pós-23
revista do programa de
pós-graduação em
arquitetura e urbanismo
da fauusp
junho – 2008
ISSN: 1518-9554
pós n. 23
r e vista do programa d e pós-grad u ação
e m arq u it e t u ra e u rbanismo da fa uu sp
junho 2008
ISSN 1518-9554
Ficha Catalográfica
720
P84
PÓS – Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
da FAUUSP/Universidade de São Paulo. Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo. Comissão de Pós-Graduação – v.1 (1990)- . – São Paulo:
FAU, 1990 –
v.: 27 cm
n. 23, jun. 2008
Issn: 1518-9554
1. Arquitetura - Periódicos I. Universidade de São Paulo. Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo. Comissão de Pós-graduação. III. Título
20.ed. CDD 720
Serviço de Biblioteca e Informação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP
PÓS n. 23
Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP
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PÓS n. 23
Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP
junho 2008
Universidade de São Paulo
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Jornalista Responsável
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Cronograma de Teses e Dissertações
Diná Vasconcelos
Tradutores
Márcia Regina Choueri – Espanhol
Rainer Hartmann (Kilter) – Inglês
Projeto Gráfico e Imagens das Aberturas
Rodrigo Sommer
Foto da Capa
Cristiano Mascaro
Sumário
1 apr e s e ntação
007 Denise Duarte
2 d e poim e ntos
010
6 0 A N O S DA F AU U S P
Sylvio Barros Sawaya
João da Gama Filgueiras Lima (Lelé)
Sérgio Ferro
Nadia Somekh
Gilberto Belleza
Ruth Verde Zein
Wilson Ribeiro dos Santos Junior (Caracol)
Francine Sakata
Paulo von Poser
Nelson Baltrusis
Daniel Catelli Amor
Ângelo Marcos Vieira de Arruda
Cristiano Mascaro
Paulo Caruso
3 artigos
034
DOMO DE IZUMO: ESTUDOS INTEGRADOS SOBRE ARQUITETURA, ESTRUTURA E
CONSTRUÇÃO
M a r t a E t s u k o Ta m u r a W a r a g a y a
05 2
P E R C E P Ç Ã O A M B I E N TA L E M U DA N Ç A S N O E S PA Ç O P Ú B L I C O N O PA R Q U E
M E T RO P O L I TA N O D O A B A E T É E M S A LVA D O R / B A
Ana Almeida
070
E S PA Ç O, T E M P O E L U G A R
084
A PA I S A G E M U R B A N A C O M O S I S T E M A D E C O M U N I C A Ç Ã O : U M O L H A R PA R A A C I DA D E
D E S Ã O PAU L O
Carmem Maluf
Maria Ogécia Drigo
Luciana Coutinho Pagliarini de Souza
10 0
A N Á L I S E D I R E C I O N A L D O C R E S C I M E N T O U R B A N O DA R E G I Ã O M E T RO P O L I TA N A D E
S Ã O PA U L O E N T R E 1 9 0 5 E 2 0 0 1 , U T I L I Z A N D O - S E A D I M E N S Ã O F R A C TA L
Mara Lúcia Marques
12 0
V A Z I O S U R B A N O S C O M O VA Z I O S D E P R E S E RVA Ç Ã O : F R A N C O DA RO C H A N A S T E R R A S
DE JUQUERI
14 0
O R N A M E N TA Ç Ã O M O D E R N I S TA : A A Z U L E J A R I A D E P O RT I N A R I N A I G R E J A DA
PA M P U L H A
Iná Rosa
Rafael Alves Pinto Junior
15 6
I N O VA R E C O N S E RVA R : A A M B I G Ü I DA D E N O M O N U M E N T O
C O N S T I T U C I O N A L I S TA
Anna Maria Abrão Khoury Rahme
16 6
E N T R E O D O C U M E N TA L E O S U G E S T I V O
O J A R D I M DA C A S A D E D O N A YAY Á
Vladimir Bartalini
4 conferência na fauusp
18 4
S E M I N Á R I O D E E S T U D O S S O B R E R E S TAU RO A R Q U I T E T Ô N I C O : Q U E S T Õ E S
