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Onde não há pecado nem perdão: Evocações da voz na memória e na cultura

2018, Distúrbios da Comunicação

Introdução: O ponto de partida desta comunicação é a ideia de que a produção vocal não consiste apenas em um fenômeno anatômico e fisiológico, mas também psicológico e social, dimensões para as quais os estudos fonoaudiológicos têm atentado. Objetivo: O texto visa apresentar e discutir três entrelaces possíveis entre essas dimensões: as interpretações sobre a voz construídas e veiculadas no cancioneiro da música popular brasileira; o papel da voz na prática da história oral e na literatura especializada sobre este método de pesquisa; as narrações de uma variedade de sujeitos sobre a presença e o significado da voz em suas vidas. Método: Foram levantadas canções que tratam da temática da voz e coligidos depoimentos em um projeto experimental em nível de graduação, interpretados em conformidade com princípios da hermenêutica em um texto de caráter ensaístico. Conclusão: Tanto o cancioneiro popular brasileiro quanto os depoimentos de sujeitos que utilizam a voz de maneira intensa demonstram enorme variedade e complexidade nas formas de compreender o papel assumido pela voz na vida dos indivíduos.

“Onde não há pecado nem perdão”: Evocações da voz na memória e na cultura “Where there is no sin, no forgiveness”: Evocations of voice in memory and culture COM U N ICA ÇÕES http://dx.doi.org/10.23925/2176-2724.2018v30i3p595-606 “Donde no hay pecado ni perdón”: Evocaciones de la voz en la memoria y en la cultura Ricardo Santhiago* Resumo Introdução: O ponto de partida desta comunicação é a ideia de que a produção vocal não consiste apenas em um fenômeno anatômico e fisiológico, mas também psicológico e social, dimensões para as quais os estudos fonoaudiológicos têm atentado. Objetivo: O texto visa apresentar e discutir três entrelaces possíveis entre essas dimensões: as interpretações sobre a voz construídas e veiculadas no cancioneiro da música popular brasileira; o papel da voz na prática da história oral e na literatura especializada sobre este método de pesquisa; as narrações de uma variedade de sujeitos sobre a presença e o significado da voz em suas vidas. Método: Foram levantadas canções que tratam da temática da voz e coligidos depoimentos em um projeto experimental em nível de graduação, interpretados em conformidade com princípios da hermenêutica em um texto de caráter ensaístico. Conclusão: Tanto o cancioneiro popular brasileiro quanto os depoimentos de sujeitos que utilizam a voz de maneira intensa demonstram enorme variedade e complexidade nas formas de compreender o papel assumido pela voz na vida dos indivíduos. Palavras-chave: Voz; Canto; Música; Memória. Abstract Introduction: The starting point for this communication is the idea that vocal production consists not only of an anatomical and physiological phenomenon, but also of a psychological and social one – dimensions which have been comprised by the Speech-Language Studies. Objective: The article *Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil Contribuição do autor RS – elaboração geral do trabalho E-mail para correspondência: Ricardo Santhiago ricardo.santhiago@unifesp.br Recebido: 27/06/2017 Aprovado: 18/06/2018 Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018 595 COM U N ICA ÇÕES Ricardo Santhiago aims to present and discuss three possible links between these dimensions: the visions about the voice engendered and circulated through Brazilian popular songs; the place occupied by the voice within the oral history practice and the specialized literature on this research method; the personal narratives by a variety of individuals about the presence and meaning of the voice in their lives. Methods: The work has collected several songs that approach the human voice as a theme, as well as testimonies recorded in an experimental project at the undergraduate level. They were interpreted in accordance with the principles of hermeneutics in an essay text. Conclusion: Both the Brazilian popular music and the testimonies given by persons who use the voice intensely demonstrate enormous variety and complexity in understanding the role of voice in the life of individuals. Keywords: Voice; Singing; Music; Memory. Resumen Introducción: El punto de partida de esta comunicación es la idea de que la producción vocal no consiste sólo en un fenómeno anatómico y fisiológico, sino también psicológico y social, dimensiones para las cuales los estudios fonoaudiológicos han atentado. Objetivo: El texto visa presentar y discutir tres entrelazamientos posibles entre esas dimensiones: las interpretaciones sobre la voz construidas y transmitidas en el cancionero de la música popular brasileña; el papel de la voz en la práctica de la historia oral y en la literatura especializada sobre este método de investigación; las narraciones personales de una variedad de sujetos sobre la presencia y el significado de la voz en sus vidas. Método: Se levantaran canciones que tratan de la temática de la voz y se recogieron testimonios grabados en un proyecto experimental a nivel de graduación, interpretados de acuerdo con principios de la hermenéutica en un texto de carácter ensayístico. Conclusión: Tanto el cancionero popular brasileño como los testimonios de sujetos que utilizan la voz de manera intensa demuestran enorme variedad y complejidad en las formas de comprender el papel asumido por la voz en la vida de los individuos. Palabras claves: Voz; Canto; Música; Memoria. Introdução Se as abordagens sobre a voz são caracterizadas, nos dias de hoje, pelo vulto, pela diversidade e pela complexidade, deve-se reconhecer o papel que os estudos fonoaudiológicos tiveram nisso. Resistindo à tentação de avaliar certos aspectos e características da voz humana de maneira isolada, esses estudos têm demonstrado a viabilidade e a frutuosidade da adoção de uma perspectiva que, sem denegar os aspectos propriamente orgânicos ligados à produção vocal, atente para sua dimensão psicológica e social.1,2,3,4,5,6,7 Ainda existem, no entanto, inúmeros caminhos para a exploração desta dimensão social – ou talvez, melhor dizendo, do entrelaçamento social das qualidades físicas e psicológicas da voz. As percepções dos indivíduos a respeito da voz que produzem e das vozes que escutam, por exemplo, são mediadas e negociadas socialmente – relacionam-se diretamente aos valores que extraem de suas experiências em uma dada cultura. 