“Onde não há pecado nem perdão”:
Evocações da voz na memória
e na cultura
“Where there is no sin, no forgiveness”:
Evocations of voice in memory and culture
COM U N ICA ÇÕES
http://dx.doi.org/10.23925/2176-2724.2018v30i3p595-606
“Donde no hay pecado ni perdón”:
Evocaciones de la voz en la memoria
y en la cultura
Ricardo Santhiago*
Resumo
Introdução: O ponto de partida desta comunicação é a ideia de que a produção vocal não consiste
apenas em um fenômeno anatômico e fisiológico, mas também psicológico e social, dimensões para as
quais os estudos fonoaudiológicos têm atentado. Objetivo: O texto visa apresentar e discutir três entrelaces
possíveis entre essas dimensões: as interpretações sobre a voz construídas e veiculadas no cancioneiro
da música popular brasileira; o papel da voz na prática da história oral e na literatura especializada sobre
este método de pesquisa; as narrações de uma variedade de sujeitos sobre a presença e o significado
da voz em suas vidas. Método: Foram levantadas canções que tratam da temática da voz e coligidos
depoimentos em um projeto experimental em nível de graduação, interpretados em conformidade com
princípios da hermenêutica em um texto de caráter ensaístico. Conclusão: Tanto o cancioneiro popular
brasileiro quanto os depoimentos de sujeitos que utilizam a voz de maneira intensa demonstram enorme
variedade e complexidade nas formas de compreender o papel assumido pela voz na vida dos indivíduos.
Palavras-chave: Voz; Canto; Música; Memória.
Abstract
Introduction: The starting point for this communication is the idea that vocal production consists
not only of an anatomical and physiological phenomenon, but also of a psychological and social one
– dimensions which have been comprised by the Speech-Language Studies. Objective: The article
*Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
Contribuição do autor
RS – elaboração geral do trabalho
E-mail para correspondência: Ricardo Santhiago ricardo.santhiago@unifesp.br
Recebido: 27/06/2017
Aprovado: 18/06/2018
Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018
595
COM U N ICA ÇÕES
Ricardo Santhiago
aims to present and discuss three possible links between these dimensions: the visions about the voice
engendered and circulated through Brazilian popular songs; the place occupied by the voice within the
oral history practice and the specialized literature on this research method; the personal narratives by a
variety of individuals about the presence and meaning of the voice in their lives. Methods: The work has
collected several songs that approach the human voice as a theme, as well as testimonies recorded in an
experimental project at the undergraduate level. They were interpreted in accordance with the principles
of hermeneutics in an essay text. Conclusion: Both the Brazilian popular music and the testimonies given
by persons who use the voice intensely demonstrate enormous variety and complexity in understanding
the role of voice in the life of individuals.
Keywords: Voice; Singing; Music; Memory.
Resumen
Introducción: El punto de partida de esta comunicación es la idea de que la producción vocal no
consiste sólo en un fenómeno anatómico y fisiológico, sino también psicológico y social, dimensiones
para las cuales los estudios fonoaudiológicos han atentado. Objetivo: El texto visa presentar y discutir
tres entrelazamientos posibles entre esas dimensiones: las interpretaciones sobre la voz construidas y
transmitidas en el cancionero de la música popular brasileña; el papel de la voz en la práctica de la historia
oral y en la literatura especializada sobre este método de investigación; las narraciones personales de
una variedad de sujetos sobre la presencia y el significado de la voz en sus vidas. Método: Se levantaran
canciones que tratan de la temática de la voz y se recogieron testimonios grabados en un proyecto
experimental a nivel de graduación, interpretados de acuerdo con principios de la hermenéutica en un
texto de carácter ensayístico. Conclusión: Tanto el cancionero popular brasileño como los testimonios de
sujetos que utilizan la voz de manera intensa demuestran enorme variedad y complejidad en las formas
de comprender el papel asumido por la voz en la vida de los individuos.
Palabras claves: Voz; Canto; Música; Memoria.
Introdução
Se as abordagens sobre a voz são caracterizadas, nos dias de hoje, pelo vulto, pela diversidade
e pela complexidade, deve-se reconhecer o papel
que os estudos fonoaudiológicos tiveram nisso.
Resistindo à tentação de avaliar certos aspectos e
características da voz humana de maneira isolada,
esses estudos têm demonstrado a viabilidade e a
frutuosidade da adoção de uma perspectiva que,
sem denegar os aspectos propriamente orgânicos
ligados à produção vocal, atente para sua dimensão psicológica e social.1,2,3,4,5,6,7 Ainda existem,
no entanto, inúmeros caminhos para a exploração
desta dimensão social – ou talvez, melhor dizendo,
do entrelaçamento social das qualidades físicas e
psicológicas da voz. As percepções dos indivíduos
a respeito da voz que produzem e das vozes que
escutam, por exemplo, são mediadas e negociadas socialmente – relacionam-se diretamente aos
valores que extraem de suas experiências em uma
dada cultura.
596
Como alguém dedicado ao estudo da memória
cultural e comunicativa8,9, proponho neste texto algumas reflexões sobre as dimensões socioculturais
da voz, por três vias interconectadas, apresentadas
na seção a seguir. Primeiramente, aprecio a canção
popular brasileira como uma espécie de reservatório da memória coletiva; como um veículo capaz de
construir, acumular e manter uma memória cultural;
como um suporte que ativa visões, representações
e comportamentos compartilhados – a respeito da
voz, inclusive. Em segundo lugar, discuto o papel
ocupado pela voz dentro da prática reflexiva e
das reflexões sobre a prática (isto é, na literatura
especializada) da história oral, método de pesquisa
baseado na recolha de testemunhos orais. Por fim,
apresento um relato inicial de uma experiência
pedagógica recentemente finalizada: um trabalho
coletivo no qual alunas e alunos do curso de Fonoaudiologia da Unicamp, dentro da disciplina de
Metodologia de Pesquisa II, mobilizaram a história
oral para investigar os significados subjetivos e
sociais da voz.
Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018
Descrição
“Onde não há pecado nem perdão”
O que é voz? Deixemos que o musicólogo
e estudioso da acústica musical Johan Sundberg
responda a esta pergunta, como ele busca fazer (não
sem enfatizar a natureza erradia desse objeto) no
primeiro capítulo do livro Ciência da voz: Fatos
sobre a voz na fala e no canto. A palavra, em seu
trabalho, designa
os sons gerados pelo sistema fonador quando as
pregas vocais estiverem em vibração ou, mais
precisamente, pelo fluxo de ar pulmonar que é
primeiramente modificado pelas pregas vocais
em vibração e depois pelo trato vocal, e por vezes
também pela cavidade nasal.10
Lancemos a mesma pergunta ao compositor
Caetano Veloso:
Minha voz, minha vida
Meu segredo e minha revelação
Minha luz escondida
Minha bússola e minha desorientação
Se o amor escraviza
Mas é a única libertação
Minha voz é precisa
Vida que não é menos minha que da canção
Por ser feliz, por sofrer
Por esperar, eu canto
Pra ser feliz, pra sofrer
Para esperar eu canto
Meu amor, acredite
Que se pode crescer assim pra nós
Uma flor sem limite
É somente por que eu trago a vida aqui na voz.11
A voz – como as fonoaudiólogas e os fonoaudiólogos sabem – é concreta, tangível. A fonação
é um processo anatômico e fisiológico conhecido
e exaustivamente descrito, tanto que pode ser
ensinado. O sistema respiratório, as pregas vocais e as cavidades de ressonância interagem, em
coordenação com o sistema nervoso central e com
o sistema nervoso periférico, responsáveis por regular a função fonética e integrá-la, por exemplo,
ao controle auditivo. Mas a voz também é magia,
imaterialidade, perplexidade, descontrole, porto
seguro, remédio; ela é terra “onde não há pecado
nem perdão”, como o mesmo Caetano Veloso escreveu em Alguém cantando.12 Ela é mesmo “esse
estranho-familiar, presente nas nossas narrativas,
pensamentos, autocríticas e delírios”.
Recorremos a físicos, musicólogos, otorrinolaringologistas, fonoaudiólogos, para compreender
sua face material – sabendo, é claro, que a maior
parte deles não denega os componentes emocionais
envolvidos na produção vocal. Para entender sua
ressonância (e aqui emprego deliberadamente
uma palavra ambígua), podemos nos voltar aos
sujeitos que a produzem e a utilizam. Dentre estes,
há os que a estranham como atividade integrante
de seus ofícios: atores, cantores líricos e populares, performers, poetas orais e poetas vocais... E
os cancionistas, que decalcam da fala suas obras
feitas para serem cantadas, como ensinou Luiz
Tatit: “Enquanto houver seres falantes, haverá
cancionistas convertendo suas falas em canto”. E
eles o fazem enquanto “pessoas sintonizadas com
a modernidade, sensíveis às questões humanas, às
relações interpessoais e com grande pendor para
mesclar fatos de diferentes universos de experiência
num único discurso: a canção”13.
Assim como as histórias individuais, as canções também têm a capacidade de encarnar – em
criações lírico-musicais de três ou quatro minutos,
portanto ainda mais sintéticas – fenômenos sociais
amplos, padrões culturais, visões de mundo, etc.
Entre as muitas experiências e realidades condensadas em canções estão os ofícios e os instrumentos
de seus cantores, compositores, músicos, cancionistas: elas oferecem toda uma metalinguagem sobre
as artes e os ofícios de seus artífices. Algumas dessas canções nos ajudam a desvendar as elaborações
subjetivas e coletivas sobre a voz.
O próprio Tatit – um cancionista, além de
linguista e semiólogo – mais de uma vez tratou,
em suas composições, do fascínio provocado pela
voz, de seu potencial arrebatador: “Todos querem
ver de perto / os seios da voz / Todos abandonam
casas / abandonam planos / dizendo que voltam /
mas voltam depois / antes querem ter certeza / que
vão ver os dois / os seios da voz”14, gravou em 1997
em Os seios da voz, ecoando a mesma comoção
social descrita em sua composição para o Grupo
Rumo, Delírio, meu!, de 198415. Lá, o sujeito da
canção dirige-se a um interlocutor aparentemente
alheio aos efeitos contundentes que sua voz provoca sobre os ouvintes. Buscando convencê-lo
do transe social causado por sua voz, ele canta:
“Delírio, meu! Delírio / Você pode perceber nitidamente que estão todos delirando / No mínimo
Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018
COM U N ICA ÇÕES
“Onde não há pecado nem perdão”: Evocações da voz na memória e na cultura
597
COM U N ICA ÇÕES
Ricardo Santhiago
598
/ E quando você prepara o seu agudo principal
/ Meu Deus! O pessoal vem parar no palco”. Em
sua gravação original, a canção é interpretada por
Ná Ozzetti, que no ano 2000 venceu o prêmio de
Melhor Intérprete do Festival de Música Brasileira
da Rede Globo com mais uma criação de Luiz Tatit
(desta vez em parceria com Fábio Tagliaferri) sobre
o mesmo topos: “E quem / sonhou, sofreu, chorou
/ pode fazer / de uma só voz / um show // Pode não
ser / um megashow / um festival / com multidões
/ mas quem chorou / já tem na voz / um show”.16
Canções como estas são testemunhos da importância da voz dentro de nossa cultura – elas, afinal,
organizam e expressam os elementos da cultura
que formam, e dentro da qual se constituem. Por
meio das canções, mapeamos o amplo território de
sentidos palmilhado pelas vozes, na cultura – e nos
reconhecemos como portadores e multiplicadores
desses sentidos. A voz que não engana: “Eu minto,
mas minha voz não mente / Minha voz soa exatamente / De onde no corpo da alma de uma pessoa /
Se produz a palavra eu” (Caetano Veloso, Drama)17.
A voz como consolo, como conforto: “Guarde minha voz no coração / Eu garanto que será melhor
/ Se você me escutar!” (Ton Saga, Guarde minha
voz)18. A voz e sua vida própria: “Há canções e há
momentos (...) / Em que a voz é um instrumento /
Que eu não posso controlar”. (Milton Nascimento
e Fernando Brandt, Canções e momentos)19. A voz
e seu limite corpóreo: “Devia ser proibido / Uma
saudade tão má / De uma pessoa tão boa / Falar,
gritar, reclamar / Se a nossa voz não ecoa” (Itamar
Assumpção e Alice Ruiz, Devia ser proibido)20. A
voz como compromisso solidário: “Para abraçar seu
irmão e beijar sua menina na rua / É que se fez o
seu braço, o seu lábio e a sua voz” (Belchior, Como
nossos pais)21. A voz como herança e como carga
de responsabilidade: “Minha voz vem dos gritos de
negros escravos / Vem dos povos aflitos de revolução / Do gemido da fome que grassa o nordeste
/ É a veste do eco do primeiro som” (Élio Camalle,
Eco)22. A voz como instrumento de dignificação
da responsabilidade: “Por isso essa voz, essa voz
tamanha” (Roberto Carlos, Força estranha)23. Isso
sem falar no poder religioso da voz, descrito em
dezenas ou provavelmente centenas de canções
católicas ou protestantes.