RECENTES NA ITÁLIA
Beatriz Mugayar Kühl
Alessandro Pergoli Campanelli
Alessandra Cerroti
Simona Salvo
5 eventos
214
O P RO C E S S O D E P RO J E T O, WO R K S H O P N A FAU U S P : E X P E R I M E N T O S DA
A R C H I T E C T U R A L A S S O C I AT I O N S C H O O L O F A R C H I T E C T U R E , D E L O N D R E S , E
DA F AC U L DA D E D E A R Q U I T E T U R A E U R B A N I S M O DA U N I V E R S I DA D E D E S Ã O
PAULO
Joana Carla Soares Gonçalves
219
I I C I N C C I – C O L Ó Q U I O I N T E R N A C I O N A L S O B R E C O M É R C I O E C I DA D E : U M A
RELAÇÃO DE ORIGEM
HELIANA COMIN VARGAS
n ú cl e os, laboratórios de p e sq u isa e
6 s e rviços d e apoio da fa uu sp
224
L A B O R AT Ó R I O D E I N F O R M AT I Z A Ç Ã O D E A C E RV O ( L A B A R Q )
Marlene Yurgel
7 r e s e nhas
234
G E O M E T R I A S S I M B Ó L I C A S DA A R Q U I T E T U R A
Vera M. Pallamin
8 comunicados
240
245
T E S E S E D I S S E RTA Ç Õ E S
N O R M A S PA R A A P R E S E N TA Ç Ã O D E T R A B A L H O S
N O R M A S PA R A P R E S E N TA C I Ó N D E T R A B A J O S
RULES FOR SUBMITTING PAPERS
Notas
(1) BRANDI, Cesare. Teoria da restauração . Cotia: Ateliê, 2004,
p. 25-33.
(2) Paul Philippot entende a restauração como interpretação crítica
que não se deve limitar a uma expressão verbal, mas se exprimir em
ação (Cf. PHILIPPOT, Albert; PHILIPPOT, Paul. Le problème de
l’intégration des lacunes dans la restauration des peintures. Bulletin
de l’Institut Royale du Patrimoine Artistique , Bruxelas, v. 2, p. 5-19,
1959), que remontam a Cesare Brandi. Este apresenta o restauro
como processo de “crítica filológica”, ou “filologia em ação”, como
um problema metodológico, antes de tornar-se técnico, por causa
dos elementos de “hipótese crítica” a entrarem em jogo para se
enfrentar problemas, tais como o tratamento de lacunas e remoção
de adições (Cf. BRANDI, Cesare. L’Institut Central pour la restauration
d’œuvres d’art a Rome. Gazette des beaux-arts , Paris, v. 43, p. 42-52,
1954) .
(3) CARBONARA, Giovanni. Alcuni temi di restauro per il nuovo
secolo. In: CARBONARA, G. (Org.) Trattato di restauro architettonico.
Primo aggiornamento. Torino: Utet, 2007, p. 1-50.
Beatriz Mugayar Kühl
Professora do Departamento de História da Arquitetura
e Estética do Projeto e professora orientadora do curso
de pós-graduação da FAUUSP.
O restauro do complexo
monumental do Templo Catedral de Pozzuoli
Alessandro Pergoli Campanelli
Tradução: Beatriz Mugayar Kühl
Por ocasião do Seminário de Estudos sobre
Restauro Arquitetônico: Questões Recentes na Itália
(FAU-Maranhão, 7 a 10 de agosto de 2007) foram
apresentados os resultados de um concurso
internacional 1 realizado na Itália, em 2004, para a
restauração do complexo monumental templocatedral da antiga acrópole de Pozzuoli, mais
conhecida como Rione Terra. Essa iniciativa, por
uma série de circunstâncias afortunadas, representa
um evento excepcional no variado panorama do
restauro arquitetônico italiano, particularmente
oportuno para ilustrar, aos colegas brasileiros, a
complexidade dos temas e a amplidão do debate
teórico e técnico presentes na Itália.