596 Como alguém dedicado ao estudo da memória cultural e comunicativa8,9, proponho neste texto algumas reflexões sobre as dimensões socioculturais da voz, por três vias interconectadas, apresentadas na seção a seguir. Primeiramente, aprecio a canção popular brasileira como uma espécie de reservatório da memória coletiva; como um veículo capaz de construir, acumular e manter uma memória cultural; como um suporte que ativa visões, representações e comportamentos compartilhados – a respeito da voz, inclusive. Em segundo lugar, discuto o papel ocupado pela voz dentro da prática reflexiva e das reflexões sobre a prática (isto é, na literatura especializada) da história oral, método de pesquisa baseado na recolha de testemunhos orais. Por fim, apresento um relato inicial de uma experiência pedagógica recentemente finalizada: um trabalho coletivo no qual alunas e alunos do curso de Fonoaudiologia da Unicamp, dentro da disciplina de Metodologia de Pesquisa II, mobilizaram a história oral para investigar os significados subjetivos e sociais da voz. Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018 Descrição “Onde não há pecado nem perdão” O que é voz? Deixemos que o musicólogo e estudioso da acústica musical Johan Sundberg responda a esta pergunta, como ele busca fazer (não sem enfatizar a natureza erradia desse objeto) no primeiro capítulo do livro Ciência da voz: Fatos sobre a voz na fala e no canto. A palavra, em seu trabalho, designa os sons gerados pelo sistema fonador quando as pregas vocais estiverem em vibração ou, mais precisamente, pelo fluxo de ar pulmonar que é primeiramente modificado pelas pregas vocais em vibração e depois pelo trato vocal, e por vezes também pela cavidade nasal.10 Lancemos a mesma pergunta ao compositor Caetano Veloso: Minha voz, minha vida Meu segredo e minha revelação Minha luz escondida Minha bússola e minha desorientação Se o amor escraviza Mas é a única libertação Minha voz é precisa Vida que não é menos minha que da canção Por ser feliz, por sofrer Por esperar, eu canto Pra ser feliz, pra sofrer Para esperar eu canto Meu amor, acredite Que se pode crescer assim pra nós Uma flor sem limite É somente por que eu trago a vida aqui na voz.11 A voz – como as fonoaudiólogas e os fonoaudiólogos sabem – é concreta, tangível. A fonação é um processo anatômico e fisiológico conhecido e exaustivamente descrito, tanto que pode ser ensinado. O sistema respiratório, as pregas vocais e as cavidades de ressonância interagem, em coordenação com o sistema nervoso central e com o sistema nervoso periférico, responsáveis por regular a função fonética e integrá-la, por exemplo, ao controle auditivo. Mas a voz também é magia, imaterialidade, perplexidade, descontrole, porto seguro, remédio; ela é terra “onde não há pecado nem perdão”, como o mesmo Caetano Veloso escreveu em Alguém cantando.12 Ela é mesmo “esse estranho-familiar, presente nas nossas narrativas, pensamentos, autocríticas e delírios”. Recorremos a físicos, musicólogos, otorrinolaringologistas, fonoaudiólogos, para compreender sua face material – sabendo, é claro, que a maior parte deles não denega os componentes emocionais envolvidos na produção vocal. Para entender sua ressonância (e aqui emprego deliberadamente uma palavra ambígua), podemos nos voltar aos sujeitos que a produzem e a utilizam. Dentre estes, há os que a estranham como atividade integrante de seus ofícios: atores, cantores líricos e populares, performers, poetas orais e poetas vocais... E os cancionistas, que decalcam da fala suas obras feitas para serem cantadas, como ensinou Luiz Tatit: “Enquanto houver seres falantes, haverá cancionistas convertendo suas falas em canto”. E eles o fazem enquanto “pessoas sintonizadas com a modernidade, sensíveis às questões humanas, às relações interpessoais e com grande pendor para mesclar fatos de diferentes universos de experiência num único discurso: a canção”13. Assim como as histórias individuais, as canções também têm a capacidade de encarnar – em criações lírico-musicais de três ou quatro minutos, portanto ainda mais sintéticas – fenômenos sociais amplos, padrões culturais, visões de mundo, etc. Entre as muitas experiências e realidades condensadas em canções estão os ofícios e os instrumentos de seus cantores, compositores, músicos, cancionistas: elas oferecem toda uma metalinguagem sobre as artes e os ofícios de seus artífices. Algumas dessas canções nos ajudam a desvendar as elaborações subjetivas e coletivas sobre a voz. O próprio Tatit – um cancionista, além de linguista e semiólogo – mais de uma vez tratou, em suas composições, do fascínio provocado pela voz, de seu potencial arrebatador: “Todos querem ver de perto / os seios da voz / Todos abandonam casas / abandonam planos / dizendo que voltam / mas voltam depois / antes querem ter certeza / que vão ver os dois / os seios da voz”14, gravou em 1997 em Os seios da voz, ecoando a mesma comoção social descrita em sua composição para o Grupo Rumo, Delírio, meu!, de 198415. Lá, o sujeito da canção dirige-se a um interlocutor aparentemente alheio aos efeitos contundentes que sua voz provoca sobre os ouvintes. Buscando convencê-lo do transe social causado por sua voz, ele canta: “Delírio, meu! Delírio / Você pode perceber nitidamente que estão todos delirando / No mínimo Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018 COM U N ICA ÇÕES “Onde não há pecado nem perdão”: Evocações da voz