MEMÓRIA &
PATRIMÔNIO:
LUGARES, SOCIABILIDADES
E EDUCAÇÃO
Volume I
Reitoria
Reitor: Pedro Rodrigues Curi Hallal
Vice-Reitor: Luis Isaías Centeno do Amaral
Chefe de Gabinete: Taís Ullrich Fonseca
Pró-Reitor de Graduação: Maria de Fátima Cóssio
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Flávio Fernando Demarco
Pró-Reitor de Extensão e Cultura: Francisca Ferreira Michelon
Pró-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Otávio Martins Peres
Pró-Reitor Administrativo: Ricardo Hartlebem Peter
Pró-Reitor de Infra-estrutura: Julio Carlos Balzano de Mattos
Pró-Reitor de Assuntos Estudantis: Mário Renato de Azevedo Jr.
Pró-Reitor de Gestão Pessoas: Sérgio Batista Christino
Conselho Editorial
Presidente do Conselho Editorial: Ana da Rosa Bandeira
Representantes das Ciências Agrárias: Guilherme Albuquerque de Oliveira Cavalcanti (TITULAR), Cesar Valmor Rombaldi e Fabrício de Vargas Arigony Braga
Representantes da Área das Ciências Exatas e da Terra: Adelir José Strieder (TITULAR), Juliana Pertille da Silva e Daniela Buske
Representantes da Área das Ciências Biológicas: Marla Piumbini Rocha (TITULAR), Rosangela Ferreira Rodrigues e Raquel Ludke
Representantes da Área das Engenharias e Computação: Darci Alberto Gatto (TITULAR) e Rafael Beltrame
Representantes da Área das Ciências da Saúde: Claiton Leoneti Lencina (TITULAR) e Giovanni Felipe Ernst Frizzo
Representantes da Área das Ciências Sociais Aplicadas: Célia Helena Castro Gonsales (TITULAR) e Sylvio Arnoldo Dick Jantzen
Representante da Área das Ciências Humanas: Charles Pereira Pennaforte (TITULAR), Edgar Gandra e Guilherme Camargo Massaú
Representantes da Área das Linguagens e Artes: Josias Pereira da Silva (TITULAR) e Maristani Polidori Zamperetti
MEMÓRIA &
PATRIMÔNIO:
LUGARES, SOCIABILIDADES
E EDUCAÇÃO
Volume I
Coordenadoras
Juliane Conceição Primon Serres
Maria Letícia Mazzucchi Ferreira
organizadores
Darlan de Mamann Marchi
Eduardo Roberto Jordão Knack
Rita Juliana Soares Poloni
Chefia
Ana da Rosa Bandeira
Editora-Chefe
Seção de Pré-Produção
Isabel Cochrane
Administrativo
Seção de Produção
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Administrativo
Filiada à A.B.E.U.
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Revisão Ortográfica
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Projeto Gráfico
Guilherme Bueno Alcântara
Suélen Lulhier
Diagramação & Capa
Guilherme Bueno Alcântara
Dados de Catalogação na Publicação
Simone Godinho Maisonave – CRB-10/1733
M533 Memória & patrimônio [recurso eletrônico] : lugares,
sociabilidades e educação: Volume I. /
coordenadoras: Juliane Conceição Primon Serres e Maria
Letícia Mazzucchi Ferreira ; Organizadores: Darlan de
Mamann Marchi, Eduardo Roberto Jordão Knack e Rita
Juliana Soares Poloni - Pelotas: Ed. da UFPel, 2019.
240 p.
E-Book (PDF)
ISBN: 978-85-517-0060-0 (v.1)
1. Memória 2. Patrimônio 3. Educação 4. Cultura 5. Museus
6. Arquivos I. Serres, Juliane Conceição Primon, coord. II.
Ferreira, MariaLetícia Mazzucchi, coord. III. Marchi, Darlan de
Mamann, org. IV. Knack, Eduardo Roberto Jordão, org. V.
Poloni, Rita Juliana Soares, org.
CDD 363.69
SUMÁRIO
8
APRESENTAÇÃO
11
PREFÁCIO
15
MEMÓRIA, ARQUIVOS & MUSEUS
94
137
16
O cenário e os protagonistas da patrimonialização de arquivos
no Brasil
32
“A razão” de um patrimônio fotográfico: a descrição arquivística das fotografias de jornal
50
Arquivos de esporte: a importância do patrimônio documental do Riograndense Futebol Clube para a Memória de Santa
Maria-rs
68
Leopoldo Gotuzzo e o Malg (1887-1986)
82
Patrimônio e Musealização Virtualizada
MEMÓRIA & EDUCAÇÃO
95
Extensão universitária: conexões com a comunidade (Santa
Maria - rs)
107
Práticas escolares de Educação Física na década de 1970:
memórias de normalistas na escola Assis Brasil, Pelotas/rs
124
A participação de alunos secundaristas na formação da Universidade Federal do Rio Grande
MEMÓRIA, SOCIABILIDADES & PATRIMÔNIO URBANO
138
Clube Caixeiral de Rio Grande/rs: a recreação entre os anos de
1930 a 1950
155
“Ô Chora Makamba, Chora Nauê”: a Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário no Litoral Negro do Rio Grande do Sul
176
Memória e patrimônio na atividade turística: aspectos explorados para o desenvolvimento do turismo no Brasil
188
Registrando para o futuro: fotografia e patrimônio histórico-documental de São Gabriel
203
Patrimônio industrial e memória: o antigo edifício da Cervejaria Miranda Corrêa
221
Artes pictóricas em forros de madeira do século XiX: uma comparação entre casa urbana e casa senhorial rural
APRESENTAÇÃO
O livro que apresentamos ao público interessado nos temas,
problemas, debates e questões que envolvem os estudos da
memória e do patrimônio é o resultado dos trabalhos apresentados e das conferências que ocorreram durante o iV Colóquio Internacional Memória e Patrimônio (que ocorreu entre
os dias 08 e 09 de novembro de 2018), promovido pelos docentes e discentes do Programa de Pós-graduação em Memória
Social e Patrimônio Cultural - PPgMP, da Universidade Federal
de Pelotas. As operações de seleção da memória, envolvendo também o esquecimento, em uma perspectiva individual e
coletiva, fundamentais para compreensão da identidade e do
patrimônio cultural de uma comunidade, foram amplamente
debatidas durante os dias em que o evento foi realizado.
Dessa forma, o iV Colóquio abriu um espaço para discutir
questões sobre memória, patrimônio cultural, conservação e
gestão de acervos, espaços de memória, trajetórias e relatos de
Apresentação
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
atividades dos profissionais das áreas de atuação do PPgMP. O
evento contou com mesas que debateram temas como “memórias e ditaduras”, “memória, patrimônio e esquecimento no
Uruguai”, “instituições brasileiras de tutela do patrimônio cultural”, com conferências que envolveram temas referentes ao
patrimônio e à memória na Argentina e os monumentos e contramonumentos no Brasil. Pesquisadores com importante, sólida e abrangente trajetória profissional, em âmbito nacional e
internacional, foram convidados para as conferências e mesas
do evento. Participaram ainda com apresentação de trabalhos
pesquisadores de diferentes instituições brasileiras, com trabalhos desenvolvidos dentro do escopo do tema do colóquio.
Os trabalhos apresentados nos simpósios temáticos e nas
conferências proferidas nas mesas de debates foram reunidos
e publicados em uma coletânea composta por três livros. Cada
um desses volumes foi organizado em função da afinidade entre
os temas, o que fica claro a partir dos subtítulos expostos em
cada obra. Além desse critério para a organização da coleção,
também foi levado em consideração o estado de cada pesquisa
(trabalhos iniciais, com considerações gerais; estudos de caso,
com conclusões avançadas e consolidadas). Devido à quantidade de trabalhos recebidos no iV Colóquio, cada volume corresponde a etapas e enfoques diferentes do processo de pesquisa.
Dessa forma, o primeiro volume, “Memória e patrimônio:
lugares, sociabilidades e educação”, além de agrupar trabalhos
com temas próximos, apresenta pesquisas que trazem, em sua
maioria, reflexões, mapeamentos iniciais sobre temas, problemas e objetos de estudo. Constituem, em geral, pesquisas
que estão em desenvolvimento pelos respectivos autores. O
segundo volume, “Memória e patrimônio: identidade, emoção
9
Apresentação
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
e ditaduras”, além de reunir trabalhos em torno de temas como
identidade, questões envolvendo processos de patrimonialização, emoção patrimonial, memória e regimes autoritários, de
uma forma geral, apresenta, em âmbito geral, estudos de casos
específicos, indicando trabalhos que apresentam resultados
concretos no âmbito de suas pesquisas.
O terceiro e último volume da coleção, “Memória e patrimônio: preservação, políticas e acesso”, envolve trabalhos que
se debruçaram sobre temas como cidades e preservação patrimonial, políticas públicas de memória e urbanização, patrimônio, acessibilidade e ensino. Tal como o segundo volume da
coleção “Memória e patrimônio”, o último livro congrega estudos de casos, mas com o olhar voltado para questões técnicas,
políticas e metodológicas, também apresentando, assim como
no segundo volume, pesquisas em um estado mais avançado
de desenvolvimento.
Finalizando, é importante ressaltar que o iV Colóquio Internacional Memória e Patrimônio resulta do esforço de pesquisadores para debater, refletir e aprofundar seus temas de
pesquisa. Também assinala o esforço para a divulgação desses
trabalhos, tanto para a comunidade profissional e acadêmica como demais interessados pelos temas. Desejamos a todos
uma ótima leitura!
10
PREFÁCIO
Rita Juliana Soares Poloni
O primeiro volume desta obra organiza-se em torno de três subcapítulos, que buscam congregar, a partir de temáticas afins,
reflexões que se apresentam como fruto de pesquisas em processo de desenvolvimento ou de recortes temáticos de objetos
de investigação outrora explorados de forma mais aprofundada por seus autores. Procura ser uma obra que objetiva provocar os leitores acerca de temáticas de interesse, despertando
questionamentos em torno de objetos com grande potencial de
investigação, além de apresentar ao público resultados específicos de pesquisa que permitam, desde já, contribuir com o
desenvolvimento de seus campos e temáticas de estudo.
Assim, o primeiro subcapítulo, denominado MeMÓria
arQUiVos & MUseUs, congrega pesquisas em torno de museus
e arquivos, ressaltando a importância de tais objetos, não
somente na compreensão dos temas a que os acervos em questão se referem, mas sobretudo aos campos científicos que os
Prefácio
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
investigam e à sociedade brasileira como um todo. Nesse sentido, Francisco Cougo Júnior discute o contexto de aferição de
“patrimonialidade” nos arquivos brasileiros e busca compreender quais são os critérios envolvidos nesse processo ao longo
de seu desenvolvimento. Já Alvaro Filho propõe a análise de
campos descritivos para o tratamento arquivístico do acervo
do jornal A Razão, da cidade de Santa Maria, rs, de forma a
assegurar a recuperação e a contextualização de utilização e/ou
reutilização das imagens nas edições do jornal, tomando como
base a Norma Brasileira de Descrição Arquivística (noBrade).
Também Daiane de Souza e Glaucia Konrad procuram
demonstrar a importância dos arquivos relacionados a práticas
desportivas, tendo como foco o Riograndense Futebol Clube,
em pesquisa que procurou reunir o acervo documental do Clube, contando, assim, parte de sua história, enquanto Raquel
Schwonke, por sua vez, busca subsídios para comprovar a
intencionalidade e a participação do artista Leopoldo Gotuzzo na constituição do Museu de Arte que leva seu nome e que
pertence à Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Finalmente,
Valdir Morigi e Rafael Chaves propõem reflexões acerca das
transformações do conceito de museu no mundo contemporâneo, das informações digitais que divulga, de como se dá o
compartilhamento entre instituições e seus públicos e de como
se configuram os novos patrimônios a partir dos museus e dos
acervos virtualizados.
No segundo subcapítulo, MeMÓria & edUCaÇÃo, reúnem-se
textos que procuram estabelecer diálogo entre pesquisas em
Memória social e contextos escolares do estado do Rio Grande do Sul, levando-nos a refletir sobre a importância de tais
instituições na constituição do sujeito e de suas identidades e
12
Prefácio
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
memórias, tanto em âmbito local quanto em contextos políticos de grande impacto social, como é o caso do período ditatorial militar brasileiro. Assim, o texto de Roselâine Corrêa
fala sobre o Projeto de Extensão Santa Maria da Boca do Monte:
tempos de memória (1858-2018), nos seus objetivos de discutir
a história sociocultural do município, valorizando os campos
da memória, das artes visuais, da literatura, das religiosidades,
da arquitetura, da historiografia, do teatro, do vestuário, da
culinária, da música, do mobiliário e dos espaços de sociabilidade. Já Tânia Teixeira busca analisar as práticas escolares de
Educação Física no Curso de Magistério no Instituto de Educação Assis Brasil (Pelotas/rs), durante os “anos de chumbo”
da ditadura civil- militar no Brasil, destacando nas narrativas
das normalistas e na documentação escolar e legislativa a existência de um conjunto de práticas pedagógicas que visavam a
garantir o controle corporal das jovens estudantes. Finalmente,
Karin Schwarzbold fala do processo de criação da Universidade Federal de Rio Grande e da participação de alunos secundaristas nesse processo.
O último subcapítulo da obra, intitulado MeMÓria, soCiaBiLidades & PaTriMÔnio UrBano, reúne, por sua vez, textos
em torno de temáticas variadas, que têm como ponto de convergência a importância do patrimônio material e imaterial na
constituição dos sujeitos e na compreensão das sociedades nas
quais se inserem. Nesse sentido, Gianne Atallah e João Fernando Nunes tratam das representações locais sobre o Clube
Caixeiral de Rio Grande, rs, abordando as suas transformações
ao longo do século XX e a forma como essas mudanças relacionam-se a questões socioeconômicas de cada período; Claudia Daiane Molet analisa a Irmandade de Nossa Senhora do
13
Prefácio
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Rosário, fundada em Mostardas, durante o século XViii, e ainda
existente, a partir do Ensaio de Pagamento de Promessas, um
ritual afro-católico; Charlene Del Puerto e Maicon Vieira procuram debater a relevância da memória e do patrimônio para a
existência e desenvolvimento do turismo no Brasil. Já Melina
Pereira e Glaucia Konrad analisam o registro fotográfico de
edificações de São Gabriel, rs, realizado entre as décadas de
20 a 40 do século XX, com o objetivo de identificá-las, traçar
sua contextualização histórica e perceber as modificações e a
preservação dessas edificações.
Mais um importante objeto, desta vez do norte do País, é
abordado por Rosanna de Mendonça, que debate as questões
de patrimônio industrial na cidade de Manaus através do olhar
dos moradores do bairro de Nossa Senhora de Aparecida para
com o antigo edifício da Cervejaria Miranda Corrêa, procurando compreender se, e como, ela se constitui como patrimônio
industrial. De retorno ao Rio Grande do Sul, ainda uma última
abordagem, de autoria de Mônica Praz, fala das artes pictóricas produzidas na zona rural do estado no século XiX e início do
XX, mais especificamente em três casas de fazenda da Região
da Campanha.
Concluindo, ressalta-se, uma vez mais, que em suas múltiplas abordagens e objetos, a presente obra tem por intuito
instigar o leitor acerca das abordagens multidisciplinares no
campo da Memória Social e do Patrimônio Cultural e de convidá-lo ao estudo de temáticas com importantes potenciais de
análise, constituindo-se, assim, em um instrumento de fomento para futuras pesquisas nos campos em questão.
14
MEMÓRIA,
ARQUIVOS &
MUSEUS
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
O cenário e os protagonistas da
patrimonialização de arquivos no Brasil
Francisco Alcides Cougo Junior 1
Este trabalho apresenta e esquematiza, em linhas gerais, o projeto de tese de doutorado intitulado “O processo de patrimonialização cultural de arquivos no Brasil”, desenvolvido junto
ao Programa de Pós-graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural (PPgMsPC/UFPel). Basicamente, o projeto discute o
contexto de aferição de “patrimonialidade” (PoULoT, 2009) nos
arquivos brasileiros e busca compreender quais são os critérios envolvidos nesse processo ao longo de seu desenvolvimento. Nas linhas a seguir, um compilado dos debates presentes
no Exame de Qualificação do trabalho (realizado em outubro
de 2018), as premissas gerais que levaram à problematização
e algumas definições iniciais a respeito do objeto em estudo
são apresentadas.
Arquivos e patrimônio cultural: em busca de um conceito
Em um texto recentemente traduzido no Brasil, a pesquisadora
estadunidense Margaret Hedstrom chama a atenção para as
cotidianas “simplificações” que a Arquivologia faz dos conceitos
de memória. Segundo a autora, há uma “hipergeneralização”
no uso de tais definições, característica que acaba por interditar um debate mais profundo sobre suas implicações no âmbito
1. Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor do curso de Arquivologia do Departamento de Documentação, Universidade Federal de Santa Maria. Contato: francisco.cougo@ufsm.br
16
O cenário e os protagonistas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
arquivístico (2016, p. 237). A atenção que Hedstrom dispensa à
memória pode ser estendida ao conceito de patrimônio, pelo
menos no caso brasileiro. Apesar da existência de publicações,
da realização de eventos e até do desenvolvimento de linhas de
pesquisa em pós-graduação sobre o tema, a relação entre arquivos e patrimônio ainda é nebulosa do ponto de vista conceitual.
Em um “estado da arte” ainda incompleto sobre os conceitos,
foram mapeados 126 trabalhos produzidos entre 1999 e 2017
que apresentam os termos “patrimônio documental”, “patrimônio arquivístico”, “patrimônio documental arquivístico” e/
ou “patrimônio arquivístico documental” em seu texto. Das
mais de 100 produções, apenas seis definem em termos teóricos o conceito. Os números corroboram resultados obtidos
pelo trabalho de Blaya & Chaves (2014) sobre os termos presentes nos trabalhos apresentados em diferentes edições do Congresso Nacional de Arquivologia, até 2012. Há, em geral, muita
menção e pouca definição sobre o que é, afinal, essa categoria
de patrimônio.
A generalização do relacionamento entre arquivos e patrimônio, acompanhada por uma ausência de definições de fôlego, pode ser explicada por diversos fatores. No Brasil, durante
décadas, a política e as análises sobre o patrimônio cultural
nacional debruçaram suas atenções e ênfases no patrimônio
material edificado, em especial aquele reconhecido pelo Estado
através de seu organismo maior, o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (iPHan) 2. Ao mesmo tempo, é conhecida também a ascensão apenas recente do reconhecimento
e estudo sobre o chamado patrimônio imaterial – passível de
2. Para análises mais profundas a respeito, ver os trabalhos de Fonseca (1994)
e Gonçalves (2006).
17
O cenário e os protagonistas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
registro público somente a partir de 2000. A opacidade dos
debates sobre o patrimônio relacionado aos arquivos, nesse
sentido, parece até certo ponto condizente com tal realidade. O
esmaecimento da questão, entretanto, conta com ingredientes
extras: no interior da própria Arquivologia há fatores dúbios
que conduziram a relação entre os conceitos ao quadro atual.
Uma rápida leitura sobre um par de conceituações comumente presentes nos estudos que envolvem arquivos e patrimônio já permite antever a complexidade envolvida neste contexto.
O programa Memória do Mundo (MoW), mantido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), por exemplo, utiliza como referência o termo
“patrimônio documental” para definir a categoria de patrimônio
vinculada aos arquivos. Para o MoW, o patrimônio documental refere-se ao conjunto de documentos ligados à história, às
tradições, costumes culturais e ao modo de operação administrativo dos povos. O conceito se caracteriza, ainda neste entendimento, por ser composto por bens movíveis, integrados por
símbolos e códigos, sons e imagens, preserváveis, reproduzíveis e transladáveis (edMonson , 2002, p. 11). Por outra parte,
o Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística, responsável
por propor a homogeneização do vocabulário em Arquivologia
no Brasil, considera o termo “patrimônio arquivístico” como o
mais correto. De acordo com a produção, que leva a chancela do
Arquivo Nacional brasileiro, a definição trata do “conjunto de
arquivos de valor permanente, públicos ou privados, existentes no âmbito de uma nação, de um estado ou de um município”
(arQUiVo naCionaL, 2005, p. 130, grifos do original).
Para além das definições conceituais, é preciso salientar
a própria dubiedade interpretativa presente na relação entre
18
O cenário e os protagonistas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
arquivos e patrimônio. Como se pode depreender da bibliografia sobre o tema, aparentemente não existem dúvidas fundamentais a respeito da pertinência dos arquivos como parte
integrante do patrimônio cultural das nações, das cidades e dos
grupos sociais. Mesmo assim, distingui-los nesse universo não
é tarefa simples. Os arquivos são dotados de duas dimensões
patrimoniais distintas, mas complementares, e isso, muitas
vezes, torna confusa a ativação deste patrimônio pelo viés cultural 3. Basicamente, as duas dimensões patrimoniais dos conjuntos de documentos arquivísticos estão diretamente vinculadas
aos seus produtores/acumuladores e aos motivos de sua existência. A primeira dimensão se coaduna à ideia de posse e de
propriedade, é atrelada ao âmbito administrativo, tem ênfase
no caráter jurídico, econômico e fiscal dos documentos e interessa mais a quem os produziu e acumulou do que às demandas
culturais. Já a segunda dimensão é justamente aquela de viés
cultural, que traz consigo as ideias de legado, de representatividade do passado e de caracterização das sociedades de que
faz parte.
Do ponto de vista do patrimônio cultural, é justamente a
segunda dimensão que interessa. Acontece que as fronteiras
entre ela e sua antecessora nem sempre são de fácil limitação.
É, nesse sentido, a ativação do patrimônio para fins culturais
nos arquivos (ou sua patrimonialização) quem dita a passagem
de um momento a outro. Mais do que compreender o conceito,
portanto, torna-se mister entender como se dá tal processo nos
mais múltiplos contextos possíveis, quem são os atores envolvidos na transição e de que forma eles estruturam as justificativas
3. O termo “ativação” é aqui empregado no sentido apresentado por Prats
(1998, p. 68).
19
O cenário e os protagonistas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
de suas escolhas (levando em consideração que a patrimonialização cultural parte sempre de uma seleção proporcionada por
aqueles agentes individuais, coletivos ou institucionais munidos de legitimidade para tal).
Atualmente, no Brasil, a ativação do patrimônio cultural
arquivístico (como passo a tratar a dimensão patrimonial cultural dos arquivos, doravante) se dá a partir de pelo menos quatro
processos institucionais. O primeiro e mais sólido é o processo
de seleção/avaliação de documentos, referendado desde 1991
pela Lei Federal Nº 8.159 (Lei dos Arquivos). O procedimento
é reconhecido e legitimado pela prática arquivística e se baseia
na análise e no reconhecimento de “valores”, marcas definidoras estabelecidas através das possibilidades apresentadas
pelos conjuntos de documentos em auxiliar na escrita da História, manter e fomentar traços culturais dos povos, respaldar
a memória coletiva, ou contemplar motivações culturais específicas. A “valoração” dos documentos ampara-se em critérios
técnicos e teóricos estabelecidos, em geral, pelos arquivistas,
com o auxílio de comissões de avaliação, agrupamentos multifacetados formados com o intuito de analisar as possibilidades
patrimoniais presentes nos arquivos. Os arquivos considerados
dignos de patrimonialização são reconhecidos como “arquivos
permanentes”, dotados dos “valores secundários”.
O segundo processo de ativação patrimonial cultural nos
arquivos é o tombamento, previsto na legislação brasileira desde 1937. Como na seleção/avaliação, o tombamento é um ato
baseado em critérios “técnicos” e “científicos”, avalizado pelo
Estado através de seus agentes. É também, no caso brasileiro,
uma forma de “estatização” parcial do passado, pois limita os
poderes privados sobre os bens culturais, impedindo que seus
20
O cenário e os protagonistas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
donos os destruam ou alterem suas características originais.
Apesar de sua relevância, são escassos os arquivos tombados
no Brasil. Além da prevalência da seleção/avaliação como instância mais comum de patrimonialização – e da predominância
de outros bens culturais como preferencialmente tombáveis –,
a legislação brasileira prevê outras formas de ativação que, por
suas peculiaridades, acabam por se sobrepor ao tombamento.
A “declaração de interesse público e social” (dips) é um
bom exemplo de tais formas. Instituída em 1991, com a Lei
dos Arquivos, a “dips” pode ser caracterizada como uma espécie de tombamento exclusivo para os arquivos. Trata-se de um
instrumento jurídico destinado aos arquivos particulares, tanto
de pessoas físicas, quanto de pessoas jurídicas, através do qual
julga-se o interesse “histórico”, “cultural”, ou para o “desenvolvimento” do país presente em determinado conjunto de
documentos arquivísticos. De acordo com o Decreto Nº 4.073,
de 2002, cabe ao Conselho Nacional de Arquivos (ConarQ) –
órgão máximo do Sistema Nacional de Arquivos – provocar
ou acolher o pedido de análise a respeito do interesse público e
social que determinado arquivo possa conter. Esta análise, por
sua vez, é feita por comissão escolhida pelo próprio ConarQ.
Quando entendido como pertinente à cultura do país, o arquivo analisado é reconhecido pela autoridade máxima da nação,
o próprio presidente da República – que promulga e certifica
o interesse pelos documentos, tornando-os parte do patrimônio nacional.
Fora destes três dispositivos, há ainda uma quarta via de
patrimonialização – menos impactante sob o ponto de vista
jurídico, mas importante pelo viés simbólico. Trata-se do registro de arquivos no já mencionado programa Memória do Mundo,
21
O cenário e os protagonistas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
da UnesCo. O MoW, criado em 1992, funciona nos moldes da
“dips”, mas tem como enfoque o âmbito internacional. São contemplados pelo Memória do Mundo arquivos públicos e privados
cuja importância “transcende os limites do tempo e da cultura,
e que devem ser preservados para as gerações atuais e futuras
e serem postos de alguma forma à disposição de todos os povos
do mundo” (edMonson, 2002, p. 8). Atualmente, o Brasil conta
com cerca de uma centena de acervos arquivísticos nominados
no programa.
Independente da forma, o processo de “ativação” do patrimônio e/ou patrimonialização cultural de arquivos necessariamente lida com dualidades como memória e esquecimento,
seleção e descarte, valoração e eliminação. O estabelecimento dos “valores secundários” é uma escolha que se dá a partir
da agência de indivíduos, instituições, Estado e comunidades.
A “elevação” dos arquivos à categoria de patrimônio cultural
não é, portanto, um procedimento simples. Ao contrário, ele
apresenta nuances extremamente complexas, seja em sua aplicação prática, seja em seu entendimento teórico. Mais do que
isso: conduz indivíduos e entidades envolvidas para o centro do
debate sobre o que e porque preservar – por fim, o grande tema
dos estudos sobre patrimônio. Independente das instâncias de
ativação deste patrimônio, o processo não é imparcial. Essa
problemática, inclusive, chamou atenção de Pierre Nora, em
Le lieux de memoire. Na apresentação da obra, o autor constatou que a contemporaneidade histórica é marcada pelo frisson
inveterado do colecionismo, da musealização e do arquivamento de objetos e informações que não param de se avolumar.
Nesse sentido, enquanto “produzir arquivos é o imperativo da
época”, selecioná-los, eliminá-los ou preservá-los, são uma
22
O cenário e os protagonistas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
tarefa difícil, marcada pela ação daqueles que dominam a “arte
da destruição controlada”, os arquivistas propriamente ditos
(nora, 2008, p. 27). Entender as características de agentes e
ações, portanto, é parte fundamental da compreensão sobre
o processo.
O patrimônio cultural arquivístico brasileiro: cenário e
protagonistas
Em texto só recentemente traduzido para o português, o canadense Terry Cook defende que a Arquivologia se debruce sobre
sua própria história e passe a analisar, sistematicamente, as
“realidades sociais em constante mudança” e as “lutas pelo
poder” na qual seus agentes se inserem (2018, p. 19). De acordo com o autor, trata-se de desnaturalizar a produção de documentos no âmbito administrativo e pessoal, de compreender,
enfim, que o ato de documentar é uma ação artificial na qual
estão contidas intencionalidades, projetos e disputas de poder.
Para Cook, as instituições arquivísticas são “casas da memória”
e compreender os (des)caminhos percorridos pelos documentos até que eles passem à custódia destas casas é dever daqueles
que desejam compreender o próprio processo de patrimonialização que envolve a Arquivologia.
Em concordância e partindo desta reflexão, tenho proposto
uma análise ampla sobre o processo de patrimonialização cultural de arquivos no Brasil, uma visão panorâmica, até certo ponto introdutória, capaz de lançar luzes sobre um contexto ainda
pouco conhecido, mas repleto de peculiaridades que devem ser
apropriadas e debatidas por arquivistas. A visão proposta – e
que se encontra em plena construção – busca compreender
23
O cenário e os protagonistas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
quem são os agentes institucionais da ativação patrimonial de
arquivos com fins culturais no âmbito brasileiro, como eles
agem como “mediadores simbólicos” e, em alguma medida,
quais são os discursos predominantes nesse processo. Trata-se
de compreender, ainda, o que se entendeu e se entende como
critério de patrimonialização cultural nos arquivos brasileiros
e até que ponto esse entendimento se refletiu (ou reflete) nos
próprios fundos documentais protegidos por instituições de
arquivo no Brasil.
Esse caminho não é necessariamente novo no que diz respeito à Arquivologia brasileira. Ivana Parrela (2012) analisou
parte desse cenário em seu principal trabalho, no qual investiga
o processo de patrimonialização de arquivos em Minas Gerais.
Sua obra é, certamente, norteadora do caminho que proponho,
ainda que meu escopo seja significativamente mais amplo: uma
análise de caráter nacional, tendo por foco a “malha arquivística”
centralizadora, imaginada primeiro pelo poder real (ou colonial),
e seguida pelos poderes sucessores do império e da república, sempre em âmbito federal. Portanto, o cenário que busco
reconstituir é o das instituições de caráter nacional, importantes não só por sua característica centralizadora, mas pelo seu
poder legitimador no âmbito do patrimônio. Certamente, caberá a outros investigadores a análise apurada das características
regionais que, por certo, definirão novas e significativas visões
sobre o patrimônio cultural arquivístico brasileiro.
Dentro desse escopo nacional, atenho-me precisamente aos
atores institucionais que estabeleceram (ou tentaram estabelecer) as definições sobre a ativação patrimonial arquivística no
País. A opção por investigar os atores intelectuais do processo é rica e certamente produtiva, mas quiçá ainda prematura.
24
O cenário e os protagonistas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
A Arquivologia brasileira parece ainda não ter clareza sobre os
pilares que definem seu próprio campo e, nesse sentido, defendo que uma análise primeiramente institucional é mais produtiva. Obviamente, as instituições foram e são integradas por
pessoas que, à medida que galgaram espaço, submeteram suas
ideias ao debate público sobre os processos que concernem
à área. Por ora, entretanto, guio-me pelo resultado objetivo
de suas ideias e ações, ou seja, sobre como as instituições de
que fizeram parte se comportaram a partir de suas concepções
sobre patrimônio no âmbito dos arquivos.
Ainda no terreno dos esclarecimentos, cabe salientar que
o papel dos atores institucionais analisados provém de um
profundo estudo baseado em fontes documentais primárias,
a maioria delas produzida por estes mesmos personagens. A
divisão temporal na qual os insiro, no entanto, é uma opção,
sob minha inteira responsabilidade. Como em qualquer divisão
“didática” destinada a dar lógica à narrativa histórica, os processos que envolvem os atores não começam ou terminam exatamente nos pontos de transição assinalados em uma cronologia
dedicada a ser o mais explicativa possível. Que ninguém leia a
divisão apontada a seguir, portanto, como estática ou acabada em si. Creio mesmo que o aprofundamento proporcionado
por novos estudos (meus ou de colegas) levará à redefinição
dos períodos propostos.
Portanto, a partir das fontes previamente analisadas, proponho uma leitura do processo de patrimonialização cultural de
arquivos no Brasil a partir de quatro fases. Estas etapas têm início no ano de 1808, quando da chegada da Família Real ao País,
mas se acentuam a partir de 1838, com a criação do Archivo
Publico do Império, a principal instituição arquivística nacional
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O cenário e os protagonistas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
brasileira. Tal ator, mais tarde transformado em Arquivo Nacional, não foi o organismo público pioneiro na patrimonialização
de fundos documentais da nação, mas seu papel é protagônico.
A ativação patrimonial realizada por ele – importante salientar – é atribuição que só aparece de forma cifrada em suas
missões institucionais e regulamentares – uma vez que praticamente não se falava em patrimônio cultural à época de sua
fundação. Neste primeiro período, inclui-se uma hipótese de
análise que orienta parte da investigação e que já foi sugerida,
mas não aprofundada, por Parrela (2012): trata-se da suposta
“concorrência” entre o Archivo Publico do Império e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (também criado em 1838)
pela legitimidade da patrimonialização nos arquivos. De acordo
com essa hipótese, o iHgB não apenas teria sido concorrente do
Archivo Publico, como também teria se valido de sua composição e do trânsito político de seus intelectuais integrantes para
definir qual seria o rol dos documentos dignos de guarda para
a história do Brasil. Enxerto à hipótese a Bibliotheca Nacional,
cujo trabalho nesta primeira fase também deixa transparecer
certa concorrência pelo objeto estudado.
Esse período inicial se encerra em 1917, quando encontramos os primeiros movimentos efetivos do Estado brasileiro em
direção à regulamentação dos critérios, das instâncias e dos
mediadores autorizados da ativação patrimonial no Brasil. Tais
movimentações redundaram, em parte, no contexto da outorgação do Decreto Nº 25, que criou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (sPHan) e deu início aos primeiros
tombamentos, em 1937, estabelecendo uma política patrimonial de fato no País. O Sphan tem um significado importante
para o processo de patrimonialização cultural de arquivos no
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O cenário e os protagonistas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Brasil. Aponto como hipótese central para a compreensão deste
período o acirramento dos conflitos antes descritos e uma nova
relação, marcada por sombreamentos, agora entre o Arquivo
Nacional e o próprio sPHan. O detalhe importante é que, com
a ênfase depositada sobre o patrimônio edificado, a nova política parece ter deixado de lado as instituições arquivísticas e
seus fundos documentais, que não foram tombados. O período pós-1937, portanto, parece ser marcado pela opacidade dos
arquivos enquanto patrimônio cultural. Estima-se, nesse sentido, que além do foco no patrimônio de pedra e de cal, a política
patrimonial instituída no bojo do Sphan voltou-se à proteção do
patrimônio privado, principalmente. Os arquivos, constituídos
preponderantemente por documentos produzidos no âmbito da
administração pública (e guarnecidos como patrimônio público
tanto pelo Código de Processo Civil de 1916 quanto pela Constituição de 1937), teriam sido ofuscados pela lógica implementada.
Essa segunda fase da patrimonialização cultural de arquivos
no Brasil se estende até 1958, data-chave que marca uma espécie de “guinada histórica” da arquivística no Brasil – e um novo
período. É nesse ano, durante o governo desenvolvimentista de
Juscelino Kubitschek, que ascende à direção do Arquivo Nacional o intelectual José Honório Rodrigues e, com ele, um “novo
regime” para os arquivos custodiados e tratados por aquela instituição. Hipoteticamente, essa fase parece se caracterizar pela
consolidação de critérios arquivísticos de patrimonialização,
fatores baseados, sobretudo, em experiências desenvolvidas no
exterior (especialmente nos Estados Unidos) e que terminaram
por ser implementadas parcialmente no Brasil. A fase também
coincide com a mudança da capital federal para Brasília, um
processo que deu origem ao questionamento sobre, afinal, quais
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O cenário e os protagonistas...
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arquivos deveriam ser transferidos para a nova sede do governo.
Trata-se ainda de um período que se estende pelos anos 1960 e
1970, fase em que os arquivos ganharam destaque graças à lógica dos sistemas e serviços de informação, implementada pela
ditadura de segurança – que, desde 1964, passara a esforçar-se
no sentido de impor uma identidade nacional (para a qual os
arquivos viriam a se somar).
O período supracitado atravessa três décadas e se encerra
em 1991, quando se inicia uma nova fase, marcada pela aprovação da Lei dos Arquivos, que coloca em vigência um aparato definitivo e poderoso – do ponto de vista da legitimidade
– para a ativação patrimonial cultural arquivística no Brasil. De
acordo com mais uma hipótese de trabalho, esse período pode
ser caracterizado pela formação e consolidação dos critérios
de patrimonialização cultural e de ênfase legal atribuídos ao
Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) e ao Sistema Nacional de Arquivos (Sinar). É nele que se cristaliza uma pretensa
hegemonia da arquivística como disciplina capaz de dirimir
(ainda que por vias muitas vezes autoritárias) as contradições
da ativação patrimonial de arquivos no Brasil. Essa fase, em
meu entender, se estende até 2015, quando os fenômenos da
externalização de arquivos públicos, da pressão pela destruição
de documentos digitalizados e do decréscimo na importância e
nos investimentos no Arquivo Nacional leva a um novo e ainda
desconhecido cenário.
Conclusão
Em 2012, Terry Cook propôs quatro paradigmas de análise para
compreender o desenvolvimento da arquivística no mundo. De
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O cenário e os protagonistas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
acordo com sua divisão, até a década de 1930 predominou o
paradigma da “evidência”, caracterizado por encarar os arquivos como “resíduos naturais” a serem guardados justamente
por seu caráter de prova “autêntica” sobre o passado. A partir dos anos 1940, os arquivos passaram a ser dominados pelo
paradigma da “memória”, cuja orientação central põe na avaliação de documentos seu cerne. Esse modelo foi substituído,
nos anos 1970, pelo paradigma da “identidade”, que buscava
nos arquivos um “recurso social” pluralista, voltado para a busca por identidade e justiça. Cook assinala que, no alvorecer do
século XXi, o paradigma que se torna vigente é o da “comunidade”, direcionado à “democratização de arquivos apropriada ao ethos social, aos padrões de comunicação e requisitos
comunitários da era digital” (2012, p. 155).
Com algum descompasso temporal, podemos assinalar a
periodização brasileira que aqui proponho aos paradigmas
sugeridos por Cook. Os arquivos brasileiros, neste sentido,
teriam sido patrimonializados culturalmente a partir de 1808,
primeiro por suas características evidenciais e, depois, como
pretensos “instrumentos” para uma “memória nacional”. A
partir do final dos anos 1950, sugiro um desencontro limitado
na equiparação, já que o paradigma vigente no Brasil parece
ter-se guiado menos pela ideia de uma identidade pluralista e
democrática e mais por um enviesamento autoritário e impositor de características identitárias uniformes. Assinala-se, ainda,
que o paradigma da “comunidade”, sugerido pelo investigador canadense, parece ter ingressado na análise patrimonial
arquivística brasileira só muito atualmente – e de maneira ainda muito tímida. De qualquer forma, a comparação entre a
periodização aqui proposta e a divisão paradigmática de Cook é
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O cenário e os protagonistas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
interessante, pois colabora na compreensão mais ampla sobre
os caminhos percorridos pelo Brasil em relação ao que poderíamos chamar de uma “arquivística ocidental”.
As reflexões aqui expostas, por fim, pretendem apenas
introduzir o debate no campo da Arquivologia e nas discussões
sobre memória e patrimônio. A coleta de fontes e a verificação
empírica tanto das divisões assinaladas, quanto da atuação dos
agentes citados e seu papel ainda carecem de tempo. Reconstituir as cenas do amplo processo de patrimonialização cultural
de arquivos no Brasil é caminhar em um terreno pantanoso,
de fontes fragmentárias e – como que por ironia – pouco preservadas. Ainda assim, trata-se de uma tarefa fundamental,
para a qual desejo não apenas alcançar êxito, como também
amplificar o diálogo com outros colegas, através de novos trabalhos. Ao fim e ao cabo, compreender como se dá a ativação
patrimonial nos arquivos brasileiros é escrever um capítulo da
própria história do pensamento arquivístico.
Referências
CooK, Terry. Entrevista. In: Revista Ciência da Informação e Documentação. Ribeirão Preto, v.3, n.2, jul./dez. 2012.
CooK, Terry. O passado é prólogo: uma história das ideias arquivísticas
desde 1898 e a futura mudança de paradigma. HeYMann, Luciana;
nedeL, Letíca (org.). Pensar os arquivos: uma antologia. Rio de Janeiro: FgV Editora, 2018.
FonseCa, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória
da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora
UFrJ; MinC – Iphan, 2005.
HedsTroM, Margaret; easTWood, Terry; MaCneiL, Heather. Correntes atuais do pensamento arquivístico. Belo Horizonte: Editora UFMg, 2016.
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O cenário e os protagonistas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
ParreLa, Ivana. Patrimônio documental e escrita de uma história da
pátria regional: Arquivo Público Mineiro 1895 - 1937. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPgH-UFMg, 2012.
PoULoT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente: séculos
XViii-XiX. Do monumento aos valores. São Paulo: Estação da Liberdade, 2009.
PraTs, Llorenç. El concepto de patrimonio cultural. In: Politica y sociedad. Madri, n. 27, 1998.