Poderíamos nos deter na exploração de cada
um desses sentidos da voz – não faltariam matéria-prima e possibilidades de ilação. Mas se quisermos
confirmar a força da canção como uma espécie de
reserva da memória social, de fiel depositária da
subjetividade coletiva, basta que pensemos em tudo
aquilo que já se disse sobre a voz primordial, a voz
materna, que dentro do desenvolvimento humano
representa muito mais do que um mero estímulo
auditivo. “Desde que nasci a voz da mulher / Me
embala, me alegra, me faz chorar / Me arrepia os
cabelos, me faz dançar / Me cala ressentimentos
/ Me ensina a amar (...) / Eu quero ouvir por toda
a minha vida / Uma mulher cantando para mim”,
escreveram Sueli Costa e Abel Silva, em Voz de
mulher.24 Será que esses versos condensam o essencial? Ou preferiríamos a declaração que a cantora
e compositora Ceumar fez à sua mãe:
Ela foi a primeira voz
Desde a primeira vez
Que o som se fez
Nunca desafinou
Nunca perdeu o tom
Cantarolava feliz
Cada verso diz mais
Quando vem emoldurado
Por sua voz
E eu aprendi muito bem
Sempre tento ecoar
A voz primeira
A voz mais bela
A voz de mar
Da minha mãe25
E assim seguiríamos, entendendo que o timbre,
a entoação, a altura, o ritmo, a intensidade da voz,
ajudam a moldar as relações que se formam em
torno dela – do começo ao fim da vida. Na canção
O filho que eu quero ter, de Toquinho e Vinícius
de Moraes, o que o músico e o poeta exprimem é
o desejo de que, na hora da morte, possam receber
o beijo do filho, sentir sua mão vedando seus olhos
– e “ouvir-lhe a voz a me embalar num acalanto
de adeus”26. A voz é presença e ausência, encontro
e despedida.
Problemas da voz na história oral
Por mais ricos que sejam esses testemunhos
sobre os significados da voz (e haveriam muitos
outros, na música, na literatura, na dramaturgia...),
dependemos do voluntarismo dos artistas responsáveis por cria-los e facultar-nos seu acesso. Podemos, porém, ativar outros dispositivos se queremos
penetrar nos significados sociais e subjetivos dos
sons que nossos corpos produzem.
Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018
A história oral é um desses dispositivos: ela
consiste em uma prática de pesquisa erigida em
torno de uma técnica (a entrevista), mas poderia
ser melhor caracterizada pelo exercício prolongado
e comprometido da atenção e da escuta. Ela é o
terreno da memória e da linguagem. Ela reúne um
conjunto de ferramentas desenhadas para estimular, registrar, avaliar e difundir relatos pessoais,
caracterizados pela artificialidade (esses relatos
não existem “por natureza”, mas dependem da
intervenção deliberada de um pesquisador para
tomar forma, mesmo quando remetem a narrações
prévias), pela dialogicidade (as histórias orais são
sempre intersubjetivas, frutos do encontro entre
duas pessoas, seus traços identitários, sua capacidade de empatia), pela espontaneidade (as entrevistas
são frutos de enfrentamentos únicos, imprevisíveis
e irrepetíveis, construídas in presentia).
Para a história oral, a voz é um componente
central: ela permite que um sujeito saia de si, expanda os limites de seu corpo, penetrando no outro. É a
voz em toda a sua potência – uma voz de afeto, uma
voz que afeta, não mais uma voz instrumentalizada
para o cumprimento das tarefas cotidianas, mas
dignificada em uma ocasião memorável. Se a entrevista de história oral é um encontro intersubjetivo,
é também um encontro intercorpóreo: o encontro
de um corpo que fala com um corpo que escuta. E
estamos atentos para o fato de que os narradores,
em seus esforços rememorativos, colocam todo
o seu corpo a serviço da comunicação, fazendo
dele seu instrumento de enfrentamento: contra a
marginalidade, contra o esquecimento, contra o
silenciamento.
Temos consciência disso – o que se confirma
pela ascensão espetacular do conceito de performance na literatura especializada, nas últimas
duas décadas (que é, por exemplo, eleito por Lynn
Abrams27 como um dos fundamentos da teoria da
história oral) –, mas não necessariamente sabemos
o que fazer com essa consciência. Em primeiro
lugar, a literatura especializada parece muitas vezes
sugerir que o corpo e a voz são entidades desconectadas – quando, como escreveu Paula Carrara,
no contexto de reflexões sobre o papel do corpo,
da voz e da escuta na atividade do ator, “o [Corpo]
está engajado na produção vocal não como escolha
estética, mas como realidade fisiológica. A fonação é resultado do ressoar dos ossos, da ação dos
músculos, da participação dos pulmões. A [Voz] de
cada um é o resultado de uma soma de movimentos,
memórias e aprendizados registrados na pele”.28
Em segundo lugar, porque, embora reconheçamos o papel constitutivo do corpo (e da voz) nos
resultados das interações que promovemos com
nossos entrevistados, só o fazemos até a página
cinco, quase como uma declaração de boa-fé. Ao
introduzir nossos sujeitos e descrever os bastidores
da pesquisa, lançamos mão de comentários que
valorizam o papel da voz e do corpo. Mais tarde,
porém, quando vamos ler nossas entrevistas, a voz
tende a ser novamente reduzida a um mero conduto:
na análise e no aproveitamento das histórias orais o
que acaba importando mesmo é a semântica, como
se confirmando o argumento da filósofa feminista
italiana Adriana Cavarero de que, na tradição do
pensamento ocidental, a voz é considerada tão
somente a “veste acústica ao trabalho mental do
conceito”29.
Como expõe Cavarero, trata-se de uma perspectiva instaurada pela metafísica de Platão e
Aristóteles, que subordina – no melhor dos casos
– a dimensão acústica das palavras à sua dimensão
semântica; se a expressão vocal for destituída de
significação, diz a filósofa, ela estará imediatamente
destituída de qualquer valor aos olhos dos pensadores metafísicos. Para ela, porém, “a voz é som,
não palavra”; “o âmbito da voz é constitutivamente
mais amplo que o da palavra: ele o excede”. E,
embora a palavra constitua seu “destino essencial”,
coloca Cavarero, “o preconceito fundamental diz
respeito à tendência a absolutizá-lo, de modo que,
fora da palavra, a voz se torne um resto insignificante”.
