SIMONE LUCI PEREIRA
ESCUTAS DA MEMÓRIA:
os ouvintes das canções da Bossa Nova
(Rio de Janeiro, décadas de 1950 e 1960)
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
PUC - São Paulo
2004
1
SIMONE LUCI PEREIRA
ESCUTAS DA MEMÓRIA:
os ouvintes das canções da Bossa Nova
(Rio de Janeiro, décadas de 1950 e 1960)
Tese apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, como exigência parcial
para obtenção do título de Doutora
em Ciências Sociais sob orientação
da Profª. Dr.ª Silvia Helena Simões Borelli.
CIÊNCIAS SOCIAIS
PUC - São Paulo
2004
2
TD
300
P
Pereira, Simone Luci
Escutas da memória: os ouvintes das canções da Bossa Nova
(Rio de Janeiro, décadas de 1950 e 1960). São Paulo: s.n. , 2004.
393 f. ; 30 cm.
Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo
Área de concentração: Antropologia
Orientadora : Profª. Drª. Silvia Helena Simões Borelli
1. Música popular brasileira. 2. Bossa nova.
3. Memória. 4. Escuta.
3
COMISSÃO JULGADORA
______________________________________
______________________________________
______________________________________
______________________________________
______________________________________
4
RESUMO
Esta tese tem como tema central as memórias de escutas dos ouvintes das canções da Bossa Nova
no Rio de Janeiro, nas décadas de 1950 e 1960. O objetivo é interpretar as experiências de escuta
naquele momento histórico e as formas pelas quais elas são guardadas na memória e reverberam
no presente. Para isso, busca-se compreender a formação histórica da Bossa Nova, suas origens
musicais, sociais e culturais e a estruturação de um campo musical popular. Procura-se também
documentar o cotidiano da época, o que é feito a partir da interpretação da imprensa, das
memórias dos bossanovistas e dos ouvintes, das canções e de uma sondagem acerca do campo
musical naquele período. Ao colocar em contato estas várias linguagens que discursam sobre o
passado, estrutura-se a metodologia da pesquisa que se vale da trama complexa entre estes
variados discursos, mas que tem como fio condutor as memórias dos ouvintes analisados,
ressaltando, em suas experiências, aspectos como a escuta e o olhar na sociedade midiática, a
cidade, a juventude e as noções de gênero – masculino e feminino – em jogo naquele momento.
Todas estas são questões que estavam presentes na época analisada e que já apontavam o devir de
uma sociedade em que estes elementos assumiriam posição de destaque. Nesse sentido, a escuta
da Bossa Nova é apenas uma porta de entrada para interpretar questões mais amplas do cotidiano
vivido. É intenção do trabalho captar experiências do passado que engendraram algumas das
formas atuais de escuta musical e que guardam intensas relações com o ambiente sonoro daquele
momento. Fazendo isto, interpreta-se também a escuta do mundo e da vida.
5
ABSTRACT
This thesis has as central subject the listening memories of the Bossa Nova listeners in Rio de
Janeiro in 1950's and 1960's. The objective is to interpret listening experiences from that
historical moment and the way they are kept in the memory and reverberate in the present time.
For this, it is important to understand Bossa Nova historical background, its musical, social and
cultural origins and the popular musical field estruturation. It also aims to register the everyday
life of that time, which is done through the interpretation of the news, the memories of the
composers and the listeners, the songs and a analyses of the musical field in that time. The
research methodology is based on the confrontation of these different approaches about the past,
which consists of a complex weave of these varied speeches that has as conducting wire of the
memories of the analyzed listeners, pointing out their experiences, aspects about the listening and
the look in the media society, the city, the youth and the slight knowledge of gender of that
moment. All these questions asked at the analyzed time and pointed the future of a society where
these elements would assume prominence position. Therefore, the listening of Bossa Nova is only
one key to interpret ampler questions of the everyday life. The intention of this work is select
experiences of the past that had produced some of the current forms of musical listening and that
keep intense relationships with the sonorous environment of that moment, thus, it also interprets
the listening of the world and life.
6
Para meus pais,
Pelas memórias primeiras, originárias.
Pelo aprendizado da escuta, sempre afetiva.
Enfim, por tudo, sempre.
7
SUMÁRIO
Apresentação.....................................................................................12
PARTE I – PERCURSOS................................................................30
Cap. 1. Em busca das origens..........................................................31
PARTE II – ESCUTAS DA MEMÓRIA.......................................130
Cap. 2. A trama da memória...........................................................131
Cap. 3. Ecos da Bossa Nova.............................................................158
3.1. Entre escutas e olhares......................................................159
3.2. A cidade............................................................................208
3.3. Juventude..........................................................................267
3.4. Homens e mulheres...........................................................332
Considerações finais.........................................................................393
Bibliografia.......................................................................................398
8
Agradecimentos
Este é o espaço para agradecer as instituições e pessoas que ajudaram para que a pesquisa
pudesse ser realizada. Momento importante e prazeroso de citar os que estiveram envolvidos em
todo este processo, colaborando, convivendo comigo ou me inspirando.
Agradeço à Profª Drª Silvia Helena Simões Borelli – a Silvinha - por ter aceitado me
orientar nesta difícil empreitada de pesquisar os ouvintes da Bossa Nova, e pela confiança
depositada em mim desde o começo. Pela capacidade agregadora, produtora de diálogos,
convívios e debates fecundos. Pela sua sabedoria, acuidade teórica e metodológica, aliada a uma
extrema sensibilidade. Pelo diálogo sincero e aberto desde o início de nossa convivência.
Os diálogos com inúmeros colegas também foram essenciais nesta pesquisa. Agradeço
especialmente aos colegas do “nosso grupo”: Fina, Marli, Bernardete, Gislene, Rita, Rose,
Ronízia, Yara, Carlos, Edmilson, Luis, Laudenir, Marcelo, Marcão, Marquinhos, pelas valiosas e
profundas discussões e trocas. Ao Marcelo, agradeço o empenho para que meu projeto se
efetivasse em uma tese. À Marli, agradeço ainda a amizade e o companheirismo em tantos
momentos, e a revisão precisa deste trabalho. À Fina, sou grata também pela amizade sincera e
estimulante em todos estes anos e pela leitura atenta de muitos trechos desta tese.
Outros amigos ainda merecem destaque, pela importância de suas presenças em minha
vida - cada um ao seu modo, mas sempre fundamentais: Ia, Josimey, Conceição, Armando e
Fernando.
Agradeço a colaboração das integrantes da banca em meu Exame de Qualificação – Profª
Dra. Teresinha Bernardo e Profª Dra. Heloisa de Araújo Duarte Valente – pela leitura atenciosa
do trabalho, as sugestões, comentários e contribuições. À Heloisa, agradeço ainda a presença e os
diálogos constantes, férteis e belos sobre a canção e os “zumthorismos”.
Aos colegas do Núcleo de Estudos de Música e Mídia (MUSIMID) da UNISANTOS –
Heloísa, Herom, Silvia e Theo – que nos últimos tempos inspiraram muitas das discussões
realizadas neste trabalho.
À FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), pela bolsa de
estudos concedida, sem a qual a realização deste trabalho seria impossível.
Ressalto ainda a colaboração e presteza de algumas pessoas, no Rio de Janeiro, ao me
indicarem os “ouvintes da Bossa Nova”: Isabel Travancas, Patrícia Farias, Glória Leal, Pina Coco
9
e Santuza Cambraia Naves. À Isabel e Patrícia, agradeço ainda a amizade e a companhia sempre
agradável no Rio e em outros lugares, bem como alguns comentários pontuais para a reflexão que
se elaborava.
Aos meus pais, pelo incondicional apoio e incentivo, pela presença contínua e por me
colocarem em contato com a música ainda criança. Agradeço pelas memórias narradas e pela
escuta estimulada. Pela compreensão e carinho, ao atentarem para as minhas alegrias, angústias,
descobertas. Sem vocês, tenho certeza de que tudo seria mais difícil e menos motivante. Por isso,
um muito obrigada sempre será pouco.
Aos meus avós, que inspiraram o olhar para trás em busca de escutas passadas. Ao
Mateus e ao Gustavo, pela esperança de reencontros possíveis, de vidas compartilhadas, de
escutas futuras.
À Lara, pelo companheirismo e escuta sempre atenta.
Ao Guilherme que, com sua arte própria, ensinou-me muitas coisas. Obrigada pela
paciência, carinho e companheirismo nestes últimos dois anos, que tramamos e trilhamos juntos.
Por fim, agradeço aos homens e mulheres que me concederam mais que depoimentos –
matéria-prima principal desta tese –, colocando-me em contato com suas memórias, experiências
em um tempo/espaço que sempre me fora fascinante, fazendo-me entrar em contato, a todo
instante, com minhas próprias lembranças e afetividades. Reconstruindo tempos, durações, vidas,
alegrias, tristezas, suas narrativas me soaram como constelações de vida, estilhaços de
experiências que iam, pouco a pouco, sendo costuradas, tramadas, reconstruindo a história. Sou
grata pelos ensinamentos daí tirados e pela atenção, disponibilidade, interesse e gentileza que a
mim ofertaram.
A todas estas pessoas citadas – e também a algumas não citadas, mas que estão nas
entrelinhas de todo o percurso – agradeço e reconheço a participação que tiveram no processo de
composição desta tese.
10
“A veneranda Circe disse-me, então, estas palavras:
- Foi, portanto, assim que se realizou essa viagem. Agora escuta o que te vou dizer e que um
deus há de recordar-te, um dia. Encontrarás, primeiro, as Sereias, que encantam a todos os
homens que se aproximam delas. Aquele que, sem saber, for ao seu encontro e lhes ouvir a voz,
esse não voltará à casa, nem a mulher e os inocentes filhos o rodearão, alegres; mas será
encantado pelo seu canto sonoro. Elas estão assentadas num prado, junto de um grande monte
de ossos de homens em putrefação, cujas carnes vão desaparecendo. Passa de lado e tapa os
ouvidos dos teus companheiros com cera amolecida, para que nenhum deles as ouça. Tu ouveas, se quiseres, depois de te prenderem os pés e as mãos, ereto, junto ao mastro, e de teres sido
ligado com cordas a ele, para que te possas deleitar com a voz das Sereias. Se, porém, pedires e
ordenares aos companheiros que te soltem, prendam-te, então, com mais ligaduras ainda. Em
seguida, quando tiverem passado além das Sereias, não te direi com precisão qual das duas
rotas deverás seguir; cabe a ti decidir em teu coração.”
Odisséia, de Homero.
11
Apresentação
“Você, que celebra o passado
Que já explorou o exterior, as faces das raças, a vida que se desvelou,
Que tratou do homem enquanto ser político, agregado, soberano e clero,
Eu, habitante da serra das Alleghanies, concebo o
homem em estado puro, com esses direitos,
Tomo o pulso da vida que quase nunca se mostrou
(o grande orgulho que o homem traz em si).
Cantor da personalidade, vislumbrando o que virá,
Eu projeto a história do futuro.”
A um historiador, Walt Whitman
Apresentar uma tese é sempre uma tarefa difícil, principalmente, se for considerado o fato
de que a escrita e o texto jamais conseguem dar conta da riqueza e da intensidade de
experiências, sentimentos e inquietações que uma pesquisa provoca durante todo o seu percurso.
Mas, iniciando por seu título, é importante ressaltar que refere-se à escuta e não à audição.
Isso significa que o objeto de reflexão é – para além do puro ato fisiológico que é a audição – a
forma como os sons são recebidos pelos órgãos sensoriais. O que se busca é uma escuta geradora
de sentidos. Escuta da memória, referente àquilo que foi guardado na trama de lembrança e de
esquecimento dos ouvintes, compondo uma experiência vivida nos anos 50 e 60, mas que se
refere também à pesquisadora diante destes ouvintes, constituindo um trabalho feito neste jogo
duplo, fundindo experiências e memórias dos ouvintes e da autora, diálogo nem sempre fácil ou
harmonioso, mas certamente rico e encantador. Memórias que partem de uma música sentida e
tocada no piano desde a infância nos anos 70 e 80, um tempo em que o objeto temporal desta tese
já havia passado, e as lembranças destes ouvintes já se encontravam em constituição. E, no
momento da feitura desta tese, estas várias temporalidades entraram em diálogo e até em
confronto, proporcionando esta narrativa que se segue.
Procurando a escuta da Bossa Nova dessas duas décadas, o que se encontra é a dos
tempos atuais, já que o fio condutor desta descoberta são as memórias dos ouvintes. Memórias
que partem de hoje, apontando trajetos, bifurcações e elementos a serem destacados ou
esquecidos nesta narrativa. Impossível esquecer que as lembranças estão relacionadas com a
escuta e com o que se pensa sobre a Bossa Nova hoje: uma música edificada no tempo como
representação do melhor ou de um dos melhores momentos da história do país; uma tradição
evocada a todo momento como signo de distinção e de bom gosto, influência principal entre
vários artistas da música brasileira atual.
12
Além disso, diante do trabalho de Maria Rita Mariano, considerada a grande revelação da
música brasileira contemporânea, com shows lotados e mais de 350 mil CDs vendido em apenas
três meses – num mercado cada vez mais invadido pela pirataria -, o que se coloca não é tanto a
qualidade de sua obra, mas a possibilidade de ela vir a ser uma substituta à altura do talento de
sua mãe, a cantora Elis Regina. O que chama a atenção, no meio de tudo isso, é a procura da
crítica e também do público em evocar este passado glorioso, guardando-o em forma de um som,
um timbre, uma imagem, um rosto, uma “performance”1. A busca pela conservação do passado
põe em evidência um certo sentimento de que nada mais pôde existir de tão bom e de que
estando todos órfãos e destituídos de uma música de qualidade – na verdade, destituídos de um
tempo que não existe mais – é necessária a figura redentora desta moça, reencarnação de todo
este passado que se deseja perpetuar.
::: ::: :::
Esta tese, como qualquer trabalho, possui uma história repleta de continuidades e
descontinuidades, inquietações que geraram novas problematizações, e de subjetividades que
mapearam e teceram os contornos da reflexão que ora se apresenta. É um pouco deste caminho
que será narrado neste momento.
Logo após o término e defesa de minha Dissertação de Mestrado no Programa de Estudos
Pós-Graduados em História na PUC/SP, em Março de 1998, algumas questões me empurravam
intensa e incessantemente para uma reflexão acerca de meu objeto de estudo. Já naquele
momento, estudara a Bossa Nova, analisando-a a partir do urbano, de modo a perceber, por meio
das músicas, a dinâmica de um Rio de Janeiro em transformação – nas maneiras de se ver a
cidade, nas novas formas de se ver o mundo, de agir, de sentir, de se morar, e na ocupação
sistemática de novos espaços urbanos, como a praia e os bairros de Copacabana e de Ipanema.
O problema central da dissertação era uma cidade em transformação e um movimento
musical que trazia em si pistas de uma mudança comportamental em conformação com as
mudanças deste meio urbano. Considerando estas duas instâncias fortemente atreladas, entendiase, a partir da noção de circularidade cultural, que a música capta elementos do cotidiano e
recoloca-os no social, influenciando formas de ser, de viver e de olhar a cidade, numa tentativa de
rastrear a experiência urbana dos sujeitos no seu meio urbano.
1
Este é um conceito desenvolvido por Paul Zumthor e será melhor trabalhado e explicitado mais à frente.
13
Após finalizar este trabalho, a Bossa Nova continuava sendo objeto de indagações. O
tema não havia se esgotado, pelo contrário, suscitava sempre novos problemas. Foi assim que se
iniciou um questionamento sobre seus ouvintes, pois, se ela era o movimento e o estilo musical
brasileiro instituído como marco histórico, referência na música popular brasileira posterior, me
inquietava compreender a sua recepção à época de sua existência como movimento nos anos 50
e 60.
A crítica musical e mesmo o campo acadêmico já haviam realizado muitos estudos sobre
a Bossa Nova, mas nada existia sobre os sujeitos comuns, jovens que ouviam rádio, compravam
discos, frequentavam os shows universitários da Bossa Nova, enfim, nada havia sobre os que
dialogavam com estes sons em seu cotidiano, um cotidiano permeado também por outras formas
de consumo cultural. O que começava a me interessar era a busca de uma experiência de escuta
naquele momento histórico.
De alguma forma, as continuidades e descontinuidades constitutivas da trajetória até aqui
traçada estão também presentes na narração do que aconteceu durante este percurso. Em outras
palavras, se até aqui falei de uma forma pretensamente linear sobre minha reflexão, inverterei
este ordenamento para apresentar agora, o problema, o objetivo central da tese. Em seguida,
como num trabalho de rememoração de minha própria trajetória, continuarei minha narrativa.
::: ::: :::
Esta tese tem como objetivo captar as experiências de escuta das canções da Bossa Nova
no Rio de Janeiro, nos anos 50 e 60, por meio da interpretação das memórias atuais de seus
ouvintes. Procuro compreender sua formação histórica, buscando suas origens musicais, sociais e
culturais na história – sua tradição – e a estruturação de um campo musical popular. Para tanto,
foi preciso também documentar a recepção através do cotidiano desta cidade. Isso foi feito a
partir da interpretação da imprensa da época, das memórias dos bossanovistas e dos ouvintes, das
canções da Bossa Nova e de uma sondagem acerca do campo musical naquele período. Este
último aspecto levou a uma análise sobre a história, a formação e desenvolvimento das mídias
sonoras no Brasil como o rádio e a indústria fonográfica.
A busca pela compreensão desta escuta, que é ativa na atribuição de significados, permite
um entendimento dos papéis sociais e históricos desempenhados por estes sujeitos ouvintes das
décadas de 50 e 60. O que se quer interpretar é a especificidade da escuta de uma parcela da
sociedade carioca de um determinado período, imbuída de tradições orais, escritas e imagéticas.
14
Com isso, pretende-se apreender a historicidade deste estilo musical, por meio da relação entre
produção e consumo, dando, inclusive, significação histórica para a sua técnica, que inclui o
cantar em baixo volume, um jeito intimista de se apresentar nos shows, os acordes dissonantes, a
batida rítmica inovadora. Será, enfim, atribuída uma significação para essa performance2.
