aos princípios gerais já conhecidos, tendo como base a cevada e o lúpulo. Da matériaprima utilizada para a fabricação da cerveja destaca-se: (...) uma matéria açucarada ou amilacea, transformável em alcool, (quasi sempre é o amido); um princípio amargo (lupulina, determinada pelas brácteas do lúpulo); um 74. Popularmente o bairro é chamado de Aparecida. 207 Patrimõnio industrial e memória MEMÓRIA & PATRIMÔNIO fermento organizado que transforma a matéria açucarada em álcool, acido carbônico e agua que deve ser puríssima 75 (JosÉ siMÕes CoeLHo, 1912 apud Baze, 1997, p. 61). Segundo José Simões de Coelho, a água utilizada para a fabricação da cerveja era retirada do Rio Negro, “sendo submetida a processos de filtração curiosos”. Conforme o autor, o que era notável na qualidade da cerveja amazonense era sua cristalização, algo que não era comum em outras marcas de cervejas brasileiras da época (1912 apud Baze, 1997, p. 62). Ainda segundo o autor, a cristalização da cerveja recebeu a atenção do famoso bacteriologista brasileiro Dr. Carlos Chagas, escrevendo que: Assistimos a analises químicas rigorosas, todas demonstrativos da ausencia de substancias nocivas ao organismo humano; apreciámos a fermentação do líquido, examinámos as condições do fermento e observámos os processos de conservação e acondicionamento da cerveja. Em tudo notámos o mesmo zelo e o mesmo rigor de técnica que presidem a todos os trabalhos d’aquella indústria, organisada sob os moldes mais modernos das similares da Alemanha. (JosÉ siMÕes CoeLHo, 1912, apud Baze, 1997, p. 62). Após a morte de Antônio Carlos, seu irmão, Luiz Miranda Corrêa, assume a gerência da empresa. A firma familiar Miranda Corrêa & Cia. passa a adquirir mais imóveis e comércios na cidade, entre eles destaca-se a compra do cinema Odeon, pois ao lado constroem a “Casa do Chope”, lançando os novos produtos no mercado, tais como: Cerveja Ouro sobre Azul, Topázio, 75. Referência do texto na integra, tal qual como escreveu o autor José Simões de Coelho em 1912. 208 Patrimõnio industrial e memória MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Cerveja Preta, Cerveja XPTo e Guaraná Legítimo (aMazonas, 1985, p. 31). Uma das formas de publicidade para os novos produtos da empresa foi adotada por Luiz Miranda Corrêa nos anos de 1930, da qual utilizava carros alegóricos no período de Carnaval como meio de publicidade e propaganda da cervejaria (aMazonas, 1985, p. 31). Após diversas crises econômicas assolarem as empresas no Brasil durante o século XX, a família optou por vender a empresa para a Cervejaria Brahma. A Cervejaria Brahma, que até então era uma empresa carioca, adota a tática mercantilista de compra de cervejarias menores no início do século XX. A empresa adquiria companhias cervejeiras de diversos lugares do Brasil para dominar o mercado, diminuindo a concorrência (BrasiL, 2012, p. 4). Conforme Brasil (2012, p. 4), a Segunda Guerra Mundial beneficiou o comércio nacional, pois suspendeu a importação de bebidas alcoólicas, gerando aumento significativo no consumo de bebidas produzidas no País, de forma que a Brahma, em 1953, já possuía seis fábricas e uma malteria. A Cervejaria Brahma atuou no antigo edifício da Cervejaria Miranda Corrêa por longo período. Em 1999, a cervejaria se funde a sua maior concorrente no mercado nacional, a Cervejaria Antártica Paulista, tornando-se a Companhia de Bebidas das Américas – aMBeV (BrasiL, 2012, p. 4). Com as novas aquisições comerciais nacionais e internacionais, como parte de um planejamento de modernização do espaço e aquisição de equipamentos mais modernos, o antigo edifício da Cervejaria Miranda Corrêa foi vendido para a companhia de cerveja Heineken, que passou a atuar no local. 209 Patrimõnio industrial e memória MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Com a crise no País e a necessidade de aumentar o espaço para produção, a Cervejaria Heineken encerra suas atividades como fábrica no antigo edifício no ano de 2013. Após novos investimentos internacionais, a empresa inaugura a nova fábrica no Distrito Industrial de Manaus 76, onde segue com as suas atividades até o momento. O antigo espaço da cervejaria Miranda Corrêa segue sob a administração da empresa Heineken, passando por reformas para se adequar aos novos planejamentos da empresa 77. Patrimônio industrial e memória As questões relativas ao patrimônio, seu significado, suas funções e suas atribuições simbólicas tiveram grande atenção após a Revolução Francesa. Segundo Choay (2006, p. 98), a palavra patrimônio, como sua conotação atual, surge como abreviação de um atributo dado aos monumentos históricos durante a Revolução Francesa. Os documentos que surgiram após a Revolução justificavam a nacionalização dos bens do clero e da monarquia como “patrimônio e herança de todos”. A partir desse momento houve um processo onde passou a interligar “patrimônio” a “patrimônio de todos” (BarreTo, 2007, p. 110). 76. O Distrito Industrial de Manaus é uma região da cidade vinculada à Zona Franca na qual atua a Superintendência da Zona Franca de Manaus – Suframa. A Suframa é uma autarquia vinculada ao Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços que administra a Zona Franca de Manaus – ZFM, que visa a potencializar o Polo Industrial (SUFRAMA, 2019). 77. No decorrer da presente pesquisa a autora não obteve respostas às informações referentes às reformas que estão sendo realizadas no espaço, também não houve acesso aos planos da empresa para o edifício. 