na memória e na cultura 597 COM U N ICA ÇÕES Ricardo Santhiago 598 / E quando você prepara o seu agudo principal / Meu Deus! O pessoal vem parar no palco”. Em sua gravação original, a canção é interpretada por Ná Ozzetti, que no ano 2000 venceu o prêmio de Melhor Intérprete do Festival de Música Brasileira da Rede Globo com mais uma criação de Luiz Tatit (desta vez em parceria com Fábio Tagliaferri) sobre o mesmo topos: “E quem / sonhou, sofreu, chorou / pode fazer / de uma só voz / um show // Pode não ser / um megashow / um festival / com multidões / mas quem chorou / já tem na voz / um show”.16 Canções como estas são testemunhos da importância da voz dentro de nossa cultura – elas, afinal, organizam e expressam os elementos da cultura que formam, e dentro da qual se constituem. Por meio das canções, mapeamos o amplo território de sentidos palmilhado pelas vozes, na cultura – e nos reconhecemos como portadores e multiplicadores desses sentidos. A voz que não engana: “Eu minto, mas minha voz não mente / Minha voz soa exatamente / De onde no corpo da alma de uma pessoa / Se produz a palavra eu” (Caetano Veloso, Drama)17. A voz como consolo, como conforto: “Guarde minha voz no coração / Eu garanto que será melhor / Se você me escutar!” (Ton Saga, Guarde minha voz)18. A voz e sua vida própria: “Há canções e há momentos (...) / Em que a voz é um instrumento / Que eu não posso controlar”. (Milton Nascimento e Fernando Brandt, Canções e momentos)19. A voz e seu limite corpóreo: “Devia ser proibido / Uma saudade tão má / De uma pessoa tão boa / Falar, gritar, reclamar / Se a nossa voz não ecoa” (Itamar Assumpção e Alice Ruiz, Devia ser proibido)20. A voz como compromisso solidário: “Para abraçar seu irmão e beijar sua menina na rua / É que se fez o seu braço, o seu lábio e a sua voz” (Belchior, Como nossos pais)21. A voz como herança e como carga de responsabilidade: “Minha voz vem dos gritos de negros escravos / Vem dos povos aflitos de revolução / Do gemido da fome que grassa o nordeste / É a veste do eco do primeiro som” (Élio Camalle, Eco)22. A voz como instrumento de dignificação da responsabilidade: “Por isso essa voz, essa voz tamanha” (Roberto Carlos, Força estranha)23. Isso sem falar no poder religioso da voz, descrito em dezenas ou provavelmente centenas de canções católicas ou protestantes. Poderíamos nos deter na exploração de cada um desses sentidos da voz – não faltariam matéria-prima e possibilidades de ilação. Mas se quisermos confirmar a força da canção como uma espécie de reserva da memória social, de fiel depositária da subjetividade coletiva, basta que pensemos em tudo aquilo que já se disse sobre a voz primordial, a voz materna, que dentro do desenvolvimento humano representa muito mais do que um mero estímulo auditivo. “Desde que nasci a voz da mulher / Me embala, me alegra, me faz chorar / Me arrepia os cabelos, me faz dançar / Me cala ressentimentos / Me ensina a amar (...) / Eu quero ouvir por toda a minha vida / Uma mulher cantando para mim”, escreveram Sueli Costa e Abel Silva, em Voz de mulher.24 Será que esses versos condensam o essencial? Ou preferiríamos a declaração que a cantora e compositora Ceumar fez à sua mãe: Ela foi a primeira voz Desde a primeira vez Que o som se fez Nunca desafinou Nunca perdeu o tom Cantarolava feliz Cada verso diz mais Quando vem emoldurado Por sua voz E eu aprendi muito bem Sempre tento ecoar A voz primeira A voz mais bela A voz de mar Da minha mãe25 E assim seguiríamos, entendendo que o timbre, a entoação, a altura, o ritmo, a intensidade da voz, ajudam a moldar as relações que se formam em torno dela – do começo ao fim da vida. Na canção O filho que eu quero ter, de Toquinho e Vinícius de Moraes, o que o músico e o poeta exprimem é o desejo de que, na hora da morte, possam receber o beijo do filho, sentir sua mão vedando seus olhos – e “ouvir-lhe a voz a me embalar num acalanto de adeus”26. A voz é presença e ausência, encontro e despedida. Problemas da voz na história oral Por mais ricos que sejam esses testemunhos sobre os significados da voz (e haveriam muitos outros, na música, na literatura, na dramaturgia...), dependemos do voluntarismo dos artistas responsáveis por cria-los e facultar-nos seu acesso. Podemos, porém, ativar outros dispositivos se queremos penetrar nos significados sociais e subjetivos dos sons que nossos corpos produzem. Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018 A história oral é um desses dispositivos: ela consiste em uma prática de pesquisa erigida em torno de uma técnica (a entrevista), mas poderia ser melhor caracterizada pelo exercício prolongado e comprometido da atenção e da escuta. Ela é o terreno da memória e da linguagem. Ela reúne um conjunto de ferramentas desenhadas para estimular, registrar, avaliar e difundir relatos pessoais, caracterizados pela artificialidade (esses relatos não existem “por natureza”, mas dependem da intervenção deliberada de um pesquisador para tomar forma, mesmo quando remetem a narrações prévias), pela dialogicidade (as histórias orais são sempre intersubjetivas, frutos do encontro entre duas pessoas, seus traços identitários, sua capacidade de empatia), pela espontaneidade (as entrevistas são frutos de enfrentamentos únicos, imprevisíveis e irrepetíveis, construídas in presentia). Para a história oral, a voz é um componente central: ela permite que um sujeito saia de si, expanda os limites de seu corpo, penetrando no outro. É a voz em toda a sua potência – uma voz de afeto, uma voz que afeta, não mais uma voz instrumentalizada para o cumprimento das tarefas cotidianas, mas dignificada em uma ocasião memorável. Se a entrevista de história oral é um encontro intersubjetivo, é também um encontro intercorpóreo: o encontro de um corpo que fala com um corpo que escuta. E estamos atentos para o fato de que os narradores, em seus esforços rememorativos, colocam todo o seu corpo a serviço da comunicação, fazendo dele seu instrumento de