DO CORTIÇO AO ESPAÇO FRATERNO COMPARTILHADO: CONTRIBUIÇÕES
DA METATEORIA DO DIREITO FRATERNO AO FENÔMENO DA FAVELIZAÇÃO
NA MODERNIDADE PERIFÉRICA
FROM CORTIÇO TO A SHARED FRATERNAL SPACE: CONTRIBUTIONS FROM
THE METATHEORY OF FRATERNAL LAW TO THE PHENOMENON OF
FAVELIZATION IN PERIPHERAL MODERNITY
Gabrielle Scola Dutra1
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI
Santo Ângelo/Rio Grande do Sul
gabriellescoladutra@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-2688-8429
Charlise Paula Colet Gimenez2
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI
Santo Ângelo/Rio Grande do Sul
charliseg@san.uri.br
http://orcid.org/0000-0001-8165-2542
Resumo: A produção do espaço urbano brasileiro constitui-se em um
desenvolvimento socioespacial desigual, marcado pelo processo de remodelação do
centro a partir da exploração e da exclusão de uma camada da população deslocada
para as periferias da cidade, o que contribuiu para o processo de favelização na
modernidade periférica decorrente de posições econômicas, culturais, sociais e
raciais. A partir desse cenário, a pesquisa ora apresentada tem o objetivo de abordar
as contribuições da Metateoria do Direito Fraterno no espaço compartilhado diante da
generalização do fenômeno da favelização na modernidade periférica, com o seguinte
problema: quais são as contribuições da Metateoria do Direito Fraterno no espaço
comum compartilhado diante da generalização do fenômeno da favelização? Para
responder à pergunta, adota-se o método de abordagem dedutivo, instruído por um
1 Mestre em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, campus
Santo Ângelo. Especialista em Filosofia na Contemporaneidade pela URI. Pós-graduanda em Direito
Penal e Processual prático contemporâneo pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Membro
do grupo de pesquisa: “Tutela dos Direitos e sua efetividade”, cadastrado no CNPQ e vinculado ao
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito, Mestrado e Doutorado da URI. Advogada.
Membro da Comissão da Mulher (Subseção OAB Santo Ângelo). Atua no estudo do Direito Penal,
Violência, Conflito e Gênero.
2 Pós-Doutora em Direito pela UNIRITTER sob a orientação da professora Doutora Sandra Regina
Martini. Doutora em Direito e Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC.
Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do
Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito stricto
sensu - Mestrado e Doutorado, e Graduação em Direito, todos da Universidade Regional Integrada do
Alto Uruguai e Missões - URI, campus Santo Ângelo. Coordenadora do Curso de Graduação em Direito
da URI. Líder do Grupo de Pesquisa "Conflito, Cidadania e Direitos Humanos", registrado no CNPQ.
Advogada. Atua no estudo do Crime, Violência, Conflito e Formas de Tratamento de Conflitos conciliação, mediação, arbitragem e justiça restaurativa.
procedimento bibliográfico. Tem-se, pelo estudo realizado, que o espaço comum
fraterno contribui para a criação de novos espaços políticos, com a ampliação do
espaço público, com novas identidades e novos sujeitos coletivos capazes de
aprofundar a democracia no próprio processo de luta pelo aprofundamento da
democracia. Trata-se de um lugar comum para todos na sociedade, um lugar
verdadeiramente de todos e compartilhado por todos.
Palavras-chave: Cidadania. Direito Fraterno. Espaço Urbano. Favela. Modernidade
Periférica.
Abstract: The production of the Brazilian urban space constitutes an unequal sociospatial development, which is marked by the process of remodeling the center from the
exploration and exclusion of a part of the population and its displacement to the
peripheries of the city due to its economic, cultural, social and racial positions. Based
on this scenario, this paper aims to present the contributions of the Metatheory of
Fraternal Law in the shared space due to the generalization of the favelization
phenomenon in peripheral modernity. As research problem, it questions: what are the
contributions of the Metatheory of Fraternal Law in the shared space due to the
generalization of the favelization phenomenon in peripheral modernity? To answer this
question, it is adopted the deductive method of approach and the bibliographic method
of procedure. The study shows that the fraternal common space contributes to the
creation of new political spaces with the expansion of the public space with new
identities and new subjects capable of deepening democracy in its own process to
deepening democracy. It is a common place for everyone in society, a truly and shared
place by everyone.
Keywords: Citizenship. Favela. Fraternal Law. Peripheral Modernity. Urban Space.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. O FENÔMENO DA FAVELIZAÇÃO COMO ARRANJO
URBANO SOCIOESTRUTURAL DA SOCIEDADE PERIFÉRICA 2. O ESPAÇO
PERIFÉRICO URBANO COMO LUGAR COMUM COMPARTILHADO À LUZ DA
METATORIA DO DIREITO FRATERNO 3. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo suas portas e janelas
de forma alinhada. Em volta das bicas, ouvia-se um zunzum crescente de uma
aglomeração tumultuosa de homens e mulheres, os quais lavavam o rosto debaixo de
um fio de água que escorria e inundava o chão. As mulheres prendiam as suas saias
nas coxas para não molhar e os homens se esfregavam debaixo da água. As portas
das latrinas não descansavam com a entrada e saída de pessoas, apenas não usadas
pelas crianças que escolhiam o céu aberto para as suas necessidades.
O trecho acima foi extraído e adaptado da obra O Cortiço3, de Aluísio de
Azevedo, um romance de cunho social que retrata a miséria e o proletariado urbano,
denunciando o preconceito racial e a exploração do ser humano pela sua própria
espécie. De cunho naturalista, a obra foi lançada no período em que o Brasil passava
por reconfigurações de ordem social, com a formação de novos mercados, o trabalho
assalariado e a definição hierárquica de novas categorias sociais.
Revela-se, ao apresentar o Cortiço, milhares de pessoas que viviam em um
espaço de construções precárias, formadas por vários quartos pequenos e
sufocantes, sem salubridade e mínimo existencial. Localizado ao lado do sobrado da
aristocracia da época, o cortiço de Aluísio de Azevedo abria os olhos para a sociedade
e tinha um coração pulsante. De 1890 para 2020, o cortiço e as milhares de vidas
permanecem à margem, vítimas da exploração da própria espécie e excluídos por
preconceitos raciais, étnicos, culturais, econômicos e sociais. Das janelas e portas que
se abrem alinhadas, o coração segue pulsante de vida e desejos por visibilidade e
humanidade.
Assim, a generalização do fenômeno da favelização na modernidade periférica
brasileira caracteriza-se pela existência de espécies de assentamentos humanos e/ou
emaranhados de comunidades precárias em volta de grandes centros urbanos como
ilustrado
em
O
Cortiço.
Nessa
conjuntura,
minorias
vulneráveis
habitam
espacialmente em emaranhados de comunidades, as quais não detêm uma estrutura
capaz de proporcionar um empoderamento social aos seus habitantes e se
perfectibiliza como um local onde a caracterização territorial do entorno habitacional é
a degradação por práticas desumanizadoras. Nesse contexto, percebe-se que as
favelas não dispõem de uma estrutura capaz de efetivar os direitos fundamentais e
nem de contemplar a realização plena do direito à cidadania aos seus habitantes.