210 Patrimõnio industrial e memória MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Desde então surgiram diversos significados para a palavra Patrimônio. Segundo o dicionário Aurélio 78 (1999, p. 1515), patrimônio [Do lat. patrimoniu] pode ser definido como herança paterna, bens de família, bem ou conjunto de bens culturais ou naturais, de valor reconhecido para determinada localidade, região ou país, ou para a humanidade, e que, ao se tornar (em) protegido(s), como, por exemplo, por meio do tombamento, devem ser preservado(s) para usufruto de todo cidadão. Dentro da compreensão de patrimônio surgem diversas vertentes, como patrimônio cultural, patrimônio material e imaterial, patrimônio arqueológico, patrimônio natural, entre outros. Entende-se patrimônio como um aspecto participativo de uma cultura, representando o passado e o presente, carregados de significados que vão se transformando com o passar do tempo. Ao se estudar os conceitos de urbanização entende-se que a urbanização é a concentração espacial de uma população, onde ocorre a difusão de sistemas de valores, atitudes e comportamentos que, conforme Castells (1983, p. 39), trata-se de sistemas culturais característicos das sociedades industriais capitalistas. De acordo com o autor, a urbanização e a industrialização são compreensões similares que se integram, e os sistemas culturais influenciam o modo no qual as cidades são construídas, incluindo os aspectos industriais desenvolvidos (CasTeLLs, 1983). Logo, o patrimônio industrial é também parte de uma cultura, pois se constitui como patrimônio técnico de uma sociedade que, como fator cultural, está sempre em transformação (siLVa, 2009). 78. FERREIRA, A. B. H. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 211 Patrimõnio industrial e memória MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Para melhor entendermos e discutirmos o patrimônio industrial, precisaremos partir de conceitos básicos sobre o assunto. De acordo com Álvarez-Areces (2008, p. 6), patrimônio industrial tem adquirido um sentido que excede o estético para converter-se em um conjunto de ordem temporal e espacial frente ao avanço do esquecimento e à perda da memória do lugar. Os valores paisagísticos, os vestígios industriais, a memória coletiva e a herança artística se misturam em um espaço contínuo. Para o autor, as fábricas, minas, residências e outros elementos da arquitetura industrial, os tecidos urbanos e rurais, o patrimônio gastronômico, as tradições e etnografias, os diversos ofícios e a história local, a música raiz, as memórias e os amplos elementos do patrimônio intangível convertem as paisagens pós-industriais em territórios museus (ÁLVarez-areCes, 2008, p. 6). Para Silva (2009, p. 3), “o patrimônio industrial é também a recolha e o tratamento de um patrimônio técnico de uma sociedade e de uma comunidade, e esse processo está sempre em transformação”. A integração dos patrimônios industriais e os bens culturais é um desafio para as cidades e territórios atuais, principalmente aqueles que envolvem grandes centros urbanos. O patrimônio industrial é um fragmento, um objeto de memória coletiva. Os patrimônios industriais são atributos da Revolução Industrial que se convertem, em diferentes contextos, em novos 79 bens culturais. De acordo com Álvarez-Areces (2008), compreender todos os restos materiais, bens móveis e imóveis, abarcam elementos da cultura material da sociedade industrial capitalista, constituinte de um desenvolvimento histórico pelas 79. “Novos” não no sentido de novidade nunca vista antes, mas de formas e significados diferentes daqueles que se tinham até então. 212 Patrimõnio industrial e memória MEMÓRIA & PATRIMÔNIO atividades produtivas e extrativistas do homem, bem como o testemunho das mudanças exercidas pela sua influência na sociedade como um todo. Para Silva (2009), o patrimônio industrial permite a transmissão de saberes técnicos, de uma forma de fazer juntamente com a memória dos envolvidos. O estudo sobre as formas de trabalho do passado pode contribuir para entendermos alguns dos problemas do presente. Desta forma, o patrimônio industrial é testemunho de um cotidiano vivo e da memória coletiva do lugar e do trabalho. Sem homens, os edifícios e as máquinas seriam resultado de elementos vazios (ÁLVarez-areCes, 2008, p. 6). Logo, o patrimônio industrial possui correlação direta com a memória do lugar e dos agentes envolvidos. Para Halbwachs (1968), a memória é a reconstrução, evocando o passado visto pela perspectiva do presente e marcada pelo social. A memória remete-nos “a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas” (Le goFF, 2013, p. 387). Para Candau (2014, p. 15), a memória nos dá a ilusão de que podemos reviver o momento passado através da lembrança. Conforme o autor, o jogo da memória que vem fundar a identidade é necessariamente feito de lembranças e esquecimento, e mesmo a memória sendo construída por lembranças selecionadas, ela procede na construção da identidade, sendo um dos elementos essenciais na busca individual e coletiva, legitimando assim os objetos patrimoniais 80. De acordo com Le Goff, a memória se transforma em um elemento essencial para a identidade, individual ou coletiva. 80. CANDAU, J. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2014. (p. 18). 213 Patrimõnio industrial e memória MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Entretanto, o autor nos chama a atenção para o cuidado ao analisar a memória coletiva, que pode ser usada também como instrumento e objeto de poder da parte das pessoas que transmitem (Le goFF, 2013, p. 435). Dentro do vasto estudo da memória coletiva encontra-se a memória coletiva material, que pode se dar através de documentos ou de monumentos. De acordo com Le Goff, o monumento é um sinal do passado. Recordando a filosofia “o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação (...)” (Le goFF, 2013, p. 486). Em outras palavras, o monumento tem como característica o ligar-se ao poder da perpetuidade das sociedades, solidificando-se como testemunha que sobrevive ao tempo. O patrimônio industrial pode ser um elemento vivo em determinada cultura. Pode estar se desenvolvendo constantemente, adquirindo novos significados em contínua relação com o ambiente social e local no qual