Constituintes ProPosiCionais
inartiCulados
edição de 2016 do
ComPêndio em linha
de P roblemas de FilosoFia a nalítiCa
2012-2015 FCT Project PTDC/FIL-FIL/121209/2010
Editado por
João Branquinho e Ricardo Santos
ISBN: 978-989-8553-22-5
Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica
Copyright © 2016 do editor
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa
Alameda da Universidade, Campo Grande, 1600-214 Lisboa
Constituintes Proposicionais Inarticulados
Copyright © 2016 do autor
Marco Ruffino
Resumo
Algumas proposições parecem incluir constituintes não articulados
(i.e., elementos proposicionais que não são o valor semântico de nenhum
elemento gramatical do proferimento que expressa estas proposições).
Isto chamou a atenção dos filósofos da linguagem por constituir um
contraexemplo àquilo que Perry chamou de representação homomórfica
da linguagem (i.e., cada elemento proposicional sendo o valor
semântico de algum elemento gramatical). Se genuíno, este fenômeno
também entra em choque com o chamado minimalismo semântico, de
acordo com o qual a única forma de sensibilidade contextual sistemática
que afeta o conteúdo proposicional originalmente expresso é a
indexicalidade. Neste ensaio discuto algumas tentativas de incorporar
a ideia de constituintes inarticulados na semântica e na epistemologia,
bem como algumas críticas direcionadas a estas tentativas.
Palavras-chave
Constituintes inarticulados, proposição, funções proposicionais,
sensibilidade contextual, conteúdo cognitivo.
Abstract
Some propositions seem to include unarticulated constituents (i.e.,
elements that are not the semantic values of any grammatical element
of the utterance expressing these proposition). This phenomenon
attracted the attention of philosophers of language because it seems
to violate what Perry called the homomorphic conception of language
(i.e., the conception according to which each propositional element
is the semantic value of some grammatical element). If genuine, it
also conflicts with the so-called semantic minimalism, according to
which the only form of systematic contextual sensitivity that affects
the content originally expressed is indexicality. In this essay I discuss
some attempts to incorporate the idea of unarticulated constituents in
semantics and epistemology, as well as some criticism of such attempts.
Keywords
Unarticulated constituents, proposition, propositional function,
context sensitivity, cognitive content.
Constituintes Proposicionais
Inarticulados
‘Está Chovendo’
Frege (1918-19) observou que, através do uso de determinadas
palavras, frequentemente expressamos mais que aquilo que elas
estritamente significam. Embora Frege tivesse em mente um fenômeno muito particular, esta observação se aplica a um sem número
de ocasiões de uso linguístico. Há um certo sentido trivial em que
pode-se dizer mais que aquilo que foi estritamente dito ou pronunciado. Por exemplo, há uma multiplicidade de processos pragmáticos
por meio dos quais uma afirmação acaba implicando (não no sentido
lógico estrito) um pedido, uma advertência, uma ameaça, etc. Se,
por exemplo, digo com um copo na mão ‘eu tenho sede’ para um
amigo que segura uma garrafa de água, muito provavelmente eu
quero comunicar algo mais que um mero estado fisiológico de sede
neste momento. Muito provavelmente eu também quis dizer que eu
gostaria que ele me servisse água, ou mesmo implicar um pedido neste
sentido, e muito provavelmente foi o que ele entendeu. (Caso ele não
mostre disposição em me servir água diríamos que ou ele é insensível
ao meu apelo, ou não tem competência comunicativa.) Embora não
seja parte estritamente do que eu disse, a minha afirmação parece
implicar (não num sentido lógico, mas pragmático) um pedido para
ser servido de água. Há um sem-número de outras implicações de
tipo pragmático a partir desta afirmação (‘tenho sede’), dependendo
do contexto em que esta ocorre. Várias dessas formas não-lógicas de
implicação parecem tomar como base uma certa proposição original
que é aquilo que foi estritamente comunicado originalmente pela
minha afirmação (no caso, o mero fato de eu ter sede).
Podemos, num modelo simplificado, falar de uma proposição originalmente expressada P (a de que eu tenho sede no momento em
que profiro a sentença) e de proposições implicadas pragmaticamente
(por exemplo, de que eu gostaria de ser servido de água, de que
eu quero que seja meu amigo que me sirva e não uma pessoa que
está em outra parte do mundo, etc.) Neste sentido, o meu proferimento da sentença que expressa P acaba comunicando muito mais
Publicado pela primeira vez em 2016
Marco Ruffino
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do que estritamente P (embora P seja a base para esta comunicação).