Interpreta-se experiências de escuta que ajudaram a constituir o material que temos até
hoje e que foi forjado no desenvolvimento e na estruturação do campo musical, da indústria
fonográfica e do status que passa a ter a sigla MPB como sinônimo de algo associado à idéia do
nacionalismo popular, como um ato de engajamento e de resistência política; uma música ligada
à juventude, estando ao mesmo tempo relacionada com o desenvolvimento paulatino da indústria
fonográfica e com a adequação a um mercado de bens simbólicos3, num movimento dinâmico de
contenções e resistências. A intenção do trabalho é captar experiências de escuta musical que nos
engendraram e que guardam intensas relações com a paisagem sonora4 daquele momento: seus
sons, seus ruídos, seu ambiente sonoro.
::: ::: :::
Como pensar a escuta, algo tão abstrato e fugidio? Num momento de viabilização de uma
história da leitura5, seria possível pensar em uma história da escuta? Como compreender uma
escuta num espaço e num tempo específicos: o Rio de Janeiro das décadas de 50 e 60? O passado,
segundo David Lowenthal é uma “terra estrangeira”6 a ser interpretada a partir de uma
perspectiva crítica do presente. Exatamente por isto nunca pode ser alcançado em sua totalidade,
ou tal como foi. Resta o modo fragmentário, parcial, tecido pela narrativa do pesquisador. A
questão é: como recuperar a escuta num tempo que já passou? Nos anos 50, a Bossa Nova era um
estilo musical em formação, época em que a sociedade carioca parecia estar entre a oralidade, o
texto e o visor, isto é, uma sociedade prestes a se tornar uma cultura hegemonicamente visual.
Embora isto só se configure no final da década de 60 e início dos anos 70, com o advento e
popularização da televisão no Brasil – momento a partir do qual se pode falar efetivamente em
2
Interpreta-se para além das letras das canções, a linguagem musical (harmonia, melodia, ritmo, arranjos, timbres) e
o estilo de interpretação dos cantores e instrumentistas. No entanto, não se detém numa análise das partituras
musicais ou do conteúdo lingüístico, semântico ou discursivo das letras, mas centra-se na performance do artista, a
qual une a sua gestualidade vocal e corporal e a recepção do ouvinte.
3
Renato ORTIZ, A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural.
4
Conceito formulado pelo músico canadense Murray Schafer, o qual será também trabalhado mais adiante.
5
Cf: Roger CHARTIER (Org.), Práticas da leitura; Michel SCHENEIDER, Ladrões de palavras: ensaio sobre o
plágio, a psicanálise e o pensamento; Robert SCHOLES, Protocolos de leitura; Alberto MANGUEL, Uma história
da leitura, entre outros.
6
David LOWENTHAL, The past is a foreing country.
15
cultura de massas no país –, a década de 50 parece apontar para esta questão da imagem como
linguagem que tinha a pretensão de traduzir de maneira infalível os desejos e ambições daquela
sociedade7. Isto fica claro já na imprensa e na publicidade da época, o que leva a outro problema:
como pensar a escuta, num meio social que lança as bases de uma sociedade de consumo pautada
na imagem? É preciso lembrar que as formas de produção e de consumo musical neste período –
rádio, vendagem de discos, estrutura das apresentações musicais ou shows – ainda não tinham
uma plena configuração de indústria cultural8. Refletindo sobre o passado à luz do presente, é
importante confrontar estes elementos de produção/consumo musical nas décadas de 50 e 60 com
a atualidade. Tomando a audição hoje: em 1997, por exemplo, foram vendidos no Brasil 107
milhões de CDs, fitas cassetes e LPs. O país, naquele ano, foi o sexto colocado no mundo em
vendas, e primeiro colocado entre países do Terceiro Mundo9. Claro que aqui devem ser
consideradas as mudanças na indústria do entretenimento, com leis de incentivo à área do
audiovisual, bem como a estrutura de vendas de CDs no Brasil, pois até meados da década
anterior (1980) quem queria comprar um disco ou fita ia até uma loja especializada em música.
Na década de 1990, grande parte dos consumidores passou a comprar seus CDs em lojas de
departamento, que passaram a ser responsáveis por 42% da venda de CDs no país.
No entanto, é necessário registrar uma queda gradativa nos gastos com recreação e cultura
no Brasil desde 1997. Em relação à venda de CDs (segundo dados da Associação Brasileira dos
Produtores de Discos – ABPD), houve um aumento palpável de consumo, porém, um terço das
cópias vendidas em 2001 já eram piratas, ao custo de R$ 3 contra os até R$ 30 praticados pela
indústria oficial. Numa primeira etapa, o boom de consumo de CDs iniciado no governo Collor se
ampliou nos anos FHC, pulando das 44,2 milhões de unidades de 1994 para 107,9 milhões de
unidades em 1997. Naquele mesmo ano, no entanto, a indústria fonográfica começou a conviver
com a pirataria, que aparecia, então, com 3 milhões de cópias vendidas. Em 2001, a estimativa de
CDs pirateados havia pulado para 40 milhões. Oscilando inversamente, a fatia oficial caiu e
atingiu em 2001 seu pior resultado desde 1995. Foram 80 milhões no ano de 2002, contra 75
milhões de CDs oficiais e nada de pirataria no primeiro ano do governo FHC. Isto significa que o
consumo de CDs cresceu, mas em grande parte motivado por uma transferência do mercado
7
Alexandre Pianelli GODOY, Imagens veladas: a sociedade carioca entre o texto e o visor (1952-1957). São Paulo,
2000. Dissertação (Mestrado em História) - PUC/SP.
8
Renato ORTIZ, A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural.
9
A cultura de massas emergente. Folha de São Paulo. São Paulo, 12/04/98. Caderno Mais! p.1-9.
16
oficial para o mercado promovido pelo crime organizado.10 O Brasil está entre os dez países em
que este problema é mais grave, sendo que a indústria fonográfica passa por uma séria crise com
mais de três anos consecutivos de quedas nas vendas.11
No entanto, embora todos estes dados sejam pertinentes e importantes, não são auto
explicativos. Lembrando Adorno, as análises do consumo musical baseadas em contagem ou
mensuração não vão muito longe uma vez que, segundo ele, esta exatidão de métodos
quantitativos do comportamento social ou de registro de estímulos sensoriais viram “fetiche” e
buscam compensar “a irrelevância do que permitem descobrir”12. Assim, esses métodos
quantitativos devem ser confrontados com o significado da música escutada, estudando as
condições sociais de tal efeito.
Diante dessa discussão, não é demais ressaltar a relevância de estudos como os de Pierre
Bourdieu que se voltam para a produção cultural, para os agentes envolvidos e para o “campo”13
no qual estão inseridos. Mas, assim como na relação inseparável entre leitura/escritura, o receptor
das obras merece também destaque e análise, uma vez que é na recepção que se dá a atribuição de
sentidos à obra. A leitura é sempre produção de sentidos, num jogo polissêmico que não
necessariamente coincide com o desejado pelo autor14. Pensando a leitura num sentido mais
amplo – não só na de textos escritos, mas na leitura de textualidades diversas e entre elas, a
música – se compreende a importância da recepção, tanto por ser um dos termos essenciais do
processo de troca, como também por ser o local onde é possível a atribuição de outros sentidos
às obras, deixando de ser considerada apenas como um locus de mera reprodução.
Muitas vezes a ação dos meios de comunicação de massa (rádio, TV, indústria
fonográfica) aparece associada a idéia de manipulação dos indivíduos, uma vez que a cultura de
massas, imbuída da ideologia da sociedade burguesa, acaba por promover um “mascaramento
intrínseco do real”. A “indústria cultural”, termo utilizado por Adorno e Horkheimer seria assim,
algo que vende valores falsos e expropria o espectador de sua consciência crítica, levando-o ao
10
Ivan FINOTTI e Alexandre SANCHES, Brasileiro gasta menos com cultura. Folha de São Paulo, 25/10/2002.
Caderno Brasil.
11
Segundo dados da Federação Internacional da Indústria Fonográfica, mais de um bilhão de CDs piratas foram
vendidos no ano de 2002, em todo o mundo, gerando uma renda de US$ 4,6 bilhões. Na China, por exemplo, 90%
das vendas são de CDs piratas. Mais de 1 bilhão de CDs piratas foram vendidos em 2002. Folha de São Paulo,
10/07/2003. Caderno Ilustrada.
12
Theodor W. ADORNO, Idéias para a sociologia da música. In: COHN, Gabriel (Org.). Theodor Adorn.o, p.74.
13
Pierre BOURDIEU, As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário; ORTIZ, Renato (Org.), Pierre
Bourdieu.
14
Jean M. GOULEMOT, Da leitura como produção de sentidos. In: CHARTIER, Roger (Org). Práticas da leitura.
17
conformismo e a alienação15. Umberto Eco, contrapondo-se ao dito pelos expoentes da Escola de
Frankfourt, afirma que os consumidores dos produtos da indústria cultural não são apenas
passivos, mas podem desenvolver uma posição crítica, agindo também ativamente16. No entanto,
esta “resistência” não nasce das próprias massas, o que faz com que esta análise ainda recaia,
como lembra Marta Avancini, no mesmo problema metodológico adorniano, que seria o de
compreender a cultura de massas a partir de sentidos unívocos e fundados a priori17. Edgar Morin
relativiza uma leitura restrita da cultura de massas, sem entendê-la em sua negatividade e
malignidade intrínseca, colocando também que os produtos da indústria cultural não se opõem à
vida cotidiana e nem a massacram. Considerando a canção algo integrado à vida das pessoas,
sendo consumida por todos, em todo lugar, a todo instante, como o mais cotidiano dos objetos
de consumo18, Morin não a vê como instrumento de dominação.
Ao se colocar o que foi historicamente experimentado como instância indissociável de
suas representações, num processo de influência mútua, estas representações não podem se
configurar como imagens etéreas, pairando sobre o social, sem vínculos com a realidade que este
abriga. A música (como outras formas artísticas) se mostra como uma linguagem específica, que
guarda elementos daquilo que “poderia ser”, do imaginário dos indivíduos em sociedade,
revelando-se como o espaço de liberdade, não podendo ser encarada como mero reflexo do real e
nem cerceada e limitada por regras pré-estabelecidas. Entretanto, algo deve ser mantido nestas
considerações: os sentidos dados às obras são historicamente datados, sendo assim temporais e
variando segundo estas temporalidades. Desta maneira, faz sentido a consideração de Adorno
sobre o perigo de trabalharmos apenas com amostragens do consumo musical. Para se interpretar
os sentidos dados à música, é necessário rastrear a sua recepção no tempo, tramada no presente.
Segundo uma visão hegemônica, a Música Popular Brasileira (MPB) ocupa um papel
muito importante na cultura brasileira, sendo que dentre as variadas linguagens, ela parece ter
uma certa função de “explicar” o Brasil. Enor Paiano comenta sobre a constituição de um ideário
15
Theodor ADORNO, A indústria cultural. In: Gabriel COHN (Org.). Theodor Adorno.
Umberto ECO, Apocalípticos e integrados.
17
Marta AVANCINI, Marlene e Emilinha nas ondas do rádio: padrões de vida e formas de sensibilidade no Brasil.
História e Perspectiva. n.3., 1990.
18
Edgar MORIN, Não se conhece a canção. In: Linguagem da cultura de massas : televisão e canção.
16
18
ligando o “povo” à música e, depois da década de 30, constituindo-se em “nação-música”,
articulada ao eixo nacional-popular19.
A presença da canção no cotidiano afirma a sua relevância como linguagem entre as artes
em geral, remetendo fundamentalmente ao ouvir e, mais ainda, ao estar na boca de todos. A
música é um dos elementos culturais pelos quais o Brasil é mais conhecido internacionalmente,
algo que parece singularizar a cultura nacional. Mas será que se pode assumir esta possível
“posição privilegiada” ou este rótulo de “país musical” em termos absolutos sem questionar suas
implicações? Esta característica, que essencializa a cultura brasileira como “país do Carnaval” ou
“país da Bossa Nova”, precisa ser desconstruída, pois faz da música representação de uma idéia
ou de um projeto de Estado-Nação, associando-a firmemente ao que se quer constituir como
“identidade brasileira”. Procurar trazer à luz as ambiguidades ocultas sob o manto do “Brasil
musical” permite interpretar as pluralidades e as diferenças que não se mostram quando se
trabalha com categorias fixas e com sujeitos universais.
As ciências humanas estão, cada vez mais, elaborando uma série de questionamentos às
metodologias vigentes no campo científico, criticando os parâmetros epistemológicos tradicionais
que sugerem explicações generalizantes e homogenizadoras, baseados na Razão universal
Iluminista. Esta outra postura tem originado novos caminhos de reflexão na contracorrente dos
grandes sistemas de explicações, debruçando-se sobre o estudo das diferenças, rupturas, fissuras e
possibilidades de novos modos de ser.20
A Bossa Nova, nos anos 50, estava se constituindo, começando a se mostrar, sendo
considerada pela imprensa, pela crítica musical e também pelo gosto musical mais geral como
algo estranho, por vezes de mau gosto, ou, num outro extremo, como excessivamente sofisticada.
No meio disso tudo e de tudo o que se dizia sobre ela, ainda não ocupava uma posição central na
cena artística e musical. Nos anos 60, embora estivesse mais consolidada como um estilo ligado à
juventude universitária foi, por muitas vezes, considerada elitizada, algo fechado para um grupo
específico, uma música alienada, fruto do imperialismo americano, por conter ainda elementos
musicais advindos do jazz.
19
Enor PAIANO, O Berimbau e o som universal: lutas culturais e indústria fonográfica nos anos 60. São Paulo,
1994. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, USP.
20
Maria Odila Leite DIAS, Hermenêutica do cotidiano na historiografia contemporânea, Projeto História, n.17,
pp.223-258; José Américo PESSANHA, Cultura como ruptura. In: Gerd BORNHEIM (Org.), Cultura Brasileira:
tradição e contradição.
19
Os festivais passaram, assim como as músicas de protesto e o movimento Tropicalista
com sua tentativa de elaborar uma releitura da cultura brasileira, procurando incorporar o
Modernismo, o Antropofagismo, a Poesia Concreta e a Bossa Nova, numa idéia de “linha
evolutiva”21. Nos anos 70, esta “bossa-nova” se solidifica e, com iniciais maiúsculas, acaba por
virar mito, monumento musical e cultural brasileiro, marco divisor de águas na Música Popular
Brasileira – esta também agora já usada com letras maiúsculas e instituída como um estilo
musical e um certo emblema da “brasilidade”. Após o Tropicalismo, a Bossa Nova é edificada na
memória histórica como um grande momento criativo brasileiro, passando a ser amplamente
cultuada.
Mas como encará-la neste início do século XXI? Como olhar para o passado com olhos
atuais? É preciso depurar este passado com os olhos do presente, à luz da história, tentando
desconstruir estas visões, desmontando as camadas de sentido acumuladas, buscando entendê-la
em suas significações. É preciso pensar sobre suas múltiplas escutas, interpretando aquelas que
não puderam aparecer por força destas mesmas visões hegemônicas. Seria o caso de interpretar o
que se constitui como tradição, numa perspectiva crítica que possibilite a realização de uma
tradução destes sentidos acumulados.
É aqui que um estudo da Bossa Nova se justifica. Um movimento musical com vários
sentidos acumulados no tempo e que, até a atualidade, mantém-se é como algo unívoco: uma
música ligada ao Rio dos “anos dourados” - posto como local belo, tranqüilo e idealizado -,
fortemente associada à noção de beleza e de “singularidade” da mulher brasileira e à idéia de ser
um produto feito pela e para a classe média em ascensão. Buscar a diferença, a ruptura e a
descontinuidade nestas leituras da Bossa Nova e interpretá-las hoje é uma tarefa desta pesquisa.
Muitas vezes, a memória histórica sobre um período pode encobrir as tensões travadas nas
experiências do cotidiano. Edgar de Decca afirma que na desmontagem desta memória histórica
vão surgindo emblemas do imaginário das sociedades, aquilo que se guardou, as formas de
representação do passado feitas pelas sociedades que inventam tradições, construindo e trazendo
visões hegemônicas, e buscando legitimação de fatos22. É assim que, na busca de uma história,
procuramos desconstruir (para reconstruir) a interpretação do movimento musical Bossa Nova, a
21
Augusto de CAMPOS, Balanço da Bossa e outras bossas: antologia crítica da moderna música popular brasileira.
Edgar de DECCA, 1930, o silêncio dos vencidos: memória, história e revolução; Carlos Alberto VESENTINI, A
teia do fato: uma proposta de estudo sobre a memória histórica. São Paulo, 1982. Tese (Doutorado em História)
FFLCH - USP.
22
20
partir de uma crítica elaborada no presente. O pesquisador que se lança neste trabalho tem a
tarefa de produzir releituras, a partir das malhas desta memória histórica, deste passado e desta
tradição à qual pertence. Neste confronto, entre o presente e o passado, é permitida a entrada de
outras visões que vêm à luz pela mediação do antigo, através da interpretação tentando rever o
passado, traduzindo a tradição utilizada para a sua compreensão, revelando diferenças e outras
leituras possíveis23.
A Bossa Nova, nascida nos anos 50, se valeu da tradição da música popular existente no
Brasil até então, mas também e principalmente trouxe inovações harmônicas, melódicas e
rítmicas, utilizando uma linguagem poética inovadora, uma elaboração clara, sintética, com uma
linguagem direta e coloquial, sendo encarada até hoje como um divisor de águas da Música
Popular Brasileira. É ressaltada também como sendo uma música que carrega a “cor local” da
zona sul do Rio de Janeiro. No entanto, é preciso redimensionar esta visão, buscando interpretar
suas pluralidades e tensões sociais, tornando-a um objeto crítico de reflexão histórica.
As canções, nesta pesquisa, são compreendidas a partir da relação entre composição e
escuta, possibilitando rastrear sentidos múltiplos atribuídos pelos que as ouvem em seu cotidiano.
