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douglas assis
restauração da capela de são bento em bento rodrigues: por uma “hontologia” da ruína
aline xavier e haroon gunn-salie. profecia – da série agridoce, escultura em poliuretano, museu de congonhas, 2017.
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RESTAURAÇÃO DA
CAPELA DE SÃO BENTO
EM BENTO RODRIGUES:
POR UMA “HONTOLOGIA”
DA RUÍNA
lucas andrade neves dutra cosendey*
resumo Tomando como ponto de partida a catástrofe resultante do rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana
(MG), no ano de 2015, o artigo propõe uma discussão conceitual sobre o trato das ruínas da Capela de São Bento, em Bento
Rodrigues (MG), no âmbito da conservação e do restauro arquitetônico. Apostando no potencial inerente às situações
limítrofes para tensionar as estruturas do pensamento hegemônico, discute-se, em primeiro lugar, a adequação da teoria de
Cesare Brandi para o trato da questão. Num segundo momento, propõe-se ampliar a perspectiva ontológica da ruína, vista
em Brandi, na direção de uma hontologia, como definido pelo desconstrutivista Jacques Derrida.
palavras-chave catástrofe; ruína; restauração.
RESTORATION OF SÃO BENTO’S
CHAPEL IN BENTO RODRIGUES: A RUIN
“HAUNTOLOGY”
abstract Taking as a starting point the catastrophe resulting from the rupture of the Fundão Dam in Mariana (Minas Gerais,
Brazil), in 2015, the article proposes a conceptual discussion around the treatment of the ruins of São Bento’s Chapel, at
Bento Rodrigues (Minas Gerais, Brazil), in the field of architectural conversation and restoration. Betting on the inherent
potential of catastrophic situations to tension the hegemonic thinking structures, it is firstly discussed the suitability of
Cesare Brandi’s theory to address the matter. At a second moment, it is proposed a broadening of the ontology perspective
of the ruin, in Brandi, towards a “hauntology”, as defined by the deconstructivist Jacques Derrida.
keywords catastrophe; ruin; restoration.
* Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
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1. Introdução
E
m 5 de novembro de 2015, a barragem de retenção de rejeitos de mineração de
minério de ferro de Fundão, localizada em Mariana (MG) e operada pela mine-
radora Samarco Mineração S.A., subsidiária das empresas Vale S.A. e BHP Billiton
Limited, rompeu-se, liberando um volume aproximado de 32,6 milhões de m³ de lama
no vale do Rio Gualaxo do Norte, afluente do Rio Doce.
A onda de rejeitos percorreu extensamente os leitos dos dois rios, afetou diretamente 39 municípios mineiros e capixabas e desaguou no Oceano Atlântico, o que
provocou a maior catástrofe humana e ambiental da história do país até então. A primeira localidade atingida foi Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana, que recebeu a
onda de rejeitos de minério cerca de 15 minutos após o rompimento da barragem. A
inexistência de sistemas de alarme e de procedimentos preestabelecidos de evacuação
resultou em uma situação caótica para os cerca de 600 residentes. O relato de Edirléia Marques dos Santos, registrado na publicação Atingidos, realizada pelo Ministério
Público do Estado de Minas Gerais, ilustra o pesar do ocorrido:
Eu e minha irmã estávamos na parte baixa do Bento e vimos muita gente correndo, mas
não sabíamos o que estava acontecendo. Quando ouvimos o barulho da lama, já víamos o
clarão de água chegando. Fui correndo para casa ver meus filhos, mas tenho asma, pensei
que não conseguiria chegar lá. Disse para minha irmã “pelo amor de Deus, tira os meus
meninos de lá!”. Em minha casa estava tudo tranquilo, mas não sabia a que altura a lama
poderia chegar. Então subimos um morro, eu, minha irmã e os meninos. Quando olhei
pra trás, a lama já tinha engolido tudo. A gente via uma casa e, no outro segundo, ela já
estava enterrada. Foi o pior momento que vivi na vida. Imagina você com criança tendo
que correr, sem saber se vai sobreviver. É desesperador (MPMG; CÁRITAS BRASILEIRA,
2016).
O êxodo dos moradores teve início ainda no dia do rompimento: helicópteros
da Defesa Civil de Minas Gerais e do Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais
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iniciaram os resgastes, porém o anoitecer obrigou a interrupção das buscas. No dia seguinte, ainda havia moradores ilhados, e se iniciou a contagem de mortos e desaparecidos. O rompimento culminou na morte de 19 pessoas, além de outras perdas de difícil
mensuração. A farta cobertura midiática difundiu nacional e internacionalmente uma
infinidade de relatos, fotografias, vídeos e entrevistas que, apesar da extensão do dano
ambiental que se pronunciava em direção ao litoral brasileiro, fizeram da pequena
Bento Rodrigues símbolo internacional da catástrofe.
Historicamente, Bento Rodrigues integrou um circuito de localidades de grande importância para o desenvolvimento do ciclo do ouro na região de Mariana, por
isso apresentava características comuns às vilas de garimpo do período, como o traçado urbano, padrão de ocupação e exemplares de arquitetura sacra de estilo barroco.
Apesar da herança colonial, a localidade não se destacava arquitetônica ou artisticamente como outras localidades próximas, nas quais a preservação das edificações civis
e religiosas evoca o período da exploração aurífera. Registros fotográficos dos anos
2000 em diante revelam que, à exceção das Capelas de São Bento, situada na parte
baixa do distrito, e de Nossa Senhora das Mercês, na parte alta, o casario civil colonial
já havia sido substituído ou havia sofrido intervenções espontâneas de modernização.