No entanto, deveria existir um lugar para todos na sociedade, um espaço de
encontros, que seja compartilhado e adquira uma potencialidade fraterna capaz de
albergar os desejos de comunidade, cujas diferenças aproximam e transformam, são
reconhecidas e permitem sejam desconstruídos os estereótipos e estigmas presentes
na dinamicidade das relações advindas do contexto socioestrutural das favelas na
modernidade periférica. Nesse sentido, busca-se um movimento transicional da utopia
3 A obra O Cortiço de Aluízio de Azevedo, datada de 1890, traz a história de João Romão, proprietário
do cortiço, da taverna e da pedreira, cujo objetivo é a exploração, enriquecimento e ascensão social.
Trata-se de um romance naturalista que retrata o comportamento dos personagens com base na
influência do meio, da raça e do momento histórico.
à realidade, no qual seres humanos se olhem e (re)construam a humanidade
esquecida pela tragédia da degradação humana.
Nesse sentido, a presente pesquisa tem o objetivo de abordar as contribuições
da Metateoria do Direito Fraterno no espaço compartilhado diante da generalização do
fenômeno da favelização na modernidade periférica. Por isso, questiona-se: quais são
as contribuições da Metateoria do Direito Fraterno no espaço comum compartilhado
diante da generalização do fenômeno da favelização? Para isso, adota-se o método
de abordagem dedutivo, instruído por um procedimento bibliográfico.
À vista disso, em um primeiro momento, estudar-se-á a origem do processo de
favelização no Brasil para, na sequência, compreender-se a favela como arranjo
urbano socioestrutural. Ainda, em consonância com a dinamicidade das relações
sociais na sociedade periférica brasileira, apresentar-se-á as contribuições da
Metateoria do Direito Fraterno como pressuposto de análise das relações sociais e de
prática heurística de instigação a constituição de espaços comuns compartilhados.
1.
O
FENÔMENO
DA
FAVELIZAÇÃO
COMO
ARRANJO
URBANO
SOCIOESTRUTURAL DA SOCIEDADE PERIFÉRICA
Preliminarmente, cabe destacar que de acordo com as especificidades socioespaciais existentes na sociedade mundial, observa-se que as cidades comportam
aproximadamente dois terços do crescimento populacional do mundo a contar desde o
ano de 1970. Em razão disso, estima-se que de acordo com o crescimento
populacional desordenado, as cidades poderão ser “responsáveis por quase todo o
crescimento populacional do mundo, cujo pico, de cerca de 10 bilhões de habitantes,
espera-se que aconteça em 2050” (DAVIS, 2006, p. 14). Nesse sentido, a projeção é
de que 95% do crescimento populacional se dê em áreas urbanas, principalmente, nos
países periféricos, cuja respectiva população atinja os 4 bilhões de indivíduos já na
geração subsequente. Logo, salienta-se que o processo de crescimento da
urbanização é caracterizado como sendo uma transformação no horizonte
socioestrutural da sociedade mundial, bem como uma intensificação na dinâmica
territorial do contexto urbano-rural em todo o mundo (DAVIS, 2006, p. 14).
Nas palavras de Luis Kehl, sobre a formação da cartografia das cidades em
decorrência das relações sociais interacionais entre os indivíduos atrelada ao
processo desenfreado da urbanização:
Uma cidade, seja ela moderna ou antiga, é sempre um reflexo das relações
humanas e das forças produtivas que se apresentam em dado momento. As
cidades atuais são fruto de nossa sociedade altamente industrializada e
mercantil, com grande predominância dos automóveis e projetada, ao menos
idealmente, para maximizar a eficiência da infraestrutura e a utilização dos
insumos necessários ao seu funcionamento (KEHL, 2010, p. 59).
Nessa conjuntura, sabe-se que, na atualidade, as cidades contraem um
crescimento nunca antes visto no arranjo social civilizacional, no sentido de que
“explodem
no
mundo
em
desenvolvimento
também
entretecem
novos
e
extraordinários corredores, redes e hierarquias” (DAVIS, 2006, p. 16). Assim, no
âmbito da América, constata-se que "os geógrafos já mencionam um leviatã
conhecido como Região Metropolitana Ampliada Rio-São Paulo (RMARSP), que inclui
as cidades de tamanho médio no eixo viário de 500 quilômetros entre as duas maiores
metrópoles brasileiras” (DAVIS, 2006, p. 16). Entretanto, verifica-se que em
decorrência de tal processo patológico4 socioestrutural emerge uma nova
configuração urbana caracterizada, principalmente, pelo crescimento da desigualdade
e pela operacionalização do código inclusão/exclusão, “[...] tanto dentro de cidades de
diferentes tamanhos e especializações econômicas quanto entre elas” (DAVIS, 2006,
p. 18).
Com efeito, a partir de 1970 o índice populacional começa a se concentrar nas
comunidades faveladas dos países periféricos e ultrapassar a urbanização, fato de
que promoveu a ascensão do fenômeno da favelização. Nesse escopo, em
consonância com o fomento aos processos excludentes, uma parcela significativa da
coletividade, ou melhor, minorias vulneráveis passam a habitar em territórios
deficitários, ao passo que, permanecem reduzidas a situação de “[...] correspondência
entre suas possibilidades existenciais e o instrumental oferecido pelo padrão urbano
vigente, tratam de criar sua própria “cidade”, amoldando-a as suas formas de existir e
sobreviver” (KEHL, 2010, p. 86). Destarte, a constituição da concepção clássica de
favelas remonta a uma estrutura deficitária caracterizada pelo crescimento
desordenado de população, habitações precárias e informais, ausência de
saneamento básico e, igualmente, insegurança da propriedade habitada.
4 No âmbito da constituição da sociedade periférica, o termo “patológico” está atrelado ao contexto
social, no sentido de referir-se à produção de patologias sociais (desigualdade social, pobreza, miséria,
exclusão, etc.).
A partir da percepção de Mike Davis sobre a ascensão de uma incongruência
atrelada ao fenômeno da favelização e ao desenvolvimento das cidades na sociedade
mundial:
Assim, as cidades do futuro, em vez de feitas de vidro e aço, como fora
previsto por gerações anteriores de urbanistas, serão construídas em grande
parte de tijolo aparente, palha, plástico reciclado, blocos de cimento e restos
de madeira. Em vez das cidades de luz arrojando-se aos céus, boa parte do
mundo urbano do século XXI instala-se na miséria, cercada de poluição,
excrementos e deterioração (DAVIS, 2006, p. 28/29).
Em outras palavras, entende-se que as favelas sejam compostas por “[...]
pequenas casas amontoadas por ruas e becos sem nenhuma infraestrutura, numa
combinação perversa de condições de insalubridade e vulnerabilidade social” (KEHL,
2010, p. 21), retrato já trazido por Aloísio de Azevedo em O Cortiço. Nesses termos,
estima-se que, atualmente, o processo de favelização remete a existência de
aproximadamente 200 mil favelas em todo o mundo, as quais são compostas entre
algumas centenas a mais de 1 milhão de habitantes em cada favela. Por isso, a
existencialidade dos habitantes de tal arranjo territorial, em decorrência das múltiplas
incongruências presentes no âmbito socioestrutural das favelas, é reduzida a uma
“equação complexa ao tentar otimizar o custo habitacional, a garantia da posse, a
qualidade do abrigo, a distância do trabalho e, por vezes, a própria segurança”
(DAVIS, 2006, p. 37).
À vista disso, tem-se que a constituição das favelas está intimamente atrelada
às disputas pelo uso do solo urbano, no sentido de que há também a possibilidade de
formação das denominadas megafavelas5, as quais se constituem na medida em que
“[...] bairros pobres e comunidades invasoras6 fundem-se em cinturões contínuos de
moradias informais e pobreza, em geral na periferia urbana” (DAVIS, 2006, p. 37).