Sentidos esses que não necessariamente coincidiam com os padrões normativos impostos
socialmente. Muitas vezes, é por meio dos sentidos unívocos dados às canções da Bossa Nova e
pelos padrões normativos impostos pelos variados meios sociais como a imprensa, a família e
outras instituições que se pode interpretar criticamente o interdito. Olhar para os padrões
normativos não para “precisar como a violência da ordem se transforma em tecnologia
disciplinar, mas para exumar as formas sub-reptícias que são assumidas pela criatividade
dispersa, tática e bricoladora” dos sujeitos, suas “maneiras de fazer [que] constituem as mil
práticas pelas quais usuários se apropriam do espaço organizado pelas técnicas de produção
sócio-cultural”24.
Cabe, porém, destacar que as práticas dos ouvintes não surgem muitas vezes como algo
organizado, cristalizado ou, evidente mas sim a partir de uma interpretação que leve em conta as
diferentes táticas dispersas no cotidiano, aqui entendido numa perspectiva crítica. Lembrando
Agnes Heller, o cotidiano é algo que, em sua própria ordenação, mostra-se “um fenômeno nada
cotidiano”, isto é, contém uma ação moral e política, não devendo, portanto, ser encarado como
23
24
Hans-Georg GADAMER, O problema da consciência histórica.
Michel de CERTEAU, A invenção do cotidiano - 1. Artes de fazer, p.41.
21
alienante e efêmero. A vida cotidiana não está fora da história, mas no centro do acontecer
histórico, sendo a verdadeira “essência” do social25.
Nas Ciências Sociais contemporâneas, o estudo do cotidiano sugere um trabalho de
interpretação da relação de diálogo entre o pormenor e os processos globais, sempre numa
perspectiva crítica; evitando ressaltar somente os aspectos curiosos e anedóticos – o que na
maioria das vezes apenas reflete estereótipos do passado, mascarando os aspectos dissidentes na
prática concreta dos sujeitos. Como afirma Maria Odila Dias, o estudo desse objeto se mostra
importante “por ser uma forma de apreensão de papéis informais, que escapam aos papéis
prescritos nesta multiplicidade de mediações da vida de todo dia que ressaltam a margem de
resistência possível, a improvisação e a capacidade de subverter os padrões impostos.”26 Nesta
pesquisa, a perspectiva adotada é a de pensar um cotidiano como o local onde se pode interpretar
escutas múltiplas da Bossa Nova.
Podemos agora retomar as indagações iniciais deste texto: como capturar elementos tão
fugidios, movediços e abstratos desta terra estrangeira chamada passado? A intenção deste
trabalho é buscar compreender a relação tensa entre o evento e sua significação, relação que pode
ser capturada pelas linguagens diversas que comunicam sobre o passado e que discursam sobre
este evento.27 A distância temporal permite resgatar o passado, não tal como foi, mas como é
lembrado por estes ouvintes. Saturados de consciência histórica, é imperativo olhar para trás a
fim de historicizar a própria tradição engendrada no tempo.
Esta é a centralidade da tese: perscrutar um tempo – os anos 50 e 60 no Brasil – e em
meio a este grande emaranhado de eventos, as rupturas e os marcos históricos, focalizando uma
cidade que reunia diversos elementos-sínteses deste momento, uma cidade encarada até hoje
como um local que agrupou o que havia de mais fecundo na cultura brasileira. Em meio a isso,
localizar as sonoridades daquele tempo. Mais ainda, olhar para jovens ouvintes da Bossa Nova e
para a recepção destes sons em meio à densa tessitura de um cotidiano permeado de normas,
ideologias, coerções, mas em que também são possíveis práticas de liberdades e de resistências.
Tudo isto numa perspectiva dialógica, em que ouvintes anônimos – homens e mulheres jovens –
apresentam diferenciações em suas formas de diálogo com esta sonoridade. Trazer à tona o que
25
Agnes HELLER, O cotidiano e a História, p.20.
Maria Odila Leite DIAS. Teoria e método dos estudos feministas: perspectiva histórica e hermenêutica do
cotidiano. In: Albertina O. COSTA e Cristina BRUSCHINI (Org.), Uma questão de Gênero, pp.39-53.
27
Paul RICOEUR, Interpretação e ideologias.
26
22
eles compreendem sobre a Bossa Nova, em diálogo/confronto com outras linguagens que
discursam sobre este tempo, pode proporcionar uma interpretação das relações homem-mulher
daquele período, assim como da juventude, do próprio estilo musical, do Rio de Janeiro e deste
tempo tão fortemente fixado na memória histórica.
Mas como encontrar estes ouvintes? Em primeiro lugar, buscando as origens e a história
da forma musical e cultural da Bossa Nova, interpretando o sentido de sua configuração no
período em questão, a partir de matrizes culturais seletivamente incorporadas como tradição. Em
segundo lugar, por meio do cotidiano daquele momento – que chega via imprensa, memórias e
outros discursos – permitindo perceber tanto os aspectos normatizadores da sociedade, quanto
aquilo que não foi dito. Pelo esmiuçar da imprensa da época em suas mais variadas linguagens é
possível reconstruir os fios deste cotidiano vivido. A perspectiva adotada ao se tomar a imprensa
como fonte é pensá-la como um discurso sobre o real, uma representação veiculadora de normas
e ideologias carregadas de subjetividades; um veículo com uma linguagem que mistura ficção e
realidade e que não pode ser encarado como neutro, objetivo tal como foi considerado em
determinados momentos28. Foram utilizados o jornal Última Hora e as revistas O Cruzeiro e
Manchete por conterem as variadas linguagens que se queria e por terem sido de grande
circulação na época. A imprensa é usada como fonte auxiliar para interpretar o cotidiano do
período estudado, os padrões de gênero, a constituição social da juventude, a cidade do Rio de
Janeiro, a inserção e a aceitação da Bossa Nova no campo musical e sua recepção pelos ouvintes,
lembrando que foi posta sempre em diálogo com outras fontes.
As memórias dos agentes da Bossa Nova são outra fonte. A partir de memórias escritas e
de entrevistas coletadas com cantores, compositores, instrumentistas e produtores de shows,
foram buscadas tanto questões relativas ao cotidiano da cidade – um cotidiano de sujeitos que se
inseriam no mundo diurno do trabalho ou do estudo, e também na boêmia –, quanto questões
relacionadas ao campo musical no qual estavam
inseridos, bem como aspectos relativos à
produção musical compreendendo composição, gravação, apresentação em shows, divulgação,
entre outros elementos, tentando entender os diversosa indústria cultural (ligada à música) que se
estruturava.
Outro conjunto de fontes são as próprias canções. A música é uma linguagem artística
carregada de especificidades, diferente não só dos documentos históricos tradicionais, mas
28
Renée ZICMAN, História através da imprensa: algumas considerações metodológicas. Projeto História. n.4, 1985.
23
também de outras formas de arte. Ela não pode ser encarada como reflexo do real, como se a arte
reproduzisse o cotidiano que se quer interpretar, pois a música, por ser uma linguagem específica,
carregada de ambigüidade, contém tanto elementos normatizadores do social, mantendo relações
com as regras do campo musical, como também está aberta a diversos tipos de leituras/escutas.
Ao argumento de que uma obra possui certos protocolos, “senhas, explícitas ou implícitas, que
um autor inscreve em sua obra a fim de produzir uma leitura correta dela, aquela que estará de
acordo com sua intenção”29, contrapõe-se o de que sua leitura é sempre uma produção de sentidos
de natureza polissêmica, que nem sempre coincidem com os sentidos desejados pelo autor.
Assim, as músicas contêm estes protocolos dados pela autoria, mas também aberturas para as
várias formas de performance confiadas à iniciativa do intérprete em suas variadas e inesgotáveis
formas de gravar e fazer arranjos, como também à própria estrutura da obra, possibilitando a
produção variada de atribuições de sentido deixadas para o ouvinte, ou o “intérprete fruidor”30.
As canções foram interpretadas pelo que significaram para os ouvintes, a reverberação em
seu cotidiano, indo além do que os autores quiseram dizer com uma frase ou uma harmonia, por
exemplo. Essa compreensão da “obra poética”31 só se completa na escuta. A análise está centrada
na performance, apontando para uma cadeia de mediações, em que autores, produtores, produtos
e receptores se articulam de forma conflituosa32. A interpretação do cantor está em comunicação
com o ouvinte. Por trás dos recursos técnicos e do timbre, existe uma gestualidade oral e corporal
que deve ser historicizada, considerando a performance dentro de um esforço de interpretação da
audição das canções no seu tempo e no seu meio.
Partindo do pressuposto de que não há como analisar a recepção sem que se compreenda a
produção, o campo musical e alguns de seus aspectos como a instauração e a consolidação das
mídias sonoras e audiovisuais no país, a estrutura de vendagem de discos, a circulação das
canções no rádio, os shows e a abrangência destes fatores, é interpretado a partir
do
reconhecimento da existência de disputas por hegemonia no campo cultural e artístico. Assim,
procura-se dar atenção à gravação da canção, uma vez que é esta que chega ao público. A
gravação, com seus arranjos musicais e todo o aparato tecnológico que possa ter, bem como o seu
intérprete, desempenham papel fundamental na escuta da música. Como lembra Edgar Morin,
29
Roger CHARTIER (Org.), Práticas da leitura, p.95.
Umberto ECO, A obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas.
31
Paul ZUMTHOR, Performance, recepção, leitura.
32
Jesus MARTIN-BARBERO, Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia.
30
24
devemos situar a canção dentro de um complexo multidimensional, considerando que sua história
e sua sociologia devem estar imersas “em uma história e uma sociologia da dança-canção-musichall [o que] nos mostra a plasticidade protoplásmica da canção”.33
O aparecimento da Bossa Nova ocorre em paralelo a um processo de incremento do
campo e do mercado musical e de shows em que o rádio – que até aí era o grande e quase
exclusivo divulgador – passa a dividir o seu papel fundador com outros meios. Esse foi o
momento em que a televisão entrou em cena, embora de maneira ainda muito restrita. Neste
ínterim - quando no Brasil consolida-se um “mercado de bens simbólicos” – o mercado de shows
acaba se modificando também: o Teatro de Revista passa a ceder espaço tanto para um estilo
mais intimista, os pequenos shows nos bares, como também, mais à frente, para shows com maior
público, nas universidades e nos teatros – os quais, inclusive, tiveram sua fórmula aproveitada
pela TV, veículo em que esta nova música iria se popularizar34. É desta forma que se busca
pensar estas mudanças no campo musical, as modificações e implementações na área
artística/cultural/entretenimento e a relação com seu público, os seus ouvintes.
Interpretar as escutas de determinado estilo musical implica em também refletir sobre os
meios utilizados por esta linguagem, salientando o fato de que na década de 50 e até a metade da
década de 60, ainda não se pode pensar, no Brasil, em indústria cultural, mas num incipiente
mercado musical e artístico que se instituía com o advento da televisão, de novas técnicas
fonográficas e de formas de apresentação dos artistas. Todos estes elementos serão relacionados
na interpretação da recepção dos ouvintes, considerando que estes estariam dialogando e
reelaborando as mudanças trazidas pela modernidade. Ao refletir sobre formas artísticas e
culturais, há que se tecer uma análise que articule as instituições culturais, os meios de produção,
os processos de reprodução da cultura, a sua organização bem como sua performance e sua
linguagem artística35.
33
Edgar MORIN, Não se conhece a canção. In: Linguagem da cultura de massas: televisão e canção, p.146.
Entre os compositores da Bossa Nova, havia um jornalista que acabou também por constituir-se como produtor
musical e de shows. Ronaldo Bôscoli foi um produtor musical e de shows, trabalhando no Beco das Garrafas, espaço
privilegiado da Bossa Nova nos anos 50 e 60, produzindo programas musicais de TV no início dos anos 60, como O
Fino da Bossa, lançando no Brasil os primeiros programas de TV que se baseavam num só artista, os “Musicais”,
inspirando-se numa tendência dos musicais americanos, e ainda dirigindo shows de “estrelas” como Elis Regina e
Roberto Carlos até perto de sua morte em 1994.
35
Raymond WILLIANS, Cultura.
34
25
Quanto a esta última, não adianta ao antropólogo ou cientista social analisar a produção de
significados do mundo artístico levando em consideração apenas os aspectos mercadológicos,
sociais, culturais e esquecendo-se da linguagem em si. Como argumenta Santuza C. Naves36,
“quando se confina nessa tarefa [o antropólogo] corre o risco tanto de dar pouca importância à acuidade
estética quanto de manter paralisada a sua reflexão crítica. (...) ao se concentrar nos aspectos coletivos que
envolvem o trabalho artístico, o pesquisador pode descuidar da análise da obra em si e incorrer no risco de
reduzir o texto a mero sintoma do contexto.”
Um último e fundamental conjunto de fontes utilizado nesta pesquisa são as memórias
dos ouvintes, mulheres e homens que ouviam Bossa Nova no período estudado, questão que será
discutida no capítulo 2. A metodologia de pesquisa procura colocar em diálogo todas estas
linguagens específicas e diferentes (memórias dos produtores, memórias dos ouvintes, imprensa e
canções), procurando interpretar, a partir do seu confronto e tensão dialógica, fios de práticas que
permitem tecer uma narrativa no presente sobre este cotidiano que se quer recuperar.
::: ::: :::
A parte I – e seu capítulo primeiro – traça um percurso histórico da formação da Bossa
Nova, procurando as origens de sua forma artística e de suas matrizes culturais. Aqui, falo da
música no Brasil, desde o século XIX, o nascimento do samba e suas modificações, passando
pelas influências do jazz, estabelecendo a história da constituição de uma música popular urbana
e midiática no Rio de Janeiro. Levanta-se alguns fios do emaranhado social que apontam para os
ouvintes caminhando em meio às modificações trazidas pela modernidade, pensando neste
receptor metropolitano tomando contato com as máquinas, aparelhos (rádio, disco, indústrias,
cinema) advindos desta vida moderna e de sua subjetividade. Nisso, acaba-se entrelaçando uma
história cultural e social do Rio de Janeiro, num tecido que se adensa com a discussão da
constituição do campo artístico musical popular no Brasil do século XX, a partir do advento do
rádio e da estruturação da Indústria Fonográfica.
Ao mesmo tempo, está presente, neste capítulo, uma reflexão teórica na qual estão
expostos os principais pressupostos conceituais de análise, entre eles uma idéia de cultura
articulada ao cotidiano, no sentido proposto pelos Estudos Culturais Britânicos. Também
trabalha-se com a cultura dos sujeitos comuns, trazendo a noção de popular formulada pelo
pensamento latino-americano – mais precisamente por Jesús Martin-Barbero –, para quem a
cultura urbana latino-americana é resultado da mestiçagem entre elementos do popular, do
36
Santuza Cambraia NAVES, A canção crítica. In: ____ et alli (orgs.). Do samba-canção à tropicália,p.261.
26
massivo e do erudito. De posse desta definição de popular urbano, discute-se a filiação da Bossa
Nova ao samba, ao jazz, assim como à música erudita. Delineia-se assim, uma “Sociologia da
Cultura”, como propõe Raymond Williams, buscando entrelaçar forma artística, formações
culturais, meios de produção, campo musical e mercado. Nesse sentido, busca-se apoio nos
conceitos de Pierre Bourdieu e em suas noções de campo cultural.
A parte II trata da escuta da Bossa Nova, mais precisamente da memória dos seus
ouvintes. No capítulo 2, se desenvolve uma discussão teórica sobre memória, recepção e escuta
musical e sobre as premissas metodológicas estabelecidas e utilizadas. É onde se narra um pouco
das experiências realizadas no trabalho com os depoimentos, o modo como foram coletados, as
dificuldades e descobertas, os questionamentos e inquietações surgidos nesse processo. É
destacada a especificidade de se ter a memória como fonte, partindo de autores clássicos em suas
reflexões sobre a construção memorialística, utilizando ainda pesquisadores que realizaram
trabalhos nessa área. Faz-se uma distinção entre memória e história, identificando a estreita
relação entre elas, assumindo-se que o trabalho do historiador é também algo que se vale da
memória histórica e da tradição da qual se é herdeiro. Discute-se ainda a questão da memória oral
(material principal de trabalho) e suas particularidades, utilizando-se, além das formulações
conceituais de Paul Zumthor, trabalhos que se valem das metodologias da História Oral como
fonte.
O capítulo 3 é decorrente da pesquisa com depoimentos, a análise das memórias dos
ouvintes. Dividido em quatro sub-capítulos, seus títulos – bem como seus conteúdos – têm como
base os assuntos mais recorrentes nos depoimentos. Cada um destes sub-capítulos se mostram
como questões que dão pistas sobre a constituição do campo musical e cultural que se formava e
se estruturava a partir da Bossa Nova e durante toda a década de 60: a juventude, a cidade do Rio
de Janeiro, a promoção dos valores femininos; as questões sobre cultura oral, audiovisual e a
preponderância do visual/imagético. Estes sub-capítulos de análise de depoimentos são, a todo
momento, trabalhados em conjunto com outras fontes, cruzados com as canções, com os
depoimentos dos bossanovistas e com a imprensa da época, numa tentativa de interpretação de
um cotidiano tenso, tramado na vida de todo, dia repleta de normas, resistências e desvios.
O primeiro deles, Entre escutas e olhares, descobre a sociedade carioca daquele momento
vivendo a passagem de uma cultura oral para uma cultura audiovisual com forte presença da
imagem, mas contendo fortes traços de oralidade. Busca-se interpretar a relação destes sujeitos
27
com os meios comunicacionais da época como a televisão, o rádio, o disco, os jornais, as revistas
de variedades repletas de imagens. Compreende-se a sociedade carioca daquele momento, entre
imagens, escrituras e sonoridades, apontando para o devir de uma sociedade de massas, passando
por um momento nomeado por Martin-Barbero, como aquele de uma “segunda alfabetização”.
Pensando numa estreita e complexa relação entre os sentidos humanos, lembra-se que as imagens
e os sons guardam relações profundas e de complementaridade. Aqui incorpora-se as noções de
Paul Zumthor relativas à performance como um ato comunicativo que engloba audição, visão,
tato, olfato, envolvendo intérprete e ouvinte.