A Capela de São Bento, atingida pelo rompimento da barragem em 2015, é resultante
de uma reconstrução datada dos anos 1850, que incorporou elementos arquitetônicos recuperados do incêndio da capela primitiva, esta construída provavelmente em
1718. A nova capela apresentava proposta estilística alinhada com um barroco tardio,
já influenciado pelo gosto rococó, um arranjo muito comum nas pequenas capelas
mineiras do século XIX. Sua arquitetura contrastava a rusticidade de paredes de terra
e peças de madeira lavradas à mão com um interior de altares e retábulos ricamente
entalhados.
Apesar da condição material descaracterizada, o que do ponto de vista das teorias
e das políticas tradicionais de proteção não motivaria seu reconhecimento como patrimônio cultural material – como, de fato, não ocorreu antes do rompimento –, a localidade de Bento Rodrigues se configurava como uma localidade pacata e tradicional,
com relativo isolamento, e que foi capaz de preservar, no durar tempo, seu estilo de
vida, seus hábitos e seus costumes. Diferentemente de outras localidades com perfis
social, ambiental e geográfico semelhantes, Bento era marcado por uma economia
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local relativamente independente da mineração. Integrante do circuito da Estrada Real,
o distrito tirava partido do turismo ecológico e cultural para comercializar serviços e
produtos locais, como quitutes, laticínios, hortaliças e refeições.
Após o rompimento da barragem, a parte baixa do distrito foi soterrada pelo rejeito
de minério – restando em ruínas – e apenas as edificações situadas nas cotas mais elevadas mantiveram-se íntegras. O esvaziamento e a proibição de ocupação do distrito,
decretados de imediato pela Defesa Civil em decorrência do risco de rompimento da
barragem remanescente de Germano, resultou ainda no saque e na depredação das
casas remanescentes nas cotas mais elevadas. Tal fato conferiu à localidade um aspecto de completa destruição e abandono. O risco de um segundo rompimento persiste:
de acordo com o “Plano de Segurança para as comunidades próximas a barragens de
mineração” (MINAS GERAIS, 2019), a barragem de Germano é classificada como detentora de alto “Dano Potencial Associado”, levando em conta os critérios de volume
do reservatório, existência de população a jusante, impacto ambiental e impacto socioeconômico, o que subsidia a decisão técnica – e política – de manutenção da proibição
de reocupação do território.
A fim de garantir a preservação das ruínas de Bento Rodrigues, em que se inclui a Capela de São Bento, o Conselho Municipal do Patrimônio Cultural de Mariana
(COMPAT) optou, ainda em 2015, pela utilização do instrumento do tombamento,
editado em caráter provisório e sem diretrizes específicas. Para elaboração de um documento definitivo, o COMPAT acionou o Ministério Público Estadual, que encaminhou
a demanda ao Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios
(ICOMOS Brasil), momento em que teve início a elaboração do Dossiê de Tombamento de Bento Rodrigues. O documento definitivo foi publicado em Maio de 2019, tendo
sido desenvolvido entre os anos de 2016 e 2019, sob a tutela do Professor Leonardo
Barci Castriota, também representante do ICOMOS Brasil, no âmbito do Programa
de Pós-Graduação em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável da Escola de
Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (PPACPS/UFMG). Sobre a
Capela de São Bento, o Dossiê encaminhava a necessidade de tombamento das ruínas,
sua manutenção como lugar de encontro e de uma restauração que tivesse seus contornos discutidos entre os atores envolvidos.
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2. Desafios conceituais
À revelia do imperativo de proibição de sua reocupação, Bento Rodrigues vem sendo gradativamente reapropriado e revisitado pelos antigos moradores em eventos religiosos ou cívicos, acampamentos e visitas despretensiosas ao longo da semana. Em
conversas informais e entrevistas para a realização dos projetos de restauração das
capelas atingidas, os moradores frequentemente indicam os resquícios de suas casas
ao caminhar pelas ruas agora cobertas de rejeito de minério. Passado o primeiro momento de resistência das autoridades em reconhecer e permitir a visitação, o direito de
visitas irrestritas foi conquistado pelos atingidos.
Desde 2017, o dia 29 de julho foi marcado pelas celebrações da festa do tríduo em
devoção ao padroeiro São Bento em meio às ruínas da localidade. Os preparativos têm
início na semana que precede o fim de semana de comemoração. Para realização da
festividade no domingo, muitos se deslocam para Bento, ainda na sexta-feira após a
missa em Mariana, e passam à noite em uma das casas abandonadas que foi recentemente readequada para o uso comunitário. No sábado, a bandeira do padroeiro é
hasteada em frente à porção remanescente da Capela de São Bento e, no dia seguinte,
domingo, é realizada uma missa. Em gesto de forte simbolismo, os cultos têm sido celebrados sobre os escombros da Capela de São Bento, reduzida aos seus embasamentos e tabuados de piso, o que explicita o desejo comunitário de que a Capela, apesar de
sua condição devastada, permaneça como local de celebração.
Dentre vários programas de mitigação, o Termo de Transação e Ajustamento de
Conduta (TTAC) deu início a uma série de trabalhos emergenciais de resgate e salvaguarda do patrimônio sacro impactado na chamada “área de origem”, imediatamente
abaixo da barragem rompida. Durante o desenvolvimento dos trabalhos por mais de
sessenta profissionais das áreas de arquitetura, engenharia, restauração, história e arqueologia, enunciava-se o desafio conceitual envolvido nas propostas de conservação e
restauração do patrimônio edificado deixado em ruínas. Mais do que as dificuldades de
ordem operacional, como técnicas de transporte, limpeza e diagnóstico, postas diariamente aos profissionais, eram as questões teóricas e conceituais as responsáveis pelas
maiores incertezas. A participação dos bento-rodriguensses, entretanto, enfrentou limitações por parte da contratante – reticente de novas medidas judiciais - assim como
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por parte da comunidade – compreensivelmente focada na questão das indenizações
e das moradias que seguiam pendentes. De toda forma, o desenvolvimento dos trabalhos revelou rapidamente as limitações das teorias do restauro tidas como estabelecidas e a necessidade de ampliação do debate conceitual acerca do tema da restauração
das ruínas decorrentes do rompimento.