Dessa forma, as favelas abrangem especificidades “[...] de organização próprias e de
tentativas de se criar uma consciência e uma identidade que se contraponham aos
5 No que se refere a formação das megafavelas, é basilar ressaltar que “as grandes favelas periféricas,
principalmente na África, costumam ser colchas de retalhos bem complexas de redes de parentesco,
sistemas de posse da terra e relações de locação” (DAVIS, 2006, p. 53).
6 De acordo com a compreensão de Mike Davis sobre a consequência da invasão no contexto do
fenômeno da favelização na modernidade periférica, “Invadir, claro, é se apossar da terra sem compra
nem título de propriedade. A terra periférica “sem custo” tem sido muito discutida como o segredo
mágico do urbanismo do Terceiro Mundo: um imenso subsídio não planejado aos paupérrimos. No
entanto, é rara a invasão não ter algum custo prévio. O mais comum é que os invasores sejam coagidos
a pagar propinas consideráveis a políticos, bandidos ou policiais para ter acesso aos terrenos, e podem
continuar pagando esses “aluguéis” informais em dinheiro e/ou votos durante anos” (DAVIS, 2006, p.
47).
modos que a sociedade “exterior” tenta lhes impor” (KEHL, 2010, p. 29). Com efeito,
na conjuntura em questão, uma dinâmica conflitiva se instaura através do binômio
sujeito/território, no sentido de que o território das favelas se consolida pela “[...]
morada onde grupos que se aproximam por valores, práticas, vivências, memórias e
posição social, constroem sua identidade como força de realização de suas vidas”
(SILVA, 2009, p. 22).
Por conseguinte, sobre o contexto histórico do processo de formação das
favelas no mundo e suas especificidades, conforme relata Kehl:
Slums,7 favelas, barrios, shanty towns, villas-miseria, musseques, ou que
nome tenham, existem no mundo inteiro, e cresceram como nunca a partir do
século XIX com a expansão do colonialismo europeu e depois norteamericano, e de modo exponencial e descontrolado a partir da segunda
metade do século XX, pelas mais diversas razões, mas seguindo sempre o
mesmo roteiro de concentração de renda de um lado e abandono e
desigualdade social de outro (KEHL, 2010, p. 23).
Em síntese, percebe-se que os assentamentos subnormais da sociedade
periférica “seja qual for o nome pelo qual são conhecidos: bandas de miséria na
Argentina, gececondu na Turquia, bidonvilles na Argélia, favelas no Brasil”
(PERLMAN, 2002, p. 39) denotam realidades sociais semelhantes. Por isso, o
problema da falta de moradia padrão reflete em uma multiplicidade de déficits
estruturais urbanos. Sob esse olhar, observa-se que de acordo com a constituição das
favelas nas sociedades periféricas, “mesmo as casas mais baratas custam tão mais
caro do que as famílias de renda baixa podem pagar, que os terrenos baldios dentro e
fora do perímetro urbano se enchem naturalmente de casebres para milhares de
famílias” (PERLMAN, 2002, p. 39). Sobretudo, percebe-se que a formação das favelas
se perfectibiliza como o arranjo urbano socioestrutural das sociedades periféricas.
Logo, o fenômeno da favelização emerge a partir da formação das favelas, no
sentido de que há favelas de diversas características, tais como: algumas
caracterizam-se por serem mais esparsas, outras possuem uma estrutura mais
traçada com espaços abertos. No entanto, a maioria, de acordo com a evolução do
7 Conforme Mike Davis indaga, “Mas o que é slum, palavra inglesa que significa “favela”? A primeira
definição de que se tem conhecimento foi publicada no Vocabulary of the Flash Language [Vocabulário
da linguagem vulgar], de 1812, do escritor condenado à prisão James Hardy Vaux, no qual é sinônimo
de racket, “estelionato” ou “comércio criminoso”. No entanto, nos anos da cólera das décadas de 1830 e
1840, os pobres já moravam em slums em vez de praticá-los. O cardeal Wiseman, em seus textos sobre
reforma urbana, recebe às vezes o crédito por ter transformado slum (“cômodo onde se faziam
transações vis”) de gíria das ruas em palavra confortavelmente usada por escritores requintados. Em
meados do século XIX, identificavam-se slums na França, na América e na Índia, geralmente
reconhecidos como fenômeno internacional” (DAVIS, 2006, p. 32).
contexto civilizacional “melhoraram enormemente em termos de materiais de
construção e serviços urbanos. O que, afinal, distingue a favela de muitas outras
comunidades pobres que lhes são semelhantes é a ocupação ilegal da terra”
(PERLMAN, 2002, p. 40). Assim, no que se refere ao Brasil, a acepção de favela
denota “um grupo de moradias com alta densidade de ocupação, construídas
desordenadamente com materiais inadequados, sem zoneamento, sem serviços
públicos e em terrenos usados ilegalmente sem consentimento do proprietário”
(PERLMAN, 2002, p. 40).
No pensamento de Lourdes Carril, no que concerne à especificidade dos
fenômenos urbanos, principalmente, o da favelização atrelado à existência humana:
[...] nada mais são do que o imediato dos seres que habitam um espaço da
cidade. O cotidiano encontra-se, assim, assentado nas relações próximas aos
indivíduos: sentimentos, família, trabalho, sonhos, aspirações e frustrações;
enfim, tudo aquilo que marca a existência humana na terra. No entanto, na
Modernidade, estes níveis se encontram mediados por outras instâncias
distantes e até ausentes, as quais tecem a vida social não mais baseada em
relações de proximidade, conhecimento e vizinhança porque introduzem
lógicas externas aos grupos sociais (CARRIL, 2006, p. 22).
Na América Latina, existem aproximadamente de 20 a 30 mil favelas, “das
quais cerca de 763 no Rio, onde se concentra o maior número de favelas do Brasil”
(PERLAN, 2002, p. 40). Por conseguinte, diante de todo o contexto socioespacial das
favelas, “existe uma comunidade que se caracteriza pelo cuidadoso planejamento no
uso de um limitado espaço para fins de moradia, e pelas técnicas criativas de
construção em encostas que os urbanistas consideram demasiado íngremes para
edificação” (PERLMAN, 2002, p. 27). Por isso, a modernidade periférica brasileira é
percebida como um contexto territorial predominantemente urbano, no sentido de que
há “uma parcela maior da população vivendo na cidade que no campo – apenas na
última década” (PERLMAN, 2002, p. 31). Em virtude disso, é que o Rio de Janeiro,
denota entre as cidades brasileiras, o maior crescimento devido ao fenômeno
crescente da urbanização, ou melhor, da hiperurbanização.8
8 Nas palavras de Janice Perlman sobre a hiperurbanização, “seja a migração, o crescimento natural ou
a supermecanização a causa principal da hiperurbanização, o fato é que o fenômeno constitui um dos
principais desafios dos nossos tempos para os planejadores. Macrossoluções são necessárias a longo
prazo, é óbvio, mas a curto prazo os próprios atingidos pelo problema improvisam soluções. Em termos
de renda, muitas ocupações remuneradas sustentam famílias inteiras, ainda que não sejam
reconhecidas formalmente como empregos. Por outro lado, o desemprego, ainda que elevado, em geral
não dura muito para os residentes em cidades, sendo em parte compensado com biscates,
frequentemente. Uma mesma família é muitas vezes sustentada por vários de seus membros, e uma
pessoa muitas vezes tem vários empregos. No que se refere à habitação, favelas e cidades-satélites
são, na verdade, soluções autógenas para a severa escassez de moradia e as falhas do mecanismo de
Nesse sentido, assevera-se a premissa de que o Brasil “conta com uma das
mais altas taxas de crescimento urbano da América Latina” (PERLMAN, 2002, p. 31).
