Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

Academia.eduAcademia.edu
DO CORTIÇO AO ESPAÇO FRATERNO COMPARTILHADO: CONTRIBUIÇÕES DA METATEORIA DO DIREITO FRATERNO AO FENÔMENO DA FAVELIZAÇÃO NA MODERNIDADE PERIFÉRICA FROM CORTIÇO TO A SHARED FRATERNAL SPACE: CONTRIBUTIONS FROM THE METATHEORY OF FRATERNAL LAW TO THE PHENOMENON OF FAVELIZATION IN PERIPHERAL MODERNITY Gabrielle Scola Dutra1 Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI Santo Ângelo/Rio Grande do Sul gabriellescoladutra@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-2688-8429 Charlise Paula Colet Gimenez2 Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI Santo Ângelo/Rio Grande do Sul charliseg@san.uri.br http://orcid.org/0000-0001-8165-2542 Resumo: A produção do espaço urbano brasileiro constitui-se em um desenvolvimento socioespacial desigual, marcado pelo processo de remodelação do centro a partir da exploração e da exclusão de uma camada da população deslocada para as periferias da cidade, o que contribuiu para o processo de favelização na modernidade periférica decorrente de posições econômicas, culturais, sociais e raciais. A partir desse cenário, a pesquisa ora apresentada tem o objetivo de abordar as contribuições da Metateoria do Direito Fraterno no espaço compartilhado diante da generalização do fenômeno da favelização na modernidade periférica, com o seguinte problema: quais são as contribuições da Metateoria do Direito Fraterno no espaço comum compartilhado diante da generalização do fenômeno da favelização? Para responder à pergunta, adota-se o método de abordagem dedutivo, instruído por um 1 Mestre em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, campus Santo Ângelo. Especialista em Filosofia na Contemporaneidade pela URI. Pós-graduanda em Direito Penal e Processual prático contemporâneo pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Membro do grupo de pesquisa: “Tutela dos Direitos e sua efetividade”, cadastrado no CNPQ e vinculado ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito, Mestrado e Doutorado da URI. Advogada. Membro da Comissão da Mulher (Subseção OAB Santo Ângelo). Atua no estudo do Direito Penal, Violência, Conflito e Gênero. 2 Pós-Doutora em Direito pela UNIRITTER sob a orientação da professora Doutora Sandra Regina Martini. Doutora em Direito e Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito stricto sensu - Mestrado e Doutorado, e Graduação em Direito, todos da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e Missões - URI, campus Santo Ângelo. Coordenadora do Curso de Graduação em Direito da URI. Líder do Grupo de Pesquisa "Conflito, Cidadania e Direitos Humanos", registrado no CNPQ. Advogada. Atua no estudo do Crime, Violência, Conflito e Formas de Tratamento de Conflitos conciliação, mediação, arbitragem e justiça restaurativa. procedimento bibliográfico. Tem-se, pelo estudo realizado, que o espaço comum fraterno contribui para a criação de novos espaços políticos, com a ampliação do espaço público, com novas identidades e novos sujeitos coletivos capazes de aprofundar a democracia no próprio processo de luta pelo aprofundamento da democracia. Trata-se de um lugar comum para todos na sociedade, um lugar verdadeiramente de todos e compartilhado por todos. Palavras-chave: Cidadania. Direito Fraterno. Espaço Urbano. Favela. Modernidade Periférica. Abstract: The production of the Brazilian urban space constitutes an unequal sociospatial development, which is marked by the process of remodeling the center from the exploration and exclusion of a part of the population and its displacement to the peripheries of the city due to its economic, cultural, social and racial positions. Based on this scenario, this paper aims to present the contributions of the Metatheory of Fraternal Law in the shared space due to the generalization of the favelization phenomenon in peripheral modernity. As research problem, it questions: what are the contributions of the Metatheory of Fraternal Law in the shared space due to the generalization of the favelization phenomenon in peripheral modernity? To answer this question, it is adopted the deductive method of approach and the bibliographic method of procedure. The study shows that the fraternal common space contributes to the creation of new political spaces with the expansion of the public space with new identities and new subjects capable of deepening democracy in its own process to deepening democracy. It is a common place for everyone in society, a truly and shared place by everyone. Keywords: Citizenship. Favela. Fraternal Law. Peripheral Modernity. Urban Space. SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. O FENÔMENO DA FAVELIZAÇÃO COMO ARRANJO URBANO SOCIOESTRUTURAL DA SOCIEDADE PERIFÉRICA 2. O ESPAÇO PERIFÉRICO URBANO COMO LUGAR COMUM COMPARTILHADO À LUZ DA METATORIA DO DIREITO FRATERNO 3. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS. INTRODUÇÃO Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo suas portas e janelas de forma alinhada. Em volta das bicas, ouvia-se um zunzum crescente de uma aglomeração tumultuosa de homens e mulheres, os quais lavavam o rosto debaixo de um fio de água que escorria e inundava o chão. As mulheres prendiam as suas saias nas coxas para não molhar e os homens se esfregavam debaixo da água. As portas das latrinas não descansavam com a entrada e saída de pessoas, apenas não usadas pelas crianças que escolhiam o céu aberto para as suas necessidades. O trecho acima foi extraído e adaptado da obra O Cortiço3, de Aluísio de Azevedo, um romance de cunho social que retrata a miséria e o proletariado urbano, denunciando o preconceito racial e a exploração do ser humano pela sua própria espécie. De cunho naturalista, a obra foi lançada no período em que o Brasil passava por reconfigurações de ordem social, com a formação de novos mercados, o trabalho assalariado e a definição hierárquica de novas categorias sociais. Revela-se, ao apresentar o Cortiço, milhares de pessoas que viviam em um espaço de construções precárias, formadas por vários quartos pequenos e sufocantes, sem salubridade e mínimo existencial. Localizado ao lado do sobrado da aristocracia da época, o cortiço de Aluísio de Azevedo abria os olhos para a sociedade e tinha um coração pulsante. De 1890 para 2020, o cortiço e as milhares de vidas permanecem à margem, vítimas da exploração da própria espécie e excluídos por preconceitos raciais, étnicos, culturais, econômicos e sociais. Das janelas e portas que se abrem alinhadas, o coração segue pulsante de vida e desejos por visibilidade e humanidade. Assim, a generalização do fenômeno da favelização na modernidade periférica brasileira caracteriza-se pela existência de espécies de assentamentos humanos e/ou emaranhados de comunidades precárias em volta de grandes centros urbanos como ilustrado em O Cortiço. Nessa conjuntura, minorias vulneráveis habitam espacialmente em emaranhados de comunidades, as quais não detêm uma estrutura capaz de proporcionar um empoderamento social aos seus habitantes e se perfectibiliza como um local onde a caracterização territorial do entorno habitacional é a degradação por práticas desumanizadoras. Nesse contexto, percebe-se que as favelas não dispõem de uma estrutura capaz de efetivar os direitos fundamentais e nem de contemplar a realização plena do direito à cidadania aos seus habitantes. No entanto, deveria existir um lugar para todos na sociedade, um espaço de encontros, que seja compartilhado e adquira uma potencialidade fraterna capaz de albergar os desejos de comunidade, cujas diferenças aproximam e transformam, são reconhecidas e permitem sejam desconstruídos os estereótipos e estigmas presentes na dinamicidade das relações advindas do contexto socioestrutural das favelas na modernidade periférica. Nesse sentido, busca-se