3. A ontologia da ruína em Cesare Brandi
A restauração como disciplina autônoma tem suas origens em fins do século XIX,
a partir da confrontação de duas correntes doutrinárias diametralmente opostas: uma
intervencionista, que predominou na maior parte dos países europeus e teve como
principal expoente o francês Eugéne Viollet-le-Duc; e uma anti-intervencionista, difundida principalmente na Inglaterra pelo conservador John Ruskin (CHOAY, 2001).
A teoria inglesa caracterizou-se por uma postura radicalmente avessa à restauração,
elevando-a à mesma condição de impossibilidade de ressuscitar os mortos. Do lado
francês, a restauração assume os contornos idealistas, podendo representar não apenas o retorno à condição originária, mas também a restituição à um estado completo
que sequer terá existido. A partir do último quartel do século XIX, uma orientação
mais amena e resultante da síntese dos pensamentos de Ruskin e Viollet-le-Duc começa a tomar forma, tendo sido sintetizada pelo italiano Camilo Boito em sua conferência “Os restauradores”, em 1884. A obra de Boito influenciou diretamente toda uma
geração de pensadores da restauração, dentre os quais destaca-se nesta análise o italiano Cesare Brandi, autor de Teoria da Restauração. Publicada em meados do século XX
e seguida de inúmeros esforços de teorização por outros autores, a teoria de Brandi se
mantém até hoje como a mais proeminente referência na área, especialmente no que
tange o contexto brasileiro (CARSALADE, 2015).
Ainda que a ruína não constitua propriamente o objeto de análise de Brandi, toda
sua compreensão de uma necessidade de racionalização da restauração se ancora num
contexto europeu vitimado pelas duas grandes guerras mundiais e marcado por duas
décadas de reconstrução sistemática e pouco criteriosa das ruínas resultantes dos bombardeios. Talvez por esse motivo seu estudo sobre inteiros e lacunas tenha sido eixo
condutor de toda uma práxis de intervenções em ruínas, tanto na modernidade quanto
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no momento contemporâneo, o que torna indispensável sua análise para a reflexão de
uma intervenção restauradora na Capela de São Bento.
De início, é necessário que se entenda a diferenciação proposta pelo autor entre
as condições de “total” e “inteiro”. O objeto artístico tomado como “total” encontra sua
potencial artisticidade pela união da constelação de todas as partes que o conformam,
partes estas que também manifestam condições para que sejam reveladas como arte,
mesmo que tomadas individualmente. Para o autor, entretanto, o objeto artístico se
realiza como um “inteiro”. No seu entendimento, a artisticidade só poderia ser construída no nível da consciência se as partes fossem tomadas como constelação, de forma
que, dispersos, os fragmentos se tornariam inertes e constituiriam “lacunas”. Para
Brandi, as “lacunas” das obras de arte se resolvem pela perspectiva da Gestalt: devem
ser trabalhadas em uma relação figura-fundo, assumindo sua existência e evitando
assim integrações fantasiosas. Se na arte móvel o problema da lacuna se desenvolve na escala do suporte, na arquitetura essa questão toma contornos complexos e se
transforma numa questão muitas vezes urbanística. Para o autor, a capacidade de uma
arquitetura lacunar retornar à sua condição prévia reside na ideia de “unidade potencial”, da qual este texto se ocupará a seguir, e que constitui a condição fundamental
para a regulação de uma práxis da restauração. Com essas premissas, Brandi define
o restauro como reencontro da perdida “unidade originária, desenvolvendo a unidade
potencial dos fragmentos” (BRANDI, 2017, p. 46). Essa visão do restauro impõe uma
limitação ao entendimento da obra arruinada como objeto social, pois reduz a condição da perda à definição de possibilidade da matéria remanescente atuar como suporte
para revelação da imagem originária.
A ruína para Brandi é essencialmente ontológica: constitui-se como tal, independentemente do saber e do juízo que se faça sobre ela, diferenciando-se das demais
obras de arte por não poder ser recondicionada à sua unidade potencial originária,
restando a ela apenas os processos de consolidação e conservação. Isso se daria porque,
diferentemente da obra de arte restaurável, o valor da ruína residiria, em essência, no
seu passado, restando à sua presença um escassíssimo valor. Sendo assim, o objetivo
da ação conservativa passaria a ser o de transmitir ao futuro o testemunho histórico
impresso na porção remanescente de matéria, e não mais conduzir essa porção remanescente à sua condição de unidade.
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De maneira geral, Cesare Brandi não elegeu a arquitetura como centro de sua
teoria da restauração. Pelo contrário, seu discurso se ocupa fundamentalmente das
artes visuais. Consequentemente, o restauro arquitetônico foi trabalhado pelo autor
exclusivamente do ponto de vista relativo ao conceito de integridade visual, de acordo
com o qual “a obra seria um todo fechado do qual nada se poderia retirar ou acrescentar o que para a desejável sobrevivência dos artefatos arquitetônicos seria uma tarefa
impossível” (CARSALADE, 2015, p. 63). Nesse sentido, o arruinamento do objeto arquitetônico a que se dedica Brandi não se constitui da mesma forma que a perda do
objeto arquitetônico vitimado pela catástrofe em Bento Rodrigues.