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MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
“A razão” de um patrimônio fotográfico:
a descrição arquivística das fotografias
de jornal
Alvaro Pouey de Oliveira Filho 4
Introdução
Este artigo apresenta os resultados preliminares de pesquisa
sobre a Descrição Arquivística das fotografias analógicas do
extinto jornal A Razão, hoje pertencentes ao Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria.
O Jornal A Razão esteve presente cotidianamente na vida
da comunidade de Santa Maria, município da região central do
Rio Grande do Sul, desde a década de 1930 até 25 de fevereiro de 2017, relatando os acontecimentos que envolviam essa
sociedade, também trazendo relatos jornalísticos do Estado,
País e mundo para a cidade e região de abrangência.
As fotografias de imprensa são documentos particularmente especiais dentro do universo da comunicação jornalística e
sujeitas a metodologias específicas de utilização nos espaços
dos jornais impressos. Compreender como as fotografias se
articulam com as outras informações que compõe a notícia e
os valores impostos pela sua distribuição espacial na página, a
diagramação, podem aportar dados importantes e substanciais
a serem incorporados na descrição arquivística.
Para que seja possível transportar esses novos dados para a
descrição, seja somente da fotografia utilizada ou do conjunto
4. Arquivista (Universidade Federal de Santa Maria), fotógrafo. Contato: pouey2@gmail.com
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"A razão" de um patrimônio...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
fotográfico que nasceu em função de uma reportagem, é necessário explorar as teorias jornalísticas referentes ao assunto proposto, para então, construir a forma com que os novos dados
serão demonstrados para os usuários.
Por se tratar de um documento revestido de uma série de
elementos informativos, alguns plenamente identificáveis e
outros que são trabalhados conforme prerrogativas escolhidas pelo próprio meio de comunicação, a Descrição dos Documentos de Arquivo, em especial a norma nacional que busca
padronizar esse trabalho técnico, Norma Brasileira de Descrição Arquivística (Nobrade), deve necessariamente dialogar
com esse conjunto informacional.
Na construção teórica para se alcançar a incorporação de
tais dados à descrição das fotografias de jornal é necessário
primeiro compreender o significado e objetivos da descrição
arquivística, para então analisar as teorias da comunicação no
concernente à fotografia de jornal.
Discute-se aqui uma análise das alternativas que atendam
ao tratamento técnico do acervo fotográfico deste veículo de
comunicação, doado ao Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria.
O primeiro conjunto que chegou à posse do Arquivo Histórico Municipal corresponde, segundo o ex-assessor de direção
do jornal, Gaspar Miotto, em entrevista ao site claudemirpereira.com.br 5, aos jornais impressos do ano 1934 a 2017. No
mês de outubro de 2018, somou-se ao arquivo as fotografias
analógicas do mesmo jornal. Segundo estimativa da Arquivista
5. https://claudemirpereira.com.br/2018/02/imprensa-acervo-de-jornais-de-a-razao-sera-doado-para-o-arquivo-historico-municipal-de-santa-maria/ Acesso em: 29 nov. 2018
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"A razão" de um patrimônio...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
responsável, Daniéle Calil, o acervo contém cerva de 30.000
fotografias e um número ainda desconhecido de negativos.
Halbwachs diz que “fazemos apelo aos testemunhos para
fortalecer ou debilitar, mas também para completar o que sabemos de um evento do qual já estamos informados de alguma
forma” (HaLBWaCHs, 1990, p. 25). Assim, o fotojornalismo e a
matéria jornalística possuem, na sua essência, a capacidade de
fornecer um amparo à recuperação do passado e complementar o saber em relação aos acontecimentos cotidianos.
A fotografia jornalística e as normas de descrição
Arquivística
A fotografia jornalística é possuidora de informação, o que a
transforma em testemunho, e esse testemunho, mesmo que
entre para a esfera do esquecimento, ainda assim estará fixado nas páginas à disposição da sociedade.
A soma do acervo fotográfico traz um novo veículo interpretativo e nesse sentido, segundo Zelizer: “diferentes veículos de memória oferecem formas distintas de dar sentido ao
passado” (zeLizer,2012, p. 19). Essa possibilidade de análise
do conjunto fotográfico das reportagens e o seu resultado nas
páginas impressas só serão possíveis se existirem uma conexão entre os dois acervos.
A conexão entre o texto e a fotografia, e sua importância de
inter-relação, é colocada por Zelizer como uma potencialização
representativa: “colocando-as lado a lado, que a dimensão persuasiva de cada formato representativo emerge” (zeLizer, 2012,
p. 20). Com base nessa assertiva surge a questão que envolve a
questão central deste trabalho.
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"A razão" de um patrimônio...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
O problema que estimula a análise proposta está planteado
na transformação do acesso aos documentos fotográficos a que
esse arquivo sofreu ao ser transferido sua guarda da iniciativa
privada para o domínio público.
No primeiro contato com esse acervo constatou-se que as
fotografias são organizadas por assunto, e essa estrutura provavelmente atendeu as necessidades do jornal nas suas pesquisas de recuperação da informação. No entanto, a pergunta de
pesquisa que se faz é, tomando como base a ordem original do
acervo, se essa organização atende aos requisitos técnicos da
Descrição Arquivística? Também cabe ressaltar que o Arquivo
Histórico Municipal de Santa Maria utiliza a Norma Brasileira de Descrição Arquivística (Nobrade), do Arquivo Nacional
e, por se tratar de um acervo especializado da área da Comunicação, essa norma atende aos requisitos particulares desse produto?
Compreende-se “Organicidade” como um princípio de grande valia para a Arquivologia, que se refere à relação entre os
documentos. O Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística trata de forma muito simples esse tema: “a relação natural
ent re documentos de um arquivo em decorrência das atividades da entidade produtora” (arQUiVo naCionaL, 2005, p.127).
Para complementar o sentido de Organicidade Cruz Mundet 6
(1996), diz:
A inter-relação como princípio geral as peças isoladas
(documentos soltos) não têm sentido ou têm muito pouco, sua razão de ser vêm dada por sua relevância a um
conjunto – a unidade arquivística ou expediente – e pelas
relações estabelecidas entre si (MUndeT, 1996, p.100).
6. A tradução de Mundet é uma tradução livre do autor.
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"A razão" de um patrimônio...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Essa “inter-relação ou organicidade”, quando trazida ao
objeto desta pesquisa, aporta a necessidade de evitar o isolamento do documento fotográfico, que teve sua gênese em função de uma atividade e está vinculada a uma série de textos que
formam um conjunto informativo.
A Descrição dos documentos de Arquivo visa a muito mais
do que a recuperação da informação e o consequente acesso,
mas também criar a possibilidade de contextualizar o uso e o
reuso das fotografias no decorrer das edições do jornal. Segundo Yeo (2016):
Os produtos descritivos atuam como ferramentas de gestão de conjuntos documentais – inventários cuja função é
impedir possíveis perdas ou extravios. Eles cumprem um
papel de preservação ao reduzirem o manuseio dos documentos originais. Acima de tudo, eles captam e reúnem
informações sobre contexto (Yeo, 2016, p. 136).
Além de trazer a possibilidade de proteger o acervo de danos
e perdas, como cita Yeo, o fato de a Descrição Arquivística ser
capaz de criar o elo entre a fotografia e/ou o conjunto fotográfico criado para uma reportagem com o texto vinculado, dando
organicidade à informação, agrega informações que a fotografia isolada é incapaz de trazer.
Essa incapacidade da fotografia de imprensa em trazer certas informações e necessitar de um texto que traga ancoragem
à informação é comentada por Sousa (2011):
Uma verdadeira implicação do leitor na descodificação da
imagem fotográfica impõe que esta seja acompanhada de
elementos referenciais que permitam a sua leitura clara.
Uma legenda capaz de ancorar o sentido da foto, a autoria, a fonte, informação sobre a hipotética submissão da
imagem a alterações digitais são, neste campo, dados que
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"A razão" de um patrimônio...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
devem ser facultados ao receptor, pois o contexto informativo referencial é relevante para a obtenção de informação (soUsa, 2011, p. 9).
Vários elementos são destacáveis dessas palavras de Sousa para a descrição arquivística das fotografias de imprensa.
Além da relação entre o texto e fotografia na capacidade de dar
sentido, também se salienta a autoria e a fonte da fotografia.
É muito comum encontrar nos jornais a referência ao produtor sendo dada ao “arquivo” ou ao “banco de dados”. Esse fato
pode decorrer em virtude da reutilização de uma fotografia já
previamente vinculada a outra reportagem ou uma fotografia
pertencente a um conjunto fotográfico produzido também para
outra reportagem. O autor é um campo essencial em qualquer
descrição, independente da espécie documental.
No quadro que segue demonstra-se as mais usuais fontes
das fotografias de jornal.
Cidadão
Fotógrafo da
empresa
Fotógrafo
freelancer
Internet
Fotografia
jornalística
Agências
especializadas
Figura 1: Fonte das fotografias de jornal
Fonte: O Autor
O ponto que se refere às alterações, o que no caso do objeto
aqui tratado, por ser analógico, somente é possível com uma
descrição detalhada da edição feita pelo diagramador e pelo
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"A razão" de um patrimônio...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
editor de fotografia do jornal. Alguns exemplares analisados
apresentam o futuro recorte para impressão demarcado por
linhas que delimitam a área a ser extraída da fotografia a ser
impressa. Essa delimitação do espaço, ou qualquer outra alteração na fotografia, que será utilizada na impressão, também
deve somar informação à descrição.
Na figura abaixo podemos observar a demarcação para os
cortes na fotografia que foi vinculada à reportagem:
Figura 2: Exemplo de marcações de diagramação
Fonte: O Autor
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"A razão" de um patrimônio...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
A relação fotografia-texto é também descrita por Barthes
(1990): “a fonte emissora é a redação do jornal, seu grupo de
técnicos, dos quais alguns fazem a foto, outros a selecionam, a
compõem e retocam; e outros, enfim, a intitulam, a legendam,
a comentam (BarTHes, 1990, p. 11). Outro ponto se agrega à
fotografia de imprensa: o meio o qual a fotografia é vinculada.
Esse ponto não será analisado neste momento.
Assim como Sousa, Barthes também revela a relação existente entre a fotografia e o texto na construção da informação
nas páginas do jornal. Desta forma, reconhece-se o primeiro
elemento a ser desenvolvido na descrição das fotografias de
imprensa, o uso dos textos que acompanham a fotografia para
titular esta nas fichas de descrição.
O primeiro é o título da notícia. Com esse elemento a compreensão da informação fotográfica não fica atrelada ao entendimento ou capacidade do descritor no domínio das técnicas de
análise iconográficas. O exemplo que segue é um demonstrativo
da ambiguidade que uma fotografia pode trazer na sua leitura.
Na fotografia que segue foram retirados os elementos textuais que compõem a capa do jornal Diário de Santa Maria, de
24-25 de fevereiro de 2018, a manchete e o lide. Ao se observar
a fotografia percebe-se que se trata da sombra de alguma pessoa projetada num pavimento de paralelepípedo.
Várias perguntas podem ser feitas para essa fotografia na
busca de termos que a descrevam: qual o assunto tratado? Estaria a reportagem querendo ilustrar uma testemunha oculta de
algum crime? Seria um adulto ou um adolescente? Homem
ou mulher? Enfim, diversas perguntas poderiam ser feitas na
tentativa de estruturar um título que seja capaz de recuperar
e contextualizar a fotografia.
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"A razão" de um patrimônio...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Na fotografia seguinte os elementos que compõem a notícia
são recolocados. Nesse momento o título é aclarado e revela-se o conteúdo.
Figura 3:Fotografia jornalística sem título
Fonte: Disponível em:
www.diariosm.com.br
Acesso em: 14 mar. 2018.
Reconstruindo a capa do jornal encontramos a mensagem
vinculada à fotografia e esta pode aportar elementos essenciais
à descrição do objeto fotográfico. Neste caso o título “Um dia
tem policial, no outro, não” servirá como elemento de descrição no campo “Título”. No campo “título agregado”, o descritor pode servir-se do lide da matéria.
Figura 4: Fotografia com
título e lide
Fonte: Disponível em:
www.diariosm.com.br
Acesso em: 14 mar. 2018.
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"A razão" de um patrimônio...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
É importante salientar que no caso de reutilização desta
fotografia, o novo título e demais textos que acompanham a
nova reportagem devem ser agregados à informação já utilizada para a descrição, criando assim a possibilidade de rastrear
as utilizações destas no veículo jornal.
Outros elementos são também de grande importância para
a descrição das fotografias de imprensa. Para a descrição das
fotografias de jornal, um ponto que se compreende vital é a
“data de edição/publicação”. Salienta-se que esse campo não é
definido na Norma Brasileira de Descrição Arquivística (Nobrade). Uma vez que a data de publicação de uma ou mais fotografias de um conjunto for inserida na descrição, facilitará a
recuperação e demonstrará as diversas relações que possam
existir entre a fotografia e os textos das reportagens.
A Norma Brasileira de Descrição Arquivística (Nobrade)
possui em sua estrutura oito áreas de informação descritiva,
sendo essas: área de identificação, área de contextualização,
área de estrutura de conteúdo, área de condições de acesso e
uso, área de fontes relacionadas, área de notas, área de controle de descrição e área de pontos de acesso e descrição de
assuntos (Nobrade, 2001, p. 18).
Para compreendermos melhor do que se trata cada uma
dessas áreas recorremos à própria norma.
A Área 1, de identificação, é onde registra-se a informação
essencial para identificar a unidade. Nessa área, todos os elementos são obrigatórios:
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"A razão" de um patrimônio...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Código de referência
Título
Data
Nível de descrição
Dimensão e suporte
Quadro 1: Elementos da Área 1 da Nobrade
Fonte: Conarq, 2006
A Área 2, de contextualização, é onde se registra informação sobre a proveniência e custódia. Nesta área, o elemento
“nome do produtor” é o único elemento obrigatório.
Identificação do produtor
História administrativa-biográfica
História arquivística
Quadro 2: Elementos da Área 2 da Nobrade
Fonte: Conarq, 2006
Na Área 3, de conteúdo e estrutura (quadro 3), é onde se
registra informação sobre o assunto e a organização da unidade
de descrição. Nenhum dos elementos desta área é obrigatório.
Na Área 5, de fontes relacionadas, é onde se registra informação sobre outras fontes que têm importante relação com a
unidade de descrição. É na área 5 que encontramos o primeiro
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"A razão" de um patrimônio...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
ponto a ser desenvolvido no âmbito do fotojornalismo no que
tange aos acervos dos veículos de comunicação.
Aqui, demarca-se a relação entre o texto e a fotografia. Para
o objeto dessa pesquisa, que demonstrou a relação orgânica
entre texto-fotojornalismo, o preenchimento do elemento
“unidade de descrição relacionada” vemos ser de fundamental
importância, contextualizando todo o conjunto fotográfico.
A Nobrade traz para o preenchimento deste item a seguinte regra:
Registre informação sobre a existência de unidades de descrição que sejam relacionadas por proveniência ou outra(s)
forma(s) de associação na mesma entidade custodiadora
ou em qualquer outra. Se necessário, justifique essa relação (Conarq, 2006, p.51).
Caso as fotografias jornalísticas produzidas para uma determinada notícia ou reportagem sejam separadas e armazenadas
em outro local, diferente daquele onde estará situado o texto
original do repórter responsável, ou o exemplar digital, o preenchimento deste campo será capaz de demonstrar a relação
orgânica entre ambos.
Identifica-se como importante o elemento que se refere às
cópias. O texto da Nobrade informa que: “aplica-se igualmente
a situações em que as cópias integrantes de um fundo são de
originais integrantes de outro fundo, mesmo que sob a custódia da mesma entidade” (Conarq, 2006, p. 49).
O primeiro elemento é o “título” que, segundo entende-se,
baseado nos resultados desta pesquisa, quanto à relação entre
fotografia-texto no âmbito jornalístico, defende-se seja aquele
utilizado na manchete da notícia/reportagem em que o conjunto fotográfico teve sua origem. Tendo em vista que a produção
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"A razão" de um patrimônio...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
de fotografias, no fazer jornalístico, durante a cobertura de
uma pauta, não produz somente uma fotografia, mas sim um
conjunto que passará pela escolha daquela(s) imagem(ns) que
comporá(ão) a matéria, todo o conjunto deveria receber como
título, na sua descrição, a manchete da matéria em questão.
Outra questão importante é a inserção de um campo referente à data de publicação, o qual poderá facilitar o acesso e
criar um rastreamento de possíveis reutilizações da fotografia de certo conjunto fotográfico em outras matérias que não
aquela originária. Um exemplo fictício, apresentado na Figura
6, mostra os usos distintos para um mesmo conjunto.
Datas hipotéticas de uso
e reutilização
Conjunto
fotográfico
Primeira
utilização
[30/03/2015]
Segunda
utilização
[25/10/2017]
Terceira
utilização
[16/02/2018]
Figura 4: Uso de fotografia jornalística digital
Fonte: O Autor, 2018
Na Figura 4 temos uma ilustração que representa a reutilização de um conjunto fotográfico em diferentes datas e finalidades (notícia, fotolegenda, reportagens, etc.). Havendo essas
datas na descrição do conjunto fotojornalístico, habilita aos
pesquisadores uma ferramenta de compreensão dos discursos
e também facilitaria para a inserção dos créditos, que muitas
vezes são omitidos.
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"A razão" de um patrimônio...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
É preciso lembrar, oportunamente, que esse campo, data de
publicação, não está explícito na Norma Brasileira de Descrição Arquivística. Porém, compreendemos ser de vital importância para as fotografias de veículos de comunicação do tipo
jornal, porque esta possibilita rastrear e contextualizar o uso
das fotografias jornalísticas.
O estudo preliminar, feito com base na Norma Brasileira
de Descrição Arquivística (Nobrade), demonstra que ainda é
necessário realizar adequações. Para que o produto final, os
instrumentos de recuperação da informação sejam eficazes, é
necessário que outros campos sejam inseridos.
Os usuários dos Arquivos mudaram e, segundo Bellotto:
Não mais aqueles diletantes “historiadores de fim de semana” a reconstruir a evolução histórica de suas ciências, mas
sim profissionais que buscam dados e procedimentos passados como referência técnica ou cultural em temas que
abordarão em seu estado atual para embasar propostas de
projetos e de pesquisas (BeLLoTTo, 2014, p.283).
Tendo em conta a especificidade dos usuários, referidos
por Bellotto, a descrição das fotografias de jornal deve levar
em conta, também, elementos da construção visual do jornalismo impresso.
Um dos campos descritivos que devem ser inseridos é o que
se refere à diagramação, uma vez que, segundo Silva (1985), esta
é a “atividade de coordenar corretamente o material gráfico
com o material jornalístico, combinar os dois elementos com o
objetivo principal de persuadir o leitor” (siLVa, 1985, p. 45). Basicamente, pode-se compreender que é por meio da diagramação
que se coloca intensidade, atenção e vigor a uma notícia, e consequentemente à fotografia que forma o conjunto informativo.
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"A razão" de um patrimônio...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Os dados gerados pela diagramação do jornal trariam a posição em que a fotografia ocupa na página, isso é, as zonas visuais.
Na figura abaixo vê-se um exemplo de esquema de visualização
elaborado por Edmund Arnold:
Figura 5: Esquema de
Edmund Arnold para
zonas visuais
Fonte: (Silva, 1985, p. 49)
A Região 1, segundo Silva, é considerada a zona óptica principal ou primária, onde o elemento toma força e mais atenção. As demais regiões são descritas por Silva como sendo: 2
(secundária ou terminal), 3 (morta ou sem atração), 4 (morta
ou sem atração), 5 (centro óptico) e 6 (centro geométrico) (siLVa, 1985). Cabe salientar que, segundo esse autor, não existe
uma regra fixa.
Tendo em conta que a posição da fotografia na página
influencia na sua leitura e recepção pelo leitor, este é um campo
que deve ser colocado na descrição por demonstrar um “valor”
informativo à fotografia. Neste caso, quando realizada uma
pesquisa, o investigador possuirá mais elementos construtivos
de análise.
Conclusão
Mesmo que a Norma Brasileira de Descrição Arquivística
não contemple as especificidades que as fotografias de jornal
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"A razão" de um patrimônio...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
apresentam para a sua devida descrição, tomamos as palavras
de Couture que diz: “reexaminar não é rejeitar, revisar não é
demolir” (CoUTUre, 2015, p.148). Portanto, criar novos campos
que tragam uma maior capacidade de recuperação, contextualização e compreensão, para as fotografias do acervo do jornal
A Razão, beneficiará os futuros usuários.
Cabe salientar que os campos descritivos “data de publicação” e “posição de diagramação” são apenas alguns dos contributos da área do fotojornalismo e comunicação analisados
no presente trabalho.
Este artigo termina fazendo um novo questionamento, baseado nas experiências compartidas entre a Arquivologia e o Jornalismo: sabendo-se que a descrição documental arquivística
funciona como um facilitador de acesso e proteção ao patrimônio, qual seu alcance, como processo, nas instituições jornalísticas e/ou detentoras de acervos jornalísticos do País? Também
se questiona se os arquivistas devem seguir a norma descritiva,
sem dialogar com a teoria jornalística, responsável pela criação
e uso da fotografia do extinto jornal A Razão?
A generalização das espécies documentais trazida pela Norma Brasileira de Descrição Arquivística não atende plenamente
esse processo no âmbito das fotografias de jornal, necessitando
que sejam acrescentados novos e importantes campos à descrição dessa espécie documental, fotografia de jornal.
Referências
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Disponível em:<http://www.arquivonacional.gov.br/images/pdf/
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"A razão" de um patrimônio...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
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"A razão" de um patrimônio...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
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Belo Horizonte: Editora UFMg, 2016.
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MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Arquivos de esporte: a importância
do patrimônio documental do
Riograndense Futebol Clube para a
Memória de Santa Maria-RS
Daiane de Souza 7
Glaucia Vieira Ramos Konrad 8
O trabalho pretende demonstrar a importância dos arquivos
de esporte, no qual o Riograndense Futebol Clube foi o foco da
pesquisa. Para isso a mesma procurou reunir o acervo documental do Clube, contando assim, sua história. O Riograndense
Futebol Clube de Santa Maria faz parte do início do desenvolvimento da cidade, foi quando os ferroviários chegaram para
trabalhar e logo pensaram em ter uma atividade de lazer, como
jogar futebol. A intenção deste estudo foi colocar em pauta
os arquivos de esporte como fator importante para a preservação da história do futebol, tendo o Riograndense de Santa
Maria como centro da pesquisa, identificando a importância
dos arquivos de esporte para memória de Santa Maria, discutindo sua relação com a cultura, recuperando a história através do acervo documental, conscientizando os dirigentes para
recuperar e manter o acervo da instituição.
Para a elaboração do trabalho, foi realizada uma pesquisa
bibliográfica sobre os arquivos de esporte e sua importância na
7. Autora: Bacharel em Arquivologia, Universidade Federal de Santa Maria-RS E-mail: daianesouzapg@hotmail.com
8. Orientadora: Profª. Drª Departamento de Documentação, Curso de Arquivologia, Universidade Federal de Santa Maria-RS E-mail: glaucia-k@uol.
com.br
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Arquivos de esporte:
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
teoria arquivística, na cidade de Santa Maria, rs. A coleta de
dados se deu através de visitas à sede do Clube e de conversas
informais com funcionários e conselheiros, e com o professor
responsável pela obra feita em comemoração aos 100 anos do
Riograndense, tendo como finalidade compreender a atuação
da instituição quanto a seus arquivos. As anotações foram feita na intenção de não perder pontos importantes na pesquisa,
principalmente o histórico do Clube.
Este estudo justifica-se pela necessidade de aliar a teoria
arquivística com o tema dos arquivos esportivos, contribuindo para que a história de um Clube de futebol, com mais de
um século de existência, seja conhecida através da organização e preservação do acervo documental. A pesquisa sobre os
arquivos esportivos se mostra com poucas publicações, para
isso buscou-se abranger estudos neste campo inovador de preservação da história do Riograndense na cultura desportiva de
Santa Maria.
Neste sentido, esta história deve ser escrita e preservada para que a comunidade possa ter ciência da valorização
do Riograndense Futebol Clube, como parte do seu patrimônio esportivo, histórico e cultural. Com base em informações
encontradas em Clarke (2000, p.9-12), “os maiores usuários
de informação esportiva são gestores desportivos, especialistas, pesquisadores, treinadores, atletas e em último lugar o
público em geral buscando biografias”. Por isso, defende-se
a necessidade de mostrar e instigar a curiosidade do público
sobre o esporte e suas necessidades de informações e as possíveis fontes.
Sjöblom (2014, p.13-17), no seu artigo Esportes e arquivos:
um panorama internacional”, debate sua preocupação com a
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Arquivos de esporte:
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
preservação de arquivos de esporte, reconhecendo a falta desse entendimento entre os arquivistas. Por ser um tema moderno/contemporâneo os arquivos onde se guardam a memória
esportiva, ainda é pouco estudado e restrito na formação dos
acadêmicos de arquivologia. Preservar e se preocupar com os
arquivos de esporte é uma necessidade que os gestores e arquivistas das unidades esportivas devem dar atenção. Segundo
Lima (2010, p.13), “Um resgate do esporte de Santa Maria é
necessário, pois em seus 150 anos não foi registrada sua memória no esporte”. Assim, a cidade poderá transmitir quão importante é a retomada da memória do Riograndense para a cultura
de Santa Maria.
O arquivista deve se preocupar com a gestão documental,
sendo futebolística ou não. Por se tratar de um arquivo esportivo, há pouco estudo e trabalho sobre o tema, dificultando a
pesquisa bibliográfica. Os arquivos esportivos tratam da trajetória de uma cidade e ou clube e o Riograndense tem mostrado
preocupação com a sua gestão documental. Para tal ação, no
entanto, é preciso um estudo detalhado na instituição, buscando-se, assim, sua história na cidade de Santa Maria. Sobrinho
(1989, p.31) cita que “se todos os clubes se preocupassem em
preservar o acervo completo da sua história, as pesquisas e
trabalhos seriam mais positivos neste quesito". Nestes termos,
justifica-se a importância da intervenção de um arquivista para
preservar e difundir esses documentos.
Arquivos de esporte
O esporte tem uma relevância para a história e memória da
cidade onde é locado, por isso buscou-se destacar esse tema
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Arquivos de esporte:
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
no referencial e ações dos arquivistas, demonstrando a necessidade da preservação com seu acervo documental, no propósito inicial de estabelecer condições estruturais capazes de
contribuir para a recuperação, preservação e difusão de documentos que tratam do esporte na cidade. Importante destacar a reflexão de Sjöblom (2014, p.13-17) sobre sua trajetória
como arquivista.
Naquele momento, eu li um artigo em um boletim australiano, alegando que o esporte se situava em uma obscuridade arquivística. Como um jovem arquivista, trabalhando
em um dos poucos arquivos especializados em esporte
no mundo, e também dedicado à pesquisa da história do
esporte, julguei necessário reagir àquela declaração.
O autor destaca a importância do arquivista na gestão desses
arquivos e da necessidade das instituições esportivas obterem
responsabilidade sobre seus acervos. Neste sentido, pode-se
tomar como exemplo a realidade do Riograndense, onde sua
história está na memória dos seus antigos dirigentes, acarretando dificuldades de passar sua trajetória aos dirigentes
atuais, como para os pesquisadores dos arquivos esportivos e
a sociedade.
No âmbito do Conselho Internacional de Arquivos (Cia), na
década de 1990, alguns esforços tiveram a finalidade de iniciar
algum tipo de cooperação. “Antes do Congresso do Cia, de Beijing, em 1996, foram reunidas informações sobre coleções e
instituições de documentos de esporte ao redor do mundo, com
a ideia de criar algum tipo de registro ou diretório que pudesse
ajudar pesquisadores a localizar materiais de interesse” (2014,
p.2). Esta seção busca “uma crescente compreensão da importância do esporte como um fenômeno na sociedade”, como
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Arquivos de esporte:
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Sjöblom declarou em seu artigo intitulado Esportes e arquivos:
um panorama internacional do debate. Segundo o autor, os
arquivos de esporte podem ser considerados uma área especializada da arquivologia, que pretende preservar a história e
memória de um clube de futebol e de outros esportes.
No Brasil essa preocupação teve mais foco com o Comitê
Olímpico Brasileiro, criado em 1914, cujo acervo do Departamento Cultural contém tochas, mascotes, medalhas fotografias, cartazes oficiais dos Jogos Olímpicos, uniformes e selos.
Mesmo assim, as pesquisas sobre o esporte ainda permanecem
incipientes na área de arquivologia, pois estão mais voltadas
à biblioteconomia e à museologia. O interesse também deverá partir dos arquivistas, pesquisadores e gestores de clubes
de futebol para que tenham ciência de que esses arquivos são
importantes para a vida dos seus torcedores, assim como para
os acadêmicos e profissionais que trabalham na área.
A gestão arquivística é um aspecto fundamental para qualquer organização, entidade ou pessoa, e com os times de futebol
não é diferente, pois como poderão registrar as suas atividades esportivas imediatas e também manter documentação com
valor histórico e comprobatório, sem documentos que atestem
os seus atos? Mas não é isso que acontece, pois ainda temos
poucos investimentos em preservação de documentos de clubes esportivos.
Nessa estrutura completamente desigual, projetos relacionados à história, memória e preservação de acervo, dentro
de um clube de futebol, mas também noutras instituições
são rotineiramente descartados por não apresentarem
resultados imediatos e retorno financeiro para os clubes”
(sanTos,2014,p.14) .
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Arquivos de esporte:
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
A instituição esportiva que se preocupa com a gestão documental terá uma ferramenta a mais para conquistar seu torcedor ao estádio, incentivando o mesmo a ver os documentos
de valor histórico, como os relacionados à fundação e fotos do
primeiro título do clube.
Arquivo de esporte como patrimônio cultural
O esporte deveria ser defendido como patrimônio cultural, pois
se enquadra no que prevê a Constituição Brasileira (1998) em
seu artigo 216.
Constituem Patrimônio Cultural Brasileiro os bens de
natureza material e imaterial tomados individualmente
ou em conjunto, portadores de referência à identidade,
à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira… poder público, com a colaboração
da comunidade tem a responsabilidade de promover e proteger tal patrimônio.
Neste sentido, o futebol e seu acervo documental estariam
incluídos nesta categorização, como patrimônio cultural imaterial. Mesmo que não existam políticas públicas que salvaguardem a memória e o patrimônio cultural dos esportes nacional,
neste caso, o futebol, nada impede que os próprios clubes, as
federações, a confederação de futebol, assumam o papel de
documentar e preservar os acervos que tenham referências às
práticas esportivas e às atividades administrativas que envolvem a gestão documental.
Gusso e Tobar (2015, p. 521) entendem o futebol como “um
epifenômeno social total aqui também discutido, não ficou
alheio a essa discussão, especialmente quando é cada vez mais
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Arquivos de esporte:
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
forte o entendimento do esporte – e do futebol – como um
bem cultural e os estádios como lugares de memória coletiva”.
Destacam que, mesmo o futebol ainda “não sendo reconhecido como patrimônio cultural brasileiro, a nível legislativo ou
institucional, pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional)”, existe o reconhecimento da sociedade
brasileira, “representação de brasilidade no exterior e, obviamente”, e por isso, é “parte da cultura contemporânea, possibilitando interessantes debates entre os mais diversos segmentos
da sociedade e das ciências”.
As informações contidas nos documentos esportivos poderá convencer a sociedade da importância de se manter viva a
história de um clube de futebol. Teja e Santarelli (2005, p.8592), como exemplo, citam o Clube Lazio, da cidade de Roma,
que “levantou novamente o interesse pelos arquivos de esporte
e, em 1997, o trabalho reiniciou pela Intendência Arquivística de Puglia, que continuou então com a Superintendência do
Lazio-Roma”.
Tal constatação reforça que há um interesse crescente,
mundialmente, pelos arquivos de esporte e pela sua pesquisa. Para não perdermos esses arquivos, tão importantes para
a sociedade, é necessário um diálogo entre pesquisadores de
diversas áreas, como Arquivologia, História, Ciências Sociais,
entre outros, pois um trabalho interdisciplinar poderá produzir conhecimento acerca do tema, ao mesmo tempo em que a
sociedade terá mais informação para que os vestígios da história do futebol não se percam. No Riograndense tal atividade
precisa de um tempo para conscientizar a todos do clube.
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Arquivos de esporte:
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Futebol na identidade cultural e memória de Santa
Maria-RS
Em Santa Maria o futebol chegou como uma prática inicial de
lazer e logo foi aceito com grandes expectativas. Assim fundou-se o Riograndense, que faz parte da história e cultura da
cidade. O clube teve seus momentos de glória e derrotas, mas
o que é nítido em seus conselheiros são a perseverança e amor
pelo Periquito, como é conhecido na cidade. Entretanto, sua
história se mantém mais em memórias individuais do que em
documentos e fotografias. Ao longo da sua trajetória, teve seus
arquivos extraviados, ficando sem documentos na sede, os
quais “fazem parte da sua história cultural”. Para Gagnon-Arguin (1998 apud CUnHa, 2011, p.21), “[...] a faceta cultural [ dos
arquivos] está ligada ao conceito de memória”, ou seja, onde
não existe arquivo, não existe memória. Para Alabarces (1998
Apud sCHiMiTz FiLHo 2005, p103), “há possibilidade de o esporte ser visto como cultura, privilegiando-se sua centralidade
metafórica, seu renovado convite a sua persistência identificatória, transformando-o num objeto da vida cotidiana”. Schimitz Filho (2005, p.107) também coloca que “o jogo tem sua
funcionalidade integra toda a ambientação cultural, adquirindo singularidades”, porque no futebol acontece a integração
da comunidade com o time.
O Riograndense Futebol Clube passou por gerações de torcedores e chegou ao século XXi com grandes histórias memorizadas pela torcida, dirigentes e conselheiros, porém seu
arquivo contém poucas informações importantes do clube e
isso faz com que perca um pouco de sua trajetória, o que não
é empecilho para uma torcida apaixonada por seu time. Os
arquivos podem mostrar muito sobre a instituição ao longo dos
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Arquivos de esporte:
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
anos, por isso têm grande valor comprobatório para si mesmo
e para a sociedade, pois Cunha (2011.p.12) coloca que “O estado-nação solidifica e associa cultura a objetos [..] e instituições
encarregadas de preservar a dita memória coletiva sob a forma de patrimônio”. Assim, o Periquito que tem o reconhecimento da coletividade Santa-Mariense e agrega valor cultural
e histórico.
Os arquivos não são citados diretamente como cultura, mas
são contextualizados na preservação da memória e da história
de todas as entidades esportivas. Cunha (2011,p.12) coloca que
“já com o surgimento de nação, manifestações simbólicas da
cultura são “apropriadas” pelo Estado visando a formar uma
identidade nacional". Como os clubes de futebol levam nações
aos seus estádios para torcer pelo seu time, essa prática vem
ser natural do ser humano torcedor. Seus arquivos também são
importantes para que os mesmos sejam usados de forma cultural, inicialmente como direitos públicos. Conforme Shellemberg (2006.p.27), “Os documentos da sociedade antiga foram
preservados principalmente e, talvez, sem a intenção para usos
culturais”, aproximando uma nação com sua história. Para
relacionar os arquivos com a cultura, Cunha (2011,p.21) diz que
“a relação entre cultura e arquivos no referencial teórico da
área ”arquivística” configura-se como elemento secundário e
superficialmente explorado”, indicando que ainda precisamos
nos aprofundar mais sobre os arquivos como cultura. Dessa
forma, independente do suporte em que foi fixado à escrita, o
documento serve para a instituição esportiva apresentar valores documentais perante a sociedade.
O Riograndense faz parte da história e cultura da cidade,
pois teve seu início em 1912, acompanhando o crescimento
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Arquivos de esporte:
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
territorial de Santa Maria e aumentando os seus admiradores.
Consequentemente, o Clube também produziu documentos de
arquivo, mas, para que sejam acessados, o arquivista precisa
entrar no mundo esportivo, conhecer a trajetória do Periquito
– só assim será possível atender à comunidade, possibilitando
a ela acessar a documentação.
Os arquivos públicos existem com a função precípua de
recolher, custodiar, preservar e organizar fundos documentais originados na área governamental, transferindo- lhes informações de modo a servir ao administrador, ao cidadão e ao
historiador. Mas, para além dessa competência, que justifica
e alimenta sua criação e desenvolvimento, cumpre-lhe ainda
uma atividade que, embora secundária, é a que melhor pode
desenhar aos seus contornos sociais, dando- lhe projeção na
comunidade, trazendo-lhe a necessária dimensão popular e
cultural que reforça e mantém seu objetivo primeiro. Trata-se de seus serviços editoriais, de difusão cultural e assistência
educativa, Bellotto (2004 apud CUnHa, 2011, p.22).
Os arquivos continuam sua função de passar informações
aos usuários, pois através dessas atividades os torcedores, pesquisadores e dirigentes podem ter acesso a tudo que aconteceu no Clube e/ou até em cada partida disputada. Para Cunha
(2011, p.27), “desse modo, a instituição e o conjunto documental
seriam, assim como cultura, produtos coletivos da vida humana
refletidos nos processos sociais que levaram a sua criação, institucionalização e adjacente desenvolvimento teórico e prático".
Tendo sido o Riograndense criado pela comunidade, tornou-se
de grande valor cultural para a mesma, pois teve origem num
grupo de ferroviários que viu na sua criação a possibilidade
de uma vida social e de lazer mais intensa. “Independente dos
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Arquivos de esporte:
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
usuários ou organizações para quem os arquivos direcionem
seus serviços acredita-se que eles (instituição e documento)
consistem em reflexos culturais do seu contexto de produção
e uso, tornando indissociável a cultura dos arquivos” (CUnHa
2011, p.30). Com isso, o acervo do Clube integra a cultura de
Santa Maria e seus usuários tenderão a serem torcedores e
pesquisadores. É fundamental a existência de arquivos para
difundir à comunidade a história de toda a sua trajetória.
O futebol é um esporte conhecido, famoso no Brasil e no
mundo, e logo que crescemos já aprendemos algo sobre ele.
Tem uma magnitude inexplicável, capaz de mover multidões aos
estádios. Segundo D’Onofre, Barbosa e Fernandes (2009, p.11),
“está inserido no nosso imaginário como fator de identidade
cultural e é propagado de geração em geração, já constituindo dentro de nossa sociedade um valor histórico patrimonial".
Neste caso o torcedor é o agente da identidade cultural.
Em Santa Maria não foi diferente, pois o esporte já estava
inserido naturalmente na cidade, e o Riograndense surgiu para
fazer parte de sua história, integrando seu desenvolvimento
aliado à criação de colégios e de um hospital para a comunidade da viação férrea. Todas essas instituições foram criadas e
pensadas para o melhor atendimento das famílias dos ferroviários e o lazer das mesmas.
O futebol se tornou um elemento identificador da cultura
santa-mariense, interligando etnias e classes sociais, com um
time com diversos jogadores de diferentes cores e regiões. De
acordo com Maragon (2017, p.5), através da identificação do
brasileiro com o futebol, culturalmente vão sendo enraizados
hábitos, formas de se relacionar e de usar a linguagem, entre
outros, que constituem a identidade da nossa nação: “Brasil,
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Arquivos de esporte:
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
país do futebol, paixão nacional“. Assim, na cidade fundadora do Riograndense, o sentimento não poderia ser diferente
de paixão.
O Riograndense e sua trajetória em Santa Maria-RS
A cidade de Santa Maria¨, no século XX, tornou-se destaque
como polo ferroviário do estado, considerado um símbolo de
modernidade. Um novo público surge na cidade, do aprendiz
das ferrovias até os mais experientes apoiadores operacionais
da viação férrea.
Muito deste crescimento populacional deveu-se aos ferroviários que chegavam à cidade para trabalhar na via férrea
que se instalava na cidade nos anos de 1905 e 1919, trazendo efeito positivo na economia e desenvolvimento cultural
e social. Essa evolução histórica da cidade decorreu em
função do transporte ferroviário que trazia mercadorias
e passageiros (FLÔres, 2012, p.34).
Com uma concentração alta de ferroviários, Santa Maria
cresceu em número de habitantes e em quantidade de prédios.
Flôres destaca que “em realidade, a ferrovia [assim como o Riograndense] movimentava praticamente toda a cidade, trazendo progresso econômico e desenvolvimento social e cultural”
(2012, p.48). A primeira gestão do Riograndense Futebol Clube ficou a cargo de Álvaro A. Silva como presidente e de João
Baptista Bolli como vice. Nas primeiras reuniões foi escolhido
pela diretoria, entre duas propostas, o nome de Football Club
Riograndense e de sua mascote um periquito, devido à localização do estádio e de seu nome “Estádio dos Eucaliptos".
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Arquivos de esporte:
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Figura 2: Equipe
principal no ano de
2001, uniforme verde
e encarnado.
Fonte: Blog gloriosoesmeraldino.com
Figura 2:
Mascote“Periquito”
Fonte: http://reliquiasdofutebol.blogspot
O clube pode ser considerado um dos mais importantes símbolos do apogeu da Viação Férrea e da Cidade de Santa Maria.
Com essa responsabilidade, e com o passar dos anos, suas
cores, que num primeiro momento eram branco e encarnado; e atualmente são verde e encarnado (aprovadas em 1914)
receberam muito destaque. “A escolha do nome e das cores
tinha influência cultural da forte polarização política existente
no Rio Grande do Sul, que acontecia desde o império” Flôres
(2012,p.50).