Novamente num modelo simplificado, podemos entender P como
sendo uma proposição. Há diferentes modelos do que seja uma proposição, mas para apenas para fixar as ideias e estudar o fenômeno
que queremos isolar, podemos adotar o modelo proposto por Russell
(1903, 1912), de acordo com o qual uma proposição é composta
de objetos particulares, conceitos e relações. No caso, a proposição
expressada por ‘eu tenho sede’ é composta pelo particular Marco
Ruffino, pelo instante particular t (em que a sentença é proferida)
e pela uma relação binária x tem sede em y que associa pessoas e instantes a valores de verdade.1 De maneira mais geral, a proposição
correspondente a ‘eu tenho sede’ conterá um sujeito correspondente
ao indexical ‘eu’, um instante temporal correspondendo ao indexical
implícito no tempo presente do verbo ‘tenho’, e a relação que associa
pares formados por pessoas e instantes temporais a valores de verdade (associando o verdadeiro apenas aos pares [x,y] tais que o sujeito
x tem sede no instante y). O primeiro sentido, portanto, no qual
podemos comunicar mais que o que foi estritamente dito é aquele no
qual comunicamos proposições (logicamente ou) pragmaticamente
implicadas pela proposição que foi expressa pelo nosso proferimento.
Mas há um segundo sentido no qual podemos em algumas ocasiões comunicar mais que o que foi estritamente dito, e isto devido
ao fato de a proposição P literalmente expressa conter elementos
que não correspondem a nada no proferimento, i.e., elementos que
não são “ditos” de nenhuma forma, explícita ou implícita. John Perry
(1986) introduziu o famoso exemplo de alguém que afirma
(1) Está chovendo.
Suponha que (1) seja proferida no instante t na Cidade do México.
Considerando que o tempo presente do verbo contém uma referência temporal implícita ao momento do proferimento, a compreensão
mais intuitiva e natural de (1) é que ela expressa a proposição de que
está chovendo no instante t na Cidade do México, ou seja, contém
dois particulares (t e Cidade do México) e a relação binária que associa pares de localidades e instantes temporais a valores de verdade
1
Não está claro se quaisquer outros modelos de proposição gerariam o mesmo
fenômeno de constituintes proposicionais inarticulados.
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(chove em x em y). Mas ocorre que, embora os demais elementos correspondam a partes da sentença proferida, a Cidade do México não
corresponde a nada, pois não há nem um nome de localidade, e nem
um indexical (nem mesmo implícito) ao qual ela corresponda. Temos
então uma situação curiosa: este elemento proposicional “entrou” na
proposição expressada pelo proferimento de (1), mas sem ser requerido ou “chamado” como valor semântico de nenhuma das expressões
que ocorrem em (1). Trata-se, na terminologia de Perry, de um constituinte proposicional inarticulado (por oposição aos constituintes que
são articulados verbalmente no proferimento, i.e., o instante t e a
relação chove em x em y. A localidade entrou na proposição como um
valor semântico que o proferimento como um todo, neste contexto
(i.e., na Cidade do México) parece requerer, mas sem corresponder
a nenhuma parte gramatical do mesmo.
O fenômeno de proposições que parecem incluir constituintes
inarticulados é bastante mais frequente que se imagina (abaixo
veremos mais alguns exemplos interessantes), e chamou a atenção
dos filósofos da linguagem por constituir um contraexemplo àquilo
que Perry chamou de representação homomórfica da linguagem, i.e.,
aquela segundo a qual cada elemento da proposição expressada por
um proferimento em um contexto corresponde (como valor semântico) a algum elemento gramatical do proferimento. Em particular,
este fenômeno, se real, entra em choque com o chamado minimalismo semântico, de acordo com o qual a única forma de sensibilidade
contextual que afeta o conteúdo proposicional mínimo originalmente expressado é a indexical. Como vimos, a localidade parece não
corresponder a nenhum termo indexical ou não-indexical que ocorra
em (1) e, no entanto, parece ser requerida para que (1) expresse uma
proposição. Adicionalmente, o elemento inarticulado claramente
parece ser um elemento contextual, já que (1) proferida em diferentes localidades resultará no carregamento de diferentes elementos
inarticulados (diferentes localidades). Como nenhum elemento
gramatical da sentença proferida tem o constituinte inarticulado
como seu valor semântico, aparentemente temos que considerar que
o mesmo é selecionado pela sentença como um todo no contexto de
uso. Aparentemente trata-se, portanto, de uma forma não-indexical
de sensibilidade contextual (já que nenhum indexical correspondente
ocorre na sentença).