No rompimento da barragem de Fundão, o arruinamento de Bento Rodrigues se
une à catástrofe humana e é permeado por um sentimento coletivo de insatisfação política sobre os diversos níveis de irresponsabilidade da mineradora e do poder público.
Ademais, uma extrapolação da Teoria da Restauração subsidiada por um gesto de contextualização permite compreender que a perda do objeto arquitetônico, em Brandi,
não representa uma ruptura no cotidiano, senão pelo enfraquecimento do ideal nacional resultante dos conflitos bélicos. A perspectiva da perda não passaria pelo sujeito ou
pela coletividade, mas, sim, pelo seu impacto no discurso hegemônico em que o objeto
figuraria como documento histórico ou como símbolo de soberania e civilização.
A análise da perspectiva ontológica brandiana nos revela, então, a necessidade de
uma aproximação teórica à questão da restauração das ruínas da Capela de São Bento
que se mostre sensível às possibilidades de subjetivação e capaz de abordar valores e
afetos não necessariamente atrelados à materialidade. Como aporte teórico para essa
discussão, valeremo-nos de uma abordagem favorecida pela Desconstrução, de Jacques
Derrida.
4. A “hontologia” em Jacques Derrida
A Desconstrução é uma corrente teórico-crítica atribuída ao filósofo argelino Jacques
Derrida e categorizada, usualmente, como uma teoria de orientação pós-estruturalista.
Embora tenha sido apropriada e instrumentalizada na década de 1980 para o desenvolvimento de uma arquitetura de vanguarda e que não tenha se ocupado do debate
da restauração, a Desconstrução possibilita uma compreensão sobre a transitoriedade
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do objeto arquitetônico arruinado que em muito tem a contribuir com a aproximação
à uma arquitetura permeada por afetividades e laços de identificação, principalmente
nos contextos em que esta se mostre tensionada por discursos conflitantes. Nos contextos de conflito e descrença das comunidades atingidas em relação às instituições
políticas e privadas envolvidas nos processos de reparação, a teoria de Derrida contribuirá com o entendimento do aporético, indizível e indecidível como alternativa possível para binarismos radicais excludentes, como o binômio “arquitetura versus ruína”
imposto por uma leitura de cunho brandiano.
Em oposição ao que definimos como uma ontologia da ruína, avançaremos em
direção à questão da arquitetura arruinada por intermédio da dimensão subjetivada
da perda do objeto querido, o que, na psicanálise de Sigmund Freud (2014), definiu-se
como o “afeto do luto” e que, como veremos, foi ponto de partida das elaborações de
Jacques Derrida sobre a condição do “espectro”.
No ensaio Luto e Melancolia, publicado pela primeira vez em 1917, o psicanalista
desenvolve, a partir da experiência da Primeira Guerra Mundial, uma teoria da reação
à perda da pessoa querida ou de uma abstração que esteja em seu lugar, como pátria ou
liberdade, e constata que o luto se manifesta em um estado de ânimo doloroso, no qual
há uma: “[…] perda de interesse pelo mundo externo – na medida em que este não faz
lembrar o morto –, a perda da capacidade de escolher um novo objeto de amor – em
substituição ao pranteado – e o afastamento de toda e qualquer atividade que não tiver
relação com a memória do morto” (FREUD, 2014, p. 21).
Para Freud, o sujeito possui uma certa dose de capacidade para o amor, designado,
na psicanálise, como libido (Freud, 2014). Sendo assim, constatada a perda por uma
prova de realidade, o trabalho do luto consistiria na retirada da libido de todas as ligações remanescentes entre o sujeito e seu objeto amado.
A assimilação dessa ideia pode parecer simples, por um primeiro olhar, se considerarmos, por exemplo, o objeto de desejo como uma pessoa querida. Nesse caso, a perda
se daria pela morte: o abandono da “pessoa espiritual” de sua manifestação corpórea,
restando-nos a aceitação e o cumprimento dos rituais fúnebres. Findados os rituais,
nada restaria do morto senão sua ausência, e cedo ou tarde viria a consciência profunda de que o ente querido não está mais ali e, sobretudo, não poderá voltar a estar.
Entretanto, como formulado por Paul Ludwig Landsberg em Ensaio sobre a experiência
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da morte e outros ensaios, a morte como fim absoluto escapa às possibilidades racionais
de compreensão: é uma ideia vazia cuja experiência nem mesmo a angústia da morte
pode nos fornecer (LANDSBERG, 2009). As formas de fé na vida após a morte – sejam elas cristãs ou não – concordam com a impossibilidade dessa experiência. Nesse sentido, a pessoa espiritual não é dada como aniquilada, mas apenas evanescida.
Trata-se da transferência de sua existência para um campo superior de vida a que,
eventualmente, todos nós ascenderíamos. Para Landsberg, o espírito libertado de seu
receptáculo biológico tomaria, então, a condição de um espectro que, mesmo inegável,
não está presente de modo completo (LANDSBERG, 2009).
Ao trazer para Freud o entendimento da morte como uma desconexão entre matéria e espírito, ou mesmo de como um breve desencontro a ser retomado numa dimensão superior de existência, a experiência do luto adquire contornos difusos. De forma
similar, tratando-se do objeto de desejo de uma obra humana, como a arquitetura, a
perda também não poderá ser experienciada com a mesma clareza, já que a relação
entre “matéria” e “imatéria” no campo dos objetos também não possui um elo tão
evidente quanto aquele observado numa concepção de vida puramente biológica. Em
contraposição, a arquitetura é feita para resistir ao tempo e, mesmo que vitimada pela
catástrofe, raramente se acaba. A arquitetura não morre, torna-se ruína, e também a
ruína é capaz de se fazer presente. Se a perda do objeto arquitetônico desejado não se
define claramente, seja no espaço, seja no tempo, isto é, se não oferece provas cabais
de sua realidade, o sujeito permanece, então, incapaz de direcionar sua libido para a escolha de um novo objeto. Contudo, há também que se considerar que o mesmo sujeito
capaz de reconhecer unidade nos resquícios da arquitetura arruinada pode igualmente
tomá-la como irrecuperável. Ou seja, a própria ideia da perda é definida com certo grau
de subjetividade.