De acordo com o contexto histórico da sociedade periférica brasileira, sabe-se que as
primeiras favelas do Brasil surgiram no final do século XIX e início do século XX 9, na
cidade do Rio de Janeiro. Ainda, conforme os dados do IBGE informam que no ano de
2010, o percentual da população brasileira que habitava nas favelas era de 6%, no
sentido de que “na região metropolitana do Rio de Janeiro10, o percentual de pessoas
vivendo nesses aglomerados era de 14,4%. Na cidade do Rio de Janeiro 11, o
percentual era ainda mais elevado: 22%, ou seja, quase 1,4 milhão de habitantes
distribuídos pelas 763 favelas existentes na cidade” (OLIVEIRA, 2012, p. 23).
À título histórico, no que concerne à constituição do processo de favelização no
Brasil, “o termo favela tem origem na Guerra de Canudos, conflito sociorreligioso
ocorrido entre 1896 e 1897, no interior da Bahia, que acumulou como vítimas fatais,
segundo estimativas, 20 mil sertanejos e 5 mil membros do exército republicano”
(MEIRELLES; ATHAYDE, 2014, p. 40). Logo, no ano de 1897, os soldados que
retornavam da Guerra de Canudos ocuparam o Morro da Providência que se
localizava próximo ao centro da cidade e restaram em situação de marginalização,
bem como esse fato provocou a fomentação do processo de favelização, o qual é
compreendido pela formação das então denominadas favelas. Em consonância com o
exposto, esse fenômeno acentuou-se, em decorrência do êxodo rural proveniente do
mercado” (PERLMAN, 2002, p. 34).
9 Conforme Ana Paula de Moura Varanda “esse período coincide com o momento de decadência do
sistema escravista e de declínio da atividade cafeeira no interior do estado, resultando em um enorme
fluxo de saída de trabalhadores (nacionais e estrangeiros) dessas áreas produtoras do grão. Em
contrapartida, o dinamismo econômico apresentado pela cidade do Rio de Janeiro nesse momento atrai
para as suas áreas centrais uma enorme quantidade de mão de obra composta por imigrantes,
escravizados libertos e trabalhadores vindos de diferentes regiões do país. Tal dinamismo é decorrente
da instalação das primeiras indústrias; do incremento das atividades comerciais e portuárias; e dos
investimentos estrangeiros realizados, sobretudo, por intermédio de concessões do Estado no setor de
serviços públicos, como os sistemas de transportes, esgotamento sanitário e de abastecimento de gás”
(VARANDA, 2018, p. 50).
10 Notadamente, conforme os dados disponibilizados pelo IBGE em 2010, sobre as 10 maiores favelas
da cidade do Rio de Janeiro e o número de habitantes vivendo nesses aglomerados subnormais são:
Rocinha (69.161 habitantes), Complexo da Maré (64.094 habitantes), Complexo de Rio das Pedras
(63.484 habitantes), Complexo do Alemão (60.583 habitantes), Complexo da Fazenda Coqueiro
(45.415 habitantes), Complexo da Penha (Vila Cruzeiro) (36.862 habitantes), Complexo do Jacarezinho
(34.603 habitantes), Complexo do Acari (21.999 habitantes), Complexo de Vigário/Lucas (20.570
habitantes), Complexo do Bairro da Pedreira (20.515 habitantes) (IBGE, 2011).
11 As favelas da cidade do Rio de Janeiro apresentam especificidades, as quais as diferem dos bolsões
de pobreza do resto do Brasil (e do mundo), principalmente, pela existência dos “denominados
“complexos de favelas”, que são aglomerados de vários assentamentos subnormais próximos, que
acabaram por se conturbar, um fenômeno mais raro no restante do país. Outra característica das
favelas cariocas é a sua proximidade de áreas nobres e centrais, o que cria um forte contraste social”
(OLERJ, s.a.,s.p.).
processo de industrialização e do desenvolvimento demográfico urbano em
detrimento do déficit habitacional existente na época e, consequentemente, se
constituiu como parte integrante da biografia do território urbano brasileiro (QUEIROZ
FILHO, 2011, p. 34).
Nesse contexto, a partir da premissa de que a cidade compreende uma
semântica que se caracteriza por ser um espaço12 “de representação da criação
humana em suas dimensões simbólicas e cultural que pode ser observada em
distintos modos de produção” (VARANDA, 2018, p. 33). No período do século XIX, os
aglomerados subnormais eram denominados de cortiços, na medida em que estavam
atrelados à ideia pejorativa de insalubridade, disseminação de doenças, violência e
marginalização. Ademais, no ano de 1880, formou-se o maior cortiço do Brasil, o qual
localizava-se na cidade do Rio de Janeiro, conhecido como “Cabeça de Porco”, ao
passo que sua representação era definida pela ausência, no sentido de que significava
um território deficitário e precário do que se considerava como estrutura urbana
adequada da época. Desse modo, estima-se que de 2.000 a 4.000 (duas mil a quatro
mil) pessoas tenham habitado o cortiço carioca (ESTADÃO, 2009).
Acontece que, no ano de 1893 o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Francisco
Pereira Passos iniciou um movimento denominado “bota abaixo”13, como um projeto
ardilosamente arquitetado como estratégia de higienização social urbana, o qual
acarretou na demolição do cortiço em questão em virtude de interesses urbanísticos
de modernização e, principalmente, com o intuito de construir avenidas na cidade. Por
conseguinte, não tendo para onde ir, os habitantes do “Cabeça de Porco”, sob
autorização do poder público, removeram o material de construção das suas
habitações e construíram outras moradias com características semelhantes em outro
espaço territorial, tendo em vista que “uma das proprietárias do Cabeça de Porco era
12 Rodrigues Held (2018, p. 125) refere que “o território é político e socialmente construído em relações
constantes de apropriação e dominação do espaço e reforço de identidade étnicas. Estas relações
compreendem uma multiplicidade de manifestações e poderes, sejam de ordem hegemônica, mas
também em lutas de resistência, onde os sujeitos diversos destes cenários disputam a dominação ou
lutam contra a subjugação”.
13 Nas palavras de Ana Paula de Moura Varanda “um fator decisivo para o surgimento das primeiras
ocupações com infraestrutura precária em morros e locais desvalorizados pelo capital imobiliário referese às estratégias de renovação urbana conduzida pelo prefeito Pereira Passos, com o objetivo de
transformar o Rio de Janeiro em símbolo de modernidade nos trópicos. Tais medidas resultaram na
eliminação de traços coloniais da paisagem urbana e implicaram na remoção em massa das habitações
populares das áreas centrais da cidade, como cortiços e residências consideradas insalubres”
(VARANDA, 2018, p. 50).
dona de lotes no Morro da Favella, hoje Morro da Providência. Ela negociou os
terrenos com os antigos moradores” (ESTADÃO, 2009).