enfrentamento: contra a marginalidade, contra o esquecimento, contra o silenciamento. Temos consciência disso – o que se confirma pela ascensão espetacular do conceito de performance na literatura especializada, nas últimas duas décadas (que é, por exemplo, eleito por Lynn Abrams27 como um dos fundamentos da teoria da história oral) –, mas não necessariamente sabemos o que fazer com essa consciência. Em primeiro lugar, a literatura especializada parece muitas vezes sugerir que o corpo e a voz são entidades desconectadas – quando, como escreveu Paula Carrara, no contexto de reflexões sobre o papel do corpo, da voz e da escuta na atividade do ator, “o [Corpo] está engajado na produção vocal não como escolha estética, mas como realidade fisiológica. A fonação é resultado do ressoar dos ossos, da ação dos músculos, da participação dos pulmões. A [Voz] de cada um é o resultado de uma soma de movimentos, memórias e aprendizados registrados na pele”.28 Em segundo lugar, porque, embora reconheçamos o papel constitutivo do corpo (e da voz) nos resultados das interações que promovemos com nossos entrevistados, só o fazemos até a página cinco, quase como uma declaração de boa-fé. Ao introduzir nossos sujeitos e descrever os bastidores da pesquisa, lançamos mão de comentários que valorizam o papel da voz e do corpo. Mais tarde, porém, quando vamos ler nossas entrevistas, a voz tende a ser novamente reduzida a um mero conduto: na análise e no aproveitamento das histórias orais o que acaba importando mesmo é a semântica, como se confirmando o argumento da filósofa feminista italiana Adriana Cavarero de que, na tradição do pensamento ocidental, a voz é considerada tão somente a “veste acústica ao trabalho mental do conceito”29. Como expõe Cavarero, trata-se de uma perspectiva instaurada pela metafísica de Platão e Aristóteles, que subordina – no melhor dos casos – a dimensão acústica das palavras à sua dimensão semântica; se a expressão vocal for destituída de significação, diz a filósofa, ela estará imediatamente destituída de qualquer valor aos olhos dos pensadores metafísicos. Para ela, porém, “a voz é som, não palavra”; “o âmbito da voz é constitutivamente mais amplo que o da palavra: ele o excede”. E, embora a palavra constitua seu “destino essencial”, coloca Cavarero, “o preconceito fundamental diz respeito à tendência a absolutizá-lo, de modo que, fora da palavra, a voz se torne um resto insignificante”. Se Cavarero busca implodir a hegemonia metafísica a partir de dentro do campo filosófico (como a fenomenologia de Merleau-Ponty, igualmente avessa à tradição metafísica e ao cartesianismo que descarta o corpo e os sentidos), outros pensadores a transpassaram de fora. Por exemplo, nos estudos da performance, como fez o polímata suíço Paul Zumthor, autor de trabalhos importantes de crítica literária, história e linguística que têm o período medieval como plataforma de observação. Falecido em 1995, autor de obras como A Letra e a Voz, Introdução à Poesia Oral, Performance, Recepção e Leitura e Escritura e Nomadismo, Zumthor nos lembra que “a voz tem qualidades como tom, timbre, amplitude, altura, registro, as quais possuem valores simbólicos”30. Sua discípula e divulgadora, Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018 COM U N ICA ÇÕES “Onde não há pecado nem perdão”: Evocações da voz na memória e na cultura 599 COM U N ICA ÇÕES Ricardo Santhiago Jerusa Pires Ferreira, soube concentrar o poder para o qual Zumthor nos sensibiliza: estar diante da voz viva, da presença daquele que diz sua história, seu poema ou canção é acompanhar toda uma energia corporal e mais que isso: conjunção dos sentidos e de uma inteireza que vai dos fragmentos ao todo, das entonações mais fortes às mais fracas, do dito exaustivo ao silêncio, que é tão significativo. Há ainda que atentar para os conhecimentos escondidos, a informação do que se diz, tanto aos iniciados, os do mesmo grupo ou aos outros, as desconfianças que se fazem realçar segmentos e finalmente, o conjunto da expressão de quem diz. Veja-se a responsabilidade que se tem, quando se está diante de alguém.31 Mesmo assim, vale a pena repetir: essa “sensibilização” parece ter consequência principalmente antes da entrevista, mas não em seu aproveitamento analítico, mesmo que a escuta característica da história oral só exista em função da existência da voz. E aqui cabe um parêntese: entrevistas com sujeitos surdos e sujeitos mudos têm sido realizados dentro dessa circunscrição metodológica – e têm proporcionado discussões repletas de insights extensíveis à prática da história oral como um todo, já que esquadrinham procedimentos e princípios muitas vezes dado por certos, como o papel da interpretação na transcrição e na fixação textual de relatos pessoais e o papel mesmo do corpo na constituição narrativa de si. Esses sujeitos – os que utilizam outros meios expressivos que não a voz – representam, todavia, uma parcela relativamente pequena dentre aqueles que têm sido convocados a oferecer seus testemunhos a praticantes de história oral. Mas, ainda que aqueles que narram utilizando seus aparelhos fonadores constituam os narradores majoritários e mais frequentes de nosso campo, a presença definidora da voz tem sido usualmente considerada mais como um pressuposto do que como um problema. Se ela aparece como problema, não é como problema de pesquisa, mas como obstáculo. Vale a pena explicar isso: a oralidade tem sido um meio provisório para os relatos de história oral. Desde sua origem institucional (no final dos anos 1940, na Universidade de Columbia, quando as fitas eram caras demais para serem usadas com um único entrevistado, sendo, portanto, reutilizadas depois de transcritas, fazendo com que da voz só restasse seu vestígio escrito) até a revolução digital, a 600 transcrição foi o meio virtualmente exclusivo de apresentação de histórias narradas.32 E é justamente nesse sentido que a voz torna-se um obstáculo: Como exprimir as