Por uma leitura de cunho freudiano, seriam duas as possibilidades de reação do
sujeito em relação ao arruinamento do objeto. A primeira diz respeito à expectativa de
retorno, quando o abalo não será assimilado como fatal. A segunda diz respeito à liberação da libido para escolha de um novo objeto quando o primeiro é dado como acabado, anseio lido na fala do antropólogo e pesquisador Eduardo Viveiro de Castro acerca
do incêndio no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 2018: “Gostaria que o Museu
Nacional permanecesse como ruína, memória das coisas mortas” (CASTRO, 2018).
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Isto quer dizer, a princípio, que, numa concepção de objeto restaurável que não
mais se restrinja às instâncias documentais e estéticas, mas que seja sensível à esfera
emocional da vida humana, as duas saídas possíveis para a atuação sobre a ruína seriam: a reconstrução, em atendimento à expectativa de retorno; e a aceitação do arruinamento. A distância entre essas atitudes aparentemente inconciliáveis poderia ser, a
partir de uma leitura freudiana, a vivência do luto.
Para Derrida, entretanto, o processo do luto não seria, como para Freud, uma questão de tempo, e sim um processo interminável, o que corrobora com aquilo que foi
dito a respeito da impossibilidade de racionalização da experiência da morte por Paul
Ludwig Landsberg.
É justamente no entendimento derridiano do luto interminável que se enraíza a
sua noção de espectralidade, condição que atravessa grande parte de sua obra. Em uma
entrevista concedida ao jornal Folha de S.Paulo na ocasião do lançamento de Espectros
de Marx, Derrida explicita o elo existente entre as duas condições:
Há já muito tempo, eu me interesso pelo trabalho do luto na psicanálise e para além da
psicanálise. Escrevi sobre o assunto em “Glas” e em certas introduções a obras de psicanálise. Quando a gente se interessa por esse trabalho, tem que se ocupar do retorno do
fantasma. Procurei mostrar, a partir de Freud e contra ele, que o trabalho de luto é interminável. Foi, portanto, a partir de uma reflexão sobre o luto que eu cheguei a privilegiar a
espectralidade e, em “Espectros de Marx”, a gente encontra muitos fios de pensamento já
bem antigos (DERRIDA, 1994).
Como lido em Freud, o processo de luto consistiria no estabelecimento de
um limite entre o eu vivo e o morto. Utilizando-se da expressão trazida por Jacob
Rogozinski a partir da leitura de Daniel Lagache, a lógica do luto seria o “matar a morte” (ROGOZINSKI, 2015). Entretanto, uma leitura cautelar dessa expressão a partir
do que foi escrito até agora revela uma impossibilidade lógica: a morte como finitude
representa uma aporia, logo não pode servir como encerramento para si mesma, já
que racionalização de seu encerramento nos escapa à compreensão. Numa lógica derridiana, afirmar a morte da morte não seria revogá-la, e sim reforçá-la, o que implica
na impossibilidade do luto como processo finito. Sua conclusão existiria sempre num
tempo por vir, como promessa, por conseguinte não poderia sequer ser enunciada.
Para Derrida, a figura espectral é aquela que existe no espaço do indecidível, entre
aquilo que se vê e o que não se vê; aquilo que não é nem inteligível, nem sensível, nem
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visível, nem invisível. O espectro escapa às oposições metafísicas: não é isto ou aquilo,
mas algo que para sempre existirá no abismo aporético entre isto e aquilo. Para o autor:
[…] um espectro é algo que se vê sem ver e que não se vê ao ver, a figura espectral é uma forma que hesita de maneira inteiramente indecidível entre o visível e o invisível. O espectro
é aquilo que se pensa ver, “pensar” desta vez no sentido de “acreditar”, pensamos ver. Há
aí um “pensar-ver”, um “ver-pensado”. Mas nunca se viu pensar. Em todo caso, o espectro,
como na alucinação, é alguém que atravessa a experiência da assombração, do luto, etc.,
alguém que pensamos ver (DERRIDA, 2012, p. 68).
Por se tratar de uma categoria resistente às categorias filosóficas que Derrida
dedicou-se a desconstruir, a espectralidade foi a ideia chave para a Desconstrução
(DERRIDA, 1994). E é justamente por equacionar aquilo que existe entre o visível e o
invisível, sem buscar uma saída pelo consenso, que o espectral se torna também uma
ideia com grande potencial para a compreensão da questão da arquitetura vitimada
pela catástrofe.
Conforme exposto anteriormente, a impossibilidade de encerramento do processo
de luto pela arquitetura arrasada reside na relação insolúvel de quebra do vínculo entre a “matéria” e a “imatéria”, em uma ruptura traumática do tempo que, de maneira
similar à experiência da morte, também escapa às possibilidades de racionalização. A
primeira implicação desse pressuposto está, sobretudo, no campo da linguagem. A utilização da terminologia “ruína” ou “arruinado” carrega, em si, a inferência da finitude,
a qual, como visto até aqui, não encerra a experiência da perda.
Retomando agora a situação de Bento Rodrigues, torna-se mais clara a impossibilidade de que a questão da destruição da Capela de São Bento se resolva pela via
do discurso brandiano ancorado no conceito de unidade potencial, o que indica uma
segunda implicação. A Capela existe agora como um espectro sobre seus escombros,
e a decretação ou não de seu fim não pertence nem pode pertencer ao campo da teoria
da restauração: o espectro habita o espaço do aporético, e a arquitetura em escombros
– não mais ruína – é espectral.