Dessa forma, no âmbito do governo federal, para controlar o aumento dos
aluguéis a partir de 1911, ocorreu uma ausência de estímulos no segmento do
mercado locatício. Sendo assim, sobreveio que a falta de habitações sociais se
perpetuou, em virtude “[...] da elevação do custo de vida em decorrência da Primeira
Guerra Mundial, e, na década de 1920, em função da retomada das obras públicas
pelas administrações Paulo de Frontin (janeiro a julho de 1919) e Carlos Sampaio
(1920-1922) ” (GONÇALVES, 2013, p. 67). Por conseguinte, no ano de 1912, a cidade
do Rio de Janeiro comportava “11.990 estabelecimentos comerciais e industriais,
contra apenas 3.718 nos subúrbios e 2.222 na periferia mais afastada” (GONÇALVES,
2013, p. 68). Sobretudo, tal relação de dependência das zonas centrais, atrelada à
vista grossa dos poderes públicos no que concerne à ocupação nos morros, fomentou
o fenômeno da favelização no arranjo territorial em questão, especialmente, na
primeira metade do século XX (GONÇALVES, 2013, p. 68).
Por isso, sob a lógica deficitária das favelas, as quais são compreendidas como
chagas urbanas no Rio de Janeiro, de acordo com Rafael Soares Gonçalves:
Uma nova reflexão sobre a cidade impôs-se no Brasil ao final da
década de 1920. Em vez de se concentrarem em intervenções esporádicas,
higienistas e estéticas, o urbanismo foi pouco a pouco implementando uma
concepção mais sistêmica da cidade. Essa nova concepção, muito
influenciada pela consolidação do mercado imobiliário no Rio de Janeiro,
visava a uma divisão espacial que poderia contribuir mais ainda para a
acumulação do capital. Nesse contexto, as favelas logicamente não tinham
mais direito à cidade. Era, pois, imperioso que fossem encontrados meios de
erradica-las definitivamente e de expulsar seus habitantes para os arrabaldes
da cidade (GONÇALVES, 2013, p. 95).
Ainda, diante de tal conjuntura problemática, as favelas emergiram de forma
crescente, principalmente, nos territórios de expansão urbana do Rio de Janeiro, a
exemplo de como ocorreu no bairro de Copacabana. Dessa forma, as favelas da
cidade do Rio de Janeiro “[...] acompanharam a expansão do tecido urbano e se
tornaram definitivamente um elemento importante da paisagem urbana carioca”
(GONÇALVES, 2013, p. 68). Nesse contexto, em 1913, a cidade carioca detinha,
“apenas nos sete distritos da área central, 2.564 barracos, que abrigavam 13.601
habitantes. Essa expansão era, porém, objeto de séria oposição por parte das elites da
cidade” (GONÇALVES, 2013, p. 68). Logo, percebe-se que a partir da última metade
do século XIX, as elites cariocas empreenderam um movimento pela proibição das
ocupações dos morros14 por assentamentos deficitários.
Em decorrência de tais disfuncionalidades socioestruturais no território das
favelas da cidade do Rio de Janeiro, os morros cariocas, especificamente o Morro da
Favella, hoje Morro da Providência, eram noticiados corriqueiramente nas páginas
policiais dos jornais de grande circulação. Nesse contexto, no Rio de Janeiro, a
formação “das favelas como epicentros de marginalidade urbana se disseminou
velozmente, o que serviu de justificativa para a construção de uma retórica
institucional a seu respeito, centrada sobre noções de patologia urbana e de classes
perigosas” (GONÇALVES, 2013, p. 69). Ademais, salienta-se que as favelas
substituíram os cortiços como problemática no Rio de Janeiro, na medida em que
havia uma ausência de políticas públicas que tratassem a questão urbanística
relacionada aos aspectos sociais.
Nesse particular, Gonçalves refere que uma máxima sempre se perpetuou no
que se refere às condições precárias e provisórias das favelas, no sentido da
constituição do horizonte de representações sociais:
Se a condição precária e provisórias das favelas sempre legitimou sua
erradicação pelos poderes públicos, essa foi, em compensação, a razão pela
qual uma parte das camadas populares conseguiu ter acesso ao dinamismo
das regiões centrais, anulando – pelo menos em um primeiro momento, e de
maneira certamente relativa – os efeitos nefastos da especulação imobiliária.
A apropriação do espaço definido pelas favelas acabou se tornando
progressivamente um desafio social de importância maior no Rio de Janeiro.
As favelas se tornaram ao mesmo tempo territórios de integração de grande
parte das classes desfavorecidas e, paradoxalmente, de exclusão dessa
mesma população. Embora a legislação ainda não tivesse definido de forma
precisa um conceito jurídico para as favelas, as representações sociais foram
pouco a pouco consolidando sua descrição como territórios fora da lei
(GONÇALVES, 2013, p. 81).
No entanto, a partir dessa percepção, em meio ao contexto territorial do tecido
social urbano periférico brasileiro e em conformidade com o crescente fenômeno da
favelização, “as prefeituras tentam regular, imiscuem-se formações anômalas e
imprevistas, que se insinuam ou se impõem pouco a pouco na malha, tornando-se
finalmente predominantes na paisagem” (KEHL, 2010, p. 12). Tem-se, como se
observa, a partir de um arranjo socioestrutural, a explosão das favelas como espaços
geográficos patológicos, cuja existência se constituiu em um mal à saúde da cidade e
14 Como lembra Rafael Soares Gonçalves, “o Projeto de Lei nº 121, de 1899, pretendia proibir qualquer
nova construção, inclusive a reforma dos prédios situados nos morros de Santo Antônio e do Castelo,
com exceção das edificações devidamente legalizadas” (GONÇALVES, 2013, p. 68).
do planejamento urbano. Cabe, nessa ótica, o estudo desse complexo subnormal
habitacional, já habitado por Bertoleza, Rita Baiana, Jerônimo, Piedade, Pombinha e
tantos outros moradores do Cortiço na obra de Aluísio de Azevedo.
2. O ESPAÇO PERIFÉRICO URBANO COMO LUGAR COMUM COMPARTILHADO
À LUZ DA METATORIA DO DIREITO FRATERNO
A sociedade civil concebida sob a ótica do modelo comunitário compreende o
ser humano comprometido com a comunidade por meio do nascimento e do sangue.
Sua virtude consiste em considerar uma relação causal privada e fechada de
comunidades unidas em decorrência do vínculo social oferecido aos grupos e às
pessoas díspares em um mundo anárquico do ponto de vista social e do ponto de vista
econômico.
Tem-se, desse modo, que aprendizagem, ócio, justiça e oportunidades são a
receita para uma sociedade civil democrática, na qual as instituições livres e a
sociabilidade podem descansar de forma plácida sobre a cidadania sem sofrer as
ações de um governo arrogante. Ademais, considera-se um espaço voluntário e não
coercitivo, cujo pluralismo é a condição indispensável da liberdade. Trata-se, portanto,
do modelo ideal de sociedade civil: aquela que não é consumidora dos serviços
proporcionados pelo governo, mas defensora de seus direitos15 diante das
intromissões. São habitantes dela os cidadãos democráticos ativos, responsáveis,
membros comprometidos de grupos e comunidades, dispostos a arbitrar as suas
diferenças, explorando um terreno comum pela realização de uma tarefa pública e
estabelecimento de relações comuns (BARBER, 2000).