A própria escolha da administração,
responsável pela realização de um concurso
internacional para encontrar a melhor solução que
restituísse, ao uso cotidiano, um importante complexo
monumental, representa, por si, uma circunstância
singular e digna de nota. A grande qualidade das
propostas apresentadas demonstrou também como,
ao projetar uma intervenção delicada de restauro, é
possível recorrer, com vantagens, ao sistema dos
concursos de arquitetura, desde que, como nesse
caso, o regulamento preveja uma seleção dos grupos
convidados a privilegiarem critérios autenticamente
culturais e não-econômicos, nem de mero lucro. O
próprio tema do concurso merece ser atentamente
estudado pela grande complexidade do estado atual
do monumento – uma catedral barroca construída
sobre um antigo templo romano, com substanciosas
partes de restauro realizadas nos anos 60 e 70 pelo
arquiteto Ezio De Felice, no interior de uma rica área
arqueológica – e pela aparente incompatibilidade
das demandas de projeto existentes no edital. A
catedral, em parte demolida, deverá voltar a
desenvolver as funções de culto, sendo,
contemporaneamente, solicitada a valorização do
confe rências • p. 184-211
pós-
187
sempre únicos e não-reproduzíveis, sendo o restauro
um ato crítico, alicerçado na história e na filosofia.
O ciclo de conferências, com aprofundada
discussão conceitual e de uma rica variedade de
casos de estudos, ofereceu, dessa forma, um
arcabouço teórico metodológico para o tratamento
dos bens culturais como um todo. Insistiu-se,
ademais, na necessidade de entender-se a obra
arquitetônica não apenas como “forma”, mas também
em sua “consistência física”, e como ela repercute
na conformação e no próprio devir das obras ao
longo do tempo, de modo a fornecer elementos para
uma intervenção coerente e responsável.
Nos artigos que se seguem, são explorados
alguns dos temas apresentados no ciclo de
conferências: Alessandro Pergoli Campanelli trata das
tendências atuais do restauro na Itália, pelo exame
do concurso para a Catedral de Pozzuoli; Alessandra
Cerroti aborda o problema dos conjuntos
habitacionais públicos em Roma e sua preservação;
Simona Salvo, por fim, examina as intervenções na
arquitetura contemporânea como tema emergente no
campo do restauro.
pós-
188
templo antigo que, tornando-se de novo legível,
poderá ser apreciado a partir dos percursos
arqueológicos. Como se tudo isso não bastasse para
evidenciar um compêndio daquilo que de mais
difícil se possa apresentar em um projeto de restauro
arquitetônico, deve-se ainda recordar: toda a área é
sujeita a freqüentes e perigosos bradissismos e
fenômenos sísmicos.
A realização de 12 propostas, muito diversas
entre si, apesar de serem todas expressão do
trabalho de grupos interdisciplinares, compostos por
eminentes estudiosos da disciplina e por
profissionais a contarem, em sua bagagem, com
numerosos trabalhos no setor de restauro, demonstra
como também, em qualquer intervenção que seja, de
fato, pertinente à tutela e preservação de bens
arquitetônicos, existem escolhas importantes a
derivarem das diversas abordagens projetuais. Por
conseguinte, também o projeto vencedor representa,
no melhor dos casos, uma entre tantas hipóteses
possíveis e corretas e jamais a única
inequivocamente “certa”, como amiúde se quer fazer
acreditar na tentativa de conduzir a intervenção nos
monumentos – ou, de modo mais geral, nos bens
culturais – a uma unívoca e acrítica aplicação de
regras e tecnologias.
Escolheu-se, pois, apresentar não apenas o
projeto vencedor, que possui, como dito, outras
alternativas igualmente válidas, mas também
documentar o panorama do restauro arquitetônico na
Itália, exatamente pelo confronto direto entre os
projetos dos 12 grupos selecionados para o concurso.