O contexto citado pelo autor sobre a origem do esporte verificou-se da mesma forma em Santa Maria. Segundo Sobrinho
(1989), “o futebol foi implantado pelos irmãos maristas do Colégio Santa Maria”, começando assim efetivamente a prática do
esporte. No ano de 1912, a cidade contava com uma população
pequena, mas já possuía a Viação Férrea do Rio Grande do Sul,
responsável por um novo ciclo na sua economia, bem como pela
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Arquivos de esporte:
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
parte esportiva. Mais tarde a Cooperativa dos Ferroviários da
Viação forneceu seu mais importante cenário: a fundação do
“Foot Ball Riograndense”.
A criação do Clube foi relatada:
Aos 7 dia do mês de maio de 1912, na residência do Sr Antônio G.Izaguirre e João Avancini, situada na rua Garibaldi
“Vila Familiar”, apartamento 2. Estiveram presentes os Srs
Antônio G.Izaguirre, João Avancini, Álvaro Silva, Armando F.Barra, Manuel Martins de Oliveira, Jorge Jung Filho,
João Baptista Bolli e Affonso Togni. Considerado fundado
o Clube (soBrinHo,1989,p.42).
Após a fundação, começou a procura por sócios. A grande
maioria de associados trabalhava na Ferrovia sendo o valor da
mensalidade descontado direto na folha de pagamento. Nessa
época já havia contato entre os ferroviários e o futebol, a prática já era de primeiro escalão. Os associados tinham que pagar
em torno de “um mil réis” de mensalidade, mas todos os que
se associaram até 30 de maio de 1912 eram considerados fundadores do clube e estavam isentos do pagamento. De acordo
com Flôres (2012, p.47), “o Clube começou suas atividades no
Bairro Itararé, típico das famílias dos trabalhadores ferroviários que foi secundado pela Chacará das Flores, que engloba a
Vila Perpétuo Socorro”. Nesse local temos o berço de constituição e desenvolvimento do Riograndense.
Para manter-se, o Clube necessitava de apoio e ajuda financeira para compra de materiais esportivos, comida e hospedagens. As viagens foram, por muitos anos, franqueadas pela
Viação Férrea do Rio Grande do Sul (VFrgs). Com isso a relação
entre viação férrea e o Riograndense era mútua, um alavancava o outro.
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Arquivos de esporte:
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Entre as muitas partidas disputadas pelo Riograndense
podemos citar várias com o Grêmio FBPa e Sport Club Internacional. Em 1921, conquistou o vice-campeonato estadual ao
perder por 1X0 para o Grêmio, que se sagrou campeão. Nesse
jogo, realizado em novembro daquele ano, a equipe de Santa
Maria era formada por: Marcelino, Lino, Correa, Tealdo, Lauda, Ginitz, Salles, Willy, Lobo, Mosquito e Marques. Em sua
campanha, o time ficou com 4 pontos (em 3 jogos, 2 vitórias,0
empates e 1 derrota; 6 gols).
Conclusão
Os documentos de um clube esportivo não se limitam só ao
futebol, mas também às questões administrativas. Para manter
sua história viva é importante preservá-los, com a preocupação de garantir que no futuro o usuário interno e externo tenha
êxito em sua pesquisa. Tal preocupação deve passar pela administração do clube, que deverá ter uma gestão documental em
sua organização, juntamente com arquivista - um profissional
necessário para desempenhar essa função.
O Clube não tem realizado a gestão desses documentos por
conta do pouco espaço físico que tem e de gestões anteriores,
que tomaram para si os documentos. O acervo é composto de
documentação, em diversos suportes, que preservam a história do futebol, de esportes amadores e de toda e qualquer ação
que preserve a trajetória desportiva regional e/ou nacional. O
trabalho buscou preservar a história do Riograndense Futebol
Clube, mostrando sua importância cultural e desportiva na
cidade de Santa Maria através do acervo documental ao qual
tivemos acesso, mostrando assim a realidade da instituição.
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Arquivos de esporte:
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
A importância dada ao Riograndense Futebol Clube ocorreu
por ter seu histórico já enraizado na cultura de Santa Maria.
Através do futebol a instituição teve trajetórias gloriosas e também de derrotas, mas o foco do trabalho demonstra que esse
Clube não pode simplesmente ser esquecido pela sociedade e
tampouco por pesquisadores, pois é rico em história e títulos
durante esses 105 anos de existência.
Está pesquisa levará ao mesmo saber do significado do que
representa um acervo que trata do arquivo voltado a sua história e trajetória com o devido cuidado com estes documentos.
Assim foi possível mostrar o quanto este clube é importante
para está cidade.
Esta ênfase na preocupação com arquivos de esporte deu-se para que os clubes tenham grandes gestões do seu arquivo
para que seus torcedores e visitantes possam assim conhecer
sua história em diferentes suportes (fotografias, documentos
e demais). Trazendo o seu público torcedor ou admirador para
mais perto do clube, tendo também maiores visualizações e
revivendo memórias de seus fundadores que começaram sua
jornada na área esportiva.
Referências
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Arquivos de esporte:
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
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Cultural)-Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria,rs, 2012.
67
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Leopoldo Gotuzzo e o Malg (1887-1986)
Raquel Santos Schwonke 9
Introdução
O trabalho, que ora apresentamos, sobre Leopoldo Gotuzzo e
o Malg (1887-1986), faz parte de uma pesquisa maior, de doutorado, desenvolvida no Programa de Pós-graduação de Educação (PPge) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Busca
refletir sobre a participação de Leopoldo Gotuzzo na constituição do Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo (Malg) da UFPel. São
escassos os estudos disponíveis e sistematizados sobre o museu
e sobre a vida e obra do artista. A pesquisa pode contribuir para
a valorização do acervo, bem como para o conhecimento de
Leopoldo Gotuzzo e da própria instituição.
O recorte temporal definido compreende os anos de 1887
a 1986, sendo o primeiro de nascimento do artista e o seguinte da fundação do museu. O estudo está inserido no campo da
História da Educação e foi analisado na perspectiva teórica da
História Cultural. Dentre alguns referenciais teóricos trabalhados, destaca-se Burke (1992, 2004); Chartier (1990, 1992, 2004);
Certeau (1982); Bourdieu (1986, 2003) e Abreu (1996).
As fontes documentais escolhidas, escritas e iconográficas,
fazem parte do acervo do Malg, entre elas: o Arquivo Histórico do
Museu; o Arquivo Histórico da eBa; o Arquivo de Marina de Moraes Pires e a Coleção Leopoldo Gotuzzo. Essa coleção é composta
por obras de arte, medalhas, mobiliário, documentos pessoais,
9. Doutora em Educação. Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Professora
adjunta. Centro de Artes (UFPel). raquel.ufpel@gmail.com
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Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986)
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
fotografias, livros e cartas. Para complementar o trabalho foram
utilizadas fontes orais, conseguidas através de entrevistas.
O método da análise documental baseou o trabalho de
investigação, a partir de alguns questionamentos da pesquisa,
tais como: o contexto que leva o artista a doar suas obras para
que fosse constituído o museu; a trajetória de Gotuzzo; o lugar
social/cultural que ocupava; as doações e sua implicação; a participação do artista na constituição do museu.
A partir do corpus documental reunido foi possível organizar
uma cronologia dos acontecimentos que antecederam a fundação do Malg, em 7 de novembro de 1986, e elencar o percurso
artístico de Leopoldo Gotuzzo, a partir do que ele deixou escrito,
desse modo foi sendo construída uma narrativa. Pode-se identificar, na ampla documentação, momentos importantes que
colaboraram na gênese do museu, como as doações do artista
à eBa, a participação da UFPel e da sociedade pelotense.
O desenvolvimento da pesquisa foi possível porque o museu,
um espaço de pesquisa ensino e extensão, ligado à UFPel, tem reunido e salvaguardado sua história, que inicia bem antes de 1986,
ano de sua fundação. Pode-se dizer que Leopoldo Gotuzzo, desde
seu nascimento em 1887, guardou e organizou seus documentos
para a posteridade. Através deste precioso acervo, podemos ter
conhecimento do tempo passado, do contexto social, da cultura
e do ensino da Arte em Pelotas, o que justifica e possibilita esta e
tantas outras pesquisas que venham a ser realizadas.
A trajetória artística de Leopoldo Gotuzzo
Para estudar a obra de Leopoldo Gotuzzo, há que considerar
seu percurso artístico e sua trajetória. A partir de um critério
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Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986)
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
cronológico, o ponto de partida será em Pelotas. Gotuzzo teve
aulas de arte no curso particular de Desenho e Pintura de Frederico Trebbi, sendo colega de Marina de Moraes Pires, que
mais tarde funda a Escola de Belas Artes. Como aluno de Trebbi, em 1903, expõe na Bibliotheca Pública Pelotense. Voltando
no tempo, um pouco antes, aos 13 anos de idade, quando estudava na Escola São Luiz Gonzaga 10, recebeu uma distinção em
desenho. De acordo com Amaral (2003, p. 21), a Escola em que
Leopoldo Gotuzzo estudou – hoje Colégio La Salle Gonzaga –
era “a priori, destinada aos filhos das famílias mais abastadas
e/ou tradicionalmente católicas [...]”. Então Gotuzzo participava desse grupo social.
Aproveitando a provada habilidade artística e as condições
financeiras da família de Gotuzzo, ele escolhe seguir sua vocação e ser artista pintor 11. Sentia que, em Pelotas, não poderia ir
além daquilo que já havia conseguido 12. Conforme sugestão de
seu professor Trebbi e satisfazendo a vontade do rapaz, seus
pais o mandaram para a Itália. Seu pai, Caetano Gotuzzo, italiano de Porto Fino, era proprietário do Hotel Aliança, estabelecimento importante na cidade. Sua mãe, Leopodina Netto
Gotuzzo, pelotense, cuidava dos seis filhos. Em 1909, Gotuzzo
chega a Roma e permanece por cinco anos, três anos e meio
dos quais, em atelier particular, orientado pelo pintor francês
Joseph Nöel. O artista referia-se ao mestre: “professor extraordinário que generosamente transmitia a seus alunos todos os
10. Hoje Colégio La Salle Gonzaga. Sobre o tema ver Amaral (2003).
11. Artista pintor é a profissão que consta no Titulo Eleitoral e na Certidão de
Procuração que faz Leopoldo Gotuzzo a Jorge Bailly. Fonte: Acervo do Malg.
12. Excerto da carta de Leopoldo Gotuzzo, sem data e sem assinatura. Nº de
inventário: 1485/2014. Acervo do Malg.
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Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986)
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
seus conhecimentos, grande mestre” (Carta, escrita por Leopoldo Gotuzzo, sem data e sem assinatura. Acervo do Malg).
Figura 1: Fotografia. Atelier do Professor Joseph Nöel. Roma.
Fonte: Acervo do Malg. Data provável: 1909-1913
Segundo Gotuzzo, o período vivido na Itália (1909-1914) foi
dedicado exclusivamente aos estudos. Suas primeiras influências 13 foram diante dos grandes mestres, admirando os murais
de Ticiano e Tintoreto. A partir de 1915, começa a participar de
salões. Primeiramente no Rio de Janeiro, onde recebe prêmios
em anos consecutivos: medalha de bronze, medalha de prata
e medalha de ouro.
Depois de cinco anos em Roma, transfere-se para Madri, lá
passa a admirar as obras de Diego Velasquez, Joaquín Sorolla e
Ignacio Zuloaga. Nesse período envia obras para o Salão Oficial
13. Fonte: Boletim de Belas Artes. Nº 3. Março de 1945. Rio de Janeiro. Acervo
da autora.
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Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986)
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
de Belas Artes no Rio de Janeiro e obtém menção honrosa e
medalha de bronze. Em 1916, o Almanach de Pelotas14 publica
uma foto do artista e destaca: “o pintor Leopoldo Gotuzzo, premiado na exposição[...]” (aLManaCH, 1916, p. 231). Na mesma
edição, ainda outras consagrações: “[...] Leopoldo conquistou
os primeiros louros em sua carreira de artista, fadado a outros
brilhantes triunfos” (aLManaCH, 1916, p. 231).
Figura 2: Almanach de
Pelotas. Retrato de Leopoldo Gotuzzo.
Fonte: Acervo de Eduardo Arriada.
Os almanaques no século XiX são relevantes como documentos culturais atrelados ao projeto civilizatório ocidental por
serem veiculadores dos valores morais e comportamentais da
modernidade (dUTra, 2005). Pelotas tinha o seu Almanach, e
Gotuzzo foi inserido no contexto e consagrado.
14. Conforme LIMA; MICHELON; LESCHKO (2010), o Almanach de Pelotas é
um periódico de publicação anual impresso por Florentino Paradeda nas OfficinasTypographicas do jornal pelotense Diário Popular. Começa a circular
em 1913, e o seu último exemplar, disponível na Bibliotheca Pública Pelotense,
é do ano de 1935.
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Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986)
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
No final de 1918, Gotuzzo retorna ao Brasil e realiza exposições em vários estados. Em 1919, depois de uma exposição
no Rio de Janeiro, adquire um atelier junto ao Bairro do Catete.
Reside por toda sua vida na Capital da República. Integra-se à
cidade rapidamente, através de sua arte. Em plena belle époque, período de mudança artístico, cultural e político do Brasil,
Gotuzzo compra uma casa no Bairro Santa Teresa, que tinha
o status de bairro nobre na época, sendo habitado pela classe
alta, muitos deles imigrantes europeus. Nesta casa, um “prédio apalacetado assobradado 15”, na Rua Monte Alegre, nº 312,
ele constrói um atelier e são criadas muitas de suas obras até
a década de 1967, ano em que o imóvel é vendido.
No Bairro Santa Teresa, Gotuzzo convive com membros da
sociedade carioca e artistas. Frequentava a casa de Laurinda
Santos Lobo, dama da sociedade carioca e herdeira de uma família de muitas posses, a qual tinha o hábito de realizar saraus. Era
um dos pontos mais badalados da vida cultural carioca, local de
festas que reunia famosos, como Villa-Lobos e Tarsila do Amaral, bem como os irmãos Leopoldo e Humberto Gotuzzo. Leopoldo, mais do que assíduo frequentador dos salões, era amigo
de Laurinda e, conforme Machado (2002, p. 125), “era um dos
protegés mais queridos de Madame Santos Lobo”. Na residência
de Madame Santos Lobo havia dois retratos feitos por Gotuzzo.
Em 1949, é inaugurada a Escola de Belas Artes de Pelotas
(eBa). A diretora, Marina de Moraes Pires, convida Leopoldo
Gotuzzo para ser o Patrono. Ele sente-se honrado com a homenagem e passa a auxiliar a escola. Mesmo morando no Rio de
Janeiro, sempre que vinha à cidade visitava a escola, ministrava
15. Fonte: Anúncio número 0770 da casa de Leilão Palladio, no Rio de Janeiro,
de abril 1935. Fonte: Acervo da autora.
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Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986)
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
aulas de desenho para os alunos, manteve um elo com a instituição. Ao ser convidado para ser professor na Escola ele recusa.
Ele preferiu ser pintor e não professor. Após essa breve trajetória artística de Leopoldo Gotuzzo, busca-se contextualizar a
história da instituição museal Malg.
A criação do museu
Os primeiros passos para a criação do museu surgem na Escola
de Belas Artes em Pelotas, conhecida como eBa, uma escola de
nível superior em arte, particular e gratuita, dirigida por Marina de Moraes Pires, que era amiga e colega de Leopoldo Gotuzzo desde as aulas de pintura com Frederico Trebbi, em 1902.
Leopoldo Gotuzzo morava no Rio de Janeiro, em uma de
suas vindas para uma exposição em Pelotas, em 1949, Marina
Pires o convida para ser o Patrono da eBa. Ao aceitar, ele faz a
doação de uma de suas obras, perante os alunos, professores
membros da sociedade pelotense e imprensa local - “A Espanhola”, uma pintura em óleo sobre tela. Este é o seu primeiro
presente para a instituição e que marca o início da futura coleção Leopoldo Gotuzzo.
Alguns trechos de reportagens veiculadas pelo jornal pelotense Diário Popular, do mês de julho de 1949, referentes à
doação, definem como o artista era visto no meio social de
Pelotas, e a importância dada à Arte e à eBa naquele momento.
O título da matéria é: “Leopoldo Gotuzzo é recebido na Escola
de Belas Artes”:
[...]Gotuzzo, o laureado pintor conterrâneo, ilustre patrono, doou uma de suas melhores telas – a qual poderá ser
admirada na vitrine das Casas Levy. A sessão foi encerrada
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Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986)
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
sob uma vibrante salva de palmas, repetição aquela com
que ele fora saudado ao penetrar no recinto. Foi registrado pelo fotógrafo o momento em que Leopoldo Gotuzzo,
rodeado pelas alunas, em uma das salas da Escola, exibia
a obra doada (Diário Popular, 12 de julho de 1949).
Figura 3: Pintura. A Espanhola. Ano 1942: técnica:
pintura, óleo sobre tela.
Dimensões: 56 x 46cm.
Fonte: Acervo do Malg
O fotógrafo Ildefonso Robles registra o momento: Gotuzzo, na sala de aula, sentado entre os alunos, em pé o professor
italiano Aldo Locatelli16. Nesse período, a eBa estava provisoriamente instalada na Bibliotheca Pública Pelotense.
Figura 4: Leopoldo Gotuzzo com Aldo Locatelli e os alunos da EBA.
Fonte: Acervo do Malg
16. Pintor e professor italiano.
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Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986)
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
As notícias publicadas no jornal do Patrono da Escola de
Belas Artes reforçam a imagem de Leopoldo Gotuzzo como
importante artista, legitimando a sua arte, dando-lhe reconhecimento social e agregando valor também à nova escola.
Em 1955, aos 68 anos de idade, Leopoldo Gotuzzo, presenteia novamente a eBa. Agora são 16 obras. Junto à doação, uma
carta, onde descreve o título das obras, importância delas, períodos e premiações. O artista estabelece que as mesmas devem
ser guardadas e cuidadas em um “pequeno Museu Gotuzzo”,
quando a Escola tenha condições de criá-lo. Nessa concepção
de ensino, a sua arte seria modelar e seguida pela instituição.
Marina de Moraes Pires o apoia plenamente. Foi registrado em
atas da eBa, deste ano de 1955, o “Museu Gotuzzo”.
A Escola de Belas Artes criou, em suas dependências, o Salão
Leopoldo Gotuzzo para guardar as obras recebidas. Gotuzzo, ao
saber que suas obras estavam em um salão, diz: “salão de honra não é museu 17”. Dessa forma, reforça sua intencionalidade
de querer um espaço museológico que recebesse seu nome e
que servisse à sua memória.
Assim, surgem questões dos confrontos entre um acervo deixado pelo artista, com o propósito estabelecido de ser
memorável, e o contexto da instituição na cidade. A reflexão
foi motivada pela circunstância na qual o Malg surge e no contexto indissociável de uma sociedade que se deseja afirmar
memorável e memoriosa. Ao confrontar diversos documentos,
o depoimento de Luciana Araujo Renck Reis colaborou para
reforçar que havia o interesse da escola de ter um museu, da
própria diretora Marina Pires e também da sociedade pelotense.
17. Relato de Luciana Reis em conversa com o artista. Fonte: audiovisual acervo do Malg, 2008.
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Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986)
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Luciana Reis era aluna da eBa, amiga de Gotuzzo e sobrinha de
Marina Pires.
Figura 5: Montagem da autora com as obras de Leopoldo Gotuzzo,
referentes à doação de 1955.
Fonte: Acervo do Malg
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Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986)
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
A análise, em relação à temática das obras doadas, consta que não há quadros com flores. A seleção do artista inclui
somente paisagens, figuras, nus e uma natureza morta: “Os
pêssegos”. É possível elencar que algumas das obras que fazem
parte desse conjunto haviam participado de outras exposições
e foram premiadas, conforme catálogo do acervo do Malg.
Para refletir sobre a atuação de Leopoldo Gotuzzo, fica claro
que o que doa é muito mais do que simples obras de arte. Cada
uma delas representa um período de sua vida, um local, as premiações, erros e acertos, saudades, como ele mesmo diz ao
descrever cada uma das obras que incluem essa primeira doação. O pintor, mesmo tendo doado a coleção voluntariamente,
sente-se triste, pois cada quadro tem uma história. Estava consciente de que sua carreira como artista estava definida, tendo
em vista que iniciou seu trabalho independente em Madri, no
ano de 1914. O período mais produtivo do seu percurso já se
havia dado.
Conforme Candau (2011), as coleções funcionam como
extensões de memória. Se pensarmos no caso de uma coleção biográfica, ela pode ser considerada como extensões da
própria pessoa. Preservar a coleção seria o mesmo que preservar e valorizar o seu autor, por isso Gotuzzo almeja o museu.
Trazendo as ideias do autor para a pesquisa, posso dizer que
Gotuzzo doa uma parte de si, mas não sem intenção.
Conclusão
A pesquisa sobre Leopoldo Gotuzzo e o Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, da Universidade Federal de Pelotas, buscou fazer
uma reflexão sobre o artista e sua influência na formação da
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Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986)
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
instituição. Pautou-se em apresentar os primeiros resultados
do trabalho. O amplo corpus documental permitiu fazer um
entrecruzamento de informações e estabelecer um panorama
a partir de uma cronologia. Desde Pelotas, início da carreira de
Leopoldo Gotuzzo na Escola Gonzaga, às aulas particulares de
Desenho e Pintura de Frederico Trebbi até sua ida para Roma,
Madri, Paris e Rio de Janeiro, suas premiações, reconhecimento de seu investimento com a arte. Com isso, firma-se a ideia
de projeção nacional e internacional.
A gênese do Malg está relacionada diretamente a Leopoldo
Gotuzzo, no ano de 1955, quando ele doa 16 obras para a eBa
com o objetivo que fossem cuidadas pelo maior tempo possível e
expostas em um espaço museológico, que não existia na escola.
As obras ficaram espalhadas pelas salas de aula. Inicia-se nesse período a formação da coleção, a primeira do futuro museu.
O artista deixa em testamento que doará o resto que sobrar de
sua produção ao morrer. Insiste por diversas vezes que quer
ver suas obras em um museu com seu nome. O contexto histórico, social e político colaboraram para a abertura do museu
e a ideia de sua criação foi de Leopoldo Gotuzzo. Em Pelotas
aceitava-se a sua notoriedade em face de sucessos expressivos
na sua carreira. Tinha-se um acervo, havia uma escola de arte,
amigos eram dirigentes da eBa e da UFPel, a sociedade pelotense apoiou e concretizou sua ideia.
Ao doar suas obras para a formação de um museu, doa muito mais do que simples objetos, ele doa parte de si, de seu trabalho, construído durante toda sua vida.
O referencial teórico, baseado na História Cultural, possibilitou analisar e entender os mecanismos de construção de
memória, do sujeito, no caso o artista, que faz uma construção
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Leopoldo Gotuzzo e o Malg ( 1887-1986)
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
de si, de como ele queria ser lembrado, e nunca esquecido. Foi
possível perceber que há outros fatores no simples gesto de
doação, que em um primeiro momento não eram visíveis. A
coleção doada é significativa por ter sido formada pelo próprio
autor, intencionalmente. O conjunto volumoso do acervo produzido exibe os diversos momentos da vida do artista, constituindo o discurso de Gotuzzo a respeito de seu próprio trabalho.
Seu gesto interfere no ensino de Arte na Escola de Belas Artes
em Pelotas e no modelo em que o museu se constituiu.
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81
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Patrimônio e Musealização Virtualizada
Valdir Morigi 18
Rafael Chaves 19
Introdução
A revolução tecnoinformacional e comunicacional possibilitou
a sociedade em rede e com ela sugiram as mídias sociais, diferentes dispositivos comunicacionais virtuais (blogs, Instagram,
sites de compartilhamento, fóruns, etc.).
Essa revolução comunicacional museológica começa a traçar diretamente com os museus na rede, a criação de sites e
plataformas museais ganham um novo fazer, com propostas de interlocuções diferentes. As mídias sociais ampliaram
as possibilidades de interação e participação do público com
as instituições museais virtualizadas em diferentes âmbitos.
Os ambientes virtuais possibilitam acessibilidade e a difusão
de informações sobre o patrimônio cultural, constituindo os
novos suportes da memória no ciberespaço. Entretanto, os
usos das mídias sociais pelas instituições museológicas são
recentes. As instituições museológicas começam a utilizar as
mídias sociais para divulgações de suas exposições e horários
18. Universidade Federal do Rio Grande do Sul- UFRGS, Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação - FABICO. Departamento de Ciências da Informação. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP. Professor
titular do DCI/FABICO/UFRGS e do Programa de Pós-graduação em Museologia e Patrimônio (PPGMUSPA)/UFRGS. E-mail: valdir.morigi@gmail.com
19. Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS, Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação- FABICO. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Museologia e Patrimônio (PPGMUSPA)/UFRGS. Email: rafateixeirachaves@gmail.com
82
Patrimônio e Musealização Virtualizada
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
de funcionamentos. As novas tecnologias revelam às instituições museais novas possibilidades de aumentar o seu contato
com os visitantes, a partir da velocidade de comunicação no
ciberespaço. Com essa visão, cada vez mais os museus buscam
investir nas ferramentas virtuais, de forma a aumentar a sua
conexão com os visitantes, tendo em vista que estes podem
acessar a instituição em tempo real e de qualquer lugar, desde
que estejam conectados à internet.
Com as transformações nos espaços museológicos na contemporaneidade, e com a disseminação das informações na
internet, cada dia mais utilizada, seja por dispositivos móveis
ou por outros dispositivos, a comunicação virtual vem tomando conta dos espaços museológicos.
As tecnologias info-comunicacionais trouxeram mudanças
na forma de perceber os espaços museais, alterando o próprio conceito de museu no mundo contemporâneo a partir
da constituição dos museus virtuais. Nesse sentido, levantamos as seguintes indagações: A partir das plataformas digitais
e do compartilhamento de informações como se configuram os novos patrimônios a partir dos museus e dos acervos
virtualizados?
As mídias sociais podem aproximar os visitantes dos museus
através da comunicação museológica. O museu virtual, através
dos usos das tecnologias digitais, realiza a mediação entre os
objetos musealizados difundidos no ambiente virtual, possibilitando que cada visitante faça a sua interpretação das informações sobre os acervos documentais da instituição. Nesse
processo, a comunicação museológica auxilia na apropriação
das informações ao mesmo tempo em que possibilita maior visibilidade ao patrimônio documental que está sob o seu domínio.
83
Patrimônio e Musealização Virtualizada
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Os museus virtuais na rede, a partir das plataformas oficiais
trazem novas práticas ao fazer museológico, pois permitem
novas interlocuções com os usuários e a sociedade.
O compartilhamento de informações digitalizadas em rede
permite o acesso e também a preservação dos documentos originais, pois pode diminuir a manipulação dos objetos. Assim,
os usos das mídias sociais pelos museus, auxiliam na acessibilidade das informações sobre os acervos ao mesmo tempo que
possibilitam mostrar transparência nas ações museológicas e
democratização destas instituições.
Museus Virtualizados
As formas de comunicação nos museus, ao decorrer do tempo,
vêm passando por constantes mudanças. Os museus passam
a utilizar da digitalização de seus acervos, e compartilhando
nas suas mídias, possibilitando a quebra do limite geográfico,
tornando o acervo acessível. Apresentando um novo cenário
museal, onde o acervo virtual se torna uma fonte de representação das instituições museais.
No presente, com a perspectiva da museologia crítica, com
os usos das tecnologias de informação e comunicação aumentou o número de pessoas conectadas na rede, possibilitando
uma aproximação dos cidadãos com os museus. A cultura do
compartilhamento auxilia na interação dos visitantes com os
museus. Entretanto, o uso das mídias sociais nas instituições
museológicas brasileiras é algo recente e as discussões sobre o
tema precisam avançar. Os gestores das instituições começam a
rever seus olhares em relação aos sites de museus, inicialmente
como um facilitador de comunicação de eventuais informações,
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Patrimônio e Musealização Virtualizada
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
tais como: como informes de data, local de abertura de exposições, notícias, para um novo formato de site de museu.
O que significa que o objeto museal deverá ser compreendido pela gênese das teias de relações e, não apenas como
um produto que por si só, representa um espaço tempo
histórico definido a priori por seus aspectos físicos que
são determinados numa ação documental que busca resgatar ‘informações’ sobre este bem cultural. (nasCiMenTo, 1994, p.30)
Os museus virtualizados, são instituições virtuais que se
apropriam das redes sociais como suporte de interação e disseminação do acervo museológico digital.
Para Carvalho (2008) a evolução da comunicação dos
museus na Internet é atualizada também por análise de artigos
da mídia impressa e online. Segundo a autora, o museu virtual é aquele construído sem equivalência no espaço físico, com
obras criadas digitalmente, não sendo substituto equivalente
ou evolução dos primeiros.
A mudança paradigmática acerca dos formatos que museus
assumem, questiona esses espaços como apenas locais para
contemplação. Ele é, acima de tudo, um espaço de possibilita questionamentos e reflexões sobre a vida e o cotidiano. O
museu virtual pode se tornar um local de reflexão e discussão
acerca de objetos musealizados na virtualidade à medida em
que ele incorpora novas dinâmicas que vão além da preservação dos objetos.
Os museus virtuais na rede, a partir das plataformas oficiais
trazem novas práticas ao fazer museológico, pois possibilitam
novas interlocuções com os usuários e a sociedade. “O patrimônio, portanto, deve ser compreendido como o conjunto de
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Patrimônio e Musealização Virtualizada
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
informações que caracterizam as ordens de significado dentro
de um grupo, povo ou nação”. (dodeBei, 2005, p. 47)
Assim, patrimônio digital pode ser considerado tanto as
digitalizações de acervos documentais, registros fotográficos
digitais de monumentos e patrimônios, como as próprias bases
de dados que armazenam e fazem a gestão desses materiais.
Na atualidade, com as mídias sociais, a documentação
museológica se torna um potencial vetor entre o material e o
imaterial, pois a digitalização dos acervos, passam a ter outro
valor, não somente o de salvaguardar, mas de comunicar. Os
museus passam a ver as mídias sociais como um local de cativar
o público sem distinção geográfica, tornando o acervo acessível a todos e não restrito em quatro paredes.
As mídias sociais possibilitam uma cultura de compartilhamentos, tornando dentro da plataforma digital uma experimentação de uso para museus. O uso das mídias sociais nos museus
traz impactos no fazer social museológico, pois os objetos deixam de ser o centro das atenções, em contrapartida as ideias
e sua fruição passam a ser o centro da instituição e o público
deixa de ser o expectador para ser participante ativo.
Assim como profissionais de museus, há um novo olhar sobre
o fazer museológico a partir dos acervos na rede, com isso vários
museus brasileiros estão adotando este novo modo de comunicar. Portanto, a comunicação se tornou mais ampla e com espaço para que o visitante tenha mais interação no feedback.
A projeção do objeto museal virtualizado expõe a noção
de valor e de conservação do patrimônio ressoando o sentido
desse tipo de comunicação, através da qual o público se torna um consumidor digital, usando a interação na rede para
suas apropriações.
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Patrimônio e Musealização Virtualizada
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Pensar a comunicação em museus é refletir e questionar o
potencial do uso de mídias sociais como ferramentas de conexão entre o museu e o público a partir do objeto musealizado.
Nesse novo cenário, os museus utilizam as mídias sociais como
um viés para comunicação, pois enfrentam os resquícios do
paradigma anterior que distanciava o museu do visitante - nesse novo modelo o público se torna parte do processo. O processo museal ocorre através de etapas de formação de acervo,
pesquisa, salvaguarda pelos processos de conservação e documentação museológica, comunicação por meios de exposição
e ações educativas para o patrimônio cultural.
A exposição é o resultado da soma de diferentes métodos
museológicos que dão fruto a ela. É uma forma de comunicação do que está sendo exposto, onde os museus expõem objetos
materializados, seguindo o modelo europeu, no qual os objetos
são geralmente o centro da exposição.
Assim, é na exposição que o visitante tem a oportunidade
de conhecer o processo museológico em seus conceitos básicos
como a aquisição, a documentação, a conservação e a comunicação. Esse fenômeno museológico é um grande desafio, pois é
necessário conhecer as potencialidades das formas de comunicação museológica em rede, adotando terminologias para que
os usuários tenham compreensão desse novo fazer museológico.
Nos Museus a comunicação é feita quando o emissor
codifica para o receptor, sendo comunicação museológica virtual ou não, ela tem que ser convidativa, que faça o
visitante ficar por alguns segundos contemplando (em síntese, procura-se a interação entre a mensagem expositiva
e o visitante, para que a exposição permita uma experiência de apropriação de conhecimento) (CUrY, 2010, p.39).
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Patrimônio e Musealização Virtualizada
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Os museus virtualizados, portanto, são potência de patrimonialização. Em sua história, a comunicação com público
estabelecia uma relação de receptor passivo da informação e a
instituição o transmissor que já apresentava um código pronto
para o acesso, sem que o público pudesse passar suas impressões sobre os acervos.
Segundo Horta (1997, p.112), cabe ao museólogo desconstruir, decodificar e desmistificar os elementos da teia de relações de significados, que configuram o espaço e o objeto museal,
“de modo a levar o público a perceber esses inúmeros sentidos
deles decorrentes”. Faz-se importante colocar que o trabalho
do museólogo transcende este “espaço museal”, atingindo as
próprias práticas sociais e culturais, pois é por um lado dos
artefatos e por outro da ação social que as formas culturais
encontram articulação.
Dessa forma, a expografia e a comunicação museológica,
pelo seu caráter de informação do conteúdo e de importância
comunicacional, permitem que esse estudo sobre os museus
e as redes sociais seja concebido como fonte constituidora de
novas sociabilidades.
A exposição passou de ser realizada em um ambiente
estático, pois na rede a exposição se torna mais próxima do
público, com isto quero dizer que, no ambiente virtual, os
visitantes se sentem mais livres para experimentar diferentes níveis de interação. Não só em uma curtida na página
da instituição, mas se sentindo na instituição, ao fazer um
comentário sobre o acervo, no envio de acervo digital, familiarizando-se com o mesmo, além de, como se notou na pesquisa, muitas vezes tornar-se, além de virtual, um visitante
em potencial em museus físicos.
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Patrimônio e Musealização Virtualizada
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
‘Museu Virtual’ é uma poderosa metáfora que pode ser aplicada para a apresentação de atividade criativa assim como
repositório de conhecimento. Certamente é no melhor
interesse da comunidade museológica estabelecida aproveitar este potencial em vez de travá- lo (KarP, 2004).
Pensar a comunicação em museus é refletir e questionar o
potencial do uso de mídias sociais como ferramentas de conexão entre eles e o público a partir do objeto musealizado. Nesse novo cenário, os museus utilizam as mídias sociais como
um viés para comunicação, pois enfrentam os resquícios do
paradigma anterior que o distanciava do visitante. Nesse novo
modelo o público se torna parte do processo.
Assim, a rede deve ser aproveitada para estabelecer relações sociais através da virtualidade, musealizando em novos
formatos e novas ferramentas. Os museus virtuais são potências de comunicação museológica de comunicar, expor
e salvaguardar.
Conclusão
É possível identificar que a cultura do compartilhamento, através de plataformas digitais museológicas, traduz uma nova
forma de mediação entre instituição museal virtualizada e o
público usuário das mídias sociais. No cenário atual se configuram os novos patrimônios digitais, criando uma relação mais
próxima com seu público. A divulgação do acervo virtualizado
gera novos arranjos através dos níveis de interações disponíveis na rede, como comentários, curtidas, compartilhamentos.
Isso possibilita aos visitantes participarem da construção dos
conteúdos através de suas experiências de vida, o que pode
gerar laços sociais via a virtualidade.
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Patrimônio e Musealização Virtualizada
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Os acervos das instituições museológicas virtualizadas passam por uma reprodução que possibilitam aos objetos saírem
da sua materialidade, ainda que a materialidade objetal seja
forte nos museus tradicionais. Na era da conectividade, eles
passam a serem representados digitalmente, constituindo os
novos patrimônios culturais digitais. Assim, os museus virtuais podem democratizar os seus acervos e torná-los acessíveis
para toda a população usuária das mídias. A virtualidade passa
a se constituir em um suporte, tornando o fazer museológico
mais dinâmico.
O compartilhamento nas mídias sociais das instituições
museais possibilita uma maior aproximação dos usuários com
o museu. Além disso, possibilita que as instituições museais
conheçam quem são seus públicos virtuais. O compartilhamento de informações digitalizadas em rede permite a preservação
dos documentos originais, pois pode diminuir a manipulação
dos objetos. Assim, o uso das mídias sociais pelos museus auxilia na acessibilidade das informações sobre os acervos ao mesmo tempo em que possibilita mostrar transparência nas ações
museológicas e democratização dessas instituições.
Na cibercultura, os territórios e o cotidiano urbano se reconfiguram a partir da emergência de novos formatos comunicacionais, que passam a incluir as tecnologias sem fio, o espaço
conectado e virtual e as redes e relações cada vez mais digitalizadas, “as cidades se desenvolvem como sociedades em rede”
(LÉVY e LeMos, 2010, p.12).
Os museus passam a utilizar da digitalização de seus acervos, compartilhando nas suas mídias, possibilitando a quebra
do limite geográfico, tornando o acervo virtual acessível. Nesse novo cenário, os acervos virtuais se tornam uma fonte de
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Patrimônio e Musealização Virtualizada
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
representação das instituições museais virtualizadas. Entretanto, novos estudos fazem-se necessários para desvendar os
impactos das tecnologias de informação e comunicação nos
espaços museais.
O museu virtual, através dos usos das tecnologias digitais,
afeta as práticas e o fazer museológico, proporcionado novas
interlocuções com os usuários e a sociedade. Além disso, o uso
das mídias sociais pelos museus auxilia na acessibilidade das
informações sobre os acervos ao mesmo tempo em que possibilita a transparência nas ações museológicas e democratização dessas instituições.
A mediação entre os objetos musealizados difundidos no
ambiente virtual possibilita que cada visitante faça a sua interpretação das informações sobre os acervos documentais da
instituição. Nesse processo, as TiCs auxiliam na visibilidade
do patrimônio. Entretanto, são necessárias novas pesquisas
sobre os impactos das tecnologias de informação e comunicação nos museus.
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Patrimônio e Musealização Virtualizada
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
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MEMÓRIA &
EDUCAÇÃO
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Extensão universitária: conexões com a
comunidade (Santa Maria - RS)
Roselâine Casanova Corrêa 20
A História de Santa Maria é comumente conhecida pela produção de dois memorialistas: João Belém (2001) e Romeu Beltrão (2012). Ambos sistematizaram por escrito as primeiras
versões da história local. Antes, porém, João Cezimbra Jacques havia escrito o Conto Indígena de Imembuí (1912), que se
transformou no mito fundador do povoado. Na construção da
identidade da cidade mesclam-se mito, história, etnias, hábitos, religiões, culinária, festas, profissões, valores. Em síntese,
Santa Maria é marcada por particularidades que tornam difícil
uma afirmação efetiva acerca de seu processo histórico, isso
tanto sob a perspectiva acadêmica quanto pela mobilidade e
instabilidade de sua ocupação. O Projeto de Extensão Santa
Maria da Boca do Monte: tempos de memória (1858-2018) possui como objetivo geral recuperar a história sociocultural do
município, atualizando sua formação política em alusão aos
160 anos de emancipação, a ser comemorado em 2018. Dos
objetivos específicos priorizar-se-á a valoração dos campos
de memória; a problematização da temporalidade, expressa
nas artes visuais, na literatura, na religiosidade, na arquitetura, na historiografia, no teatro, no vestuário, na culinária, na
música, no mobiliário e nos espaços de sociabilidade. A partir
da recuperação de aspectos socioculturais de Santa Maria (rs),
20. Mestre em História. Professora da Universidade Franciscana (UFN).
E-mail: casanova@ufn.edu.br
95
Extensão universitária
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
se espera que a comunidade local e acadêmica possa refletir
e ressignificar esses elementos, tendo presente suas demandas contemporâneas.
Do ponto de vista da historiografia local, a origem e a organização do povoado estão vinculadas à chegada das tropas da
Comissão Demarcadora de fronteiras (1797) e, posteriormente,
à Igreja Católica. Em 1804, já um aldeamento com população
tanto lusitana quanto indígena, o local ganhou a condição de
Oratório; em 1814, a de Capela Curada; em 1837, a de Freguesia.
Salienta-se que, até então, essas terminologias estavam ligadas
à evolução político-administrativa de um povoado. Em 1857, foi
elevada à Vila e, no ano seguinte, à categoria de município. A
cerimônia de sua oficialização ocorreu em 17 de maio de 1858,
com o Te-Deum de ação de graças pelo Padre Antônio Gomes
Coelho do Valle (rUBerT, 1963).
Para Beltrão (1979), Santa Maria possui uma matriz luso-brasileira (tendo em vista, sobretudo, o assentamento da
Comissão Mista Demarcadora, em 1797, em São Pedro do Passo
dos Ferreiros). Embora tenha significativa relevância tanto a
presença de militares na região quanto a doação de sesmarias
a vários proprietários, pesquisas mais recentes dão conta de
uma população diversa, “típica de região de fronteira em construção [...], que atrairá [...] colonos contrabandistas, negros
fujões, índios mais ou menos aculturados ao mundo branco,
desertores das tropas coloniais” e outros tipos sociais (riBeiro
apud WeBer & riBeiro, 2010, p. 229).