inflexões da fala? Existe um meio específico de transpor para o texto o sussurro, a ironia? Quais os recursos expressivos, no âmbito da escrita, capazes de exprimir a entonação da voz, seu ritmo, suas quebras? É fundamentalmente aí que prestamos atenção à voz: quando vemos sua potência vocal neutralizada pela escrita. Trazemos para nosso campo, assim, a mesma preocupação encontrada na etnopoética de Ruth Finnegan33 ou na etnografia da fala de Dennis Tedlock34 ou Richard Bauman35. Enfim, lembramos da voz como um impedimento quando somos forçados a fazer o que o tão elegante Roland Barthes chamou de “toalete do defunto” no texto que abre O grão da voz, coletânea de suas próprias entrevistas: “Embalsamamos nossa palavra, como uma múmia”, escreve Barthes, “para fazê-la eterna”36. Nesse processo, perde-se a “teatralidade” da voz, sua “tática” e sua “inocência”, os “expletivos do pensamento”, e ainda “todos aqueles pedaços de linguagem (...) que o linguista certamente ligaria a uma das grandes funções da linguagem, a função fática ou de interpelação”. Para Barthes, o que se perde na transcrição é pura e simplesmente o corpo - pelo menos esse corpo exterior (contingente) que, em situação de diálogo, lança para outro corpo, tão frágil (ou assustado) quanto ele, mensagens intelectuais vazias, cuja única função é, de certo modo, agarrar o outro (até mesmo no sentido prostitutivo do termo) e mantê-lo em seu estado de parceiro. Eu não poderia deixar de dizer, ainda, que passamos ao largo da voz mesmo que ela constitua uma das metáforas mais utilizadas para descrever a tarefa dos praticantes de história oral: estou falando da sugestão de que uma das funções desse método seria a de “dar voz” aos silenciados, aos marginalizados, aos esquecidos, perspectiva que emergiu nos anos 1960 e 1970 conformando uma virada em relação à visão hegemônica anterior, da história oral como uma ferramenta arquivística e sem consequências para o presente.37 A ideia de que o pesquisador “dá voz” já foi suficientemente (e, a meu ver, justamente) criticada, sobretudo porque reconhecemos e valorizamos a agência dos sujeitos, na vida e na narração da própria vida. Ainda assim, ela tornou-se tão invasiva que o próprio fato de ter Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018 se tornado um clichê é uma boa razão para combatê-la. Alguns colegas, aborrecidos com a necessidade de repetir os problemas implicados na ideia de “dar voz”, optam – ao menos nos bastidores – por uma resposta mais maliciosa: “Nós não ‘damos voz’ a ninguém. Quem ‘dá voz’ é fonoaudiólogo”. A voz e a pedagogia da história oral Por último, quero fazer alguns comentários sobre um projeto coletivo conduzido no primeiro semestre de 2017 dentro da disciplina Metodologia da Pesquisa II, no curso de Fonoaudiologia da Unicamp. Tradicionalmente, este segundo módulo de apresentação de métodos e técnicas aprofunda a abordagem qualitativa – o que abriu espaço para que eu privilegiasse atividades investigativas relacionadas à pesquisa narrativa, particularmente a história oral. É desnecessário afirmar que considero a história oral um método de pesquisa valioso, capaz de fornecer acesso a um material humano que de outra forma não apenas não estaria acessível, mas sequer existiria: os dados com que se lida são produzidos, não preexistentes. Nos últimos anos, porém, tem ficado cada vez mais claro para mim o valor processual da história oral: ela faz diferença no mundo não apenas pelos produtos que gera, mas pela atividade de pesquisa em si. Como Valéria Magalhães e eu defendemos no livro História oral na sala de aula38, a história oral favorece o desenvolvimento da curiosidade e da habilidade investigativa, a sensibilização diante das diferenças (de geração, origem social, gênero, cultura, etc.), a reavaliação do quê se qualifica como objeto de estudo (histórico, sociológico, etc.) legítimo, o exercício da atenção e da escuta. Por isso tudo, acredito que fazer história oral não nos torna necessariamente pesquisadores melhores (afinal, há muitos e muitos recursos de pesquisa legítimos e frutuosos à disposição), mas certamente nos torna seres humanos melhores. Mesmo no que diz respeito às habilidades mais imediatamente ligadas à pesquisa acadêmica, considero a história oral uma ferramenta pedagógica particularmente apropriada, já que ela é uma espécie de “método de convergência”: para fazer boas entrevistas de história oral, precisamos fazer boa pesquisa bibliográfica e/ou documental, precisamos saber nos inserir e nos mostrar confiáveis a grupos sociais e comunidades que não são as nossas, precisamos observar o familiar e o não familiar e fazer as triagens necessárias, etc. E, fazendo tudo isso, estamos submetidos não apenas ao controle da comunidade científica, mas ao controle de nossos próprios sujeitos, que zelam – ainda que em diferentes graus – pela integridade de suas palavras. Em 2016, primeira ocasião em que ministrei a referida disciplina, propus aos alunos que desenvolvêssemos como trabalho final um conjunto de histórias orais com egressos das primeiras turmas do curso de Fonoaudiologia. Extremamente animados e comprometidos, os alunos geraram um dossiê de quase 50 horas gravadas, que faz diferença: a pesquisa inseriu relatos de episódios insuspeitos no registro histórico de uma instituição, permitiu inferir como a identidade profissional também se desenvolve a partir de práticas narrativas, imbuiu os alunos de um senso de pertencimento e de continuidade histórica, desconstruiu a visão que eles mesmos carregavam sobre a ideia de realização profissional, por exemplo. Eles descobriram que um questionário padronizado, por exemplo, poderia muito bem levantar que um dado entrevistado se sente realizado profissionalmente, e que esse mesmo entrevistado encontra-se numa faixa salarial de dois salários mínimos – mas que só uma entrevista de história oral poderia evidenciar que o que está em jogo, nessa aparente (e desconfortável) contradição, é