um movimento transicional da utopia 3 A obra O Cortiço de Aluízio de Azevedo, datada de 1890, traz a história de João Romão, proprietário do cortiço, da taverna e da pedreira, cujo objetivo é a exploração, enriquecimento e ascensão social. Trata-se de um romance naturalista que retrata o comportamento dos personagens com base na influência do meio, da raça e do momento histórico. à realidade, no qual seres humanos se olhem e (re)construam a humanidade esquecida pela tragédia da degradação humana. Nesse sentido, a presente pesquisa tem o objetivo de abordar as contribuições da Metateoria do Direito Fraterno no espaço compartilhado diante da generalização do fenômeno da favelização na modernidade periférica. Por isso, questiona-se: quais são as contribuições da Metateoria do Direito Fraterno no espaço comum compartilhado diante da generalização do fenômeno da favelização? Para isso, adota-se o método de abordagem dedutivo, instruído por um procedimento bibliográfico. À vista disso, em um primeiro momento, estudar-se-á a origem do processo de favelização no Brasil para, na sequência, compreender-se a favela como arranjo urbano socioestrutural. Ainda, em consonância com a dinamicidade das relações sociais na sociedade periférica brasileira, apresentar-se-á as contribuições da Metateoria do Direito Fraterno como pressuposto de análise das relações sociais e de prática heurística de instigação a constituição de espaços comuns compartilhados. 1. O FENÔMENO DA FAVELIZAÇÃO COMO ARRANJO URBANO SOCIOESTRUTURAL DA SOCIEDADE PERIFÉRICA Preliminarmente, cabe destacar que de acordo com as especificidades socioespaciais existentes na sociedade mundial, observa-se que as cidades comportam aproximadamente dois terços do crescimento populacional do mundo a contar desde o ano de 1970. Em razão disso, estima-se que de acordo com o crescimento populacional desordenado, as cidades poderão ser “responsáveis por quase todo o crescimento populacional do mundo, cujo pico, de cerca de 10 bilhões de habitantes, espera-se que aconteça em 2050” (DAVIS, 2006, p. 14). Nesse sentido, a projeção é de que 95% do crescimento populacional se dê em áreas urbanas, principalmente, nos países periféricos, cuja respectiva população atinja os 4 bilhões de indivíduos já na geração subsequente. Logo, salienta-se que o processo de crescimento da urbanização é caracterizado como sendo uma transformação no horizonte socioestrutural da sociedade mundial, bem como uma intensificação na dinâmica territorial do contexto urbano-rural em todo o mundo (DAVIS, 2006, p. 14). Nas palavras de Luis Kehl, sobre a formação da cartografia das cidades em decorrência das relações sociais interacionais entre os indivíduos atrelada ao processo desenfreado da urbanização: Uma cidade, seja ela moderna ou antiga, é sempre um reflexo das relações humanas e das forças produtivas que se apresentam em dado momento. As cidades atuais são fruto de nossa sociedade altamente industrializada e mercantil, com grande predominância dos automóveis e projetada, ao menos idealmente, para maximizar a eficiência da infraestrutura e a utilização dos insumos necessários ao seu funcionamento (KEHL, 2010, p. 59). Nessa conjuntura, sabe-se que, na atualidade, as cidades contraem um crescimento nunca antes visto no arranjo social civilizacional, no sentido de que “explodem no mundo em desenvolvimento também entretecem novos e extraordinários corredores, redes e hierarquias” (DAVIS, 2006, p. 16). Assim, no âmbito da América, constata-se que "os geógrafos já mencionam um leviatã conhecido como Região Metropolitana Ampliada Rio-São Paulo (RMARSP), que inclui as cidades de tamanho médio no eixo viário de 500 quilômetros entre as duas maiores metrópoles brasileiras” (DAVIS, 2006, p. 16). Entretanto, verifica-se que em decorrência de tal processo patológico4 socioestrutural emerge uma nova configuração urbana caracterizada, principalmente, pelo crescimento da desigualdade e pela operacionalização do código inclusão/exclusão, “[...] tanto dentro de cidades de diferentes tamanhos e especializações econômicas quanto entre elas” (DAVIS, 2006, p. 18). Com efeito, a partir de 1970 o índice populacional começa a se concentrar nas comunidades faveladas dos países periféricos e ultrapassar a urbanização, fato de que promoveu a ascensão do fenômeno da favelização. Nesse escopo, em consonância com o fomento aos processos excludentes, uma parcela significativa da coletividade, ou melhor, minorias vulneráveis passam a habitar em territórios deficitários, ao passo que, permanecem reduzidas a situação de “[...] correspondência entre suas possibilidades existenciais e o instrumental oferecido pelo padrão urbano vigente, tratam de criar sua própria “cidade”, amoldando-a as suas formas de existir e sobreviver” (KEHL, 2010, p. 86). Destarte, a constituição da concepção clássica de favelas remonta a uma estrutura deficitária caracterizada pelo crescimento desordenado de população, habitações precárias e informais, ausência de saneamento básico e, igualmente, insegurança da propriedade habitada. 4 No âmbito da constituição da sociedade periférica, o termo “patológico” está atrelado ao contexto social, no sentido de referir-se à produção de patologias sociais (desigualdade social, pobreza, miséria, exclusão, etc.). A partir da percepção de Mike Davis sobre a ascensão de uma incongruência atrelada ao fenômeno da favelização e ao desenvolvimento das cidades na sociedade mundial: Assim, as cidades do futuro, em vez de feitas de vidro e aço, como fora previsto por gerações anteriores de urbanistas, serão construídas em grande parte de tijolo aparente, palha, plástico reciclado, blocos de cimento e restos de madeira. Em vez das cidades de luz arrojando-se aos céus, boa parte do mundo urbano do século XXI instala-se na miséria, cercada de poluição, excrementos e deterioração (DAVIS, 2006, p. 28/29). Em outras palavras, entende-se que as favelas sejam compostas por “[...] pequenas casas amontoadas por ruas e becos sem nenhuma infraestrutura, numa combinação perversa de condições de insalubridade e vulnerabilidade social” (KEHL, 2010, p. 21), retrato já trazido por Aloísio de Azevedo em O Cortiço. Nesses termos, estima-se que, atualmente, o processo de favelização remete a existência de aproximadamente 200 mil favelas em todo o mundo, as quais são compostas entre algumas centenas a mais de 1 milhão de habitantes em cada favela. Por isso, a existencialidade dos habitantes de tal arranjo territorial, em decorrência das múltiplas incongruências presentes no âmbito socioestrutural das favelas, é reduzida a uma “equação complexa ao tentar otimizar o custo habitacional, a garantia da posse, a qualidade do abrigo, a distância do trabalho e, por vezes, a própria segurança” (DAVIS, 2006, p. 37). À vista disso, tem-se que a constituição das favelas está intimamente atrelada às disputas pelo uso do solo urbano, no sentido de que há também a possibilidade de formação das denominadas megafavelas5, as quais se constituem na medida em que “[...] bairros pobres e comunidades invasoras6 fundem-se em cinturões contínuos de moradias informais e pobreza, em geral na periferia urbana” (DAVIS, 2006, p. 37). Dessa forma, as favelas abrangem especificidades “[...] de organização próprias e de tentativas de se criar uma consciência e uma identidade que se contraponham aos 5 No que se refere a formação das megafavelas, é basilar ressaltar que “as grandes favelas periféricas, principalmente na África, costumam ser colchas de retalhos bem complexas de redes de parentesco, sistemas de posse da terra e relações de locação” (DAVIS, 2006, p. 53). 