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OS RUPESTRES SONOROS DO MAWACA – A VOZ E A PEDRA1 Depoimento de Magda Pucci diretora musical do grupo Mawaca www.mawaca.com.br “Não apenas a comunicação, mas o próprio pensamento, estão relacionados de forma absolutamente especial ao som (...) Onde quer que existam seres humanos eles têm uma linguagem e sempre uma linguagem que existe basicamente para ser falada e ouvida, no mundo sonoro” Siertsema 1955 O convite de Marcos Callia para o grupo Mawaca se apresentar no Moitará ocorreu em boa hora. O tema Terra Brasilis foi perfeito para o momento do grupo Mawaca num momento em que eu estava trabalhando sobre temas musicais indígenas e estudando Antropologia. Então, ‘conjeturar’ como seria a música nos tempos das cavernas se transformou numa grande viagem que me daria suporte para aprofundar uma pesquisa que vinha sendo feito há anos. E eu me perguntava se o Mawaca2, acostumado a trabalhar sobre as sonoridades de diferentes povos do mundo, conseguiria trabalhar sobre uma expressão de que não se tem registro? Que tipo de sons eram feitos nessa época? Como esse homem cantava? Que instrumentos ele tocava? Quais os ritmos? A música era cantada ou falada? Instigada pela possibilidade de imaginar como o homem de um período remoto fazia música, e que música era essa, fiquei me fazendo perguntas e mais perguntas, quase todas, quase impossíveis de serem respondidas. Propus então que a apresentação do Mawaca tivesse como mote as pinturas rupestres brasileiras3 providas de uma riqueza simbólica interessantíssima. Depois de Lévi-Strauss, Saussure e Barthes, surgiram novas perspectivas teóricas na arqueologia. “A forma não é o único aspecto a ser estudado, pensa-se em ritmo, combinações de técnicas, luminosidade, hierarquia entre grafismos, jogos, entre forma e fundo e até a acústica das cavernas é considerada”4. As pinturas nas cavernas representam o nascimento do homo sapiens, é a grafologia criada por esse homem que durante muito tempo ficou relegada ao plano estético, ao nascimento da arte, mas que depois passou a representar fontes essenciais de dados para reconstituir a vida dos povos que habitaram o Brasil. A arte, neste sentido, é destreza, habilidade, precisão, invenção, saberfazer, no campo do espírito, onde são usadas imagens, símbolos e ideias além de ser uma atividade estética por ela mesma, tem uma finalidade mágica e ritualística. Eis aqui a ligação entre a imagem, o imaginário, a magia e o rito que poderíamos criar nesse Moitará. Sabemos que a imagem não é uma simples imagem, ela nos permite ser seu intermediário, ela se abstrai depois. Foi isso que pensei em fazer com a música do Mawaca, ligá-la às imagens rupestres, isto é, fazer com que a linguagem abrisse as portas da magia, pela palavra, pelo sinal, pelo som, pelo ritmo já impresso ali nas pedras. 1 Depoimento publicado no livro Terra Brasilis - Pré-história e Arqueologia da Psique. Organizadores: Callia, Marcos; Oliveira, Marcos Fleury de Editora: Paulus 2 Essa apresentação deu origem a um projeto do grupo Mawaca realizado anos depois de nome Rupestres Sonoros – O canto dos povos da Floresta registrado em CD http://www.mawaca.com.br/albums/cd/cd-rupestres-sonoros/e DVD. http://www.mawaca.com.br/albums/dvd/dvd-rupestres-sonoros/ Mais informações na pagina do grupo www.mawaca.com.br 3 Foram usadas as pinturas rupestres dos sítios arqueológicos do Pará e Piauí do livro "Arte Rupestre na Amazônia - Pará", de Edithe Pereira 4 Gaspar, Madu. A Arte rupestre no Brasil Ed. Zahar. São Paulo. Tanto a mitologia como a magia são complementares e estão associados às coisas humanas, mesmo as mais biológicas como a morte e o nascimento, ou mais técnicas como a caça e o trabalho. Pois bem, essas ideias me estimularam percorrer diferentes caminhos e repensar a música como fenômeno de comunicação, que alia o pensamento lógico à fruição estética, como bem disse Lévi-Strauss5 em seu livro o “Cru e o Cozido”. Em busca de uma via intermediária entre o exercício do pensamento lógico e a percepção estética, devia naturalmente inspirar-se no exemplo da