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Semântica e pragmática
Uma das razões pelas quais a questão dos constituintes inarticulados
ganhou grande importância nas discussões contemporâneas em filosofia da linguagem é que ela coloca em cheque uma visão clássica sobre
a distinção entre semântica e pragmática. De acordo com esta distinção, a semântica se articula como uma teoria a partir da qual podem
ser recursivamente derivadas as condições de verdade das sentenças
de uma linguagem. Isto implica que o significado de sentenças é uma
composição apenas dos significados dos termos gramaticais que as
compõem. Alguns termos (os chamados indexicais) são especiais no
sentido de que dependem essencialmente do contexto, mas seus significados (extensão ou intensão) em cada contexto é o resultado de
uma regra relativamente simples (e.g., aquilo que Kaplan chama de
caráter) que associa cada contexto a uma extensão ou intensão. Desta
forma, uma semântica consiste na atribuição de significados simples
e primitivos aos termos sintaticamente elementares, além de um caráter aos termos indexicais, com uma definição recursiva de verdade
que leve em conta significados (caráteres) de indexicais como funções
de contextos em intensões (ou extensões). Contextos, para a semântica, seriam entidades (ou estruturas) com um número limitado de
elementos, como uma localidade, um instante temporal, um agente,
e um mundo possível. Ou seja, seriam entidades ou estruturas que
conteriam apenas elementos que fornecem valores ao que Kaplan
chamou de “indexicais puros”, i.e., termos como ‘eu’, ‘aqui’, ‘agora’
e ‘atual’. Teorias semânticas formais consideram a inclusão adicional
de um ou outro elemento ao contexto (e.g., o destinatário dos proferimentos correspondendo ao indexical ‘você’, ou os demonstrata (correspondendo aos demonstrativos), mas de qualquer maneira a noção
de contexto permanece restrita a poucos elementos.
A pragmática, diferentemente, se ocuparia em estudar aquilo
que os falantes fazem com os conteúdos que são articulados pelas
palavras. Aqui seriam relevantes não apenas os contextos restritos
utilizados pela semânticas, mas contextos tomados em sentido mais
amplo. Por exemplo, passam a ser relevantes os interesses e objetivos dos falantes e de sua audiência, o histórico da conversação
em que o proferimento se dá, etc. Central para esta concepção da
pragmática (por contraste com a semântica) é que há um conteúdo
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proposicional básico ou literal (objeto de estudo da semântica)
expresso pelo falante, e este conteúdo é a base de processos pragmáticos (objeto de estudo da pragmática). Um exemplo paradigmático
de estudo que pertence à pragmática (e não à semântica), de acordo
com esta visão, seria o das implicaturas conversacionais (no sentido
de Grice (1967)). Um falante, ao proferir uma sentença, expressa
uma proposição literal básica , a qual, por meio de máximas conversacionais (princípios de cooperação, relevância, etc.) leva à inferência
(não-lógica) de uma segunda proposição, mais completa e mais informativa. Estas máximas conversacionais não são parte da semântica.
Um outro exemplo paradigmático de processo pragmático seriam os
chamados atos de fala. Seguindo o modelo de Searle (1979), um ato
de fala consiste na associação de uma força ilocucionária (asserção,
declaração, pergunta, pedido, promessa, etc.) a um conteúdo proposicional. Diferentes forças ilocucionárias associadas a um mesmo
conteúdo proposicional trazem consigo diferentes elementos (propósito ilocucionário, interesse do falante ou do interlocutor, intenção
do falante, direção de ajuste mundo-palavra (e.g., uma promessa) ou
palavra-mundo (e.g., descrição), etc. A semântica propriamente dita,
de acordo com a visão em questão, se ocupa apenas dos conteúdos
proposicionais, enquanto a pragmática se ocupa dos aspectos relevantes para as diferentes forças ilocucionárias.