está inserido. O patrimônio pode se apresentar de forma conservada ou em ruínas e, ainda assim, ser capaz de carregar simbolismos nos vestígios do passado dentro de uma paisagem aparentemente esquecida. Patrimônio Industrial do bairro de Nossa Senhora de Aparecida Para se entender as problemáticas devemos partir primeiramente do conceito de patrimônio industrial. Para o autor Álvarez-Areces (2008) somente pode-se considerar um patrimônio industrial se houver ligações através da memória individual e coletiva. Assim sendo, a antiga Cervejaria Miranda Corrêa 214 Patrimõnio industrial e memória MEMÓRIA & PATRIMÔNIO se enquadra como patrimônio industrial através do olhar da comunidade ao entorno? Para a realização da coleta de dados, optou-se por realizar entrevistas abertas e fechadas com os moradores das ruas adjacentes do antigo edifício da cervejaria. Para o conforto dos entrevistados, os nomes não serão divulgados no decorrer da pesquisa. Ao total foram coletados três depoimentos para que seja feita a análise dos dados. Ressalta-se que em todos os casos os entrevistados possuíam idade superior a 50 anos e residiam na mesma casa a cerca de 30 anos ou mais. Conforme os entrevistados, o edifício da cervejaria possui ligação histórica com a forma que se desenvolveu o bairro. Muitas pessoas que trabalhavam na empresa nos anos de 1930 adquiriram casas no bairro para diminuir a distância entre o trabalho e a moradia, sendo que em dois dos casos relatados ocorreram com parentes próximos dos entrevistados. Um dos colaboradores da pesquisa afirmou ter trabalhado na empresa durante um breve período de sua vida, em tarefas descritas como “básicas e nada importantes”, sendo trabalhador na linha de produção na fabricação da cerveja. Referente a memórias mais antigas relatadas, entrevistados informaram memórias da infância relacionadas com a rua onde moram e a fábrica. Em um dos casos, abordou-se a recordação dos uniformes que os homens trabalhadores da fabrica utilizavam, ou do horário de saída do trabalho enquanto as crianças, no final da tarde, brincavam na rua. Foi mencionado também o barulho da campana, que era tocada ao meio dia, todos os dias, que para certo entrevistado, significava na sua infância “hora de voltar para casa para o almoço” nos dias de sábado e domingo, nos quais não tinha aula na escola. 215 Patrimõnio industrial e memória MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Também foi descrito por alguns entrevistados que durante a infância havia um desejo, nada secreto, 81 de entrar nas dependências da fábrica, principalmente quando a bola ou o papagaio 82 adentrava depois do alto muro da cervejaria. Foram relatadas tentativas bem- sucedidas dos feitos, outras malsucedidas, mas os entrevistados narravam os acontecimentos com sentimentos de felicidade, descritos por eles mesmos, ao lembrarem-se desses feitos. Referente à fábrica como patrimônio cultural, os entrevistados afirmaram que o edifício possui valor significativo como parte da memória material dentro da paisagem urbana de seu bairro. De acordo com um dos relatos, ela se destaca como um edifício suntuoso na beira do rio que parece mal cuidado, mas que para ele cumpre a função de ativação da memória. “Em certos momentos, quando estou sentado na frente de casa no final da tarde, me pego lembrando de coisas da minha infância e juventude quando olho para essa fábrica (...)” relatou. Conforme os participantes, o edifício exerce a função de parte da paisagem urbana de seu bairro e, também, como objeto material da memória que é indispensável carregando um valor sentimental especial. Apesar do edifício atualmente não exercer a função de fábrica ativa, o derrubar ou modificar a fachada representaria aos moradores entrevistados a destruição de um bem cultural material que estaria sendo retirado da comunidade. 81. Termo utilizado na fala de um dos entrevistados. 82. Conhecido também como “pipa” a brincadeira consiste na armação de palitos de madeira com papel fino e fio para a rabiola, dando estabilidade no ar. O objetivo da brincadeira é permanecer com o papagaio planando no ar e, quando esbarrado em outro papagaio, realizar o corte da linha do oponente com manobras no ar, fazendo assim a queda do papagaio. 216 Patrimõnio industrial e memória MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Observa-se que na fala de proteção do edifício, os participantes da pesquisa se resguardaram no discurso do pertencimento e da memória coletiva diretamente. A comunidade 83 entende que o edifício particular pertence a todos, pois compartilha memórias sentimentais (positivas ou negativas) de uma vida. Alterar ou destruir o edifício é tomado como uma violação as suas memórias, mesmo eles tendo consciência de que o edifício seja de propriedade particular e industrial. O pensar do patrimônio vai além do conservar e o não conservar, permanecer ou não permanecer. Aqui temos o caso de um edifício de uma antiga fábrica cervejeira que atualmente pertence a uma indústria holandesa que visa ao mercado capitalista. Aqui temos um patrimônio que cada vez mais instiga a novas discussões dentro da pesquisa. Para a indústria cervejeira é um espaço sem significado econômico 84. Para a comunidade é a extensão de suas memórias. Conclusão Pensar no patrimônio industrial transcende a beleza individual de cada edifício industrial. Recorrendo a história podemos entender indagações do presente. Para compreender o castelo de arquitetura alemã construído no início do século XX, foi necessário recorrer a documentos oficiais e familiares. Tal pesquisa possibilitou uma visão maior da parte econômica 83. Utiliza-se o termo comunidade para se referir à amostra. Não se ignora a possibilidade de parte da comunidade ter um pensamento diferente e até mesmo controverso a essa afirmação. 84. Afirmação baseada no trabalho A destruição da primeira fábrica da cervejaria Brahma do Rio de Janeiro de Zenilda Ferreira Brasil, 2012. 