Logo, constata-se que a evolução do ser humano dotado de humanidade se
constitui no interior do organismo social, ou seja, na sociedade. Assim, percebe-se a
existência de obstáculos em detrimento da formação de uma ordem social que seja
capaz de ser dotada de vínculos de fraternidade e harmonia entre os anseios pessoais
dos indivíduos e o padrão social estipulado pela coletividade, pela manutenção e
gestão da totalidade social. Diante disso, é cediço que “o desenvolvimento da
15 “O Sistema Interamericano de Direitos Humanos representa um avanço quanto ao reforço do
sistema global no reconhecimento, proteção e promoção dos direitos inerentes à dignidade, quanto ao
monitoramento do cumprimento dos direitos humanos garantidos pelas convenções interamericanas
para além do Pacto de São José da Costa Rica” (RODRIGUES HELD, 2018, p. 142).
sociedade de maneira a que não apenas alguns, mas a totalidade de seus membros
tivesse a oportunidade de alcançar essa harmonia — é o que criaríamos se nossos
desejos tivessem poder suficiente sobre a realidade” (ELIAS, 1994, p. 15).
À vista disso, o questionamento está em como alcançar essa sociedade quando
o espaço se mostra desigual e marginal, movimentado pela exclusão e segregação de
grupos vulneráveis. Assim, observa-se que diante da ordem urbana estabelecida
pelos moradores do casarão ao lado do cortiço, criam-se situações conflitivas a partir
do binômio cortiço/sobrado, ao passo que, tem-se: de um lado a burguesia
representada aqui pelo sobrado nas ações de Miranda e Estela. De outro, o cortiço de
João Romão que reúne personagens diversos, cujas histórias se encontram na água
compartilhada ao despertar de cada manhã.
Desenha-se, assim, a geografia das favelas, o complexo subnormal
habitacional, cujas características são:
- Insuficiência histórica de investimentos do Estado e do mercado formal,
principalmente o imobiliário, financeiro e de serviços; - Forte estigmatizações
sócio-espaciais, especialmente inferida por moradores de outras áreas da
cidade;
Edificações
predominantemente
caracterizadas
pela
autoconstrução, que não se orientam pelos parâmetros definidos pelo Estado;
- Apropriação social do território com uso predominante para fins de moradia;
- Ocupação marcada pela alta densidade de habitações; - Indicadores
educacionais, econômicos e ambientais abaixo da média do conjunto da
cidade; - Níveis elevados de subemprego e informalidade nas relações de
trabalho; - Taxa de densidade demográfica acima da média do conjunto da
cidade; - Ocupação de sítios urbanos marcados por um alto grau de
vulnerabilidade ambiental; - Alta concentração de negros (pardos e pretos) e
descendentes de indígenas, de acordo com a região brasileira; - Grau de
soberania por parte do Estado inferior à média do conjunto da cidade; - Alta
incidência de situações de violência, sobretudo a letal, acima da média da
cidade; - Relações de vizinhança marcadas por intensa sociabilidade, com
forte valorização dos espaços comuns como lugar de convivência (SILVA,
2009, p. 23).
À vista disso, atualmente, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), no que concerne aos fenômenos urbanos, as favelas16 foram
nomencladas como aglomerados de domicílios subnormais, ao passo que se
caracterizam pela formação de no mínimo 51 moradias, as quais seus habitantes não
detém qualquer título de propriedade, ou seja, são distribuídas de maneira
desordenada, no sentido de que as favelas ocupam territórios de propriedade pública
ou particular alheia. Nessa conjuntura, de acordo com informações disponibilizadas
16 De acordo com as informações obtidas através do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), no Brasil, os aglomerados subnormais são popularmente conhecidos por favela, comunidade,
grotão, vila, mocambo, invasão, etc. No entanto, na presente pesquisa, optou-se pelo emprego do
termo favela (IBGE, 2018).
pelo IBGE em 2011, constata-se que aproximadamente “59,3% da população
residente em aglomerados subnormais (6.780.071 pessoas) estão concentradas nas
regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro17, de Belém, de Salvador e de
Recife” (IBGE, 2011, s.p.).
Com efeito, nas palavras de Carril, percebe-se que o ambiente da favela é
terreno fértil para o fomento às patologias sociais na modernidade periférica brasileira:
O tamanho dos cômodos, sua localização, o material empregado, a
ventilação e a insolação, em geral, não garantem salubridade, nem
privacidade. As famílias são obrigadas a compartilhar espaços exíguos com
múltiplas funções: o lazer fica restrito à parte externa da casa, caso exista
esse espaço, porque ruas, vilazinhas e passagens também são utilizadas.
Havendo muita violência, as crianças, com bastante frequência, são mantidas
em casa. Quando existem áreas coletivas, que são escassas, há forte
competição por elas. Crianças jogam bola concorrendo com carros,
motocicletas e pedestres. Roupas secam em varais que atravessam os
caminhos, dificultando a passagem de pedestres. Os espaços são exíguos e
ficam piores com o adensamento provocado pela formação de novos grupos
familiares: os jovens que formam famílias, muitas vezes, são obrigados a
continuar morando com os pais, o que aumento o congestionamento das
moradias, a tensão familiar e as disputas em famílias propiciam condições
também para a violência física (CARRIL, 2006, p. 15).
Com efeito, de acordo com a interpretação da realidade social nas favelas
brasileiras, pode-se referir que conforme a dinamicidade de constituição das cidades
em todo o mundo, percebe-se que o fenômeno da favelização é inerente ao processo
de urbanização, no sentido de que o inchaço das cidades de maneira não planejada
promove a ascensão do fenômeno em questão e, por consequência, se alastra por
toda a sociedade mundial, principalmente atua de forma mais abrupta no arranjo social
periférico, de maneira que resulta na ausência de bem-estar coletivo. Assim sendo,
formam-se espaços territoriais marcados por tensões nas relações sociais, ao passo
17 A constituição do estado do Rio de Janeiro “assegurou que os serviços públicos devem ser
oferecidos permanentemente à população, e isso a despeito de possíveis irregularidades na ocupação
do solo. Prova disto é o artigo 238, que assegura expressamente a prestação de serviços públicos,
independentemente do reconhecimento oficial das ruas ou da regularização urbanística e fundiária do
local. O artigo 239, por outro lado, estabelece que o estado do Rio de Janeiro e seus municípios devem
promover e executar programas de construção de habitações populares, assegurando, dessa forma,
condições adequadas de moradia e de infraestrutura urbana, especialmente no que se refere a
saneamento, escola pública, ambulatórios, postos de saúde e transporte. Além disso, no que diz
respeito à questão específica das favelas, a referida Constituição determinava também que o estado do
Rio de Janeiro e os municípios devem instaurar diretrizes e normas com relação ao desenvolvimento
urbano, assegurando, por exemplo, a urbanização e a regularização fundiária das áreas ocupadas
pelas favelas, sem promover qualquer tipo de remoção dos moradores, a não ser que as condições
físicas dessas áreas representem riscos de vida para seus habitantes. Em resumo, a nova Constituição
do estado assegurou não apenas o direito à moradia, mas também determinou que o estado do Rio de
Janeiro e seus municípios devem envidar todos os esforços para promover a urbanização e a
regularização fundiária das favelas, estabelecendo também, pela primeira vez, a interdição legal de
qualquer política destinada à remoção da população favelada” (GONÇALVES, 2013, p. 298).
que, observa-se que perante tal conjuntura, “a metrópole expulsa seus pobres para
locais mais distantes da cidade, sem infraestrutura pública, onde o Estado está
ausente. A questão central é a presença de um contingente de pobres na cidade
vivenciando longos períodos de exclusão” (CARRIL, 2006, p. 33).