O sub-capítulo seguinte, A cidade, busca interpretar a experiência urbana destes ouvintes
no Rio de Janeiro nos anos 50 e 60 e se justifica tanto pelo fato de as músicas falarem
constantemente do assunto em alusões explícitas – aliado ao fato de a Bossa Nova ter nascido ali
– como também por se considerar que um meio urbano específico, com sua cultura e sua
paisagem sonora, deve ser analisado a fundo, para que se possa melhor compreender o contexto
de recepção destes ouvintes. A partir da construção memorialística, compreende-se as
experiências urbanas num processo que inclui subjetividades, percepções e experiências. Isto leva
o espaço urbano para além de sua existência material, passando a ser encarado como um sistema
de representações a ser lido em suas relações com a vida cotidiana dos sujeitos. Aqui vai estar,
portanto, uma narrativa acerca das experiências urbanas dos jovens no Rio de Janeiro desse
período, cujo ponto de partida é a memória articulada, a todo momento, com fontes, como a
imprensa, por exemplo, e as próprias canções.
Um outro sub-capítulo, Juventude, trata do significado do termo que, naquele momento,
passava a ganhar cada vez mais destaque na sociedade. A idéia de se pensar separadamente esta
questão parte da própria pesquisa sobre o objeto. Analisando as letras das músicas, é fácil
perceber um ideário de modernidade, a busca por algo novo em detrimento do antigo, tantos nos
aspectos musicais quanto nos comportamentais. Deve-se levar em conta que o movimento
musical da Bossa Nova foi feito, majoritariamente, por jovens, como tal se proclamava e, acima
de tudo – o que interessa aqui –, dirigia-se aos jovens. O trabalho com a imprensa permite
entrever também o quanto a questão da juventude está presente na sociedade, circulando
socialmente na publicidade, em matérias diversas, artigos e conselhos comportamentais, o que
permite montar um quadro de franca valorização e preocupação com os preceitos juvenis.
28
Ainda na discussão sobre juventude, está presente a questão política e seus
desdobramentos, o que permite a discussão de temas como “engajamento” e “alienação”. A
questão da participação política aparece na bibliografia sobre a Bossa Nova, em que alguns de
seus autores não só afirmaram como defenderam suas idéias por meio das composições e da
participação em organizações como a UNE e os Centros Populares de Cultura (CPCs), chegando
até mesmo a um rompimento com o movimento inicial por julgá-lo “alienado” ou
descomprometido. Sem querer classificá-la como música “alienada” ou “engajada”, busca-se
interpretar as experiências de seus jovens ouvintes, procurando compreender o significado da
noção de participação política naquele momento.
Por fim, o sub-capítulo Homens e mulheres fala sobre as diferenças de gênero que
passaram a ser construídas no período, traçando uma interpretação da construção social sobre
papéis de homens e mulheres e seus ecos nas experiências dos sujeitos depoentes. Toma-se como
partida para este sub-capítulo o fato de os anos 50 estarem apontando para uma valorização dos
valores femininos – trazidos pelos pressupostos da cultura de massas, colocando as mulheres na
publicidade e nos outros produtos da indústria cultural, dando-lhes importância enquanto faixa de
consumo –, o que desembocaria nos movimentos feministas do final da década de 60.
Em todo este capítulo 3, há uma reflexão sobre as memórias dos ouvintes que tinham por
volta de 20 anos de idade no início da Bossa Nova – final da década de 50 – e os que tinham esta
idade uma década mais tarde, no final dos anos 60, buscando comparar e perceber diferenças,
permanências, continuidades e rupturas nas experiências de escuta de ambas as gerações. A
tentativa é pensar a Bossa Nova num outro momento histórico, analisando sua movimentação no
tempo, o modo como reverberou posteriormente, como se deu a sua afirmação como movimento
importante da música brasileira, qual foi sua contribuição para a efetivação de um campo musical
popular – a MPB. O que se busca entender, enfim, é o seu processo de institucionalização. Tudo
isso ocorre num Brasil onde passava a existir um mercado de bens simbólicos mais estruturado,
uma indústria fonográfica mais atuante, mas também movimentos contestatórios e juvenis, assim
como um endurecimento do regime militar.
29
Parte I - Percursos
“ A língua tem indicado inequivocamente que a memória não é
um instrumento para a exploração do passado; é antes, o meio. Um meio onde se deu
a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades estão soterradas. Quem pretende
se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um
homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo
fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve
o solo. Pois ‘fatos’ nada são além de camadas que apenas à exploração mais
cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação. (...) Mas é igualmente
indispensável a enxadada cautelosa e tateante na terra escura. E se ilude,
privando-se do melhor, quem só faz o inventário dos achados e não
sabe assinalar no terreno de hoje o lugar no qual é conservado o velho.”
Walter Benjamin
A Bossa Nova tem se mostrado na memória histórica – a partir de vasta bibliografia
existente sobre o assunto1– como um movimento e estilo musical que se caracteriza por um certo
tipo de ritmo ao violão com sua “batida diferente”; inovações harmônicas e melódicas advindas
do jazz norte-americano e do samba-canção sofisticado; novas formas de linguagem poética, com
letras mais simples e diretas que falam de maneira leve e coloquial do cotidiano do Rio de
Janeiro, revelando uma especificidade carioca no jeito de cantar a vida, fazendo uma crônica
sobre o cotidiano do Rio, falando da própria cidade, de seus espaços físicos, do amor, das
mulheres, entre outras coisas.
1
Cf: Billy BLANCO, Tirando de letra e música; Ronaldo BÔSCOLI, Eles e eu: memórias de Ronaldo Bôscoli
(Depoimento a Luiz Carlos Maciel e Angela Chaves); Jomar Muniz de BRITTO, Do Modernismo à Bossa Nova;
Augusto de CAMPOS, Balanço da Bossa e outras bossas: antologia crítica da moderna música popular brasileira;
Ruy CASTRO, A onda que se ergueu no mar: novos mergulhos na Bossa Nova; Ruy CASTRO, Chega de Saudade:
a história e as histórias da Bossa Nova; Arnaldo Daraya CONTIER, Edu Lobo e Carlos Lyra: o nacional e o popular
na canção de protesto (os anos 60). Revista Brasileira de História - Dossiê Arte e Linguagens, v.18, n.35; Luiz
Fernando FREIRE (Org.), Bossa Nova: som e imagem; Walter GARCIA, Bim Bom: a contradição sem conflitos de
João Gilberto; José Estevam GAVA, A linguagem harmônica da Bossa Nova. São Paulo, 1994. Dissertação
(Mestrado em Artes - Musicologia). Unesp/SP; Valter KRAUSCHE, Música Popular Brasileira; José Eduardo
Homem de MELLO, Música Popular Brasileira cantada e contada por Tom, Baden, Caetano, Bôscoli, Carlos Lyra,
Chico Buarque ... ; Marcos NAPOLITANO, Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB
(1959/1969); Santuza Cambraia NAVES, O violão azul: modernismo e música popular; Santuza Cambraia NAVES,
Da Bossa Nova à Tropicália; Enor PAIANO, O Berimbau e o som universal: lutas culturais e indústria fonográfica
nos anos 60. São Paulo, 1994. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, USP;
Adalberto PARANHOS, Novas bossas e velhos argumentos (tradição e contemporaneidade na MPB). História e
Perspectiva, n.3, 1990, p.5-111; Sérgio RICARDO, Quem quebrou meu violão: análise da cultura brasileira (décadas
de 40 a 90); Walter SILVA, Vou te contar – histórias de música popular brasileira; Geraldo SUZIGAN, Bossa Nova:
música, política e educação no Brasil; Luiz TATIT, O Cancionista: composição de canções no Brasil; Luiz TATIT,
Semiótica da canção: melodia e letra; Artur da TÁVOLA, 40 anos de Bossa Nova; José Ramos TINHORÃO,
Pequena História da Música Popular Brasileira; José Miguel WISNIK, Algumas questões de Música e Política no
Brasil. In: Alfredo BOSI (Org.).Cultura Brasileira: Temas e situações; José Roberto ZAN, Do fundo de quintal a
vanguarda: contribuição para uma História Social da Música Popular Brasileira. Campinas, 1997. Tese (Doutorado
em Sociologia) - IFCH/ UNICAMP.
30
Pode-se argumentar que estas características, estas inovações trazidas por este
estilo/movimento, são resultado de uma influência cada vez maior da cultura americana no Brasil
do pós-guerra, quando ícones da indústria cultural dos EUA estavam sendo difundidos por meio
do cinema hollywoodiano e de seus musicais ou do jeito de cantar de Frank Sinatra e Chet
Baker, revelando formas mais “aveludadas” de voz e um certo ar cool presente nos anos 50, além
de outras influências. Por outro lado, é impossível negar que formas de composição que
revelavam canções com letras mais coloquiais, usando expressões simples, diretas, sem arroubos
de sentimentalismo, e um jeito de cantar em baixo volume de um modo mais intimista, o “cantar
falando” da Bossa Nova, já estavam presentes na própria música brasileira, tendo suas raízes em
Noel Rosa (no caso das letras) e em Mário Reis (no caso da forma de se cantar), entre outros.
O que se procura nesta primeira parte do trabalho é buscar as origens históricas da Bossa
Nova, origens que não são únicas – o que traria uma noção histórica simplista de causalidade e
linearidade – mas sim múltiplas, plurais, dinâmicas. Assim, é fundamental compreender também
a sua formação histórica e as bases de sua constituição, desenvolvendo uma análise de sua
formação cultural e social.
Cap. 1 Um percurso histórico até as origens da Bossa Nova
“Solo una cosa no hay. Es el olvido. Dios, que salva el metal,
salva la escoria y cifra em Su profética memoria las lunas que
serán y las que han sido. Ya todo está.”
Jorge Luis Borges
Algumas balizas teóricas
O que se pretende estudar é a Bossa Nova como uma manifestação cultural. Inicialmente,
tomando como eixo conceitual uma idéia de cultura desprendida da sua tradição elitista e
trazendo para o centro do debate as práticas cotidianas, o que se busca é uma reflexão que
interprete a relação dialógica entre os detalhes e os processos globais, partindo do específico para
o geral, sempre numa perspectiva crítica. Um estudo do cotidiano se impondo por ser uma forma
de apreensão de papéis informais que escapam aos papéis prescritos, nesta multiplicidade de
mediações na vida de todo dia, ressaltando a margem de resistência possível, a improvisação, a
capacidade de subverter os padrões impostos. Uma história, assim, dos homens comuns.
31
Nesse sentido, muitas das reflexões aqui presentes têm se inspirado nas formulações
teóricas e metodológicas dos Estudos Culturais britânicos. Estes, ao afirmarem a cultura como
questão chave para o entendimento dos processos sociais, salientam-na como cultura comum,
ordinária, numa relação em que a vida diária não deve estar ausente da reflexão em que o
cotidiano deve ser o foco principal de interpretação, sempre numa perspectiva de se pensar a
materialidade da vida.
Este campo de estudos, dado que não pode ser encarado como uma disciplina, mas como
uma perspectiva teórico-metodológica, surgiu, de maneira organizada, por meio do Centre for
Contemporany Cultural Studies (CCCS), ligado ao English Departament da Universidade de
Birmingham, sendo um centro de pesquisa de pós-graduação nesta instituição. Sua organização
tem como ponto de partida, as “alterações dos valores tradicionais da classe operária da Inglaterra
do pós-guerra, buscando como eixo principal de reflexão as relações entre a cultura
contemporânea e a sociedade, isto é, suas formas culturais, instituições e práticas culturais, assim
como suas relações com a sociedade e as mudanças sociais”.2
A partir de três trabalhos fundantes deste campo do estudos, realizados no final da década
de 50, pode-se ter uma melhor noção sobre o direcionamento da reflexão do grupo. O primeiro
deles, The uses of Literacy (1957), de Richard Hoggart, tem como foco de atenção os materiais
culturais antes desprezados da cultura popular e dos meios massivos de comunicação,
inaugurando uma certa tradição de enxergar neste âmbito não só submissão, mas também
resistência, examinando a vida cultural da classe trabalhadora e não apenas seus aspectos
econômicos. O segundo, The making of the English Working-class (1963), de E. P. Thompson,
teve o mérito de compreender a cultura como rede viva de práticas e relações que constituíam a
vida cotidiana, em que o indivíduo tem primazia. E o terceiro, Culture and Society (1958), de
Raymond Williams, fundamental para os Estudos Culturais, revela um olhar diferenciado sobre a
história literária, mostrando a cultura como categoria-chave que liga a análise literária e a
investigação social.3
Entre estes três fundadores, embora existam discordâncias em alguns aspectos, é notório o
fato de possuírem algumas preocupações comuns que se revelam instigantes. Dentre elas, um
conceito de cultura mais ampliado em que esta, por um lado, assume características diferenciadas
2
Ana Carolina ESCOSTEGUY, Estudos Culturais: uma introdução. In: Tomaz Tadeu SILVA (Org.). O que é,
afinal, Estudos Culturais? .
3
Graeme TURNER, British Cultural Studies – an introduction.
32
em formações diferentes e não se revela como algo monolítico ou homogêneo, e, por outro lado,
a cultura passa a significar um grande número de intervenções ativas, sendo não apenas algo
passivo e recebido. Assim, está colocada uma noção de cultura como sendo as práticas vividas
cotidianamente, sem uma hierarquização entre a cultura em sua acepção tradicional – que
compreende a Arte e o erudito – e sem utilizar como parâmetro a idéia de que haja um cânone e
seu outro – a cultura popular –, onde esta última seria encarada como uma “cultura original”.
Mais ainda, este conceito de cultura relaciona produção, distribuição, recepção de bens
culturais e práticas econômicas, garantindo aderência às condições materiais e aos aspectos
simbólicos da vida de uma dada sociedade num momento histórico específico. Desta forma,
cultura mantém com as questões político-econômicas uma relação de dupla mão no que tange às
influências, em que os âmbitos políticos, econômicos e culturais competem entre si e se
relacionam em conflito numa sociedade complexa. Este modo de pensar rompe, assim, com a
clássica divisão marxista entre infra-estrutura e super-estrutura, em que a cultura é mero reflexo
das condições econômicas.4 Isso contribui para que transpareça um outro aspecto também
relevante dos cultural studies, que é a sua não-filiação à alguma disciplina ou área do
conhecimento, com ênfase ao seu caráter multi ou interdisciplinar.
Como argumenta Raymond Williams, para se fazer uma “sociologia da cultura”
5
é
necessário analisar a arte ou um movimento artístico nas relações sociais materiais em que um
estilo está inserido, evitando a idéia de encará-lo como algo autônomo. É necessário pensar nas
instituições, nas formas de produção e distribuição cultural, nas suas ligações dentro dos
processos sociais materiais, nas relações sociais e econômicas implícitas neste processo, mas
também no próprio estilo em si, sua formação e constituição. Uma “sociologia da cultura”,
portanto, em que haja uma unidade complexa dos elementos assim relacionados pois, ao se
refletir sobre formas artísticas e culturais, há que se elaborar uma análise que articule as
instituições culturais, os meios de produção, os processos de reprodução da cultura, sua
organização, bem como a linguagem artística.
A intenção aqui não é a de um desvio conceitual no qual se deixaria a investigação social,
cultural e histórica e se passaria a investigar uma categoria generalizada – a arte – com supostas
regras internas, acreditando na sua suposta autonomia, o que seria, em outras palavras, adotá-la
4
5
Ana Carolina ESCOSTEGUY, Cartografias dos estudos culturais: uma versão latino-americana.
Raymond WILLIANS, Cultura, passim.
33
como “categoria de análise”, esquecendo de que ela própria é “objeto de análise”, lembrando
Williams. Estudar as origens históricas de uma forma artística possibilita um maior entendimento
acerca da sua historicidade como linguagem e como cultura, compreendendo-a como variável no
tempo, imbuída numa complexa teia de hegemonias, ideologias, contenções, resistências, e não
como dada, conceito fechado, imutável, fixo e supra-histórico. Como exemplo, pode-se citar o
samba: tendo algumas de suas matrizes na cultura popular rural, este gênero musical, em um
determinado momento, misturou-se às práticas populares urbanas, em outro ganhou ares de
cultura de massas, recebendo uma cunhagem ideológica e passando a ser associado a uma política
e a um ideal de Estado-Nação, e mais à frente, em outro momento histórico (já nos anos 60),
passou a ser identificado com um popular “puro” novamente.
Houve, aqui, um esforço por interpretar a tradição da Bossa Nova, entendendo tradição
como algo construído segundo princípios de seleção6, que funciona como poderoso mecanismo
de incorporação, articulando processos de identificação e de definição cultural e agindo como
elemento formador do presente e não como um segmento historicamente inerte. Tradição, aqui, é
vista como algo dinâmico, aberto às leituras que o presente seleciona e sua busca deve ser
encarada como uma tentativa de olhar para o passado com o intuito de recuperá-lo para o
presente, tendo como impulso a necessidade de esclarecer os sentidos do processo, estabelecendo
conexões, diferenças e possibilidades habitualmente escamoteadas7. A compreensão da tradição
funciona assim, como um elemento formador contemporâneo, apresentando versões do passado
deliberadamente criadas para estabelecer conexões com o presente, atribuindo-lhe sentidos.
É preciso atentar para a complexidade de um movimento cultural/musical,
compreendendo a dinâmica interna destes processos, em que se deixa de lado, quer a exclusão de
aspectos, nomeando-os como “marginais”, “incidentais” ou “secundários”, quer a construção de
elementos unívocos e hegemônicos do que é dominante. Busca-se focalizar as características
emergentes e residuais dentro dessa cultura dominante8. Entende-se por “emergente”, os
significados, valores, as formas de relacionar-se que se referem aos valores substancialmente
alternativos e opostos, entendendo também que, estas novas práticas e visões de mundo, são
continuamente recriadas, não sendo de alguma fase nova da cultura dominante. Já o “residual” é
compreendido como sendo aqueles elementos que foram formados no passado, mas encontram-se
6
Raymond WILLIAMS, Tradições, instituições, formações. In: ____ Marxismo e Literatura.