Se Cavarero busca implodir a hegemonia metafísica a partir de dentro do campo filosófico (como
a fenomenologia de Merleau-Ponty, igualmente
avessa à tradição metafísica e ao cartesianismo que
descarta o corpo e os sentidos), outros pensadores
a transpassaram de fora. Por exemplo, nos estudos
da performance, como fez o polímata suíço Paul
Zumthor, autor de trabalhos importantes de crítica
literária, história e linguística que têm o período
medieval como plataforma de observação. Falecido em 1995, autor de obras como A Letra e a Voz,
Introdução à Poesia Oral, Performance, Recepção
e Leitura e Escritura e Nomadismo, Zumthor nos
lembra que “a voz tem qualidades como tom, timbre, amplitude, altura, registro, as quais possuem
valores simbólicos”30. Sua discípula e divulgadora,
Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018
COM U N ICA ÇÕES
“Onde não há pecado nem perdão”: Evocações da voz na memória e na cultura
599
COM U N ICA ÇÕES
Ricardo Santhiago
Jerusa Pires Ferreira, soube concentrar o poder para
o qual Zumthor nos sensibiliza:
estar diante da voz viva, da presença daquele que
diz sua história, seu poema ou canção é acompanhar toda uma energia corporal e mais que isso:
conjunção dos sentidos e de uma inteireza que vai
dos fragmentos ao todo, das entonações mais fortes
às mais fracas, do dito exaustivo ao silêncio, que
é tão significativo. Há ainda que atentar para os
conhecimentos escondidos, a informação do que
se diz, tanto aos iniciados, os do mesmo grupo ou
aos outros, as desconfianças que se fazem realçar
segmentos e finalmente, o conjunto da expressão de
quem diz. Veja-se a responsabilidade que se tem,
quando se está diante de alguém.31
Mesmo assim, vale a pena repetir: essa “sensibilização” parece ter consequência principalmente
antes da entrevista, mas não em seu aproveitamento
analítico, mesmo que a escuta característica da
história oral só exista em função da existência da
voz. E aqui cabe um parêntese: entrevistas com
sujeitos surdos e sujeitos mudos têm sido realizados dentro dessa circunscrição metodológica – e
têm proporcionado discussões repletas de insights
extensíveis à prática da história oral como um todo,
já que esquadrinham procedimentos e princípios
muitas vezes dado por certos, como o papel da
interpretação na transcrição e na fixação textual
de relatos pessoais e o papel mesmo do corpo na
constituição narrativa de si. Esses sujeitos – os que
utilizam outros meios expressivos que não a voz
– representam, todavia, uma parcela relativamente
pequena dentre aqueles que têm sido convocados a
oferecer seus testemunhos a praticantes de história
oral. Mas, ainda que aqueles que narram utilizando
seus aparelhos fonadores constituam os narradores
majoritários e mais frequentes de nosso campo, a
presença definidora da voz tem sido usualmente
considerada mais como um pressuposto do que
como um problema.
Se ela aparece como problema, não é como
problema de pesquisa, mas como obstáculo. Vale
a pena explicar isso: a oralidade tem sido um meio
provisório para os relatos de história oral. Desde
sua origem institucional (no final dos anos 1940,
na Universidade de Columbia, quando as fitas eram
caras demais para serem usadas com um único
entrevistado, sendo, portanto, reutilizadas depois
de transcritas, fazendo com que da voz só restasse
seu vestígio escrito) até a revolução digital, a
600
transcrição foi o meio virtualmente exclusivo de
apresentação de histórias narradas.32 E é justamente
nesse sentido que a voz torna-se um obstáculo:
Como exprimir as inflexões da fala? Existe um
meio específico de transpor para o texto o sussurro,
a ironia? Quais os recursos expressivos, no âmbito
da escrita, capazes de exprimir a entonação da voz,
seu ritmo, suas quebras?
É fundamentalmente aí que prestamos atenção
à voz: quando vemos sua potência vocal neutralizada pela escrita. Trazemos para nosso campo, assim,
a mesma preocupação encontrada na etnopoética de
Ruth Finnegan33 ou na etnografia da fala de Dennis
Tedlock34 ou Richard Bauman35. Enfim, lembramos
da voz como um impedimento quando somos forçados a fazer o que o tão elegante Roland Barthes
chamou de “toalete do defunto” no texto que abre
O grão da voz, coletânea de suas próprias entrevistas: “Embalsamamos nossa palavra, como uma
múmia”, escreve Barthes, “para fazê-la eterna”36.
Nesse processo, perde-se a “teatralidade” da voz,
sua “tática” e sua “inocência”, os “expletivos do
pensamento”, e ainda “todos aqueles pedaços de
linguagem (...) que o linguista certamente ligaria a
uma das grandes funções da linguagem, a função
fática ou de interpelação”. Para Barthes,
o que se perde na transcrição é pura e simplesmente
o corpo - pelo menos esse corpo exterior (contingente) que, em situação de diálogo, lança para
outro corpo, tão frágil (ou assustado) quanto ele,
mensagens intelectuais vazias, cuja única função
é, de certo modo, agarrar o outro (até mesmo no
sentido prostitutivo do termo) e mantê-lo em seu
estado de parceiro.
Eu não poderia deixar de dizer, ainda, que
passamos ao largo da voz mesmo que ela constitua
uma das metáforas mais utilizadas para descrever
a tarefa dos praticantes de história oral: estou falando da sugestão de que uma das funções desse
método seria a de “dar voz” aos silenciados, aos
marginalizados, aos esquecidos, perspectiva que
emergiu nos anos 1960 e 1970 conformando uma
virada em relação à visão hegemônica anterior, da
história oral como uma ferramenta arquivística e
sem consequências para o presente.37 A ideia de que
o pesquisador “dá voz” já foi suficientemente (e, a
meu ver, justamente) criticada, sobretudo porque
reconhecemos e valorizamos a agência dos sujeitos,
na vida e na narração da própria vida. Ainda assim,
ela tornou-se tão invasiva que o próprio fato de ter
Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018
se tornado um clichê é uma boa razão para combatê-la. Alguns colegas, aborrecidos com a necessidade
de repetir os problemas implicados na ideia de “dar
voz”, optam – ao menos nos bastidores – por uma
resposta mais maliciosa: “Nós não ‘damos voz’ a
ninguém. Quem ‘dá voz’ é fonoaudiólogo”.
A voz e a pedagogia da história oral
Por último, quero fazer alguns comentários
sobre um projeto coletivo conduzido no primeiro
semestre de 2017 dentro da disciplina Metodologia da Pesquisa II, no curso de Fonoaudiologia da
Unicamp. Tradicionalmente, este segundo módulo
de apresentação de métodos e técnicas aprofunda
a abordagem qualitativa – o que abriu espaço para
que eu privilegiasse atividades investigativas relacionadas à pesquisa narrativa, particularmente a
história oral. É desnecessário afirmar que considero
a história oral um método de pesquisa valioso, capaz de fornecer acesso a um material humano que
de outra forma não apenas não estaria acessível,
mas sequer existiria: os dados com que se lida são
produzidos, não preexistentes.
Nos últimos anos, porém, tem ficado cada vez
mais claro para mim o valor processual da história
oral: ela faz diferença no mundo não apenas pelos
produtos que gera, mas pela atividade de pesquisa
em si. Como Valéria Magalhães e eu defendemos
no livro História oral na sala de aula38, a história
oral favorece o desenvolvimento da curiosidade e
da habilidade investigativa, a sensibilização diante
das diferenças (de geração, origem social, gênero,
cultura, etc.), a reavaliação do quê se qualifica
como objeto de estudo (histórico, sociológico,
etc.) legítimo, o exercício da atenção e da escuta.
Por isso tudo, acredito que fazer história oral não
nos torna necessariamente pesquisadores melhores
(afinal, há muitos e muitos recursos de pesquisa
legítimos e frutuosos à disposição), mas certamente
nos torna seres humanos melhores.