Atualmente, na Itália, podem ser reconhecidas
pelo menos três orientações doutrinárias diversas
pertinentes ao amplo debate, acadêmico e
operacional, sobre a teoria da restauração2 . Além do
chamado “restauro crítico”, desenvolvido no país a
partir dos anos 50, e levado adiante em grande parte
na Universidade de Roma La Sapienza, em linha
ininterrupta que passa por Cesare Brandi, Renato
Bonelli, Giuseppe Zander, Gaetano Miarelli Mariani
até Giovanni Carbonara, para citar apenas os
principais expoentes, é possível reconhecer outras
duas posições que evidenciam, por um lado, os
aspectos documentais e conservativos e, por outro,
aqueles estético-repristinatórios. São conhecidas,
respectivamente, como “pura conservação” –
teorizada por Marco Dezzi Bardeschi e Amedeo
Bellini, ambos docentes da Faculdade de Arquitetura
do Politécnico de Milão, preconizadores de uma
postura de absoluto respeito pela matéria antiga da
obra e de sua complexa estratificação histórica, a
aceitar complementos e acréscimos contemporâneos,
até mesmo em forte contraste com a imagem
completiva do monumento – e a outra, “manutençãorepristinação”, com Paolo Marconi, entre seus
principais teóricos, docente de restauro na
Faculdade de Arquitetura da Universidade de Roma
Tre e partidário de uma linha de restauro a qual
privilegia a apreciação estética do monumento, em
sua formulação arquitetônica originária, autorizando,
inclusive, operações parciais de reconstrução “em
estilo” e de refazimento das superfícies externas.
O concurso de Pozzuoli é, sob esse ponto de
vista, particularmente significativo, pois representou a
oportunidade de ver em ação quase todos os
expoentes dessas três diversas linhas, no interior dos
grupos convidados a participar da fase final do
concurso.
Se, com efeito, na apresentação do edital,
elaborada por Giovanni Carbonara, são expressos,
com clareza, os princípios da atual vertente “críticoconservativa” ao tema da restauração, foi garantida,
ao mesmo tempo, a máxima abertura às diversas
linhas, com a participação, por um lado, de Marco
Dezzi Bardeschi, e, por outro lado, de Paolo Marconi,
sem considerar todos os outros grupos nos quais
estavam presentes muitos prestigiosos expoentes das
diversas escolas.
O objeto do concurso é um monumento
composto (Figuras 1 e 2), como mencionado
anteriormente, por um templo romano de período
augustal (o provável Capitolium3 da colônia romana
de Puteoli, realizado com base naquilo que consta
em uma antiga inscrição, pelo arquiteto Lucio
Cocceio Aucto) no qual, após sucessivas adaptações
e estratificações, surgiu uma importante catedral
barroca 4 . O antigo edifício foi adaptado como igreja
(dedicada ao mártir cristão S. Procolo) de modo
substancialmente respeitoso (a menção mais antiga
remonta a um documento de 1026). A época em
que foram realizadas as primeiras intervenções
estruturais é incerta (final do século 13, início do
século 14), com a criação de algumas capelas
adossadas no exterior das paredes perimetrais;
seguramente, a fachada setentrional do templo
pós n.23 • são paulo • junho 20 08
Figura 2: Catedral de
Pozzuoli. Entrada do
complexo
arquitetônico
Crédito: Foto de
Alessandro Pergoli
Figura 1: Catedral de Pozzuoli. Levantamento métricoarquitetônico do monumento. Corte longitudinal
Fonte: Material de divulgação do concurso
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Figura 3: Catedral de
Pozzuoli. A cúpula
da capela barroca
do Santíssimo
Sacramento convive
com as antigas
colunas do templo
de Augusto
Crédito: Foto de
Alessandro Pergoli
Figura 4: Catedral de
Pozzuoli. Importantes
elementos
ornamentais barrocos
foram saqueados, em
decorrência do longo
abandono do
monumento
Crédito: Foto de
Alessandro Pergoli
confe rências • p. 184-211
189
(aquela reproduzida por Sangallo no final do século
15) permaneceu visível até 1632, quando o bispo
Martín de León y Cárdenas encomendou uma nova
sistematização da catedral (realizada em três etapas
sucessivas, entre 1632 e 1649) que, com efeito,
escondeu por completo o edifício antigo sob a
decoração e estuques barrocos sem, no entanto,
promover obras de demolição sistemática das antigas
estruturas. O templo romano sobreviveu, pelo menos
de modo parcial, no interior da nova construção
realizada, mantendo, em seu interior, grande parte
do precioso material marmóreo antigo. Nos séculos
seguintes, a catedral passou por ulteriores
embelezamentos os quais enriqueceram seu interior
até que, em 1964, um violento incêndio causou o
desabamento de algumas paredes, a destruição do
teto e de boa parte dos revestimentos, trazendo
novamente à vista algumas colunas, a arquitrave e as
paredes da cela do antigo edifício (Figuras 3 e 4).