Maria Elisa CEVASCO, Para ler Raymond Williams.
8
Raymond WILLIAMS, Dominante, residual e emergente. In:___ Marxismo e Literatura.
7
34
ainda ativos no presente, como aspectos que se perfazem e se refazem no presente movimento – o
outro modificado e reinterpretado –, e não como elementos do passado, do arcaico, um resto
deixado por outras manifestações culturais anteriores.
Desta forma, para além de uma sociologia da cultura, nos moldes acima descritos, o que
se pretende neste trabalho é uma análise histórica com base na cultura – no sentido amplo que
obtém ao ser encarada como prática cotidiana – que compreenda aspectos sociais, econômicos,
materiais, inserindo-se nas questões mais amplas da sociedade, como também do campo de lutas
do meio cultural em busca de hegemonia; e ainda uma história das subjetividades, da arte musical
e de como foi interpretada no cotidiano dos seus ouvintes.
Outrossim, revela-se nos Estudos Culturais uma reflexão em que pensamento e viver
cotidianos são inseparáveis e dão os contornos da totalidade social que se busca, compondo uma
cultura entendida como modo de vida ou processo social total. Percebe-se aí uma filiação deste
pensamento às reflexões que estavam, já nos anos 30, na base do pensamento de Antonio
Gramsci9, para quem a sociedade é o campo estratégico de lutas por hegemonia entre blocos que
não estão isolados ou dicotomizados. A cultura, em Gramsci, é campo simbólico, espaço de
articulação de conflitos. No pensador italiano revela-se uma tentativa de compreender o folclore
articulado a outras formas de cultura – inclusive erudita –, configurando-se como algo ativo,
concepção de mundo e de vida, e não como algo isolado, puro, cristalizado. Não é nenhum
despropósito lembrar da idéia de “tradição engendrada pela própria modernidade”, proposta pelo
latino-americano Néstor Canclini10, o que sugere uma mesma filiação conceitual.
Parecem se articular, assim, as formulações dos Estudos Culturais britânicos e o
pensamento latino-americano sobre Comunicação e Cultura, mais precisamente, os conceitos de
Jesús Martin-Barbero e Néstor Canclini. Voltando à trajetória dos Estudos Culturais, pode-se
perceber que após os anos 70 passa a ocorrer uma dispersão deste pensamento para outras partes
do mundo, para além da Inglaterra, tomando características diversas em cada uma destas
localidades. Neste sentido, adoto aqui a tese de Ana Carolina Escosteguy11, que analisa os
estudos culturais surgidos na década de 80 na América Latina – interessados em pensar na
presença cada vez maior da indústria cultural na vida cotidiana e na questão da cultura popular
em meio a isso – como tendo muitas ligações com os Estudos Culturais britânicos. Afirmando, é
9
Antonio GRAMSCI, Literatura e vida nacional. E também Cartas do cárcere.
Nestor G. CANCLINI, Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade, passim
11
Ana Carolina ESCOSTEGUY, Cartografias dos estudos culturais.
10
35
claro, as diferenças, as apropriações, interpretações, traduções, enfim, que este pensamento
europeu ganhou por aqui, Escosteguy relaciona correntes de pensamento que podem ser vistas
como correlatas.
O processo conjuntural em que se manifestam essas formulações inglesas, nos anos 50 e
60, passa a ocorrer na América Latina na década de 70 para 80 com a globalização, a crise do
horizonte marxista, o debate sobre a modernidade e as indústrias culturais. Isso tudo levou a um
redimensionamento da trama teórico-conceitual vigente. Dentre outros aspectos, na tese de
Escosteguy, é importante ressaltar a passagem de um marxismo determinista – que buscava ver e
explicar os conflitos por meio de uma única contradição, (a de classe) impedindo de se pensar a
pluralidade de matrizes culturais – para um marxismo de corte gramsciano, em que se flexibiliza
esta lógica para uma melhor compreensão sobre as relações entre cultura e classe social,
redesenhando assim, não só o sentido da cultura, como também o da política, permitindo
reconhecer as culturas populares e a formação de identidades. Aqui, entrariam em jogo noções
como negociações e busca pela hegemonia, renovando o âmbito do político, reconhecendo as
movimentações sociais cotidianas como âmbitos também da cultura. Isso implicou, em outras
palavras, no “deslocamento da idéia de cultura do âmbito restrito da reprodução para o campo
dos processos constitutivos e transformadores do social”.12
Outro aspecto a ser destacado no pensamento latino-americano é a busca por relativizar o
conceito de ideologia, não o deixando de lado, mas valendo-se de um outro conceito, que seria o
de hegemonia. Recorrendo mais uma vez a Antonio Gramsci, o próprio conceito de ideologia não
se restringe à idéia de dominação e nem contém a noção de exterioridade aos sujeitos, idéia muito
comum na tradição frankfurtiana, para quem a ideologia é própria à sociedade capitalista,
produzindo seu falseamento intrínseco. Ideologia é aqui entendida como sistema de significados,
de crenças e valores, imbricado no cotidiano, sendo universal, em que se adota uma perspectiva
de interioridade e não de exterioridade, ou seja, ideologia não se opõe ao conceito de cultura, mas
está contida na vida cotidiana.
Já o conceito de hegemonia, mostra-se como um processo em que um grupo tem
hegemonia na medida em que representa interesses que os grupos ou classes subalternas também
reconhecem, de alguma maneira, como seus, implicando numa idéia de usos e apropriações. Este
é um conceito mais amplo do que o de ideologia e as suas formas clássicas de imposição, as quais
12
Idem, p.47.
36
resultam em manipulação dos sujeitos a partir de um exterior. Hegemonia é a vida em sua
totalidade, significados e valores experimentados na prática, são os processos vividos, não sendo
sistema ou estrutura fechada, mas um processo complexo de experiências, e apropriações feitas
no cotidiano; um processo em que estão presentes lutas, incorporações de valores de outras
culturas, apropriações, seduções, cumplicidades, negociações. Hegemonia é também a
capacidade de assimilar traços de outras culturas, sejam elas populares, locais ou alternativas em
geral.
Partindo das considerações de autores ingleses como Raymond Williams, chega-se ao
pensamento latino-americano. A partir do que foi apontado, não seria equivocado articular estes
dois pensamentos que servem de base epistemológica para a reflexão que se encaminha nesta
tese.
Assim, um conceito de Martin-Barbero que parece ser útil neste momento, para
compreender as origens da Bossa Nova e sua formação histórica, é o de matriz cultural13.
Segundo o autor, elas expressam universalidades, tradições, memórias e resgatam seletivamente,
na modernidade, traços de um passado e de um tempo aparentemente perdidos. São dimensões
universais, capazes de ativar mecanismos coletivos de identificações e apropriações. Como
universais, as matrizes culturais possuem formas que podem ser encontradas nas variadas
manifestações que compõem, historicamente, o cotidiano, expressando formas de saber e artes de
fazer, cujas estruturas fundamentam a realização de operações simbólicas capazes de articular,
pela narrativa, memórias, sonhos, desejos, realizações. Destaque-se, no entanto, que as matrizes
culturais são dinâmicas, elas mudam, se mesclam – e se adaptam no tempo, no transcorrer
histórico.
Realizar este percurso histórico até as origens da Bossa Nova é uma tentativa de
compreensão deste estilo e movimento musical, é interpretar outros tempos. Isso requer que se
assuma a estreita ligação entre presente e passado, necessitando, por parte do pesquisador, uma
inserção em sua contemporaneidade, entabulando com o passado um diálogo entre seus conceitos
presentes e os conceitos imbuídos nas suas fontes, para chegar à compreensão de fragmentos
deste vivido. Assim, o diálogo a ser estabelecido entre estes tempos é o de uma “fusão dos
horizontes de compreensão [do presente e do passado] que se desloca sempre”14.
13
Jesús MARTIN-BARBERO, Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia.
Maria Odila Leite DIAS, Hermenêutica do quotidiano na historiografia contemporânea. Projeto História Trabalhos da memória. n.17, p.234-5.
14
37
O caminho a percorrer é o da busca da origem, restituição, restauração, resgate da
tradição, não por ela mesma, ou para mostrar um passado curioso e linear que chega numa cadeia
harmoniosa, mas por haver recognoscibilidade entre o presente da Bossa Nova e seu passado, um
passado que só é válido na medida em que é reconhecido e reatualizado no presente, fazendo-lhe
sentido. Há que ser, no entanto, um presente atual – do início de século XXI –, que olha para a
Bossa Nova e seu tempo e vê, nele, um passado que lança interpelações e que é, a todo momento,
reconhecível.
Walter Benjamin salienta que “um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos,
encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é
apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois”.15 Assim, faz-se um duplo jogo de se
voltar ao passado: um que vai do presente até a Bossa Nova, e outro que se lança da Bossa Nova
ainda mais para trás nesta “terra estrangeira”16, denominada tempos pretéritos. Esta busca tenta
cruzar ambas as necessidades de volta ao passado, dos tempos que se cruzam no mesmo anseio, o
de resgatar experiências, sentidos, memórias construídas ou espontâneas, mas que salvam do
esquecimento, da falta de reconhecimento deste passado, que é também constituinte do presente.
O objetivo é compor, assim, uma narrativa que possa salvar o passado para perpetuá-lo17, não
como verdade absoluta e incontestável, mas como memória que traz as reminiscências, as
tradições, as leituras já feitas sobre ele, e também os esquecimentos, para atualizá-los no
presente.
Primeiras palavras sobre a Bossa Nova
A partir disso, como definir a Bossa Nova?
“preparada desde os fins dos anos 40, no pós-guerra, pela descontinuidade de acentuação rítmica muito
usada (....) a partir do surgimento do bebop no jazz norte-americano, a bossa nova constituiu uma reação
culta, partida de jovens da zona sul, da classe média branca das cidades, contra a ditadura do ritmo
tradicional. Historicamente, o aparecimento da bossa nova na música urbana do Rio de Janeiro marca o
18
afastamento definitivo do samba de suas fontes populares.”
Na definição de José Ramos Tinhorão, a Bossa Nova é uma música urbana, da zona sul do
Rio de Janeiro, fruto da classe média em ascensão, “dominada” e esmagada pelo jazz. Uma
15
Walter BENJAMIN, A imagem de Proust. In: Obras escolhidas, p.37.
David LOWENTHAL, The past is a foreing country, passim.
17
Walter BENJAMIN, Sobre o conceito de História. Obras escolhidas.
18
José Ramos TINHORÃO, Pequena História da Música Popular Brasileira, p.230.
16
38
música que perdeu suas características populares, nacionais, tornando-se apenas o “jazz
brasileiro”. Nas próprias letras é possível ver críticas parecidas, por vezes em um tom mais
brando e de gozação:
“Pobre samba meu
Foi se misturando, se modernizando
E se perdeu
E o rebolado, cadê ?
Não tem mais
Cadê o tal gingado
Que mexe com a gente?
Coitado do meu samba
Mudou de repente
Influência do jazz
Quase que morreu
E acaba morrendo, está quase morrendo
Não percebeu
Que o samba balança
De uma lado pro outro
O jazz é diferente, pra frente e pra trás
E o samba meio morto
Ficou meio torto
Influência do jazz no afro-cubano
Vai complicando, vai pelo cano, vai
Vai entortando, vai sem descanso
Vai, sai, cai ... do balanço !
Pobre samba meu
Volta lá pro morro
E pede socorro onde nasceu
Pra não ser um samba
Com notas demais
E ser um samba torto
Pra frente e pra trás
Vai ter que se virar
Pra poder se livrar
19
Da influência do jazz”
Carlinhos Lyra, em 1962, criticava a influência do jazz na Bossa Nova, imbuído que
estava na luta política e estudantil dos Centros Populares de Cultura (CPC) e no debate sobre o
“nacional-popular”, cujo objetivo era afirmar e consolidar uma cultura genuinamente nacional,
rechaçando
os elementos estrangeiros presentes no repertório cultural brasileiro que
desvirtuariam e manchariam o puro, autêntico, livre de influências imperialistas. Lyra define a
música que faz como sendo samba, ou seja, ele busca recuperar e afirmar a origem de sua arte no
popular, no gênero reconhecido, naquele momento, como nacional por excelência.
19
Música de Carlos Lyra, 1962.
39
Já na definição do historiador Arnaldo Contier, a Bossa Nova tem suas origens também na
música erudita européia do século XIX, mais precisamente no Impressionismo de Claude
Debussy e Maurice Ravel. A canção Insensatez, composta em 1959 por Tom Jobim e Vinícius de
Moraes, seria um exemplo claro desta filiação erudita da Bossa Nova, possuindo um sistema de
acordes isolados, livres de uma rigidez harmônica tradicional, com acordes e notas que parecem
soltos ao vento, revelando a característica impressionista de sugestão, impressão ligada à
natureza. No trecho abaixo, Contier fala de como Edu Lobo, em suas “músicas de protesto”,
também incorpora estas características.
“a aproximação da obra de Edu Lobo com o simbolismo ou impressionismo musical francês na música
erudita ou com o neo-classicismo ou ainda com o jazz vem exposta em algumas de suas canções escritas
durante os anos 60 (...) notamos, de um lado, traços do neo-classicismo – preservação do sistema tonal; e,
de outro, a presença de algumas inovações timbrísticas, inspiradas no Prèlude à l’après midi d’une faune
20
(C. Debussy) ou nas Bachianas (H. Villa-Lobos).”
Júlio Medaglia, por sua vez, faz uma definição da Bossa Nova que a articula ao samba, a
esta matriz cultural popular nacional:
“As primeiras manifestações desse movimento receberam por parte de observadores precipitados, as mais
veementes críticas no sentido de que a Bossa Nova não seria samba autêntico (...) nem a Bossa Nova é
objeto estranho ou incompatível com a zona norte e nem a zona sul permanece indiferente ao sambão ou às
manifestações de massa (...) o que acontece é que os extremos do samba se tocam e se auto-influenciam, o
21
que não representa nada de negativo para nenhuma das partes – muito ao contrário.”
De qualquer forma, algo está presente – para reforçar ou refutar – em todas as definições:
uma preocupação em fixar, em conceituar a Bossa Nova como popular ou erudita; como música
de classe média ou de elite; ou mesmo como música que traspassa, transpõe as barreiras sociais.
Ou ainda, como uma música fruto dos grandes meios urbanos, em contato e influenciados pela
indústria cultural americana, dando bases a uma cultura de massas no Brasil que viria a se
consolidar uma década mais tarde, com o advento de uma indústria de bens culturais simbólicos
no país 22.
No entanto, é necessário discutir também o que vem a ser o popular, o erudito e o massivo
como formações e conceituações históricas, pois é importante compreender o que se
20
Arnaldo Daraya CONTIER, Edu Lobo e Carlos Lyra: o nacional e o popular na canção de protesto (os anos 60).
Revista Brasileira de História - Dossiê Arte e Linguagens. v.18, n.35, p. 13-52.
21
Júlio MEDAGLIA, Balanço da Bossa Nova. In: Augusto de CAMPOS (org.). Balanço da Bossa e outras bossas:
antologia crítica da moderna música popular brasileira, p.70 e 73.
22
Renato ORTIZ, A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural.
40
convencionou designar como folclórico, popular e massivo. É preciso também observar como
estas constituições de fronteiras culturais se efetivaram aqui na América Latina e particularmente
no Brasil.
Hiato – uma reflexão sobre o popular e o massivo
Jesús Martin-Barbero argumenta que ao nos depararmos com o contexto cultural latino
americano ficamos frente a uma questão relevante: a mestiçagem. Esta não se limita ao fator
racial já tão explicitado e aceito, mas diz respeito a uma trama atual de modernidade e
descontinuidades culturais, deformações sociais e estruturas de sentimento, memórias e
imaginários que mesclam o indígena e o rural, o rural e o urbano, o folclore e o popular, o
popular e o massivo23. Acrescente-se também, o erudito e o popular, o erudito e o massivo. Nesse
sentido é que o autor propõe uma análise das mediações sociais e culturais, muito mais do que
dos meios comunicacionais ou dos estilos artísticos e culturais em si mesmos. Há, portanto, entre
os latino-americanos, a vigência de um espaço conflituoso onde existe uma densidade e uma
pluralidade de culturas urbanas, das mais variadas matrizes misturadas entre si, com uma
dinâmica cultural incontestável. Martín-Barbero argumenta que – sendo os conceitos, muito
menos “portos seguros”, e muito mais articulados à noção de problemas (parafraseando Raymond
Williams), como algo que não explica em definitivo as questões, mas requer problematização –
faz-se necessário historicizar o movimento de gestação de alguns conceitos básicos, como os de
popular e de massivo, interpretando a constituição original destes e o movimento histórico
tomado no tempo por eles. É neste sentido que, para entender a constituição dos mesmos,
justifica-se um debruçar sobre o século XVIII e XIX.
No século XVIII, verifica-se as primeiras tendências de se colocar o povo como ator
social. Estas tendências dividiam-se entre os que contraditoriamente colocavam o povo afirmado
na política (ilustrados) e na cultura (românticos). Quanto aos primeiros, a importância do povo na
política estava articulada ao fato de a Revolução Francesa ter sido realizada por uma classe nova
que aspirava ao poder, a burguesia, travestida como “povo” - camada popular -, para garantir sua
legitimidade política. No entanto, essa valorização dava-se apenas em termos políticos e não
culturais, ou seja, nada do que era parte desse universo cultural (entendido aqui como nãoerudito) era positivado ou trazido à tona. Sendo a Ilustração um pensamento dominado por
23
Jesús MARTIN-BARBERO, Dos meios às mediações.
41
noções racionalistas, nada do que pertencia a essa esfera era valorizada ou afirmada, pois eram
articuladas a formas irracionais e menores de vida e cultura, como crenças, misticismos,
superstições, conhecimento não-culto, vistos pejorativamente como articulados à desordem
social. Daí é que se delineia a idéia da categoria povo associada a uma certa noção de boa cultura
e má cultura, sendo a popular menor e inferior.