As ontologias modernas da ruína – sejam elas herdeiras da tradição romântica,
fundadas no cientificismo, sejam elas influenciadas pela destruição do belicismo das
grandes guerras – fundaram discursos de conservação apoiados na definição irrevogável de que a ruína seria uma arquitetura desprovida de condições materiais de
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transmitir sua imagem originária. Entretanto, “no sentido tradicional, […], um espectro assombra, obsidia, atrai e afasta ao mesmo tempo, aterroriza. Então, a tradicional
ontologia dá lugar à hontologia (no inglês hauntology)” (SOLIS, 2011, p. 164), num jogo
de palavras proveniente da expressão inglesa “to haunt” (assombrar, aparecer, aterrorizar).
Ao passo que a ontologia figura como o ramo da filosofia que indaga o que realmente existe, a hontologia, para Derrida, seria produzida a partir da leitura dos espectros, como uma ontologia que daria conta do ser que, entretanto, não se deixa mais
capturar por ela (SOLIS, 2014). A hontologia seria, portanto, um gesto de desconstrução das certezas da ontologia clássica, das quais evidentemente as teorias modernas da
conservação são herdeiras.
Se a condição de espectralidade promoverá, de imediato, um deslocamento da ontologia da ruína para uma hontologia da ruína, quais seriam os desdobramentos desse
desvio na lógica do reconhecimento das ruínas de Bento Rodrigues? É justamente
nesse contexto de desestabilização das estruturas de reconhecimento, isto é, de relação
com a alteridade, que pensaremos a noção derridiana de rastro a que nos dedicaremos
a seguir. Nesse sentido, convém ter em mente a observação de Dardeau:
É neste ponto, justamente, que aparece a noção de rastro como uma outra forma de pensar
a alteridade, ou como o (não) lugar da alteridade, uma vez que o rastro não é nem presença,
nem ausência. É um entre que respeita a herança, o assombramento do outro e reconhece,
por conseguinte, a impossibilidade do acesso à alteridade enquanto tal, dado que o outro
sempre já se nos escapou (DARDEAU, 2012, p. 76).
Como mencionado anteriormente, Jacques Derrida ocupou-se, largamente, do estudo da linguística, campo em que se enraízam, inclusive, suas formulações sobre as
novação do interesse pelo problema do sentido e pode ser definida como uma “teoria
1 A desconstrução trabalha
com a noção de quaseconceitos por entender
que o pensamento
estruturado em conceitos
é universalizante e
totalizante. Os quaseconceitos possuem
características de
ambivalência, dimensões
aporéticas e referem-se
sempre a um meio, nunca
a uma origem ou um fim.
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artes do visível. Nesse contexto, é da sua crítica à teoria dos signos de Ferdinand de
Saussure que se desdobram os quase-conceitos 1 rastro e diferança, fundamentais para
a aproximação à espectralidade.
Apesar da reconstituição do pensamento originário de Saussure não ser objeto
desta análise, é necessário retomar, ainda que em linhas gerais, os contornos de sua
teoria, a semiologia, e de seu objeto, o signo.
A semiologia – ou semiótica – surge, na pós-modernidade, marcada por uma re-
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geral das representações”, dedicada ao estudo dos fenômenos culturais considerados
como sistemas de significação, tais como sistemas de comunicação, práticas sociais e
comportamentos (HOUAISS, 2001). A teoria foi desenvolvida principalmente pelos
autores Ferdinand Saussure, de quem nos ocupamos nesta seção, e Charles Peirce,
tendo ainda outros autores de grande importância, como o italiano Umberto Eco. Ainda de acordo com o Dicionário de Filosofia de José Ferrater Mora, a semiologia pode
ser definida como “uma teoria geral de todos os signos” (MORA, 2004).
Por sua vez, o objeto da semiologia, o signo, pode ser definido tomando como
exemplo a língua falada. Na língua, o signo estaria estruturado em duas dimensões:
aquela do sensível (o som propriamente dito) e aquela do inteligível (o conceito ou
ideia representada pelo som). Além disso, estaria relacionado a um referente – a coisa
em si. Como bem definido por Solis:
[…] para Saussure o signo é definido como a associação de um significante a um significado, como o nexo entre o conceito (significado) e a imagem acústica (significante), tendo
por função representar a coisa durante a sua ausência. […] Significante e significado, indissociáveis no signo, representam o referente em sua ausência, mas dele não se separam
inteiramente (SOLIS, 2009, p. 58).
Como observa Solis, a teoria de Saussure é constituída por três propriedades interdependentes e que, como veremos, originarão os conceitos de rastro e diferança em
Derrida (SOLIS, 2009). Além disso, é importante ressaltar que, embora a semiologia de Saussure seja construída principalmente como uma teoria da comunicação no
âmbito da língua, o autor a definirá: “[…] como um sistema de signos que expressam
ideias, sendo por isso comparável à escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos
simbólicos, às fórmulas de urbanidade, aos sinais militares etc.” (SAUSSURE, 2006,
p. 24).
Ou seja, mesmo que Saussure tenha se ocupado da língua e a tomado como ponto
de partida, é perfeitamente possível pensar, com as devidas precauções, as reverberações de sua teoria para outras formas de linguagem, como a arquitetura.
A primeira dessas propriedades é definida por Solis como o princípio da
diferenciação (SOLIS, 2009, p. 60). Como observa a autora, o entendimento da língua em Saussure aponta para um jogo de valores em que os termos valeriam não
pelo que os constitui positivamente, mas, sim, pelo que os diferenciam dos demais.