217 Patrimõnio industrial e memória MEMÓRIA & PATRIMÔNIO e cultural que a fábrica exerceu e exerce no Amazonas, pois patrimônio é cultura. Para os moradores do bairro de Aparecida, o antigo edifício da cervejaria faz parte da cultura, uma vez que é a extensão de suas memórias de forma material. A nostalgia descrita por eles quando acionadas as memórias da infância, descrevendo com detalhes e aderindo a sua realidade na forma como o cotidiano era visto a partir de seus olhos 85. Assim, o trabalhador que possuía um trabalho descrito como tarefas “básicas e insignificantes” não consegue enxergar no primeiro momento que realizava a tarefa base e a mais importante que era a linha de produção da cerveja. Ainda que seja um trabalhador na linha de produção, possui seus próprios sentimentos e memórias quanto ao edifício. A memória possui diversos significados embutido de diversos sentimentos. A mesma memória que para alguns pode trazer alegria e satisfação, para outros pode significar dor e sofrimento. A memória do indivíduo é seletiva, e deve ser levado isso em consideração nas pesquisas de história oral e memória. Trabalhar o patrimônio industrial parece um assunto novo e promissor na cidade da Zona Franca. Pensar a fábrica como patrimônio requer assumir seus diversos significados, sendo positivos ou negativos. Uma história que pode se demonstrar carregada de dor, sofrimento e angústia ou de alegria, nostalgia e afeto. Para os entrevistados a cervejaria é um patrimônio cultural do bairro e da cidade. Pensar no edifício resgatando as memórias antigas de forma coletiva resultou em diversas 85. Leva-se em consideração a afirmação de Le Goff (2013), na qual o autor afirma que a memória descrita pelos entrevistados é seletiva. 218 Patrimõnio industrial e memória MEMÓRIA & PATRIMÔNIO interpretações. Isso possibilitou a novos questionamentos levantados sobre a cultura e o patrimônio manauara. Seja qual for o caso, o patrimônio industrial está presente. Ao estudarmos o patrimônio industrial deve-se levar em consideração os diversos conflitos de interesses e o não isolamento do patrimônio de seu contexto geográfico, histórico, econômico e social. Deve-se considerar as atividades humanas consolidadas no tempo que seguem em contínua evolução. Assim, entende-se patrimônio industrial interligado com a memória coletiva.O antigo edifício da cervejaria Miranda Corrêa se consagra como patrimônio industrial da cidade, pois se tornou testemunha de um cotidiano vivo e da memória coletiva do lugar e do trabalho dos moradores ao redor do edifício. O patrimônio industrial, como elemento da cultura, está em constante transformação. Se cultura é dinâmica, seus elementos também o são. Pensar o patrimônio requer leituras e releituras do objeto, da cultura, da identidade e da memória, pois como afirma Vítor Oliveira Jorge: tudo é patrimônio 86. Referências ÁLVarez-areCes, M. Á. Patrimonio Indutrial: Un futuro para el pasado desde uma visión europea. aPUnTes. vol. 21, n. 1, 2008. p. 6 – 25. aMazonas. Almanach Administrativo Historico Estatistico e Mercantil da Provincia do Amazonas. Manáos: Amazonas, 1884. aMazonas. Aparecida.Manaus: Secretária do Estado de Comunicação Social, 1985. aMazonas CoMMerCiaL. Manáos, v.4, n.I, mar. 1895. Publicação diária. p. 4. 86. JORGE, V. J. Arqueologia, Patrimônio e Cultura. 2. ed. Instituto Piaget, 2008. 219 Patrimõnio industrial e memória MEMÓRIA & PATRIMÔNIO A ePoCHa: Orgam dos Interesses da Republica. Manáos: Amazonas, v. I, n. 30, dez. 1889. semanal. p. 4. Baze, A. S. Miranda Corrêa histórias e Memórias. Manaus: Editora Novo Tempo Ltda., 1997. p. 128. BarreTTo. M. Cultura e Turismo: Discussões contemporâneas. Campinas, sP: Papirus, 2007. BenCHiMoL, S. Amazônia: Formação Social e Cultural. 3. ed. Manaus: Editora Valer, 2009. BrasiL. Superintendência da Zona Franca de Manaus - sUFraMa. Ministério da Economia. Disponível em <http://site.suframa.gov.br/acesso-a-informacao/institucional>. Acesso em 28 de jan de 2019. BrasiL. Z. F. A destruição da primeira fábrica da cervejaria Brahmado Rio de Janeiro. iPHan, 2012. Disponível em <portal.iphan.gov.br>. Acesso em 02 de dez de 2018. CandaU, J. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2014. CasTeLLs, M. A Questão Urbana. Tradução de Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. CHoaY. F. A alegoria do patrimônio. 4. ed. São Paulo: Estação Liberdade: Unesp, 2006. CorrÊa, L. M. Manaus, roteiro histórico e sentimental da cidade do Rio Negro. Rio de Jeneiro: Artenova Ltda., 1969. Ferreira, A. B. H. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. HaLBWaCHs, M. La Mémoire Colective. Paris: PUF, 1968. Jorge, V. J. Arqueologia, Patrimônio e Cultura. 2. ed. Instituto Piaget, 2008. Le goFF, J. História e Memória. 7. ed. Revista. Campinas, sP: Editora da Unicamp, 2013. LoUreiro, A. J. S. O Amazonas na Época Imperial. Ed. 2. Manaus: editora Valer, 2007. siLVa. L. M. Patrimônio Industrial: passado e presente. iPHan, 2009. Disponível em <portal.iphan.gov.br>. Acesso em 14 de nov de 2018. 220 MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Artes pictóricas em forros de madeira do século XIX: uma comparação entre casa urbana e casa senhorial rural Mônica de Macedo Praz 87 Introdução As pinturas decorativas sobre forros de madeira, usadas com frequência na arquitetura de interiores do século XiX, tinham o intuito de agregar valor estético à habitação, enaltecendo a sua imponência. Foram, então, desenvolvidas e aplicadas variadas técnicas, que se valendo de instrumentalização, ou não, denotavam o grau de instrução e habilidade do artífice, especialmente nas pinturas feitas à mão livre. Essa prática permitia corrigir aparentemente as imperfeições da madeira criando, sob ilusão de ótica, através da técnica do tromp l’oeil 88, “veios e nós” 89 harmonicamente dispostos e seguindo um padrão de desenho regular quanto à forma, tamanho e ritmo de distribuição das figuras. (Figura 1) Essa padronização remete à raiz classicista 87. Mestranda do PPG em Memória Social e Patrimônio cultural da Universidade Federal de Pelotas-UFPel. Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pelotas-UFPel. Bolsista da Capes. monicampraz@ gmail.com 88. Tromp l’oeil é a expressão francesa que quer dizer, em uma tradução literal, “engana olho”, e se vale de efeitos de luz e sombra nas pinturas para criar ilusões tridimensionais. Foi largamente utilizada nas decorações das casas e palacetes de linguagem arquitetônica do ecletismo. 89. Veios da madeira: faixas compridas e estreitas que se distinguem pela sua cor ou pela natureza da sua substância. Nós da madeira: base do galho ou ramo que está encaixado no tronco. Quando do corte da madeira, fica marcada a seção arredondada, saliente por sua textura ou coloração. 221 Artes pictóricas em forros de madeira... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO da qual decorre a linguagem eclética, predominante nos edifícios da época. Figura 1: Forro de madeira com pintura artística. Serro Formoso 2017 Fonte: Acervo da autora. Antecedentes A linguagem eclética, que figurou nos edifícios brasileiros a partir da segunda metade do século XiX, importando a estética europeia, tornou-se alvo de críticas nas primeiras décadas do século XX, quando defensores do movimento modernista mostraram repúdio por adornos e a todo tipo de elementos decorativos, priorizando as formas puras, justificadas por sua função estrutural. Arquitetos modernistas, encabeçados por Le Corbusier 90, identificavam as linhas simplistas de seus desenhos como advindas de uma arquitetura colonial despretensiosa e racional. Por isto, em algumas interpretações, modernismo e neocolonialismo se mesclam. Ainda assim, o ecletismo, fundamentado em bases classicistas, e proporcionado pelo fenômeno da industrialização, com “os elementos pré-fabricados 90. Charles-Edouard Jeanneret-Gris, mais conhecido pelo pseudônimo de Le Corbusier (1887-1965), foi um arquiteto, urbanista, escultor e pintor de origem suíça e naturalizado francês em 1930. Considerado um dos precursores do movimento modernista. 222 Artes pictóricas em forros de madeira... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO em série moldados em ferro, conjugados com o vidro e, logo em seguida, o cimento armado” (sanTos, 2010, p.02) (Figura 2a) havia tomado tamanho vulto que no Brasil, à imitação da Europa, se fez presente em edifícios privados, semiprivados e públicos, como o teatro Municipal do Rio de Janeiro, por exemplo (Figura 2b). Muitos destes, atualmente, são tombados como patrimônio arquitetônico nacional. Figuras 2: Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Elementos em ferro fundido(a) Perspectiva externa (b). 2018 Fonte: Acervo da autora Carlos Alberto Santos (2010) aponta que a linguagem eclética é muito mais do que a composição de diferentes elementos arquitetônicos, ainda que agregue múltiplas referências culturais, a exemplo da Ópera Charles Garnier, em Paris (Figuras 3a e 3b). [...] e a construção eclética da Ópera Charles Garnier, erguida pelo arquiteto que lhe deu o nome, entre os anos de 1861 e 1874, cuja fachada é composta por arcada romana, colunas com capitéis gregos, frontões cimbrados maneiristas, arrematada por cúpula em ferro e aço na forma de 223 Artes pictóricas em forros de madeira... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO uma coroa que homenageia o segundo Império francês, cujo frontispício é ornamentado com esculturas de ferro fundido pintadas em dourado, representando ninfas e musas alusivas à música e à dança, que apresentam grande movimentação e teatralidade barrocas (sanTos, 2010, p 02.). (a) (b) Figuras 3: O edifício da Ópera Charles Garnier (a) e seus ornamentos escultóricos.(b) Fonte:acervo de Carlos A. Santos, 2011. O autor vai dizer que a linguagem eclética conviveu com as reformas urbanas que ocorreram em Paris. Essas propostas de urbanização serviram de modelo para países de periferia como o Brasil. Os grandes eixos viários criados, pavimentados e arborizados, permitiram a circulação rápida de carros e pedestres, facilitaram a comunicação da população entre os bairros periféricos e o centro da cidade, entre as estações de trem e as áreas de comércio, implicaram na construção de uma quantidade de edifícios com duas funções – comercial e residencial – em estilo eclético [...]Desta forma, o estilo arquitetônico eclético foi contemporâneo do urbanismo, 224 Artes pictóricas em forros de madeira... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO ciência que abarcou medidas sanitárias com o objetivo de qualificar a vida nas cidades. (sanTos, 2010, p 04.) Esta linguagem arquitetônica não atingiu somente as capitais brasileiras. Logo se difundiu alcançando até mesmo os núcleos urbanos da fronteira meridional do País (sanTos, 2010). O Rio Grande do Sul, em função das estâncias pecuaristas, teve forte ascensão econômica durante o século XiX. Senhores latifundiários acabaram investindo em residências urbanas ricas em ornamentos, ao sabor de uma estética europeia que servia de referência para o resto do mundo – o ecletismo. Segundo Santos (2010) já na década de 1870, e até antes, havia sido construídos prédios ecléticos nas localidades da campanha gaúcha. Em Pelotas, a opulência dos edifícios que foram construídos em linguagem eclética, em meados do século XiX, fora patrocinada pela indústria charqueadora–responsável pelo apogeu econômico da região. Além dos prédios públicos, como a Prefeitura Municipal; a Biblioteca Pública Pelotense; Mercado Público; teatros e casas bancárias; entre outros, também os edifícios residenciais receberam tratamento arquitetônico digno do atual reconhecimento e tombamento pela União, atingindo o status de patrimônio. Construídos no final da década de 1870, os “palacetes”, que se debruçavam sobre a área verde, alcançaram o ápice do refinamento, servindo de exemplo às obras executadas posteriormente. A partir de então, passaram a morar nestas vivendas duas filhas e um filho do Barão de Butuí, casados com dois filhos e uma filha de Eliseu Antunes Maciel. Os Antunes Maciel representavam o gosto da aristocracia liberal da Fronteira Sul (gUTierrez, 2017, p. 93). Ficava evidente o desejo de manifestar, através desses imóveis, o poderio econômico de seus proprietários. Além da caixa 225 Artes pictóricas em forros de madeira... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO mural, embasada por porões altos, que não só serviam para ventilar os assoalhos, mas ajudavam na representação da imponência do edifício, as fachadas mostravam-se suntuosas, ricas em detalhes e ornamentações, como estatuetas em faiança, vidros coloridos e todo tipo mais de materiais importados da Europa. Na composição de todo esse padrão estético, os interiores também rememoravam palacetes europeus e atualmente, alguns deles, têm a sua preservação assegurada por tombamento, devido às técnicas e materiais encontrados, representativos de época e linguagem específicas (sanTos, 2010). Decoração dos interiores sob a estética do ecletismo Carlos Alberto Santos (2010) lembra que a estética do ecletismo também contemplou os interiores. Variadas técnicas foram desenvolvidas, como a da escaiola, do marmoreado, do estêncil, do tromp l’oeil, entre outras. O uso dessas técnicas resultou em pinturas, que não só tinham a função de embelezar os ambientes, conferindo maior requinte, mas serviam para disfarçar e encobrir imperfeições. Por exemplo, nas de paredes erguidas por taipas 91, ou mesmo tijolos de barro, a cobertura feita com tintas à base de cal deixava transparecer a umidade em indesejáveis manchas. A pintura decorativa, então, ajudava a amenizar, e até mesmo disfarçar, os efeitos da umidade. Na maioria dos cômodos era feita com motivos florais, paisagens bucólicas, ou cenas de caça - comuns em salas de refeição. 91. Taipa de pilão ou de mão, são técnicas construtivas muito usadas na arquitetura do século XIX para edificar paredes externas e internas. Consistem em preencher, com barro, formas de madeira (de pilão), ou tramados de madeira ou bambu (de mão). 226 Artes pictóricas em forros de madeira... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Grande parte das técnicas aplicadas, no entanto, cumpria a função de imitar. A técnica do trompl’oeil foi utilizada em larga escala na decoração interior dos edifícios renascentistas, neoclassicistas e ecléticos. As pinturas causavam efeitos de perspectiva, “simulando as volumetrias de elementos arquitetônicos, compondo, por exemplo: falsas sacadas com balaústres; colunas, arcos e pórticos; relevos ou esculturas” (Miriani, 1997, in aLVes, 2010, p. 46). Enquanto palacetes europeus ostentavam paredes recobertas por granitos e mármores policrômicos; tecidos finos e papel de parede, o casario urbano em cidades brasileiras de grandes centros como Rio de Janeiro, ou mesmo de periferia como Pelotas, exibiam pinturas, que através de escaiolas, marmoreado, e tromp l’oeil, eram capazes de imitar mármores, madeira, frisos e todo tipo de adorno saliente (Figura 4). Figura 4: Detalhes da pintura em tromp l’oeil. Teatro-cinema, de 1923. Fafe. Portugal. 2018. Fonte: Acervo da autora. A técnica da escaiola, também chamada de estuque lustrado, consistia na aplicação de pigmentos diluídos em água a uma massa ainda fresca, de cal e pó de mármore (aLVes 2015). Comumente as escaiolas eram arrematadas por bordas com desenhos que iam de motivos florais a padrões geométricos, executados 227 Artes pictóricas em forros de madeira... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO pela técnica do estêncil, que se utilizava de um molde com o desenho vazado, sobre o qual se aplicavam as tintas (Figura 5). Figura 5: Detalhe de escaiola com barra em estêncil. Serro Formoso. 2017. Fonte: Acervo da autora. Segundo Alves (2015), para atender essa demanda, se fazia necessária mão de obra cada vez mais especializada. Os chamados artistas menores deveriam se encarregar da execução dessas pinturas, enquanto os construtores, de nomes reconhecidos, assinavam os projetos arquitetônicos. Com a abolição da escravatura destacou a formação de mão de obra instrumentalizada. Até então grande parte da atividade manual era executada por escravos, incluindo as artísticas, rejeitadas pelas classes abastadas e ensinadas apenas aos órfãos, pobres, e desvalidos (aLVes, 2015, p.37). Foram os imigrantes europeus, sobretudo os italianos, que se ocuparam em larga escala destes ofícios. Com a chegada de um grande número de imigrantes, e com a necessidade de ensinar a falar e escrever a língua nacional, em 1874 foi fundada a Sociedade Propagadora da Instrução Popular. Em 1882, o estabelecimento dedicou-se a formação profissional e adotou o nome de Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, cujo currículo foi inspirado nos planos de Le Breton, coordenador da Missão Artística Francesa, no Rio de Janeiro (MaCaiMBira, 1985, in aLVes, 2015, p.38). 228 Artes pictóricas em forros de madeira... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Algumas técnicas, de uso não tão recorrente, mas de grande valor estético, e atualmente histórico, consistiam em pintar sobre superfícies de madeira. A técnica do marmoreado, por exemplo, costumou fingir placas de pedra nos rodapés de madeira. Pinturas imitando lambris eram feitas tanto sobre paredes de alvenaria como sobre forros. Repintava-se a própria madeira, conferindo-lhe novos veios e nós, e alterando-lhe a coloração natural. Os forros de madeira constituíram o recorte da pesquisa para a apresentação oral no iV colóquio Internacional Memória e Patrimônio. Pinturas artísticas sobre forros de madeira A arquitetura do século XiX sob a estética do ecletismo foi generosa em ornamentos e todo tipo de adornos, e efeitos de pintura capazes de reproduzir elementos decorativos. Santos aponta que “nos ambientes internos, as superfícies dos assoalhos, das paredes e dos forros eram pintadas utilizando a técnica do tromp l’oeil compondo arranjos diversos: em listras ou em quadriculados, ou, ainda, imitando lambris de madeira” (sanTos, 2010, p. 09).O fingimento de madeira, muitas vezes executado com grande veracidade, era capaz de iludir o espectador, que por efeito da coloração pintada sobre elementos de estuque acreditava tratar-se de frisos e entalhes de madeira nobre - a exemplo da sala de jantar da casa de família de “brasileiros torna viagem” 92, construída em 1886, em Fafe, Portugal. Os detalhes 92. “Brasileiros torna viagem” foi como ficaram conhecidos os portugueses que viajaram para o Brasil, no século XIX, a procura de melhores condições de trabalho. A maioria fez fortuna e, ao retornar para Portugal, construiu 229 Artes pictóricas em forros de madeira... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO aplicados em estuque e pintados para fingir madeira remetem a cenas de caça, frutas e outros gêneros alimentícios, comuns na decoração de salas de jantar da época (Figura 6). Figura 6: Detalhes de forro com imitação de madeira. Fafe. Portugal. 2018 Fonte: acervo da autora. Na cidade de Pelotas, no entorno da praça Cel. Pedro Osório, está a casa que fora residência do Senador Joaquim Augusto Assumpção, construída em 1884. Nela se encontra preservado o forro de madeira da sala de refeições. É possível notar que a pintura decorativa altera de forma ilusória a disposição primeira dos lambris. Também frisos de estuque são aplicados e elegantes casarões com características arquitetônicas próprias dos trópicos, ou ”à moda brasileira” como eram referenciados. 230 Artes pictóricas em forros de madeira... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO pintados com a coloração que uniformiza todo o forro, fazendo parecer confeccionado, inteiramente, em madeira nobre (Figuras 7a e 7b). Figuras 7: Casa do Sen. Joaquim Assumpção. Perspectiva externa(a). Detalhe de forro com pintura artística (b). Pelotas. 2018. Fonte: Acervo de Carlos A. Santos Forros de madeira de casas de estância da campanha gaúcha Os objetos de estudo da pesquisa, que irá gerar a dissertação da autora, são constituídos de casas de fazenda de três estâncias da campanha gaúcha, especialmente suas artes pictóricas. As propriedades se localizam no atual município de Lavras do Sul, e pertenceram ao Cel. Francisco Pereira de Macedo, o Visconde do Serro Formoso, e seus descendentes, tendo suas sedes sido construídas entre 1854 e 1910. Dos recursos de metodologia que vêm sendo aplicados, está o da comparação feita entre as produções pictóricas da zona rural com as dos centros urbanos, em especial Pelotas e Montevideu. Essas duas cidades foram elencadas, conforme o andamento da pesquisa, como sendo influenciadoras sobre a arquitetura e decoração dos objetos de estudo, devido a sua localização geográfica. 231 Artes pictóricas em forros de madeira... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Segundo Henrique Luccas (1997), as casas de fazenda do Rio Grande do Sul, do século XiX, especialmente as dedicadas à pecuária, não primavam por decoração refinada, nem pelo uso de materiais de fino acabamento. As construções eram mais rudes, apesar do grande poder aquisitivo de seus proprietários. O que diferencia a casa senhorial da Estância do Serro Formoso destas outras é a sua localização, próxima à Pelotas e Montevideo, cidades que receberam forte influência europeia em vários segmentos, sobretudo na arquitetura (Praz, P 18. 2018). A trajetória histórica das estâncias é perpassada pela história do Rio Grande do Sul e do Brasil, em função do envolvimento do Cel. Macedo na Guerra do Paraguai (1864 a 1870). Seus feitos em defesa da pátria lhe renderam o título nobiliário, não obstante da nobreza charqueadora pelotense. Ocorre que, de 1864 a 1870, o Brasil esteve envolvido com a Guerra do Paraguai, que foi um forte conflito armado da América Latina no século XiX, em que Brasil, Argentina e Uruguai se uniram, formando a Tríplice Aliança contra a invasão paraguaia. Foi nesta ocasião que o imperador D. Pedro ii veio ao Sul do país, e a caminho de Uruguaiana ficou hospedado na então Fazenda São Francisco da Chagas. Quando de sua chegada, foi recepcionado pelo Cel. Francisco Pereira de Macedo ao som do Hino Nacional executado por uma banda formada por alguns de seus escravos, instruídos por Tomás do Patrocínio, irmão de José do Patrocínio. A partir da presença do Imperador a propriedade passou a se chamar Estância do Serro Formoso, nome dado pelo próprio monarca, referenciando a paisagem local. A participação do coronel na Guerra do Paraguai foi efetiva. Doou cavalos, 50 de seus escravos, que eram alforriados e iam para guerra como “Voluntários da Pátria”, além de enviar seus quatro filhos varões para o combate (Praz, p. 4. 2018). 232 Artes pictóricas em forros de madeira... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO As casas das três propriedades estão preservadas, em grande parte, na sua originalidade. Estão conservados os forros da casa senhorial da Estância do Serro Formoso (1854), que pertenceu ao Visconde, exceto os das zonas de serviço que, por terem sido confeccionados com materiais menos nobres, não alcançaram durabilidade. Os forros da casa senhorial da Estância Vista Alegre (1888), que pertenceu ao Cel. Antônio Leal de Macedo, filho do visconde, foram alterados por pintura feita com material sintético. A casa sede da Estância Santa Ernestina (1910), que pertenceu a João Cândido Leal de Macedo, neto do visconde, mantém preservado o forro da sala da jantar. Avaliando em análise organoléptica os forros da casa da primeira estância, é possível ver que respeitam a hierarquia dos ambientes – discretos na zona íntima, e suntuosos nas áreas sociais. Os dormitórios têm forros em disposição “saia e camisa” usual à época, e receberam pinturas feitas à mão livre sobre a própria madeira com a intenção de valorizar os ambientes (Figura 8). Figura 8: Detalhes dos forros de dois dormitórios. Serro Formoso. 