6 De acordo com a compreensão de Mike Davis sobre a consequência da invasão no contexto do fenômeno da favelização na modernidade periférica, “Invadir, claro, é se apossar da terra sem compra nem título de propriedade. A terra periférica “sem custo” tem sido muito discutida como o segredo mágico do urbanismo do Terceiro Mundo: um imenso subsídio não planejado aos paupérrimos. No entanto, é rara a invasão não ter algum custo prévio. O mais comum é que os invasores sejam coagidos a pagar propinas consideráveis a políticos, bandidos ou policiais para ter acesso aos terrenos, e podem continuar pagando esses “aluguéis” informais em dinheiro e/ou votos durante anos” (DAVIS, 2006, p. 47). modos que a sociedade “exterior” tenta lhes impor” (KEHL, 2010, p. 29). Com efeito, na conjuntura em questão, uma dinâmica conflitiva se instaura através do binômio sujeito/território, no sentido de que o território das favelas se consolida pela “[...] morada onde grupos que se aproximam por valores, práticas, vivências, memórias e posição social, constroem sua identidade como força de realização de suas vidas” (SILVA, 2009, p. 22). Por conseguinte, sobre o contexto histórico do processo de formação das favelas no mundo e suas especificidades, conforme relata Kehl: Slums,7 favelas, barrios, shanty towns, villas-miseria, musseques, ou que nome tenham, existem no mundo inteiro, e cresceram como nunca a partir do século XIX com a expansão do colonialismo europeu e depois norteamericano, e de modo exponencial e descontrolado a partir da segunda metade do século XX, pelas mais diversas razões, mas seguindo sempre o mesmo roteiro de concentração de renda de um lado e abandono e desigualdade social de outro (KEHL, 2010, p. 23). Em síntese, percebe-se que os assentamentos subnormais da sociedade periférica “seja qual for o nome pelo qual são conhecidos: bandas de miséria na Argentina, gececondu na Turquia, bidonvilles na Argélia, favelas no Brasil” (PERLMAN, 2002, p. 39) denotam realidades sociais semelhantes. Por isso, o problema da falta de moradia padrão reflete em uma multiplicidade de déficits estruturais urbanos. Sob esse olhar, observa-se que de acordo com a constituição das favelas nas sociedades periféricas, “mesmo as casas mais baratas custam tão mais caro do que as famílias de renda baixa podem pagar, que os terrenos baldios dentro e fora do perímetro urbano se enchem naturalmente de casebres para milhares de famílias” (PERLMAN, 2002, p. 39). Sobretudo, percebe-se que a formação das favelas se perfectibiliza como o arranjo urbano socioestrutural das sociedades periféricas. Logo, o fenômeno da favelização emerge a partir da formação das favelas, no sentido de que há favelas de diversas características, tais como: algumas caracterizam-se por serem mais esparsas, outras possuem uma estrutura mais traçada com espaços abertos. No entanto, a maioria, de acordo com a evolução do 7 Conforme Mike Davis indaga, “Mas o que é slum, palavra inglesa que significa “favela”? A primeira definição de que se tem conhecimento foi publicada no Vocabulary of the Flash Language [Vocabulário da linguagem vulgar], de 1812, do escritor condenado à prisão James Hardy Vaux, no qual é sinônimo de racket, “estelionato” ou “comércio criminoso”. No entanto, nos anos da cólera das décadas de 1830 e 1840, os pobres já moravam em slums em vez de praticá-los. O cardeal Wiseman, em seus textos sobre reforma urbana, recebe às vezes o crédito por ter transformado slum (“cômodo onde se faziam transações vis”) de gíria das ruas em palavra confortavelmente usada por escritores requintados. Em meados do século XIX, identificavam-se slums na França, na América e na Índia, geralmente reconhecidos como fenômeno internacional” (DAVIS, 2006, p. 32). contexto civilizacional “melhoraram enormemente em termos de materiais de construção e serviços urbanos. O que, afinal, distingue a favela de muitas outras comunidades pobres que lhes são semelhantes é a ocupação ilegal da terra” (PERLMAN, 2002, p. 40). Assim, no que se refere ao Brasil, a acepção de favela denota “um grupo de moradias com alta densidade de ocupação, construídas desordenadamente com materiais inadequados, sem zoneamento, sem serviços públicos e em terrenos usados ilegalmente sem consentimento do proprietário” (PERLMAN, 2002, p. 40). No pensamento de Lourdes Carril, no que concerne à especificidade dos fenômenos urbanos, principalmente, o da favelização atrelado à existência humana: [...] nada mais são do que o imediato dos seres que habitam um espaço da cidade. O cotidiano encontra-se, assim, assentado nas relações próximas aos indivíduos: sentimentos, família, trabalho, sonhos, aspirações e frustrações; enfim, tudo aquilo que marca a existência humana na terra. No entanto, na Modernidade, estes níveis se encontram mediados por outras instâncias distantes e até ausentes, as quais tecem a vida social não mais baseada em relações de proximidade, conhecimento e vizinhança porque introduzem lógicas externas aos grupos sociais (CARRIL, 2006, p. 22). Na América Latina, existem aproximadamente de 20 a 30 mil favelas, “das quais cerca de 763 no Rio, onde se concentra o maior número de favelas do Brasil” (PERLAN, 2002, p. 40). Por conseguinte, diante de todo o contexto socioespacial das favelas, “existe uma comunidade que se caracteriza pelo cuidadoso planejamento no uso de um limitado espaço para fins de moradia, e pelas técnicas criativas de construção em encostas que os urbanistas consideram demasiado íngremes para edificação” (PERLMAN, 2002, p. 27). Por isso, a modernidade periférica brasileira é percebida como um contexto territorial predominantemente urbano, no sentido de que há “uma parcela maior da população vivendo na cidade que no campo – apenas na última década” (PERLMAN, 2002, p. 31). Em virtude disso, é que o Rio de Janeiro, denota entre as cidades brasileiras, o maior crescimento devido ao fenômeno crescente da urbanização, ou melhor, da hiperurbanização.8 8 Nas palavras de Janice Perlman sobre a hiperurbanização, “seja a migração, o crescimento natural ou a supermecanização a causa principal da hiperurbanização, o fato é que o fenômeno constitui um dos principais desafios dos nossos tempos para os planejadores. Macrossoluções são necessárias a longo prazo, é óbvio, mas a curto prazo os próprios atingidos pelo problema improvisam soluções. Em termos de renda, muitas ocupações remuneradas sustentam famílias inteiras, ainda que não sejam reconhecidas formalmente como empregos. Por outro lado, o desemprego, ainda que elevado, em geral não dura muito para os residentes em cidades, sendo em parte compensado com biscates, frequentemente. Uma mesma família é muitas vezes sustentada por vários de seus membros, e uma pessoa muitas vezes tem vários empregos. No que se refere à habitação, favelas e cidades-satélites são, na verdade, soluções autógenas para a severa escassez de moradia e as falhas do mecanismo de Nesse sentido, assevera-se a premissa de que o Brasil “conta com uma das mais altas taxas de crescimento urbano da América Latina” (PERLMAN, 2002, p. 31). De acordo com o contexto histórico da sociedade periférica brasileira, sabe-se que as primeiras favelas do Brasil surgiram no final do século XIX e início do século XX 9, na cidade do Rio de Janeiro. Ainda, conforme os dados do IBGE informam que no ano de 2010, o percentual da população brasileira que habitava nas favelas era de 6%, no sentido de que “na região metropolitana do Rio de Janeiro10, o percentual de pessoas vivendo nesses aglomerados era de 14,4%. Na cidade do Rio de Janeiro 11, o percentual era ainda mais elevado: 22%, ou seja, quase 1,4 milhão de habitantes distribuídos pelas 763 favelas existentes na cidade” (OLIVEIRA, 2012, p. 23). À título histórico, no que concerne à constituição do processo de favelização no Brasil, “o termo favela tem origem na Guerra de Canudos, conflito sociorreligioso ocorrido entre 1896 e 1897, no interior da Bahia, que acumulou como vítimas fatais, segundo estimativas, 20 mil sertanejos e 5 mil membros do exército republicano” (MEIRELLES; ATHAYDE, 2014, p. 40). Logo, no ano de 1897, os soldados que retornavam da Guerra de Canudos ocuparam o Morro da Providência que se localizava próximo ao centro da cidade e restaram em situação de marginalização, bem como esse fato provocou a fomentação do processo de favelização, o qual é compreendido pela formação das então denominadas favelas. Em consonância com o exposto, esse fenômeno acentuou-se, em decorrência do êxodo rural proveniente do mercado” (PERLMAN, 2002, p. 34). 