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As linguagens se constituiriam, então, como sistema de signos relacionados pela diferenciação entre eles. Segundo Solis (2009), a diferenciação, em Saussure, é criticada
por Derrida, pois se constitui exclusivamente no campo ontológico. O termo ontológico
aparece aqui alinhado com a definição do dicionário filosófico O Livro da Filosofia, no
qual a ontologia figura como “ramo da filosofia que indaga o que realmente existe,
enquanto distinto da natureza do nosso conhecimento sobre ele” (BUCKINGHAM,
2013). Ou seja, para Saussure, a diferença se constituiria de maneira objetiva e apreensível, como coisa em si. Tomando como exemplo a linguagem musical, seria como
dizer que, para o linguista suíço, as notas musicais valeriam pela diferença de frequência entre elas, e não pela frequência que as determina. Além disso, a diferença entre
as frequências seria, perfeitamente, apreensível e objetiva, tal como determinaria uma
operação matemática de subtração entre notas – frequências – diferentes. A partir
dessa elaboração, é possível estabelecer que a semiótica de Saussure aponta para uma
compreensão da língua que, conquanto admita uma certa historicidade – uma vez
que não existiriam condições positivas de estruturação do significante e, portanto, sua
definição estaria temporalizada –, denota uma dimensão ontológica, afinal as diferenças por elas mesmas existiriam objetivamente, independentemente da construção de
sentido que fizéssemos sobre elas.
Derrida, por sua vez, advoga no sentido de uma diferença que, ela mesma, difere:
uma diferença que não se constitui metafisicamente, mas pela relação de distinção
entre diferenças e significantes. De maneira sintética, é possível dizer que enquanto a
diferença em Saussure existe estaticamente, em Derrida ela está em constante movimento através da cultura. É esse jogo de diferenças que se define pelo termo diferança,
com “a”.
A segunda e a terceira propriedade são definidas por Solis como o arbitrário do
signo e a linearidade do signo, os quais analisados, conjuntamente, e à luz da diferança,
darão origem ao conceito de rastro (SOLIS, 2009, p. 59). Como definido por Saussure
no Cours: “[…] o laço que une o significante ao significado é arbitrário ou então, visto
que entendemos por signo o total resultante da associação de um significante com
um significado, podemos dizer mais simplesmente: o signo linguístico é arbitrário”
(SAUSSURE, 2006, p. 80).
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O arbitrário do signo, portanto, dirá respeito, sobretudo, à inexistência de nexo
causal, relação natural ou determinação metafísica entre o significante (sensível) e o
significado (inteligível). A linearidade do significante, por sua vez, tem sua definição
fundamentada na língua falada. Sua desconstrução constitui, por essência, a ideia derridiana de rastro, derivada, a posteriori, para outros sistemas de signos para além da
linguística, o que coaduna com a declaração anterior de que a derivação das construções teóricas de Saussure para outros sistemas de signos não constitui uma incongruência e está no campo das possibilidades. Para o autor, os significantes linguísticos,
por serem materialmente auditivos, desenvolvem-se sequencialmente – e linearmente
– no tempo, simultaneamente distanciados e definidos por suas diferenças
Uma vez que as diferenças em Derrida estariam em constante movimento para
que, no sistema de signos, os sentidos possam ser diferidos – o que foi definido anteriormente como diferança –, sua elaboração a respeito da linearidade do significante
aponta também para uma condição temporal de significação. Se, em Saussure, os significantes se desenvolvem no tempo com uma clareza demarcada, com objetividade,
por suas diferenças; em Derrida, os significantes surgirão marcados por rastros dos
elementos passados e futuros:
A différance é o que faz com que o movimento da significação só seja possível se cada
elemento dito (presente)… se referir a uma outra coisa que ele mesmo, guardando em si
a marca do elemento passado e logo se deixando escavar pela marca de sua relação com o
elemento futuro, o rastro não se relacionando menos com o que se chama presente pela
relação mesma com o que ele não é (SOLIS, 2009, p. 63).
Tomando como ponto de partida a língua, sistema de signos a que Saussure se
dedicou de fato, a definição do rastro pode ser imaginada com certa nitidez, embora
materialmente, no campo auditivo, não seja propriamente apreensível. Explicando o
exemplo dado por Derrida, o rastro seria a marca auditiva assinalada por um som no
próximo som, de forma que todas as materialidades sonoras estivessem sempre sujeitas às marcas deixadas por um som anterior e pelas marcas decorrentes de sua relação
com o som que estivesse por vir. Em Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível o
autor observa: “O rastro é a própria experiência, em toda parte onde nada nela se resume ao presente vivo e onde cada presente vivo é estruturado como presente por meio
da remissão ao outro ou à coisa, como rastro de alguma coisa outra, como remissão a.
Desse ponto de vista não há limite, tudo é rastro” (DERRIDA, 2012, p.79).
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O que se evidencia pela maneira como se conforma o efeito do rastro em Derrida
é que há um impedimento sobre a apreensão completa do objeto numa condição definitivamente presente, por consequência uma impossibilidade de acesso à dimensão
metafísica do mesmo. Embora essa construção pareça apontar para uma negação de
toda e qualquer metafísica, ela, na verdade, aponta – como é transversal à desconstrução – não para uma destruição, mas para uma crítica à estrutura presentificadora da
metafísica. O rastro é, sobretudo, “aquilo que rompe com qualquer possibilidade de
presença” (DARDEAU, 2012, p.77).