música, que sempre a praticou” pg 33 Segundo Edgar Morin6, o homem daquele tempo “não pode ser reduzido a sua feição técnica de homo-faber nem a feição racionalista de homo sapiens. É preciso considerar na feição do homem, o mito, a festa, a dança, o canto, o êxtase, o amor, a morte, o despropósito, a guerra”. Isso tudo me fez pensar em uma questão mais ampla: o elo entre a linguagem e a música; as origens dos mitos, dos ritos relacionados aos sons. O elo entre linguagem e música Parece existir uma ligação próxima entre o surgimento da música e da linguagem falada, situando assim o despertar do sentido musical em tempos remotos. Inúmeras teorias tentam explicar a origem da música, do canto, dos primeiros sons produzidos pelo homem. Alguns dizem que nós aprendemos a cantar imitando os sons emitidos por pássaros e animais, enquanto, outros sugerem que a música se desenvolveu a partir da descoberta de que alguns sons mais simples quando emitidos a uma longa distância, tornam muito mais fácil a comunicação de um grupo. Resolvi, então, pesquisar como diferentes intelectuais de diferentes áreas pensavam a respeito do surgimento da música, do canto, da fala; “facetas da mesma pedra”. O economista Karl Bücher argumentou que o ritmo desenvolveu-se em função da necessidade de se coordenar grandes grupos de pessoas trabalhando juntas levantando, quebrando, puxando as coisas - requerendo desempenho máximo do grupo exercido no mesmo instante. Essa relação com o coletivo é bastante aceita ainda hoje. O naturalista Charles Darwin relacionou a origem da música com o sexo: música desenvolveu-se com os sons de acasalamento de pássaros e animais. Essa é uma hipótese provável também, dado que muitos xamãs indígenas se transvestiam de pássaros ou outros bichos para conversar com os espíritos. Há vários relatos míticos, como por exemplo, os dos índios Suruí, onde mulheres mantinham relações sexuais com espíritos em forma de animais. O psicólogo Karl Stumpf conjectura que cantar com tons definidos e bem alto tinha um poder muito maior do que o discurso ou grito. O filósofo Herbert sustentou a ideia que as pessoas tendem a exagerar as localizações expressivas na linguagem delas quando estão em estados emocionais agudos, originando lamentos ou gritos que quando estilizados, se transformam em música. O antropólogo Siegfried Nadel propõe a visão de que música se desenvolveu como um “Em busca de uma via intermediária entre o exercício do pensamento lógico e a percepção estética, devia naturalmente inspirar-se no exemplo da música, que sempre a praticou” pg 33 –– O Cru e o Cozido - As Mitológicas I – Levi - Strauss 6 Morin, Edgar O Paradigma Perdido - o Enigma do homem: 2000 5 modo de comunicação realçada com poderes sobrenaturais, ou seja, como forma de xamanismo, com poderes para a cura e de dialogo com os espíritos. Para o etnomusicólogo John Blacking, a música é um espelho que reflete os mais profundos ritmos sociais e biológicos de uma cultura, uma externalização dos pulsares que permanecem escondidos no meio das ocupações da vida diária. A filósofa Suzanne Langer vem especulando que música, linguagem e dança, foram originadas junto aos mais antigos rituais, com imagens de pessoas se reunindo em círculos, dançando e cantando. O musicólogo Jacques Stehman7 também aponta uma analogia entre a gênese da música e a da linguagem, ao afirmar que “os homens das eras mais recuadas, vivendo rodeados de mistérios inexplicáveis e de terrores diversos, sem recurso perante a hostilidade da natureza e os enigmas da criação, utilizam antes mesmo de saberem falar, uma linguagem que representa um meio de comunicação com os espíritos ou com as forças que os dominam, ou ainda com divindades que comandam essas forças”. Para o arqueólogo Steven Mithen8, professor de Pré-História da Universidade de Reading, na Inglaterra, antes mesmo de desenvolver um padrão de linguagem, os hominídeos que viviam entre 50 mil e 100 mil anos atrás utilizavam a música como forma de comunicação e socialização. Para ilustrar, ele exemplifica com a imagem de homens de Neandertal em cavernas em Dordogne, na