Mesmo no que diz respeito às habilidades mais
imediatamente ligadas à pesquisa acadêmica, considero a história oral uma ferramenta pedagógica
particularmente apropriada, já que ela é uma espécie de “método de convergência”: para fazer boas
entrevistas de história oral, precisamos fazer boa
pesquisa bibliográfica e/ou documental, precisamos
saber nos inserir e nos mostrar confiáveis a grupos
sociais e comunidades que não são as nossas,
precisamos observar o familiar e o não familiar e
fazer as triagens necessárias, etc. E, fazendo tudo
isso, estamos submetidos não apenas ao controle da
comunidade científica, mas ao controle de nossos
próprios sujeitos, que zelam – ainda que em diferentes graus – pela integridade de suas palavras.
Em 2016, primeira ocasião em que ministrei a
referida disciplina, propus aos alunos que desenvolvêssemos como trabalho final um conjunto de
histórias orais com egressos das primeiras turmas
do curso de Fonoaudiologia. Extremamente animados e comprometidos, os alunos geraram um dossiê
de quase 50 horas gravadas, que faz diferença: a
pesquisa inseriu relatos de episódios insuspeitos
no registro histórico de uma instituição, permitiu
inferir como a identidade profissional também se
desenvolve a partir de práticas narrativas, imbuiu
os alunos de um senso de pertencimento e de continuidade histórica, desconstruiu a visão que eles
mesmos carregavam sobre a ideia de realização
profissional, por exemplo. Eles descobriram que
um questionário padronizado, por exemplo, poderia muito bem levantar que um dado entrevistado
se sente realizado profissionalmente, e que esse
mesmo entrevistado encontra-se numa faixa salarial de dois salários mínimos – mas que só uma
entrevista de história oral poderia evidenciar que o
que está em jogo, nessa aparente (e desconfortável)
contradição, é justamente o sentido de “realização
profissional”. Ler as histórias colhidas pelos alunos
foi engrandecedor, sob muitos pontos de vista.
Diverti-me muito, inclusive – por exemplo, quando uma entrevistada disse, a sério, que precisava
pensar muito bem antes de narrar, “porque”, dizia
ela, “eu já tenho trinta anos, gente”. E as entrevistadoras devolveram, em tom igualmente grave: “É,
é muita história”.
Em 2017, propus aos alunos outro tema,
aceito por eles com igual entusiasmo: os “usos
heterogêneos da voz”. Foi um convite para que eles
explorassem não os processos anatômicos e fisiológicos que respondem pelo processo de produção
vocal – mas sim as dimensões subjetivas, sociais e
culturais da voz e dos múltiplos contextos em que
ela se insere. O primeiro desafio foi pensar em quais
seriam os sujeitos cujas identidades pessoais ou
profissionais são assinaladas, ao menos em parte,
por suas vozes. Embora os alunos tenham procurado os “suspeitos de sempre” – atores, cantores,
teleoperadores, professores, que constituem as
categorias frequentemente procuradas nos estudos
da voz –, cartografamos um território mais amplo
frequentado por uma corretora de imóveis, uma ae-
Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018
COM U N ICA ÇÕES
“Onde não há pecado nem perdão”: Evocações da voz na memória e na cultura
601
COM U N ICA ÇÕES
Ricardo Santhiago
602
romoça, uma coreógrafa, um pastor, um padre, um
vendedor, um bartender, um motorista de ônibus,
uma militante de movimentos sociais e estudantis.
E o que significam as vozes dessas pessoas, para
elas mesmas? O que proporcionam e o que vetam?
Que grau de poder lhes é atribuído? Qual a capacidade de controle dos donos da voz? Quão cientes
eles estão do fato de que a voz expressa seus traços
identitários?
Após a seleção dos sujeitos, os primeiros
passos da pesquisa foram um pouco frustrantes.
Por mais que tivéssemos discutido a proposta,
os alunos demonstraram uma dificuldade muito
grande em extrapolar a problemática mais reduzida
da voz em sua dimensão física e instrumental. Não
conseguiam entendê-la como parte da inteireza de
uma pessoa, quanto menos de um corpo social.
Note-se que a primeira versão dos roteiros que
eles elaboraram elencaram perguntas do tipo:
Quantos copos de água você bebe por dia? Quais
são seus hábitos alimentares? Realiza algum tipo
de aquecimento vocal? Seu ambiente de trabalho
é ruidoso? Após o uso intenso da voz, sente algum
desconforto? Costuma lidar com a rouquidão? Já
procurou algum profissional para relatar problemas vocais? Questões extremamente relevantes,
sem dúvida, mas em uma investigação de outro teor.
Até mesmo as perguntas que poderiam estimular
um processo reflexivo eram muito pouco elusivas,
abriam um espaço limitado para uma narrativa de
experiência capaz de ultrapassar avaliações convencionais: Você acha que o seu trabalho causou
algum efeito negativo sobre a sua voz? Qual a
importância da oralidade no seu trabalho? Se você
tivesse algum problema com a voz, isso impediria
suas atividades atuais?
Como romper essas barreiras que nem sabemos
quando são construídas? No segundo ano de seu
curso de graduação, sem qualquer experiência de
pesquisa, esses alunos davam por certa que essas
seriam as perguntas certas a se fazer. Da mesma
forma, eles imaginavam que também haveria
respostas certas, e que as entrevistas talvez não
fossem tão necessárias, porque só revelariam
obviedade e trivialidade. Custou certo tempo para
que entendêssemos juntos, por exemplo, que nem
todos os entrevistados poderiam reclamar de uma
situação de rouquidão: ficar rouco depois de passar
o Carnaval em Salvador poderia ser, para um jovem
de 17 anos, a confirmação de que o dinheiro foi
bem investido; ficar rouco depois de gritar “Fora
Temer!”, “Diretas Já!”, em uma passeata ou num
ato público, poderia representar a certeza de dever
cumprido. “Cantarei até que a voz me doa” – não
é isso o que diz um famoso fado, de Fontes Rocha
e José Luís Gordo?39
Mas as expectativas também vêm por parte
dos entrevistados: sabemos que uma entrevista
de história oral é um relato de ação e um resíduo
de ação40; ela documenta tanto o passado narrado
quanto o presente da narração. E as entrevistas são
fartas de exemplos que demonstram esse segundo
engajamento, que registram as condições de produção da fonte, lembrando que o narratário de um
texto oral também informa esse texto. “Não fica
brava, não”, disse uma entrevistada, logo depois
de dizer à sua entrevistadora – uma fonoaudióloga,
lembremos – que ela fumava e bebia. As entrevistas
documentam as relações que as precedem: “A sua
voz, ela é calma, ela é clara, ela é suave. E não sei
se é porque você é minha filha e hoje é dia das mães
[risos], mas eu gosto da sua voz”. As entrevistas
documentam o futuro que desejavelmente as sucedem: “Não se esqueça de ter sempre a humildade,
de olhar sempre para a frente (...) Depois de estar
formado (...) dedique um tempo, um dia por ano,
um dia por mês, um dia por semana, uma hora às
pessoas que mais precisam”. A entrevista também
é – como Ecléa Bosi nos ensinou – uma troca de
conselhos.41
A voz é fonte de satisfação: “Gosto da minha
voz, não mudaria nada nela”. É fonte de insatisfação: “Eu odeio minha voz, eu acho que tenho
voz de criança. Inclusive essa gravação você pode
queimar. Queime depois de ouvir!”. É fonte de
satisfação e insatisfação, ao mesmo tempo: “Eu,
falando, descreveria que [minha voz] é uma voz
bonita, uma voz apaixonante! Só que cantando, é
um desastre!”.