9 Conforme Ana Paula de Moura Varanda “esse período coincide com o momento de decadência do sistema escravista e de declínio da atividade cafeeira no interior do estado, resultando em um enorme fluxo de saída de trabalhadores (nacionais e estrangeiros) dessas áreas produtoras do grão. Em contrapartida, o dinamismo econômico apresentado pela cidade do Rio de Janeiro nesse momento atrai para as suas áreas centrais uma enorme quantidade de mão de obra composta por imigrantes, escravizados libertos e trabalhadores vindos de diferentes regiões do país. Tal dinamismo é decorrente da instalação das primeiras indústrias; do incremento das atividades comerciais e portuárias; e dos investimentos estrangeiros realizados, sobretudo, por intermédio de concessões do Estado no setor de serviços públicos, como os sistemas de transportes, esgotamento sanitário e de abastecimento de gás” (VARANDA, 2018, p. 50). 10 Notadamente, conforme os dados disponibilizados pelo IBGE em 2010, sobre as 10 maiores favelas da cidade do Rio de Janeiro e o número de habitantes vivendo nesses aglomerados subnormais são: Rocinha (69.161 habitantes), Complexo da Maré (64.094 habitantes), Complexo de Rio das Pedras (63.484 habitantes), Complexo do Alemão (60.583 habitantes), Complexo da Fazenda Coqueiro (45.415 habitantes), Complexo da Penha (Vila Cruzeiro) (36.862 habitantes), Complexo do Jacarezinho (34.603 habitantes), Complexo do Acari (21.999 habitantes), Complexo de Vigário/Lucas (20.570 habitantes), Complexo do Bairro da Pedreira (20.515 habitantes) (IBGE, 2011). 11 As favelas da cidade do Rio de Janeiro apresentam especificidades, as quais as diferem dos bolsões de pobreza do resto do Brasil (e do mundo), principalmente, pela existência dos “denominados “complexos de favelas”, que são aglomerados de vários assentamentos subnormais próximos, que acabaram por se conturbar, um fenômeno mais raro no restante do país. Outra característica das favelas cariocas é a sua proximidade de áreas nobres e centrais, o que cria um forte contraste social” (OLERJ, s.a.,s.p.). processo de industrialização e do desenvolvimento demográfico urbano em detrimento do déficit habitacional existente na época e, consequentemente, se constituiu como parte integrante da biografia do território urbano brasileiro (QUEIROZ FILHO, 2011, p. 34). Nesse contexto, a partir da premissa de que a cidade compreende uma semântica que se caracteriza por ser um espaço12 “de representação da criação humana em suas dimensões simbólicas e cultural que pode ser observada em distintos modos de produção” (VARANDA, 2018, p. 33). No período do século XIX, os aglomerados subnormais eram denominados de cortiços, na medida em que estavam atrelados à ideia pejorativa de insalubridade, disseminação de doenças, violência e marginalização. Ademais, no ano de 1880, formou-se o maior cortiço do Brasil, o qual localizava-se na cidade do Rio de Janeiro, conhecido como “Cabeça de Porco”, ao passo que sua representação era definida pela ausência, no sentido de que significava um território deficitário e precário do que se considerava como estrutura urbana adequada da época. Desse modo, estima-se que de 2.000 a 4.000 (duas mil a quatro mil) pessoas tenham habitado o cortiço carioca (ESTADÃO, 2009). Acontece que, no ano de 1893 o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Francisco Pereira Passos iniciou um movimento denominado “bota abaixo”13, como um projeto ardilosamente arquitetado como estratégia de higienização social urbana, o qual acarretou na demolição do cortiço em questão em virtude de interesses urbanísticos de modernização e, principalmente, com o intuito de construir avenidas na cidade. Por conseguinte, não tendo para onde ir, os habitantes do “Cabeça de Porco”, sob autorização do poder público, removeram o material de construção das suas habitações e construíram outras moradias com características semelhantes em outro espaço territorial, tendo em vista que “uma das proprietárias do Cabeça de Porco era 12 Rodrigues Held (2018, p. 125) refere que “o território é político e socialmente construído em relações constantes de apropriação e dominação do espaço e reforço de identidade étnicas. Estas relações compreendem uma multiplicidade de manifestações e poderes, sejam de ordem hegemônica, mas também em lutas de resistência, onde os sujeitos diversos destes cenários disputam a dominação ou lutam contra a subjugação”. 13 Nas palavras de Ana Paula de Moura Varanda “um fator decisivo para o surgimento das primeiras ocupações com infraestrutura precária em morros e locais desvalorizados pelo capital imobiliário referese às estratégias de renovação urbana conduzida pelo prefeito Pereira Passos, com o objetivo de transformar o Rio de Janeiro em símbolo de modernidade nos trópicos. Tais medidas resultaram na eliminação de traços coloniais da paisagem urbana e implicaram na remoção em massa das habitações populares das áreas centrais da cidade, como cortiços e residências consideradas insalubres” (VARANDA, 2018, p. 50). dona de lotes no Morro da Favella, hoje Morro da Providência. Ela negociou os terrenos com os antigos moradores” (ESTADÃO, 2009). Dessa forma, no âmbito do governo federal, para controlar o aumento dos aluguéis a partir de 1911, ocorreu uma ausência de estímulos no segmento do mercado locatício. Sendo assim, sobreveio que a falta de habitações sociais se perpetuou, em virtude “[...] da elevação do custo de vida em decorrência da Primeira Guerra Mundial, e, na década de 1920, em função da retomada das obras públicas pelas administrações Paulo de Frontin (janeiro a julho de 1919) e Carlos Sampaio (1920-1922) ” (GONÇALVES, 2013, p. 67). Por conseguinte, no ano de 1912, a cidade do Rio de Janeiro comportava “11.990 estabelecimentos comerciais e industriais, contra apenas 3.718 nos subúrbios e 2.222 na periferia mais afastada” (GONÇALVES, 2013, p. 68). Sobretudo, tal relação de dependência das zonas centrais, atrelada à vista grossa dos poderes públicos no que concerne à ocupação nos morros, fomentou o fenômeno da favelização no arranjo territorial em questão, especialmente, na primeira metade do século XX (GONÇALVES, 2013, p. 68). Por isso, sob a lógica deficitária das favelas, as quais são compreendidas como chagas urbanas no Rio de Janeiro, de acordo com Rafael Soares Gonçalves: Uma nova reflexão sobre a cidade impôs-se no Brasil ao final da década de 1920. Em vez de se concentrarem em intervenções esporádicas, higienistas e estéticas, o urbanismo foi pouco a pouco implementando uma concepção mais sistêmica da cidade. Essa nova concepção, muito influenciada pela consolidação do mercado imobiliário no Rio de Janeiro, visava a uma divisão espacial que poderia contribuir mais ainda para a acumulação do capital. Nesse contexto, as favelas logicamente não tinham mais direito à cidade. Era, pois, imperioso que fossem encontrados meios de erradica-las definitivamente e de expulsar seus habitantes para os arrabaldes da cidade (GONÇALVES, 2013, p. 95). Ainda, diante de tal conjuntura problemática, as favelas emergiram de forma crescente, principalmente, nos territórios de expansão urbana do Rio de Janeiro, a exemplo de como ocorreu no bairro de Copacabana. Dessa forma, as favelas da cidade do Rio de Janeiro “[...] acompanharam a expansão do tecido urbano e se tornaram definitivamente um elemento