França, cantando, pulando, fazendo sons com os pés e com as mãos. Parecia haver uma espécie de "transe coletivo" semelhante ao visto nas atuais raves. O arqueólogo se apoia em outros estudos, de neurocientistas, antropólogos e paleontólogos, para reforçar a ideia da coevolução de música e linguagem. Para Mithen, o homem de Neandertal desenvolveu uma comunicação que ele chama de HMMMM, isto é, holística (não composta de elementos segmentados), manipulativa (influenciava emocionalmente a si próprio e aos outros), multimodal (utilizava sons e movimentos), musical (rítmica) e mimética (com gestos). O linguista canadense Steven Pinker diverge da teoria de Mithen e acredita que a música seria uma derivação do sistema de linguagem, isto é, a música poderia existir no cérebro mesmo com a ausência da linguagem. Minthen procura recriar uma "paisagem sonora" da pré-história e preencher o que vê como sendo uma lacuna enorme no conhecimento humano: o elo entre linguagem e música. Consciente da quase impossibilidade de se estudar esse tema complexo, Mithen buscou fundamentar seus argumentos a vários recursos, desde tomografias do cérebro humano até estudos de habilidade musical e de linguagem em pessoas que sofreram danos cerebrais, resquícios de esqueletos de hominídeos pré-históricos e sua própria imaginação. Tanto Mithen com Stehman, assim como a filósofa Langer, afirmam que a comunicação do homem - seja com os seus ou com as divindades - demandou uma linguagem, isto é, sons Stehman, Jacques - História da Música Europeia –– Difel - Portugal Mithen, Stephen - The Singing Neanderthals: The Origins of Music, Language, Mind and Body" Harvard University Press), 7 8 articulados geradores de uma oralidade, que independente do advento da escrita, se mantém como forma de comunicação entre muitos povos, seja em forma de música ou como narrativas. A música quando se mantém oral não é linguagem da razão, mas das grandes forças misteriosas que animam o homem. Ela está carregada de símbolos. Símbolos que foram desenhados nas pedras, nas cavernas que hoje podem nos servir de inspiração para ideias musicais. Esse imaginário estava povoando minha cabeça há algumas semanas me inspirando a criar um roteiro musical para o Mawaca. Que músicas tocar? Em que sequência? Como tocá-las? Como envolver o público em assunto tão complexo? A voz e a pedra O Mawaca não buscou recriar paisagem sonora pré-histórica como o arqueólogo Minthen, mas foi atrás de criar uma paisagem sonora que envolvesse alguns elementos do rito, da palavra, do canto mágico, no qual o público também participasse num movimento coletivo onde “vozes e pedras” pudessem dialogar com o passado numa experiência lúdica. A plateia, composta por analistas junguianos, estava ouvindo durante dias, palestras sobre a pré-história do homem, imaginei que eles, com certeza, estariam “cutucados intelectualmente” pelo assunto, mas será que estariam sensibilizados emocionalmente também? Será que conseguiríamos abordá-los, fazê-los cantar e tocar sem que se chateassem ou perdessem o interesse? Esse foi um desafio que permeou toda a nossa performance. Eu tinha como premissa intercalar em alguns momentos da apresentação a participação ativa do público sem criar constrangimento. A primeira ideia foi dar a eles pedras, simples pedras, que poderiam se transformar em instrumentos. E num segundo momento estimulá-los a usar a voz, imaginando que estes foram os primeiros instrumentos humanos: a voz e a pedra! Então fui buscar em Bachelard algumas ideias sobre a pedra, esse lugar onde os símbolos são gravados, desenhados, inscritos como uma forma de reter a memória. Em seu inspirado livro “A Terra e os Devaneios da Vontade”, ele comenta como a pedra colossal, em sua própria imobilidade, dá uma impressão sempre ativa de surgimento. Muitos povos acreditam no surgimento da humanidade do fundo da terra, vindo de uma grande pedra. Há uma atração pela pedra, já colocada por D. H. Lawrence ao observar os blocos de granito da Cornualha: “É facilmente compreensível que os homens adorem as pedras. Não é a pedra. É o mistério da terra, poderosa e pré-humana, que mostra a sua força”.9 Mas eis que surge um desafio: como relacionar a pedra e a voz? A princípio, duas formas antagônicas de existir. A ideia sobre a voz nos conduz ideia do movimento, da sinuosidade, das flutuações, nada muito palpável; conceitos que se opõem à rigidez e à imobilidade da pedra, que é muda! Já dizia Goethe10: As pedras são mestres mudos... Bachelard, Gaston. – A Terra e os Devaneios da Vontade. Ed. Martins Fontes. 