justamente o sentido de “realização profissional”. Ler as histórias colhidas pelos alunos foi engrandecedor, sob muitos pontos de vista. Diverti-me muito, inclusive – por exemplo, quando uma entrevistada disse, a sério, que precisava pensar muito bem antes de narrar, “porque”, dizia ela, “eu já tenho trinta anos, gente”. E as entrevistadoras devolveram, em tom igualmente grave: “É, é muita história”. Em 2017, propus aos alunos outro tema, aceito por eles com igual entusiasmo: os “usos heterogêneos da voz”. Foi um convite para que eles explorassem não os processos anatômicos e fisiológicos que respondem pelo processo de produção vocal – mas sim as dimensões subjetivas, sociais e culturais da voz e dos múltiplos contextos em que ela se insere. O primeiro desafio foi pensar em quais seriam os sujeitos cujas identidades pessoais ou profissionais são assinaladas, ao menos em parte, por suas vozes. Embora os alunos tenham procurado os “suspeitos de sempre” – atores, cantores, teleoperadores, professores, que constituem as categorias frequentemente procuradas nos estudos da voz –, cartografamos um território mais amplo frequentado por uma corretora de imóveis, uma ae- Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018 COM U N ICA ÇÕES “Onde não há pecado nem perdão”: Evocações da voz na memória e na cultura 601 COM U N ICA ÇÕES Ricardo Santhiago 602 romoça, uma coreógrafa, um pastor, um padre, um vendedor, um bartender, um motorista de ônibus, uma militante de movimentos sociais e estudantis. E o que significam as vozes dessas pessoas, para elas mesmas? O que proporcionam e o que vetam? Que grau de poder lhes é atribuído? Qual a capacidade de controle dos donos da voz? Quão cientes eles estão do fato de que a voz expressa seus traços identitários? Após a seleção dos sujeitos, os primeiros passos da pesquisa foram um pouco frustrantes. Por mais que tivéssemos discutido a proposta, os alunos demonstraram uma dificuldade muito grande em extrapolar a problemática mais reduzida da voz em sua dimensão física e instrumental. Não conseguiam entendê-la como parte da inteireza de uma pessoa, quanto menos de um corpo social. Note-se que a primeira versão dos roteiros que eles elaboraram elencaram perguntas do tipo: Quantos copos de água você bebe por dia? Quais são seus hábitos alimentares? Realiza algum tipo de aquecimento vocal? Seu ambiente de trabalho é ruidoso? Após o uso intenso da voz, sente algum desconforto? Costuma lidar com a rouquidão? Já procurou algum profissional para relatar problemas vocais? Questões extremamente relevantes, sem dúvida, mas em uma investigação de outro teor. Até mesmo as perguntas que poderiam estimular um processo reflexivo eram muito pouco elusivas, abriam um espaço limitado para uma narrativa de experiência capaz de ultrapassar avaliações convencionais: Você acha que o seu trabalho causou algum efeito negativo sobre a sua voz? Qual a importância da oralidade no seu trabalho? Se você tivesse algum problema com a voz, isso impediria suas atividades atuais? Como romper essas barreiras que nem sabemos quando são construídas? No segundo ano de seu curso de graduação, sem qualquer experiência de pesquisa, esses alunos davam por certa que essas seriam as perguntas certas a se fazer. Da mesma forma, eles imaginavam que também haveria respostas certas, e que as entrevistas talvez não fossem tão necessárias, porque só revelariam obviedade e trivialidade. Custou certo tempo para que entendêssemos juntos, por exemplo, que nem todos os entrevistados poderiam reclamar de uma situação de rouquidão: ficar rouco depois de passar o Carnaval em Salvador poderia ser, para um jovem de 17 anos, a confirmação de que o dinheiro foi bem investido; ficar rouco depois de gritar “Fora Temer!”, “Diretas Já!”, em uma passeata ou num ato público, poderia representar a certeza de dever cumprido. “Cantarei até que a voz me doa” – não é isso o que diz um famoso fado, de Fontes Rocha e José Luís Gordo?39 Mas as expectativas também vêm por parte dos entrevistados: sabemos que uma entrevista de história oral é um relato de ação e um resíduo de ação40; ela documenta tanto o passado narrado quanto o presente da narração. E as entrevistas são fartas de exemplos que demonstram esse segundo engajamento, que registram as condições de produção da fonte, lembrando que o narratário de um texto oral também informa esse texto. “Não fica brava, não”, disse uma entrevistada, logo depois de dizer à sua entrevistadora – uma fonoaudióloga, lembremos – que ela fumava e bebia. As entrevistas documentam as relações que as precedem: “A sua voz, ela é calma, ela é clara, ela é suave. E não sei se é porque você é minha filha e hoje é dia das mães [risos], mas eu gosto da sua voz”. As entrevistas documentam o futuro que desejavelmente as sucedem: “Não se esqueça de ter sempre a humildade, de olhar sempre para a frente (...) Depois de estar formado (...) dedique um tempo, um dia por ano, um dia por mês, um dia por semana, uma hora às pessoas que mais precisam”. A entrevista também é – como Ecléa Bosi nos ensinou – uma troca de conselhos.41 A voz é fonte de satisfação: “Gosto da minha voz, não mudaria nada nela”. É fonte de insatisfação: “Eu odeio minha voz, eu acho que tenho voz de criança. Inclusive essa gravação você pode queimar. Queime depois de ouvir!”. É fonte de satisfação e insatisfação, ao mesmo tempo: “Eu, falando, descreveria que [minha voz] é uma voz bonita, uma voz apaixonante! Só que cantando, é um desastre!”