Isso nos leva a crer que o reconhecimento do objeto pelos seus rastros deverá ser
pautado pela compreensão da impossibilidade de acesso à totalidade do sentido desse objeto e, consequentemente, pelo entendimento de que tal objeto será portador
de complexidades irredutíveis e indecidíveis. Mais que isso, caberá sempre o entendimento de que algo não apenas é, mas é para alguém. O objeto será ou poderá ser
não somente isto ou aquilo, mas igualmente isto e aquilo, ou mesmo um entre isto e
aquilo, por mais antagônicas e inconciliáveis que estas esferas de significação possam
ser. Por exemplo, seria como dizer que o sentido tal como o apreendemos nunca totalmente “é” ou “está”, condição favorecida pela língua francesa pela duplicidade contida
na matriz do verbo “être”, que corresponde igualmente às duas possibilidades: ser e
estar. Essa condição de mediação, por outro lado, toma contornos menos definidos na
língua portuguesa pela disponibilidade tanto do verbo “ser” quanto do verbo “estar”. A
arqueologia dos rastros nos permite compreender que o sentido apreendido a partir do
outro – ou seja, aquilo que constitui sua alteridade –, nunca “será”, tampouco “estará”,
mas existirá sempre entremeado pelo que “foi” e iluminado pelo que “será”. Nesse
sentido, o outro oscilará sempre entre o que se vê (por mais volúvel que venha a ser
sua presença) e o invisível (passado e futuro). Nesse aspecto, fica clara a convergência
entre o reconhecimento pautado pelo rastro e a aproximação à espectralidade.
Retomando o exemplo a que viemos nos dedicando até então, intuímos que a textualidade dos escombros de Bento Rodrigues oscilará sempre – independentemente
do discurso em que posa figurar – entre as condições de integridade e arruinamento.
A Capela de São Bento, portanto, é – ao menos no recorte geracional vitimado pela
catástrofe – ao mesmo tempo: igreja e ruína, local de fé e de dor, receptáculo de vida e
depositário da morte.
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5. Considerações Conclusivas
A teoria conservacionista brandiana é marcada por uma leitura ontológica da
ruína, herdeira do cientificismo do início do século XX e fortemente influenciada pela
devastação da Segunda Guerra Mundial. Para Brandi o reconhecimento da ruína como
tal se resolveria pela lógica da unidade potencial, condição intrínseca à obra. Através
dos axiomas, dos rigorosos princípios fundamentais e norteado pela válida preocupação de que sua obra pudesse efetivamente direcionar e disciplinar o trabalho do
restaurador, Brandi ultrapassa o limite de uma teoria voltada ao reconhecimento pela
fenomenologia e determina também um método de ação.
É justamente esse esforço de totalização e domínio absoluto sobre o reconhecimento que será criticado pela perspectiva da desconstrução. Se, para Brandi, a ruína se
encerra ontologicamente, vemos que, com Derrida, ela se abre às aporias de uma “hontologia”. Em Bento Rodrigues, vemos que essa abertura se dá em virtude da inclusão
de uma perspectiva subjetivada até então neutralizada pelo olhar brandiano – popular,
reprimida e subalterna.
Sendo assim, inferimos que, para a determinação de uma estratégia de ação no
campo da conservação arquitetônica que seja capaz de lidar com as complexidades
impostas pela catástrofe do rompimento da barragem, não bastará apenas uma releitura atenta e criteriosa das teorias correntes, tampouco a crítica e a substituição do
método brandiano por outro que se acredite mais contemporâneo ou sustentado por
estruturas que se julguem mais adequadas. Como observa Derrida: “[…] a desconstrução não é uma tomada de posição com relação às estruturas político-institucionais
que constituem e regulam nossa prática, nossas competências e nossas performances”
(DERRIDA, 1990, p. 424).
Isto não quer dizer, entretanto, que caminhamos em direção ao completo abandono das teorias e das metodologias, rumo a uma adesão ao completo casuísmo. Pelo
contrário, a reflexão de que nos ocupamos busca favorecer um pensamento da conservação ético e criterioso, que não se estruture em torno de um jogo de regras axiomáticas calcadas numa suposta questão universal da conservação e da restauração e que
esteja, de fato, ligado às especificidades, às complexidades e às indecidibilidades relacionadas à conservação e à transmissão ao futuro dos escombros de Bento Rodrigues.
Nesse contexto, cabe afirmar que o compromisso da desconstrução se diferencia da
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destruição. De acordo com Solis: “Desconstrução, como já foi evidenciado tantas vezes,
não é destruição. E se o apagamento do anterior ou do passado fosse realizado e uma
nova ordem em arquitetura fosse “construída”, se trataria da reprodução, mais uma
vez, dos velhos esquemas, como observa Derrida” (SOLIS, 2009, p. 80).
Entremeados por esse compromisso, entendemos que, se por um lado, é inevitável
a discussão em torno da atuação profissional – teoria, discurso, práxis –; por outro,
entendemos ser fundamental a proteção daquilo que proporciona as condições de atuação. Não se almeja, portanto, a desestabilização da arquitetura nem da restauração
enquanto disciplinas ou mesmo a diminuição do seu protagonismo, mas, sim, formas de protagonizar o debate com sensibilidade a uma alteridade que, possivelmente,
esquiva-se e nos escapa.
Caberá à arquitetura, assim, o compromisso com a constituição de Bento como um
lugar de acolhimento e de vazão ao luto, bem como o compromisso com a condução
desse processo de maneira suscetível ao outro. Por fim, cabe a referência à reflexão de
Solis:
Bennington afirmou que é possível pensar a desconstrução como paradigma do mundo e
que isto não fará diferença se o mundo não estiver contra ela. Digo, em contrapartida, que
fará diferença sempre que a desconstrução descer de sua indecidibilidade política e tomar
partido a favor do que torna o mundo digno de ser um habitát humano (SOLIS, 2009, p.
180).
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