A voz também é uma forma de compensação;
ela redimensiona o sujeito, tornando-o capaz de
afetar o corpo e o intelecto de quem a escuta. Como
contou um político entrevistado:
quando a gente chega numa cerimônia, chega num
evento – que a gente só tem um metro e sessenta e
cinco, baixinho, cabeça bem grande, lá do Maranhão
mesmo, entendeu? Mas quando a gente coloca a voz
no microfone, quando dão a permissão do aparte pra
gente, as pessoas ficam diferentes. [aqui, a voz do
próprio entrevistado fica diferente, simulando a de
um locutor de rádio] (...) Então, a minha voz – ela
foi, ela é, e será essencial para a minha vida, para
Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018
o desenvolvimento, né? Eu de vez em quando, no
dia das mães, eu pego o carro de som, agradeço,
parabenizo as mães, os pais nos seus dias, né?, Na
comunidade. A voz, ela é essencial.
Outro aspecto interessante diz respeito à forma
das narrativas: narrar é um exercício criativo, e são
criativas as palavras e as estruturas mobilizadas
pelos entrevistados, por exemplo, para descrever
suas próprias vozes. Conceitos e formulações que,
como Heloísa Valente escreveu, “nada mais [são]
que metáforas, apoios provisórios a que a incapacidade de dar nome a coisas invisíveis recorre
para falar daquilo que toca profundamente e que
não se vê”42. “A minha voz passa muita confiança”,
disse uma entrevistada, “e isso é louco, porque eu
não sinto confiança. E quando estou brava, acho
que passo muita agressividade (...). Minha voz
fica muito concisa e muito pontuda, sabe?”. Outra
entrevistada disse: “Tem dia que você parece que
fala mais firme, a voz parece que está mais cheia
(...). Tem dia [que] você parece que fala meio patinando”. Uma terceira entrevistada descreveu a
própria voz como “uma voz rouca, uma voz forte,
uma voz sem tom”. Outra pessoa disse gostar de
ouvir a própria pronúncia, mas não a voz, que “não
é gostosa de ouvir, é meio ardida” (grifos nossos).
E como seria a vida sem voz? Uma entrevista
disse: “Eu fico brisando, imaginando qual sentido
seria menos pior perder. Sentido não – qual das
partes para o mundo, audição, visão e voz. E não
bate um desespero; só é um pouco estranho pensar,
porque eu sou muito verbal, falo muito, mesmo.
Seria bem difícil”. Outra poetizou: “Seria terrível,
viu? Acho que é igual passarinho que tem asa, mas
não pode voar – fica no chão olhando os outros. É
claro, tudo o que acontece na vida tem que adequar
e tem que continuar vivendo, mas pessoa perder a
voz é terrível. Deus que me perdoe”.
Daí, chegamos a Deus e ao sagrado. Nas entrevistas, encontramos o relato fascinante de um
episódio fortuito – uma perda temporária da voz,
interpretada pelo narrador como uma espécie de
castigo divino. A dimensão religiosa intensifica o
poder da voz e isso seria tema de todo um estudo à
parte. Este homem, um motorista, contou:
Eu estava num determinado [culto e] nesse culto
tinha muita gente, muita gente mesmo. (...) Deus
tocou no meu coração que era pra mim ir dar um
abraço no sonoplasta, só que eu estava do lado de
cá e o sonoplasta estava do outro lado, então (...)
[para chegar até ele] ia incomodar. E Deus falava
e eu fiquei teimando, teimando com Deus. Teimei,
teimei que eu não ia. Dentro de mim, a palavra,
dentro de mim: “Como que eu vou? Tantos pastores
[no caminho]. Eu, no meu pensamento, falava: (...)
“Manda um desses pastores ir lá abraçar ele” (...)
Na hora da oração final (...) o pentecoste desceu (...)
e um desses pastores, que eu achava que era pra ele
ir lá, ele veio, ele pegou na minha mão, colocou a
minha mão na garganta dele. Eu não sei o que ele
tinha porque ele não falou e Deus me mostrou o
que ele tinha na garganta. Só que aí, eu não sei,
teve um determinado momento da oração que eu
percebi que minha voz sumiu, entalou, não saía.
Eu tentei falar e a voz não saía, a voz – porque na
verdade foi uma experiência que, acho que, eu não
sei quem mais desta época teve essa experiência. Eu
tive essa experiência. Horrível. A minha voz sumiu,
eu tentava falar mas não, não conseguia, sai nada. Aí
eu falei: “Tá bom, Deus. Então eu vou”. Eu não sei
como que eu consegui passar. Aperto eu passei, né?
Não sei como. Eu passei, fui lá, dei um abraço no
sonoplasta, a gente deu uns pulo lá, deu uns aleluia
lá, a voz saiu. (...) Só dei um abraço, Deus pediu
para eu dar um abraço. Não pediu para falar nada,
só dar um abraço. E nesse abraço a gente sapateou
lá no Espírito, foi muito bom. Então por isso que eu
falo: a voz da gente é tudo. (...) Foi alguns segundos
sem a voz, mas eu fiquei agoniado.
COM U N ICA ÇÕES
“Onde não há pecado nem perdão”: Evocações da voz na memória e na cultura
Pergunto-me quão recorrente seria o entendimento da voz como uma moeda de troca na relação
de mulheres e homens religiosos com Deus; deveríamos investigar. Em última instância, o próprio
uso da voz como ameaça ou castigo é um índice
do lugar central que ela ocupa na vida dos sujeitos
e em suas estruturas de fé; o significado da voz é
extraído justamente do espaço intermediário que
separa desobediência e adesão, fracasso e triunfo
da fé sobre os desejos individuais. Uma mulher
entrevistada, cantora católica, disse:
a voz, pra mim, significa isso: uma dádiva de Deus,
um presente de Deus, e que a gente tem que usar
com sabedoria, não se exaltar, porque quando a
gente se exalta... Um tempo, eu caí nessa besteira
de me exaltar – “Ah, minha voz!”. No meu íntimo.