Retornando aos constituintes inarticulados: se eles de fato são um
ingrediente de proposições expressas por proferimentos (como o de
(1)), então esta visão sobre a distinção entre semântica e pragmática
é colocada em questão, uma vez que a composição mesma da proposição depende de fatores mais amplos que não apenas aquilo que
é estritamente requerido pelo significado dos termos que aparecem
na sentença proferida. No caso de (1), sem uma localidade, não temos uma proposição propriamente dita (uma vez que o conteúdo
de que está chovendo no instante t não é por si só verdadeiro nem
falso, mas é verdadeiro em algumas localidades e falso em outras).
Ou seja, obrigatoriamente2 conteúdos proposicionais (que são o objeto da semântica) conteriam elementos selecionados pela sentença
2
Como veremos mais adiante, isto não é consensual. Recanati (2002), por
exemplo, não considera a presença de constituintes inarticulados em proposições
como aquela expressa por (1) como obrigatória, mas sim opcional.
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como um todo dependendo de uma gama de fatores pertencentes ao
contexto em sentido amplo como os antecedentes da conversação,
intenção do falante, etc. (que são o objeto da pragmática). Assim,
semântica necessariamente incluiria elementos pragmáticos, o que
significa que a divisão delineada acima seria artificial e, na melhor das
hipóteses, válida apenas para linguagens muito simples em condições
muito restritas de uso. Adicionalmente, a noção de contexto restrito
empregada pela teoria semântica clássica seria insuficiente para garantir a formação de proposições completas (ou, alternativamente,
para dar conta das condições de verdade intuitivas de proferimentos
como (1)).
Em termos filosóficos mais amplos, a existência de constituintes inarticulados em proposições indicaria que existe um tipo de
sensibilidade não-indexical, uma vez que diferentes constituintes inarticulados seriam carregados na proposição em diferentes contextos, e este não seria o resultado da sensibilidade contextual de
nenhum indexical presente na sentença.
Alguns casos adicionais
Não apenas localidades podem ser vistas como constituintes inarticulados. Por exemplo, a maioria das proposições empíricas são
consideradas como verdadeiras (ou falsas) tomando-se o mundo
atual como local de avaliação. De fato, uma proposição pode ser
vista como uma função que associa mundos possíveis a valores de
verdade; por exemplo, a proposição de que Aristóteles escreveu a
Ética a Nicômaco associa o verdadeiro ao mundo atual, mas o falso a
um mundo possível no qual Aristóteles nunca se dedicou à filosofia.
Portanto, a proposição de que Aristóteles escreveu a Ética a Nicômaco
é normalmente tomada como verdadeira tendo o mundo atual como
o mundo de avaliação. (Se não há um mundo possível contra o qual a
proposição seja avaliada, então ela não é verdadeira e nem falsa, não
sendo portanto, de fato, uma proposição e sim uma função.) Mas, por
exemplo, na seguinte sentença
(2) Aristóteles escreveu a Ética a Nicômaco.
não existe nenhuma expressão da qual o mundo atual seja o valor
semântico. Portanto, (2) quando proferida no mundo atual expressa
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a proposição de que Aristóteles escreveu a Ética a Nicômaco no mundo atual, sendo este um constituinte inarticulado da proposição. Da
mesma maneira, toda e qualquer proposição genuinamente empírica
conteria o mundo atual como constituinte inarticulado.3
Outro exemplo que despertou interesse seria o seguinte: toda
proposição correspondendo a um porferimento relatando uma percepção (e.g., ‘há uma mancha verde no canto esquerdo’) conteria o
meu próprio eu como um constituinte inarticulado.
Segundo alguns filósofos, usos de sentenças com quantificadores
conteriam um constituinte inarticulado que seria o domínio (restrito) de quantificação, domínio este que pode mudar de contexto para
contexto no qual a sentença seja empregada. (e.g., ‘todos vieram à
festa’ dita por uma pessoa pode ter como domínio o conjunto de seus
amigos, ou seus colegas, ou de todos os seus conhecidos, ou pode significar literalmente que todos os indivíduos do mundo vieram à festa,
dependendo do contexto em que seja usada; estes distintos domínios
aparentemente não correspondem a nada na sentença ou em seu proferimento sendo, portanto, constituintes inarticulados.)