importante da paisagem urbana carioca” (GONÇALVES, 2013, p. 68). Nesse contexto, em 1913, a cidade carioca detinha, “apenas nos sete distritos da área central, 2.564 barracos, que abrigavam 13.601 habitantes. Essa expansão era, porém, objeto de séria oposição por parte das elites da cidade” (GONÇALVES, 2013, p. 68). Logo, percebe-se que a partir da última metade do século XIX, as elites cariocas empreenderam um movimento pela proibição das ocupações dos morros14 por assentamentos deficitários. Em decorrência de tais disfuncionalidades socioestruturais no território das favelas da cidade do Rio de Janeiro, os morros cariocas, especificamente o Morro da Favella, hoje Morro da Providência, eram noticiados corriqueiramente nas páginas policiais dos jornais de grande circulação. Nesse contexto, no Rio de Janeiro, a formação “das favelas como epicentros de marginalidade urbana se disseminou velozmente, o que serviu de justificativa para a construção de uma retórica institucional a seu respeito, centrada sobre noções de patologia urbana e de classes perigosas” (GONÇALVES, 2013, p. 69). Ademais, salienta-se que as favelas substituíram os cortiços como problemática no Rio de Janeiro, na medida em que havia uma ausência de políticas públicas que tratassem a questão urbanística relacionada aos aspectos sociais. Nesse particular, Gonçalves refere que uma máxima sempre se perpetuou no que se refere às condições precárias e provisórias das favelas, no sentido da constituição do horizonte de representações sociais: Se a condição precária e provisórias das favelas sempre legitimou sua erradicação pelos poderes públicos, essa foi, em compensação, a razão pela qual uma parte das camadas populares conseguiu ter acesso ao dinamismo das regiões centrais, anulando – pelo menos em um primeiro momento, e de maneira certamente relativa – os efeitos nefastos da especulação imobiliária. A apropriação do espaço definido pelas favelas acabou se tornando progressivamente um desafio social de importância maior no Rio de Janeiro. As favelas se tornaram ao mesmo tempo territórios de integração de grande parte das classes desfavorecidas e, paradoxalmente, de exclusão dessa mesma população. Embora a legislação ainda não tivesse definido de forma precisa um conceito jurídico para as favelas, as representações sociais foram pouco a pouco consolidando sua descrição como territórios fora da lei (GONÇALVES, 2013, p. 81). No entanto, a partir dessa percepção, em meio ao contexto territorial do tecido social urbano periférico brasileiro e em conformidade com o crescente fenômeno da favelização, “as prefeituras tentam regular, imiscuem-se formações anômalas e imprevistas, que se insinuam ou se impõem pouco a pouco na malha, tornando-se finalmente predominantes na paisagem” (KEHL, 2010, p. 12). Tem-se, como se observa, a partir de um arranjo socioestrutural, a explosão das favelas como espaços geográficos patológicos, cuja existência se constituiu em um mal à saúde da cidade e 14 Como lembra Rafael Soares Gonçalves, “o Projeto de Lei nº 121, de 1899, pretendia proibir qualquer nova construção, inclusive a reforma dos prédios situados nos morros de Santo Antônio e do Castelo, com exceção das edificações devidamente legalizadas” (GONÇALVES, 2013, p. 68). do planejamento urbano. Cabe, nessa ótica, o estudo desse complexo subnormal habitacional, já habitado por Bertoleza, Rita Baiana, Jerônimo, Piedade, Pombinha e tantos outros moradores do Cortiço na obra de Aluísio de Azevedo. 2. O ESPAÇO PERIFÉRICO URBANO COMO LUGAR COMUM COMPARTILHADO À LUZ DA METATORIA DO DIREITO FRATERNO A sociedade civil concebida sob a ótica do modelo comunitário compreende o ser humano comprometido com a comunidade por meio do nascimento e do sangue. Sua virtude consiste em considerar uma relação causal privada e fechada de comunidades unidas em decorrência do vínculo social oferecido aos grupos e às pessoas díspares em um mundo anárquico do ponto de vista social e do ponto de vista econômico. Tem-se, desse modo, que aprendizagem, ócio, justiça e oportunidades são a receita para uma sociedade civil democrática, na qual as instituições livres e a sociabilidade podem descansar de forma plácida sobre a cidadania sem sofrer as ações de um governo arrogante. Ademais, considera-se um espaço voluntário e não coercitivo, cujo pluralismo é a condição indispensável da liberdade. Trata-se, portanto, do modelo ideal de sociedade civil: aquela que não é consumidora dos serviços proporcionados pelo governo, mas defensora de seus direitos15 diante das intromissões. São habitantes dela os cidadãos democráticos ativos, responsáveis, membros comprometidos de grupos e comunidades, dispostos a arbitrar as suas diferenças, explorando um terreno comum pela realização de uma tarefa pública e estabelecimento de relações comuns (BARBER, 2000). Logo, constata-se que a evolução do ser humano dotado de humanidade se constitui no interior do organismo social, ou seja, na sociedade. Assim, percebe-se a existência de obstáculos em detrimento da formação de uma ordem social que seja capaz de ser dotada de vínculos de fraternidade e harmonia entre os anseios pessoais dos indivíduos e o padrão social estipulado pela coletividade, pela manutenção e gestão da totalidade social. Diante disso, é cediço que “o desenvolvimento da 15 “O Sistema Interamericano de Direitos Humanos representa um avanço quanto ao reforço do sistema global no reconhecimento, proteção e promoção dos direitos inerentes à dignidade, quanto ao monitoramento do cumprimento dos direitos humanos garantidos pelas convenções interamericanas para além do Pacto de São José da Costa Rica” (RODRIGUES HELD, 2018, p. 142). sociedade de maneira a que não apenas alguns, mas a totalidade de seus membros tivesse a oportunidade de alcançar essa harmonia — é o que criaríamos se nossos desejos tivessem poder suficiente sobre a realidade” (ELIAS, 1994, p. 15). À vista disso, o questionamento está em como alcançar essa sociedade quando o espaço se mostra desigual e marginal, movimentado pela exclusão e segregação de grupos vulneráveis. Assim, observa-se que diante da ordem urbana estabelecida pelos moradores do casarão ao lado do cortiço, criam-se situações conflitivas a partir do binômio cortiço/sobrado, ao passo que, tem-se: de um lado a burguesia representada aqui pelo sobrado nas ações de Miranda e Estela. De outro, o cortiço de João Romão que reúne personagens diversos, cujas histórias se encontram na água compartilhada ao despertar de cada manhã. Desenha-se, assim, a geografia das favelas, o complexo subnormal habitacional, cujas características são: - Insuficiência histórica de investimentos do Estado e do mercado formal, principalmente o imobiliário, financeiro e de serviços; - Forte estigmatizações sócio-espaciais, especialmente inferida por moradores de outras áreas da cidade; Edificações predominantemente caracterizadas pela autoconstrução, que não se orientam pelos parâmetros definidos pelo Estado; - Apropriação social do território com uso predominante para fins de moradia; - Ocupação marcada pela alta densidade de habitações; - Indicadores educacionais, econômicos e ambientais abaixo da média do conjunto da cidade; - Níveis elevados de subemprego e informalidade nas relações de trabalho; - Taxa de densidade demográfica acima da média do conjunto da cidade; - Ocupação de sítios urbanos marcados por um alto grau de vulnerabilidade ambiental; - Alta concentração de negros (pardos e pretos) e descendentes de indígenas, de acordo com a região brasileira; - Grau de soberania por parte do Estado inferior à média do conjunto da cidade; - Alta incidência de situações de violência, sobretudo a letal, acima da média da cidade; - Relações de vizinhança marcadas por intensa sociabilidade, com forte valorização dos espaços comuns como lugar de convivência (SILVA, 2009, p. 23). À vista disso, atualmente, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no que concerne aos fenômenos urbanos, as favelas16 foram nomencladas como aglomerados de domicílios subnormais, ao passo que se caracterizam pela formação de no mínimo 51 moradias, as quais seus habitantes não detém qualquer título de propriedade, ou seja, são distribuídas de maneira desordenada, no sentido de que as favelas ocupam territórios de propriedade pública ou particular alheia. Nessa conjuntura, de acordo com informações disponibilizadas 16 De acordo com as informações obtidas através do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil, os aglomerados subnormais são popularmente conhecidos por favela, comunidade, grotão, vila, mocambo, invasão, etc. No entanto, na presente pesquisa, optou-se pelo emprego do termo favela (IBGE, 2018). pelo IBGE em 2011, constata-se que aproximadamente “59,3% da população residente em aglomerados subnormais (6.780.071 pessoas) estão concentradas nas regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro17, de Belém, de Salvador e de Recife” (IBGE, 2011, s.p.). Com efeito, nas palavras de Carril, percebe-se que o ambiente da favela é terreno fértil para o fomento às patologias sociais na modernidade periférica brasileira: O tamanho dos cômodos, sua localização, o material empregado, a ventilação e a insolação, em geral, não garantem salubridade, nem privacidade. As famílias são obrigadas a compartilhar espaços exíguos com múltiplas funções: o lazer fica restrito à parte externa da casa, caso exista esse espaço, porque ruas, vilazinhas e passagens também são utilizadas. Havendo muita violência, as crianças, com bastante frequência, são mantidas em casa. Quando existem áreas coletivas, que são escassas, há forte competição por elas. Crianças jogam bola concorrendo com carros, motocicletas e pedestres. Roupas secam em varais que atravessam os caminhos, dificultando a passagem de pedestres. Os espaços são exíguos e ficam piores com o adensamento provocado pela formação de novos grupos familiares: os jovens que formam famílias, muitas vezes, são obrigados a continuar morando com os pais, o que aumento o congestionamento das moradias, a tensão familiar e as disputas em famílias propiciam condições também para a violência física (CARRIL, 2006, p. 15). Com efeito, de acordo com a interpretação da realidade social nas favelas brasileiras, pode-se referir que conforme a dinamicidade de constituição das cidades em todo o mundo, percebe-se que o fenômeno da favelização é inerente ao processo de urbanização, no sentido de que o inchaço das cidades de maneira não planejada promove a ascensão do fenômeno em questão e, por consequência, se alastra por toda a sociedade mundial, principalmente atua de forma mais abrupta no arranjo social periférico, de maneira que resulta na ausência de bem-estar coletivo. Assim sendo, formam-se espaços territoriais marcados por tensões nas relações sociais, ao passo 17 A constituição do estado do Rio de Janeiro “assegurou que os serviços públicos devem ser oferecidos permanentemente à população, e isso a despeito de possíveis irregularidades na ocupação do solo. Prova disto é o artigo 238, que assegura expressamente a prestação de serviços públicos, independentemente do reconhecimento oficial das ruas ou da regularização urbanística e fundiária do local. O artigo 239, por outro lado, estabelece que o estado do Rio de Janeiro e seus municípios devem promover e executar programas de construção de habitações populares, assegurando, dessa forma, condições adequadas de moradia e de infraestrutura urbana, especialmente no que se refere a saneamento, escola pública, ambulatórios, postos de saúde e transporte. Além disso, no que diz respeito à questão específica das favelas, a referida Constituição determinava também que o estado do Rio de Janeiro e os municípios devem instaurar diretrizes e normas com relação ao desenvolvimento urbano, assegurando, por exemplo, a urbanização e a regularização fundiária das áreas ocupadas pelas favelas, sem promover qualquer tipo de remoção dos moradores, a não ser que as condições físicas dessas áreas representem riscos de vida para seus habitantes. Em resumo, a nova Constituição do estado assegurou não apenas o direito à moradia, mas também determinou que o estado do Rio de Janeiro e seus municípios devem envidar todos os esforços para promover a urbanização e a regularização fundiária das favelas, estabelecendo também, pela primeira vez, a interdição legal de qualquer política destinada à remoção da população favelada” (GONÇALVES, 2013, p. 298). que, observa-se que perante tal conjuntura, “a metrópole expulsa seus pobres para locais mais distantes da cidade, sem infraestrutura pública, onde o Estado está ausente. A questão central é a presença de um contingente de pobres na cidade vivenciando longos períodos de exclusão” (CARRIL, 2006, p. 33). Logo, a realidade social da sociedade periférica brasileira reflete a premissa de que “os pobres urbanos estão desesperadamente atolados na ecologia da favela” (DAVIS, 2006, p. 125). À vista disso, percebe-se que o contexto territorial das favelas no Rio de Janeiro produz uma relação de sentido entre pobreza, exclusão social e a inefetivação dos direitos fundamentais (ex: a ausência do direito à moradia digna nas favelas do Brasil), motivo pelo qual tal arranjo socioestrutural obstaculiza a realização da cidadania. Nesse sentido, a condição dos habitantes nas favelas18 no Rio de Janeiro “integra uma complexa questão da cidadania porque o ser excluído chegou a ser condição absoluta da consciência” (CARRIL, 2006, p. 16). Nesse cenário, a constituição das favelas demonstraria uma relação adversarial entre a existência de uma cidade legal e uma cidade ilegal19, ao passo que tal situação reflete uma “expressão espacial da riqueza e da pobreza, configurando um peculiar padrão de crescimento da metrópole” (CARRIL, 2006, p. 16). Observa-se, nesse rumo, a ausência da cidadania nas favelas do Brasil, no momento em que se entende a favela “como território de banimento, de isolamento, ali onde a exclusão confunde-se com confinamento e serve para armazenas grandes contingentes populacionais em situação de longa exclusão, porque não têm acesso ao emprego e à renda” (CARRIL, 2006, p. 17). Nesse sentido, constata-se que em conformidade com a interpretação da realidade da existência dos habitantes das favelas revela uma longa busca pela cidadania. No entanto, na sociedade atual, analisa-se que a questão da exclusão socioespacial demarcada pela formação das favelas têm sido substituídas “tanto pela vinda dos mais pobres para as regiões 18 A constituição da figura da favela no imaginário social por muito tempo correspondeu a “ocupação ilegal, situada nas encostas de um morro ou localizada em bairro relativamente central, com moradias precárias, sem infraestrutura e serviços urbanos. O favelado, morador da favela, passou a simbolizar o migrante pobre, semianalfabeto, biscateiro, incapaz de se integrar e se adaptar ao mercado de trabalho da cidade moderna, industrial. A fórmula “favela é igual a pobreza” logo se tornou consensual, sendo compartilhada pelo meio acadêmico e político e sendo difundida pela mídia” (PRETECEILLE; VALLADARES, 2000, p. 461/462). 