Análises sucessivas permitiram identificá-lo como um
templo, originariamente com lados de cerca de 24
por 15 m, com uma cela quadrada, nove colunas da
ordem coríntia no lado maior e seis na fachada
principal, com um modelo pseudo-períptero. A
“falsa” colunata é, porém, adossada nas paredes da
cela, de modo a simular uma verdadeira; as colunas
possuíam, na origem, função portante, uma vez que
as paredes da cela, de reduzida espessura,
comportavam-se, na verdade, como simples vedação.
A construção, como um todo, eleva-se sobre um alto
pódio que engloba os restos de um edifício
precedente, identificável como um primitivo
capitolium do período republicano e encontra-se no
pós-
190
ponto mais alto da acrópole a partir do qual,
antigamente, era possível avistar o mar.
O entusiasmo pela descoberta de um importante
templo romano datável do século I a.C., com a perda
de grande parte das decorações barrocas, convenceu
a administração estatal de tutela da oportunidade de
focalizar o restauro em premissas arqueológicas,
mesmo em detrimento de muitas porções restantes do
conjunto barroco, que foram demolidas5.
A intervenção sucessiva de restauro foi realizada
pelo arquiteto Ezio De Felice, com o arquiteto Paolo
Di Monda e o engenheiro Mario Cappelli, que
empreenderam uma primeira consolidação do
templo, com a inserção de elementos de ferro (nas
bases, nas colunas, nos capitéis e no entablamento)
e a realização de um apoio de concreto armado
sobre microestacas. Particularmente interessantes,
também do ponto de vista estético, são as
reintegrações de concreto armado dos fustes das
colunas (Figura 5). Foi, então, realizada uma
cobertura metálica para a proteção temporária do
canteiro de restauro (Figura 6). Os trabalhos foram
suspensos em 1972 e, sucessivamente, novas
escavações arqueológicas trouxeram à luz outros
fragmentos marmóreos pertencentes ao templo
romano, dos quais, no entanto, não se conseguiu
determinar com absoluta certeza a posição originária.
Esse, em grandes linhas, era o estado, de fato, do
monumento quando, pressionados pela urgência de
realizar ulteriores obras de consolidação estrutural e
pela vontade de dar nova vida e funcionalidade ao
monumento, foi tomada a resolução de realizar um
concurso internacional para estabelecer as delicadas
– em virtude da extrema complexidade do projeto –
intervenções de restauro.
A idéia de restituir a função de culto ao templocatedral nasceu a partir de um programa mais amplo
que prevê repovoar e valorizar, também do ponto de
vista turístico, o Rione Terra (uma primeira fase das
obras já realizadas é visível nos percursos
arqueológicos projetados pelo grupo Gnosis6 ), quase
inteiramente abandonado depois do terremoto dos
anos 70. Concretizou-se, assim, a vontade, política e
cultural, de conceder novamente, à estrutura
barroca, sua função de culto (reintegrando, onde
possível, as partes remanescentes) e, conjuntamente,
promover uma melhor fruição das preexistências
arqueológicas, requerendo dos projetistas a
promoção de uma unidade arquitetônica nessa
complexa série de problemas, com a ajuda de um
grande número de consultores qualificados.