Logo, a realidade social da sociedade periférica brasileira reflete a premissa de
que “os pobres urbanos estão desesperadamente atolados na ecologia da favela”
(DAVIS, 2006, p. 125). À vista disso, percebe-se que o contexto territorial das favelas
no Rio de Janeiro produz uma relação de sentido entre pobreza, exclusão social e a
inefetivação dos direitos fundamentais (ex: a ausência do direito à moradia digna nas
favelas do Brasil), motivo pelo qual tal arranjo socioestrutural obstaculiza a realização
da cidadania. Nesse sentido, a condição dos habitantes nas favelas18 no Rio de
Janeiro “integra uma complexa questão da cidadania porque o ser excluído chegou a
ser condição absoluta da consciência” (CARRIL, 2006, p. 16). Nesse cenário, a
constituição das favelas demonstraria uma relação adversarial entre a existência de
uma cidade legal e uma cidade ilegal19, ao passo que tal situação reflete uma
“expressão espacial da riqueza e da pobreza, configurando um peculiar padrão de
crescimento da metrópole” (CARRIL, 2006, p. 16).
Observa-se, nesse rumo, a ausência da cidadania nas favelas do Brasil, no
momento em que se entende a favela “como território de banimento, de isolamento, ali
onde a exclusão confunde-se com confinamento e serve para armazenas grandes
contingentes populacionais em situação de longa exclusão, porque não têm acesso ao
emprego e à renda” (CARRIL, 2006, p. 17). Nesse sentido, constata-se que em
conformidade com a interpretação da realidade da existência dos habitantes das
favelas revela uma longa busca pela cidadania. No entanto, na sociedade atual,
analisa-se que a questão da exclusão socioespacial demarcada pela formação das
favelas têm sido substituídas “tanto pela vinda dos mais pobres para as regiões
18 A constituição da figura da favela no imaginário social por muito tempo correspondeu a “ocupação
ilegal, situada nas encostas de um morro ou localizada em bairro relativamente central, com moradias
precárias, sem infraestrutura e serviços urbanos. O favelado, morador da favela, passou a simbolizar o
migrante pobre, semianalfabeto, biscateiro, incapaz de se integrar e se adaptar ao mercado de trabalho
da cidade moderna, industrial. A fórmula “favela é igual a pobreza” logo se tornou consensual, sendo
compartilhada pelo meio acadêmico e político e sendo difundida pela mídia” (PRETECEILLE;
VALLADARES, 2000, p. 461/462).
19 Nas palavras de Lourdes Carril sobre a cidade ilegal sabe-se que “[...] é formada pelos pobres que
vão sendo empurrados para as periferias onde não há as condições mínimas de ordenamento territorial
urbano, mas propiciam o barateamento dos terrenos urbanos, o que lhes permitiu construir suas
moradias, favelas, ocupar os mananciais e os conjuntos populares construídos pelo poder público”
(CARRIL, 2006, p. 32).
centrais – seja para os cortiços, para baixo das pontes e para a mendicância, seja pela
saída dos mais ricos para os condomínios fechados localizados em áreas periféricas”
(CARRIL, 2006, p. 87).
Entretanto, tal aproximação física está “sendo mediada pela construção dos
muros que cercam as propriedades e por sistemas de vigilância que constantemente
monitoram a ameaça de assaltos, furtos e mortes” (CARRIL, 2006, p. 87). Ademais,
conforme o deslocamento social de indivíduos na modernidade periférica para as
favelas, compreende-se que as patologias sociais (violência, pobreza, miséria,
exclusão, etc.) corroem a sociedade periférica e, por conseguinte, o cotidiano de
carências dos bolsões de pobreza de acordo com o engendramento do código
inclusão/exclusão, ao passo que a população favelada permanece eivada por
estigmas, tendo em vista que os indivíduos que residem nas favelas restam
compreendidos como meros corpos corrompidos, os quais não ostentam o status quo
de cidadãos sob uma condição de invisibilidade social.
Diante disso, percebe-se que o crescimento populacional urbano é
caracterizado por ser um dos mais importantes fenômenos migratórios da história da
humanidade. Portanto, perante a realidade da sociedade periférica brasileira,
constata-se que os habitantes das favelas se convertem em indivíduos sacrificados
habitando zonas de sacrifício humano pois padecem às chagas da amputação de seus
direitos fundamentais e, consequentemente, da não-concretização da sua cidadania
no interior do sistema da sociedade mundial. Com efeito, sabe-se que no contexto
social periférico do Brasil, a existência humana nas favelas é eivada “por enormes
níveis de desigualdades sociais – que envolvem componentes étnicos, raciais,
sexuais entre outros” (VARANDA, 2018, p. 45).
Ademais, como se percebe do arranjo urbano socioestrutural das sociedades
periféricas, tem-se, ao mesmo tempo uma trágica dualidade: de um lado, os direitos
humanos revelam-se como uma das promessas mais perfectibilizadas do século XXI,
do outro lado, há uma gama de violações que têm sido potencializados em tempos
recentes em consonância com a crise global do projeto da modernidade. É cediço que
o período atual se mostra complexo, ao passo que coloca em risco o arsenal de
direitos e garantias conquistados no período histórico anterior pelas grandes
revoluções. É assim que se fomentam anseios pela luta de novas gerações de direitos
humanos. Entram na “ciranda” em prol das novas conquistas por direitos: os pacifistas,
os anti-racistas, aqueles que lutam pela liberdade, pela igualdade e não menos
importante pela tão almejada fraternidade (SANTOS, 1989).
Nesse caminhar, “são necessários cada vez mais e cada vez mais eficazes
direitos humanos. Mas, para isso, é necessária uma nova concepção de direito, uma
concepção mais humana de direito. Um direito consciente da sua condição humana”
(SANTOS, 1989, p. 9). Destaca-se, nessa ótica, a importância da fraternidade por
apostar no desempenho de um papel político na interpretação e na transformação do
mundo real, revelando um valor heurístico e uma eficácia prática. Se eliminada no
cenário social, a fraternidade pode ser resgatada como meio de possibilitar o
reconhecimento do outro e de sua alteridade, valores intrínsecos aos seres humanos
e, por conseguinte, comuns aos moradores do cortiço.
Sendo assim, fundamenta-se aqui o elo dos moradores do cortiço assim como
do espaço urbano favelizado, qual seja, a fraternidade enquanto prática heurística do
bom e harmônico convívio entre os seres humanos, na união de ideias e esforços e na
boa convivência em comunidade. Por isso, “inicia-se uma primeira ideia do que venha
a ser o Direito Fraterno: é um direito que é para todos e que é aceito e/ou proposto por
todos” (STURZA; MARTINI, 2016, p. 995).
A fraternidade enquanto elemento da Metateoria do Direito Fraterno
caracteriza-se pela aposta no desempenho de um papel político na interpretação e na
transformação do mundo real, revelando um valor heurístico e uma eficácia prática. A
forma de compreensão do que significa ser um cidadão e um político mudou devido à
sociedade civil ser fortemente democrática, a qual é marcada por uma forma de
associação mais rica e mais forte que as relações contratuais dos mercados
(BARBER, 2000). Nesse contexto, se eliminada a fraternidade do cenário social, ela
pode ser resgatada como meio de possibilitar o reconhecimento do outro e de sua
alteridade.