Outro exemplo relevante, dessa vez envolvendo um instante
temporal inarticulado, é o seguinte (apresentado por Recanati
(2001)): suponha que alguém me pergunta na hora do almoço se
tenho fome, e eu respondo
(3) Eu tomei um enorme café da manhã.
A compreensão intuitiva de (3) é que o café da manhã enorme a que
me refiro foi uma refeição que eu fiz na manhã do dia em que (3) é
proferido, uma vez que apenas esta manhã seria relevante para o fato
de eu ter ou não fome hoje. No entanto, não há nenhum elemento
gramatical em (3) cujo significado seja a manhã de hoje. Estritamente
falando, aquilo que corresponde aos componentes gramaticais de (3)
é apenas a proposição de que eu tomei um enorme café da manhã em
um instante temporal anterior ao do proferimento.
Em cada um destes casos nenhum elemento gramatical da sentença
3
Isto tem uma consequência curiosa e aparentemente paradoxal: uma
proposição genuinamente empírica, ao conter um mundo possível como constituinte inarticulado, torna-se uma proposição necessária pois em todo e qualquer
mundo possível será verdadeiro que, no mundo atual, Aristóteles é o autor da Ética
a Nicômaco.
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proferida tem o constituinte inarticulado como seu valor semântico,
e aparentemente temos que considerar que o mesmo é selecionado
pela sentença como um todo no contexto de uso. Aparentemente trata-se, portanto, de uma forma não-indexical de sensibilidade contextual (já que nenhum indexical correspondente ocorre na sentença).
Constituintes inarticulados e contexto de proferimento
Pode parecer que o constituinte inarticulado seja sempre um elemento
do contexto onde o proferimento se dá. (Por exemplo, o elemento
inarticulado na proposição expressa por um proferimento de ‘está
chovendo’ seria sempre o local do mesmo proferimento.) Mas isto,
segundo Perry, é equivocado. Suponha que eu acabei de falar ao telefone com alguém em outro país, e me perguntam ‘como estão as
coisas lá?’. Nesta situação, meu proferimento de (1) expressa uma
proposição que tem como constituinte inarticulado não a localidade
onde eu estou, mas sim aquela da pessoa em outro país. Em vista deste exemplo, podemos perguntar, em primeiro lugar, se não há uma
regra linguística do tipo do caráter kaplaniano que determina qual o
constituinte inarticulado em cada contexto e, em segundo lugar, caso
o constituinte inarticulado não precise ser um elemento do contexto
de proferimento, o que então o determinaria? Perry não tem uma
resposta clara e definitiva. Apenas uma vaga indicação de que a intenção do falante ao proferir (1) tem que desempenhar algum papel.
Podemos dizer que o que se torna relevante para a determinação do
constituinte inarticulado não é apenas o contexto em sentido estrito
(i.e., o local, instante, sujeito e mundo possível do proferimento),
mas também o contexto num sentido mais amplo (antecedentes da
conversação, intenções do falante, interesses do falante e de seus interlocutores, etc.)
“Z-Landers”
Perry (1986) acredita que constituintes inarticulados são não apenas
um fenômeno que se dá no nível da linguagem mas também no do
pensamento: da mesma forma que proferimentos de sentenças podem
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expressar proposições com constituintes que não correspondem a
nada linguístico, o conteúdo de pensamentos, crenças, etc., podem
ter elementos que não correspondem a qualquer representação no
mundo mental do sujeito. Por exemplo, se nem chego a dizer nada
relativo a uma percepção, mas apenas a percebo, eu mesmo sou um
constituinte inarticulado desta percepção. Se nada chego a dizer sobre
estar chovendo, mas apenas ajo conforme a situação (e.g., apanhando
um guarda-chuva antes de sair de casa) a minha crença tem um constituinte inarticulado que é o local onde me encontro (não é necessária
uma representação mental da mesma). Perry tenta tornar este ponto
plausível através de um experimento mental: imaginemos que há um
país, Z-Land, habitado por seres diferentes de nós, os Z-Landers,
que nunca saíram de Z-Land, não lêem notícias sobre lugares outros
que Z-Land, e nem mesmo concebem outros lugares. Toda vez que
alguém diz (1) é Z-Land que deve entrar como elemento inarticulado
das proposições expressadas, e toda vez que alguém tem uma crença
sobre as condições climáticas, é Z-Land que é o elemento inarticulado da crença. De acordo com Perry, não há necessidade de uma
representação mental por parte dos Z-Landers para garantir que a sua
crença seja sobre Z-Land; o que faz esta conexão é que a prática dos
Z-Landers (apanhar um guarda-chuva antes de sair, fechar as janelas,
etc.) seja adequada para a ocorrência de chuva em Z-Land.