Os românticos, por sua vez, tentavam afirmar o popular exatamente por sua cultura,
admitindo o povo como possuidor de uma cultura que deveria ser preservada. Ao afirmarem a
existência de dois mundos – um rural, tradicional, feito de oralidade, crenças, arte ingênua e outro
urbano, ligado à modernidade, à cultura escrita, vida secular, racional, não religiosa e arte
refinada – os românticos afirmam em seu ideário a existência também de duas configurações da
sociedade, em paralelo a estes dois mundos: uma exterior, superficial, visível, onde tudo é
deformado e inautêntico, fruto das mudanças históricas e da modernidade, e outra interior,
situada mais abaixo da superficialidade, baseada na estabilidade e na unidade das etnias e das
raças puras. O que fica claro aqui é a idéia de uma cultura pura – a popular – e outra erudita.
Parece ser aí que reside a origem histórica da idéia de folclore24, como uma iniciativa
externa às camadas populares, uma tentativa da elite, ou dos Estados, de preservar das
tecnologias, dos meios massivos, da modernidade, uma cultura pura, autêntica, original,
enraizada e incontaminada. Surgem assim, as noções de “povo-tradição” e “povo-raça”, que no
transcurso histórico aproximam-se, ora mais, ora menos, confundindo-se em alguns momentos.
No entanto, segundo Martín-Barbero, a armadilha do pensamento romântico é a ambiguidade de
sua idéia de cultura popular pois, se por um lado sua originalidade reside essencialmente em sua
autonomia e na ausência de contaminação com a cultura hegemônica; ao se negar a circulação
cultural, o que está se negando, na verdade, é seu processo histórico de formação, sua dinâmica,
seus movimentos e sua atualidade, o que acaba por transformá-la em cultura morta.
Uma cultura morta que, exatamente por não ter mais como sobreviver no cotidiano de
mestiçagem, hibridismo e mistura de culturas, precisa ser colocada num “lugar da memória”25,
transfigurado em museus, monumentos, ou em datas guardadas e consagradas oficialmente. A
idéia de folclore é muito controversa porque supõe um lugar, um espaço imaginário para guardar
uma cultura supostamente “pura”, intacta, mas na qual foi abafado o que havia de
24
25
Idem.
Pierre NORA, Entre memória e história. Projeto História, n.10, p.7-28.
42
verdadeiramente vivo, original: o seu processo de constituição, de afirmação, de lutas por espaços
no campo hegemônico em que há, ora contenções, ora resistências e no qual ela se modifica, se
altera26.
Quanto à noção de massa, cabe ressaltar – como bem lembra, mais uma vez, MartínBarbero – que esta idéia é bem mais antiga do que costuma contar a vasta bibliografia sobre
estudos de Comunicação. Estes estudos, obstinados em atrelar à idéia de sociedade de massas a
tecnologia, datam o advento da “sociedade de massas” na década de 30/40 do século XX. Na
verdade, sociedade de massas é um conceito que guarda matrizes históricas, sociais e políticas
desde o século XIX, quando surgiu o fenômeno das massas, da aglomeração urbana, das
multidões na rua, das revoltas trabalhadoras (como a Revolução de 1848 e a Comuna de Paris) e
quando surgiu o medo destas massas, pois durante o século XIX e XX, a idéia de massa passou
do medo à decepção, e daí ao pessimismo, conservando sempre uma idéia pejorativa,
significando ajuntamento, multidão, mistura.27
Se a idéia de popular é – neste mesmo momento – positiva, a massa é vista como algo
perigoso, revoltoso, sem controle, sem consciência, manipulável e por isso degradante,
empobrecedor, regressivo. Vem daí a idéia clássica de algumas correntes das Ciências Sociais e
da Comunicação que ainda hoje vêem os meios de comunicação como algo alienante e
massificador, partindo do pressuposto de que esta “massa” que assiste à TV, ouve rádio, ouve
CDs é completamente inculta, manipulável, sem qualquer capacidade crítica. Surge assim a idéia
de multidão e o temor que esta provoca como algo
ameaçados à ordem estabelecida, à
civilização e ao projeto modernizador capitalista, uma vez que o argumento dominante era o de
que quanto mais a sociedade capitalista evoluía, mais irracionais elas se tornavam.
Os pensadores letrados e da elite logo se propuseram a formular teorias conservadoras
para explicar o fenômeno das massas, organizando a visão da burguesia/elite sobre as camadas
baixas da população, consideradas como perigosas, por isso devendo ser controladas e
reprimidas, sob o risco de, sem isto, acabarem com a civilização e com o progresso, destruindo
a sociedade moderna capitalista. Dentre estas teorias, surgem as idéias de Alexis de Tocqueville
sobre a maioria e seu poder, como também as idéias de Stuart Mill pressupondo que a junção de
26
Stuart HALL, Notas sobre la desconstrucion de lo popular. In: Raphael SAMUEL, História Popular y Teoria
Socialista.
27
Cf: Maria Stella BRESCIANI, A cidade das multidões, a cidade aterrorizada. In: Robert PECHMAN (Org.),
Olhares sobre a Cidade. E também Maria Stella BRESCIANI, Metrópoles: as faces do monstro urbano. Revista
Brasileira de História. n. 8/9, 1985.
43
indivíduos isolados com sua conseqüente agregação, levaria a uma uniformização de diferentes e
ao império da mediocridade coletiva. É nessa época que começam os estudos sobre a psicologia
das multidões, cujos argumentos partem da noção de que as massas sempre têm ações
inconscientes, irracionalistas, bestializantes, e por isso precisavam ser controladas por uma
parcela racional e civilizada: a elite. Dentro deste pensamento conservador, pode-se perceber
também as idéias de Gustave Le Bon, para quem as massas são decorrência da sociedade
industrial, que cria multidões articuladas à turbulência.
Foram estes estudos que balizaram toda uma corrente de pensamento que articula massa e,
por conseqüência, cultura de massas a algo pejorativo, sujeito a qualquer tipo de manipulação,
uma vez que esta massa insana acaba por não possuir consciência sobre si própria. Por outro lado,
massa também significou para muitos pensadores, algo aparentemente não tão pejorativo, mas
que representaria a idéia de população ou sociedade em geral. Só que isso, num outro sentido,
acaba encobrindo as diferenças e mascarando a sociedade como algo uniforme, universal.
Compreendidas as matrizes históricas do que se conceitua como popular e massivo em
relação ao erudito, é que se pode argumentar que a cultura vista nas sociedades urbanas
brasileiras deste século não se encontram compartimentadas entre cultura popular, massiva e
erudita, de uma forma cristalizada, estanque, isolada, mas sim envolvidas numa cadeia complexa
de interferências, contaminações, misturas, em que não se pode alimentar uma visão utópica de
um popular, de um povo bom, ingênuo, autêntico porque ligado ao passado, ao rural, em
detrimento do que é urbano, moderno, visto como ruim. E mais, como se estivessem separados.
Deve-se pensar sim, a cultura urbana moderna não só como aquilo que é produzido pelo povo,
mas pelo que o povo consome, suas apropriações, seus hábitos de leitura, audição, diversão. Isso
tudo sugere a idéia de mestiçagem28, com a complexidade do urbano pondo moderno e arcaico
juntos. O que orienta esta reflexão sobre cultura urbana no século XX são as noções de
complexidade e pluralidade, configurando situações de dialógico entre rural e urbano, indígena e
rural, folclore e popular, popular e massivo, massivo e erudito, erudito e popular, e todas as
combinações possíveis. Não se pode esquecer, certamente, que outras formas de conceituações
ligadas ao popular estiveram presentes no debate cultural e musical brasileiro ao longo do século
XX, principalmente aquelas ligadas ao eixo nacional-popular como cerne da questão da música
brasileira, como propunha Mário de Andrade e os modernistas já na década de 20. Este aspecto
28
Jesús MARTIN-BARBERO, Dos meios às mediações :Op.cit.
44
será desenvolvido mais à frente. No entanto, a questão popular aqui é entendida como o popular
urbano que incorpora influências das mais diversas, constituindo-se numa música urbana que foi
ao longo deste mesmo século travando uma aproximação, um diálogo, uma aderência ao
mercado.
Fragmentos da história musical brasileira
Desta maneira, para pensar o movimento e estilo musical da Bossa Nova, é necessário
compreendê-lo também em sua constituição histórica, em suas matrizes culturais e musicais.
Nesse sentido, é que se precisa voltar para as origens da música no Brasil, pelo menos da música
considerada não-erudita realizada por aqui, que data do século XVII.
Mas é importante grifar que se refere aqui a fragmentos. Isso significa dizer que não se
encontrará, nas considerações que se seguem, uma análise total, geral ou completa da música
popular no Brasil, mas sim aquilo que – ciente dos riscos decorrentes desta afirmação – tanto a
Bossa Nova selecionou como tradição quanto o que – nesta tese -, encara-se como tradição da
Bossa Nova. Dito de outra forma, a história musical que se apresenta é “arbitrária” no sentido de
ser uma versão possível, uma leitura de tradução daquilo que se considera como sendo as
tradições, as origens, as matrizes da Bossa Nova.
Como apontam variados manuais de história da música popular no Brasil, o primeiro tipo
de manifestação musical popular no país foi o cateretê, um tipo de música e de dança de origem
indígena, posteriormente influenciada pela coreografia dos negros escravos. No entanto, poucos
registros existem sobre esta música, pois com a catequização jesuítica, foi também difundido o
cantochão gregoriano, uma melodia medieval sem acompanhamento em que eram cantados os
textos da liturgia católica. A intenção colonizadora de aniquilamento da cultura nativa acabou por
fundir o cateretê e o cantochão gregoriano, fazendo com que, paulatinamente, os índios
deixassem de praticar suas danças circulares, suas coreografias de volteio do corpo, suas batidas
de pés no chão, seu canto coletivo, para entoar hinos religiosos em fila, imóveis e utilizando
instrumentos musicais eruditos europeus, como cravo, fagote.
Já em meados do século XVII, tem-se o lundu, um tipo de música e dança trazida pelos
negros da África; uma espécie de batuque com coreografia sensual que teve seu esplendor no
Brasil em fins do século XVIII e início do XIX, tornando-se uma referência na bibliografia sobre
música como sendo o primeiro ritmo musical afro-brasileiro. Com muitos movimentos no corpo e
45
umbigadas, o lundu agradava a todos os setores da sociedade, mesmo que a Igreja o considerasse
imoral, escandaloso. No entanto, ainda não gozava formalmente de uma aceitação e legitimidade
por parte da cultura oficial. Tinha uma referência explícita aos negros, como prática destes que
era, sempre num tratamento humorístico dos temas cantados; colaborou também na constituição e
instituição de uma certa identidade nacional que se formava no século XIX, do que era ser
brasileiro. 29
Apenas em 1830 - quando começa a impressão musical no Brasil - é que esta música se
transforma, passando a se chamar lundu-canção, nome atribuído pela elite, tendo a partir daí
reconhecimento social, sendo praticada nos salões da aristocracia, escrita em partituras e tocada
por quem conhecia a teoria musical. Eis aqui uma forma de apropriação do popular pela elite em
que ocorrem, é claro, modificações do estilo que se adapta às novas ambiências e às novas
finalidades30, com perda de seu caráter mais original de resistência dos escravos, como forma de
sociabilidade e integração dos mesmos, passando a ser muito mais comportado, acompanhado
não mais por violão tocado nas ruas, mas sim pelo piano nos salões imperiais, sendo então
proibido fora deste espaço. O lundu-canção, ao contrário do lundu, passa a prescindir de
coreografia, perdendo sua malícia e sensualidade – elementos de resistência social e cultural.
Porém, ao se argumentar que não se trata de buscar uma autenticidade ideal nas formas
culturais, uma não contaminação das mesmas por elementos externos aos quais foram criadas, o
que se pode ver no lundu é uma modificação, uma adaptação a outras esferas sociais, e não uma
deformação estética, apenas uma perda. É por meio do lundu que a cultura africana negra dá o
seu maior legado à música brasileira e que, mais tarde, dará origem ao samba: a síncope31. O que
se tem no lundu é um exemplo de como as características de uma formação cultural – neste caso
um estilo musical – podem sobreviver – modificadas, adaptadas – no tempo, o que atesta uma
cultura dinâmica, em atividade, não fixa e imutável.
Um outro estilo musical contemporâneo ao lundu e muito próximo a ele é a modinha.
Gênero de romança de salão, fortemente marcado pela influência da ópera italiana, fez de certa
forma, o caminho inverso ao do lundu, pois saiu dos salões e foi para as ruas, num processo de
socialização. Há uma certa controvérsia na literatura musical quanto às diferenças/aproximações
29
Trecho de Lundu da autoria do poeta Caldas Barbosa, conhecido como Lereno Selinuntino: “Se não tens mais
quem te sirva/O teu moleque sou eu,/Chegadinho do Brasil/Aqui está que todo é teu.”.
30
Oneyda ALVARENGA, Música Popular Brasileira.
31
Mário de ANDRADE, Ensaio sobre a música brasileira.
46
entre lundu e modinha. Foi exatamente por Caldas Barbosa – referido acima com um trecho de
lundu – que a modinha se popularizou, uma vez que, sendo um gênero musical articulado à
aristocracia, possuía traços “eruditos” no ritmo e na sua estrutura musical. Convém compreender
que as noções de erudito e de popular na Europa moderna foram tomando características
específicas, cindindo a cultura entre estes pólos, e se pautando numa consideração de que o
popular estaria restrito à cultura oral, não-letrada, e o erudito pertenceria ao universo escrito. No
entanto, não se pode esquecer que estas categorizações não podem ser absolutizadas, pois passam
por mudanças nas quais as formas artísticas, antes pertencentes ao universo popular (em oposição
à cultura hegemônica) em outros momentos transformam-se em referências cultas, como é o caso
da ópera. Talvez seja por esta razão que muito da bibliografia sobre a modinha a toma como um
gênero originalmente aristocrático advindo da ópera italiana, hoje considerada erudita.
Com Barbosa – um padre negro, poeta, brasileiro que foi para Portugal – a modinha
adquiriu um tom mais popular e mais nacional, também no sentido de se afirmar (nas letras)
como brasileiro e de se tornar mais malicioso, mais satírico, diferente do tom mais solene com
que era feito em Portugal. É neste sentido que se misturou muito ao lundu, pois foi o mesmo
poeta que disseminou os dois gêneros, transmitindo-lhes elementos como requebros, letras
maliciosas e bem humoradas. Não por acaso, a aristocracia passaria a diferenciar a modinha em
duas versões ou dois estilos – um vulgar e o outro aristocrático – numa tentativa de demarcar o
que era um produto cultural seu e o que era feito por negros e mulatos com letras mais ousadas.
Interessante notar que esta “modinha vulgar” que tomava as ruas sofreu modificações não só nas
letras, mas também no ritmo, pois além de assumir outro andamento musical, ficando mais
rápido, mais próximo ao lundu, era “tocada por pontos”, o que quer dizer valorizar o ritmo em
detrimento da melodia, cantar ou produzir um som staccato.
A palavra “moda” servia para designar qualquer tipo de cantiga, mas quando chegou a
Portugal, este tipo musical ganhou o nome de “modinha”, o que tanto se refere ao estilo
lingüístico luso de falar no diminutivo, quanto a uma forma de rebaixar ou tornar menor as
cantigas advindas do Brasil, uma vez que se tornavam ali, um estilo típico da colônia,
identificado aos costumes imorais e profanos coloniais.
Com a popularização desta música nas ruas, o acompanhamento deixou – é claro – de ser
feito pelos aristocráticos pianos e começou a ser feito por violão (que era tido como instrumento
menor, ligado aos boêmios e vagabundos). Pode-se perceber na modinha, tanto a tradição oral,
47
expressa nas canções executadas ao violão ou viola, como também a tradição escrita, as partituras
para canto e piano. No entanto, entre uma e outra há diferenças, pois como aponta Martha
Ulhôa32, a escuta dos fonogramas permite uma comparação da versão gravada diretamente da
tradição oral com a versão executada tendo como a base a partitura, o escrito, em que a
performance, a prática interpretativa mostram-se de maneira diferente, na maneira de cantar e
ajustar as palavras e sílabas fortes e fracas na música.
O fato de ser acompanhada pelo violão acabou também por colocar a canção como prática
social com função de socialização, em que os bares e esquinas onde se reuniam os músicos eram
também pontos de encontro, pontos de referência das cidades ou vilas. Os filhos da classe média
urbana, ligados às profissões liberais e ao cultivo da literatura, em meados do século XIX, foram
um dos grandes responsáveis por esta popularização da modinha. Poetas, escritores, estudantes de
Direito reuniam-se no Rio de Janeiro, na Tipografa de Paulo Brito, onde hoje se encontra a Pça.
Tiradentes. Neste espaço, que era também livraria, papelaria e loja de chá ao mesmo tempo,
reuniam-se Gonçalves Magalhães, José de Alencar, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, dentre
outros. Um espaço urbano, portanto, onde encontravam-se os homens cultos, os boêmios, os
poetas, mas também os cantadores e compositores de modinha, como Laurindo Rabelo.
É importante levar em consideração neste fato, as características e particularidades que
interferem num processo comunicativo, como é a canção, tanto em sua composição como em sua
execução. Vicente Romano33 afirma que a “atmosfera”, a ambiência geográfica e climática, tem
implicações na estética musical e na sua performance, em que o violão seria propício à paisagem
carioca – onde o clima quente predomina – por sua facilidade de transporte e aptidão para ser
tocado ao ar livre. Por outro lado, embora não deva haver um aprofundamento neste ponto,
existem ainda questões ligadas à reverberação e ressonância dos objetos sonoros, que também são
influenciadas pela atmosfera.
Esta circularidade ou troca entre poetas mais eruditos e compositores populares é algo
apontado na história ocidental desde a época medieval por Mikhail Bakhtin34. Peculiar também
na cultura boêmia das cidades, proporcionando uma circulação de referências e matrizes
culturais, uma vez que os compositores de modinhas acabavam absorvendo elementos do
32
Martha Tupinambá de ULHÔA. Isto é bom! ou Yayá, você quer morrer? – a tradição oral e a tradição escrita no
lundu. Texto apresentado na Sessão Coordenada “Etnomusicologia” do XIV Congresso da ANPPOM – Porto
Alegre/RS – agosto/2003.