19 Nas palavras de Lourdes Carril sobre a cidade ilegal sabe-se que “[...] é formada pelos pobres que vão sendo empurrados para as periferias onde não há as condições mínimas de ordenamento territorial urbano, mas propiciam o barateamento dos terrenos urbanos, o que lhes permitiu construir suas moradias, favelas, ocupar os mananciais e os conjuntos populares construídos pelo poder público” (CARRIL, 2006, p. 32). centrais – seja para os cortiços, para baixo das pontes e para a mendicância, seja pela saída dos mais ricos para os condomínios fechados localizados em áreas periféricas” (CARRIL, 2006, p. 87). Entretanto, tal aproximação física está “sendo mediada pela construção dos muros que cercam as propriedades e por sistemas de vigilância que constantemente monitoram a ameaça de assaltos, furtos e mortes” (CARRIL, 2006, p. 87). Ademais, conforme o deslocamento social de indivíduos na modernidade periférica para as favelas, compreende-se que as patologias sociais (violência, pobreza, miséria, exclusão, etc.) corroem a sociedade periférica e, por conseguinte, o cotidiano de carências dos bolsões de pobreza de acordo com o engendramento do código inclusão/exclusão, ao passo que a população favelada permanece eivada por estigmas, tendo em vista que os indivíduos que residem nas favelas restam compreendidos como meros corpos corrompidos, os quais não ostentam o status quo de cidadãos sob uma condição de invisibilidade social. Diante disso, percebe-se que o crescimento populacional urbano é caracterizado por ser um dos mais importantes fenômenos migratórios da história da humanidade. Portanto, perante a realidade da sociedade periférica brasileira, constata-se que os habitantes das favelas se convertem em indivíduos sacrificados habitando zonas de sacrifício humano pois padecem às chagas da amputação de seus direitos fundamentais e, consequentemente, da não-concretização da sua cidadania no interior do sistema da sociedade mundial. Com efeito, sabe-se que no contexto social periférico do Brasil, a existência humana nas favelas é eivada “por enormes níveis de desigualdades sociais – que envolvem componentes étnicos, raciais, sexuais entre outros” (VARANDA, 2018, p. 45). Ademais, como se percebe do arranjo urbano socioestrutural das sociedades periféricas, tem-se, ao mesmo tempo uma trágica dualidade: de um lado, os direitos humanos revelam-se como uma das promessas mais perfectibilizadas do século XXI, do outro lado, há uma gama de violações que têm sido potencializados em tempos recentes em consonância com a crise global do projeto da modernidade. É cediço que o período atual se mostra complexo, ao passo que coloca em risco o arsenal de direitos e garantias conquistados no período histórico anterior pelas grandes revoluções. É assim que se fomentam anseios pela luta de novas gerações de direitos humanos. Entram na “ciranda” em prol das novas conquistas por direitos: os pacifistas, os anti-racistas, aqueles que lutam pela liberdade, pela igualdade e não menos importante pela tão almejada fraternidade (SANTOS, 1989). Nesse caminhar, “são necessários cada vez mais e cada vez mais eficazes direitos humanos. Mas, para isso, é necessária uma nova concepção de direito, uma concepção mais humana de direito. Um direito consciente da sua condição humana” (SANTOS, 1989, p. 9). Destaca-se, nessa ótica, a importância da fraternidade por apostar no desempenho de um papel político na interpretação e na transformação do mundo real, revelando um valor heurístico e uma eficácia prática. Se eliminada no cenário social, a fraternidade pode ser resgatada como meio de possibilitar o reconhecimento do outro e de sua alteridade, valores intrínsecos aos seres humanos e, por conseguinte, comuns aos moradores do cortiço. Sendo assim, fundamenta-se aqui o elo dos moradores do cortiço assim como do espaço urbano favelizado, qual seja, a fraternidade enquanto prática heurística do bom e harmônico convívio entre os seres humanos, na união de ideias e esforços e na boa convivência em comunidade. Por isso, “inicia-se uma primeira ideia do que venha a ser o Direito Fraterno: é um direito que é para todos e que é aceito e/ou proposto por todos” (STURZA; MARTINI, 2016, p. 995). A fraternidade enquanto elemento da Metateoria do Direito Fraterno caracteriza-se pela aposta no desempenho de um papel político na interpretação e na transformação do mundo real, revelando um valor heurístico e uma eficácia prática. A forma de compreensão do que significa ser um cidadão e um político mudou devido à sociedade civil ser fortemente democrática, a qual é marcada por uma forma de associação mais rica e mais forte que as relações contratuais dos mercados (BARBER, 2000). Nesse contexto, se eliminada a fraternidade do cenário social, ela pode ser resgatada como meio de possibilitar o reconhecimento do outro e de sua alteridade. Desse modo, compreende-se que “[...] diante do conteúdo jurídico da fraternidade, os intérpretes do direito devem atualizar o sentido de comunidade política e democrática integrado ao aspecto específico da dignidade humana no viés constitucional” (RESTA; JABORANDY; MARTINI, 2017, p. 99), pois a Metateoria do Direito Fraterno, na perspectiva de pensar o direito em relação à civitas maximas e não em relação às pequenas pátrias dos Estados, coincide com o espaço de reflexão ligado aos Direitos Humanos, consciente de que a humanidade é o lugar comum e somente em seu interior pode ser pensado o reconhecimento e a tutela. Tem-se, aqui, como manifestado anteriormente, o espaço comum compartilhado, o espaço de todos. O espaço fraterno comum tem como aposta a própria humanidade, a existência de um bem comum, fundamentado em uma comunidade formada por pessoas que compartilham sem diferenças, pois as reconhecem (STURZA; MARTINI, 2016). A Metateoria do Direito Fraterno configura-se em um direito jurado em conjunto por irmãos, homens e mulheres, os quais, em união, convencionam as regras basilares de sua convivência (RESTA, 2004). Verifica-se, nessa ótica, que “[...] a fraternidade expande o imaginário da tradição moderna individualista ao direcionar o aspecto intersubjetivo da consciência fraterna na esfera do reconhecimento social” (RESTA; JABORANDY; MARTINI, 2017, p. 100). Para Eligio Resta (2004, p. 31), autor da Metateoria do Direito Fraterno, proposta como simbiose entre certeza e esperança, afirma que “[...] a amizade reaparece nos sistemas sociais como diferença entre interação de identidades individuais, que se escolhem e orientam a comunicação voluntariamente, e as relações burocráticas e heterodirecionadas dos mecanismos dos grandes sistemas funcionais”. A Metateoria aqui estudada traz em si um resgate de princípios iluminista, baseados na fraternidade: “esta nova proposta, na verdade, aponta para uma nova ‘luz’, uma nova possibilidade de integração entre povos e nações, integração esta fundamentada no cosmopolitismo, onde as necessidades vitais são suprimidas pelo pacto jurado conjuntamente” (STURZA; ROCHA, 2016). Como traz o autor, ser amigo da humanidade é participar dos destinos das pessoas movido por uma ideia, ter respeito por qualquer outro e por si mesmo, possuir sensibilidade, dever e responsabilidade, pois a humanidade é termo inclusivo, é o lugar-comum das diferenças, pois contém, ao mesmo tempo, amizade e inimizade. Defende-se, desse modo, a ressignificação do Direito pela fraternidade, pois ela “[...] encaminha-se, portanto, para a realização de um processo mediador construtivo da interação comunicativa, agindo no enfrentamento dos conflitos sociais e culturais” (RESTA; JABORANDY; MARTINI, 2017, p. 101). O olhar de Resta é, antes de tudo, um olhar para os direitos humanos, pois “[...] são aqueles direitos que somente podem ser ameaçados pela própria humanidade, mas que não podem encontrar vigor, também aqui, senão graças à própria humanidade” (RESTA, 2004, p. 13). Não há espaço para etnocentrismo e, por isso, o Direito Fraterno é cosmopolita (pois reporta ao cósmico, ao valor universal dos direitos humanos, e não à lógica mercantilista); não é violento, pois se pauta na mediação (ideia de jurisdição mínima); é inclusivo, visto que escolhe os direitos fundamentais e define o acesso universalmente compartilhado, onde todos podem gozar, e não somente uma minoria (RESTA, 2004). A proposta de analisar as relações sociais decorrentes do processo de favelização da modernidade periférica pela Metateoria do Direito Fraterno é apostar na ética da outridade, na humanidade e na fraternidade para reconhecimento do amigo da humanidade, o qual “[...] endereça sua amizade a uma ideia, um projeto, no qual conta o respeito por qualquer outro, e, assim, por si mesmo.” (RESTA, 2004, p. 40). A amizade pela humanidade, alicerçada na superação das ambivalências emotivas e na escolha do universalismo para a sobrevivência do todo, é o elo de Jerônimo, Rita Baiana, Piedade, Pombinha, Joãos, Marias e tantos outros moradores do cortiço e das favelas da modernidade periférica. Em outras palavras, o amigo da humanidade é aquele que compartilha o sentido da humanidade como caráter comum aos integrantes da totalidade social, sentindo-se parte dela, assumindo inteiramente o seu problema, não o seu descarte ou, ainda, sem colocá-lo à margem. Em suma, o amigo da humanidade se constitui por ser aquele que constrói um lugar comum, um espaço fraterno e compartilhado, ou seja, possibilita a ascensão de espaços pautados na não-violência, sobretudo, lugares de todos. 