Variáveis ocultas e o Binding Argument
Uma questão que naturalmente pode ser levantada a respeito do fenômeno apontado por Perry é a seguinte: por que não considerarmos
que há uma variável espacial oculta ou implícita em (1), da mesma
forma que consideramos que há um indexical temporal implícito no
tempo verbal presente? Há alguns detalhes relevantes aqui. Primeiro,
a maioria dos filósofos considera o próprio verbo como um morfema
que pede uma saturação temporal como parte de suas regras semânticas. (O verbo no tempo presente teria como parte de seu significado
o instante da elocução, assim como no tempo passado um instante
anterior ao da elocução, e no tempo futuro um instante posterior ao
da elocução.) Mas no caso espacial, normalmente se considera que
isto não ocorre, pois o verbo não contém nenhuma indicação espacial.
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Portanto, o verbo ele mesmo não seria uma morfema ao qual a localidade corresponderia. Mas então o que seria responsável por ter uma
localidade como seu valor semântico? De acordo com alguns (e.g.,
Stanley (2000) e Corazza (2007)), uma variável deve estar presente
na forma lógica profunda da sentença proferida. Isto é, embora ela
não seja um elemento visível na sentença proferida, ela deve estar
presente em algum lugar na árvore sintática da mesma. Esta variável
seria responsável por assumir, em cada contexto de proferimento,
um valor de localidade.
Perry considera brevemente a possibilidade de algo deste estilo
(i.e., de variáveis ocultas) na estrutura da sentença, mas rapidamente
descarta esta possibilidade, sem oferecer um argumento mais sólido que apenas a simplicidade e uniformidade de sua própria teoria.
Por outro lado, Stanley (2000) ofereceu um argumento inspirado
em um fenômeno sintático originalmente apresentado por Barbara
Partee (1989) para o reconhecimento de variáveis ocultas na estrutura profunda de (1), conhecido como Binding Argument (por apelar a
aspectos relacionados à ligação de uma variável por um operador). O
argumento é, em linhas gerais, o seguinte: suponha que tomemos (1)
precedida de uma expressão quantificacional tal como em
(4) Toda vez que Maria acende um cigarro, está chovendo.
A interpretação intuitiva de (4) é que cada vez que Maria acende
um cigarro está chovendo no local onde ela acende um cigarro. Isto é,
as condições de verdade de (1) quando embutida em (4) mudam de
acordo com os valores da variável da expressão quantificacional introduzida com ‘toda vez que Maria acende um cigarro’ (ou melhor, com
localidades associadas aos eventos de ela acendendo um cigarro). Em
outras palavras, o operador que precede (1) em (4) liga a expressão
que o segue. (Supostamente, se não houvesse uma ligação, (1) deveria
ignorar o operador e ter suas condições de verdade inalteradas pelos
valores do mesmo.) Mas aqui apelamos apenas a um fato básico
sobre o fenómeno da ligação: um operador apenas pode ligar uma
expressão se a mesma contiver alguma variável do tipo apropriado
para este operador. Portanto, ainda que não visível, uma variável
apropriada deve estar em (1) em algum “lugar” em sua estrutura
lógica, e a presença da mesma é revelada pela presença do operador.
Mas se isto é assim, então a hipótese de um constituinte inarticulado
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na proposição expressa por (1) é falsa, pois há uma variável oculta na
mesma responsável por assumir uma localidade como valor.
Constituintes inarticulados: mandatórios ou opcionais?
Conforme vimos, para Perry a presença de uma localidade é obrigatória na proposição expressada por (1), dado que sem esta o conteúdo
não seria verdadeiro nem falso (i.e., não pode ser verdadeiro ou falso
que esteja chovendo simplesmente, mas sim que está chovendo em
uma localidade). Trata-se de um fato metafísico sobre a chuva que ela
ocorre sempre em uma localidade, não existindo chuva não-localizada.