33
Vicente ROMANO, Desarrollo y progresso – por una ecología de la communicación.
34
Mikhail BAKHTIN, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento.
48
Romantismo que imperava entre os poetas e estes últimos, mais tarde, acabariam compondo
modinhas abandonando o preciosismo rasgado de seus versos e adquirindo uma linguagem mais
coloquial. Isso daria origem a uma tradição de pernosticismo das letras do cancioneiro popular
brasileiro.
Na Bossa Nova, pode-se notar um conjunto de canções que não é comumente associado
ao movimento, nem pelo senso comum, e nem pelos próprios participantes do movimento. No
entanto, estas canções, ao fazerem parte da obra de alguns dos compositores a ela associados,
ressaltam e colocam em pauta elementos de um imaginário social acerca dos sentimentos e
relacionamentos amorosos – os quais revelam experiências e visões de mundo - que circulavam
naquele momento. Eram referenciais dos integrantes do movimento da Bossa Nova, muitas vezes
até numa tentativa de negação e de diferenciação, em que se vê uma linguagem dramática,
pessimista, “rasgada”, diferente da maioria das canções do movimento, marcadas pela linguagem
enxuta, coloquial e otimista.
“Não !
Não pode mais meu coração
Viver assim dilacerado
Escravizado a uma ilusão
Que é só desilusão
Ah, não seja a vida sempre assim
Como um luar desesperado
A derramar melancolia em mim
Poesia em mim
Vai, triste canção
Sai do meu peito e semeia emoção
35
Que chora dentro do meu coração”
Nesta canção, que não por acaso tem o nome Modinha, surge o desespero por não ter o
amor correspondido, não suportando a “ilusão que é só desilusão”, em que se percebe uma
tentativa de desvencilhamento deste sentimento, dizendo que não consegue mais viver com o
“coração dilacerado”. O luar, que em tantas canções traz a moldura para um quadro de realização
amorosa e felicidade, tem aqui a conotação desesperada, que derrama “melancolia” e “poesia”,
em que para além de rimarem formalmente, as duas palavras tendem a se combinar e se
completarem no ideário em questão.
35
Tom Jobim e Vinícius de Moraes, 1957.
49
“O próprio Vinícius no início da Bossa Nova fazia “crava as garras no meu peito e esvai em sangue todo o
amor ...” e depois o Vinícius começou a sacar isso [falando a respeito da linguagem coloquial da Bossa
Nova] e virou um poeta provençal. Acabou aquele poeta romântico, derramado, ensanguentado, porque era
morte prá lá, sangue prá cá, acabou aquele troço(...).Mas nós entramos primeiro, nós os trovadores, os
menestréis entramos primeiro; e quem são os menestréis? Eu, Tom Jobim(...)porque o Tom Jobim já entra
com “Um cantinho, um violão, esse amor ...” que era dele, e depois com “Foi a noite, foi o mar, eu sei ...
foi a lua que fez pensar”. E eu venho com “Quando chegares aqui podes entrar sem bater ...” Nós, os
músicos, tínhamos muito mais essa visão, que os próprios poetas; os poetas estavam tão preocupados com
a linguagem, com a forma, que se perderam do sentimento profundo da coisa, de Provença, que tem as
letras de Bossa Nova, e que nós somos os grandes começadores: os músicos, não os poetas. E o Vinícius foi
na nossa direto, e aí acabou mesmo, porque com o talento que ele tinha, percebendo esse grande segredo,
daí prá frente era só “Se você quer ser minha namorada...”, e aí não precisei mais fazer letra”36
Muitos integrantes da Bossa Nova, portanto, procuravam diferenciar-se dos arroubos de
sentimentalismo e da linguagem rebuscada próprias a elementos musicais e comportamentais de
uma musicalidade existente anteriormente ao movimento, procurando edificar a sua identidade
pela diferenciação, naquilo que não eram. Carlinhos Lyra coloca que a linguagem coloquial
surgiu dos músicos e não dos poetas, o que revela que este tipo de discurso estava, muito mais do
que se poderia supor, ligado à informalidade, a um tom de prosa, às conversas do cotidiano.
Identifica-se neste depoimento, uma construção surgida espontaneamente na fala cotidiana e não
(pelo menos no início) uma forma de discurso construída propositadamente.
Vinícius de Moraes (citado no depoimento), poeta e diplomata, era mais velho do que
outros integrantes da Bossa Nova; tendo nascido em 1913, tinha 45 anos em 1958, momento da
explosão da Bossa Nova. Cursou Direito e pós-graduação em Oxford, ingressando em 1943 na
carreira diplomática. Tendo publicado vários livros de poesias, sonetos - em que o tema era
constantemente a morte, as angústias do homem, a mulher, numa linguagem transcendental e
prolixa - seu primeiro contato com a música popular foi a peça teatral Orfeu do Carnaval,
musicada por Tom Jobim em 1956 (a primeira de uma série de parcerias). Mais tarde, durante a
Bossa Nova, como Lyra destaca, ele se tornaria um poeta do cotidiano, de linguagem coloquial,
abandonando a carreira diplomática. Esta herança poética-musical, deixada por Vinícius de
Moraes nestas canções, revela um atrelamento do autor a esta experiência nos meios intelectuais
e da poesia erudita.
O depoimento faz conhecer ainda a idéia de que esta mudança dos discursos musicais, se
configurara muito mais como denotativos do sentimento (o “sentimento profundo da coisa, de
Provença”) da época, próprio de um imaginário sobre o amor e os relacionamentos que se
36
Depoimento concedido por Carlos Lyra, em 24/04/96, no Rio de Janeiro.
50
queriam em modificação, do que como uma preocupação formal ou lingüística. Carlinhos Lyra e
Tom Jobim, ressaltados como os “menestréis”, os poetas/cantores, possuíam uma experiência
urbana, em que se pode perceber um certo clima de informalidade e uma coloquialidade na
linguagem e nos discursos (ali buscados como ícones da “modernidade” que se queria afirmar),
sendo realmente, mais músicos do que poetas, revelando em suas letras uma linguagem num tom
de prosa cotidiana. Homens do verbo, do som, da oralidade, pela qual se inseriram socialmente.
Este hiato, para analisar a Bossa Nova, ressalta o que pode ser um primeiro elemento mais
explícito de sua matriz cultural e musical – a modinha – não só em seu estilo musical, melodia,
ritmo romântico, de canção, mas também na sua formação social, visto que se constituía como
fruto do urbano e da mistura cultural e social proporcionada por este meio, em que músicos
ligados a uma tradição popular mantêm relações com os poetas de cunho mais erudito, dando
origem a estilos musicais e poéticos frutos desta mistura.
Outra questão levantada pela modinha enquanto matriz cultural da Bossa Nova é a
relação, já apontada acima, entre poetas e músicos que, no limite, trata da questão sobre a relação
poesia/letra na música. Difícil a delimitação e um consenso sobre o fato de a letra da canção ser
ou não ser poesia. Ao se pensar na poesia feita para ser oralizada, a questão fica ainda mais
complexa, uma vez que ambas trabalham com o material sonoro.37 Mas há que se lembrar que
não podem ser confundidas, configuram-se como formas diferentes que contêm linguagens
diversas. Forma38, entendida em seu desenvolvimento social e historicamente construído, não
sendo fixa, mas comportando uma mobilidade que lhe é intrínseca e sem ser regida rigorosamente
pelas regras. Paul Zumthor argumenta que a forma é a regra, a todo instante recriada, pois supõe
que a performance (que é mutante, nômade, move-se no tempo e no espaço) a constitua.
Importante, assim, reconstruir esta história das formas. 39
Assim, a poesia feita para ser cantada possui características próprias, pois a palavra nas
canções está muito impregnada da sua realização sonora, estando associada aos aspectos
melódicos, rítmicos, etc. Já a palavra impressa tem outros códigos, como o visual, a materialidade
gráfica, por exemplo. Mas guardando-se as especificidades, são linguagens próximas, com suas
múltiplas e complexas correspondências.
37
Carlos DAGHLIAN (Org.). Poesia e música.
Utilizo-me aqui das formulações de Raymond Williams que, em grande parte, assentam-se no pensamento de
Mikhail Bakhtin.
39
Paul ZUMTHOR, Performance, recepção.
38
51
A canção se caracteriza pela junção texto melodia, sendo este o seu núcleo de identidade e
de sentido. A sua eficácia, segundo Luiz Tatit - compreendida não como uma eficácia
mercadológica, mas de significação, traduzindo o êxito de uma comunicação entre destinador e
destinatário - depende primeiramente, mas não exclusivamente, da adequação e compatibilidade
entre o seu componente melódico e lingüístico, que gera a persuasão do ouvinte, física, psiquica e
“decantatoriamente”, reconhecendo uma canção, procurando por ela, gravando-a na memória.40
A canção, a poesia cantada, assim, não pertence nem à ordem da poesia pura, nem da música
pura, mas se situa na interface das duas artes expressivas. Martha Ulhôa argumenta ainda que no
estudo das canções é central a compreensão da prosódia musical, ou seja, o ajuste das palavras e
da música, de forma que o encadeamento e sucessão de sílabas fortes e fracas coincidam com os
tempos fortes e fracos do compasso. Deve-se atentar aos elementos de ênfase na canção – seja na
letra ou na música –, a expressão musical das emoções, incluindo a observação dos elementos
musicais da linguagem falada, quanto o impacto da língua na performance musical e seus
parâmetros sonoros (intensidade, indeterminação rítmica, padrões de entonação, entre outros).
Ulhôa afirma ainda que em muitas canções, o número de sílabas do verso e seu padrão de
acentuação não coincidem com o número de tempos e localização de acento do compasso
musical, uma incompatibilidade que pode ser resolvida no momento da performance pela métrica
derramada – antecipando sílabas, alongando outras - que se faz necessária para manter a
inteligibilidade e naturalidade do canto.41
Mas um aspecto que chama a atenção neste debate sobre letra/música, e que surge como
algo fundamental, é a questão do prestígio, do status, do local ocupado por cada linguagem
dentro do campo artístico. Ainda hoje - como sugere Nelson Archer42 em artigo publicado
recentemente – percebe-se que há um grande debate sobre este tema, sendo que alas da crítica
literária não aceitam o “rebaixamento” de sua posição ao admitir que letras do cancioneiro
popular sejam consideradas poesia, assim como não aceitam a idéia de ver a poesia misturada à
canção comercial. De outro lado, os defensores da letra de música como poesia, buscam elevá-la
ao status desta última. Em outros países este debate parece não se colocar, uma vez que os
campos estão muito bem delimitados. No Brasil, esta questão ganha contornos que a tornam mais
complexa, quando a música popular, a partir dos anos 50 e 60, passou a conquistar uma
40
Luiz TATIT, A canção: eficácia e encanto.
Martha Tupinambá de ULHÔA, Métrica Derramada, Brasiliana 2, p. 48-56.
42
Nelson ARCHER, Letra de música é ou não é, enfim, poesia? Folha São Paulo. 05/10/2002. Caderno Ilustrado.
41
52
categorização de bem simbólico sofisticado e legitimado, e o músico também passou a ser
portador de uma identidade diferente daquela que tinha até então o compositor popular, visto
como menor, sem aceitação por parte da elite (embora tivesse muita popularidade), ganhando
assim legitimidade e consagração. Este processo de legitimação da música popular será melhor
desenvolvido mais à frente.
Ainda sobre a modinha, é importante atentar para o fato de que muitas de suas letras não
foram consideradas pela crítica e pela história literária brasileira como “literatura”. Talvez isso se
deva ao fato de que estas letras eram compostas para serem cantadas, o que era buscado no
momento de sua composição era a sua realização oral, a sua “vocalidade”. Na história musical
brasileira traçada neste capítulo, destacou-se os elementos de performance43 que estes estilos ou
gêneros musicais tiveram no passado. Entender que a modinha era uma poesia composta para ser
cantada, vocalizada, dá algumas pistas sobre o ato de sua performance que, por sua vez, sugere
indícios acerca de seus ouvintes. Indo além, pode-se chegar a momentos mais remotos em que é
percebida a presença desse elemento oral/vocal da modinha (e também da Bossa Nova): nas
canções de gesta medievais, “cantus gestualis”.
Foi assumido que as culturas se organizam em torno de sistemas de comunicação que
devem levar em conta a natureza das técnicas utilizadas para o ato comunicacional e também a
natureza de suas formas. Assim, as relações entre músicos e poetas, o conteúdo das letras das
canções, entre outros aspectos da modinha podem ser considerados como matrizes culturais da
Bossa Nova. Uma matriz cultural do cantar a mulher, o amor, a paixão, as angústias individuais
do sentimento não correspondido, como também cantar a noite, o ambiente boêmio. A modinha é
apontada como um primeiro gênero brasileiro de música popular urbana juntamente com o
chorinho, gêneros fruto da diversidade e do hibridismo próprios à cidade. Um outro aspecto
relacionado à modinha, é que ela parece ter sido o primeiro estilo de canção popular no Brasil
influenciada pelo Romantismo.
O Romantismo na música erudita pode ser caracterizado como uma tentativa de romper
com o equilíbrio entre a estrutura formal e a expressividade que se notava até o Neo-Classicismo,
por meio da busca de uma maior liberdade na forma, de uma expressão mais intensa das
emoções, abandonando as regras, a disciplina, o rigor e a objetividade do estilo clássico44. No que
43
“Peformance”, “vocalidade” e outros conceitos de Paul Zumthor serão melhor trabalhados em outros momentos da
tese.
44
Luis ELLMERICH, História da Música.
53
diz respeito à estrutura musical, pode-se notar uma maior riqueza harmônica, com a incorporação
mais sistemática de dissonâncias e maior lirismo nas melodias, o que as aproximava das canções.
A inspiração dos compositores românticos vinha do sentimento nacionalista (Wagner) ou da
natureza, com a noite, o luar, a mata, o mistério. Muitos músicos compunham sua peças tendo
como base os gêneros folclóricos de seus países, compondo valsas (Liszt), polcas (Brahms),
polonaises (Chopin), noturnos (Schumann), e não mais a melodia ou ritmos clássicos. As peças
se tornaram mais curtas, o que também se assemelha às canções. Além disso, o Romantismo
como visão de mundo, sugere um voltar-se para o passado, para o mundo arcaico, para uma
negação do presente e da modernidade, num refúgio na autenticidade da vida, encerrada na
natureza e não nas cidades, na noite e não no dia – visto como espaço do trabalho, da fábrica, da
racionalidade. É assim que se cultiva um valor aos espaços noturnos, como a boêmia, o ambiente
artístico, etc.
Desta maneira, a modinha como gênero que guardava ressonâncias com o Romantismo
pode ser vista como a introdutora, na música e na prática musical brasileira, da canção, que é a
junção de letra e música, e ainda de diversos outros elementos como uma maior informalidade no
jeito da apresentação e na forma de cantar, uma maior abertura para o intérprete da canção, a
possibilidade de encontros e sociabilidades em torno da música, uma inclinação a se falar dos
sentimentos, dos amores, da mulher amada. Estas características, verdadeiras instituições nessas
canções, estavam também presentes na Bossa Nova.
O cantar no ambiente da noite, falando do amor, falando à mulher amada, permitiu o
aparecimento da serenata. Como lembra Tinhorão, a canção solo não era bem vista, pois levava o
violão para as ruas, fugindo ao controle da cultura oficial. O temor era de que os homens, ao
cantarem acompanhados do violão, poderiam fazer usos dos gêneros musicais com malícia,
alterando letras e ritmos “para corromper as mulheres pela sugestão dos suspiros e dos versos
amorosos”45. A junção entre o violão e a flauta, utilizados nestas serenatas, com o cavaquinho,
daria origem, mais tarde, ao chorinho carioca.
Desta forma, o músico como alguém sedutor que canta à mulher, que pode corromper,
deve ser vigiado, controlado, pois torna-se um perigo para as mulheres e para a ordem
estabelecida, devendo ser evitado pelas famílias de respeito. Esse status do homem músico já
estava colocado desde os primórdios da canção no Brasil e perduraria até a Bossa Nova (claro
45
José Ramos TINHORÃO, Pequena História da Música Popular Brasileira.
54
que modificado, adaptado, com permanências e mudanças). Inúmeros são os depoimentos de
participantes da Bossa Nova que afirmam este aspecto.
Vale lembrar que a canção ressalta um outro aspecto importante e recorrente na música
popular: a musa. O cantar a música popular, bem como a possibilidade de várias interpretações,
remete a um sentido metafórico desse verbo cantar, que seria o cortejar, o seduzir. Esta “cantada”
é, na maioria das vezes, para a mulher, composta em sua função, usando assim a linguagem do
canto sobre o amor.46 A modinha parece, assim, levantar pistas a respeito de uma matriz, de uma
tradição na canção popular brasileira: a da figura masculina do autor cantando à mulher.
No que se refere ao século XX, vê-se que a forma de canção evidenciada pela modinha
perdurou (mesmo que modificada) por muitos anos, transformando-se e dando origem a variadas
expressões musicais, como o samba-canção, o sertanejo e outras formas musicais que se valem da
canção de apelo romântico, o que daria origem (claro que amplamente relida e juntamente com
outras influências) à Bossa Nova. Quando do surgimento das primeiras gravações de canções nas
primeiras décadas do século XX, a modinha se popularizou ainda mais, com vozes empostadas
como as de Francisco Alves, Vicente Celestino, Silvio Caldas, Orlando Silva. Importante
compreender este estilo musical, esta forma musical como uma das matrizes da Bossa Nova, no
jeito da canção, na forma poética, nas suas práticas sociais instituintes e na sua performance.
Retomando as relações entre modinha e lundu, pode-se argumentar que eles foram
contemporâneos e muitas vezes confundidos na literatura musical. Embora o lundu tenha se
aristocratizado e a modinha tenha se popularizado, pode ter havido aí um ponto de encontro e até
de coincidência dos dois estilos, que se confundiam em alguns momentos.