Desse modo, compreende-se que “[...] diante do conteúdo jurídico da
fraternidade, os intérpretes do direito devem atualizar o sentido de comunidade
política e democrática integrado ao aspecto específico da dignidade humana no viés
constitucional” (RESTA; JABORANDY; MARTINI, 2017, p. 99), pois a Metateoria do
Direito Fraterno, na perspectiva de pensar o direito em relação à civitas maximas e não
em relação às pequenas pátrias dos Estados, coincide com o espaço de reflexão
ligado aos Direitos Humanos, consciente de que a humanidade é o lugar comum e
somente em seu interior pode ser pensado o reconhecimento e a tutela. Tem-se, aqui,
como manifestado anteriormente, o espaço comum compartilhado, o espaço de todos.
O espaço fraterno comum tem como aposta a própria humanidade, a existência
de um bem comum, fundamentado em uma comunidade formada por pessoas que
compartilham sem diferenças, pois as reconhecem (STURZA; MARTINI, 2016). A
Metateoria do Direito Fraterno configura-se em um direito jurado em conjunto por
irmãos, homens e mulheres, os quais, em união, convencionam as regras basilares de
sua convivência (RESTA, 2004). Verifica-se, nessa ótica, que “[...] a fraternidade
expande o imaginário da tradição moderna individualista ao direcionar o aspecto
intersubjetivo da consciência fraterna na esfera do reconhecimento social” (RESTA;
JABORANDY; MARTINI, 2017, p. 100).
Para Eligio Resta (2004, p. 31), autor da Metateoria do Direito Fraterno,
proposta como simbiose entre certeza e esperança, afirma que “[...] a amizade
reaparece nos sistemas sociais como diferença entre interação de identidades
individuais, que se escolhem e orientam a comunicação voluntariamente, e as
relações burocráticas e heterodirecionadas dos mecanismos dos grandes sistemas
funcionais”. A Metateoria aqui estudada traz em si um resgate de princípios iluminista,
baseados na fraternidade: “esta nova proposta, na verdade, aponta para uma nova
‘luz’, uma nova possibilidade de integração entre povos e nações, integração esta
fundamentada no cosmopolitismo, onde as necessidades vitais são suprimidas pelo
pacto jurado conjuntamente” (STURZA; ROCHA, 2016).
Como traz o autor, ser amigo da humanidade é participar dos destinos das
pessoas movido por uma ideia, ter respeito por qualquer outro e por si mesmo, possuir
sensibilidade, dever e responsabilidade, pois a humanidade é termo inclusivo, é o
lugar-comum das diferenças, pois contém, ao mesmo tempo, amizade e inimizade.
Defende-se, desse modo, a ressignificação do Direito pela fraternidade, pois ela “[...]
encaminha-se, portanto, para a realização de um processo mediador construtivo da
interação comunicativa, agindo no enfrentamento dos conflitos sociais e culturais”
(RESTA; JABORANDY; MARTINI, 2017, p. 101).
O olhar de Resta é, antes de tudo, um olhar para os direitos humanos, pois “[...]
são aqueles direitos que somente podem ser ameaçados pela própria humanidade,
mas que não podem encontrar vigor, também aqui, senão graças à própria
humanidade” (RESTA, 2004, p. 13). Não há espaço para etnocentrismo e, por isso, o
Direito Fraterno é cosmopolita (pois reporta ao cósmico, ao valor universal dos direitos
humanos, e não à lógica mercantilista); não é violento, pois se pauta na mediação
(ideia de jurisdição mínima); é inclusivo, visto que escolhe os direitos fundamentais e
define o acesso universalmente compartilhado, onde todos podem gozar, e não
somente uma minoria (RESTA, 2004).
A proposta de analisar as relações sociais decorrentes do processo de
favelização da modernidade periférica pela Metateoria do Direito Fraterno é apostar na
ética da outridade, na humanidade e na fraternidade para reconhecimento do amigo
da humanidade, o qual “[...] endereça sua amizade a uma ideia, um projeto, no qual
conta o respeito por qualquer outro, e, assim, por si mesmo.” (RESTA, 2004, p. 40).
A amizade pela humanidade, alicerçada na superação das ambivalências
emotivas e na escolha do universalismo para a sobrevivência do todo, é o elo de
Jerônimo, Rita Baiana, Piedade, Pombinha, Joãos, Marias e tantos outros moradores
do cortiço e das favelas da modernidade periférica. Em outras palavras, o amigo da
humanidade é aquele que compartilha o sentido da humanidade como caráter comum
aos integrantes da totalidade social, sentindo-se parte dela, assumindo inteiramente o
seu problema, não o seu descarte ou, ainda, sem colocá-lo à margem. Em suma, o
amigo da humanidade se constitui por ser aquele que constrói um lugar comum, um
espaço fraterno e compartilhado, ou seja, possibilita a ascensão de espaços pautados
na não-violência, sobretudo, lugares de todos.
3. CONCLUSÃO
O processo de favelização no Brasil revela a exclusão de áreas de habitação
que não se enquadram no modelo urbanístico e no planejamento de avanço das
cidades, rechaçando dos centros os espaços decorrentes do modelo informal de
produção, reservado àquele grupo de pessoas com perfil de identidade econômica,
social, cultural e racial semelhante. Tem-se, desse modo, a justificativa da moradia de
Jerônimo, Rita Baiana, Pombinha e seus vizinhos e, do outro lado do muro, nos
grandes casarões, Miranda e as famílias da aristocracia burguesa. No entanto, essa
territorialidade, para o amigo da humanidade, não o impede de adquirir um caráter de
ser humano.
Observam-se as favelas como reflexo de uma política de marginalização de
seus moradores e, ao passo que as raízes habitacionais se encontram em sua
essência, relacionadas aos processos de exclusão e de pertencimento a
determinados grupos do tecido social, os quais se identificam pelo pacto entre iguais e
compartilhamento de valores. Importante, nesse rumo, compreender os processos de
favelização da modernidade periférica pela Metateoria do Direito Fraterno enquanto
uma análise transdisciplinar dos fenômenos sociais, o que significa transgredir e
integrar. Ou seja, analisar todo o contexto sem deixar de contemplar e reconhecer as
diferenças com o resgate da fraternidade enquanto o bom convívio com os outros, a
união de ideias e de ações ao viver em comunidade.
Trata-se de compreender um direito desvinculado da obsessão da identidade e
dos espaços territoriais que determinam quem é e quem não é cidadão. Não se
fundamenta na inclusão e na exclusão, mas na comunidade, na qual as pessoas
compartilham sem diferenças porque as diferenças são respeitadas. Tem-se aqui a
grande diferença entre ser humano e ter humanidade. Partilhar a humanidade é
respeitar o outro, o que requer responsabilidade e comprometimento.
A vivência em espaço compartilhado, comum e de todos pressupõe ter
humanidade e a Metateoria do Direito Fraterno permite compreender o
reconhecimento do diferente simplesmente por ser humano, independentemente de
pertencer a um grupo, a um território ou a uma classificação. Ser humano e, por
conseguinte, ter humanidade, não está adstrito à moradia no cortiço ou, no caso da
burguesia, no casarão. Está, por outro lado, vinculado a ser fraterno, a um espaço de
todos, comum e compartilhado, do qual fazem parte não somente Pombinha e
Jerônimo do cortiço, incluem-se, também, Miranda e João Romão. Incluem-se todos
os seres humanos.
REFERÊNCIAS
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