Antes, porém, havia os povos Tupi-Guarani, que habitavam
as matas e serras da Depressão Central. Escavações no Sítio da
Cabeceira do Raimundo, no distrito de Boca do Monte, concluiu
a existência “de uma aldeia de número reduzido de Guaranis”,
96
Extensão universitária
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
em que os utensílios encontrados datam de 500 a 1060 d. C.
(MiLder; sanTi; zUse apud WeBer & riBeiro, 2010, p. 95).
Ora, essa assertiva, por si só desconstrói a ideia de Beltrão
(1797) de uma população essencialmente luso-espanhola na
região, no século XViii. Essa seria uma das desconstruções históricas que este projeto pretende demonstrar. A região também sofria ataques frequentes, pois Santa Maria “não deixou
de ser assolada pela presença de tropas da Guerra da Cisplatina (1825-1828), [...] a localidade estava sofrendo frequentes
ataques de bandidos à época chamados ‘facinorosos’, que se
escondiam nos matos do campestre de São Martinho” (sainT-HiLaire, 1997, p. 338). Isto por volta de 1820, quando a povoação contava com “30 casas, que formam um par de ruas, onde
existem várias lojas comerciais bem montadas” (p. 230).
Há um consenso entre a população de Santa Maria, e também para a maioria dos pesquisadores, de que a instalação da
Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fera au Brésil na Boca do
Monte, em 1885, significou “um grande surto de desenvolvimento social, cultural e populacional” (Padoin apud WeBer &
riBeiro). Há que lembrar, contudo, que o surto imigratório
no mesmo período contribuiu para a expansão do comércio
e desenvolvimento urbano. Dos estabelecimentos de propriedade de judeus, constam “lojas de tecido, armarinhos, confecções, móveis, [...] armazéns, ferragens” (gUTFreind, 2010, p.
42). Da etnia sírio-libanesa, por volta de 1914, havia na cidade
“de 250 a 300 pessoas de sessenta famílias [...]” (MoraLes apud
MiLder, 2008, p. 68). Além da mascateação, registrou-se
19 empresas santa-marienses, cujos proprietários eram
imigrantes sírio-libaneses ou seus filhos [...]. Dez dos negócios [...] dedicavam-se ao ramo de tecidos e de calçados,
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Extensão universitária
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
um era estabelecimento farmacêutico, 03 eram armazéns
de secos e molhados, além de uma olaria que produzia e
comercializava tijolos (MoraLes apud MiLder, 2008, p. 76).
Isto posto, entende-se que o fato da chegada da ferrovia por
si só não proporcionaria tamanha alteração na configuração
socioeconômica e cultural da cidade. É claro que possibilitou
uma modernização nos serviços antes nunca vista. Na educação foi responsável pela criação da Escola de Artes e Ofícios
(1922) e da Escola Santa Therezinha do Menino Jesus (1923);
na área da saúde a “Cooperativa dos Empregados da Viação
Férrea cria a Casa de Saúde, centro de assistência hospitalar
aos associados” (Padoin apud WeBer & riBeiro, 2010, p. 326).
Criou também a fábrica de café, de sabão e de gelo.
A expansão da educação santa-mariense no início do século XX, contudo, tem na atuação do Padre Pallottino Caetano
Pagliuca significativa relevância, considerando que por meio
dele chegaram à cidade “as Irmãs Franciscanas e os Irmãos
Maristas”, em 1905 (BiasoLi, 2010, p. 145-146). Essas duas congregações fundaram o Colégio Sant’ Anna e o Colégio Marista, respectivamente. No mesmo período há a inauguração do
Colégio Centenário (1923). Tais escolas viriam a formar uma
elite letrada oriunda das regiões de latifúndio da fronteira e
região central do Estado do Rio Grande do Sul.
Por volta de 1930 surgiu a identificação da localidade como
‘cidade cultura’, por conta de suas escolas, cineteatros, cafés,
clubes e espaços de sociabilidade que agregavam a chamada
sociedade de school. Trata-se de uma identidade inventada e
intensificada com a criação da Universidade Federal de Santa Maria (1960). No entanto, a primeira instituição de ensino superior foi criada em Santa Maria em 1955, pelas Irmãs
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Extensão universitária
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Franciscanas, a Faculdade Imaculada Conceição (FiC). E a “1ª.
Feira do Livro da cidade” ocorreu somente “em 1962” (CorrÊa, 2005, p. 33). Dito isto, indaga-se o conceito sociológico
de uma cidade autodenominada cultura enquanto as pessoas
de posses, para estudar, deveriam se deslocar até a capital do
estado e a Feira do Livro ocorreu somente na segunda metade
do século XX.
Situada na região centro do estado sulino, Santa Maria conta atualmente com cerca de 280 mil habitantes, sob um clima
tropical úmido e temperatura média de 18 º C, sendo a quinta
cidade mais populosa do Rio Grande do Sul, segundo dados
do iBge (2017). Embora configure no senso comum que grande parte da população seja flutuante, por conta das várias ies
que se estabeleceram na cidade, pesquisas demonstraram que
tal população oscilante é de apenas 20 %.
Como se vê – e o próprio Conto Indígena de Imembuí, mito
fundador, comprova – a cidade está encharcada de meias verdades, muitos equívocos, uma identidade forjada e um sentimento de pertença ainda em construção.
O que se pretende com este projeto de extensão é, sobretudo, olhar para a história da cidade com menos romantismo
e maior realismo. Ou seja, perceber seus 160 anos de forma
reflexiva, de maneira que a comunidade local e acadêmica possa ressignificar seus próprios símbolos citadinos.
Espaços de realização do projeto: Espaços acadêmicos:
Conjuntos I e iii do Centro Universitário Franciscano; Espaços públicos e privados: Praças Saldanha Marinho, Saturnino
de Brito e João Pedro Menna Barreto (Bombeiros), Largo da
Locomotiva, Mancha Ferroviária, Cemitério Ecumênico Municipal, Biblioteca Pública Municipal Henrique Bastide, Arquivo
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Extensão universitária
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Histórico e Municipal de Santa Maria, Foro da Comarca de
Santa Maria, oaB- Subseção de Santa Maria, Câmara Municipal de Vereadores, Prefeitura Municipal de Santa Maria.
Impacto da extensão na instituição
O Centro Universitário Franciscano possui três conjuntos de
prédios, chamados Conjunto I, ii e iii. Da comunidade acadêmica, somam 4.760 estudantes de graduação; 532 estudantes
em cursos lacto sensu e 219 em cursos stricto sensu. O número atual de professores é de 410 e de técnicos-administrativos
somam 240. Trata-se, portanto, de uma ies de médio porte em
termos locais.
Colocado esses dados, cabe refletir o ‘fazer’ docente e o
compromisso das ies em formar cidadãos mais críticos e reflexivos, mas também melhor preparados para o mercado de trabalho. Há desafios para alcançar tais pretensões. Um deles
– e talvez o que apresenta maior fragilidade – refere-se à precariedade de ensino-aprendizagem com o qual boa parte dos
estudantes chega às universidades. Sem um suporte básico em
nível intelectual, tais estudantes apresentam fragilidades para
um aproveitamento mais satisfatório e global ao chegar à educação em nível superior.
Além disso, os estudantes entendem a rotina acadêmica cansativa e conteudista, além de distante da realidade do
mercado de trabalho e de sua vivência social. Ou seja, apontam para um distanciamento da academia em relação ao
seu posicionamento no contexto socioeconômico e cultural, além de expressarem o estresse em relação ao cotidiano universitário.
100
Extensão universitária
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Dito isso, entende-se a necessidade de repensar a formação acadêmica em âmbito institucional, mas também reconsiderar o ofício docente. O Centro Universitário Franciscano
tem discutido, ao longo de 2017, com seu corpo docente, propostas de curricularização da extensão. A ideia institucional
de reexaminar currículos, em um formato mais democrático
e abrangente, que inclui o ensino/pesquisa/extensão/gestão,
instiga o docente a repensar suas propostas de projetos e seu
fazer docente.
Em reunião da Câmara de Graduação, no mês corrente,
onde foi tratada a qualificação da gestão para os próximos
anos, a pró-reitora de Graduação, professora Vanilde Bisognin, demonstrou sua preocupação com as aulas tradicionais e
expositivas, que não colocam o estudante como protagonista
de sua própria formação acadêmica. A pró-reitora – sinalizando as preocupações institucionais com as novas demandas
– afirmou:
[...] vamos reformular, em 2018, todas as matrizes curriculares, visando a aumentar a interdisciplinaridade, proporcionando ao aluno mais vivência na Universidade, além
de deixar nossos cursos mais atrativos, competitivos e alinhados com o mercado de trabalho e as necessidades da
pesquisa [e extensão] (Bisognin, 2017).
Assim, afirmou a pró-reitora, as aulas ficarão mais “dinâmicas e produtivas” (Bisognin, 2017). Ora, essa assertiva coaduna com a percepção do amadurecimento acadêmico e a
formação diferenciada de estudantes que tiveram a oportunidade de vivenciar na academia, além do ensino, a participação
em projetos de pesquisa e extensão. Tem-se aí um importante
impacto na comunidade acadêmica, a participação em projetos
101
Extensão universitária
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
institucionais, tanto de estudantes quanto de docentes, sobretudo com propostas multidisciplinares.
O Plano Nacional de Educação 2014-2024 também tem
metas orientadas para a democratização do acesso à educação, com inclusão e qualidade. O Pne aponta a necessidade de “assegurar, no mínimo, 10% (dez por cento) do total
de créditos curriculares exigidos para a graduação em programas e projetos de extensão universitária, orientando sua
ação, prioritariamente, para áreas de grande pertinência
social” (BrasiL, 2014). É imensurável o impacto de um projeto de extensão com atividades várias e em áreas distintas,
não somente institucional, mas na comunidade, visto que
a mesma, a partir das ações propostas, terá subsídios para
examinar seu próprio sentimento de identidade e pertença –
ainda cambiante – e, a partir disso, também ser provocada a
‘agir’ em prol do conhecimento e da construção de sua própria história e da comunidade onde vive.
A extensão universitária é uma das formas de alcançar o
conhecimento acadêmico e, portanto, é parte de um processo
formativo de estudantes, professores, mas também do corpo
técnico-administrativo, onde igualmente surte impacto. As
ações aqui propostas dependerão diretamente da participação dos técnico-administrativos, uma vez que a maior parte
delas (as ações) ocorrerão nas dependências do Centro Universitário Franciscano. Tem-se observado a participação dos
funcionários em eventos, palestras, discussões. Ao longo do
ano de 2018, esse segmento estará oferendo apoio técnico nas
atividades aqui propostas. Isso os colocará no centro das discussões e, obviamente, também serão tocados pelas reflexões
e reproduzirão suas vivências em seu circuito social.
102
Extensão universitária
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Em sua pesquisa acerca das propostas inovadoras nas universidades, Couto afirma:
Um projeto é inovador quando pensa o currículo no eixo
da interdisciplinaridade e/ou transdisciplinaridade, com
vivências extracurriculares para os estudantes; quando
rompe as barreiras entre saber científico/popular, ciência/
cultura, teoria/prática; quando busca um questionamento
de questões referentes à vida e ao ser humano levando em
consideração ideais democráticos; quando a construção
da ciência está pensada dentro de valores éticos e morais;
quando há uma produção do conhecimento pautada nas
transformações sociais; e quando a formação do graduando não é encarada como acabada no período delimitado
pela graduação (CoUTo, 2013, p. 98-99).
Entende-se que a proposta aqui colocada está coadunada
com a assertiva de Couto, no que tange à interdisciplinaridade,
às vivências extraclasses e extracurriculares, na compreensão de seu lugar na sociedade. Tais vivências certamente terão
impacto nas atitudes dos estudantes, após vivenciar uma história que, não raro, foi-lhe contada de maneira idealizada ou
romantizada. É necessário avançar. É urgente repensar nosso
próprio passado e origens.
Finalizando, indica-se o texto do Plano de Desenvolvimento
Institucional – 2016-2021, sobretudo ao que tange às Políticas
de Extensão. Não é da natureza da academia estar à parte do
que ocorre além de seus muros. Ao contrário, a universidade
deve manter um diálogo contínuo com a sociedade, pois esta
também se renova a partir da dinamicidade que a academia
produz. Das diretrizes da extensão universitária no Centro
Universitário Franciscano, destacam-se:
103
Extensão universitária
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
a) articular conhecimentos técnico-científicos e demandas
da sociedade, aproximando a produção científica de aplicações práticas, por meio da colaboração entre a universidade e a sociedade; [...] d) promover a integração entre
a Instituição e o contexto social interligando atividades
de ensino e de pesquisa com demandas da sociedade, de
maneira a formar profissionais comprometidos com a
melhoria da realidade social; [...] h) realizar eventos culturais e técnico-científicos que complementem o processo
de formação acadêmica (Pdi, 2016-2021, p. 15).
Entende-se que os pressupostos constantes nos objetivos e
na justificativa ratificam a aderência das diretrizes citadas neste
projeto de extensão. Além disso, tais diretrizes estão coerentes
com aquelas presentes nos Projetos Pedagógicos dos Cursos
envolvidos e já mencionados.
Acerca do impacto na Instituição, pode-se perceber que
o projeto supracitado poderá proporcionar à mesma, de forma ampla e recíproca, “a expressão dos valores institucionais
na abrangência de todas as atividades que lhe são inerentes:
ciência, cultura, inovação e tecnologia”. E, ainda, “integra a
formação acadêmica, colabora para a renovação do conhecimento e fortalece a responsabilidade social da universidade”
(Pdi, 2016-2021, p. 14).
O Centro Universitário Franciscano possui uma longa experiência com Projetos de Extensão, nas mais diversas áreas do
conhecimento e sob um leque de possibilidades de trabalho e
convívio com a comunidade local. A Instituição, por ora, discute – junto ao seu corpo docente – o Plano Nacional de Educação-Pne (BrasiL, Lei 13.005, 2014), que define as estratégias
de integralização de, no mínimo, 10% do total de créditos curriculares exigidos nos cursos de graduação. Essa percentagem,
segundo o Plano, poderá ocorrer por meio de programas e/ou
104
Extensão universitária
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
projetos de extensão em vários setores socioculturais. Considerando que até então a extensão era vista com certa parcimônia pelas ies e pelos próprios docentes, sem vínculo direto com
o ensino e a pesquisa, essa nova forma de perceber as bases
da extensão/ensino/pesquisa/gestão como complementares,
retroalimentadores e colaborativas no ensino-aprendizagem,
torna a extensão em si mais criativa e producente.
Outro elemento previsto no Pne e de suma importância para
a execução deste projeto diz respeito ao fator indissociável da
interdisciplinaridade nos programas e ações extensionistas.
Assim, os programas são considerados “conjunto[s] articulado[s] de projetos e outras ações extensionistas de caráter multidisciplinar e integrado a atividades de pesquisa e de ensino,
executado a médio e longo prazos por alunos orientados por
um ou mais docentes da instituição” (MeC, 2014).
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MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
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106
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Práticas escolares de Educação Física
na década de 1970: memórias de
normalistas na escola Assis Brasil,
Pelotas/RS
Tânia Nair Alvares Teixeira 21
Introdução
A presente proposta de comunicação intitulada Práticas Escolares de Educação Física na década de 1970: memórias de normalistas 22 na escola Assis Brasil, Pelotas/rs busca analisar as
práticas dessa disciplina efetuadas no Curso de Magistério
no Instituto de Educação Assis Brasil (Pelotas/rs), durante os
“anos de chumbo” da ditadura civil-militar no Brasil, através
das memórias das alunas que estudaram nesse período, assim
como de professoras que lecionaram essa disciplina. Tomamos
esse balizamento para observar os entendimentos das alunas e
professoras sobre as aulas de Educação Física, porque é possível
perceber certas mudanças nas políticas educacionais alinhadas às convicções do período ditatorial em relação à educação.
Localizada inicialmente na rua XV de Novembro, a escola
Assis Brasil, ocupou mais dois endereços distintos até o ano de
1942, momento em que se instalou na Rua Antônio dos Anjos,
296, onde permanece até hoje. Entre as décadas de 1960 e 1980,
o Curso Normal ocupou um lugar de destaque na formação de
21. Doutoranda em Educação – UFPel. Estudante de pós-graduação. E-mail:
tanialvares@yahoo.com.br
22. Na década de 1970, o Curso Normal deu lugar ao Curso de Magistério. No
entanto, neste trabalho, utilizaremos a nomenclatura “normalista”, por constatarmos que as estudantes entrevistadas se autorrepresentam dessa forma.
107
Práticas escolares de Educação Física...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
docentes na cidade de Pelotas, sendo bastante procurado pelas
jovens de diferentes grupos sociais.
Através das documentações produzidas pela própria instituição, especificamente alguns decretos e regimentos, identificamos que a educação mobilizada pelo Instituto Assis Brasil
estava em conformidade com as Leis de Diretrizes e Bases da
Educação (LdB) dos anos 1960 e 1971. Nesse sentido identificamos nas narrativas das normalistas a existência de um conjunto de práticas pedagógicas que visavam a garantir o controle
corporal das jovens estudantes. Fosse através do acatamento
de ordens, ou da regulação de exercícios físicos, a componente
Educação Física tornou-se eficiente para o disciplinamento das
alunas do Instituto de Educação Assis Brasil. Interpretamos os
aspectos históricos e as correntes teóricas que influenciaram
a disciplina, especialmente nos anos 1970 no Brasil.
Diante desse contexto, investigamos, através das narrativas de alunas e professoras da época, bem como da análise
dos documentos preservados na instituição (diários de classe,
álbum de fotografias), além das leis e decretos, em que medida detectamos que o ensino na escola, oferecido às discentes,
era carregado de sujeições e se existia a ocorrência de certas
marcas da imposição dos governos ditatoriais da época, sobre
o disciplinamento na escola. Também empreendemos um exame acerca das afinidades entre tais documentos com as leis e
decretos nacionais promulgados no período, na intenção de
verificar a ocorrência de certas marcas da imposição dos governos ditatoriais da época sobre o disciplinamento na escola.
Para responder a esta problematização, buscamos uma série
de fontes, sejam aquelas produzidas na própria instituição de
análise e nas legislações vigentes ao período, mas, sobretudo,
108
Práticas escolares de Educação Física...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
através de entrevistas 23 com as normalistas do ieaB daquele
período. Ao todo foram realizadas sete entrevistas, assim como
uma entrevista estruturada 24 em forma de questionário. As
memórias das normalistas e a documentação escolar e legislativa nos permitiram compreender como eram realizadas as
práticas pedagógicas de Educação Física e quais os significados
eram atribuídos a este disciplinamento no ieaB.
Tomamos como ponto de partida para a discussão a reforma educacional 5.692/71- LdB (Lei de Diretrizes e Bases) que
produziu significativas alterações no processo de formação de
professores. Tais diretrizes são vistas como efeitos das mudanças sociais daquele tempo e também das feições políticas do
regime de governo. Por se tratar de um estudo envolvendo as
memórias de mulheres, alunas e professoras, o trabalho se respalda em autores clássicos como CandaU (2014), HaLBWaCHs
(2003) e Le goFF (2013), bem como em autores da História da
Educação que discutem essa categoria.
A partir dos pressupostos teórico e metodológico que operam com a memória, percebemos através das narrativas que as
lembranças das normalistas sobre o educandário Assis Brasil,
no período analisado, demonstram que havia uma disciplina
rígida. O Curso de Magistério valorizava muito as competições,
23. As entrevistas com as normalistas do Instituto de Educação Assis Brasil
foram realizadas ao longo do ano de 2016 e 2017. Num primeiro momento foi
definido o objeto e o propósito a que se propõe a pesquisa que se utilizará da
História Oral como sua metodologia. Num segundo momento escolhemos as
pessoas que iriam fazer parte dessa entrevista, pensamos que seria interessante entrevistar duas normalistas de cada década, para ter uma ideia mais
ampla de como se deram as práticas pedagógicas de educação física em cada
período.
24. Branca Ramil Linhares, mora atualmente na cidade do Rio de Janeiro, por
esse motivo, foi realizada uma entrevista estruturada e enviada por e-mail.
109
Práticas escolares de Educação Física...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
ou seja, as aulas de Educação Física eram voltadas para o esporte e as alunas que não tinham essa aptidão acabavam por perder o interesse pela disciplina.
A seguir apresentamos um panorama a respeito do Instituto
de Educação Assis Brasil e após apresentamos uma contextualização a partir da memória das normalistas sobre a disciplina.
Instituto de Educação Assis Brasil em Pelotas
Neste ponto, vamos apresentar um breve histórico da escola
(da fundação até os anos 1970), para, em seguida, destacarmos
seu funcionamento, em termos regimentais, pedagógicos e
vivenciais na década de 1970.
O Assis Brasil surgiu na conjuntura da sociedade brasileira
da primeira metade do século XX que buscava formar e educar
meninas tanto para o mercado de trabalho quanto para a vida
doméstica após o casamento. Em Pelotas, a falta de uma escola para formação de normalistas, de professoras para atuar no
Ensino Primário, foi logo sentida, uma vez que famílias com
interesses de que suas filhas cursassem magistério necessitavam deslocar-se para Porto Alegre (aMaraL; aMaraL, 2007).
Desse modo, no final da década de 1920, mais especificamente em 13 de Fevereiro de 1929, foi fundada a Escola Complementar, 25 e se instalou na cidade de Pelotas em 30 de junho
de 1929 26. O educandário foi primeiramente localizado na Rua
25. Decreto nº 4.273, de 5 de março de 1929. Em 1929, João Py Crespo, que era
o intendente, intercedeu junto ao governador para a criação da instituição,
que teve como patrono Joaquim Francisco Assis Brasil. Daí o nome da escola.
26. Decreto nº 4.213, de 5 de março de 1925, que regulamentava a criação e
instalação das Escolas Complementares.
110
Práticas escolares de Educação Física...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
XV de Novembro, esquina com a Rua Uruguai, ocupando, assim,
posição central na cidade de Pelotas. Abaixo, na figura 1, podemos identificar a primeira edificação ocupada pela instituição.
Notadamente, uma importante construção da época, visto que
seguia o estilo arquitetônico dos grandes casarões do centro
pelotense. Depois, a escola ainda se fixou em outros dois endereços até 1942, ano em que, definitivamente, se instalou na Rua
Antônio dos Anjos, 296, prédio este construído para abrigar
uma Escola Normal e onde permanece até o presente momento,
cuja fachada pode ser percebida na primeira das imagens do
conjunto apresentado abaixo (figura 1), bem como na Figura 2.
Figura 1: Acervo do Instituto de Educação Assis Brasil
Fonte: Imagem cedida pela professora Lourdes Helena DummerVenzke.
111
Práticas escolares de Educação Física...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Figura 2: Edificação do Instituto de Educação Assis Brasil, Pelotas/
RS, atual
Fonte: Acervo da 5ª Coordenadoria Regional de Pelotas 27.
No ano de 1940, a Escola Complementar passa a ser denominada de Escola Complementar Assis Brasil 28. Em 15 de Abril
de 1943, foi decretado pelo governo que todas as Escolas Complementares passassem a se chamar Escola Normal 29. Em 1947,
o Curso Normal recebeu a denominação de “Curso de Formação de Professores Primários”, sendo que a primeira turma
27. Disponível em: http://05crepelotasrs.blogspot.com.br/2016/01/12-alunos-do-iee-assis-brasil-foram.html Acesso: 30/08/2016.
28. Decreto nº 91, de 7 de junho de 1940.
29. Decreto-lei nº 248.
112
Práticas escolares de Educação Física...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
realizou sua formatura em 23 de dezembro de 1949. E, por sua
vez, em 1962, a Escola Normal Assis Brasil foi transformada em
Instituto de Educação Assis Brasil 30. E, em 1997, passou a ter
a denominação de Instituto Estadual de Educação Assis Brasil,
que mantém até os dias atuais.
O prédio atual, conforme destacamos acima, instalado em
1942, foi detalhadamente descrito por (aMaraL e aMaraL, 2007,
p.13), principalmente, ter sido construído especialmente para
esta finalidade. As “dependências e tipos de salas de aula” estavam “de acordo com as últimas exigências da moderna pedagogia da época”.
O Assis Brasil na cidade de Pelotas nos anos 1970, através
do Curso de Magistério (antigo Curso Normal), atendia a uma
parcela da população pelotense, especialmente meninas de
diversos segmentos sociais, dentre as quais aquelas que poderíamos identificar como sendo de “classe média”.
Como estamos tratando de uma instituição escolar, torna-se
relevante pensar alguns aspectos da “história das instituições”.
Nesse sentido, (JUsTino MagaLHÃes, 2004, p. 124) aponta que
“a história da escola não é [...] a história de uma instituição
uniforme no tempo e no espaço”, pois “desenvolve-se desde
os aspectos [...] funcionais e organizacionais até os aspectos
curriculares, pedagógicos e vivenciais, numa complexa malha
de relações intra e extramuros”, cuja dinâmica histórica “se
apresenta profundamente marcada pela sua inscrição nas conjunturas históricas locais”.
A escola crescia em número de alunos e em evidência social
na cidade, tornando-se, segundo (aMaraL e aMaraL, 2007, p.
30. Decreto nº 13.420, de 17 de abril de 1962.
113
Práticas escolares de Educação Física...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
13), uma “escola modelo”, na medida em que era buscada “uma
formação profissional mais eficiente, atenta às adaptações que
a tecnologia moderna exigia, fazendo-a, assim, abandonar o
antigo título de Escola Complementar para passar à Escola Normal e, finalmente, à instituição de Educação”.
Este histórico da instituição que faz referência aos espaços físicos ocupados pela escola é importante, porque, segundo Magalhães, a disposição arquitetônica dos prédios, a
distribuição e ordenação dos espaços, a orientação estética,
a acessibilidade influenciam o cotidiano educacional, quanto à materialidade e à funcionalidade, mas também afetam as
representações e os modos de estar, vivenciar, relacionar-se,
referenciar e projetar por parte de todos os membros de uma
comunidade educativa (MagaLHÃes, 2004, p. 144).
Assim, o ieaB, na década de 1970, já estava afirmado em
Pelotas como uma grande escola, tanto em termos do espaço
físico quanto do reconhecido trabalho de formação de professoras (aMaraL; aMaraL, 2007). O Curso de Magistério (antigo Curso Normal) formava professoras que, ainda nos anos
1970, intitulavam-se “normalistas”. Embora não fosse a única
instituição escolar, era a escola pública que atendia a diversos
segmentos sociais, consolidado no ideal de magistério da época: formar profissionais que seguissem a ordem (trabalhista,
doméstica, cívica, política) e à configuração de padrões de comportamento e de papéis sociais esperados para os diferentes
gêneros e segmentos sociais.
No próximo item passaremos a tratar das aulas de Educação Física, porém contextualizando com a memória das normalistas que lá estudaram na década de 1970, especialmente
em relação aos modos como lembram, dizem e silenciam a
114
Práticas escolares de Educação Física...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
respeito da disciplina, do seu funcionamento, das atividades
pedagógicas e das relações estabelecidas com professoras.
Memórias de normalistas sobre as aulas de Educação Física
Entre o fim do Estado Novo até 1961, houve um grande debate
a respeito do ensino brasileiro. Após esse período, na década
de 1970, deu-se também a promulgação da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação (LdB nº 5692/71) em que ficou determinada a obrigatoriedade da Educação Física no ensino primário e
secundário, como vimos no capítulo 2.
Durante o período da Ditadura civil-militar no Brasil, a
influência deste modelo foi determinante nas aulas de Educação Física escolar. Conforme nos mostra a autora,
no interesse do desenvolvimento de um maior grau de eficiência produtiva no mundo do trabalho e, pressupondo a
importância da educação escolarizada para se atingir este
fim, a tecnicização do ensino patrocinada pelo governo
teria como premissa básica a disciplinarização, a normatização, o alto rendimento e a eficácia pedagógica. Esse
pressuposto seria orientado pelo alinhamento do país a
uma ordem mundial calcada no desenvolvimento associado ao capital internacional, mais explicitamente, ao
norte-americano (oLiVeira, 2002, p. 53).
Este contexto de disciplinarização calcado na busca pelo eficaz rendimento e eficiência pedagógica também se verificou na
disciplina de Educação Física. A narrativa da normalista Mara
Elaine de Lima Elias (2016), estudante entre 1979 e 1982, revela
aspectos interessantes nesse sentido. Ela conta que, naquele
período, a escola se mostrava exigente no cumprimento das
115
Práticas escolares de Educação Física...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
normas e a competição esportiva era estimulada nas aulas.
Desse modo, as normalistas acabavam por participar de vários
eventos esportivos, tanto na cidade quanto em outros municípios. Esses eventos competitivos evidenciam, de certa forma,
a busca do modelo produtivo que imperava na Educação, buscando o alto rendimento das escolas e dos estudantes.
Nesta narrativa, questionamos se a aluna tinha, ou não,
determinado entendimento crítico do momento político que
o País atravessava, quando ela se referia às práticas escolares subordinadas ao estímulo das competições desportivas.
No entanto, sabemos que a memória é criada e recriada no
momento em que ela é acionada, partindo sempre do presente, nesse caso, a ocasião da entrevista. De todo modo, Mara
Elias (2016) demonstrou pensamento crítico ao se posicionar
em relação à competitividade então existente.
A narrativa da aluna Sandra Regina dos Santos Moraes
(2017), que estudou entre os períodos de 1974 a 1977, vem ao
encontro da fala de Mara Elias quando relata que “era só vôlei,
vôlei, vôlei. Exercício era muito pouco. Era basicamente aulas
de vôlei e eu nunca gostei de jogar vôlei, tinha pavor da bola.
Aquilo, para mim, era um horror [...]”. Percebe-se, então, que
estava presente a obrigatoriedade da realização de esportes
como o vôlei. As duas narrativas – de Mara Elias e de Sandra
Moraes, se complementam e se diferenciam. Complementam-se na medida em que ambas apontam para o caráter indispensável de participação nos jogos que as competições esportivas
assumiam. Por outro lado, diferenciam-se na forma como elas
percebem, hoje, ao serem entrevistadas, apontando os efeitos políticos que estavam implicados na dinâmica da organização curricular.
116
Práticas escolares de Educação Física...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Estas diferentes percepções estão de acordo com a configuração da própria memória, pois, como destacou (CandaU, 2014,
p. 16), “A memória, ao mesmo tempo em que nos modela, é por
nós modelada”. Percebemos, então, que os efeitos do período
civil-militar, no que se refere à política educacional, ao entendimento de formação humana e de desenvolvimento do País
são subjetivamente perceptíveis por algumas das entrevistadas,
que apresentam diferentes níveis de percepção crítica.
Conforme os relatos das alunas, percebemos que o esporte e a competição foram valorizados na disciplina de Educação
Física do ieaB, ministrada no Curso de Magistério durante a
ditadura civil-militar brasileira.
Indo ao encontro destas narrativas, podemos verificar, na
figura a seguir, um recorte de jornal 31 em que aparece uma
notícia sobre as comemorações do aniversário da escola, no
dia 25 de junho de 1970.
Figura 3: Comemorações
pela passagem do aniversário do IEAB (Diário Popular,
18/06/1970)
Fonte: Acervo da escola
Assis Brasil.
31. Os recortes de jornais utilizados neste trabalho fazem parte do acervo
da escola Assis Brasil e poderiam ser simplesmente transcritos. No entanto,
optamos por fotografá-los, com a finalidade não apenas de ilustrar, mas de
demonstrar a própria configuração e seleção desse acervo como um importante elemento da memória da instituição. Em termos analíticos, não estamos tomando a fotografia do recorte como uma imagem a ser analisada, mas
estamos interessadas em perceber e analisar o conteúdo destes recortes de
jornais.
117
Práticas escolares de Educação Física...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Entre as festividades, aparece, no recorte do jornal, um torneio de vôlei organizado pelo Curso Normal, que se realizaria entre as diversas escolas normais de alguns municípios da
região, enfatizando a importância dada às competições pela
instituição Assis Brasil.
Em relação à Educação Física escolar, podemos dizer que
o esporte enquanto prática disciplinar e estímulo / imposição
do governo federal tornava-se uma referência para as práticas
corporais, tanto nas instituições quanto fora delas (oLiVeira,
2002). Ainda nos apoiando na autora,
Isso teria ocorrido, em parte, porque numa certa perspectiva o esporte codificado, normatizado e institucionalizado pode responder de forma bastante significativa
aos anseios de controle por parte do poder, uma vez que
tende a padronizar a ação dos agentes educacionais, tanto
do professor quanto do aluno; noutra, porque o esporte se
afirmava como fenômeno cultural de massa contemporâneo e universal, afirmando-se, portanto, como possibilidade educacional privilegiada. Assim, o conjunto de práticas
corporais passíveis de serem abordadas e desenvolvidas no
interior da escola resumiu-se à prática de algumas modalidades esportivas. As práticas escolares de educação física passaram a ter como fundamento primeiro a técnica
esportiva, o gesto técnico, a repetição, enfim, a redução
das possibilidades corporais a algumas poucas técnicas
estereotipadas (oLiVeira, 2002, p. 53).
Corroborando a citação acima, a aluna Denise Requião
Farias (2017), que cursou o magistério no período de 1973 a
1976, narra que as aulas de Educação Física se limitavam a jogos
de vôlei. “A nossa aula se baseava mais em vôlei, davam a bola
para gente e nós íamos jogar” (Farias, 2017). Nesta mesma
118
Práticas escolares de Educação Física...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
perspectiva, a aluna Moraes (2017) relata que não gostava das
aulas porque se resumiam a jogos de vôlei. No mesmo sentido,
temos a afirmação da professora Yeda Chiviacowiski (2017):
“Naquela época, o esporte era muito valorizado, a escola participava de todos os campeonatos da cidade”.
Como confirma a aluna Mara Elias (2016), o esporte era
bastante estimulado e as turmas de normalistas participavam
seguidamente de competições de vôlei, tanto na escola quanto
em eventos interescolares e intermunicipais.
Percebemos, a partir das narrativas, que, entre os diversos
esportes, o jogo de vôlei era o foco principal. Também observamos que algumas alunas tinham dificuldades em acompanhar
e, por vezes, acabavam criando certa resistência às aulas, mas
esta não era a situação mais comum. Em geral, eram participantes das atividades esportivas, especialmente dos jogos de
vôlei. Por outro lado, não havia opções, de modo que, mesmo
contrariadas, as normalistas precisavam participar dos jogos
e das competições.
Percebemos, pelo relato da professora Loide Montezanno,
que trabalhou nos anos finais do período ditatorial, durante a
abertura política, 32 que a Educação Física começa a repensar
os seus objetivos, mudando sua concepção de uma disciplina
que visava primordialmente às competições, elegendo o esporte como conteúdo principal, para uma nova compreensão da
sua identidade. Surge, então, um novo cenário da Educação
32. A abertura política foi um processo gradual de abrandamento da repressão ditatorial, marcado, inicialmente pela extinção do AI-5 em 1978. Nesse
mesmo ano, foi revogado o decreto que bania 120 exilados políticos. Em 1979,
foi enviado ao Congresso Nacional o projeto para concessão da anistia (sendo
que o Brasil tinha por volta de 7 mil exilados), que também libertava os presos e concedia aos então clandestinos a possibilidade de reassumirem as suas
identidades (STARLING; SCHWARCZ, 2015, p. 479).
119
Práticas escolares de Educação Física...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Física escolar na perspectiva de romper com os modelos vigentes até então.
Retornando às narrativas das alunas que estudaram no período em que o governo investia na ascensão do esporte, verificamos que havia o intuito de promover o Brasil para que as
competições de alto nível se destacassem. Prosperaria, assim,
um sentimento de nacionalismo, contribuindo para inibir as
ações sociais contra o governo.
Essa valorização do esporte esteve presente nas entrevistas
das normalistas, destacando-se o crescente investimento nas
atividades esportivas na escola. Nesse sentido, vale mencionar a fala da aluna Rosangela Rachinhas (2016) ao relatar que
“todos” os esportes eram trabalhados, inclusive que elas eram
levadas para o quartel da cidade a fim de praticar atletismo.
Também relatou que, com frequência, jogavam modalidades
variadas, sendo realizadas principalmente competições de vôlei.
Desse modo, as lembranças das experiências das normalistas selecionadas para as entrevistas, relatando como eram
as práticas das aulas de Educação Física, podem (não necessariamente) representar também as lembranças de boa parte do
grupo, uma vez que resultam das suas relações com o referido grupo.
Halbwachs reforça que o grupo social reelabora uma memória coletiva,
No primeiro plano da memória de um grupo se destacam
as lembranças dos acontecimentos e das experiências
que concernem ao maior número de seus membros e que
resultam quer de sua própria vida, quer de suas relações
com os grupos mais próximos, mais frequentemente em
contato com ele (HaLBWaCHs, 2003, p. 51).
120
Práticas escolares de Educação Física...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
As memórias das normalistas aqui selecionadas podem
então demonstrar a memória de uma parte do grupo de alunas, podendo silenciar lembranças proibidas, assim como omitir segredos e conflitos com o objetivo de preservar o grupo
de normalistas.
Entendemos que, ao relatar as suas lembranças como alunas e/ou professoras da escola Assis Brasil, as entrevistadas
trazem consigo recordações também de suas companheiras,
relembrando o seu dia a dia, suas aulas, suas viagens para competir em outros municípios, seus ensaios para cantar o hino
da escola ou no próprio coral e suas construções coletivas de
planos de aula para depois aplicarem aos alunos.
As aulas de Educação Física constituíam, talvez, um momento de descontração entre elas, porém com disciplina, pois precisavam ter uma postura esperada de uma normalista, assim
como ter um cuidado com o uniforme escolar.
Assim, o referido discurso retoma, nas lembranças, os ensinamentos das aulas de Educação Física. Vale destacar a observação do autor de que,
As ‘lembranças encontram sua justificativa não apenas em
assegurar uma continuidade fictícia ou real entre o passado e o presente [...] o ato de memória [...] se manifesta
no apelo à tradição’ e ‘consiste em expor, inventando se
necessário, ‘um pedaço de passado moldado às medidas
do presente’ (CandaU, 2014, p. 122).
Desse modo, consideramos que as lembranças das normalistas, como já destacamos, estão sendo perpassadas e moldadas
pelo presente, possibilitando inclusive que indiquem, por exemplo, a ausência de uma interferência da ditadura civil-militar
121
Práticas escolares de Educação Física...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
nas práticas escolares e pedagógicas nas aulas de Educação
Física. Vejamos, então, na sequência algumas reflexões finais.
Algumas reflexões
Este texto mostrou o resultado de uma proposta de comunicação intitulada Práticas Escolares de Educação Física na década
de 1970: memórias de normalistas na escola Assis Brasil, Pelotas/rs, que buscou analisar as práticas dessa disciplina efetuadas no Curso de Magistério no Instituto de Educação Assis
Brasil (Pelotas/rs), durante os “anos de chumbo” da ditadura
civil- militar no Brasil.
As memórias das normalistas, a documentação escolar e
legislativa nos auxiliaram a compreender como eram as práticas pedagógicas de Educação Física e quais os significados
eram atribuídos a este disciplinamento próprio de um ambiente escolar.
Diante disso nos propusemos a investigar, através do depoimento das alunas e professoras da época e também da análise das leis e decretos promulgados, as percepções das alunas
sobre as aulas, porque é possível perceber certas mudanças nas
políticas educacionais alinhadas com as convicções do período
ditatorial em relação à educação. Buscamos perceber também
em que medida essas práticas pedagógicas carregam as marcas
da imposição dos governos ditatoriais da época e de suas compreensões a respeito do ensino na escola Assis Brasil.
Convém reforçar que interpretamos, conforme o contexto, a constituição da disciplina de Educação Física nos aspectos históricos e nas correntes teóricas que influenciaram esta
disciplina, especialmente nos anos 1970 no Brasil. A disciplina,
122
Práticas escolares de Educação Física...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
encarada como fundamental na escola, desempenhava função
social pautada na construção do patriotismo e do nacionalismo, especialmente a partir da Copa do Mundo de Futebol de
1970. Logo, a própria legislação educacional, como o decreto
69.450/1971, apontava para a obrigatoriedade do ensino de
Educação Física por ser a disciplina responsável por despertar e
desenvolver forças físicas, morais e cívicas. O ensino de Educação Física estava pautado na concepção de educação tecnicista
e primava pela competitividade, pela prática da esportivização
e pelo disciplinamento do corpo, baseado na racionalidade, eficiência e produtividade.
Referências
aMado, Janaína; Ferreira, Marieta de Moraes. Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FgV, 2006.
aMaraL, Giana Lange do; aMaraL, Gladys Lange do (Org.). Instituto Estadual de Educação Assis Brasil: entre a história e a memória (19262006). Pelotas: Seiva 2007.
CandaU, Joël. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2014.
Le goFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp,
2013.
MagaLHÃes, Justino Pereira de. Tecendo nexos: história das instituições
educativas. Bragança Paulista: Editora Universidade São Francisco,
2004.
oLiVeira, Maria Augusta Martiarena de. Acervos escolares e história das
instituições educacionais: o caso da Escola Estadual General Osório/rs.