Não falava pra ninguém. No meu íntimo [pensava]:
“Ah, eu cantei melhor, eu cantei... tudo!”. Mas aí
Deus falou assim: “Eu vou fazer você perder a voz,
vou fazer você perder a voz pra você voltar pro
seu lugar. Sai desse salto, desce daí!”. Então eu fui
obrigada a descer, perdi a voz, né? [Foi quando]
procurei uma fono, fiz exame e constatou dois calos
nas cordas vocais.
Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018
603
COM U N ICA ÇÕES
Ricardo Santhiago
Para outra cantora religiosa, desta vez evangélica, a voz também é uma dádiva, um presente. Não
é uma ameaça – mas ainda assim ela demonstra o
mesmo esforço em se afastar dos maus sentimentos:
Depois que eu me converti, como eu gostava de
cantar, eu fui assim, gostando dos louvores, dos
hinos. E aí eu vi a mulher cantando na igreja e pedi
para Deus que eu queria cantar igual ela – não tendo
inveja da mulher, lógico, né? Mas eu pensei assim:
‘como está dando um alívio no meu coração hoje
com essa música, com essa voz linda, né? Então eu
posso passar isso para as pessoas também por onde
eu vou, porque ela vai para um lado e eu vou para
o outro. Quando foi um tempo eu comecei a cantar
e percebi que Deus me atendeu no que eu pedi.
Um pastor oferece uma visão muito mais
concreta: para ele, a voz não seria uma dádiva, mas
uma inevitabilidade. Ele a entende como meio de
realizar e dignificar a missão que lhe foi incumbida:
“O tempo todo na minha profissão, a voz é usada.
Não existe um... um momento em que eu possa,
dentro da minha atividade, dizer ‘eu não vou utilizar a minha voz’. Não existe isso, não faz parte do
meu universo. É diferente de outras profissões, na
minha eu não tenho essa opção”.
Gravando e amplificando histórias como estas,
os alunos não estão apenas experimentando um método de pesquisa: por mais que tenham dificuldade
de mobilizar debates complexos e até mesmo de estabelecer um diálogo prolongado, empático e denso
com seus entrevistados, eles estão participando do
empreendimento coletivo da ciência, expandindo
suas próprias experiências e interiorizando a ideia
de que a voz só se realiza plenamente quando se
encontra com a escuta.
A expectativa é a de que eles se sensibilizem
para o fato de que as vozes que estão ouvindo
desvelam modos de vida, não só pelo conteúdo de
sua produção vocal: as vozes são, em si mesmas,
produtos dos modos e das possibilidades de vida
dos sujeitos. Poderíamos dizer que elas não são
transparentes nem opacas, mas translúcidas. A
musculatura que conta é a musculatura que é contada; os processos neurobiológicos da memória e da
linguagem que são assunto de uma narração são os
mesmos processos que habilitam essa narração. Em
sua fisicalidade, a voz não é apenas instrumento,
mas agente. Como escreveu Zumthor, “não somen-
604
te o conhecimento se faz pelo corpo mas ele é, em
seu princípio, conhecimento do corpo”43.
Para nos lembrarmos disso, precisamos estar
atentos à dimensão não apenas conteudística dos
relatos que ouvimos; precisamos estar imbuídos da
disposição de conhecer que a perspectiva histórico-sociológica nos oferece, mas também daquilo
que os estudos da performance, os estudos da voz,
os estudos fonoaudiológicos nos ensinam – enfim,
de um conhecimento verdadeiramente multifocal.
Ou será que o que Zumthor nos ensina está mesmo
tão distante da teoria da fala de Karl Bühler, que
já nos anos 1930 defendia qualquer emissão humana apresenta três funções: da representação, da
expressão, e do apelo?44 Espero que, ao fim desses
projetos, os alunos saibam não apenas conduzir
uma entrevista que usa a voz para contar a vida, mas
os sensibilizem para como esse meio de expressão
resulta daquilo que ele mesmo comunica.
Considerações finais
Finalizo este texto reaproximando a história
oral e música. Descobri o método da história oral
entrevistando artistas, sobretudo cantores e cantoras – sujeitos que usaram suas vozes para conversar comigo e que têm as vozes como principal
instrumento de trabalho. Nas histórias que cantam
e nas histórias que contam, eles e elas evidenciam
que a voz é sua paixão, seu destino, seu ganha-pão.
Daí que sejam realmente lancinantes as histórias
sobre a ausência da voz, que tende inclusive a ser
um tabu. Veja-se o caso de Marina Lima, de seu
sofrimento e reabilitação públicos.45 Se nós somos
nossas histórias – como Paul John Eakin46 propõe
– nós não somos também nossas vozes? Existimos,
se não as possuímos?
Com uma outra cantora, tive um intenso trabalho de colaboração: Alaíde Costa, precursora da
bossa nova e uma das principais intérpretes da música popular brasileira, hoje com mais de 80 anos e
em plena atividade criativa. Sua história de vida foi
a base para meu livro Solistas dissonantes: História
(oral) de cantoras negras47, que abriu caminho
para que eu escrevesse sua biografia – na verdade,
uma autobiografia narrada – chamada Faria tudo
de novo48. Nesse processo, Alaíde e eu tivemos
múltiplos encontros. Neles, eu lhe perguntava,
recorrentemente, sobre um assunto que eu sabia
ser um tabu: sua relação com a família. Alaíde encontrou no seio familiar a dor que lhe perseguiria
Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018
por toda a vida: a de ser cobrada por perseguir uma
linha de trabalho na qual ela, supostamente, por sua
condição racial, não se encaixava. Jamais teve o
apoio dos familiares em sua escolha – a não ser por
um irmão mais velho. Eu queria discutir tudo isso,
pois essa experiência essa central para a discussão
maior que estávamos elaborando: a dificuldade de
uma cantora negra afirmar-se artística e profissionalmente dentro de um universo musical tido como
sofisticado. Alaíde não queria, e tinha uma forma
de fazer isso: sempre que chegávamos ao tema,
sua voz falhava. Ela tossia. Nenhum som saía de
sua boca. Era como se ela gentilmente dissesse:
“Mesmo que eu quisesse contar, eu não posso”.
Acho que isso ajuda a responder minha própria pergunta: se nós somos nossas histórias, não
somos também nossas vozes? No caso de Alaíde,
como sua voz falhava, sua dolorida história pessoal
cessava de existir. Não era passível de escuta, de
transmissão, de registro. Não falar, neste caso, era a
maneira mais eficaz de controlar a própria história.
Paul Zumthor escreveu: “dizendo qualquer coisa,
a voz se diz”49. E, acrescentaríamos: mesmo sem
dizer nada ela se diz. Ela é o veículo e o território
da dúvida e da certeza, do risco e da salvação, do
veneno e do remédio – aquele lugar, mais uma
vez cito Caetano Veloso, “onde não há pecado
nem perdão”.