3. CONCLUSÃO O processo de favelização no Brasil revela a exclusão de áreas de habitação que não se enquadram no modelo urbanístico e no planejamento de avanço das cidades, rechaçando dos centros os espaços decorrentes do modelo informal de produção, reservado àquele grupo de pessoas com perfil de identidade econômica, social, cultural e racial semelhante. Tem-se, desse modo, a justificativa da moradia de Jerônimo, Rita Baiana, Pombinha e seus vizinhos e, do outro lado do muro, nos grandes casarões, Miranda e as famílias da aristocracia burguesa. No entanto, essa territorialidade, para o amigo da humanidade, não o impede de adquirir um caráter de ser humano. Observam-se as favelas como reflexo de uma política de marginalização de seus moradores e, ao passo que as raízes habitacionais se encontram em sua essência, relacionadas aos processos de exclusão e de pertencimento a determinados grupos do tecido social, os quais se identificam pelo pacto entre iguais e compartilhamento de valores. Importante, nesse rumo, compreender os processos de favelização da modernidade periférica pela Metateoria do Direito Fraterno enquanto uma análise transdisciplinar dos fenômenos sociais, o que significa transgredir e integrar. Ou seja, analisar todo o contexto sem deixar de contemplar e reconhecer as diferenças com o resgate da fraternidade enquanto o bom convívio com os outros, a união de ideias e de ações ao viver em comunidade. Trata-se de compreender um direito desvinculado da obsessão da identidade e dos espaços territoriais que determinam quem é e quem não é cidadão. Não se fundamenta na inclusão e na exclusão, mas na comunidade, na qual as pessoas compartilham sem diferenças porque as diferenças são respeitadas. Tem-se aqui a grande diferença entre ser humano e ter humanidade. Partilhar a humanidade é respeitar o outro, o que requer responsabilidade e comprometimento. A vivência em espaço compartilhado, comum e de todos pressupõe ter humanidade e a Metateoria do Direito Fraterno permite compreender o reconhecimento do diferente simplesmente por ser humano, independentemente de pertencer a um grupo, a um território ou a uma classificação. Ser humano e, por conseguinte, ter humanidade, não está adstrito à moradia no cortiço ou, no caso da burguesia, no casarão. Está, por outro lado, vinculado a ser fraterno, a um espaço de todos, comum e compartilhado, do qual fazem parte não somente Pombinha e Jerônimo do cortiço, incluem-se, também, Miranda e João Romão. Incluem-se todos os seres humanos. REFERÊNCIAS AZEVEDO, Aloísio de. O Cortiço. 38 ed. São Paulo: editora Ática, 2011. BARBER, Benjamin R. Un lugar para todos. Cómo fortalecer la democracia y la sociedade civil. Barcelona: Paidos, 2000. CARRIL, Lourdes. Quilombo, favela e periferia: A longa busca da cidadania. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2006. DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006. ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1994. ESTADÃO. Do insalubre Cabeça de Porco nasceu a Favela. 2009. Disponível em: < https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,do-insalubre-cabeca-de-porco-nasceua-favela,379773>. Acesso em: 02 jun. 2020. GONÇALVES, Rafael Soares. Favelas do Rio de Janeiro: história e direito. Rio de Janeiro: Pallas: Ed. PUC-Rio, 2013. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). [Retratos] Favelas resistem e propõem desafios para a urbanização. 2018. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/ noticias/20080-retratos-favelas-resistem-e-propoem-desafios-para-urbanizacao>. Acesso em: 02 jun. 2020. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo 2010 - Aglomerados subnormais Informações territoriais. 2011. Disponível em: <https://ww2.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/00000015164811 202013480105748802.pdf>. Acesso em: 23 mai. 2020. KEHL, Luis. Breve história das favelas. São Paulo: Claridade, 2010. OLIVEIRA, Fabiana Luci de. UPPs, Direitos e Justiça: Um estudo de caso das favelas do Vidigal e do Cantagalo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. MEIRELLES, Renato. ATHAYDE, Celso. Um país chamado favela: a maior pesquisa já feita sobre a favela brasileira. São Paulo: Editora Gente, 2014. OBSERVATÓRIO LEGISLATIVO DA INTERVENÇÃO FEDERAL NA SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO (OLERJ). Favelas Cariocas. Disponível em: < http://olerj.camara.leg.br/retratos-da-intervencao/favelas-cariocas>. Acesso em: 17 mai. 2020. PERLMAN, Janice E. O mito da marginalidade: Favelas e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. PRETECEILLE, Edmund. VALLADARES, Licia. A desigualdade entre os pobres: favela, favelas. In: HENRIQUES, Ricardo (Ed.). Desigualdade e pobreza no Brasil. Brasília: Ipea, 2000. QUEIROZ FILHO, Alfredo Pereira de. Sobre as origens da Favela. Mercator Revista de Geografia da UFC, vol. 10, núm. 23, septiembre-diciembre, 2011. Disponível em:< https://www.redalyc.org/pdf/2736/273621468004.pdf>. Acesso em: 02 jun. 2020. P. 33-48. RESTA, Eligio. Direito Fraterno. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004. RESTA, Eligio; JABORANDY, Clara Cardoso Machado; MARTINI, Sandra Regina. Direito e Fraternidade: a dignidade humana como fundamento. In: Revista do Direito. Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 53, p. 92-103, set./dez. 2017. RODRIGUES HELD, T. M. O DIREITO HUMANO AO TERRITÓRIO E IDENTIDADE QUILOMBOLA NO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS. Libertas: Revista de Pesquisa em Direito, v. 3, n. 2, p. 122-147, 31 jul. 2018. SANTOS, Boaventura de Sousa. Os Direitos Humanos na Pós-Modernidade. Junho de 1989. Disponível em: https://eg.uc.pt/bitstream/10316/10919/1/Os%20direitos%20humanos%20na%20p% C3%B3s-modernidade.pdf Acesso em: 05 Jun. 2020. SILVA, Jailson de Souza e (Org.). O que é favela, afinal?. Rio de Janeiro: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro, 2009. Disponível em: < http://observatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/09/o-que-%C3%A9favela-afinal.pdf>. Acesso em: 02 nov. 2019. STURZA, Janaina Machado; ROCHA, Claudine Rodembusch. Direito e Fraternidade: paradigmas para a construção de uma nova sociedade. Disponível em: <http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=601c6bc71c748001>. Acesso em: 23 Mar. 2017. STURZA, Janaina Machado; MARTINI, Sandra Regina. As Dimensões da Sociedade através da Metateoria do Direito Fraterno: um espaço para a análise do direito à saúde. Revista de Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídica. v. 2. n. 2. Curitiba, Jul/Dez. 2016. pp. 990 – 1008. VARANDA, Ana Paula de Moura. Gênero e práticas econômicas comunitárias na produção do espaço das favelas no Rio de Janeiro. 1ª ed. Curitiba: Appris editora, 2018.