In: Revista Linhas. Florianópolis, v.15, n. 28, p.154-174, jan./jun., 2014.
riBeiro, Ivanir e siLVa, Vera Lúcia Gaspar da. Das materialidades da escola: o uniforme escolar. In: Educação e Pesquisa. São Paulo, v.38, n.03,
p.575-588, jul./set., 2012.
123
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
A participação de alunos secundaristas
na formação da Universidade Federal
do Rio Grande
Karin Christine Schwarzbold 33
Introdução
A Furg completa 50 anos em 2019. Esse fato me levou a pensar sobre como se deu o processo de criação da Instituição. Ao
conversar com demais pesquisadores que em seus trabalhos de
alguma forma tiveram contato com o histórico da criação da
mesma, foi-me relatada a possível mobilização dos estudantes
secundaristas inclusive com a probabilidade de manifestações
públicas como passeatas pelas ruas da cidade.
Além da curiosidade inerente ao ser humano, como pesquisadora fiquei instigada a me perguntar se eles foram agentes passivos ou ativos nesse processo. Após buscar dados para
compor o estado da arte, percebi que o envolvimento de estudantes secundaristas na criação da Furg não foi utilizado como
tema de pesquisa até a presente data. Assim, trago como uma
hipótese provável de que as manifestações das mais variadas
formas dos estudantes secundaristas foram relevantes para a
criação da Universidade, mas que estas têm sua história apagada tendo em seu lugar uma supervalorização na participação
da classe política e empresarial.
O presente artigo integra os estudos referentes a minha
proposta de doutoramento e possui como objetivo analisar a
participação de estudantes secundaristas no movimento de
33. Doutoranda PPGE- UFPel. Orientadora PatriciaWeiduschadt
124
A participação de alunos secundaristas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
criação da Universidade Federal do Rio Grande- Furg, bem
como averiguar a presença da Une nos movimentos relativos
ao Ensino Superior, em especial a possível participação da mesma no Município.
Desenvolvo minhas atividades de doutoranda na linha da
História da Educação e pesquisar a criação da Furg é considerado por alguns colegas complicado devido à falta de fontes. Quando ouço isso logo meus pensamentos se voltam para a Nova
História, conhecida como a terceira geração de Annales, disposta a dialogar com diversas áreas e, principalmente, “ampliar seu
olhar sobre as fontes” (Alves e Mattos, 2011). Iniciada em 1968,
“marcada pela fragmentação” (Alves e Mattos, 2011), foi liderada
por Jacques le Goff e Georges Duby. Indo um pouco além, temos
uma quarta geração, conhecida como a Nova História Cultural
(nHC) liderada por Roger Chartier e Jacques Revel e influenciada
por Michel Foucault. Dessa forma, sinto-me contemplada pela
nHC num contexto metodológico mais amplo e utilizarei a pesquisa documental especificamente neste artigo.
A ideia desta pesquisa surgiu no momento em que encontrei
um documento com diversas assinaturas de alunos secundaristas do Colégio Técnico Científico São Francisco, o que indicia a hipótese inicial de que os alunos secundaristas realmente
manifestaram-se sobre a criação da Furg.
O município do Rio Grande
Na segunda metade do século XX 34 a realidade do Município do
34. Informações baseadas no site da FURG, item Catálogo Geral. Infelizmente o mais atual disponível é o de 2015. Maiores informações em: Catálogo Geral – vol. 19 – Rio Grande: Universidade Federal do Rio Grande – FURG, 2015
125
A participação de alunos secundaristas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Rio Grande – rs revelava a carência de escolas de nível superior.
Com isso há uma significativa evasão do número de estudantes com condições econômicas, os quais se dirigiam a outros
centros em busca de continuidade para seus estudos. Aqueles
que não possuíam condições financeiras acabavam não dando
continuidade aos seus estudos. Depois de concluídos os cursos,
essa força jovem raramente retornava à cidade de origem a fim
de participar do seu processo histórico, cultural e socioeconômico. A sensibilização dessa realidade, aliada ao propósito de
modificá-la, resultou em um movimento cultural, cuja finalidade era a criação de uma Escola de Engenharia no Rio Grande,
justificada pelo elevado número de profissionais na área sem
qualificação superior específica e pelo parque industrial que
aqui já existia.
Atendendo aos anseios da sociedade em 24 de maio de 1955,
pelo Decreto n.o37.378, foi autorizado o funcionamento da
Escola de Engenharia Industrial, reconhecida pelo Decreto n.o
46.459, de 18 de julho de 1959, e federalizada pela Lei n.o 3.893,
de dois de maio de 1961, como estabelecimento isolado. A partir
de então outros cursos e faculdades passaram a existir no Município. A Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas surge pela
Lei Municipal n.o 875, de 22 de julho de 1956, e foi autorizada a
funcionar pelo Decreto n.o 43.563, de 24 de abril de 1958.
Em 1959, ano do centenário de nascimento de Clóvis Beviláqua (autor do Projeto do Código Civil Brasileiro, 1899), foi
iniciado um movimento visando à instalação de uma Escola
Informações gerais. Universidade Federal do Rio Grande – FURG Os dados
para a elaboração deste Catálogo têm como base o 1.o semestre de 2015. Publicação elaborada com base na Portaria MEC Nº2.864, de 26 de agosto de
2005. Disponível em: https://sistemas.furg.br/sistemas/paginaFURG/arquivos/menu/000000406.pdf . Acesso em: 21 nov. 2018.
126
A participação de alunos secundaristas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
de Direito em Rio Grande, a ser mantida financeiramente pela
Mitra Diocesana de Pelotas. Contava com a colaboração de
professores do Município, da União Sul - Brasileira de Ensino
(fornecendo as instalações para o funcionamento) e Bibliotheca
Riograndense que disponibiliza o seu acervo à clientela. Visando ao bem maior, a qualificação de pessoal no Ensino Superior,
instituições privadas do Município, bem como da região, não
mediram esforços em auxiliar o setor público para a consecução desse objetivo.
Os esforços conjugados garantiram que, em 2 de fevereiro
de 1960, pelo Decreto n.o 47.738, fosse autorizado o funcionamento da instituição, que recebeu o nome de Faculdade de
Direito “Clóvis Beviláqua”.
À medida que o tempo transcorria, novas expectativas surgiam, e com elas se ampliava a gama de possibilidades oferecidas aos jovens rio-grandinos. Ainda em 1960, tendo em vista o
grande número de candidatos que desejavam outros cursos de
nível superior, surge em 19 de janeiro de 1961, através do Decreto n.o 49.963, a autorização para o funcionamento dos cursos de
Filosofia e Pedagogia, em salas cedidas da Escola Normal Santa
Joana d’Arc. Esta escola, fundada em 1918, tem como objetivo
atender à carência de formação da juventude feminina 35.
Como um processo dinâmico, em 1964 era autorizado o
35. O termo juventude feminina encontra-se na justificativa do Bispo da Diocese de Pelotas, Dom Francisco de Campos Barreto, com relação à criação
de uma escola no Município. Para maiores informações sugiro a leitura do
artigo de SANTOS, Rita de Cássia Grecco dos. Vargas, Francisco Furtado
Gomes Riet. TAMBARA, Elomar. Colégio Santa Joanna d’Arc: uma narrativa histórica acerca da escola complementar e da primeira escola normal de
Rio Grande/RS. IX ANPED/Sul. 2012. Disponível em: http://www.ucs.br/etc/
conferencias/index.php/anpedsul/9anpedsul/paper/viewFile/2194/44. Acesso em 21 nov. 2018.
127
A participação de alunos secundaristas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
funcionamento do Curso de Letras, com habilitação para Inglês
e Francês; em 1966 entrava em funcionamento o curso de Matemática; em 1967 instalavam-se os cursos de Ciências e Estudos
Sociais. Nesse mesmo ano, na sessão de 4 de outubro, o Conselho Federal de Educação reconheceu a Faculdade Católica
de Filosofia de Rio Grande, ato oficializado pelo presidente
Arthur da Costa e Silva, através do Decreto n.o 61.617, de 3 de
novembro de 1967.
Até que, por fim, em 20 de agosto de 1969, foi assinado o
Decreto-Lei n.o 774, pelo então presidente da República Arthur
da Costa e Silva, autorizando o funcionamento da Universidade do Rio Grande – Urg.
Impressos como fonte de pesquisa
A imprensa teve seu início oficial no Brasil em 13 de maio de
1808, com a fundação da Impressão Régia, no Rio de Janeiro,
pelo príncipe Regente Dom João. A Gazeta do Rio de Janeiro
foi o primeiro jornal publicado no Brasil em 10 de setembro
de 1808. Mas ele não foi o primeiro a circular no País. O marco inicial se dá em 1º de junho, quando o Correio Braziliense,
editado em Londres por Hipólito José da Costa Pereira Furtado
de Mendonça, chega ao País.
Por sua vez, a gazeta Idade d’Ouro do Brazil, da Bahia, é
a primeira publicação de propriedade privada. Teve início em
maio de 1811 e circulou até 1823.
Até o século 19, a imprensa era principalmente regional.
No início do século 20, os jornais eram os principais meios de
comunicação em massa no mundo. A concorrência era grande
e existiam jornais matutinos e vespertinos.
128
A participação de alunos secundaristas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Conforme Traquina (2005), muitos fatores sociais colaboraram para a expansão do jornalismo, como a escolarização da
sociedade e o processo de urbanização. Também afirma que
o jornalismo como conhecemos hoje na sociedade democrática tem suas raízes no século XiX. Foi durante o século
XiX que se verificou o desenvolvimento do primeiro mass
media, a imprensa. A vertiginosa expansão dos jornais no
século XiX permitiu a criação de novos empregos neles;
um número crescente de pessoas dedica-se integralmente a uma atividade que, durante as décadas do século XiX,
ganhou um novo objetivo –fornecer informação e não propaganda (TraQUina, 2005. p. 34).
Até 1825, ao menos Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia,
Minas Gerais, Maranhão, Pará e Pernambuco eram sedes de
jornais e/ou tipografias. Ainda sob regência de leis portuguesas a Nova Constituição portuguesa trata da seguinte forma
a imprensa:
A livre comunicação do pensamento é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo cidadão pode, consequentemente, sem dependência de censura prévia, manifestar
suas opiniões em qualquer matéria, contanto que haja de
responder pelo abuso desta liberdade nos casos e na forma que a lei determinar (sodrÉ, 1999, p. 41).
Ao utilizarmos os impressos como fonte de pesquisa, Luca
(2010) amplia a visão dos mesmos ao afirmar que
Os debates ultrapassaram as fronteiras dos novos objetos, abordagens e/ou problemas e introduziram outras
fissuras no trato documental. Como assinalou o historiador Antoine Prost, alterou-se o modo de inquirir os textos,
que “interessará menos pelo que eles dizem do que pela
maneira como dizem, pelos termos que utilizam, pelos
129
A participação de alunos secundaristas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
campos semânticos que traçam” e, poderíamos completar, também pelo interdito, pelas zonas de silêncio que
estabelecem (p.114).
Através dessa mudança de olhar sobre os impressos, eles se
tornam uma fonte riquíssima de pesquisa. Anteriormente considerada pelos historiadores como uma fonte passível de manipulação de dados, hoje eles não apenas são fontes complementares
na pesquisa como o próprio objeto, onde, como citado acima
por Luca, o próprio silêncio, as entrelinhas do dito são capazes
de gerar fascínio nos pesquisadores e elucidar muitos fatos.
Para a autora é possível, através da sua análise, pesquisar
o comportamento da sociedade através dos anúncios (como o
trabalho pioneiro de Gilberto Freyre), obtenção de dados econômicos, o estudo do próprio suporte e conservação, da tipografia, da diagramação, editorial, charges, a coluna do leitor. Se
o tema da pesquisa for manifestações, greves, trabalho, economia, educação, mundo operário, políticas públicas (em especial
as municipais), atividades culturais, questões de gênero, técnicas de impressões, o uso ou não de letras miúdas, para todos
pode-se ter os impressos como fonte primária de pesquisa.
Carvalho, Araújo e Gonçalves Neto (2002), por exemplo,
trazem em seu artigo a questão econômica em Uberlândia e a
falta de profissionais capacitados para o trabalho. Através da
análise do editorial de um jornal local foi possível verificar que
a reivindicação dos munícipes na criação de uma escola profissionalizante estava de acordo com as diretrizes gerais do Plano
Nacional de Educação.
Diferente de Uberlândia, a carência no município do Rio
Grande era de profissionais do nível superior. Pretende-se
verificar através dos impressos a participação dos estudantes
130
A participação de alunos secundaristas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
secundaristas em movimentos e manifestações públicas para
a criação da Universidade Federal do Rio Grande – Furg.
Para dar início a essa proposta busquei identificar os jornais
de Rio Grande existentes no Município com data anterior ao
da criação da Furg. Identifiquei o jornal Rio Grande e localizei
um acervo considerável de exemplares, ainda que não completo, junto à Bibliotheca Riograndense, fundada em 15 de agosto
de 1846.
Ao buscar os exemplares do primeiro semestre de 1967
encontro uma notícia do dia 18 fevereiro tratando do vestibular unificado entre os municípios de Porto Alegre, Pelotas e Rio
Grande para o Curso de Medicina. O processo se constituía de
uma prova única onde os qualificados eram divididos conforme sua nota entre as Faculdades em Porto Alegre, em Pelotas
ou em Rio Grande. Na já mencionada reportagem, há a notícia
de que ninguém do Município do Rio Grande havia se classificado, fazendo com que as vagas existentes fossem ocupadas
por pessoas de outras localidades. Ainda enfatiza que o sistema unificado é injusto, haja vista que os moradores de Porto
Alegre possuíam acesso a uma preparação auxiliar, como os
cursinhos preparatórios para o Enem nos dias atuais.
Já no dia 21 tem uma pequena nota informando que duas
pessoas que não moravam mais no Município, mas que eram
nascidas no mesmo, tinham logrado êxito na seleção. No mesmo exemplar há uma manifestação dos alunos secundaristas
publicada na íntegra pelo jornal conforme imagens 1, 2 e 3.
Figura 1: Nota URES (parte 1)
131
A participação de alunos secundaristas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Fonte: Bibliotheca Riograndense, 2018
Figura 2: Nota URES (parte 2)
132
A participação de alunos secundaristas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Fonte: Bibliotheca
Riograndense, 2018
Figura 3: Nota URES
(parte 3)
133
A participação de alunos secundaristas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Fonte: Bibliotheca
Riograndense, 2018
Através dessa
nota publicada na íntegra no jornal ficou perceptível a preocupação dos estudantes secundaristas com a situação do ensino superior no Município. Demonstra preocupação inclusive
com a situação psicológica dos concorrentes à vaga, bem como
quanto à limitação de acesso a serviços de aulas particulares,
conhecidos como cursinhos pré-vestibulares, disponíveis apenas na capital do Estado.
Foi interessante observar a participação da sociedade do
Município através de uma arrecadação de valores para aquisição de livros para o referido curso e a preocupação do Presidente da Ures de que, talvez, nem todos os que doassem tivessem
seus familiares participando dos próximos processos seletivos.
A partir desse fato, o não preenchimento das vagas do curso de Medicina por discentes rio-grandinos, deu-se início a
toda uma movimentação no Município para efetivar a criação
134
A participação de alunos secundaristas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
da Universidade do Rio Grande, atual Universidade Federal do
Rio Grande-Furg.
A busca pela informação através dos impressos, especificamente de jornais locais, possibilitou a comprovação de que
existia uma entidade representativa dos estudantes secundaristas no Município do Rio Grande. Os dados são inicias mas
relevantes para a consecução desse artigo e corrobora com
a ideia inicial de que, infelizmente, o movimento estudantil
secundarista, é pouco lembrado pela sociedade e consequentemente raramente é tema de pesquisas acadêmicas.
Conclusão
A proposta deste artigo foi contemplada, uma vez que foi possível constatar, através dos impressos consultados, que existia
um movimento de alunos secundaristas em Rio Grande organizados na chamada União Rio-grandina dos Estudantes Secundários e que os mesmos participavam ativamente no Município.
Esse êxito deu-se graças à preservação de impressos, especificamente jornais da época, pela Bibliotheca Riograndense.
Esse foi o primeiro passo para dar andamento em uma pesquisa
mais ampla sobre o movimento dos estudantes secundaristas
no Município. Pretende-se buscar esses estudantes e através da
Historia Oral compreender melhor a sua atuação e participação
para a criação da Universidade Federal do Rio Grande- Furg.
Referências
aLVes, Francisco das Neves. MaTTos, Julia Silveira. Teoria e Historiografia
no Rio Grande do Sul: ensaios históricos. Rio Grande: Universidade
135
A participação de alunos secundaristas...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Federal do Rio Grande – FUrg, 2011. 178p
CarVaLHo, Carlos Henrique, araÚJo, José Carlos Souza, gonÇaLVes, Wenceslau Netto. Discutindo a história da educação: a imprensa enquanto
objeto de análise histórica (Uberlãndia- Mg, 1930-1950). In: araÚJo, José
Carlos Souza; gaTTi, Décio Júnior (org). Novos temas em História da
Educação Brasileira: instituições escolares e educação na imprensa.
Campinas, Autores Associados, 2002, p. 67-90.
LUCa, Tânia Regina. Fontes impressas: história dos, nos e por meio dos
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ed. São Paulo, Contexto, 2010.
sodrÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil.São Paulo:
Mauad, 1994.
TraQUina, Nelson. Teorias do jornalismo: Por que as notícias são como
são. 2 ed. Florianópolis: Insular, 2005.
136
MEMÓRIA,
SOCIABILIDADES &
PATRIMÔNIO
URBANO
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Clube Caixeiral de Rio Grande/RS: a
recreação entre os anos de 1930 a 1950
Gianne Zanella Atallah 36
João Fernando Igansi Nunes 37
Introdução
Neste artigo, intitulado Clube Caixeiral de Rio Grande/rs: a
recreação entre os anos de 1930 a 1950, analisamos as lembranças pontuadas como atividades socioculturais, rememoradas
através de vestígios materiais e imateriais tanto de caráter institucional quanto privado de pessoas que frequentavam o clube, mantendo mais do que um contato familiar, ou a extensão
do lar, mas um encontro em si mesmo. Para isso ressaltamos
que a consagração da categoria em sua sede social, através de
ações culturais que reforçavam o papel dos caixeiros na cidade de Rio Grande, a estruturou para as mudanças políticas a
partir da Era Vargas, onde o espaço permitiu a preponderância recreativa sobre a política. Nessa trajetória está implícito
o papel da memória, ela é a principal propulsora do grupo, a
partir do momento em o que o interesse em comum o reuniu.
O passado antes de 1930
36. Doutora em Memória Social e Patrimônio Cultural/ICH-UFPel/RS. Dirigente da Fototeca Municipal Ricardo Giovannini e Pinacoteca Municipal Matteo Tonietti. Professora Municipal de História da Prefeitura Municipal de Rio
Grande/RS
37. Doutor em Comunicação e Semiótica, PUC/SP. Professor Adjunto do Centro de Artes da UFPel/RS
138
Clube Caixeral de Rio Grande/RS
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Até o fim da República Velha, os salões tinham outra configuração social. Segundo Needell (1993),
Dois elementos, portanto, eram comuns aos salões do
Segundo Reinado e aos da Belle Époque [...]. Em ambas as
épocas, o salão era primeiro, um aspecto importante e
informal do sistema de poder na estrutura socioeconômica [...] e, segundo, algo definido e expresso em termos
culturais idênticos [...] Evidentemente, este aspecto instrumental aplica-se também ao salão da Belle Époque. Na
verdade, considerando o crescimento da população da
cidade e o ritmo acelerado das mudanças, a importância
do salão seria logicamente realçada. Ele ajudou a manter
como antes os relacionamentos convenientemente personalizados. [...] era uma sociedade familiar cujas portas ninguém procurava forçar. [...] Este âmbito restrito,
ao lado das instituições aqui discutidas, proporcionava
as condições ideais para aquela atmosfera seleta tão útil
à condução dos negócios da classe dominante (needeLL,
1993: 136-137).
Essa citação que destacamos adaptava-se muito bem ao CC
de Rio Grande. Até meados de 1930, veremos o quanto algumas atividades proporcionadas aos seus sócios mantinham
a recreação social e familiar, e ao mesmo tempo mantinham
uma hierarquia comportamental: as regras da entidade e sua
própria administração, estabelecendo uma hierarquia patronal
externa e internamente, como forma de manter a integridade
da luta Caixeiral nos espaço de trabalho e no principal ponto
de encontro: o Clube.
A partir dos anos de 1930, com a Era Vargas, novo cenário
começa a se delinear com a criação do Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio 38 além do Decreto n°19.770 de 1931, que
38. Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, criado em 1930, pelo Pre139
Clube Caixeral de Rio Grande/RS
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
promulga a Lei da Sindicalização 39, os quais irão reorganizar a
política trabalhista, que até então se configurava com leis que já
existiam antes de 1930, mas que além de não serem cumpridas
não incluíam todas as categorias profissionais, tanto quanto
direitos e deveres do trabalhador e patrão - essas novas expectativas sugestionavam a valorização do trabalhador.
Nesse contexto, o CC de Rio Grande enfrentou uma situação de transição, assim como tantos outros clubes classistas,
principalmente, entre a sua formação original e as suas expectativas com relação a novos desafios. Antes de 1930, havia uma
busca política enquanto classe e a respeitabilidade pela sua
sede, que demonstrava o equilíbrio diante de uma sociedade
em transformação.
Após 1930, o aspecto sociocultural comprometia-se pela
salvaguarda de uma memória coletiva amparada pelo costume,
que segundo Hobsbawn (1997),
sidente Getúlio Vargas, teve como primeiro ministro do Trabalho Lindolfo
Collor. A ele coube colocar em andamento um conjunto de medidas destinadas a mudar o padrão das relações de trabalho no País. Partia-se do pressuposto de que apenas com a intervenção direta do poder público seria possível
amortecer os conflitos entre capital e trabalho presentes no mundo moderno
(Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos3037/PoliticaSocial).
39. Decreto n° 19.770 de 1931- Lei de Sindicalização: a nova lei tinha como objetivo geral fazer com que as organizações sindicais de empresários e trabalhadores se voltassem para a sua função precípua de órgãos de colaboração
do Estado. A intenção, portanto, era colocar em prática um modelo sindical
baseado no ideário do corporativismo (Doutrina que propõe a organização da
sociedade com base em associações representativas dos interesses e das atividades profissionais, ou corporações. Graças à solidariedade dos interesses
concretos e às fórmulas de colaboração daí derivadas, seriam removidos ou
neutralizados os elementos de conflito, como a concorrência no plano econômico, à luta de classes no plano social, ou as diferenças ideológicas no plano
político). Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/
anos30-37/PoliticaSocial.
140
Clube Caixeral de Rio Grande/RS
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
nas sociedades tradicionais, tem a dupla função de motor e
volante. Não impede as inovações e pode mudar até certo
ponto, embora evidentemente seja tolhido pela exigência
de que deve parecer compatível ao precedente. Sua função é dar a qualquer mudança desejada (ou resistência à
inovação) a sanção do precedente, continuidade histórica
e direitos naturais conforme o expresso na história. [...]
A decadência do “costume” inevitavelmente modifica a
“tradição” à qual ele geralmente está associado (HoBsBaWn,
1997:10).
Entender as atividades que estavam por trás das portas do
CC Rio Grande nos permite cotejar o passado e o presente, sobre
aquilo que era entendido como ‘tradição’, e que com o tempo
perdeu elementos que ressignificassem. Essa perda está em
sinais que definem o espaço, as situações, ligações ao corpo e
ao espírito, e codificados no local, percebendo quando o costume não se preparou para o seu próprio entendimento, mesmo
ressignificando um passado através de elementos simbólicos.
Nos anos de 1930, com a nova visibilidade do Estado – trabalhador é possível perceber as ações de clubes classistas, mais
contidas, com um olhar mais profissional, do que familiar. A
separação da recreação social com relação à recreação institucional começa a acontecer de maneira gradual.
A recreação social pós 1930
As décadas que se sucederam pós 1930-1950 configuraram o
Clube mais como um espaço recreativo e de encontro de famílias do que como uma extensão do lar. Os bailes temáticos e
festas tinham por intuito fazer prevalecer um código de comportamento para aqueles que o frequentavam. Os anseios da
classe caixeiral estavam mais implícitos nas atividades sociais,
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MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
como forma de manifesto não só político, mas sociocultural.
E, assim, famílias que desfrutavam de condições financeiras e
prestígio profissional e social vantajosas mantiveram a importância do Clube diante da sociedade.
De acordo com Bergson
o que a vida e a sociedade exigem de cada um de nós é uma
atenção constantemente vigilante, a discernir os contornos da situação presente, é também certa elasticidade do
corpo e do espírito, que nos dê condições de adaptar-nos a
ela. Tensão e elasticidade, aí estão duas forças complementares entre si que a vida põe em jogo (Bergson, 2007:13)
(grifo do autor).
Assim a memória se mostra em constante vigilância, mesmo
que esteja retida no espírito. A sua maleabilidade só se revela
quando encontra em si mesmo o poder simbólico do relembrar.
Ela estabelece pontos de referência para manter um encadeamento memorial.
O CC Rio Grande mantém pontos de referência a partir de
sua herança material, e também através da memória de quem
passou por lá, como frequentador, funcionário, integrante da
diretoria, admirador, entre outros. Segundo Halbwachs (2006),
Se pusermos em primeiro plano os grupos e suas representações, se concebemos o pensamento individual como
uma série de pontos de vista sucessivos sobre os pensamentos desses grupos, então compreendemos que possam
retroceder no passado mais ou menos segundo a extensão
das perspectivas que lhe oferece cada um desses pontos de
vista sobre o passado tal como representado nas consciências coletivas de que participa (HaLBWaCHs, 2006, p.155).
A senhora Ydna Martinez, uma de nossas entrevistadas,
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rememora esse passado, ou seja, ela retrocede até ao ponto
onde as suas lembranças se encontram com o afeto coletivo, e
assim dialoga com o passado relatando como iniciou seu contato com o Clube, ainda quando jovem, quando seu pai, o senhor
Mario Correa Álvaro, foi presidente por várias gestões 40. “Então,
o papai foi muitos anos presidente do Caixeiral, ele gostava muito,
o papai era muito de baile, de festa, muito animado, ele procurava
esse entusiasmo e passar para clube 41".
Segundo o senhor Péricles Gonçalves, outro entrevistado,
Mario Correa Álvaro foi presidente
durante um bom tempo, pois o Caixeiral foi presidido por
uma pessoa só, no sentindo de não haver alternância de
poder, a diretoria ficou durante muitos anos na pessoa do
senhor Mario Correa Álvaro, que era dono de um cartório
aqui na cidade. Quando se fala no nome do Mario Correa
Álvaro, se ligava ao Caixeiral, quer dizer, eles se misturavam, ele e o Caixeiral, porque ele deve ter sido presidente
por mais de 20 anos, né? Então esta pessoa se dava bastante com o meu pai, até por conta do meu pai participar dos
bailes, como a sociedade de Rio Grande participava, porque o baile do Caixeiral era na segunda-feira de Carnaval,
quando as outras sociedades não davam baile 42.
Essa introjecção entre o “eu” e o fazer dentro do espaço
privado e do público, proporciona a confluência de memórias,
tanto a individual quanto a coletiva, sendo que a coletiva se
sobrepunha às lembranças individuais, a personificação do
40. O CC Rio Grande, nas primeiras décadas de existência, elegia uma nova
diretoria para mandatos de 01 (um ano), a partir dos anos de 1950 esse mandato passou a ter prazo de 02(dois) anos (Acervo Documental do CC Rio Grande).
41. Entrevista realizada em 21/10/2017.
42. Entrevista realizada em 24/07/2017.
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espaço social, onde essas lembranças forma produzidas, mantinham as outras lembranças produzidas pelos outros círculos
sociais em estado de espera.
Na data magna do Clube, o senhor Mario fazia aniversário,
segundo ela
[...] 3 de maio, justamente no dia do aniversário do meu
pai. Faziam banquetes, eram famosos pelos pratos gostosos e diferentes que apresentavam. O papai não entendia
nada de francês, entendia de inglês porque ele trabalhou
na Swift, não, no banco inglês, os irmãos dele trabalharam
na Swift. Então ele sabia inglês, mas francês ele não sabia,
mas eu não sei como ele colocava os nomes no cardápio
tudo em francês, [...] tudo em francês. Eram festas muito bonitas e a gente gostava também de festejar (fig.01) 43.
Figura 01: Jantar em Comemoração ao Aniversário do
Clube. Ano: década de 1950.
Fonte: Acervo Pessoal da
Sra. Ydna Martinez
De acordo com Ecléa Bosi, “A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social,
com a escola, com a Igreja, com a profissão; enfim, com os
grupos de convívio e os grupos e referência peculiares a esse
indivíduo” (Bosi, 1994. p.17).
43. Entrevista realizada em 21/10/2017.
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MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Assim a relação com o Clube na família da senhora Ydna a
instiga a trabalhar a sua memória, mais do uma simples lembrança, os seus pontos de referência perduram pelo elo que a
família mantinha. Ao escutá-la, foi possível perceber o sentimento de reencontro com a saudade, a importância de recontar um tempo vivido.
Os outros bailes, dos quais eu me lembro, eram assim, no
Natal e na Páscoa. Na páscoa o pai comprava na Leal Santos, uma fábrica que havia aqui muito famosa, comprava
latas e latas de bolacha daquela bolacha Maria para a criançada. Então ele distribuía bolachas e guaraná, e houve um
ano que ele sorteou coelhinhos vivos para as crianças, era
uma festa. [...] E quando era natal (fig), ele armava no centro do salão uma grande árvore de Natal, eu me lembro
de que houve um ano... Que ele sempre festejou o Natal
na nossa família. Então eu tinha muitos enfeites bonitos
que emprestei um dia pra colocar naquela árvore de Natal
também, como era muito grande não havia enfeite que
chegasse... Então eram também muito animados os bailes
de Carnaval, de Natal. E ele fazia muito baile infantil, no
Natal e na Páscoa44.
Figura 02: Jantar de Natal.
Ano: Década de 1950.
Fonte: Acervo pessoal da
Sra. Ydna Martinez
44. Entrevista realizada em 21/10/2017.
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A senhora Ydna também nos conta a respeito do Carnaval,
que com o passar do tempo acabou tornando-se um dos eventos mais importantes para o Clube. Além disso, durante a festa popular era mantido um ritual evidenciado por pequenos
detalhes, como a farta distribuição de confete e serpentina pela
entidade, símbolo do modo burguês. Ao olhar as fotografias de
seu acervo pessoal, ela nos relata:
O Clube Caixeiral de Rio Grande era famoso pelos bailes
que dava, eram os de Carnaval os mais famosos, então
todo mundo no Carnaval gostava de correr, os que eram
sócios e os que não eram queriam conseguir convites porque eram bailes muito animados. [...] Quando era Carnaval, eu sei que ele encomendava de fora da cidade sacos
de confete, serpentina, ventarolas de papelão, reco-recos, apitos e tudo aquilo ele distribuía no Carnaval. Na
segunda-feira de Carnaval era o ponto alto do Carnaval,
porque as senhoras iam de vestido de baile, as moças de
fantasias, até as senhoras também. Eu digo as senhoras
porque geralmente a gente não se fantasiava, mas se vestiam de traje de gala e os homens iam de smoking e gravatinha. Era o ponto alto. Não era por isso que não havia
entusiasmo. [...] E no salão do Caixeiral, no lado direito
e no lado esquerdo uma parte mais alta, feito uma plataforma de madeira, não sei se existe até hoje... Ruiu tudo.
[...] Não tem mais vestígios. E ali ficavam mesinhas e as
cadeiras, então quem quisesse comprar uma mesa pras
festas, ficava na mesa, naquela parte mais alta. Quando
chegava o entusiasmo do carnaval, nos bailes, as pessoas
dali faziam carnaval atirando serpentina, confete, tocando reco-reco, então era entusiasmado 45.
A tradição do confete e serpentina, também é relatada
pelo senhor Péricles Gonçalves: “Era um baile (fig.03) com
45. Entrevista realizada em 21/10/2017.
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MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
abundância de distribuição de serpentina e confete. O salão
ficava com centímetros de confete e era uma coisa muito interessante, era uma coisa bem farta, a distribuição de apito, língua de sogra”46.
Além disso, a memória dos sentidos aqui se caracteriza pelo
tato. Pelo relato é possível perceber sua precisão sobre a textura, quando se refere à abundância de confete e serpentina.
Figura 03: Baile de Carnaval.
Ano: Década de 1950.
Fonte: Acervo Fototeca Municipal Ricardo Giovannini
Além disso, o Carnaval no CC Rio Grande tentava manter
uma tradição, onde o ponto alto era o baile de segunda-feira, as
vestimentas de gala nos salões preservavam o padrão aristocrático urbano, já que a fantasia remetia à folia de rua e isso só foi
sendo aos poucos inserido no clube. As memórias desse baile
vão ao encontro das palavras do senhor Péricles Gonçalves
Na década de 40, foi à década que meu pai começou a
frequentar, os bailes, por exemplo, de Carnaval do Clube Caixeiral eram bailes de meia gala, não poderia entrar
com qualquer roupa, tinha que entrar com camisa branca,
46. Entrevista realizada em 24/07/2017.
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MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
calça preta e uma faixa na cintura porque era um baile
não comum. Inclusive, eu não sei se outra sociedade de
Rio Grande exigia esse tipo de vestimenta para um baile
de Carnaval, já na minha época poderia até entrar fantasiado, eu participei muitas vezes de bailes com máscara,
e nesta época, segundo o meu pai, as mulheres iam com
vestido condizente, com meia gala e os homens com essa
faixa... Eu me lembro de um... está na minha memória
apenas: deles indo para o baile, e o meu pai com uma faixa vermelha na cintura47.
Esse ritual que envolvia o Carnaval do CC Rio Grande, com
relação à vestimenta, era um código definidor de grupos. Aquelas pessoas que podiam adquirir um determinado padrão de
roupas pertenciam ao grupo seleto. O traje de gala era para festas superformais, isso demonstrava que o Carnaval era reservado e que no Clube a importância ao evento era relevante para a
manutenção de uma recreação institucional. Mesmo com essa
formalidade, entre nossos entrevistados foi possível perceber
que o lugar suscitava a alegria, o divertimento era componente
importante que transparecia no sorriso, nas músicas.
Figura 04: Sra. Ydna Martinez
(à esquerda), Ubirajara Martinez (ao centro) e Angela Guimarães.Ano: 23/02/1952.
Fonte: Acervo Pessoal da Sra.
Ydna Martinez
47. Entrevista realizada em 24/07/2017.
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Clube Caixeral de Rio Grande/RS
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A alegria era algo contagiante, entusiasmante, como nos
relatou a Sra. Ydna, e, segundo Bergson (2007),
O riso deve ser alguma coisa desse tipo, uma espécie de
gesto social (fig ). Pelo medo que inspira, o riso reprime as
excentricidades, mantém constantemente vigilante, e em
contato recíproco, certas atividades de ordem acessória
que correriam o risco de isolar-se e adormecer; flexibiliza enfim tudo o que pode restar de rigidez mecânica na
superfície do corpo social (fig.04 ) (Bergson, 2007, p.15).
A organização do Clube, quanto aos seus eventos, demonstrava o interesse pelo seu associado, o reconhecimento e, ao
mesmo tempo o cuidado com quem ali transitava. A seleção
musical do baile fazia um apelo à memória musical do Caixeiral, as músicas emitiam um código de sinais através das
letras rememoradas por muito tempo. Segundo o senhor Péricles Gonçalves,
Eu acho que também faz parte de um contexto, os próprios
bailes de Carnaval fazem partem de um contexto, os bailes de hoje não são os mesmos, até porque os carnavais de
hoje não são mais os mesmos, nós nos preparávamos para
o Carnaval (fig. 03), era antecedido inclusive com publicações das músicas que tocariam naquele Carnaval, tinham
mais ou menos parecido com palavra cruzada, daquele
tamanho, os livretos, era Melodia o nome do livreto, que
traziam as letras do próximo Carnaval, e a gente ficava
decorando as letras pra poder cantar nos bailes [...] tinha
lá o “Índio quer Apito”, cada um no seu tempo,”Jardineira”,
coisas que até hoje a gente lembra. Qual a música do último Carnaval? Não teve no último Carnaval, não tem mais
isso. Então eu acho que é tudo fruto de uma época, não há
mais preparação para o Carnaval. O Carnaval em algumas
partes do Brasil são trios elétricos, não tem Carnaval. No
Cassino, meio que reergueu esse tipo de Carnaval popular,
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Clube Caixeral de Rio Grande/RS
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
que antigamente nossas escolas de samba e as academia:
Império Serrano, As Mariquitas, Quebra Osso, Marilu,
esse aí desfilava pelo Marechal e atrás tava todo mundo,
hoje não, hoje é desfile. O pessoal ficava na arquibancada vendo como se fosse um desfile militar, sem participação. No Rio de Janeiro o pessoal participa um pouco, canta,
mas o samba enredo também era antecipado, todo mundo sabe o tema da Portela. Era mais ou menos o acontecia
com o povão antes, hoje é só quem vai lá à Sapucaí. E eu
tenho a impressão que com o passar do tempo também
isso diminuiu, porque há uns anos atrás a gente sabia de
cor os sambas- enredo48.
Figura 05: Imagem do Baile
de Carnaval. s/d.
Fonte: Acervo Fototeca Municipal Ricardo Giovannini
Essa ritualização, à qual o sócio e o seu espaço eram submetidos, fez com essas lembranças se transformassem num
trabalho da memória, o exercício de recriar cada momento e
exteriorizar somente aquilo que pode contribuir com a memória coletiva. Existe, não que declaradamente, uma conivência
memorial entre o corpo e o espírito, lembrar para não esquecer, exteriorizar para não ser esquecido.
48. Entrevista realizada em 24/07/2017.
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Clube Caixeral de Rio Grande/RS
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Dentre outras festividades, havia as festas temáticas. Essas
remetiam a um encontro onde a garantia de estar no coletivo
era a continuidade do espaço privado. Em 1935, encontramos
o registro da Festa da Neve (fig.06), é importante observar que
o traje era algo sempre muito importante dentro do espaço
do Clube.
Figura 06: Imagem da Festa da
Neve. Ano: 1935.
Fonte: Acervo Fototeca Municipal Ricardo Giovannini
A importância em manter um calendário tradicional era
também uma forma de refletir as vontades dos sócios. Mas será
que, ao refazermos uma releitura do tempo vivido, conseguimos de fato perceber onde o objeto de estudo fraqueja diante
de sua memória e sucumbe ao esquecimento? Sabemos o que
é o esquecimento?
Buscamos um passado que muitas vezes não vivenciamos,
pois essa busca são as nossas inquietações quanto ao presente e não por um tempo vivido. O passado é formado por ciclos
temporais, que se entrelaçam entre si, até encontrar o presente
e esse tornar-se novamente passado.
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Clube Caixeral de Rio Grande/RS
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Figura 07: Imagem da Festa Junina. Aproximadamente década de
1950. Algumas pessoas identificadas da esquerda para a direita:
Olenca Miranda Neves, Maria Amelia Rey Barlem, Walter Britto
Neves, Geter Oliveira, Cecy Ramos, Antonio Salomão Faria, Sr. e Sra.
Machin, Maria Araújo, Tereza, Amadeu, Caroline Costa Miranda, Recaman, Perez.
Fonte: Acervo Fototeca Municipal Ricardo Giovannini
Em 1950, uma das festas mais movimentadas era a junina
(fig. 07), agregando a família, o Clube e a recreação, dentro de
um caráter regionalizado. Assim, foram mantidas plenamente até os anos de 1970, quando a partir de então começou uma
luta contra o tempo, causada pela perda material, financeira
e de sócios.
Como a própria sociedade em que vivemos, e que se reiventa
em valores e costumes, os espaços culturais não são diferentes,
mas nem todos conseguem sustentar essa reinvenção.
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Clube Caixeral de Rio Grande/RS
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Conclusão
Com a mudança nos anos de 1930, com a Era Vargas, o entendimento que nos cerca sobre a memória histórica do grupo concentra-se no papel do Estado, como o principal centralizador
das ações político-econômicas. Observamos, então, que, para
as sociedades mutualistas de um modo geral, era preciso inovar,
sem perder a tradição no seu espaço social. No CCrg não foi
diferente, a projeção que o Clube adquiriu a partir do incentivo
aos bailes de Carnaval, além de outras festas temáticas oferecidas a seus sócios, estão até hoje no imaginário daqueles que
por ali passaram e as vivenciaram, fossem para si mesmos ou
para sua família, principalmente.
Percebemos que a separação do espaço temporal armazena uma resistência que se apropria de suas lembranças para
não esquecer. Mas devemos refletir com veemência: por qual
motivo devemos lembrar? Por que nos inquieta a necessidade
da permanência do passado no tempo presente se, de fato, o
presente e o passado não se correlacionam? Mesmo o passado
estando presente, a ausência de sinais entre ambos impõe uma
agressividade, o luto que não aceita a perda.