8. Assmann A. Espaços da recordação: Formas e transformações
da memória cultural. Campinas, SP: Editora da Unicamp; 2011.
9. Assmann J. Memória comunicativa e memória cultural.
História Oral, v. 19, n. 1, p. 115-27, 2016.
10. Sundberg J. Ciência da voz: Fatos sobre a voz na fala e no
canto. Trad.: G L Salomão. São Paulo: Edusp; 2015.
11. Veloso C. Minha voz, minha vida. In: Veloso C. Livro; 1997.
12. Veloso C. Alguém cantando. In: Veloso C. Bicho; 1977.
13. Tatit L. Todos entoam: Ensaios, conversas e canções. São
Paulo: Publifolha; 2007.
14. Tatit L. Os seios da voz. In: Tatit L. Felicidade; 2001.
COM U N ICA ÇÕES
“Onde não há pecado nem perdão”: Evocações da voz na memória e na cultura
15. Tatit L. Delírio, meu! In: Grupo Rumo. Caprichoso; 1984.
16. Tatit L, Tagliaferri, F. Show. In: Ozzetti N. Show; 2001.
17. Veloso C. Drama. In: Bethânia M. Drama – Anjo
exterminado; 1972.
18. Saga T. Guarde minha voz. In: Sá S. Vale Tudo; 1983.
19. Nascimento M, Brandt F. Canções e momentos. In:
Nascimento M. Yauaretê; 1987.
20. Assumpção I, Ruiz A. Devia ser proibido. In: Assumpção
I. Pretrobrás III; 2010.
22. Camalle E. Eco. In: Camalle E. Cria; 2004.
23. Carlos R. Força estranha. In: Carlos R. Roberto Carlos; 1978.
24. Costa S, Silva A. Voz de mulher. In: Costa A. Tudo que o
tempo me deixou; 2005.
25. Ceumar. Mãe. In: Ceumar. Meu nome; 2009.
26. Toquinho, Moraes V. O filho que eu quero ter. In: Toquinho,
Moraes V. Vinícius e Toquinho; 1975.
27. Abrams L. Oral History Theory. New York: Routledge; 2010.
28. Carrara P. Corpo Voz Escuta: Reflexões sobre a prática do
ator. São Bernardo do Campo, SP: Lamparina Luminosa; 2016.
29. Cavarero A. Vozes plurais: Filosofia da expressão vocal.
Belo Horizonte: Editora UFMG; 2011.
Referências
1. Souza P, Fabron, EMG, Viola I, Spink MJ, Ferreira, LP.
Questões sobre expressividade oral no cinema. Distúrbios da
Comunicaçào. 2015; 27(1) ; 115-8.
2. Meireles AR, Cavalcante FG. Qualidade de voz no estilo de
canto heavy metal. Per Musi. 2015; 32: 197-218.
3. Santos SMM, Medeiros JSA, Gama ACC, Teixeira LC,
Medeiros AM. Impacto da voz na comunicação social e emoção
de professoras antes e após fonoterapia. Rev. CEFAC. 2016;
18(2): 470-80.
4. Pompeu ATS, Barreiro SM. Rua, que a nossa voz seja ouvida:
uma contribuição fonoaudiológica sobre a voz no Rap nacional.
Música Popular em Revista. 2016; 4(2): 105-16.
5. Dias CA. Voz cantada: perfil dos cantores e a inter-relação
com a fonoaudiologia. Tese (Doutorado em Distúrbios da
Comunicação) - Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba; 2016.
6. Cuervo L, Maffioletti LA. Sindô Lê Lê, Sindô Lá Lá, não
podemos viver sem cantar! Identidade, educação e expressão
através da voz. Música na Educação Básica. 2016; 7/8: 22-35.
7. Lopes MCS. A voz e o sagrado: cantos sobre poéticas da voz
em contextos diversos. Dissertação (Mestrado em Linguística,
Letras e Artes) - Universidade Federal de Uberlândia,
Uberlândia; 2016.
30. Zumthor P. A permanência da voz. Trad.: M I Rolim. O
Correio da Unesco. 1985; 13(10).
31. Pires Ferreira J. Os desafios da voz viva. In: Von Simson
ORM, editor. Os desafios contemporâneos da história oral.
Campinas, SP: Centro de Memória Unicamp; 1997. p. 59-68.
32. Charlton TL, Myers LM, Sharpless R. History of Oral
History: Foundations and Methodology. Lanham, MD: Altamira
Press; 2017.
33. Finnegan R. Communicating: The Multiple Modes of
Human Communicating. 2nd ed. New York: Routledge, 2013.
34. Tedlock D. The Spoken Word and the Work of Interpretation.
Philadelphia: University of Pennsylvania Press; 1983.
35. Bauman R. Verbal Art as Performance. American
Anthropologist. 1975; 77(2): 290-311.
36. Barthes R. O grão da voz: Entrevistas, 1961-1980. Trad.:
M Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes; 2004.
37. Thompson P, Bornat J. The Voice of the Past: Oral History.
4th ed. New York: Oxford University Press; 2017.
38. Santhiago R, Magalhães VB. História oral na sala de aula.
Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2015.
39. Rocha F, Gordo JL. Até que a voz me doa. In: Fé M. 50 anos
de carreira ao vivo no Coliseu; 2009.
Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018
605
COM U N ICA ÇÕES
Ricardo Santhiago
606
40. Alberti V. Ouvir contar: Textos em história oral. Rio de
Janeiro: Editora FGV; 2004.
41. Bosi E. O tempo vivo da memória: Ensaios de Psicologia
Social. Cotia: Ateliê; 2003.
42. Valente HAD. As cores da voz-música. In: Santhiago R.
Solistas dissonantes: História (oral) de cantoras negras. São
Paulo: Letra e Voz; 2009. p. 275-6.
43. Zumthor P. Performance, recepção, leitura. São Paulo:
Cosac Naify; 2007.
44. Behlau M, Ziemer R. Psicodinâmica vocal. In: Ferreira LP,
editor. Trabalhando a voz: Vários enfoques em Fonoaudiologia,
4 ed. São Paulo: Summus; 1988. p. 71-88.
45. Sartori C. Segura de si e calejada das críticas, Marina Lima
abraça uma nova fase e as mudanças no dom que por pouco
não perdeu: a voz. Rolling Stone; 2016;3.
46. Eakin PJ. Living Autobiographically: How We Create
Identity in Narrative. New York: Cornell University Press; 2008.
47. Santhiago R. Solistas dissonantes: História (oral) de cantoras
negras. São Paulo: Letra e Voz; 2009.
48. Santhiago R. Alaíde Costa: Faria tudo de novo. São Paulo:
Imprensa Oficial; 2013.
49. Zumthor P. Escritura e nomadismo: Entrevistas e ensaios.
São Paulo: Ateliê Editorial; 2001.
Distúrb Comun, São Paulo, 30(3): 595-606, etembro, 2018