2001: São Paulo pg 152 Maximes et Reflexions de Goethe citado em Bachelard, Gaston. – A Terra e os Devaneios da Vontade. Ed. Martins Fontes. 2001: São Paulo pg 152 9 10 A pedra como ser mudo e a voz como ente-sonoro... Essa relação parecia então a ganhar sentido de complemento, isto é, a pedra era o espaço acústico para a voz, para o canto, para a fala... a gruta, a caverna, o ambiente de pedra favorecia a produção sonora, criando ecos, diálogos internos.... A pedra começava a fazer sentido para mim na “bolação” da apresentação do Mawaca. A relação com a voz e a pedra seria, então, explorada nas suas mais diversas formas. Busquei então usar as imagens dos rupestres como partituras. As pedras iam me dizer o que fazer em música. Detive-me sobre os rupestres de caráter mais abstratos que me remetiam aos sinais das partituras de música contemporânea. Pierre Boulez, Stockhausen, Luciano Berio e tantos outros compositores da vanguarda usaram que sinais extramusicais, grafismos, desenhos para representar os sons e articulações vocais e instrumentais desejadas com o intuito de romper com os padrões da escrita convencional. Eu apresentei a ideia ao grupo de utilizar as espirais, os círculos, os triângulos como fontes sonoras, como se fossem sinais de uma partitura contemporânea. Passamos por um processo de leitura simbólico-sonora dos símbolos e texturas nas pedras de onde são extraídas ideias musicais. Deste processo, se originou o termo “partiturasrupestres”. Dessas imagens surgiram ideias para compor os rupestres sonoros do Mawaca. De um lado, uma leitura sobre um sinal primitivo e no outro, a leitura de uma partitura contemporânea. Inspirados nesse simbolismo pré-histórico e nas narrativas míticas, trabalhamos a improvisação com instrumentos como pedaços de paus, pedras, chocalhos de sementes, cocos, folhas e algumas percussões como kalimba africana, tablas e marimba. Além da improvisação musical sobre as imagens rupestres, sugeri alguns cantos rituais e canções de mitos dos povos amazônicos. Essas referências sonoras se uniriam ao canto gutural das mulheres búlgaras; às sonoridades da língua japonesa (como as línguas indígenas brasileiras se parecem com o idioma japonês!!), à alguns sons indianos e fariam conexões com a rítmica africana, afinal esse homo sapiens não tinha nacionalidade expressa. O espírito de novidade e transformação em relação ao passado e ao presente instigou o trabalho do Mawaca. Era um pouco do que Jerome Rothemberg11 costumava chamar de “uma contínua tentativa de reinterpretar o passado poético do ponto de vista do presente”. Os futuristas russos são exemplares nisso. Eles escavam entusiasticamente suas próprias pré-histórias - o passado sendo para eles uma parte necessária de todo aquele futuro. Malevich era um tipo de artista popular cujos livros artesanais, bastante toscos e bonitos, bebiam na fonte de uma forma ancestral. E Khlébnikov fazia a conexão entre o xamanismo e os cantos religiosos, com palavras-sons indecifráveis. Pois bem, ensaiamos algumas vezes com um grupo reduzido de pessoas do Mawaca. Estávamos em cinco cantoras, dois percussionistas, um baixista e ainda contávamos com a participação especial de um músico convidado que tocava um instrumento australiano chamado didjeridu e a kalimba, instrumento de origem africana. 