O concurso exigia, com efeito, como requisito
principal, a composição de um amplo grupo
interdisciplinar constituído, pelo menos, por um
arqueólogo, um historiador da arquitetura
especializado em Renascimento e Barroco, um
liturgista, um arquiteto especializado em restauração
de monumentos, um especialista em estruturas, outro
Figura 5: Catedral de Pozzuoli. Uma imagem do canteiro de
obras. Desatacam-se as reintegrações dos anos 60
Crédito: Foto de Alessandro Pergoli
Figura 6: Catedral de
Pozzuoli. Interior do
edifício, com a
cobertura temporária
colocada no restauro
de De Felice
Crédito: Foto de
Alessandro Pergoli
pós n.23 • são paulo • junho 20 08
Corvino), Ludus absentiae et presentiae (O jogo
da ausência e da presença – coordenação de
Pasquale Culotta), Retenta ad memoriam
vetustatis (Retidos para a memória da posteridade
– coordenação de Donatella Fiorani), Tempio e
cattedrale – Compositio oppositorum (Templo e
catedral composição dos opostos – coordenação
de Paolo Marconi), Avendo cura (Cuidando com
atenção – coordenação de Tobia Scarpa).
Uma pormenorizada exposição dos 12
projetos deve, necessariamente, ser extensa e não
pode, por evidentes problemas de espaço, ser
feita neste artigo. Cada projeto mereceria uma
tratativa própria, acompanhada de rica
documentação iconográfica. Escolheu-se, pois,
apresentar sumariamente algumas características
de três projetos, representativos das diversas
vertentes do restauro na Itália, apresentadas acima.
O primeiro é o vencedor do concurso,
Elogio del palinsesto; um projeto, como se vê no
próprio mote, que se propõe a manter as
numerosas estratificações a marcarem a vida do
complexo, incluindo as últimas adições modernas
de De Felice, favorecendo seu arraigamento
recíproco (Figuras 7 e 8). As novas adições são
declaradamente contemporâneas, podendo,
mesmo, representar uma ulterior estratificação no
monumento: a colunata romana foi fechada com
grandes placas de vidro estrutural que deveriam
repropor a transparência dos intercolúnios
antigos (as colunas faltantes serão reproduzidas
por serigrafia) e também recriar um espaço
interno protegido para as funções litúrgicas. No
teto, foi sugerida uma simplificação dos antigos
caixotões que delimitam a exata volumetria do
templo romano. A cota do pavimento foi
habilmente unificada por um plano inclinado – a
unir o presbitério barroco, situado mais embaixo,
ao originário nível do templo –, sobre o qual se
encontram os assentos da nova igreja; estes
últimos, na verdade bancos fixos de madeira,
comportam-se quase como um “encrespamento”
do pavimento, também em madeira, e
evidenciam com simplicidade e clareza, também
nos materiais, a nova adição, enquanto um piso
marmóreo recorda a parte ocupada pelo antigo
pronau. Essa elevação do pavimento permite, ao
mesmo tempo, que sob ela se conservem os
confe rências • p. 184-211
pós-
191
em instalações, além, obviamente, do arquiteto
coordenador do grupo, com outros eventuais
projetistas. No que concerne à abordagem
metodológica, o edital determinava, em sua abertura,
o respeito pelos princípios-guia basilares da
intervenção, os quais deveriam ser considerados,
nessa altura, amplamente adquiridos, pelo menos na
Itália, na moderna teoria do restauro científico, tais
como: a subordinação da obra, como um todo, à
conservação mais ampla possível do monumento; o
critério da “mínima intervenção” e do respeito pela
autenticidade da obra; a reversibilidade, pelo menos
potencial; a distinguibilidade, a atualidade expressiva
e a compatibilidade físico-química e figurativa das
novas adições; o respeito pelas estratificações, assim
como pelos testemunhos ditos “menores”. As
diretrizes arqueológicas dadas por Giuliana Cavalieri
Manasse 7 , também parte do edital, tinham orientação
ligeiramente diversa, sugerindo, ao contrário, uma
“repristinação” das “linhas essenciais da construção
antiga”, imaginada, de certa forma, como
independente das complexas estratificações
sucessivas, não raro de qualidade e, de todo modo,
de indubitável valor histórico. Trata-se de um tema
difícil, a evidenciar a dificuldade de fazer escolhas
coerentes guiadas por princípios inspiradores
freqüentemente em conflito entre si.