. A voz também é uma forma de compensação; ela redimensiona o sujeito, tornando-o capaz de afetar o corpo e o intelecto de quem a escuta. Como contou um político entrevistado: quando a gente chega numa cerimônia, chega num evento – que a gente só tem um metro e sessenta e cinco, baixinho, cabeça bem grande, lá do Maranhão mesmo, entendeu? Mas quando a gente coloca a voz no microfone, quando dão a permissão do aparte pra gente, as pessoas ficam diferentes. [aqui, a voz do próprio entrevistado fica diferente, simulando a de um locutor de rádio] (...) Então, a minha voz – ela foi, ela é, e será essencial para a minha vida, para Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018 o desenvolvimento, né? Eu de vez em quando, no dia das mães, eu pego o carro de som, agradeço, parabenizo as mães, os pais nos seus dias, né?, Na comunidade. A voz, ela é essencial. Outro aspecto interessante diz respeito à forma das narrativas: narrar é um exercício criativo, e são criativas as palavras e as estruturas mobilizadas pelos entrevistados, por exemplo, para descrever suas próprias vozes. Conceitos e formulações que, como Heloísa Valente escreveu, “nada mais [são] que metáforas, apoios provisórios a que a incapacidade de dar nome a coisas invisíveis recorre para falar daquilo que toca profundamente e que não se vê”42. “A minha voz passa muita confiança”, disse uma entrevistada, “e isso é louco, porque eu não sinto confiança. E quando estou brava, acho que passo muita agressividade (...). Minha voz fica muito concisa e muito pontuda, sabe?”. Outra entrevistada disse: “Tem dia que você parece que fala mais firme, a voz parece que está mais cheia (...). Tem dia [que] você parece que fala meio patinando”. Uma terceira entrevistada descreveu a própria voz como “uma voz rouca, uma voz forte, uma voz sem tom”. Outra pessoa disse gostar de ouvir a própria pronúncia, mas não a voz, que “não é gostosa de ouvir, é meio ardida” (grifos nossos). E como seria a vida sem voz? Uma entrevista disse: “Eu fico brisando, imaginando qual sentido seria menos pior perder. Sentido não – qual das partes para o mundo, audição, visão e voz. E não bate um desespero; só é um pouco estranho pensar, porque eu sou muito verbal, falo muito, mesmo. Seria bem difícil”. Outra poetizou: “Seria terrível, viu? Acho que é igual passarinho que tem asa, mas não pode voar – fica no chão olhando os outros. É claro, tudo o que acontece na vida tem que adequar e tem que continuar vivendo, mas pessoa perder a voz é terrível. Deus que me perdoe”. Daí, chegamos a Deus e ao sagrado. Nas entrevistas, encontramos o relato fascinante de um episódio fortuito – uma perda temporária da voz, interpretada pelo narrador como uma espécie de castigo divino. A dimensão religiosa intensifica o poder da voz e isso seria tema de todo um estudo à parte. Este homem, um motorista, contou: Eu estava num determinado [culto e] nesse culto tinha muita gente, muita gente mesmo. (...) Deus tocou no meu coração que era pra mim ir dar um abraço no sonoplasta, só que eu estava do lado de cá e o sonoplasta estava do outro lado, então (...) [para chegar até ele] ia incomodar. E Deus falava e eu fiquei teimando, teimando com Deus. Teimei, teimei que eu não ia. Dentro de mim, a palavra, dentro de mim: “Como que eu vou? Tantos pastores [no caminho]. Eu, no meu pensamento, falava: (...) “Manda um desses pastores ir lá abraçar ele” (...) Na hora da oração final (...) o pentecoste desceu (...) e um desses pastores, que eu achava que era pra ele ir lá, ele veio, ele pegou na minha mão, colocou a minha mão na garganta dele. Eu não sei o que ele tinha porque ele não falou e Deus me mostrou o que ele tinha na garganta. Só que aí, eu não sei, teve um determinado momento da oração que eu percebi que minha voz sumiu, entalou, não saía. Eu tentei falar e a voz não saía, a voz – porque na verdade foi uma experiência que, acho que, eu não sei quem mais desta época teve essa experiência. Eu tive essa experiência. Horrível. A minha voz sumiu, eu tentava falar mas não, não conseguia, sai nada. Aí eu falei: “Tá bom, Deus. Então eu vou”. Eu não sei como que eu consegui passar. Aperto eu passei, né? Não sei como. Eu passei, fui lá, dei um abraço no sonoplasta, a gente deu uns pulo lá, deu uns aleluia lá, a voz saiu. (...) Só dei um abraço, Deus pediu para eu dar um abraço. Não pediu para falar nada, só dar um abraço. E nesse abraço a gente sapateou lá no Espírito, foi muito bom. Então por isso que eu falo: a voz da gente é tudo. (...) Foi alguns segundos sem a voz, mas eu fiquei agoniado. COM U N ICA ÇÕES “Onde não há pecado nem perdão”: Evocações da voz na memória e na cultura Pergunto-me quão recorrente seria o entendimento da voz como uma moeda de troca na relação de mulheres e homens religiosos com Deus; deveríamos investigar. Em última instância, o próprio uso da voz como ameaça ou castigo é um índice do lugar central que ela ocupa na vida dos sujeitos e em suas estruturas de fé; o significado da voz é extraído justamente do espaço intermediário que separa desobediência e adesão, fracasso e triunfo da fé sobre os desejos individuais. Uma mulher entrevistada, cantora católica, disse: a voz, pra mim, significa isso: uma dádiva de Deus, um presente de Deus, e que a gente tem que usar com sabedoria, não se exaltar, porque quando a gente se exalta... Um tempo, eu caí nessa besteira de me exaltar – “Ah, minha voz!”. No meu íntimo. Não falava pra ninguém. No meu íntimo [pensava]: “Ah, eu cantei melhor, eu cantei... tudo!”. Mas aí Deus falou assim: “Eu vou fazer você perder a voz, vou fazer você perder a voz pra você voltar pro seu lugar. Sai desse salto, desce daí!”. Então eu fui obrigada a descer, perdi a voz, né? [Foi quando] procurei uma fono, fiz exame e constatou dois calos nas cordas vocais. Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018 603 COM U N ICA ÇÕES Ricardo Santhiago Para outra cantora religiosa, desta vez evangélica, a voz também é uma dádiva, um presente. Não é uma ameaça – mas ainda assim ela demonstra o mesmo esforço em se afastar dos maus sentimentos: Depois que eu me converti, como eu gostava de cantar, eu fui assim, gostando dos louvores, dos hinos. E aí eu vi a mulher cantando na igreja e pedi para Deus que eu queria cantar igual ela – não tendo inveja da mulher, lógico, né? Mas eu pensei assim: ‘como está dando um alívio no meu coração hoje com essa música, com essa voz linda, né? Então eu posso passar isso para as pessoas também por onde eu vou, porque ela vai para um lado e eu vou para o outro. Quando foi um tempo eu comecei a cantar e percebi que Deus me atendeu no que eu pedi. Um pastor oferece uma visão muito mais concreta: para ele, a voz não seria uma dádiva, mas uma inevitabilidade. Ele a entende como meio de realizar e dignificar a missão que lhe foi incumbida: “O tempo todo na minha profissão, a voz é usada. Não existe um... um momento em que eu possa, dentro da minha atividade, dizer ‘eu não vou utilizar a minha voz’. Não existe isso, não faz parte do meu universo. É diferente de outras profissões, na minha eu não tenho essa opção”. Gravando e amplificando histórias como estas, os alunos não estão apenas experimentando um método de pesquisa: por mais que tenham dificuldade de mobilizar debates complexos e até mesmo de estabelecer um diálogo prolongado, empático e denso com seus entrevistados, eles estão participando do empreendimento coletivo da ciência, expandindo suas próprias experiências e interiorizando a ideia de que a voz só se realiza plenamente quando se encontra com a escuta. A expectativa é a de que eles se sensibilizem para o fato de que as vozes que estão ouvindo desvelam modos de vida, não só pelo conteúdo de sua produção vocal: as vozes são, em si mesmas, produtos dos modos e das possibilidades de vida dos sujeitos. Poderíamos dizer que elas não são transparentes nem opacas, mas translúcidas. A musculatura que conta é a musculatura que é contada; os processos neurobiológicos da memória e da linguagem que são assunto de uma narração são os mesmos processos que habilitam essa narração. Em sua fisicalidade, a voz não é apenas instrumento, mas agente. Como escreveu Zumthor, “não somen- 604 te o conhecimento se faz pelo corpo mas ele é, em seu princípio, conhecimento do corpo”43. Para nos lembrarmos disso, precisamos estar atentos à dimensão não apenas conteudística dos relatos que ouvimos; precisamos estar imbuídos da disposição de conhecer que a perspectiva histórico-sociológica nos oferece, mas também daquilo que os estudos da performance, os estudos da voz, os estudos fonoaudiológicos nos ensinam – enfim, de um conhecimento verdadeiramente multifocal. Ou será que o que Zumthor nos ensina está mesmo tão distante da teoria da fala de Karl Bühler, que já nos anos 1930 defendia qualquer emissão humana apresenta três funções: da representação, da expressão, e do apelo?44 Espero que, ao fim desses projetos, os alunos saibam não apenas conduzir uma entrevista que usa a voz para contar a vida, mas os sensibilizem para como esse meio de expressão resulta daquilo que ele mesmo comunica. Considerações finais Finalizo este texto reaproximando a história oral e música. Descobri o método da história oral entrevistando artistas, sobretudo cantores e cantoras – sujeitos que usaram suas vozes para conversar comigo e que têm as vozes como principal instrumento de trabalho. Nas histórias que cantam e nas histórias que contam, eles e elas evidenciam que a voz é sua paixão, seu destino, seu ganha-pão. Daí que sejam realmente lancinantes as histórias sobre a ausência da voz, que tende inclusive a ser um tabu. Veja-se o caso de Marina Lima, de seu sofrimento e reabilitação públicos.45 Se nós somos nossas histórias – como Paul John Eakin46 propõe – nós não somos também nossas vozes? Existimos, se não as possuímos? Com uma outra cantora, tive um intenso trabalho de colaboração: Alaíde Costa, precursora da bossa nova e uma das principais intérpretes da música popular brasileira, hoje com mais de 80 anos e em plena atividade criativa. Sua história de vida foi a base para meu livro Solistas dissonantes: História (oral) de cantoras negras47, que abriu caminho para que eu escrevesse sua biografia – na verdade, uma autobiografia narrada – chamada Faria tudo de novo48. Nesse processo, Alaíde e eu tivemos múltiplos encontros. Neles, eu lhe perguntava, recorrentemente, sobre um assunto que eu sabia ser um tabu: sua relação com a família. Alaíde encontrou no seio familiar a dor que lhe perseguiria Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018 por toda a vida: a de ser cobrada por perseguir uma linha de trabalho na qual ela, supostamente, por sua condição racial, não se encaixava. Jamais teve o apoio dos familiares em sua escolha – a não ser por um irmão mais velho. Eu queria discutir tudo isso, pois essa experiência essa central para a discussão maior que estávamos elaborando: a dificuldade de uma cantora negra afirmar-se artística e profissionalmente dentro de um universo musical tido como sofisticado. Alaíde não queria, e tinha uma forma de fazer isso: sempre que chegávamos ao tema, sua voz falhava. Ela tossia. Nenhum som saía de sua boca. Era como se ela gentilmente dissesse: “Mesmo que eu quisesse contar, eu não posso”. Acho que isso ajuda a responder minha própria pergunta: se nós somos nossas histórias, não somos também nossas vozes? No caso de Alaíde, como sua voz falhava, sua dolorida história pessoal cessava de existir. Não era passível de escuta, de transmissão, de registro. Não falar, neste caso, era a maneira mais eficaz de controlar a própria história. Paul Zumthor escreveu: “dizendo qualquer coisa, a voz se diz”49. E, acrescentaríamos: mesmo sem dizer nada ela se diz. Ela é o veículo e o território da dúvida e da certeza, do risco e da salvação, do veneno e do remédio – aquele lugar, mais uma vez cito Caetano Veloso, “onde não há pecado nem perdão”. 8. Assmann A. Espaços da recordação: Formas e transformações da memória cultural. Campinas, SP: Editora da Unicamp; 2011. 9. Assmann J. Memória comunicativa e memória cultural. História Oral, v. 19, n. 1, p. 115-27, 2016. 10. Sundberg J. Ciência da voz: Fatos sobre a voz na fala e no canto. Trad.: G L Salomão. São Paulo: Edusp; 2015. 11. Veloso C. Minha voz, minha vida. In: Veloso C. Livro; 1997. 12. Veloso C. Alguém cantando. In: Veloso C. Bicho; 1977. 13. 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