Referências
Acervo documental do Clube Caixeiral de Rio Grande. Arquivo Público
e Histórico Municipal/ Prefeitura Municipal do Rio Grande/rs.
Acervo fotográfico do Clube Caixeiral de Rio Grande. Fototeca Municipal Ricardo Giovannini/Prefeitura Municipal do Rio Grande/rs.
Bergson, Henri. Matéria e memória. Tradução: Paulo Neves. 3ª edição.
São Paulo: Martins Fontes, 2006.
Bergson, Henri. O Riso. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BiTTenCoUrT, Ezio da Rocha. Da rua ao teatro, os prazeres de uma cidade:
153
Clube Caixeral de Rio Grande/RS
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
sociabilidades e cultura no Brasil meridional - panorama da história de Rio Grande. 2ª edição revista e ampliada. Rio Grande: Editora
da FUrg, 2007.
HaLBWaCHs, Maurice. Memória coletiva. Tradução: Beatriz Sidou. São
Paulo: Centauro, 2006.
HoBsBaWn, Eric J. Mundos do Trabalho: novos estudos sobre a história
operária. São Paulo: editora Paz e Terra, 2015.
HoBsBaWn, Eric J..Os trabalhadores: estudos sobre a história do operariado. São Paulo: editora Paz e Terra, 2015.
HoBsBaWn, Eric J.. ranger, Terence (orgs.). A invenção das tradições.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
needeLL, Jeffrey D. Belle Époque Tropical. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
154
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
“Ô Chora Makamba, Chora Nauê”:
a Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário no Litoral Negro do Rio Grande
do Sul
Claudia Daiane Garcia Molet 49
Neste artigo analisarei a Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário, que foi fundada em Mostardas 50 durante século XViii
e resiste até a atualidade, a partir do Ensaio de Pagamento de
Promessas, um ritual afro-católico. Para investigar as peculiaridades deste ritual utilizei entrevistas que foram realizadas
com a Irmandade e com outros devotos da Santa. Atualmente,
os membros da Irmandade são homens, negros, oriundos das
comunidades remanescentes quilombolas 51 ainda que a fé na
Santa esteja presente por todo litoral negro 52 do Rio Grande do
49. Doutora em História. Bolsista Capes. E-mail: claudiamolet@yahoo.com.
br
50. Mostardas emancipou-se do município de São José do Norte na década de
1960.
51. O decreto federal 4.887 determinou que os remanescentes de quilombos
fossem aqueles grupos étnico-raciais, segundo critério de autoatribuição e
que tivessem uma trajetória própria. Também deveriam possuir relações territoriais específicas, bem como ter uma ancestralidade negra que fosse relacionada com a resistência a uma opressão histórica sofrida. Com este decreto,
ficaram evidentes algumas especificidades para uma comunidade ser considerada como quilombo: ancestralidade negra, territorialidade e resistência
histórica.
52. O termo “litoral negro” designa tanto um espaço geográfico, marcado
pela presença de diversas comunidades quilombolas remanescentes, na faixa de terras entre a laguna dos Patos e o Oceano Atlântico, mas também um
conceito que possibilita entender as diversas interligações qualificadas pelos
laços de amizades, parentescos, compadrios e compartilhamento de práticas
culturais por escravizados, libertos e livres desde o século XIX à atualidade.
155
"Ô Chora Makambra, Chora Nauê"
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Sul. Nas entrevistas emergem as memórias do Ensaio, sendo corriqueiras as informações de que o ritual está presente
desde que eram crianças ou jovens, quando acompanhavam
os pais ou avós, desse modo, o Ensaio é passado de geração a
geração, por isso a fé na Santa é enorme, pois são inúmeros os
milagres contados.
Sobre o significado do termo Makamba que aparece na cantiga entoada no começo do Ensaio de Pagamento de Promessa,
Lopes (2005) elucida que representa os “pares”, aquelas e aquelas que estão passando pelas experiências da escravidão. Acima de tudo, destaco que Makamba poderia designar os amigos,
camaradas. Desse modo, no Ensaio, os Makambas são aqueles
irmãos unidos da fé em Nossa Senhora do Rosário.
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Preto: a fé de senhores, de escravizados e de libertos
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em Mostardas, parece ter sido criada por volta de 1773 53,
sendo uma das primeiras a serem construídas no Rio Grande
do Sul; posteriormente, apenas Viamão, estabelecida em 1754.
Alguns anos mais tarde, no dia 12 de julho de 1804, os irmãos
solicitaram a confirmação de compromisso a D. João Vi, então
príncipe regente, conforme documento “Dizem os irmãos da
Irmandade da Senhora do Rosário da Freguesia de São Luís
de Mostardas, do Continente do Rio Grande, que eles (?) da
53. Não encontrei nenhuma documentação da Irmandade desta data, mas
ela é mencionada por alguns sítios eletrônicos, como aquele da pesquisadora
Marisa Guedes, que informa que a Irmandade já existia em 1773. Disponível
em: http://marisaguedeshistoriadora.blogspot.com/2009/05/ensaio-de-promessa.html. Acesso em 10 de maio de 2018.
156
"Ô Chora Makambra, Chora Nauê"
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Irmandade (?) compromisso junto o qual (?) confirmação de
Vossa Alteza (?)”. 54O documento possui poucas palavras, bem
menos do que esta historiadora esperava; além disso, não foi
possível fazer a leitura completa, mas sabemos que em 1804 os
irmãos pediram a confirmação do compromisso, um indicativo de que já estavam em atividade antes da data da emissão do
pedido. Infelizmente, há uma lacuna de documentos escritos
sobre a Irmandade do Rosário de Mostardas, mas felizmente ela
ainda está em atividade, especialmente para realizar o Ensaio
de Pagamento de Promessas.
Reis (1991), ao analisar a Bahia, informa que as irmandades
possibilitavam a tessitura de solidariedades entre seus membros. No caso da Irmandade de Rosário de Mostardas, nota-se
que a mesma resiste até a atualidade, como no caso do Ensaio
de Pagamento de Promessas, cujos membros, muitos deles ligados por laços de parentescos, unem-se com outros irmãos para
juntos realizarem o ritual religioso que remonta ao período
da escravidão.
Podemos compreender a fé em Nossa Senhora do Rosário
a partir da perspectiva do catolicismo negro. Azevedo (2003),
ao investigar as experiências culturais dos africanos e de seus
descendentes, no Brasil, no século XiX, argumenta que a igreja
católica, ao permitir a existência do catolicismo negro, involuntariamente garantiu que africanos e seus descendentes pudessem vivenciar seus valores religiosos. Entretanto, o convívio
com o catolicismo negro nem sempre foi tolerado. No caso das
54. Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino. Brasil - Rio Grande do Sul. Caixa 7, n° 521. Requerimento dos Irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da freguesia de São Luiz de Mostardas. Disponível
em:
http://resgate.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=019_RS&PagFis=4965&Pesq=. Acesso em 30 de maio de 2018.
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"Ô Chora Makambra, Chora Nauê"
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
experiências dos fiéis do litoral negro há relatos de perseguição de membros da Igreja Católica para tentar coibir e regrar
as manifestações religiosas. Além disso, o Estado, no período
da ditadura civil-militar, a partir do uso da força policial coibiu as manifestações do Ensaio de Pagamento de Promessas a
Nossa Senhora do Rosário.
Azevedo (2003) destaca que a Igreja Católica manteve a unidade do seu dogma, porém a “pesada” influência das culturas
africanas propiciou um novo catolicismo engendrado a partir
de uma perspectiva cultural diferente. Diante dessa nova realidade a Igreja Católica passou a conviver com o catolicismo
negro composto por irmandades religiosas negras e suas distinções étnicas africanas; pelos santos negros e suas festas específicas; pelos anjinhos negros abrindo as procissões sagradas
dos fiéis negros, e particularmente pelas Congadas, momentos que inclusive as igrejas locais patrocinavam a coroação de
casais negros, reis e rainhas. O catolicismo negro foi paulatinamente “acomodado” pela igreja branca que impediu assim
a separação dos dois catolicismos.
Há uma lacuna de documentos escritos sobre a Irmandade
do Rosário, em Mostardas. Na década de 1960, o Livro Tombo
da Igreja de Mostardas 55 refere-se à atuação da Irmandade de
“morenos”, época em que o Padre Simão Moser, que dirigiu a
Paróquia entre 1951 a 1982, proibiu as manifestações de Ensaio
de Promessa. Nota-se que houve uma tentativa de proibições
dos Ensaios de Promessas realizados pela Irmandade e regramentos na Festa do Rosário. De acordo com as novas normas,
55. LIVRO TOMBO, p. 6, conforme mencionado por Marisa Guedes: http://
marisaguedeshistoriadora.blogspot.com/2009/05/ensaio-de-promessa.
html acesso em 31 de janeiro de 2019.
158
"Ô Chora Makambra, Chora Nauê"
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
o promesseiro deveria substituir o Ensaio por uma Santa Missa.
Este ponto nos remete para uma tentativa de apagar a história
de um ritual que surgiu durante a escravidão e que pela oralidade perpassou gerações de famílias negras. A Festa e o Ensaio
são dois momentos distintos de devoção a Nossa Senhora do
Rosário. O Ensaio envolve um momento entre a Irmandade e
Nossa Senhora do Rosário, sem a participação direta da Igreja Católica.
Sobre a proibição dos Ensaios, Lobo (2010, p. 89-90), ao
analisar a Irmandade de Rosário de Tavares 56, comenta que
escutou relatos de que o ritual foi censurado pelos padres católicos de Tavares, por um determinado período, não datado pelos
informantes. Provavelmente, essa interdição ocorreu na década
de 1960, conforme documento analisado anteriormente. Leite
(2004, p. 172), por sua vez, ao analisar a comunidade remanescente quilombola de Casca, traz o depoimento de dona Adolfina,
remanescente quilombola, que com uma expressão muito triste e saudosa relembra que um padre católico proibiu o Ensaio,
alegando que o ritual era “coisa de batucaria”.
A memória e a oralidade
Alguns estudos abordam sobre a oralidade e a memória nas
Comunidades Quilombolas. Hebe Mattos (2005, 2006, p. 109),
ao estudar os remanescentes de quilombolas do centro-sul do
Brasil (Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo), afirma que nas narrativas destacam-se os aspectos simbólicos da memória familiar da escravidão que são “elaboradas e
56. Tavares emancipou-se de Mostardas, na década de 1980.
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"Ô Chora Makambra, Chora Nauê"
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
reelaboradas em função de relações tecidas no presente, como
em todo o trabalho de produção de memória coletiva”. Este
aspecto é muito importante, pois as memórias estão relacionadas com o presente e, portanto, não são fixas, já que são
elaboradas e reelaboradas. Importante ressaltar que a memória do passado está intimamente relacionada com o presente,
como nos casos das lembranças da longevidade do Ensaio de
Pagamento de Promessas.
Outra pesquisa que traz subsídios é a dissertação de Joelma Tito da Silva (2009), que investiga a comunidade quilombola Negros do Riacho 57, localizada no município de Currais
Novos, no Rio Grande do Norte. A historiadora faz uso das
memórias quilombolas e conclui que há uma construção, por
parte dos narradores, de uma temporalidade mítica e ancestral
onde viveu o primeiro ancestral da comunidade. Destaca ainda
uma associação entre arte, tradição oral e memória na produção de cerâmica. A autora destaca que, até a última década do
século XX, houve uma grande produção de potes e panelas na
comunidade. Esta arte era ensinada pelos pais e avós, porém
atualmente apenas algumas mulheres ainda fazem louças de
barros. Para a autora, isso ainda acontece porque “a louça é
um suporte de memória que ritualiza a tradição, faz lembrar
o tempo dos antigos e da infância”.
Memórias que viajam pelos tempos, vão e voltam em um
passado que não é dividido cronologicamente, pois está imerso
também nos anseios do presente. Por todas essas memórias,
fiz uso da metodologia da História Oral 58, em que a memória
57. Silva (2009) informa que a comunidade dos Negros do Riacho foi reconhecida como “remanescente de quilombo” em 2006.
58. Para Alberti (2005, p. 155), a História Oral é “uma metodologia de pesqui160
"Ô Chora Makambra, Chora Nauê"
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
é de extrema importância. Conforme pontua Alberti (2005, p.
155), a partir desta metodologia é possível ter acesso a “histórias
dentro da História”. A autora destaca que, a partir da década de
1960, começou a fase da “História Oral Militante” cujos historiadores que a faziam acreditavam que História Oral possibilitaria “dar vozes” às minorias. Porém, a autora considera que é
pertinente ter precaução quanto às influências dessa história
militante, pois é necessário levar em consideração que o relato,
resultado da História Oral, não é a própria “História”. Desse
modo, a entrevista, em vez de fonte, pode passar a ser considerada a própria “revelação do real”. Além disso, outro equívoco
apontado pela autora é de que, ao se fazer a história oral, usar
a noção de “história vista de baixo”, como se o pesquisador
concedesse aos de “baixo” a chance de se expressar, indicando
que talvez eles sozinhos não fossem capazes de assim fazer 59.
Um dos estudos de referência sobre a memória é a obra de
Halbwachs (2004), A Memória Coletiva, em que o autor faz uma
análise da memória baseada nos estudos de Durkheim, para
quem os fatos sociais são externos ao indivíduo, pois a maneira de agir, de pensar e de sentir depende da sociedade em que
o mesmo está inserido. Ao nascer, o indivíduo é socializado de
acordo com as regras, que são internalizadas por meio de um
sa e de constituição de fontes para o estudo da história contemporânea surgida em meados do século XX, após a invenção do gravador a fita. Ela consiste
na realização de entrevistas gravadas com indivíduos que participaram de,
ou testemunharam, acontecimentos e conjunturas do passado e do presente.
Tais entrevistas são produzidas no contexto de projetos de pesquisa, que determinam quantas e quais pessoas entrevistar, o que e como perguntar, bem
como que destino será dado ao material produzido”.
59. Sobre as contribuições da história oral, a história da população negra, ver:
ALBERTI Verena; PEREIRA, Amilcar Araújo. Possibilidades das fontes orais:
um exemplo de pesquisa. Anos 90. v. 15, nº 28, Porto Alegre, 2008, p. 73-98.
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"Ô Chora Makambra, Chora Nauê"
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
processo educativo e há obstáculos para aqueles que não aceitam as imposições da sociedade. Todavia, apesar das dificuldades impostas, as instituições são passíveis de mudanças desde
que vários indivíduos tenham pelo menos combinado uma ação
e que desta combinação haja um novo fato social. Conforme
destacam Weber e Pereira (2010, p. 106), para Durkheim “não
é o indivíduo que determina a sociedade, mas a sociedade que
condiciona o indivíduo”.
Halbwachs (2004, p. 31-38) afirma que as lembranças são
coletivas, pois a memória está relacionada, em todos os momentos, com outros grupos que não precisam estar fisicamente com
aquele que rememora, visto que estão, em cada detalhe, presentes nas ruas, nos prédios, nos parques. Os lugares, assim
como as coisas, carregam; são, portanto, memórias, todavia
não basta participar ou assistir a uma determinada cena em que
outros homens são os expectadores ou ainda os atores, para
lembrá-la, pois é necessário fazer parte do grupo. Isso porque,
posteriormente, quando aqueles evocarem a cena, ou, ainda,
quando reconstituírem parte por parte, aquele que não estiver
inserido no grupo não recordará. É necessário fazer, portanto, parte de um grupo e ter pensamentos comuns com este e
ainda permanecer em contato para assim identificar-se com o
passado rememorado. Candau (2003, p. 61-63) argumenta que
a noção de memória coletiva elaborada por Halbwachs serve
para analisar uma série de fenômenos sociais relacionados com
a memória. Desse modo, este conceito sociológico é fecundo,
pois não seria possível designar de outra maneira determinadas formas de consciência do passado que aparentemente são
compartilhadas por um conjunto de indivíduos. Porém, mesmo que haja uma memória coletiva em cada sociedade humana,
162
"Ô Chora Makambra, Chora Nauê"
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
no interior dessas há indivíduos com sua memória individual
que depende da sua história e da organização de seu cérebro.
A memória do Ensaio de Pagamento de Promessas aponta
para um ritual afro-católico, transmitido pela oralidade, formada por fortes laços de parentescos e de solidariedades, conforme analisarei na sequência.
O Ensaio de Pagamento de Promessas: a fé re(existe) na
atualidade
Assim, como a Irmandade do Rosário existe desde o século
XViii, o Ensaio pode ter surgido durante a escravidão. As narrativas apontam que a Santa ensinou as danças e os cantos para
um negro e, através da oralidade e da observação, ele existe
até a atualidade. Pelos relatos dos entrevistados, percebi que o
Ensaio ocorre quando um devoto de Nossa Senhora do Rosário,
em momento de desespero, que envolva saúde, lavoura, casa
e estudos, ou seja, apenas para pedidos difíceis de serem atendidos, promete que se seu pedido for atendido realizará um
Ensaio de Pagamento de Promessa. A memória dos quilombolas aponta para histórias do encontro da Santa com os seus
antepassados, destacando que as cantigas e as gingas foram
ensinadas por Nossa Senhora do Rosário e assim, de geração
em geração, os irmãos seguem ensaiando a cada ritual.
Ramos (2015), ao investigar o Ensaio no litoral negro, traz
uma entrevista com Seu Orlando, quilombola de Teixeiras, hoje
falecido, importante personagem no ritual. Segundo Seu Orlando, o Ensaio começou em 1720 e era utilizado pelos negros para
curarem-se. No começo, os negros acendiam um fogo e faziam
o ritual no meio do mato, pois os brancos não o aceitavam, visto
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"Ô Chora Makambra, Chora Nauê"
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
que consideravam a ação um batuque. Porém, os brancos começaram a adoecer e, como não existia médico na localidade e nem
“meios” para ir a Porto Alegre ou outra região, decidiram autorizar o Ensaio e inclusive liberaram para que os negros cantassem
dentro de casa. Esta relação do Ensaio com o passado escravista é muito acionada na atualidade. Afinal, os negros doentes e
sem recursos para tratar os males receberam a proteção de Nossa Senhora do Rosário que lhes ensinou os cantos e as danças.
Diante das dificuldades da escravidão e da vida no litoral negro,
os negros não estavam sozinhos, a Santa poderia estender-lhe
as mãos. E com isso a relação senhor-escravo ou branco-negros
recebeu algumas peculiaridades, pois os brancos recorriam aos
negros para fazer o Ensaio, pois também queriam ficar curados.
Aciono, neste momento, os membros da Irmandade para narrarem sobre o Ensaio. A entrevista a ser analisada foi realizada no
Ensaio de maio de 2018. Inicialmente, fui conversar com o Seu
João Manoel, irmão do Seu Hirto Miguel, ambos filhos de Seu
Antônio Zabela, já falecido, que é lembrado pelos membros da
Irmandade e demais devotos de Nossa Senhora como um importante detentor da sabedoria do ritual. Porém, Seu João Manoel
indicou seu filho Cristiano Silva, também membro da Irmandade e atual responsável pela organização do grupo. Decidi por gravar a entrevista com os dois, na tentativa de que Seu João Manoel
conversasse comigo. Nesta entrevista, assim como nas demais,
destacaram-se as memórias familiares, pois o Ensaio é um ritual
passado pelas gerações de famílias negras. São histórias, de avós,
tios, pais, mães que foram “criados” no Ensaio.
Claudia Daiane: O que é o Ensaio de Pagamento
de Promessas?
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"Ô Chora Makambra, Chora Nauê"
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Cristiano Silva: O Ensaio de Promessas para nós é uma
cultura, uma cultura dos negros. Quando alguém se sente
doente, que tem uma promessa, que fez uma colheita boa,
faz uma promessa para pagar um Ensaio. Faz a promessa, marca um dia conosco e viemos pagar a Promessa. É
uma cultura desde o tempo dos meus avôs. Eu estou com
42 anos e já tem há uns cinquenta e tantos anos, esta cultura dos negros.
Claudia Daiane: Teu avô era o Antônio Zabela?
Cristiano Silva: Isso, Antônio Zabela, é o pai dos dois (Seu
João Manoel e Seu Hirto Miguel).
Claudia Daiane: Há quanto tempo tem o Ensaio?
Cristiano Silva: Eu tenho 42 anos e acho que isso já faz
uns cinquenta anos, né?
S. João Manoel: Bastante tempo, bastante tempo.
Claudia Daiane: Seu pai era do Ensaio também?
S. João Manoel: Meu pai era e era mesmo. Eu estou com
82 anos. Eu era novo, rapaz novo, com 15 anos e ele já
me puxava, mas eu não gostava, nunca quis acompanhar
muito ele. Depois que eu casei fui morar perto dele, comecei a acompanhar. Ele sabia mesmo muita coisa, mas eu
não aprendi muito, por causa disso, não prestava atenção.
Quando ele estava perto de morrer pediu para eu ficar com
outro companheiro de guia, que ele era guia, sabia mesmo.
Eu não sabia quase nada, mas peguei este companheiro
que sabia, então fiquei com este compromisso. Então foi
indo, ele morreu, depois ficou eu e este camarada e depois
o outro camarada morreu. Depois foi entregue para eles
aqui, mais novos.
Claudia Daiane: Há quanto tempo estás no Ensaio?
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"Ô Chora Makambra, Chora Nauê"
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Cristiano Silva: Já faz uns 25 anos, comecei novinho,
mas que peguei a responsabilidade dos Ensaios faz uns
oito anos.
Claudia Daiane: O que é esta responsabilidade?
Cristiano Silva: O falecido Orlando era o Rei do Congo,
era o falecido Orlando que puxava, assumia tudo, era ele
e o pai. O falecido Orlando quando morreu pediu para eu
organizar, eu e o companheiro Jaci 60.
Segundo Cristiano Silva, o Ensaio faz parte da cultura negra.
Na fala não há, neste momento, uma ligação com a Igreja Católica, embora Cristiano tenha sido festeiro da Festa do Rosário,
de 2016, realizada na capela católica. O Ensaio é uma cultura
dos negros, dos familiares negros que passaram para seus descendentes. Além disso, o quilombola ressalta a ancestralidade
presente no ritual; no caso de sua família, o destaque nas narrativas é para Seu Antônio Zabela, Rei do Congo e guia-geral da
Irmandade do Rosário dos Teixeiras. Seu João Manoel lamenta não ter aprendido mais detalhes com seu pai. Nas palavras
narradas, ele comenta muito sobre “sabedoria”, destacando o
quanto o pai era conhecedor do ritual e o quanto ele não havia
aprendido por falta de interesse.
Quando pergunto se Seu Antônio Zabela era do Ensaio, Seu
João Manoel responde “era e era mesmo”, apontando para o
comprometimento do seu familiar. Porém, cabe ressaltar que
Seu João Manoel tem 82 anos de idade e, portanto, já participou
de muitos Ensaios com a Irmandade e mesmo com esta idade dança e toca tambor nas noites do ritual, demonstrando fé
60. Entrevista realizada com Seu João Manoel e seu filho Cristiano Silva,
Mostardas, maio de 2018.
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MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
na Santa e comprometimento com a Irmandade. Percebi, nos
relatos dos entrevistados, uma nostalgia, pois quando jovens
alguns não tiveram interesse em aprender com seus ancestrais
e hoje lamentam não ter aproveitado a oportunidade. Porém,
ao estar presente no Ensaio, percebi o quanto os ensinamentos
dos ancestrais estão presentes. Mesmo que muitos quilombolas
destaquem a pouca sabedoria, é notória a dedicação de cada
dançante; afinal, a Irmandade ainda persiste em pleno século
XXi; são mais de 300 anos. Seu João Manoel comenta que desde
adolescente o pai o “puxava” para o Ensaio, mas que somente
começou a acompanhá-lo quando foi residir nas proximidades.
Compreendo a fala de Seu João Manoel, pois pelo que escutei,
há mais de duas mil cantigas que podem ser utilizadas no ritual;
logo, é necessária muita experiência para aprender e saber em
quais momentos devem ser utilizadas, pois há momentos específicos para cada uma delas. Conforme Cristiano Silva explica,
há cantigas da madrugada que “mexem com as estrelas” e que
não devem ser entoadas fora deste momento.
Retomando a entrevista, Seu Manoel assumiu o Ensaio com
o Seu Orlando, que após a morte de Seu Antônio Zabela passou
a ser o Rei do Congo. Conforme argumenta Cristiano, após o
falecimento de Seu Orlando, ele assumiu a responsabilidade
do grupo, sendo um dos guias-gerais e guardião da caixinha
de Nossa Senhora do Rosário, considerada uma relíquia pelos
irmãos e devotos da Santa. Já Seu Madir, que apresentarei na
sequência do texto, passou a ser o Rei do Congo. Retornando
às tarefas de Cristiano, ele também mobiliza e organiza o grupo,
tanto para pagamentos de promessas quanto para as apresentações. Cristiano recebe o apoio de Seu Jaci, também guia-geral
da Irmandade dos Teixeiras.
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"Ô Chora Makambra, Chora Nauê"
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Pelos relatos orais, percebe-se que somente se faz uma promessa à Santa quando é algo quase impossível de ser atendido,
conforme argumenta Sandra:
Sandra Lucia Lopes da Silva: O Ensaio de Pagamento de
Promessa é uma promessa cara, é uma promessa muito forçada. Onde os 12 homens dançam e cantam a noite
toda. Tem que manter a voz, tem que ficar forte, sem dormir. Dançar e cantar não é nenhum tipo de brincadeira.
Então eu sempre comento uma promessa de pagamento de
Ensaio é assim, somente... Nós, católicos, temos as nossas
crenças. Faço uma promessa, se eu perco meu anel, por
exemplo, ah, perdi meu anel, vou acender uma velinha
para o Negrinho do Pastoreio para achar meu anel. Ou nós,
que moramos na campanha, estamos com um animal que
está com problema, vou acender uma velinha para o Negrinho do Pastoreio. É um certo de pagamento de promessa.
Mas a promessa para pagamento em Ensaio não é dizer
que perdi um anel. A promessa de pagamento de ensaio
é justamente uma coisa muito forçada, para salvar uma
vida. Já aconteceu na nossa Irmandade, tu estares com
uma dificuldade, tu estás lá na tua faculdade, é o último
bimestre, tu não tens o que fazer, já não tens condições
de estudar para alcançar aquela nota. Então tu recorres à
Nossa Senhora do Rosário. Já aconteceu de vir uma colega
nossa de Porto Alegre, da faculdade da UFrgs. Ela ligou na
época para nosso antecessor, que era o José Nilo, também
meu primo, hoje já falecido.
Claudia Daiane: Desculpa, não entendi o que ele era.
Era guia, hoje já falecido. A nossa amiga ligou de Porto
Alegre para o José Nilo e pediu “rezem por mim, eu vou
a Tavares e pago a promessa se eu conseguir alcançar a
média na faculdade”. E isto ela fez, ela veio de Porto Alegre
a Tavares e pagou a promessa de Ensaio. Então eu sempre digo, têm vários testemunhos de salvar a vida. Como
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MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
quando minha mãe esteve doente, depois na Furg, em Rio
Grande, pegou uma infecção generalizada, ela ficou 22 dias
sem colocar nem água na boca porque não podia. Foi um
caso muito cruel. Eu lá dentro do hospital acompanhando
minha mãe e meu irmão aqui também como devoto, sem
sabermos um do outro, dizemos que se trouxéssemos nossa mãe sã e salva faríamos uma noite de Ensaio e assim
fizemos. Mas, era para salvar vida. Como nós somos agricultores, moramos no interior da campanha... uma safra
ameaçada, porque uma safra é todo o lucro de um ano de
trabalho de um ser humano, duma família, não é um ser
humano, é uma família. Então fazemos a promessa, uma
safra ameaçada, salvar vida, uma dificuldade na faculdade.
Eu costumo dizer quanto tudo está perdido recorremos à
Nossa Senhora do Rosário. Não pela falta de fé, pela falta
de crença. Mas sim por que recorremos e prometemos
esta noite de Ensaio, quando é uma coisa séria e cara 61.
O relato de Sandra aponta para uma fé enorme na Santa e
que há pedidos específicos para serem feitos à Nossa Senhora
do Rosário e pagos em Ensaio; são aqueles “sérios e caros”, ou
seja, aqueles que envolvem doença, lavoura ou estudos. A afirmação “quanto tudo está perdido, recorremos a Nossa Senhora
do Rosário” demonstra o tamanho da fé dos camponeses negros
litorâneos na Santa, pois os camponeses negros não estão sós,
pois têm a quem recorrer nos momentos mais difíceis de suas
vidas. Têm de um lado a ajuda da Santa com o pedido atendido
e têm a ajuda da Irmandade que, assim como na sua origem,
mantém-se como uma rede de parentesco, solidariedade e fé.
Cabe pontuar que a Irmandade não atende somente ao chamado de promesseiros negros, há relatos de Ensaios cujos promesseiros eram brancos.
61. Entrevista realizada com Sandra Lucia Lopes da Silva, Mostardas, maio
de 2018.
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MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Seu Hirto, quilombola de Teixeiras e pandeirista da Irmandade de Teixeiras, comenta sobre as promessas do Ensaio e
traz novos elementos que ajudam a compreender este ritual.
Claudia Daiane: Por que se faz um ensaio?
Seu Hirto: Às vezes a gente faz uma promessa para qualquer coisa, como antigamente se fazia um Ensaio, de
repente um desespero, até mesmo por que naquela época as casas eram mais ruins, dava muito incêndio. E às
vezes a pessoa se via aflita em ver uma casa queimando. E
a pessoa dizia “se salvasse ao menos a família ou alguma
coisa eu até faria um Ensaio de Promessas”. O Ensaio era
um sacrifício, não era uma tarefa fácil. Nunca se paga uma
promessa com coisa fácil, tem que ser com coisa difícil.
Daí de repente parece que recebiam aquela bênção, conseguiam eliminar aquele incêndio, ou até mesmo alguém afogado, então prometiam aquele Ensaio, que é uma religião
de descendente de africanos que veio da África e como os
africanos vieram para o Brasil... Inclusive aqui, esta nossa localidade é quilombola, que só habita negros. Hoje já
está se expandido, mas era habitada só por negros, então
todo negro tinha a devoção de Nossa Senhora do Rosário.
Então se fazia aquela promessa e o dono da promessa tinha
que fazer aquele sacrifício. As danças, a reza começava às
seis horas da tarde até as seis da manhã e ele tinha que dar
todas as despesas, tinha que fazer aquele sacrifício até conseguir aquilo ali para fazer. E, botava os devotos de Nossa
Senhora para dançarem depois da graça alcançada 62.
Seu Hirto Miguel traz suas memórias sobre o Ensaio e
comenta que o promesseiro faz a promessa em um momento
de “desespero”, de “aflição”. Portanto, ele retifica o que Sandra
Lúcia comentou. Desse modo, para Seu Hirto, no momento de
62. Entrevista realizada com Seu Hirto Miguel, na comunidade de Teixeiras
em maio de 2018.
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MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
desespero, durante um incêndio ou afogamento, o devoto faz
a promessa, momento em que assume o compromisso que, se
atendido, realizará o Ensaio. O quilombola destaca que o Ensaio
tem suas origens na África e aponta para um território negro
em Teixeiras, salientando que o espaço é uma região quilombola. Diante deste passado com origens africanas, argumenta que
a devoção estava presente em todos os negros. O promesseiro
pode demorar a pagar o Ensaio, pois necessita de tempo para
juntar o valor necessário, pois o pagamento é um “sacrifício”.
O Ensaio de Pagamento de Promessas a Nossa Senhora do
Rosário, ou Ensaio de Quicumbi que foi realizado nos dias cinco
e seis de maio de 2018, visou a agradecer o pedido do promesseiro, Seu Luís Faustino, que há dois anos havia feito a promessa que se caso ficasse recuperado de um infarto pagaria com
um Ensaio.
Claudia Daiane: E este pagamento exige todo um preparo
do promesseiro com alimentação?
Seu Luís Faustino: Existe todo um preparo de alimentação.
O Ensaio... quando se faz um voto pra Nossa Senhora de
pagar um Ensaio de Promessa, conforme você faz, você
tem que pagar. Quando você faz um voto, por exemplo, eu
fiz um voto pra Nossa Senhora que eu iria pedir ajuda a
todos irmãos das Irmandades para fazer este Ensaio, porque tem um custo. E tudo que sobrasse desta nossa festa
iríamos fazer doação e amanhã de manhã vamos entregar tudo que sobrar, daqui vamos para uma instituição,
que é Apae de Mostardas. Então, ele tem um custo. Mas,
conforme eu fiz a promessa, eu paguei. Eu pedi doação
para todos os meus irmãos. Um deu uma galinha, outro
deu quilo de massa, outro deu meio quilo de café, outros
trouxeram pão. E tudo que sobrar, eu vou doar 63.
63. Entrevista realizada com Seu Luís Faustino, Mostardas, maio de 2018.
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MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
O relato de Seu Luís Faustino aponta para a existência de
uma rede de solidariedade entre os escravizados que se estende à atualidade. O quilombola comenta que, antigamente, na
época da escravidão, seus ancestrais pagavam o Ensaio a partir da arrecadação de doações depositadas na Caixinha. Neste
contexto, teria surgido o dito “correndo sete Senhora”, quando uma pessoa não estava em casa fazendo alusão àqueles que
iam em cada residência da comunidade solicitar doações. Seu
Luís Faustino, ao fazer seu voto a Nossa Senhora do Rosário,
informou que iria pedir ajuda a todos os irmãos para pagar
sua promessa e assim fez,cada irmão ajudou com alguma alimentação. Além de servir para pagar parte do Ensaio daqueles
promesseiros que não têm condições econômicas, o dinheiro arrecadado com a Caixinha também servia para comprar
alimentos para as pessoas pobres. A fala de Seu Luís é muito
rica e aponta para uma rede extremamente importante para
o litoral do Rio Grande do Sul, pois no dia do Ensaio havia as
duas Irmandades que unidas dançaram noite adentro pagando a promessa. Além disso, o Ensaio só foi possível porque os
irmãos doaram alimentos para serem servidos durante as mais
de doze horas do ritual.
A Irmandade do Rosário dos Homens Pretos de Nossa
Senhora, fundada no século XViii, em Mostardas, revive, em
cada Ensaio, em cada devoção, em cada promessa, a fé na Santa.
A fé na Santa é ativada em vários momentos do cotidiano e já
analisamos o quanto o livro de arrecadação e a Caixinha possuem um significado para os devotos, mas nos momentos de
“desespero”, de “aflição”, “que tudo está perdido”, os camponeses negros acionam as promessas de Ensaio. Pagar um Ensaio
é uma tarefa “séria”, “pesada”, “não é nenhuma brincadeira” e
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MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
envolve um grande gasto econômico e sabemos o quanto não
pagar uma promessa pode ser perturbador para o promesseiro
e, em caso de sua morte, de seus familiares. Daí a importância
da Caixinha, que concentra as arrecadações dos devotos dispostos a ajudar os promesseiros sem condições econômicas.
Conclusão
Ramos (2015, p. 142) traz uma importante reflexão sobre o
Ensaio, pois o considera não apenas como uma tradição ou
devoção, pois há aspectos de territorialidade, já que “o território negro se estende e percorre a região quando ocorre o
Ensaio, e, ainda, os seres extra-humanos – também relacionados ao processo – territorializam e se territorializam”. O
território negro estende-se e percorre a região, pois a Irmandade vai pagar o Ensaio no local escolhido pelo promesseiro. No
Ensaio que esta historiadora observou, os camponeses negros
levaram sua cultura para a área urbana de Mostardas.
Destaco que embora os irmãos sejam todos homens, as
mulheres são de extrema importância para a manutenção do
Ensaio, são elas que além de serem a memória do grupo organizam o espaço onde será realizado o ritual, cuidando da decoração do altar e da feitura da alimentação. A Irmandade só existe/
resiste por que as mulheres negras dão o suporte necessário
para que os homens possam dançar por mais de 12 horas em
agradecimento à Santa.
Referências
aLBerTi, Verena. aLBerTi, Verena. Fontes Orais - Histórias dentro da
173
"Ô Chora Makambra, Chora Nauê"
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
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174
"Ô Chora Makambra, Chora Nauê"
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
siLVa, Luis Faustino.Luis Faustino Silva: depoimento [maio de 2018] Entrevistadora: Claudia Daiane Garcia Molet.
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MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Memória e patrimônio na atividade
turística: aspectos explorados para o
desenvolvimento do turismo no Brasil
Charlene Brum Del Puerto 64
Maicon Farias Vieira 65
Introdução
A memória e patrimônio na atividade turística são utilizados
para divulgar e valorizar objetos, lugares e feitos históricos que
se quer, sob algum modo, mostrar e salvaguardar. Seja pela
exploração comercial turística ou pela importância histórica e
social que tal atrativo possua, o fato é que a memória e o patrimônio são utilizados em diversas vertentes do turismo, sendo
estes os principais aspectos explorados pela atividade turística.
É fato que o turismo de sol e praia é predominante no Brasil,
contudo a visitação feita em função dos lugares histórico-culturais no País não pode ser desconsiderada e está mediada de
certo modo pela memória e patrimônio. Pode se dizer que o
turismo é um modo de sociabilizar os bens patrimoniais presentes no cotidiano de quem recebe os turistas. A memória
neste caso contribui para rememorar e dar evidência àquilo
que o emissor quer que seja percebido pelo visitante; tanto pela
inibição ou pela recriação de fatos.
64. Mestrado em Turismo pela Universidade Federal de Pelotas; Oficial Administrativo pela Secretaria de Desenvolvimento Turismo e Inovação; charlenedelpuerto@bol.com.br
65. Mestre em Educação pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense - Campus Pelotas; Professor na Prefeitura Municipal
de Pelotas; maiconfariasvieira@gmail.com
176
Memória e patrimônio na atividade...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Cabe relevar que a definição sobre o que é ou não considerado patrimônio possui relação direta com a sociedade em
questão. Nesse sentido, Barreto (2003) explica que o que se
reconhece como culturalmente relevante para que seja um
patrimônio varia segundo a ideia que se tem de cultura, a qual
respeita a história e as relações sociais.
O turismo contribui para a reconstituição da memória a
qual é sempre fluida, por consequência, contribui para a perpetuação do patrimônio. Tanto o patrimônio quanto a memória
não podem ser definidos como algo específico e único, devido
à sua diversidade de significações e interpretações possíveis.
Nem é o objetivo deste texto esgotar as ideias de memória e
patrimônio, mas estabelecer aqui o entendimento adotado para
este debate.
Isto posto, este trabalho objetiva debater a importância da
memória e do patrimônio para o turismo no Brasil, com metodologia pautada em Gil (2014). Após esta introdução, segue a
metodologia, o referencial teórico acrescido de interpretações,
as considerações finais do trabalho e referências utilizadas
neste artigo.
Procedimentos metodológicos
A metodologia deste trabalho caracteriza-se por ser qualitativa
exploratória. Segundo Kauark, Manhães e Medeiros (2010, p.
6), na pesquisa qualitativa não é possível quantificar os dados,
e a interpretação dos fenômenos e a atribuição de significados
são procedimentos básicos na pesquisa neste tipo de pesquisa:
[...] O ambiente natural é a fonte direta para coleta de
dados e o pesquisador é o instrumento-chave. É descritiva.
177
Memória e patrimônio na atividade...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Os pesquisadores tendem a analisar seus dados indutivamente. O processo e seu significado são os focos principais
de abordagem (KaUarK, ManHÃes E Medeiros, 2010, p. 6).
É neste sentido de interpretação dos fenômenos que segue
o curso do trabalho, já que se trata de explanações sobre a relação entre memória, turismo e patrimônio. Gil (2014) explica
que a pesquisa qualitativa exploratória proporciona visão geral
aproximando ideias.
O trabalho não se compõe de um método rígido, estanque,
mas sim de uma caminho pautado na ciência contemporânea
conforme aponta Baptista (2014, p. 347) 66; “[...] caminho este
de trânsito, de mistura, de costura de saberes e de questionamento a respeito da pré-visão [...] ”. Pré-visão entendida aqui
como uma ideia inicial pensada a partir da reflexão da proposição deste trabalho.
Para compor o corpo teórico deste estudo foram utilizados
textos sugeridos pelos pares, e também, trabalhos debatidos ao
longo do percurso acadêmico. Busca-se correlacionar as temáticas descritas, fazendo interpretações e inferências possíveis
relativas ao objetivo do trabalho.
Referencial teórico: a tríade memória, patrimônio e turismo
Pensar sobre o patrimônio e a memória é uma ação sempre
complexa, já que ambos estão entrelaçados e enraizados em
66. Baptista (2014) propõe em seu procedimento metodológico ‘Cartografia
dos Saberes’, trilhas, caminhos a serem percorridos na investigação científica. São trilhas a serem seguidas, de forma fluida, sem aprisionamentos,
que, ao mesmo tempo em que orienta o pesquisador a ter uma pesquisa coesa,
permite os atravessamentos, apropriando-se de ideias que surgem durante o
percurso da investigação. Ainda que tenha uma lógica coerente, não se trata
de um procedimento fixo, rígido.
178
Memória e patrimônio na atividade...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
muitas interfaces. São muitas as possibilidades de compreender conceitualmente ambas as áreas, mas é significativo destacar que elas possuem relação íntima e não se limitam a uma
ideia única e sintética.