O primeiro prêmio (100.000 euros, além da
designação de elaborar o projeto definitivo) foi
concedido ao grupo Elogio del palinsesto (Elogio do
palimpsesto), com coordenação de Marco Dezzi
Bardeschi; o segundo (60.000 euros) foi outorgado ao
grupo que tinha como mote In cielo e in terra (Assim
no céu como na terra), coordenado por Guido
Batocchioni; o terceiro (45.000 euros) foi conferido
ao grupo com a divisa Est modus in rebus (Há uma
medida nas coisas), coordenação de Luca Zevi. Os
outros nove grupos convidados para a segunda fase
do concurso são, por ordem alfabética, aqueles com
lema: Genius loci (coordenação de Alessandro
Anselmi), Dulce ad summas emergere opes
(Agradavelmente se elevar para grandes riquezas –
coordenação de Corrado Bozzoni), Facemmo ali al
folle volo (Demos asas ao vôo desmedido, ou Demos
asas à imaginação – coordenação de Stella Casiello),
Tertium quid (Pela terceira vez – coordenação de
David Chippelfield), Vino nuovo in otri nuovi (Vinho
novo em odre novo – coordenação de Vincenzo
Figura 7: Catedral de
Pozzuoli. Uma prancha do
projeto vencedor
Fonte: Material de
divulgação do concurso
pós-
192
Figura 8: Catedral de
Pozzuoli. Uma prancha do
projeto vencedor
Fonte: Material de
divulgação do concurso
Figura 9: Catedral de
Pozzuoli. Imagem do
projeto do grupo In
cielo e in terra ,
coordenado por Guido
Batocchioni
Fonte: Material de
divulgação do
concurso
Figura 10: Catedral de
Pozzuoli. Imagem do
projeto Tempio e
cattedrale –
Compositio oppositorum
(coordenação de Paolo
Marconi)
Fonte: Material de
divulgação do
concurso
pós n.23 • são paulo • junho 20 08
sem salientar ainda mais, no interior, sua composição
heterogênea, metade pagã, metade cristã”, enquanto
“de longe o frontão tornará a projetar-se com sua
composição de templo clássico, compreendendo os
capitéis renovados, que emergem do teto
transparente do vestíbulo de ingresso”.
Notas
(1) Para consultar o edital e os projetos apresentados, ver o sítio
http://www.acmaweb.com/CONCORSO-POZZUOLI e a publicação
Tempio duomo di Pozzuoli progettazione e restauro , Nápoles, 2006.
(2) Para uma exposição ampla sobre o assunto, ver: CARBONARA, G.
Orientamenti del restauro in Italia, sviluppi attuali, L’architetto
italiano , v. II, n. 7, 2005, p. 66-69; Che Cos’è il restauro? Nove
studiosi a confronto, da un’idea di B. P. Torsello, Veneza, 2005;
CARBONARA, G. Entrevista. In: MASCARENHAS MATEUS, J. A
conservação urbana em Itália, Lisboa futura , n. 3, 2004, p. 64-65.
(3) Segundo alguns autores, o templo poderia ser dedicado a Apolo;
para outros, seria, ao contrário, voltado ao culto do imperador
Augusto; esta última atribuição é baseada na interpretação de uma
inscrição existente na fachada até o século 16 (L CALPURNIUS L F
TEMPLUM AUGUSTO CUM ORNAMENTIS D S F), inscrição gravemente
danificada e suscetível de interpretações diversas. Para uma análise
mais aprofundada, ver: I Campi Flegrei, un itinerario archeologico ,
Nápoles: Marsilio, 1990; Guida di Pozzuoli e del suo territorio .