11 A transformação do espaço Fui para Campos um pouco antes do grupo para me ambientar. Logo que cheguei ao salão das palestras no hotel em Campos, tive a sensação de que o cinza do carpete somado a disposição das cadeiras e um palco minúsculo não seria muito adequado ao que eu tinha imaginado para a performance do Mawaca. Assim que as palestras finalizaram, decidi mudar radicalmente o espaço, retiramos todas as cadeiras; espalhamos sacos e sacos de folhas secas; colocamos troncos de madeiras em alguns pontos; abarrotamos o espaço com muitas, muitas, muitas pedras de vários tamanhos, fazendo círculos e contornando o palco. Afinal, a pedra era onde o homem registrava tudo, seus sonhos, suas realizações, seus desejos. Ela tinha que estar ali presente nos dando ideias, nos inspirando. E essas pedras eram o que possibilitava articular os sons coletivamente e talvez fosse responsável por promover uma sinfonia rupestre! Depois de algumas horas, o salão de palestras se transformou num ambiente totalmente diferente, num cenário com círculos desenhados por folhas que seria compartilhado pelo público. Utilizamos o telão para projetar nossas partituras-rupestres, que seriam guias para a integração com o público, isto é, nossas referências ao longo da apresentação. Aqueles rupestres iam se transformar em música ao vivo em tempo real! Para criar o roteiro, utilizei algumas referências e informações sobre as musicas que dava unidade. No princípio eram as pedras e os sons vocais... Seria o que propôs Khlébvnikov ao criar a linguagem zaum? Um nonsense silábico que exerce uma função ritual e marcante nos mitos. A linguagem zaum tem o poder de suprimir o tempo do discurso, isto é, transcender a esfera da lógica temporal. A significação da palavra adquire um caráter mais abstrato do que a vida cotidiana e atua num nível profundo. A seguir algumas indicações e informações sobre o repertorio e as ideias que permearam a apresentação do Mawaca nesse Moitará. Para começar, usamos sons abstratos, nenhuma melodia muito definida, com sons mais “soltos” com o intuito de “desconectar” o público de uma percepção musical já preconcebida. IMPRO12 RUPESTRE ARAGUAIA TOCANTINS - Para a primeira improvisação, usamos as imagens inscritas nas pedras do Araguaia Tocantins do Pará13 para criar uma paisagem sonora abstrata, quase onírica. Como se pode observar abaixo na figura, no primeiro quadrado, há quatro traços que se transformaram na nossa base rítmica: um ritmo em compasso 4/4 que se repetia constantemente tocado pelo baixo. No segundo quadrado, a imagem parecia ser de uma kalimba que mantinha uma ideia de delicadeza e ao mesmo tempo de rusticidade poderosa. Depois, no terceiro quadrado, tínhamos as espirais realizadas pelas vozes, e logo a seguir, os sons entrecortados do quarto quadrado, como pontos sonoros espaçados, e no quinto, ritmos que entravam alternados com as espirais e assim por diante. Íamos criando sons-referência para cada figura que iam se transformando a cada quadro. 12 Impro é abreviação da palavra improvisação. 13 Edithe Pereira – A Arte Rupestre De Monte Alegre: Pará, Amazônia, Brasil DENDÊ COM CURRY – Ainda para manter uma aura de abstração, optei por usar uma música cujo texto não possuía um significado lógico, pois usávamos palavras sem sentido como se estivéssemos forjando uma língua. Escolhi a música ‘Dendê com Curry’, já presente no repertório do Mawaca, na realidade um improviso sobre um solfejo indiano usado para ensinar os toques na tabla. O improviso servia totalmente ao propósito do non sense, da linguagem zaum. IEIA – Compus essa peça utilizando apenas vogais, sem sentido. O importante aqui é o movimento circular ressaltado pela dança da Cris e da Zuzu com o ritmo marcado pelos maracás das cantoras. Já começamos a entrar com a ideia de performance, dança, ritual, de coletividade, que era traduzido pela imagem abaixo. Depois do momento das “línguas tortas”, seguiram-se alguns mitos contados pelas vozes do Mawaca. Lévi-Strauss em O Cru e o Cozido - As Mitológicas14 compara os mitos a uma estrutura de uma partitura musical pelo fato de música e mito serem linguagens que transcendem cada uma a seu modo, o plano da linguagem articulada, embora requeiram, como esta, uma dimensão temporal para se manifestarem (pg 35). AKHOITÉ - HOTARU KOI - A música Akhoité nos conta o mito da criação da humanidade dos índios Gavião de Rondônia que vivia embaixo de uma grande pedra. O herói mítico levanta