O patrimônio, por exemplo, não se limita ao sentido de
herança, e a memória não se relaciona apenas com as lembranças, com aquilo que aconteceu um dia. Ambos possuem
vínculo forte com o presente, já que trazem consigo a significação para o que representa hoje. Memória e patrimônio são,
neste sentido, resultados de experiências, vivências, trazidos
à tona na memória coletiva e individual 67. É o hoje revisitando
o passado, relatando, interpretando e dando sentido ao que
está narrado ou representado no agora.
Ainda que haja fluidez nos conceitos de memória e patrimônio, cabe neste texto trazer algumas ideias adotadas para
melhor entendimento da proposta do trabalho. O patrimônio,
segundo Ferreira, Cerqueira e Rieth (2009, p. 92), é o “resultado de um reconhecimento e outorga de valor, o que se dá
no âmbito das relações sociais e simbólicas que são tecidas ao
redor do objeto ou do evento em si”.
Já a memória contempla os pensamentos rememorados a partir de outros grupos ou indivíduos. Nesse sentido, segundo Halbwachs (2013, p. 72), “o funcionamento da memória individual não
é possível sem esses instrumentos que são as palavras e as ideias,
que o indivíduo não inventou, mas que toma emprestado de seu
ambiente”. Isto significa que a memória, apesar de possuir uma
relação óbvia com aquilo que já ocorreu, é recriada com os elementos que estão presentes no momento da rememoração.
67. Para aprofundar o assunto, sugere-se o livro Memória Coletiva, de Maurice Halbwachs, o qual contempla a memória coletiva e individual.
179
Memória e patrimônio na atividade...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
O patrimônio, assim sendo, é evocado pela sua representação material e imaterial através da memória como uma reminiscência do passado, no tempo presente. Estabelece-se assim,
um vínculo de pertencimento que pode ser forjado pela memória. Reconhecer o patrimônio como um item da memória implica em delimitar os sentidos que irão existir nesta relação.
Para Le Goff (2003, p. 419) a memória tem como prioridade, [...] conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o
homem pode atualizar impressões ou informações passadas,
ou que ele representa como passadas 68.
O turismo relacionado ao patrimônio no Brasil também se
pauta na evocação do passado através da rememoração, sendo estas descritas e/ou narradas aos turistas. É também este
patrimônio pautado no passado e trazido à tona na memória
que atrai os visitantes. Eugenia Meyer (2009) explica que o objetivo da memória é o de dar sentido as nossas vidas. “[...] trata-se permanentemente de lutar contra o esquecimento, para
impedir que a memória chegue a um fim, a um término, à sua
conclusão [...]” (MeYer, 2009, p. 43).
O patrimônio, seja material ou imaterial, é uma forma de
rememorar, sendo um vínculo com o tempo passado, recriado
para o presente, para que as ações humanas sejam lembradas.
Considera-se assim, o patrimônio, como um acionamento da
memória existente através de objetos e espaços.
Pierre Nora expôs que o ser humano precisa criar estes
espaços de memória, pois […] “se habitássemos ainda nossa
68. Recomenda-se a leitura completa da obra História e Memória de Jacques
Le Goff. A obra traz muitas transversalidades e possibilidades de novos acionamentos conceituais sobre memória.
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Memória e patrimônio na atividade...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
memória, não teríamos necessidades de consagrar lugares” (nora, 1993, p. 8). É nesse sentido, entre outros, que a
memória se relaciona com o patrimônio. Os lugares patrimoniais são necessários para trazer à tona à memória sendo
o patrimônio um dos suportes para que ela se mantenha. O
patrimônio também se perpetua através da reconstrução da
memória, a qual será contada através de uma narrativa para
quem visita o lugar.
No entanto, o turismo, enquanto fenômeno social, deve
propor experiências e não impor culturas aos visitantes; a atividade turística precisa ser fomentadora da salvaguarda, do
estímulo ao uso da memória como um recurso importante para
a proteção do patrimônio.
O interesse do turismo pelo patrimônio pode ter um significado positivo contribuindo para a sua proteção física e
recuperação, além da divulgar sua importância estimulando, assim, a inserção dos bens na dinâmica social, dando-lhe uma função e retirando-os da condição de isolamento
(sCiFoni, 2006, p. 5).
O patrimônio é uma forma de rememorar, de lembrar os
feitos humanos em diferentes períodos e lugares. É uma tentativa de demonstrar outros tempos cronológicos, no período
presente, buscando manter as características da qual exista
ainda uma identificação, uma identidade. “O que se deve ter
em conta é a difusão da existência de uma série de bens e a consideração pela sua preservação enquanto elementos de identidade de outras sociedades, ou das identidades nacionais que
se construíam” (CaMargo, 2010, p. 60).
Isto vai ao encontro do que expõe Pollak (1992) sobre
a memória, a qual “[...] é um elemento constituinte do
181
Memória e patrimônio na atividade...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na
medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma
pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si”. O autor
explica também que:
[…] Além desses acontecimentos, a memória é constituída
por pessoas, personagens. Aqui também podemos aplicar o mesmo esquema, falar de personagens realmente
encontradas no decorrer da vida, de personagens frequentadas por tabela, indiretamente, mas que, por assim dizer,
se transformaram quase que em conhecidas, e ainda de
personagens que não pertenceram necessariamente ao
espaço-tempo da pessoa. […] Além dos acontecimentos e
das personagens, podemos finalmente arrolar os lugares.
Existem lugares da memória, lugares particularmente ligados a uma lembrança, que pode ser uma lembrança pessoal, mas também pode não ter apoio no tempo cronológico
(PoLLaK, 1992, P. 2-3).
A memória e patrimônio, aqui, demonstram ser interdependentes, a memória sendo atual, também traz ao patrimônio a condição de sua relação com o hoje, com o agora. É uma
acumulação e, também, a reconstrução de significados que
contribuem de modo relevante para evitar o desprendimento
com o passado, tentando com isto evitar o esquecimento.
O turismo no Brasil, ao se apropriar do patrimônio para
desenvolver suas atividades, tem forte relação com a chamada ‘história oficial’, trazendo à memória os fatos considerados
como significativos para serem relatados sobre o patrimônio
visitado. A história oficial é sim uma potencialidade, mas não
se pode deixar de mencionar a potencialidade daquilo que não
está registrado oficialmente, como, por exemplo, a memória
182
Memória e patrimônio na atividade...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
dos moradores, a qual agrega valor ao produto turístico e à
experiência do visitante.
No entanto, tal memória, a não oficial, dificilmente extrapola o convívio de grupos, já que precisa estar contextualizada para que faça sentido e ser transmitida a outros, neste caso,
aos turistas.
Os artifícios que delineiam o processo de aquisição, armazenamento e evocação da memória são extremamente
complexos e sua eficiência depende do contexto em que
acontecem. O estado de humor, a atenção e as emoções,
presentes com o indivíduo, irão influenciar, tanto a sua
obtenção, como a sua recordação (soUza E saLdado, 2015,
P. 148).
É no espaço construído entre patrimônio e memória que se
faz necessário maior utilização pela atividade turística. Ainda
que haja potencialidade no patrimônio brasileiro, material ou
imaterial, essa temática parece estar marginalizada, seja pela
dificuldade de manutenção dos bens, seja pela demanda ainda
não ser tão significativa quanto é na Europa, já que lá, a busca
pelo turismo em função do patrimônio por artefatos que contribuem para a rememoração é maior.
Paoli (1992, p. 2), explica, contudo, que a cidadania está
diretamente relacionada ao passado.
O reconhecimento do direito ao passado está, portanto,
ligado intrinsecamente ao significado presente da generalização da cidadania por uma sociedade que evitou até agora fazer emergir o conflito e a criatividade, como critérios
para a consciência de um passado comum. Reconhecimento que aceita os riscos da diversidade, da ambiguidade das
lembranças e esquecimentos, e mesmo das deformações
variadas das demandas unilaterais. Arrisca-se a encontrar
183
Memória e patrimônio na atividade...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
as solicitações por uma memória social que venham baseadas em seu valor simbólico, mesmo que sejam locais,
pequenas, quase familiares. Não teme restaurar e preservar o patrimônio edificado sem pretender conservar
o antigo ou fixar o moderno. Orienta-se pela produção
de uma cultura que não repudie sua própria historicidade, mas que possa dar-se conta dela pela participação nos
valores simbólicos da cidade, como sentimento de ‘fazer
parte’ de sua feitura múltipla.
A memória acrescenta valor ao patrimônio enquanto um
produto turístico. Ela é de certo modo uma estratégia importante para preservar e divulgar os aspectos identitários de um
lugar, principalmente daqueles com relevância histórica e cultural que podem ter fins turísticos.
A narrativa feita ao visitante durante a atividade turística
surge como uma forma de descrever um feito, um acontecimento, um fato, ainda que seja de forma limitada.
Camargo (2010) em seu trabalho intitulado ‘Patrimônio Histórico e Cultural 69’ aponta que “a capacidade descritiva compondo um cenário, com minúcias sobre os traços físicos dos
personagens e o detalhamento dos objetos que portam ou os
cercam, são referências necessárias para alcançar os objetivos
desejados (CaMargo, 2010, p. 62).
Entende-se com isto que a memória e o patrimônio no uso
turístico são aquelas relacionadas aos fatos oficiais, chancelados, reconhecidos. O fato é que tanto a memória quanto o patrimônio possuem seus caminhos, seus eixos capaz de auxiliarem
na condução de relações interpessoais ainda mais próximas
com a atividade turística, no entanto, há um longo caminho a
69. O livro trata do patrimônio histórico- cultural e suas aproximações com
o turismo, como, por exemplo, o valor econômico, infraestrutura, Gran Tour,
entre outros.
184
Memória e patrimônio na atividade...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
se percorrer, começando pela valorização efetiva do patrimônio atrelado à memória.
Conclusão
A ideia de patrimônio é necessária, pois mantém ativos/vivos
os elementos que compõem parte da história e da vivência da
humanidade, sendo significativos para o indivíduo e para a coletividade. O sentimento de pertencimento que abarca o patrimônio é composto de acontecimentos, materializados ou não,
e que são externados, narrados, através do que está contido
na memória.
Memória esta com dimensões múltiplas e que traz à tona um
passado que por muitos motivos se interliga ao presente. É essa
fluidez da memória que muitas vezes ressignifica o patrimônio
rememorado e faz com que este se mantenha presente, vivo.
Os usos sociais do patrimônio, que envolve passado e presente, são abarcados também pelo turismo, que tem o patrimônio e, por consequência, a memória, como os principais
aspectos explorados para o desenvolvimento das atividades
turísticas. Ainda assim, a utilização para o turismo do patrimônio e memória brasileira é muito insipiente.
O alto custo da manutenção do patrimônio e a pouca utilização e entendimento sobre a importância da memória para o
turismo implicam na dificuldade em tramar a relação entre as
temáticas/áreas. No turismo a escolha de certos marcos simbólicos para uso na atividade limita todo o potencial que o patrimônio e memória podem oferecer à atividade.
O fato é que há muito para se pesquisar e debater sobre a tríade: memória, patrimônio e turismo. O assunto não é estanque
185
Memória e patrimônio na atividade...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
e tampouco se esgota; seja pela complexidade no debate entre
patrimônio e memória, ou ainda pela definição do papel do
turismo frente a estes, a discussão precisa ser aprofundada e amplamente divulgada e debatida, para que a apropriação pelo turismo destas temáticas seja feita de forma sensível
e consciente.
Referências:
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Turismo: Proposições Metodológicas para uma Ciência em Mutação.
In: Rosa dos Ventos, v. 6, p. 342-355, 2014b.
BarreTo, Margarita. Turismo e legado cultural: as possibilidades do planejamento. 2°ed. Campinas: Papirus, 2003.
CaMargo, Haroldo Leitão. Patrimônio Histórico e Cultural. 3ª. ed. São
Paulo: Aleph, 2002.
Ferreira, Maria Letícia Mazzucchi; CerQUeira, Fábio Vergara; rieTH, Flávia Maria da Silva. In: O doce pelotense como patrimônio imaterial:
diálogos entre o tradicional e a inovação. Revista Métis: História e Cultura, Caxias do Sul, v. 13, n.2, 2008. Disponível em:<http://www.ucs.br/
etc/revistas/index.php/metis/article/view/696> Acesso em 17/10/2018.
giL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed.- 6.
reimpr. - São Paulo: Atlas, 2014.
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MeYer, Eugenia. O fim da memória. In: Revista dos Estudos Históricos.
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PaoLi, Maria Célia. Memória, história e cidadania: o direito ao passado.
In. O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo:
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186
Memória e patrimônio na atividade...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
PoLLaK, Michael. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos,
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nora, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto história. Revista do Programa de Estudos em Pós-Graduados em
História e do departamento de História da PUC, São Paulo, n.10, 1993,
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sCiFoni, Simone. A Unesco e os patrimônios da humanidade: valorização
no contexto das relações internacionais. In: JaCoBi, P; Ferreira, L. da
C. (Orgs.). Diálogos em ambiente e sociedade no Brasil. São Paulo:
Annablume, 2006.
soUsa, Aline Batista de; saLgado, Tania Denise Miskinis. Memória, aprendizagem, emoções e inteligência. In: Revista Liberato, Novo Hamburgo, v. 16, n. 26, p. 101-220, jul./dez. 2015. Disponível em: https://www.
lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/132515/000982720.pdf?sequence=1. Acesso em: 26 jan. 2019.
187
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Registrando para o futuro: fotografia
e patrimônio histórico-documental de
São Gabriel
Melina Pereira 70
Glaucia Vieira Ramos Konrad 71
Este trabalho visa a apresentar o registro fotográfico das edificações de São Gabriel. Os registros fotográficos utilizados
nesta pesquisa compreendem as décadas de 1920 a 1941, as edificações foram construídas no período de 1800 a 1940, com o
objetivo de identificar cada edificação, contar a história de cada
uma, perceber as modificações e a preservação das edificações.
A possibilidade de poder mostrar a consolidação do patrimônio cultural e histórico de São Gabriel, sua trajetória através
do registro fotográfico, será extremamente encantadora e de
grande valia para que sua memória não se perca. Parafraseando Rieth (2007, p.26), “descrevo o histórico de São Gabriel com
seus casarões, que trouxeram a beleza e a nobreza à “ Terra dos
Marechais ”[...]”. Este trabalho segue este sentimento de valorização deste patrimônio a partir do documento fotográfico.
Cidade de origem hispano-portuguesa São Gabriel é conhecida como Terra dos Marechais. Lugar onde viveram o Coronel
José Plácido de Castro, líder da revolução acriana, de Alcides
Maia, primeiro gaúcho a ingressar na Academia Brasileira de
Letras (aBL); e cidade onde nasceu o presidente Hermes da
70. Autora: Melina Pereira Arquivista e Técnico de Arquivo- Prefeitura Municipal de São Gabriel.
71. Orientadora: Glaucia Vieira Ramos Konrad ; Profª Drª. Universidade Federal de Santa Maria.
188
Resgistrando para o futuro
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Fonseca. Lá também morreu o índio missioneiro Sepé Tiarajú,
que lutou contra portugueses e espanhóis. Aliar o estudo da
arquivologia, ciência que trata os documentos, não importando seu suporte, com o fascínio da fotografia, neste sentido, a
fotografia/documento, se revela num poderoso instrumento
de reativar a memória e de conscientização para a preservação.
Este trabalho foi realizado por meio de estudo e análise do
Registro Fotográfico das edificações de São Gabriel entre o ano
de 1800 a 1940, demonstrando a importância da fotografia
como documento arquivístico. As etapas desenvolvidas foram:
a elaboração do referencial teórico, a pesquisa do registro fotográfico foi realizada no arquivo pessoal de Isaias Evangelho,
não se sabe a data específica das fotografias, as mesmas estão
digitalizadas e sem nenhum tratamento arquivístico digital. A
etapa final foi a seleção de 23 edificações: estação da estrada
de ferro, três escolas, dois clubes, três igrejas, loja Maçônica
Rocha Negra, hospital, Prefeitura Municipal, sobrado da praça, banco, Instituto Lar das Meninas, teatro e sete residências.
As fotografias analisadas mostram o passado das edificações, o tratamento do patrimônio cultural de São Gabriel e a
importância da sua preservação. Após a seleção das fotografias,
o segundo passo foi fotografar as edificações entre 2016 e 2017.
Patrimônio Cultural
A Constituição Federal de 1988 define patrimônio cultural e
propõe políticas para a sua manutenção e preservação. Neste
sentido, no:
Art. 216 Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens
de natureza material e imaterial, tomados individualmente
189
Resgistrando para o futuro
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
ou em conjunto, portadores de referência à identidade,
à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira nos quais se incluem: I - as formas
de expressão; ii - os modos de criar, fazer e viver; ii - os
modos de criar, fazer e viver; iii - as criações científicas,
artísticas e tecnológicas; iV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios
de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico (BrasiL, 1988).
De acordo com Silva (2011, p.407)
O Patrimônio Histórico Cultural representa uma parcela importante na riqueza de muitas cidades e regiões. É a
identidade de um povo nas provas físicas que recordam os
atos e feitos de nossos antepassados, embora, por muito
tempo, esse patrimônio não tenha sido encarado como
um bem de natureza econômica, e, portanto, de natureza
produtiva, capaz de gerar uma série de serviços e benefícios para a sociedade.
Concordando com a ideia de Silva de que o patrimônio é
uma riqueza de natureza produtiva que gera serviços e benefícios, na mesma lógica, Horta (1999, p.9) diz que “nada substitui o objeto real como fonte de informação sobre a rede de
relações sociais e o contexto histórico em que foi produzido,
utilizado e dotado de significado pela sociedade que o criou”.
Patrimônio arquitetônico consiste em tudo aquilo que se pode
ver e se pode tocar.
Patrimônio Arquivístico Documental
Os documentos são criados para atender uma demanda, não
importando seu suporte ou conteúdo, ou seja, estão unidos
190
Resgistrando para o futuro
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
entre si por sua organicidade, gerando uma informação.
De acordo com o Arquivo Nacional, (1995, p. 11),
Documento é toda informação registrada em um suporte
material, suscetível de ser utilizada para consulta estudo,
prova e pesquisa, pois comprova fatos, fenômenos, formas de vida e pensamentos do homem numa determinada
época ou lugar.
Patrimônio documental arquivístico pode ser qualquer
tipo de documento que registra ou documenta algo, o conteúdo informativo ou suporte no qual se consigna também
pode ser considerado um documento, tal como os casarões de
São Gabriel.
Uma definição de patrimônio arquivístico documental que
dê conta de responder a relação entre documento fotográfico e
o arquitetônico, no caso específico dos casarões de São Gabriel,
encontraram em Lage uma resposta:
Mais do que definir, importa-nos, no entanto, estabelecer
o conceito válido de Patrimônio Documental numa perspectiva teórica que atravessa domínios do conhecimento tão vastos, consolidados e formalizados como o são as
Ciências da Documentação e Informação, a História das
Populações e a Demografia Histórica e os Estudos Culturais e Sociais das Ciências e das Técnicas, e na perspectiva
prática da sua compreensão necessária à sua salvaguarda,
difusão e desenvolvimento (Lage, 2002, p. 14).
Nesse sentido, o patrimônio arquivístico documental está
relacionado ao tratamento dispensado aos documentos, em
razão do seu valor histórico, mas também à memória e à preservação destes.
Para Rousseau e Couture,
191
Resgistrando para o futuro
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
O patrimônio arquivístico comum é composto pelos arquivos que formam uma parte do patrimônio nacional de um
ou de vários estados, que não podem ser divididos sob pena
de perderem o seu valor administrativo, legal ou histórico
(roUsseU e CoUTUre, 1998, p.113).
Rousseau e Couture destacam que os arquivos não podem
ser divididos, porque é uma parte do patrimônio, se forem divididos perdem o seu valor; conforme o Princípio da Organicidade os documentos têm que ter uma relação entre si.
Fotografia
Como forma de memória a fotografia trás a preservação da
sua essência intrínseca do significado do passado, mostrando
a mudança ao longo do tempo. A fotografia nada mais é que a
luz esculpida, dando forma a algo que queremos guardar para
sempre.
A relação entre a noção de tempo, lugar e memória também
é destacada por Dubois.
De acordo com ele,
É evidente que num primeiro tempo a fotografia pode
intervir em tais práticas como simples meio de arquivagem, de suporte de registro documentário do trabalho do
artista in situ, ainda mais porque esse trabalho se efetua
na maioria das vezes num lugar (e às vezes num tempo)
único, isolado, cortado de tudo e mais ou menos inacessível, em suma, um local e um trabalho que, sem a fotografia, permaneciam quase desconhecidos, letra morta para
todo o público (dUBois, 1993, p. 283).
Dubois evidencia que a fotografia é um trabalho único. A fotografia certamente é um tempo único que faz com que as lembranças sejam retomadas e guardadas, com um passado em comum.
192
Resgistrando para o futuro
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
O patrimônio documental está inserido num campo denso e complexo de conhecimentos multidisciplinares, que trata
tanto de conhecimentos específicos (arquivologia/fotografia)
quanto amplos (História e Arquitetura), mas todos ligados à
memória e preservação do patrimônio cultural.
Breve História de São Gabriel
A História da cidade de São Gabriel teve início com os
conflitos entre portugueses e espanhóis, a partir do Tratado de Tordesilhas, que repartiu esses dois países. Mais tarde foram definidas as fronteiras com os Tratados de Madri
e Santo Ildefonso. Assinado, o Tratado de Madri entregaria
os Setes Povos das Missões a Portugal, e em troca receberia
a Colônia de Sacramento.
Em 1° de outubro de 1777 foi firmado o Tratado de Santo Ildefonso, uma linha demarcatória foi seguida, que recuou
bastante para o interior do Rio Grande do Sul. O Tratado mencionava um dos pontos que era divisor das águas: o Cerro do
Batovi em São Gabriel.
Segundo Myskiw (2015, p. 55), “a assinatura do Tratado de
Santo Idelfonso, em outubro de 1777, por sua vez, pôs fim aos
conflitos entre castelhanos e portugueses na porção meridional da América do Sul”.
Fundada pelo espanhol Dom Félix de Azara, que era naturalista, matemático, historiador e antropólogo, em 02 de novembro de 1800 estabeleceu a primeira povoação denominada Vila
do Batovi, que tinha como padroeiro o Arcanjo São Gabriel, no
mesmo dia foi feita a planta da Vila, a primeira construção a
ser levantada foi a igreja.
193
Resgistrando para o futuro
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Dom Félix de Azara correspondia-se com Miguel Lastaria, que era secretario do Vice-Rei Marquês de Avilez. Ao todo
foram 36 cartas trocadas, mas somente sete conhecidas. As
sete cartas que foram transcritas por Figueiredo e, na primeira
carta, constava o sofrimento de Dom Felix com a situação do
povoado. Dizia a carta de 12 de dezembro de 1800:
Segundo Figueiredo,
Não há dúvida que Deus dirige estas cousas, pois vemos
que tem prosperado, mais do que se podia pensar, num
desterro como este centro de todas iniquidades. Sofro sem
embargo e tudo ofereço a Deus por meus pecados e sofrerei se assim merecer até quando deixar a pele (FigUeiredo, 1984, p.68).
Em 1801, Dom Félix de Azara parte da Vila do Batovi para
regressar à Corte. Após ser incendiada a Vila do Batovi foi deslocada para uma região chamada “Entre Rios”.
O segundo povoado teve o nome de São Gabriel, que se
formou ao nordeste do Cerro do Batovi, não muito longe da
primeira povoação. Em 1817 São Gabriel do Batovi é transferida para a margem esquerda do Vacacaí e surge então a atual
São Gabriel.
O renomado romancista francês Alexandre Dumas, ao
escrever as memórias de seu amigo Giuseppe Garibaldi, relata que este passou rapidamente por São Gabriel antes de ir
para Montevidéu no Uruguai, e fez um grande amigo, Anzani
um oficial italiano exilado revolucionário que lutou na França.
Dumas enfatiza,
Aproximando-me de São Gabriel, por ocasião da retirada
que não fazia muito tempo efetuáramos, eu ouvira falar de
um oficial italiano dotado de um grande caráter, de uma
194
Resgistrando para o futuro
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
grande bondade e instrução, que, exilado como arbonaro, lutara na França no 5 de junho de 1832, depois no Porto, em Portugal, durante o longo cerco que valera `aquela
cidade o título de “inexpugnável’’, e que enfim, forçado
como eu a deixar a Europa, viera empregar sua coragem
e seu saber a serviço das jovens repúblicas sul-americanas.
Os atos de coragem, de sangue-frio e de força que se lhe
atribuíam haviam-me feito dizer e repetir: “Ao encontrar
este homem, ele será meu amigo’’. Este homem chamavase Anzani (dUMas, 1999, p.144).
Somente em 15 de dezembro de 1859 São Gabriel foi elevada como cidade, pela lei nº 433.
Edificações - Igreja do Galo
Em 1817, conhecida como Igreja do Galo, a Igreja Nossa Senhora do Rosário Bom Fim foi o primeiro templo de alvenaria levantado em São Gabriel, sua torre tinha um galo de bronze, que
em 1985 foi roubado.
Figura 1: Igreja Nossa Senhora
do Rosário Bom Fim
Fonte: Isaias Evangelho
195
Resgistrando para o futuro
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
A Igreja Nossa Senhora do Rosário Bom Fim, em 1994, foi
tombada pelo Iphae (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado). Restaurada em 2011, hoje é o Museu Municipal
Nossa Senhora do Rosário Bom Fim, que é aberto ao público
com várias exposições como: Lanceiros Negros, artes visuais,
fotografias e fósseis.
O galo roubado acabou sendo substituído por outro, e não
houve nenhuma alteração na fachada do Museu - apenas colocada uma grade de ferro e a identificação.
Figura 2: Museu Municipal Nossa Senhora
do Rosário Bom Fim
Fonte: Melina Pereira
Loja Maçônica Rocha Negra nº 1
Foi fundada no ano de 1873, por um grupo de 11 maçons, liderado pelo Dr. Jonathas Abbott, o primeiro Venerável, nos
princípios de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Um fato
histórico marcante da Rocha Negra foi a luta em prol da extinção da escravidão. No ano de 1884 foram expedidas aproximadamente 900 cartas de alforria.
Figura 3: Loja Maçônica
Rocha Negra
Fonte: Isaias Evangelho
196
Resgistrando para o futuro
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Loja Maçônica Rocha Negra nos dias atuais, não recebeu
nenhuma alteração.
Figura 4: Loja Maçônica
Rocha Negra- 2017
Fonte: Melina Pereira
Prefeitura Municipal
A Prefeitura Municipal começou a ser construída em 1918 recebendo o nome de Palácio Plácido de Castro (em homenagem ao
desbravador do Acre). A planta da obra era a cópia fiel do “Capitólio” norte-americano. Em 1924 foi concluída, sendo inaugurada no mesmo ano.
Figura 5: Prefeitura
Municipal
Fonte: Isaias Evangelho
197
Resgistrando para o futuro
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
A Prefeitura Municipal fica localizada no centro da cidade,
sofrendo apenas uma alteração - o muro foi trocado por grades.
Figura 6: Prefeitura
Municipal - 2017
Fonte: Melina Pereira
Sobrado da Praça
Construído no ano de 1826 pelo português Francisco José de
Carvalho, era uma edificação particular. Em 24 de setembro
de 1974 foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional. O Sobrado possui algumas histórias orais,
entre elas a de que o Imperador Dom Pedro ii ali se hospedou
em 13 de janeiro de 1846.
Figura 7: Sobrado da
Praça
Fonte: Isaias Evangelho
198
Resgistrando para o futuro
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Hoje o prédio é o Centro de Cultura Sobrado da Praça, que
abriga a Biblioteca Pública Municipal, o Conservatório Municipal e a Secretaria Municipal de Turismo. No Centro de Cultura ocorrem palestras, recitais e exposições fotográficas. O
Sobrado fica localizado em frente à Praça Dr. Fernando Abbott,
no centro da cidade.
Figura 8: Centro de Cultura Sobrado da Praça
Fonte: Melina Pereira
Cine Teatro Harmonia
O prédio foi fundado em 1874, no início chamava-se Sociedade Harmonia Gabrielense. Somente em 1929 passou a se chamar Cine Teatro Harmonia, quando sofreu uma remodelação.
Tinha 56 camarotes para 92 pessoas e plateia de 408 lugares,
havia três portas onde o público era selecionado para entrar
no prédio, com preços diferenciados.
Figura 9: Cine Theatro
Harmonia
Fonte: Isaias Evangelho
199
Resgistrando para o futuro
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Em 2007, o Theatro Harmonia foi comprado pela Prefeitura
Municipal. Atualmente o prédio está na primeira etapa de restauração, através do projeto Pró-Cultura rs, Lei nº 13.490/10
- lei de incentivo à cultura que antecipa a compensação de recursos destinados ao pagamento do iCMs por parte das empresas
que financiam projetos culturais.
Figura 10: Theatro Harmonia –restauração/2017
Fonte: Melina Pereira
Conclusão
O Patrimônio Cultural e Histórico da cidade de São Gabriel
apresenta diversas edificações com histórias e arquitetura bem
diversificadas. Essas edificações foram apresentadas, a partir
do ano de 1800 a 1940, através dos registros fotográficos do
período de 1921 a 1941, demonstrando a fotografia como documento arquivístico, que nada mais é do que uma fonte da preservação como forma de memória para mostrar o que ocorreu
no passado.
As fotografias, quando foram selecionadas, já estavam digitalizadas e sem tratamento arquivístico digital. Nelas, constata-se o antes e o depois das casas, contando a história de
cada uma.
200
Resgistrando para o futuro
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Como resultado, das 23 edificações pesquisadas, nos dias
atuais, encontraram-se algumas com alterações e outras como
estavam de 1921 a 1941, quando foram registradas. Notou-se,
através da análise das fotografias, a situação das edificações:
uma edificação em restauração, duas em reforma, dois clubes
com alterações na fachada, uma igreja com alteração, um prédio tombado pelo Iphan e outro pelo Iphae, um prédio demolido, uma igreja com alterações na fachada e as outras edificações
sem alterações.
Conclui-se que o trabalho desenvolvido é de extrema importância para mostrar a preservação da memória do Patrimônio
Histórico Cultural de São Gabriel e servir para futuras pesquisas na arquitetura, arquivologia e história.
Referências
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Resgistrando para o futuro
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
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uma%20investigacao%20sobre%20o%20seu%20valor%20contingente.
pdf Acesso em : 02 jul.2016.
202
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Patrimônio industrial e memória: o
antigo edifício da Cervejaria Miranda
Corrêa
Rosanna Lima de Mendonça 72
Refletir sobre o patrimônio é um processo que demanda tempo e constante análise dos agentes envolvidos direta e indiretamente. O antigo edifício da Cervejaria Miranda Correa se
encontra dentro do contexto urbano da cidade de Manaus, no
bairro de Nossa Senhora de Aparecida. Nas ruas laterais há
vilas e casas nas quais os moradores diariamente convivem com
uma fábrica desativada vista tão próxima de suas residências,
e qual é o sentimento pelo monumento industrial? De alguma
forma isso afeta a vivência deles? Suas memórias estão ligadas
ao local? De que forma?
O presente trabalho visa a debater as questões de patrimônio industrial na cidade de Manaus através do olhar dos moradores do bairro de Nossa Senhora de Aparecida para com o
antigo edifício da Cervejaria Miranda Corrêa. O objetivo principal da pesquisa é entender se e como a Cervejaria Miranda
Corrêa se constitui como patrimônio industrial. A análise se
dará através de levantamento histórico sobre a fábrica, discussões das definições de patrimônio industrial por meio da bibliografia e levantamento do parecer através das falas e memórias
dos moradores do bairro.
72. Graduada em Turismo pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA.
Aluna regular do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências
Humanas – PPGICH, UEA. Pesquisa realizada com o apoio da Capes. E-mail:
rosannamendonca@hotmail.com
203
Patrimõnio industrial e memória
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Para se entender as problemáticas devemos partir primeiramente do conceito de patrimônio industrial. Para o autor Álvarez-Areces (2008), somente pode-se considerar um patrimônio
industrial se houver ligações através da memória individual
e coletiva. Assim sendo, a antiga Cervejaria Miranda Corrêa
se enquadra como patrimônio industrial através do olhar da
comunidade ao entorno?
Por meio da pesquisa puderam-se testar colocações dos
autores que debatem a temática, aplicando a teoria e a prática
do patrimônio industrial dentro do contexto de Manaus e dos
morados do bairro de Aparecida. O estudo sobre o patrimônio
industrial nos permite entender, por meio das memórias coletivas, as mudanças nas relações de trabalho, nas transmissões
de saberes técnico e nas formas de se fazer.
Entender as formas de trabalho do passado atreladas ao
sentimento do espaço pode contribuir para compreendermos
problemas sociais e econômicos do presente. Por meio desta
pesquisa, concluiu-se que o patrimônio industrial é testemunho
de um cotidiano vivo, da memória coletiva do espaço físico e do
trabalho, estando presente no lugar de fala da população. Assim
sendo, o antigo edifício da Cervejaria Miranda Corrêa, atualmente pertencendo à Cervejaria Heineken, constitui-se como
uma peça do quebra-cabeça histórico da cidade de Manaus,
sendo patrimônio industrial através do olhar da população.
Cervejaria Miranda Corrêa
A ocupação europeia e a posse da Amazônia, no decorrer do
século XVii e XViii, se desenvolveram a partir de intensos
processos de luta e disputa entre Portugal, Espanha, França,
204
Patrimõnio industrial e memória
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Inglaterra e Holanda. No processo de posse e ocupação, os portugueses transplantaram e difundiram os valores e símbolos
culturais de Portugal (BenCHiMoL, 2009, p. 73).
O saber, o conhecer, o viver e o fazer na Amazônia primeiramente foram processos predominantemente indígenas.
Aos valores e às culturas indígenas foram sendo incorporados
por meio de adaptações, assimilação, competição, incentivos,
motivações e difusão de novos instrumentos, práticas e técnicas
transplantadas pelos colonizadores e povoadores (BenCHiMoL,
2009, p. 17). Dessa forma, o encontro de culturas possibilitou
as diversas transformações em ambos os lados. Novas técnicas
europeias foram se difundindo às técnicas indígenas criando
e transformando-se em novos significados.
Os colonizadores e povoadores europeus da Amazônia
desenvolveram funções na modelagem da sociedade, principalmente no quesito econômico. Através do estabelecimento das atividades agrícolas e florestais-extrativistas, puderam
dominar os setores produtores, mercadores, exportadores e
comerciantes por longos períodos (BenCHiMoL, 2009, p. 17).
Conforme o historiador Antonio Loureiro (2007), o comércio na cidade de Manaus no século XiX provinha em parte de
mercadorias oriundas de outras colônias e da Europa. Segundo o autor, as produções extrativistas na Amazônia auxiliaram
na troca de informações, tecnologia e de produtos diversos
que provinham por embarcações de outros lugares (LoUreiro,
2007, p. 13). De acordo com os registros de comércio do século XiX, as cervejas juntamente com outras bebidas alcoólicas
eram negociadas na capital amazonense em grande quantidade, provinda principalmente de países europeus. Há alusão da
Mercearia Braguinha que comercializava “vinhos finos e do
205
Patrimõnio industrial e memória
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
pasto, licores, cerveja de diferentes marcas (...)” (A ePoCHa,
1889, p.4). Há registros também de espaços de lazer que eram
oferecidos na cidade, como no caso da Mercearia Abelha de
Ouro que oferecia a seus clientes “um local muito arejado onde
os apreciadores podem tomar seu copo de cerva a sua satisfação” 73(aMazonas CoMMerCiaL, 1895, p. 3). Assim sendo, os
comerciantes da cidade adquiriam as mercadorias em grande quantidade para revender com preços diferenciados. Conforme os documentos da Província, o Almanach Adm Histórico
Estatístico e Mercantil da Província do Amazonas (1884, p. 210)
reporta sobre o custo do envio de “barrica ou caixa” de cerveja
de Manaus para Santarém – Pa. Aqui se observa que os grandes navios de mercadorias europeias buscavam principalmente
fazer negócios com as capitais, como Belém e Manaus. Após
abastecer as grandes cidades, as mercadorias eram enviadas
para serem comercializadas com povoados e cidades menores.
Com o comércio tendo elevação crescente ocasionado pela
economia gomífera e o aumento populacional em Manaus, houve também uma progressiva demanda de produtos importados,
inclusive a cerveja. Dessa forma, os comércios da cidade passaram a ter grandes giros de mercadorias, aumentado os lucros.
A família Miranda Corrêa, no início do século XX, possuía a
fábrica “Gelo Cristal” que além de comercializar gelo, cigarros
e bebidas geladas também comercializava outras mercadorias
vindas da Europa (aMazonas, 1985, p. 31).
Conforme registros documentais, os barcos e navios atracavam no porto da cidade, no qual traziam barricas de cervejas
73. Nota-se a forma de expressão portuguesa da escrita na propaganda da
mercaria e também, a colocação de “um local muito arejado..". fazendo referência ao clima quente tropical da cidade.
206
Patrimõnio industrial e memória
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
para serem comercializadas. Os principais fornecedores de
cervejas eram os navios alemães, que traziam a cerveja e o
chope (aMazonas 1884). Assim sendo, a Gelo Cristal adquiria
os barris e os armazenava na fábrica de gelo, na qual poderia
revender a seus clientes (aMazonas, 1985, p. 31).
Em 1905, Antônio Carlos Miranda Corrêa juntamente com
outros três irmãos idealizaram a construção de uma cervejaria. Movido pela ideia, Antônio Carlos de Miranda Corrêa
viaja para a Alemanha em busca de conhecer as práticas mais
modernas da época na especialidade de cervejas. Ao retornar
para Manaus, traz consigo dois técnicos e as melhores máquinas alemãs da época em navios (Baze, 1997, p. 59). Em homenagem à família, os irmãos nomearam a empresa de Cervejaria
Miranda Correa S.A. (CorrÊa, 1995 apud Baze, 1997, p. 63).
O espaço escolhido para a localização da fábrica foi o bairro de Nossa Senhora de Aparecida 74, à margem do Rio Negro,
ao lado do igarapé do São Raimundo. O edifício apresenta o
estilo das cervejarias alemãs, com riquezas de detalhes e de
construção “industrial familiar” descrita pela própria família
(CorrÊa, 1969, p. 50). A pedra fundamental do edifício foi posta em 1910, e a cervejaria foi inaugurada em 12 de outubro de
1912 (aMazonas, 1985, p. 31).
A fabricação da cerveja obedecia aos princípios gerais já
conhecidos, tendo como base a cevada e o lúpulo. Da matériaprima utilizada para a fabricação da cerveja destaca-se:
(...) uma matéria açucarada ou amilacea, transformável
em alcool, (quasi sempre é o amido); um princípio amargo (lupulina, determinada pelas brácteas do lúpulo); um
74. Popularmente o bairro é chamado de Aparecida.
207
Patrimõnio industrial e memória
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
fermento organizado que transforma a matéria açucarada
em álcool, acido carbônico e agua que deve ser puríssima 75
(JosÉ siMÕes CoeLHo, 1912 apud Baze, 1997, p. 61).
Segundo José Simões de Coelho, a água utilizada para a
fabricação da cerveja era retirada do Rio Negro, “sendo submetida a processos de filtração curiosos”. Conforme o autor,
o que era notável na qualidade da cerveja amazonense era sua
cristalização, algo que não era comum em outras marcas de cervejas brasileiras da época (1912 apud Baze, 1997, p. 62). Ainda
segundo o autor, a cristalização da cerveja recebeu a atenção
do famoso bacteriologista brasileiro Dr. Carlos Chagas, escrevendo que:
Assistimos a analises químicas rigorosas, todas demonstrativos da ausencia de substancias nocivas ao organismo
humano; apreciámos a fermentação do líquido, examinámos as condições do fermento e observámos os processos
de conservação e acondicionamento da cerveja. Em tudo
notámos o mesmo zelo e o mesmo rigor de técnica que presidem a todos os trabalhos d’aquella indústria, organisada
sob os moldes mais modernos das similares da Alemanha.
(JosÉ siMÕes CoeLHo, 1912, apud Baze, 1997, p. 62).
Após a morte de Antônio Carlos, seu irmão, Luiz Miranda
Corrêa, assume a gerência da empresa. A firma familiar Miranda Corrêa & Cia. passa a adquirir mais imóveis e comércios na
cidade, entre eles destaca-se a compra do cinema Odeon, pois
ao lado constroem a “Casa do Chope”, lançando os novos produtos no mercado, tais como: Cerveja Ouro sobre Azul, Topázio,
75. Referência do texto na integra, tal qual como escreveu o autor José Simões de Coelho em 1912.
208
Patrimõnio industrial e memória
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Cerveja Preta, Cerveja XPTo e Guaraná Legítimo (aMazonas,
1985, p. 31).
Uma das formas de publicidade para os novos produtos da
empresa foi adotada por Luiz Miranda Corrêa nos anos de 1930,
da qual utilizava carros alegóricos no período de Carnaval como
meio de publicidade e propaganda da cervejaria (aMazonas,
1985, p. 31).