Pozzuoli: Comune di Pozzuoli, 1986; ADINOLFI, R. I Campi Flegrei
nell´antichità 1 ( Pozzuoli e Cuma). Pozzuoli: Secretaria de Turismo,
1978; CASTAGNOLI, F. Topografia de Campi Flegrei; Atti dei convegni
lincei, Roma, n. 33, p. 42-79, 1977; MAIURI, A. I Campi Flegrei (dal
Sepolcro di Virgilio all´antro di Cuma) . Roma: Istituto Poligrafico dello
Stato, p. 34-35, 1963.
(4) Na Itália, tais estratificações complexas são bastante freqüentes.
Um caso análogo na região da antiga Magna Grecia é, por exemplo,
aquele da catedral de Siracusa (construída no século 7 d.C.,
utilizando as estruturas do precedente templo dórico de Atenas).
(5) O fato de depois de poucos anos (pouco mais de 30 anos, um
período de tempo irrisório em relação à vida de monumentos tão
antigos) ter-se mudado drasticamente de opinião sobre o tipo de
intervenção a ser realizada, deveria promover a reflexão de qualquer
um que queira se aproximar dos temas da restauração sobre a
necessária consciência de sua estreita ligação com opiniões e
avaliações mutáveis no decorrer do tempo.
(6) CASTAGNARO, A. Antico e nuovo, il caso del Rione Terra di
Pozzuoli, AR , v. XXXIX, n. 53, 2004, p. 27-30.
(7) CAVALIERI MANASSE, G. Linee generali per il recupero del
cosiddetto tempio di Augusto a Pozzuoli, texto de orientação anexado
ao edital do concurso.
Alessandro Pergoli Campanelli
Professor arquiteto da Faculdade de Arquitetura Valle
Giulia da Università degli Studi di Roma “La Sapienza”.
Atualmente, desenvolve doutorado desde 2006, em
História e Restauro da Arquitetura, na mesma
instituição.
confe rências • p. 184-211
pós-
193
remanescentes do pódio do período republicano. No
exterior, um novo campanário, inconfundivelmente
contemporâneo e em contraste explícito com as
estruturas preexistentes, anuncia a retomada da
função litúrgica.
O segundo projeto escolhido é In cielo e in
terra (coordenado por Guido Batocchioni) o qual,
diferente do anterior, é figurativamente mais discreto
e pode ser considerado representativo da atual
tendência “crítico-conservativa”; escolhas miradas à
conservação das partes remanescentes antigas unemse a um sofisticado emprego dos materiais, em parte
tradicionais, em parte contemporâneos (Figura 9).
Externamente, procurou-se restituir a imagem do
antigo templo, repropondo, de modo indicativo, o
pronau, a ser utilizado como átrio e alpendre da
igreja. Tal escolha se estende também à fachada
principal, com a recolocação in situ dos
remanescentes mais significativos, a reproposição da
decoração arquitetônica nos ângulos do coroamento
e a retomada do primeiro intercolúnio. Escolhas
consideradas admissíveis com base na necessidade
de tornar compreensível a imagem do antigo templo,
mitigadas pela presença, na confinidade da porção
do templo reconstruída, das partes remanescentes da
velha catedral. A cobertura foi concebida como
elemento de união que, por uma única superfície
contínua, ondulada e vibrante, reproduz os traços
das subjacentes coberturas perdidas.
Por último, vale a pena evidenciar as escolhas,
manifestamente repristinatórias de uma imagem
clássica perdida, propostas pelo projeto Tempio e
cattedrale – Compositio oppositorum (coordenado por
Paolo Marconi) que se considera exemplificativo da
atual tendência chamada “manutençãorepristinação” (Figura 10). Como é possível ler no
memorial do projeto, a vontade, declaradamente
dissonante em relação às outras duas propostas, é a
catedral voltar “a ser unificada ao templo augustal,