2017 Fonte: Acervo da autora. 233 Artes pictóricas em forros de madeira... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Na sala de jantar, os lambris foram pintados à mão livre, conferindo veios e nós, que seguindo a estética classicista uniformizam a pintura do forro pela forma, tamanho e repetição de padrões. O coroamento do forro neste cômodo é feito com recursos da instrumentalização, fingindo uma disposição de lambris em efeito “espinha de peixe” (Figura 9). Figura 9: Detalhe do forro da sala de jantar. Serro Formoso. 2017 Fonte: Acervo da autora. Figura 10: Detalhe do forro da sala de recepção. Serro Formoso. 2017. Fonte: Acervo da autora. A sala de recepção preserva o forro de lambris com ideia de volumetria, e os mesmos efeitos ilusórios do forro da sala de jantar; e no coroamento aparece o fingimento da técnica de marchetaria 93 (Figura 10). 93. Marchetaria é a arte ou técnica de ornamentar as superfícies planas de móveis, painéis, pisos, tetos, através da aplicação de materiais diversos, tais como: madeira, metais, madrepérola, pedras, plásticos, marfim, etc., tendo 234 Artes pictóricas em forros de madeira... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Todas essas ilusões, provocadas por pintura usando a técnica do tromp l’oeil, são repetidas nas aberturas externas e internas do casarão. A casa senhorial dessa propriedade está preservada quase integralmente na sua originalidade, porém parte da decoração foi alterada em virtude de uma intervenção arquitetônica começada em 1919, que, embora tenha preservado a caixa mural, provocou alterações internas. Em decorrência dessas mudanças, o salão principal passou a ter a estética do art nouveau 94, mais uma vez seguindo a tendência europeia. O forro de madeira deste cômodo recebeu, então, pintura decorativa com desenhos em estilo art nouveau, e efeitos de dourado em tromp l’oeil. Por vezes, a douração era feita com aplicação de folhas de ouro, mas neste caso os efeitos de luz e sombra da pintura deram a ideia reluzente(Figura 11). Figura 11: Detalhes do forro do salão principal. Serro Formoso. 2017. Fonte: Acervo da autora. como principal suporte a madeira. 94. Movimento artístico que surgiu na Europa, por volta de 1880, e que se popularizou no Brasil em torno de 1920. Trazia formas lânguidas, inspiradas na natureza, como os motivos florais. 235 Artes pictóricas em forros de madeira... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO A sala de jantar da Estância Santa Ernestina (1910) conserva o forro de madeira original, composto por lambris, pintados conforme as técnicas empregadas nos forros de lambris da casa senhorial do Serro Formoso, ou seja, pintados à mão livre, conferindo veios e nós que seguindo a estética classicista uniformizam a pintura do forro pela forma, tamanho e repetição de padrões. O arremate se dá na parede, como “roda forro”, composto por lambris dispostos em diagonais que formam o efeito “espinha de peixe” (Figura 12). Figura 12: Detalhe do forro da sala de jantar. Santa Ernestina. 2017. Fonte: Acervo da autora. Conclusão Tendo em vista que as artes pictóricas produzidas nos edifícios, quer públicos ou privados, durante o século XiX, fazem parte de toda uma contextualização histórica, que começa 236 Artes pictóricas em forros de madeira... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO pelos movimentos sociais, artísticos, políticos e culturais da Europa, chegando aos países de periferia como o Brasil, fica clara a relevância em pesquisá-las e inventariá-las para fins de conservação. Pelotas, devido ao seu apogeu econômico advindo da indústria charqueadora, foi próspera em exemplares luxuosos da linguagem eclética. Alguns destes têm sua preservação assegurada por tombamento, outros estão inventariados. Na região da campanha, no Rio Grande do Sul, também os centros urbanos foram influenciados pela arquitetura europeia e, assim como Pelotas, importaram construtores, materiais e tecnologias. Porém, em meio rural, no século XiX as construções eram rústicas, ainda que de propriedade de senhores abastados. Por esta razão, a particularidade dos bens que são objetos da pesquisa – as três casas de estâncias, de linguagem eclética, ricas em ornamentações internas, é digna de reconhecimento e fonte do saber. O recorte eleito para este trabalho mostrou um pouco das técnicas pictóricas e tendências para decoração de interiores da época, passando pelas motivações; recursos materiais; e mão de obra especializada. Neste contexto fica visível a importância dos bens arquitetônicos e suas artes integradas como agentes do patrimônio, capazes de testemunhar a própria história. Referências aLVes, Fábio Galli. Decorações murais: técnicas pictóricas de interiores. Pelotas/ RS (1878 – 1927). Dissertação. (Mestrado em Memória Social e Patrimônio Cultural) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2015. Gutierrez, Ester. In: Loner, Beatriz Ana; Gil, Lorena Almeida; Magalhães, 237 Artes pictóricas em forros de madeira... MEMÓRIA & PATRIMÔNIO Mario Osorio. Dicionário de História de Pelotas. 3º Ed, Editora UFPel, Pelotas, 2017. Praz, Mônica de Macedo. A Estância do Serro Formoso-Lavras do Sul. RS. Artigo (iV Colóquio Internacional Casa Senhorial-Anatomia de Interiores), Pelotas, 2018. sanTos, Carlos Alberto Ávila. O Ecletismo Historicista em Pelotas, 18701931. Artigo. Disponível em: http://ecletismoempelotas.wordpress. com/aruitetura. Acessado em 02/03/2017. 238 COLÓFON Livro composto em Andada e Open Sans para corpo de texto e títulos, respectivamente.