Após diversas crises econômicas assolarem as empresas
no Brasil durante o século XX, a família optou por vender a
empresa para a Cervejaria Brahma. A Cervejaria Brahma, que
até então era uma empresa carioca, adota a tática mercantilista de compra de cervejarias menores no início do século XX. A
empresa adquiria companhias cervejeiras de diversos lugares
do Brasil para dominar o mercado, diminuindo a concorrência
(BrasiL, 2012, p. 4).
Conforme Brasil (2012, p. 4), a Segunda Guerra Mundial
beneficiou o comércio nacional, pois suspendeu a importação
de bebidas alcoólicas, gerando aumento significativo no consumo de bebidas produzidas no País, de forma que a Brahma,
em 1953, já possuía seis fábricas e uma malteria. A Cervejaria
Brahma atuou no antigo edifício da Cervejaria Miranda Corrêa por longo período. Em 1999, a cervejaria se funde a sua
maior concorrente no mercado nacional, a Cervejaria Antártica Paulista, tornando-se a Companhia de Bebidas das Américas – aMBeV (BrasiL, 2012, p. 4).
Com as novas aquisições comerciais nacionais e internacionais, como parte de um planejamento de modernização do
espaço e aquisição de equipamentos mais modernos, o antigo
edifício da Cervejaria Miranda Corrêa foi vendido para a companhia de cerveja Heineken, que passou a atuar no local.
209
Patrimõnio industrial e memória
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Com a crise no País e a necessidade de aumentar o espaço para produção, a Cervejaria Heineken encerra suas atividades como fábrica no antigo edifício no ano de 2013. Após
novos investimentos internacionais, a empresa inaugura a nova
fábrica no Distrito Industrial de Manaus 76, onde segue com as
suas atividades até o momento. O antigo espaço da cervejaria
Miranda Corrêa segue sob a administração da empresa Heineken, passando por reformas para se adequar aos novos planejamentos da empresa 77.
Patrimônio industrial e memória
As questões relativas ao patrimônio, seu significado, suas
funções e suas atribuições simbólicas tiveram grande atenção após a Revolução Francesa. Segundo Choay (2006, p. 98),
a palavra patrimônio, como sua conotação atual, surge como
abreviação de um atributo dado aos monumentos históricos
durante a Revolução Francesa. Os documentos que surgiram
após a Revolução justificavam a nacionalização dos bens do
clero e da monarquia como “patrimônio e herança de todos”.
A partir desse momento houve um processo onde passou a
interligar “patrimônio” a “patrimônio de todos” (BarreTo,
2007, p. 110).
76. O Distrito Industrial de Manaus é uma região da cidade vinculada à Zona
Franca na qual atua a Superintendência da Zona Franca de Manaus – Suframa. A Suframa é uma autarquia vinculada ao Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços que administra a Zona Franca de Manaus – ZFM, que
visa a potencializar o Polo Industrial (SUFRAMA, 2019).
77. No decorrer da presente pesquisa a autora não obteve respostas às informações referentes às reformas que estão sendo realizadas no espaço, também não houve acesso aos planos da empresa para o edifício.
210
Patrimõnio industrial e memória
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Desde então surgiram diversos significados para a palavra Patrimônio. Segundo o dicionário Aurélio 78 (1999, p. 1515),
patrimônio [Do lat. patrimoniu] pode ser definido como herança paterna, bens de família, bem ou conjunto de bens culturais
ou naturais, de valor reconhecido para determinada localidade,
região ou país, ou para a humanidade, e que, ao se tornar (em)
protegido(s), como, por exemplo, por meio do tombamento,
devem ser preservado(s) para usufruto de todo cidadão.
Dentro da compreensão de patrimônio surgem diversas
vertentes, como patrimônio cultural, patrimônio material e
imaterial, patrimônio arqueológico, patrimônio natural, entre
outros. Entende-se patrimônio como um aspecto participativo
de uma cultura, representando o passado e o presente, carregados de significados que vão se transformando com o passar
do tempo.
Ao se estudar os conceitos de urbanização entende-se que
a urbanização é a concentração espacial de uma população,
onde ocorre a difusão de sistemas de valores, atitudes e comportamentos que, conforme Castells (1983, p. 39), trata-se de
sistemas culturais característicos das sociedades industriais
capitalistas. De acordo com o autor, a urbanização e a industrialização são compreensões similares que se integram, e os
sistemas culturais influenciam o modo no qual as cidades são
construídas, incluindo os aspectos industriais desenvolvidos
(CasTeLLs, 1983). Logo, o patrimônio industrial é também parte de uma cultura, pois se constitui como patrimônio técnico
de uma sociedade que, como fator cultural, está sempre em
transformação (siLVa, 2009).
78. FERREIRA, A. B. H. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
211
Patrimõnio industrial e memória
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Para melhor entendermos e discutirmos o patrimônio
industrial, precisaremos partir de conceitos básicos sobre o
assunto. De acordo com Álvarez-Areces (2008, p. 6), patrimônio industrial tem adquirido um sentido que excede o estético
para converter-se em um conjunto de ordem temporal e espacial frente ao avanço do esquecimento e à perda da memória do lugar. Os valores paisagísticos, os vestígios industriais,
a memória coletiva e a herança artística se misturam em um
espaço contínuo. Para o autor, as fábricas, minas, residências e
outros elementos da arquitetura industrial, os tecidos urbanos
e rurais, o patrimônio gastronômico, as tradições e etnografias,
os diversos ofícios e a história local, a música raiz, as memórias
e os amplos elementos do patrimônio intangível convertem as
paisagens pós-industriais em territórios museus (ÁLVarez-areCes, 2008, p. 6). Para Silva (2009, p. 3), “o patrimônio industrial
é também a recolha e o tratamento de um patrimônio técnico
de uma sociedade e de uma comunidade, e esse processo está
sempre em transformação”.
A integração dos patrimônios industriais e os bens culturais é um desafio para as cidades e territórios atuais, principalmente aqueles que envolvem grandes centros urbanos. O
patrimônio industrial é um fragmento, um objeto de memória
coletiva. Os patrimônios industriais são atributos da Revolução Industrial que se convertem, em diferentes contextos, em
novos 79 bens culturais. De acordo com Álvarez-Areces (2008),
compreender todos os restos materiais, bens móveis e imóveis,
abarcam elementos da cultura material da sociedade industrial
capitalista, constituinte de um desenvolvimento histórico pelas
79. “Novos” não no sentido de novidade nunca vista antes, mas de formas e
significados diferentes daqueles que se tinham até então.
212
Patrimõnio industrial e memória
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
atividades produtivas e extrativistas do homem, bem como o
testemunho das mudanças exercidas pela sua influência na
sociedade como um todo. Para Silva (2009), o patrimônio industrial permite a transmissão de saberes técnicos, de uma forma
de fazer juntamente com a memória dos envolvidos. O estudo
sobre as formas de trabalho do passado pode contribuir para
entendermos alguns dos problemas do presente.
Desta forma, o patrimônio industrial é testemunho de um
cotidiano vivo e da memória coletiva do lugar e do trabalho.
Sem homens, os edifícios e as máquinas seriam resultado de
elementos vazios (ÁLVarez-areCes, 2008, p. 6). Logo, o patrimônio industrial possui correlação direta com a memória do
lugar e dos agentes envolvidos.
Para Halbwachs (1968), a memória é a reconstrução, evocando o passado visto pela perspectiva do presente e marcada
pelo social. A memória remete-nos “a um conjunto de funções
psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões
ou informações passadas, ou que ele representa como passadas”
(Le goFF, 2013, p. 387). Para Candau (2014, p. 15), a memória
nos dá a ilusão de que podemos reviver o momento passado
através da lembrança. Conforme o autor, o jogo da memória
que vem fundar a identidade é necessariamente feito de lembranças e esquecimento, e mesmo a memória sendo construída por lembranças selecionadas, ela procede na construção da
identidade, sendo um dos elementos essenciais na busca individual e coletiva, legitimando assim os objetos patrimoniais 80.
De acordo com Le Goff, a memória se transforma em um
elemento essencial para a identidade, individual ou coletiva.
80. CANDAU, J. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2014. (p. 18).
213
Patrimõnio industrial e memória
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Entretanto, o autor nos chama a atenção para o cuidado ao
analisar a memória coletiva, que pode ser usada também como
instrumento e objeto de poder da parte das pessoas que transmitem (Le goFF, 2013, p. 435).
Dentro do vasto estudo da memória coletiva encontra-se a memória coletiva material, que pode se dar através de
documentos ou de monumentos. De acordo com Le Goff, o
monumento é um sinal do passado. Recordando a filosofia “o
monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar
a recordação (...)” (Le goFF, 2013, p. 486). Em outras palavras,
o monumento tem como característica o ligar-se ao poder da
perpetuidade das sociedades, solidificando-se como testemunha que sobrevive ao tempo.
O patrimônio industrial pode ser um elemento vivo em
determinada cultura. Pode estar se desenvolvendo constantemente, adquirindo novos significados em contínua relação
com o ambiente social e local no qual está inserido. O patrimônio pode se apresentar de forma conservada ou em ruínas e, ainda assim, ser capaz de carregar simbolismos nos
vestígios do passado dentro de uma paisagem aparentemente esquecida.
Patrimônio Industrial do bairro de Nossa Senhora de
Aparecida
Para se entender as problemáticas devemos partir primeiramente do conceito de patrimônio industrial. Para o autor Álvarez-Areces (2008) somente pode-se considerar um patrimônio
industrial se houver ligações através da memória individual
e coletiva. Assim sendo, a antiga Cervejaria Miranda Corrêa
214
Patrimõnio industrial e memória
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
se enquadra como patrimônio industrial através do olhar da
comunidade ao entorno?
Para a realização da coleta de dados, optou-se por realizar entrevistas abertas e fechadas com os moradores das ruas
adjacentes do antigo edifício da cervejaria. Para o conforto dos
entrevistados, os nomes não serão divulgados no decorrer da
pesquisa. Ao total foram coletados três depoimentos para que
seja feita a análise dos dados. Ressalta-se que em todos os casos
os entrevistados possuíam idade superior a 50 anos e residiam
na mesma casa a cerca de 30 anos ou mais.
Conforme os entrevistados, o edifício da cervejaria possui ligação histórica com a forma que se desenvolveu o bairro.
Muitas pessoas que trabalhavam na empresa nos anos de 1930
adquiriram casas no bairro para diminuir a distância entre o
trabalho e a moradia, sendo que em dois dos casos relatados
ocorreram com parentes próximos dos entrevistados.
Um dos colaboradores da pesquisa afirmou ter trabalhado
na empresa durante um breve período de sua vida, em tarefas
descritas como “básicas e nada importantes”, sendo trabalhador na linha de produção na fabricação da cerveja.
Referente a memórias mais antigas relatadas, entrevistados
informaram memórias da infância relacionadas com a rua onde
moram e a fábrica. Em um dos casos, abordou-se a recordação
dos uniformes que os homens trabalhadores da fabrica utilizavam, ou do horário de saída do trabalho enquanto as crianças,
no final da tarde, brincavam na rua. Foi mencionado também
o barulho da campana, que era tocada ao meio dia, todos os
dias, que para certo entrevistado, significava na sua infância
“hora de voltar para casa para o almoço” nos dias de sábado e
domingo, nos quais não tinha aula na escola.
215
Patrimõnio industrial e memória
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Também foi descrito por alguns entrevistados que durante a infância havia um desejo, nada secreto, 81 de entrar nas
dependências da fábrica, principalmente quando a bola ou o
papagaio 82 adentrava depois do alto muro da cervejaria. Foram
relatadas tentativas bem- sucedidas dos feitos, outras malsucedidas, mas os entrevistados narravam os acontecimentos
com sentimentos de felicidade, descritos por eles mesmos, ao
lembrarem-se desses feitos.
Referente à fábrica como patrimônio cultural, os entrevistados afirmaram que o edifício possui valor significativo como
parte da memória material dentro da paisagem urbana de seu
bairro. De acordo com um dos relatos, ela se destaca como um
edifício suntuoso na beira do rio que parece mal cuidado, mas
que para ele cumpre a função de ativação da memória. “Em
certos momentos, quando estou sentado na frente de casa no
final da tarde, me pego lembrando de coisas da minha infância
e juventude quando olho para essa fábrica (...)” relatou.
Conforme os participantes, o edifício exerce a função de
parte da paisagem urbana de seu bairro e, também, como objeto material da memória que é indispensável carregando um
valor sentimental especial. Apesar do edifício atualmente não
exercer a função de fábrica ativa, o derrubar ou modificar a
fachada representaria aos moradores entrevistados a destruição de um bem cultural material que estaria sendo retirado
da comunidade.
81. Termo utilizado na fala de um dos entrevistados.
82. Conhecido também como “pipa” a brincadeira consiste na armação de
palitos de madeira com papel fino e fio para a rabiola, dando estabilidade no
ar. O objetivo da brincadeira é permanecer com o papagaio planando no ar e,
quando esbarrado em outro papagaio, realizar o corte da linha do oponente
com manobras no ar, fazendo assim a queda do papagaio.
216
Patrimõnio industrial e memória
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Observa-se que na fala de proteção do edifício, os participantes da pesquisa se resguardaram no discurso do pertencimento e da memória coletiva diretamente. A comunidade 83
entende que o edifício particular pertence a todos, pois compartilha memórias sentimentais (positivas ou negativas) de uma
vida. Alterar ou destruir o edifício é tomado como uma violação as suas memórias, mesmo eles tendo consciência de que o
edifício seja de propriedade particular e industrial.
O pensar do patrimônio vai além do conservar e o não conservar, permanecer ou não permanecer. Aqui temos o caso de
um edifício de uma antiga fábrica cervejeira que atualmente
pertence a uma indústria holandesa que visa ao mercado capitalista. Aqui temos um patrimônio que cada vez mais instiga a
novas discussões dentro da pesquisa. Para a indústria cervejeira
é um espaço sem significado econômico 84. Para a comunidade
é a extensão de suas memórias.
Conclusão
Pensar no patrimônio industrial transcende a beleza individual de cada edifício industrial. Recorrendo a história podemos entender indagações do presente. Para compreender o
castelo de arquitetura alemã construído no início do século
XX, foi necessário recorrer a documentos oficiais e familiares.
Tal pesquisa possibilitou uma visão maior da parte econômica
83. Utiliza-se o termo comunidade para se referir à amostra. Não se ignora
a possibilidade de parte da comunidade ter um pensamento diferente e até
mesmo controverso a essa afirmação.
84. Afirmação baseada no trabalho A destruição da primeira fábrica da cervejaria Brahma do Rio de Janeiro de Zenilda Ferreira Brasil, 2012.
217
Patrimõnio industrial e memória
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
e cultural que a fábrica exerceu e exerce no Amazonas, pois
patrimônio é cultura.
Para os moradores do bairro de Aparecida, o antigo edifício
da cervejaria faz parte da cultura, uma vez que é a extensão de
suas memórias de forma material. A nostalgia descrita por eles
quando acionadas as memórias da infância, descrevendo com
detalhes e aderindo a sua realidade na forma como o cotidiano era visto a partir de seus olhos 85. Assim, o trabalhador que
possuía um trabalho descrito como tarefas “básicas e insignificantes” não consegue enxergar no primeiro momento que
realizava a tarefa base e a mais importante que era a linha de
produção da cerveja.
Ainda que seja um trabalhador na linha de produção, possui seus próprios sentimentos e memórias quanto ao edifício.
A memória possui diversos significados embutido de diversos
sentimentos. A mesma memória que para alguns pode trazer
alegria e satisfação, para outros pode significar dor e sofrimento. A memória do indivíduo é seletiva, e deve ser levado isso em
consideração nas pesquisas de história oral e memória.
Trabalhar o patrimônio industrial parece um assunto novo
e promissor na cidade da Zona Franca. Pensar a fábrica como
patrimônio requer assumir seus diversos significados, sendo
positivos ou negativos. Uma história que pode se demonstrar
carregada de dor, sofrimento e angústia ou de alegria, nostalgia e afeto.
Para os entrevistados a cervejaria é um patrimônio cultural do bairro e da cidade. Pensar no edifício resgatando
as memórias antigas de forma coletiva resultou em diversas
85. Leva-se em consideração a afirmação de Le Goff (2013), na qual o autor
afirma que a memória descrita pelos entrevistados é seletiva.
218
Patrimõnio industrial e memória
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
interpretações. Isso possibilitou a novos questionamentos
levantados sobre a cultura e o patrimônio manauara.
Seja qual for o caso, o patrimônio industrial está presente.
Ao estudarmos o patrimônio industrial deve-se levar em consideração os diversos conflitos de interesses e o não isolamento
do patrimônio de seu contexto geográfico, histórico, econômico e social. Deve-se considerar as atividades humanas consolidadas no tempo que seguem em contínua evolução.
Assim, entende-se patrimônio industrial interligado com a
memória coletiva.O antigo edifício da cervejaria Miranda Corrêa se consagra como patrimônio industrial da cidade, pois se
tornou testemunha de um cotidiano vivo e da memória coletiva do lugar e do trabalho dos moradores ao redor do edifício.
O patrimônio industrial, como elemento da cultura, está
em constante transformação. Se cultura é dinâmica, seus elementos também o são. Pensar o patrimônio requer leituras e
releituras do objeto, da cultura, da identidade e da memória,
pois como afirma Vítor Oliveira Jorge: tudo é patrimônio 86.
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Patrimõnio industrial e memória
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
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220
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Artes pictóricas em forros de madeira
do século XIX: uma comparação entre
casa urbana e casa senhorial rural
Mônica de Macedo Praz 87
Introdução
As pinturas decorativas sobre forros de madeira, usadas com
frequência na arquitetura de interiores do século XiX, tinham o
intuito de agregar valor estético à habitação, enaltecendo a sua
imponência. Foram, então, desenvolvidas e aplicadas variadas
técnicas, que se valendo de instrumentalização, ou não, denotavam o grau de instrução e habilidade do artífice, especialmente
nas pinturas feitas à mão livre. Essa prática permitia corrigir
aparentemente as imperfeições da madeira criando, sob ilusão de ótica, através da técnica do tromp l’oeil 88, “veios e nós” 89
harmonicamente dispostos e seguindo um padrão de desenho
regular quanto à forma, tamanho e ritmo de distribuição das
figuras. (Figura 1) Essa padronização remete à raiz classicista
87. Mestranda do PPG em Memória Social e Patrimônio cultural da Universidade Federal de Pelotas-UFPel. Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela
Universidade Federal de Pelotas-UFPel. Bolsista da Capes. monicampraz@
gmail.com
88. Tromp l’oeil é a expressão francesa que quer dizer, em uma tradução literal, “engana olho”, e se vale de efeitos de luz e sombra nas pinturas para criar
ilusões tridimensionais. Foi largamente utilizada nas decorações das casas e
palacetes de linguagem arquitetônica do ecletismo.
89. Veios da madeira: faixas compridas e estreitas que se distinguem pela sua
cor ou pela natureza da sua substância.
Nós da madeira: base do galho ou ramo que está encaixado no tronco.
Quando do corte da madeira, fica marcada a seção arredondada, saliente por
sua textura ou coloração.
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Artes pictóricas em forros de madeira...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
da qual decorre a linguagem eclética, predominante nos edifícios da época.
Figura 1: Forro de madeira com pintura artística.
Serro Formoso 2017
Fonte: Acervo da autora.
Antecedentes
A linguagem eclética, que figurou nos edifícios brasileiros a
partir da segunda metade do século XiX, importando a estética
europeia, tornou-se alvo de críticas nas primeiras décadas do
século XX, quando defensores do movimento modernista mostraram repúdio por adornos e a todo tipo de elementos decorativos, priorizando as formas puras, justificadas por sua função
estrutural. Arquitetos modernistas, encabeçados por Le Corbusier 90, identificavam as linhas simplistas de seus desenhos
como advindas de uma arquitetura colonial despretensiosa e
racional. Por isto, em algumas interpretações, modernismo e
neocolonialismo se mesclam. Ainda assim, o ecletismo, fundamentado em bases classicistas, e proporcionado pelo fenômeno da industrialização, com “os elementos pré-fabricados
90. Charles-Edouard Jeanneret-Gris, mais conhecido pelo pseudônimo de Le
Corbusier (1887-1965), foi um arquiteto, urbanista, escultor e pintor de origem suíça e naturalizado francês em 1930. Considerado um dos precursores
do movimento modernista.
222
Artes pictóricas em forros de madeira...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
em série moldados em ferro, conjugados com o vidro e, logo
em seguida, o cimento armado” (sanTos, 2010, p.02) (Figura
2a) havia tomado tamanho vulto que no Brasil, à imitação da
Europa, se fez presente em edifícios privados, semiprivados e
públicos, como o teatro Municipal do Rio de Janeiro, por exemplo (Figura 2b). Muitos destes, atualmente, são tombados como
patrimônio arquitetônico nacional.
Figuras 2: Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Elementos em ferro
fundido(a) Perspectiva externa (b). 2018
Fonte: Acervo da autora
Carlos Alberto Santos (2010) aponta que a linguagem eclética é muito mais do que a composição de diferentes elementos
arquitetônicos, ainda que agregue múltiplas referências culturais, a exemplo da Ópera Charles Garnier, em Paris (Figuras
3a e 3b).
[...] e a construção eclética da Ópera Charles Garnier,
erguida pelo arquiteto que lhe deu o nome, entre os anos
de 1861 e 1874, cuja fachada é composta por arcada romana,
colunas com capitéis gregos, frontões cimbrados maneiristas, arrematada por cúpula em ferro e aço na forma de
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Artes pictóricas em forros de madeira...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
uma coroa que homenageia o segundo Império francês,
cujo frontispício é ornamentado com esculturas de ferro fundido pintadas em dourado, representando ninfas e
musas alusivas à música e à dança, que apresentam grande movimentação e teatralidade barrocas (sanTos, 2010,
p 02.).
(a)
(b)
Figuras 3: O edifício da Ópera Charles Garnier (a) e seus ornamentos
escultóricos.(b)
Fonte:acervo de Carlos A. Santos, 2011.
O autor vai dizer que a linguagem eclética conviveu com as
reformas urbanas que ocorreram em Paris. Essas propostas
de urbanização serviram de modelo para países de periferia
como o Brasil.
Os grandes eixos viários criados, pavimentados e arborizados, permitiram a circulação rápida de carros e pedestres,
facilitaram a comunicação da população entre os bairros
periféricos e o centro da cidade, entre as estações de trem
e as áreas de comércio, implicaram na construção de uma
quantidade de edifícios com duas funções – comercial e
residencial – em estilo eclético [...]Desta forma, o estilo
arquitetônico eclético foi contemporâneo do urbanismo,
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Artes pictóricas em forros de madeira...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
ciência que abarcou medidas sanitárias com o objetivo de
qualificar a vida nas cidades. (sanTos, 2010, p 04.)
Esta linguagem arquitetônica não atingiu somente as capitais
brasileiras. Logo se difundiu alcançando até mesmo os núcleos
urbanos da fronteira meridional do País (sanTos, 2010). O Rio
Grande do Sul, em função das estâncias pecuaristas, teve forte
ascensão econômica durante o século XiX. Senhores latifundiários
acabaram investindo em residências urbanas ricas em ornamentos, ao sabor de uma estética europeia que servia de referência
para o resto do mundo – o ecletismo. Segundo Santos (2010) já na
década de 1870, e até antes, havia sido construídos prédios ecléticos nas localidades da campanha gaúcha. Em Pelotas, a opulência
dos edifícios que foram construídos em linguagem eclética, em
meados do século XiX, fora patrocinada pela indústria charqueadora–responsável pelo apogeu econômico da região. Além dos
prédios públicos, como a Prefeitura Municipal; a Biblioteca Pública Pelotense; Mercado Público; teatros e casas bancárias; entre
outros, também os edifícios residenciais receberam tratamento
arquitetônico digno do atual reconhecimento e tombamento pela
União, atingindo o status de patrimônio.
Construídos no final da década de 1870, os “palacetes”, que
se debruçavam sobre a área verde, alcançaram o ápice do
refinamento, servindo de exemplo às obras executadas
posteriormente. A partir de então, passaram a morar nestas vivendas duas filhas e um filho do Barão de Butuí, casados com dois filhos e uma filha de Eliseu Antunes Maciel.
Os Antunes Maciel representavam o gosto da aristocracia
liberal da Fronteira Sul (gUTierrez, 2017, p. 93).
Ficava evidente o desejo de manifestar, através desses imóveis, o poderio econômico de seus proprietários. Além da caixa
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Artes pictóricas em forros de madeira...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
mural, embasada por porões altos, que não só serviam para
ventilar os assoalhos, mas ajudavam na representação da imponência do edifício, as fachadas mostravam-se suntuosas, ricas
em detalhes e ornamentações, como estatuetas em faiança,
vidros coloridos e todo tipo mais de materiais importados da
Europa. Na composição de todo esse padrão estético, os interiores também rememoravam palacetes europeus e atualmente,
alguns deles, têm a sua preservação assegurada por tombamento, devido às técnicas e materiais encontrados, representativos
de época e linguagem específicas (sanTos, 2010).
Decoração dos interiores sob a estética do ecletismo
Carlos Alberto Santos (2010) lembra que a estética do ecletismo também contemplou os interiores. Variadas técnicas foram
desenvolvidas, como a da escaiola, do marmoreado, do estêncil, do tromp l’oeil, entre outras. O uso dessas técnicas resultou em pinturas, que não só tinham a função de embelezar os
ambientes, conferindo maior requinte, mas serviam para disfarçar e encobrir imperfeições. Por exemplo, nas de paredes
erguidas por taipas 91, ou mesmo tijolos de barro, a cobertura
feita com tintas à base de cal deixava transparecer a umidade
em indesejáveis manchas. A pintura decorativa, então, ajudava
a amenizar, e até mesmo disfarçar, os efeitos da umidade. Na
maioria dos cômodos era feita com motivos florais, paisagens
bucólicas, ou cenas de caça - comuns em salas de refeição.
91. Taipa de pilão ou de mão, são técnicas construtivas muito usadas na arquitetura do século XIX para edificar paredes externas e internas. Consistem
em preencher, com barro, formas de madeira (de pilão), ou tramados de madeira ou bambu (de mão).
226
Artes pictóricas em forros de madeira...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Grande parte das técnicas aplicadas, no entanto, cumpria
a função de imitar. A técnica do trompl’oeil foi utilizada em larga escala na decoração interior dos edifícios renascentistas,
neoclassicistas e ecléticos. As pinturas causavam efeitos de
perspectiva, “simulando as volumetrias de elementos arquitetônicos, compondo, por exemplo: falsas sacadas com balaústres;
colunas, arcos e pórticos; relevos ou esculturas” (Miriani, 1997,
in aLVes, 2010, p. 46). Enquanto palacetes europeus ostentavam paredes recobertas por granitos e mármores policrômicos;
tecidos finos e papel de parede, o casario urbano em cidades
brasileiras de grandes centros como Rio de Janeiro, ou mesmo de periferia como Pelotas, exibiam pinturas, que através
de escaiolas, marmoreado, e tromp l’oeil, eram capazes de imitar mármores, madeira, frisos e todo tipo de adorno saliente
(Figura 4).
Figura 4: Detalhes da pintura em tromp l’oeil. Teatro-cinema, de 1923. Fafe.
Portugal. 2018.
Fonte: Acervo da autora.
A técnica da escaiola, também chamada de estuque lustrado, consistia na aplicação de pigmentos diluídos em água a uma
massa ainda fresca, de cal e pó de mármore (aLVes 2015). Comumente as escaiolas eram arrematadas por bordas com desenhos
que iam de motivos florais a padrões geométricos, executados
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Artes pictóricas em forros de madeira...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
pela técnica do estêncil, que se utilizava de um molde com o
desenho vazado, sobre o qual se aplicavam as tintas (Figura 5).
Figura 5: Detalhe de escaiola
com barra em estêncil. Serro
Formoso. 2017.
Fonte: Acervo da autora.
Segundo Alves (2015), para atender essa demanda, se fazia
necessária mão de obra cada vez mais especializada. Os chamados artistas menores deveriam se encarregar da execução
dessas pinturas, enquanto os construtores, de nomes reconhecidos, assinavam os projetos arquitetônicos.
Com a abolição da escravatura destacou a formação de
mão de obra instrumentalizada. Até então grande parte
da atividade manual era executada por escravos, incluindo
as artísticas, rejeitadas pelas classes abastadas e ensinadas
apenas aos órfãos, pobres, e desvalidos (aLVes, 2015, p.37).
Foram os imigrantes europeus, sobretudo os italianos, que
se ocuparam em larga escala destes ofícios.
Com a chegada de um grande número de imigrantes, e
com a necessidade de ensinar a falar e escrever a língua
nacional, em 1874 foi fundada a Sociedade Propagadora da
Instrução Popular. Em 1882, o estabelecimento dedicou-se a formação profissional e adotou o nome de Liceu de
Artes e Ofícios de São Paulo, cujo currículo foi inspirado
nos planos de Le Breton, coordenador da Missão Artística
Francesa, no Rio de Janeiro (MaCaiMBira, 1985, in aLVes,
2015, p.38).
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Artes pictóricas em forros de madeira...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Algumas técnicas, de uso não tão recorrente, mas de grande valor estético, e atualmente histórico, consistiam em pintar sobre superfícies de madeira. A técnica do marmoreado,
por exemplo, costumou fingir placas de pedra nos rodapés de
madeira.
Pinturas imitando lambris eram feitas tanto sobre paredes
de alvenaria como sobre forros. Repintava-se a própria madeira,
conferindo-lhe novos veios e nós, e alterando-lhe a coloração
natural. Os forros de madeira constituíram o recorte da pesquisa para a apresentação oral no iV colóquio Internacional
Memória e Patrimônio.
Pinturas artísticas sobre forros de madeira
A arquitetura do século XiX sob a estética do ecletismo foi generosa em ornamentos e todo tipo de adornos, e efeitos de pintura
capazes de reproduzir elementos decorativos. Santos aponta que “nos ambientes internos, as superfícies dos assoalhos,
das paredes e dos forros eram pintadas utilizando a técnica do
tromp l’oeil compondo arranjos diversos: em listras ou em quadriculados, ou, ainda, imitando lambris de madeira” (sanTos,
2010, p. 09).O fingimento de madeira, muitas vezes executado
com grande veracidade, era capaz de iludir o espectador, que
por efeito da coloração pintada sobre elementos de estuque
acreditava tratar-se de frisos e entalhes de madeira nobre - a
exemplo da sala de jantar da casa de família de “brasileiros torna
viagem” 92, construída em 1886, em Fafe, Portugal. Os detalhes
92. “Brasileiros torna viagem” foi como ficaram conhecidos os portugueses
que viajaram para o Brasil, no século XIX, a procura de melhores condições
de trabalho. A maioria fez fortuna e, ao retornar para Portugal, construiu
229
Artes pictóricas em forros de madeira...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
aplicados em estuque e pintados para fingir madeira remetem
a cenas de caça, frutas e outros gêneros alimentícios, comuns
na decoração de salas de jantar da época (Figura 6).
Figura 6: Detalhes de forro com imitação de madeira. Fafe. Portugal. 2018
Fonte: acervo da autora.
Na cidade de Pelotas, no entorno da praça Cel. Pedro Osório,
está a casa que fora residência do Senador Joaquim Augusto
Assumpção, construída em 1884. Nela se encontra preservado
o forro de madeira da sala de refeições. É possível notar que
a pintura decorativa altera de forma ilusória a disposição primeira dos lambris. Também frisos de estuque são aplicados e
elegantes casarões com características arquitetônicas próprias dos trópicos,
ou ”à moda brasileira” como eram referenciados.
230
Artes pictóricas em forros de madeira...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
pintados com a coloração que uniformiza todo o forro, fazendo parecer confeccionado, inteiramente, em madeira nobre
(Figuras 7a e 7b).
Figuras 7: Casa do Sen. Joaquim Assumpção. Perspectiva externa(a).
Detalhe de forro com pintura artística (b). Pelotas. 2018.
Fonte: Acervo de Carlos A. Santos
Forros de madeira de casas de estância da campanha gaúcha
Os objetos de estudo da pesquisa, que irá gerar a dissertação da
autora, são constituídos de casas de fazenda de três estâncias
da campanha gaúcha, especialmente suas artes pictóricas. As
propriedades se localizam no atual município de Lavras do Sul,
e pertenceram ao Cel. Francisco Pereira de Macedo, o Visconde
do Serro Formoso, e seus descendentes, tendo suas sedes sido
construídas entre 1854 e 1910. Dos recursos de metodologia
que vêm sendo aplicados, está o da comparação feita entre as
produções pictóricas da zona rural com as dos centros urbanos,
em especial Pelotas e Montevideu. Essas duas cidades foram
elencadas, conforme o andamento da pesquisa, como sendo
influenciadoras sobre a arquitetura e decoração dos objetos
de estudo, devido a sua localização geográfica.
231
Artes pictóricas em forros de madeira...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Segundo Henrique Luccas (1997), as casas de fazenda do
Rio Grande do Sul, do século XiX, especialmente as dedicadas à pecuária, não primavam por decoração refinada, nem pelo uso de materiais de fino acabamento. As
construções eram mais rudes, apesar do grande poder
aquisitivo de seus proprietários. O que diferencia a casa
senhorial da Estância do Serro Formoso destas outras é a
sua localização, próxima à Pelotas e Montevideo, cidades
que receberam forte influência europeia em vários segmentos, sobretudo na arquitetura (Praz, P 18. 2018).
A trajetória histórica das estâncias é perpassada pela história do Rio Grande do Sul e do Brasil, em função do envolvimento do Cel. Macedo na Guerra do Paraguai (1864 a 1870). Seus
feitos em defesa da pátria lhe renderam o título nobiliário, não
obstante da nobreza charqueadora pelotense.
Ocorre que, de 1864 a 1870, o Brasil esteve envolvido com
a Guerra do Paraguai, que foi um forte conflito armado da
América Latina no século XiX, em que Brasil, Argentina
e Uruguai se uniram, formando a Tríplice Aliança contra
a invasão paraguaia. Foi nesta ocasião que o imperador
D. Pedro ii veio ao Sul do país, e a caminho de Uruguaiana ficou hospedado na então Fazenda São Francisco da
Chagas. Quando de sua chegada, foi recepcionado pelo
Cel. Francisco Pereira de Macedo ao som do Hino Nacional executado por uma banda formada por alguns de seus
escravos, instruídos por Tomás do Patrocínio, irmão de
José do Patrocínio. A partir da presença do Imperador a
propriedade passou a se chamar Estância do Serro Formoso, nome dado pelo próprio monarca, referenciando
a paisagem local. A participação do coronel na Guerra do
Paraguai foi efetiva. Doou cavalos, 50 de seus escravos, que
eram alforriados e iam para guerra como “Voluntários da
Pátria”, além de enviar seus quatro filhos varões para o
combate (Praz, p. 4. 2018).
232
Artes pictóricas em forros de madeira...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
As casas das três propriedades estão preservadas, em grande parte, na sua originalidade. Estão conservados os forros da
casa senhorial da Estância do Serro Formoso (1854), que pertenceu ao Visconde, exceto os das zonas de serviço que, por
terem sido confeccionados com materiais menos nobres, não
alcançaram durabilidade. Os forros da casa senhorial da Estância Vista Alegre (1888), que pertenceu ao Cel. Antônio Leal de
Macedo, filho do visconde, foram alterados por pintura feita
com material sintético. A casa sede da Estância Santa Ernestina (1910), que pertenceu a João Cândido Leal de Macedo, neto
do visconde, mantém preservado o forro da sala da jantar.
Avaliando em análise organoléptica os forros da casa da primeira estância, é possível ver que respeitam a hierarquia dos
ambientes – discretos na zona íntima, e suntuosos nas áreas
sociais. Os dormitórios têm forros em disposição “saia e camisa” usual à época, e receberam pinturas feitas à mão livre sobre
a própria madeira com a intenção de valorizar os ambientes
(Figura 8).
Figura 8: Detalhes dos forros de dois dormitórios. Serro Formoso. 2017
Fonte: Acervo da autora.
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Artes pictóricas em forros de madeira...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Na sala de jantar, os lambris foram pintados à mão livre,
conferindo veios e nós, que seguindo a estética classicista uniformizam a pintura do forro pela forma, tamanho e repetição
de padrões. O coroamento do forro neste cômodo é feito com
recursos da instrumentalização, fingindo uma disposição de
lambris em efeito “espinha de peixe” (Figura 9).
Figura 9: Detalhe do forro
da sala de jantar. Serro Formoso. 2017
Fonte: Acervo da autora.
Figura 10: Detalhe do forro
da sala de recepção. Serro
Formoso. 2017.
Fonte: Acervo da autora.
A sala de recepção preserva o forro de lambris com ideia
de volumetria, e os mesmos efeitos ilusórios do forro da sala
de jantar; e no coroamento aparece o fingimento da técnica de
marchetaria 93 (Figura 10).
93. Marchetaria é a arte ou técnica de ornamentar as superfícies planas de
móveis, painéis, pisos, tetos, através da aplicação de materiais diversos, tais
como: madeira, metais, madrepérola, pedras, plásticos, marfim, etc., tendo
234
Artes pictóricas em forros de madeira...
MEMÓRIA & PATRIMÔNIO
Todas essas ilusões, provocadas por pintura usando a técnica do tromp l’oeil, são repetidas nas aberturas externas e
internas do casarão. A casa senhorial dessa propriedade está
preservada quase integralmente na sua originalidade, porém
parte da decoração foi alterada em virtude de uma intervenção
arquitetônica começada em 1919, que, embora tenha preservado a caixa mural, provocou alterações internas. Em decorrência
dessas mudanças, o salão principal passou a ter a estética do
art nouveau 94, mais uma vez seguindo a tendência europeia. O
forro de madeira deste cômodo recebeu, então, pintura decorativa com desenhos em estilo art nouveau, e efeitos de dourado
em tromp l’oeil. Por vezes, a douração era feita com aplicação
de folhas de ouro, mas neste caso os efeitos de luz e sombra da
pintura deram a ideia reluzente(Figura 11).
Figura 11: Detalhes do forro do salão principal. Serro Formoso. 2017.
Fonte: Acervo da autora.
como principal suporte a madeira.
94. Movimento artístico que surgiu na Europa, por volta de 1880, e que se popularizou no Brasil em torno de 1920. Trazia formas lânguidas, inspiradas na
natureza, como os motivos florais.
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A sala de jantar da Estância Santa Ernestina (1910) conserva o forro de madeira original, composto por lambris, pintados conforme as técnicas empregadas nos forros de lambris da
casa senhorial do Serro Formoso, ou seja, pintados à mão livre,
conferindo veios e nós que seguindo a estética classicista uniformizam a pintura do forro pela forma, tamanho e repetição
de padrões. O arremate se dá na parede, como “roda forro”,
composto por lambris dispostos em diagonais que formam o
efeito “espinha de peixe” (Figura 12).
Figura 12: Detalhe do forro da sala de jantar. Santa Ernestina. 2017.
Fonte: Acervo da autora.
Conclusão
Tendo em vista que as artes pictóricas produzidas nos edifícios, quer públicos ou privados, durante o século XiX, fazem
parte de toda uma contextualização histórica, que começa
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pelos movimentos sociais, artísticos, políticos e culturais da
Europa, chegando aos países de periferia como o Brasil, fica
clara a relevância em pesquisá-las e inventariá-las para fins
de conservação.
Pelotas, devido ao seu apogeu econômico advindo da indústria charqueadora, foi próspera em exemplares luxuosos da
linguagem eclética. Alguns destes têm sua preservação assegurada por tombamento, outros estão inventariados.
Na região da campanha, no Rio Grande do Sul, também os
centros urbanos foram influenciados pela arquitetura europeia
e, assim como Pelotas, importaram construtores, materiais
e tecnologias. Porém, em meio rural, no século XiX as construções eram rústicas, ainda que de propriedade de senhores
abastados. Por esta razão, a particularidade dos bens que são
objetos da pesquisa – as três casas de estâncias, de linguagem
eclética, ricas em ornamentações internas, é digna de reconhecimento e fonte do saber. O recorte eleito para este trabalho
mostrou um pouco das técnicas pictóricas e tendências para
decoração de interiores da época, passando pelas motivações;
recursos materiais; e mão de obra especializada. Neste contexto fica visível a importância dos bens arquitetônicos e suas
artes integradas como agentes do patrimônio, capazes de testemunhar a própria história.
Referências
aLVes, Fábio Galli. Decorações murais: técnicas pictóricas de interiores.
Pelotas/ RS (1878 – 1927). Dissertação. (Mestrado em Memória Social
e Patrimônio Cultural) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade
Federal de Pelotas, Pelotas, 2015.
Gutierrez, Ester. In: Loner, Beatriz Ana; Gil, Lorena Almeida; Magalhães,
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Mario Osorio. Dicionário de História de Pelotas. 3º Ed, Editora UFPel,
Pelotas, 2017.
Praz, Mônica de Macedo. A Estância do Serro Formoso-Lavras do Sul.
RS. Artigo (iV Colóquio Internacional Casa Senhorial-Anatomia de Interiores), Pelotas, 2018.
sanTos, Carlos Alberto Ávila. O Ecletismo Historicista em Pelotas, 18701931. Artigo. Disponível em: http://ecletismoempelotas.wordpress.
com/aruitetura. Acessado em 02/03/2017.
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COLÓFON
Livro composto em Andada e
Open Sans para corpo de texto e
títulos, respectivamente.