a pedra e pede para todos saírem e pergunta: homens, vocês estão ai debaixo da pedra? Saiam da pedra! A 14 Lévi-Strauss, Claude – O Cru e o Cozido - Mitológicas 1 ed. Cosac y Naify - 2004 suposta origem do povo Gavião, surgindo de dentro de uma rocha é mais um exemplo da passagem mística entre esferas da vida, a subterrânea, a terrestre e a celestial. Não pude me conter e fiz a ligação desse mito Gavião com a música dos vaga-lumes no Japão antigo – Hotaru koi - que fala do hábito dos japoneses usarem lanternas de pedra cheias de vaga-lumes dentro para iluminar as ruas. São os chochins daquele tempo. A humanidade que surge e a luz. IMPRO RUPESTRE CAPIVARA – Sobre uma imagem da Serra da Capivara, improvisamos sobre um ritmo em compasso 5/8. Sobre ela, uma das cantoras solava uma melodia bem simples, de caráter infantil dos índios Caiapó do Xingu. A melodia se articulava pela fala. Era o momento apropriado para as pessoas tocarem suas pedras pela primeira vez naquela noite. WINE MEREWÁ – A musica do espírito de Wine que gosta de roubar as crianças da aldeia, segundo os Surui. Para isso, ele as atrai com panquecas e as roubas para o céu. Usamos essa canção para ilustrar a idéia do medo do sobrenatural causado por espíritos, algo que imaginamos bem presente em momentos arcaicos. “Oiniranga aká, palaiê itchare15, paitiriri, pakiriri ...” Tradução: “Eu vou levar você comigo para o céu...” MEKÔ MEREWA (Suruí) - Essa cantiga se refere a história do Veado, que Palob - o herói cultural do povo Suruí manda à casa da Onça (meko) para buscar os ossos dos homens devorados por ela. Com os ossos, Palob vai refazer a humanidade soprando-os com tabaco. A onça diz ao Veado: “Não brinca comigo não! Não faz nada errado que te como mesmo de verdade...” Pamãi aré, oi kaled mã Êngaba pamãi aré, oi kaled mã bi kü erá ongatchar awabekaté ongatchar bi au TAMOTA MORIORÊ /KOKIRIKO NO – canto do Baixo Xingu que foi misturado com a cantiga infantil japonesa Kokiriko no. Não há como evitar a semelhança sonora entre a língua japonesa e a língua tupi. São sons antigos cujos fonemas e entonações são muito próximos. Se fossemos explicar a origem dos povos indígenas como sendo asiática, essa seria uma prova e tanto! 15 Informação retirada dos arquivos da antropóloga Betty Mindlin. IMPRO RUPESTRE ITAMARACÁ Da cópia da inscrição gravada e pintada sobre um rochedo Itamaracá no Rio Xingu extraí alguns dos símbolos que estavam alinhados em seqüência e sugeri sons para cada um deles. Sobre esses desenhos criamos uma série de sons vocais que foram realizados por três diferentes grupos. Esses sons iam se sobrepondo. Como se pode observar na imagem acima, há uma rítmica inerente ao próprio desenho. Com eles, o público cantou e tocou as pedras. As índias contam suas histórias em roda, sentadas no chão umas para outras. Assim é também com as búlgaras que fofocam nos “horos” circulares. Reunimos duas músicas: Hirigocanto das índias Tupari e Bre Petrunko, canção búlgara. HIRIGO em versão recriada por Marlui Miranda. Segundo ela: “Este canto seria possivelmente parte de uma festa que era oferecida pelos homens às mulheres como agradecimento pelo seu trabalho nas roças. Atualmente, só as mulheres mais velhas sabem estes cantos. Pela lógica dos índios, quando os homens trabalham, têm seu dia de festa. Como as mulheres também trabalham, têm o direito a ter seu dia de festa da mesma maneira”16 16 Miranda, Marlui. “Todos os sons”– Ed. Terra: 1995 Hirigo gãi bãi ê Lirian té korõ hõkã Lirian té korõ hõkã korõ hõkã Hirigo gãi bãi ê BRE PETRUNKO - a canção búlgara comenta com humor o horo - a roda que reúne todos, numa constante euforia. É o momento dos flertes e namoros, fofocas, da diversão descompromissada de uma comunidade agrária. Ei, Petrunka! Por mais que a gente procure, Não consegue nunca encontrar uma só dança de roda, Só mesmo na sua aldeia, onde há três!! Além da diversão, há também o tempo das epopeias, das guerras, contados pelos pajés, os grandes sábios das aldeias. Escolhi uma canção emblemática que tinha tudo a ver com esse contexto. KOI TXANGARÉ - Um canto antropofágico dos