Ao contrário de Perry, Recanati (2002) e Taylor (2000) têm uma apreciação bastante diferente: constituintes genuinamente inarticulados
não podem ter presença obrigatória na proposição correspondente a
um proferimento, mas sim apenas opcional. Taylor defende esta tese
com base na seguinte consideração: se algum elemento (e.g., a localidade) tem uma presença obrigatória na proposição então é porque
esta presença é de alguma maneira requerida gramaticalmente pelas
expressões presentes no proferimento. Portanto, não se trata de um
elemento inarticulado propriamente dito. Um constituinte inarticulado não pode ser requerido pela gramática das palavras usadas; ele
tem que entrar na proposição, por assim dizer, sem ser “convidado”
por nenhum termo usado no proferimento, de tal forma que sua
ausência não faria diferença com relação a transformar uma não-proposição numa proposição. Como explicar então que uma localidade
não seja um elemento requerido e sim opcional na proposição
expressada por (1)? Recanati (2002) apresenta o seguinte exemplo
(fictício, mas possível, o que basta para estabelecer o seu ponto) onde
a localidade não é requerida: imaginemos uma situação em que a
chuva se tornou extremamente rara sobre toda a superfície terrestre,
e que vários detectores foram instalados sobre a mesma para registrar
chuva caso ela venha a ocorrer. Imaginemos ainda que um dia soa o
alarme na sala onde é feito o monitoramento de todos os detectores
simultaneamente, indicando que em algum deles foi registrada chuva.
Imaginemos por fim que alguém, ao escutar o alarme (e sem saber
em qual detector o registro ocorreu) profere (1), querendo indicar
simplesmente que em algum lugar está chovendo. Nesta situação
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aquilo que foi expressado é verdadeiro, sem a necessidade de uma
localidade para a constituição de um conteúdo proposicional. De
acordo com Recanati, o valor semântico de ‘chove’ pode ser visto
originalmente como uma relação binária Rxy entre localidades e
instantes temporais (sendo verdadeira dos pares x, y se e somente
se chove no instante x na localidade y). No exemplo acima, o que
houve foi uma redução, por meio de um quantificador existencial, da
relação binária a uma propriedade monádica de instantes temporais
dada por ∃y Rxy.
Funções variádicas
Recanati (2002) procura mostrar que o Binding Argument de Stanley
não é conclusivo. Como vimos, este argumento é baseado na evidência
sintática da anteposição de operadores a sentenças do tipo daquela
proferida em (1), e da constatação de que os mesmos parecem interferir nas condições de verdade da sentença embutida. E isto apenas
seria explicável se houvesse, no valor semântico da expressão embutida, uma variável livre (explícita ou oculta) que pudesse ser liada pelo
operador. A objeção de Recanati é que esta não é a única explicação
possível (e, de acordo com ele, nem a mais plausível) da ligação entre
o operador e a expressão embutida. A sua explicação alternativa é
que a colocação do operador por si só pode alterar o valor semântico
da expressão embutida, aumentando (ou diminuindo, dependendo
do caso) a aridade da relação principal que originalmente é o valor
semântico (integral ou parcial) da expressão não-embutida. Assim,
‘está chovendo’ em (1) poderia expressar uma propriedade monádica de instantes temporais. Mas ao adicionar o quantificador ‘toda
vez que Maria acende um cigarro’ como em (4), o efeito disso seria
transformar esta propriedade unária em uma relação binária entre
instantes e localidades. Ou, de maneira mais precisa, a contribuição
semântica de ‘toda vez que Maria acende um cigarro’ seria uma função
que transformaria propriedades unárias (como chove no instante t) em
relações binárias (como chove no instante t na localidade l).
Recanati chama o valor semântico de operadores como ‘toda vez
que Maria acende um cigarrro’ de funções variádicas. Uma função
variádica é uma função de relações em relações, de tal forma que a
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aridade da relação-valor é maior ou menor que a aridade da relação-argumento. (I.e., uma função variádica altera a aridade da relação
original.) Outro exemplo seria o seguinte: considere um uso intransitivo do verbo ‘comer’ como em
(5) Pedro come.
A interpretação intuitiva de (5) é que Pedro come algo, sem especificar o quê. (Por exemplo, (5) pode estar sendo usada para relatar
seu estado de saúde numa situação em que apenas seria relevante
saber se ele se alimenta ou não.) Em outras palavras, supondo que
comer é uma relação binária entre sujeitos e comidas específicas,
(5) teria implícita um quantificador existencial ligando a variável
para comidas, resultando assim na atribuição de uma propriedade
monádica a Pedro (a saber, a de comer alguma coisa). Mas em
(6) Pedro come em Madrid.
temos a afirmação de que uma relação binária existe entre Pedro e
Madrid, a saber, a relação x come algo na localidade y. O adjunto ‘em
Madrid’ é opcional, e não mandatório (uma vez que sua presença não
é requerida para que a sentença seja sintaticamente completa e expresse uma proposição) e tem como significado uma função variádica
que transforma a propriedade monádica x come algo na relação binária
x come algo na localidade y.
A linha de defesa de Recanati face ao ataque de Stanley à tese
dos constituintes inarticulados através do Binding Argument é que este
não exclui a possibilidade de que os operadores que supostamente
revelam a variável livre escondida contribuem, eles mesmos, para a
“implantação” da variável, modificando assim a forma lógica da expressão original não-embutida (que não conteria a variável livre). Em
outras palavras, o argumento de Stanley conteria uma falácia, que é a
assunção de que a forma lógica da expressão não-embutida (e.g., (1))
é a mesma que a da expressão quando embutida (e.g., (4)).
Embora tenha chamado a atenção para um pressuposto importante do argumento de Stanley, a proposta alternativa de Recanati parece
estar baseada em algo contra-intuitivo. Ela implicaria, por exemplo,
que a palavra ‘chove’ não significa o mesmo em (1) e em
(7) Está chovendo torrencialmente.
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Marco Ruffino
Em (1), ‘está chovendo’ tem como significado uma relação binária
entre instantes temporais e localidades (ou, eventualmente, uma propriedade de instantes temporais, como no exemplo dos detectores de
chuva). Mas em (7) o advérbio ‘torrencialmente’, sendo uma função
variádica, transforma a relação binária (ou propriedade monádica)
em uma relação ternária entre instantes, localidades e modos (ou intensidades) de chuva (ou binária entre instantes e modos (ou intensidades)). Mas não parece existir uma boa razão para se pensar que o
significado de ‘está chovendo’ mude de (1) para (7).
A multiplicação de variáveis ocultas
Como vimos a estratégia usada por Stanley (Binding Argument) para
postular uma variável responsável por assumir como valor semântico aquilo que aparenta ser um constituinte inarticulado explora
a evidência sintática da interação entre um operador (em geral um
quantificador) e a expressão original (onde a variável não aparece)
no escopo do qual aquela foi embutida. No entanto esta estratégia
enfrenta uma séria dificuldade apontada por Cappelen e Lepore
(2007): se ela for tomada como indicador seguro da presença de variáveis ocultas na forma lógica, teríamos que admitir a existência de um
sem-número de outras variáveis, que intuitivamente nada teriam que
ver com a expressão original. Por exemplo, (1) poderia ser embutida
nas seguintes sentenças:
(8) De todos os modos possíveis está chovendo.
(9) Qualquer que seja o time que esteja jogando, está chovendo.
(8) evidenciaria, seguindo o raciocínio do Binding Argument, a
presença de uma variável livre para o modo da chuva (torrencial,
leve, com ventos, etc.), enquanto (9) evidenciaria a presença de uma
variável para times de futebol na forma lógica de (1). Mesmo casos
paradigmáticos de sentenças eternas (i.e., onde não há variáveis para
locais nem instantes temporais) teriam que ser consideradas como
contendo variáveis ocultas. Por exemplo, suponha que Maria mude
constantemente de escola, e em cada uma delas recebe aulas de aritmética que repetem a mesma verdade básica do resultado da soma de
2 e 2. Poderíamos relatar isso da seguinte forma:
Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica
Constituintes Proposicionais Inarticulados
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(10) Em toda escola em que Maria estuda, 2+2=4.
ou
(11) Toda vez que Maria faz suas tarefas, 2+2=4.
Mas aqui parece, intuitivamente, estar havendo uma interação entre
os quantificadores em (10) e (11) e a sentença embutida. O raciocínio
empregado no Binding Argument aqui aplicado teria a consequência
implausível de que ‘2+2=4’ tem uma variável locacional (evidenciada por (8) e temporal (evidenciada por (9)).
Marco Ruffino
UNICAMP/CNPq, Brasil
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