índios Suruí, para mim, um dos mais belos cantos indígenas que conheço. Sua história é mirabolante. Koi txangaré é um canto de guerra e morte de um ritual antropofágico entre índios brasileiros. Os índios estrangeiros (provavelmente os Zoró ou os Cinta-Larga) prepararam uma grande festa, para dançar e invocar os espíritos, os goranei e goanei e depois matar quase todos os membros da tribo Suruí. As mulheres dos índios atacados foram tomadas como cativas e para se verem livres dos seus inimigos, fugiram para o mato, andando de costas- como curupira. O mais interessante dessa história é que o canto, que era do inimigo, foi incorporado ao repertório dos Suruí e hoje é cantada para as crianças como uma ameaça sutil, quase uma brincadeira, com intuito delas se comportarem. Seria o “Tutu Marambá” ou do “Bicho papão vem te pegar” para os Suruí... Koi txangaré, koi txangaré Xiripaba mãi, txangaré Koi txangaré, koi txangaré Xameapab mãi, txangaré Koi txangaré, koi txangaré ‘Vou matar você comer seu fígado com milho torrado Vou comer carne crua também Vou comer pedaço de carne crua...’ 17 No entanto, eles não sabem dizer exatamente o que significa cada palavra, por ser uma “língua mágica”. No “habitat espiritual” dos pajés, há muitos cantos e narrativas cujos sons configuram uma linguagem "cifrada", reveladas por uma voz ritual. São palavras que os ‘não iniciados’ desconhecem, termos arcaicos que não são usados no dia-a-dia (e por isso se tornam, 17 Mindlin, Betty ‘Vozes da origem’ - Ed. Ática. muitas vezes, incompreensíveis) e sons onomatopaicos que imitam animais (espíritos). Esses sons têm o papel de dimensionar outro espaço, ‘um outro tempo’ na história. Seria o que propôs Khlébvnikov ao criar a linguagem zaum? Esse nonsense silábico exerce uma função ritual e marcante nos mitos. Ele tem o poder de suprimir o tempo do discurso, isto é, transcender a esfera da lógica temporal. A significação da palavra adquire um caráter mais abstrato do que a vida cotidiana e atua num nível profundo. A seguir, sugeri inserir elementos africanos na nossa performance, já que há teorias de que os povos da África vieram depois dos asiáticos. E assim, já realizaríamos nossa incursão pelo Brasil com o canto dos escravos mineiros e pela América Latina com a música afro-peruana “Molino, Molero”. TULA SABO - o canto da Mãe Sábia, de Gana. É o ritmo que fala nessa musica. Os fonemas lerulerulê formatam a melodia, que para os ouvidos ocidentais europeus parece pouco cantabile. Aqui desenvolvo a ideia de que os instrumentos têm uma linguagem própria muito semelhante à palavra, que serviam tanto para a comunicação entre eles ou como veneração de entidades espirituais. OXUM IPONDÁ - Coloquei música nessa cantiga de orixá, um oriki traduzido por Antônio Risério para Oxum, a deusa do amor, da beleza, da fertilidade, senhora da brisa e da água fresca, mestra em línguas18, segundo o autor do livro. Eis aqui um trecho do oriki cantado pelo Mawaca na noite do Moitará - Terra Brasilis. Mãe ipondá que estás no escuro, Teus cílios luzes pra mim! Eu filho de Ipondá, Ipondá que tudo vê, Ave leve. Eleva- me! A deusa que tudo vê; que dá luz; que eleva o homem. Que o faz voar. Aqui mais uma vez, a ideia da viagem espiritual ocasionada pela palavra cantada, pelo verbo, pelo som, mote do Mawaca e que relaciona ao momento da criação da linguagem, da comunicação entre os homens e deuses. MOLINO MOLERO - CRIOLA NÃO TEM SAPATO - Canto afro-peruano de origem escrava, que conta sobre o moinho de pedra, a tecnologia, que tritura não apenas o alimento, mas a dor de não ser livre. Nós reunimos essa canção peruana com o canto dos escravos mineiros do jongo gravado por Paulo Dias no CD da Coleção Cachuera! Dois temas perfeitos para se chegar ao Brasil. Logo depois que terminamos o show, ouvimos na outra sala Koi txangaré, tocada pelo DJ que ia animar a festa. Pura sincronicidade. Houve congraçamento entre todos, que cantaram, tiveram seus rostos pintados, tocaram pedras e entraram em transe musical com o Mawaca. Feliz troca de ideias, feliz moitará! 18 Risério, Antônio. Oriki, Orixá. Ed. Perspectiva.