No entanto, há um traço característico do lundu, que o singulariza e que foi – a despeito
de toda a modificação que sofreu – sua marca, sua herança deixada à música que viria a se
estabelecer no Brasil no século XX: a síncope. Segundo Mário de Andrade47, este é um termo que
indica a escrita de um tempo fraco de um compasso prolongado até o outro tempo de maior ou
igual duração. A síncope não é uma exclusividade africana ou mesmo brasileira, estando também
presente na música clássica européia, em J.S.Bach, por exemplo. No entanto, seu uso clássico se
apresentava apenas na melodia, em que, num compasso quaternário se utilizava a soma de duas
semicolcheias centrais do grupo quaternário de semicolcheias. Já no lundu, é utilizada como
46
Eliane Robert MORAES, A musa popular brasileira. In: Carmem BARROSO e Albertina O. COSTA, Mulher,
mulheres.
47
Mário de ANDRADE, Dicionário musical brasileiro.
55
célula rítmica constitucional absoluta da estrutura musical, assumindo a função de uma entidade
de acento e tempo insubdivisível. Está aí a peculiaridade essencial presente em toda a música de
origem africana. Síncope que ao quebrar o ritmo, põe em relevo um certo requebrado presente na
estruturação musical e também no jeito de dançar. Interessante notar como no lundu - tal qual na
modinha -, há sempre um falar à mulher, “cantá-la”, com malícia, humor, unindo muitas vezes uma vez que era uma expressão afro-brasileira - a idéia da mulher e sua sensualidade com as
comidas afro-brasileiras, articulando o requebrar do ritmo com o requebrar da mulata.
Observando um pouco mais a música africana, nota-se que ela já possuía elementos
diferenciadores. A rítmica ocidental se baseia na divisão de uma dada duração em valores iguais,
onde tem-se o compasso, em que se tem uma quantidade de tempos pré-estabelecidos, havendo
uma semibreve, que se divide em duas mínimas, cada uma destas em duas semínimas e assim por
diante. Já a rítmica africana é aditiva, pois atinge uma dada duração por meio da soma de
unidades menores, que se agrupam formando novas unidades, que podem não possuir um divisor
comum.48
Este tipo de estruturação rítmica não é encontrada na música ocidental, a não ser nas
músicas eruditas contemporâneas, que já absorveram elementos de outras culturas, ao contrário
da música africana, em que este elemento rítmico faz parte do senso comum, transmitido entre as
gerações e freqüente até no universo musical infantil.49
Considerando a tradição africana, a síncope nas músicas brasileiras nada tem a ver com a
síncope clássica européia, devendo muito mais a este estilo rítmico africano de compassos mistos
geradores de ritmos compostos de três articulações - o chamado tresillo. Este último tem como
característica fundamental a marca contramétrica recorrente na quarta pulsação de um grupo de
oito, que fica assim, dividido em duas partes desiguais, diferentemente da música ocidental, na
48
Carlos Sandroni explica o fato de que nossa teoria musical prevê dois tipos de compasso - os simples e os
compostos. Nos primeiros, a unidade de tempo é binária (onde as unidades de tempo são as semínimas que,
dividindo-se sempre por dois, são equivalentes a duas colcheias, ou quatro semicolcheias, e assim por diante); e nos
segundos, as unidades de tempo são ternárias e representadas por semínimas pontuadas (divididas portanto por três
colcheias). Não há, assim, compassos que misturem sistematicamente agrupamentos de duas e de três pulsações,
diferentemente da música africana, em que há esta mistura, dando origem a períodos rítmicos pares, por exemplo,
3+3+2 (duas semínimas pontuadas + semínima). Mas a divisão destes períodos pares em dois, dava origem à duas
partes desiguais na métrica musical, a chamada imparidade rítmica. Isso era concretizado na música africana por
meio de “linhas-guia”, ou seja, representadas por palmas ou qualquer outro instrumento percursivo, dando a linha, a
base do ritmo, sendo que nem sempre era igual, mas se modificava, se improvisava, obedecendo o princípio da
subdivisão, a decomposição em valores menores. Carlos SANDRONI, Feitiço decente: transformações do samba no
Rio de Janeiro (1917-1933).
49
José Miguel WISNIK, O som e o sentido: uma outra história das músicas.
56
qual a contramétrica estaria na quinta pulsação, ou seja, no início da segunda metade de um
compasso simétrico. O paradigma do tresillo está presente em quase todos os ritmos americanos
que incorporaram ou mantiveram contato com a cultura africana, estando presente no lundu, na
habanera, no tango, na salsa cubana, no samba-de-roda baiano, no maracatu pernambucano, no
partido alto carioca, etc.
Um outro tipo de música que também contém esta característica do tresillo é o maxixe,
encarado como antecessor direto do samba. Esta dança, do final do século XIX, era urbana,
popular e carioca. Surgiu no bairro da Cidade Nova, fruto do aterro do Canal do Mangue, espaço
de divertimentos e inclusive de má fama.
Pelo recenseamento de 1872, este era o bairro mais populoso da cidade, com 26.592
habitantes, sendo que mais de 22 mil destes declaravam-se fluminenses. Esta concentração
populacional parece se explicar pelo fato de a decadência da cultura do café no Vale do Paraíba
estar em seu momento mais forte, o que fazia com que o excedente de mão-de-obra escrava fosse
atraído para o centro urbano mais próximo: a Corte. Assim, num bairro recém construído,
afastado da burguesia urbana em formação, surgia uma Cidade Nova, suja e pobre. Interessante
perceber que moravam ali não apenas negros livres ou escravos, mas também portugueses e
outros imigrantes recentes, atraídos pelos preços baixos dos aluguéis50. Isso acabou por gerar
processos de mestiçagem muito intensos e a configuração de um espaço urbano muito
diferenciado e peculiar no Rio de Janeiro; um local com comportamento social e cultura própria,
onde, entre outras coisas surgia uma dança nova.
Um tipo de dança nascido do esforço de adaptação dos ritmos à tendência que já se
esboçava por aqui, de se fazer passos com volteios e requebros, passando a ser praticado nos
bailes dos bairros populares do Rio de Janeiro, principalmente nos salões carnavalescos. É
possível dizer que o maxixe recuperou a força original do lundu com movimentos sensuais e a
criação de passos peculiares como “parafuso”, “balão caindo”, “corta capim”, entre outros51. No
entanto, guardava algumas diferenças, ainda que se afirmasse que o maxixe era uma nova
maneira de dançar o lundu. No lundu os participantes, inclusive os músicos, formavam uma roda
e acompanhavam ativamente com palmas e cantos os casais, feitos por um par de cada vez. Já no
maxixe, todos os pares dançam ao mesmo tempo, os músicos são externos à dança, não há mais
50
51
Delgado de CARVALHO, História da cidade do Rio de Janeiro.
José Ramos TINHORÃO, Pequena História da Música Popular Brasileira, passim.
57
roda e sim o “salão de baile”, em que os dançarinos não cantam e a música é apenas instrumental.
E mais, se o lundu era uma dança de par separado, o maxixe era uma dança de par enlaçado, daí
o escândalo que causava. Outro aspecto diferenciado é o de que o lundu guardava suas raízes no
mundo rural, no passado colonial brasileiro, enquanto o maxixe era fruto das cidades, do meio
urbano moderno52.
Não se pode esquecer que a sociedade carioca do momento, já começava abrir maior
espaço para este tipo de dança e este tipo de prática. Por esta época, o Rio já vivia os primeiros
tempos da República - já não mais Imperial e, talvez por isso, menos formal - onde a aristocracia
palaciana perdia espaço e poder para a burguesia urbana e industrial e para as camadas médias
emergentes na virada do século. Por outro lado, surgia também o proletariado que iria dançar
maxixe em suas gafieiras e levá-lo até as classes mais altas durante o Carnaval. Esta massa
urbana habitava os bairros próximos à região portuária da cidade e o próprio centro, em cortiços e
habitações conjuntas - pelo menos até a grande reforma urbana que o Rio sofreria em 1905 –,
num ambiente cultural, social e político que possibilitava este novo tipo de prática social, embora
com reservas, o que é atestado pelas inúmeras vezes em que foi proibido.
Há que se pensar sobre as relações que se travavam na sociedade carioca no que tange às
festas, ao Carnaval, ao ambiente público, à rua e a família no Rio de Janeiro do início do século.
A historiadora Rosa Maria Araújo53 analisa a interação que a família acaba tendo com a cidade e
seus espaços públicos, como fruto das mudanças do meio urbano. As mudanças nos valores e
atitudes tradicionais da incipiente burguesia urbana carioca acabaram por dar, segundo a autora,
uma certa identidade cultural ao Rio, em que não seria cabível falar em “tradicional família
carioca” da mesma forma que se fala da paulista ou da mineira. Um processo no qual foi
privilegiado o lazer e se produziu uma atmosfera social multicultural mais diversificada, com as
diferenças expostas a todo momento nas ruas, constituindo um espaço público que era não só das
classes populares, da boêmia, ou dos músicos e poetas, mas também da família nuclear burguesa.
Isso parece ser uma característica carioca que tem sua origem neste momento e vai se configurar
como permanente na sua identidade cultural, passando por inúmeros momentos de adaptação e
modificações, inclusive durante os anos 50 e 60. É importante verificar o quanto isso se mostra
exemplar quanto à vida nas cidades: uma dança popular praticada em bailes populares, que acaba
52
53
Carlos SANDRONI, Feitiço decente.
Rosa Maria Barbosa de ARAÚJO, A vocação do prazer: a cidade e a família no Rio de Janeiro republicano.
58
sendo incorporado, ainda que com preconceitos e reservas, pelas camadas sociais mais altas de
outros bairros - pela frequência destes últimos em bailes ou clubes Carnavalescos. Na própria
Bossa Nova é possível perceber este entrecruzamento. Restrita à zona sul a princípio, seus
participantes - muitos deles moradores de Copacabana e Ipanema - foram buscar - num
determinado momento e por motivações políticas - aspectos, estilos e práticas musicais da zona
norte, no espaço do samba como o bar Zicartola. É desse modo que começam a estabelecer
ligações com o samba do morro, com compositores como Zé Keti ou Cartola, trazidos ao
ambiente dos barzinhos da zona sul pelo show Opinião de Nara Leão, em 1964 e outros
espetáculos músico-teatrais que surgiam.
Estaria se configurando já nesta época, aquilo que seria concebido como o popular nos
anos 60, resultado de um movimento de setores das camadas médias que se misturavam,
trocavam influências, referências com setores das camadas baixas ligadas ao samba. Isto foi
motivado por questões políticas e por uma busca de ampliação de mercado. Mas, não seria
equivocado dizer que isto foi característico do Rio de Janeiro, próprio de uma cultura que é um
tanto particular deste meio urbano.
Embora uma discussão sobre a cidade esteja no capítulo 3, cumpre dizer que o meio
urbano é peculiar por estar mais propício para que os imaginários se cruzem e entrem em
conflito. Neste sentido, vale lembrar que a questão da cultura – ainda mais nas cidades – não
pode ser determinada como um campo estático. As noções de cultura erudita e popular têm
proporcionado muitas discussões e críticas, principalmente quando são visualizadas como
elementos isolados, separados e autônomos. Aqui se propõe assumir que a cultura passa por
embates, por movimentos de dominação e subordinação interiores e que, ao se tratar de cultura,
nada pode ser afirmado como autêntico, autônomo, independente e interior a si mesmo. Há uma
dialogicidade, uma luta cultural, com pontos de contenção e de resistência54. Desta forma, as
relações culturais na cidade, entre camadas médias, altas e baixas, são estreitas, tendo por base
esta luta, este embate entre pólos, marcado pela apropriação e expropriação de bens culturais e
em que nunca se alcançam vitórias definitivas, mas sempre posições que são conquistadas e
perdidas. É assim que se coloca, portanto, a idéia de que não existe uma personalidade urbana
uniforme, mas, pelo contrário, uma sensibilidade do citadino aos aspectos de reordenação social e
cultural.
54
Stuart HALL, Notas sobre la desconstrucción de lo popular. Op.cit..
59
O maxixe inventado na Cidade Nova teve como veículo de divulgação para as outras
áreas da cidade e entre outras camadas da sociedade, os bailes das sociedades Carnavalescas.
Estes bailes eram associações de recreio fundadas por indivíduos de comércio, um lugar para
dançar durante o ano e sair vestido nos dias do Carnaval, sendo as sociedades as financiadoras
dos carros, enfeites e fantasias de Carnaval. Estas agremiações surgiram exatamente neste
momento de ampliação e implementação da vida urbana carioca, econômica, política, social e
culturalmente, em que velhos e rígidos hábitos patriarcais estavam mais afrouxados, permitindo
novos hábitos, como a criação de novas formas de diversão fora do âmbito familiar para os
homens das camadas médias urbanas. Nestes encontros masculinos - proibidos às mulheres de
família – falava-se sobre mulheres, negócios, política, e se aprendia a praticar a nova dança.
Ainda em relação ao maxixe, é possível notar, como aponta o musicólogo Carlos
Sandroni, o grau de imprecisão terminológica musical que o acompanhava. Na imprensa, na
literatura, nos variados discursos do final do século XIX, há uma grande confusão quanto à
denominação dos gêneros musicais: lundu, polca, habanera, tango brasileiro – todos estes nomes
e a combinação entre eles eram utilizados para descrever o maxixe, ou o gênero musical que
embalava o gênero55. No entanto, o mais importante aqui não é a exatidão da nomenclatura, mas
a compreensão de que esta confusão se dava por serem todos os estilos muito parecidos e por
possuírem uma matriz, um tronco comum, que é o paradigma do tresillo. Isto quer dizer que
todos estes ritmos coexistentes no Brasil em fins do século XIX tinham em comum esta raiz
africana, caracterizada pela síncope, o compasso quebrado que originava o requebrado na dança.
Aqui, explicita-se o aspecto de miscigenação já posto, em que a mistura de influências, estilos,
culturas se dá de maneira muito forte, recorrente e dinâmica na tradição musical do Brasil, sendo
difícil e até dispensável a tentativa de estabelecer fronteiras fixas e precisas entre influências e
estilos, separando-os.
No entanto, havia uma busca - ainda incipiente, mas que teria sua formulação mais
consistente na década de 30 do século XX, com o samba - de se estabelecer um ritmo, um estilo,
um gênero musical nacional, genuíno o que, naquele momento, foi o maxixe. Buscava-se por
uma definição do que fosse o autêntico, o verdadeiramente nacional, associado aqui ao que
parecia mais popular, e tido como sucessor direto do gênero musical africano, o lundu. Tem-se,
portanto, o esboçar de uma construção da identidade nacional ligada, entre outras coisas, à
55
Carlos SANDRONI, idem.
60
sensualidade, à malícia, ao requebrado da dança e ao elemento negro. Isto se deu dentro de um
debate intelectual e cultural que buscava afirmar a identidade a partir do meio e da raça (o que
acaba se revelando numa atitude racista em autores como Silvio Romero, Nina Rodrigues e
Euclides da Cunha), afirmando o brasileiro como indolente e sensual, a partir de uma apropriação
das noções românticas e evolucionistas européias, mas buscando o que lhe era específico.56
O que, de qualquer forma, é necessário reter acerca da história do Rio de Janeiro nesta
época, é a compreensão de uma edificação de espaços urbanos que terão relação com os espaços
musicais, uma vez que atuam na configuração dos imaginários sociais, em que pontos, locais da
cidade expressam memórias, experiências comuns. Daí a importância de atentar-se para os
espaços construídos pelos sujeitos participantes do universo musical carioca, locais de prática
social.
O Rio de Janeiro tem se mostrado como uma cidade peculiar no que diz respeito a sua
configuração urbana. Havendo uma cadeia de montanhas atravessando-a como uma espinha
dorsal, e ainda o mar e a Baía de Guanabara, percebe-se que a ocupação urbana foi seguindo um
ritmo ou um desenho que acabou por parecer isolar as partes (zona sul, zona norte e central),
configurando-lhes características específicas, dando-lhes contornos comportamentais e culturais
muito próprios. Por outro lado, promoveu um misturar de influências, em que estas fronteiras não
são fechadas ou impermeáveis, mas fluidas e nas quais, como já foi discutido, a cidade promove
estes desordenamentos culturais e sociais. Assim, considera-se importante ver um pouco da
história urbana do Rio.
Durante as últimas décadas do século XIX, o processo de consolidação política e nacional
brasileira foi acompanhada por uma ênfase no tema da integração brasileira aos parâmetros
europeus. Desta forma, grande importância foi dada a assuntos como saúde pública, controle
sanitário e regulamentação das habitações populares - os cortiços. O saber e a ciência passavam a
ser os parâmetros, em torno do qual se organizava o imaginário dominante brasileiro, pautado no
binômio civilização e progresso. Nesse sentido, os médicos, sanitaristas, engenheiros, técnicos
tiveram papel relevante, na consolidação e difusão dessa concepção de modernidade, que
supunha uma incorporação de todos em direção ao progresso, numa inserção do Brasil na Belle
Epòque57. Logo após a Proclamação da República, em 1889, e a instalação do regime
56
57
Renato ORTIZ, Cultura Brasileira e Identidade Nacional.
Nicolau SEVCENKO, Literatura como missão.
61
republicano, o Rio de Janeiro passou por uma completa remodelação urbana, em que foram
priorizadas obras de melhoramento do porto e do cais comercial, abertura de avenidas, demolição
de cortiços do centro da cidade. Tudo tendo como pressuposto as idéias de higienização
propagadas e colocadas em ação por Osvaldo Cruz. Era necessário modernizar e embelezar a
cidade e, para tanto, a higienização do espaço urbano passou a ser indispensável. Uma
higienização com funções estéticas, médicas mas também étnicas e sociais: a “limpeza” da cidade
supunha um afastamento dos pobres e dos negros, das camadas baixas, enfim, que por ali viviam,
circulavam e habitavam ruas e cortiços.
Durante a gestão municipal de Pereira Passos (1903-1906), o Rio passou por uma grande
reforma, onde procurava-se, por um lado, enfrentar os problemas de insalubridade urbana e, por
outro, embelezar a capital federal. Para isso, dois engenheiros (cujos nomes estão perpetuados em
duas famosas avenidas cariocas) colaboraram com seus projetos de planificação urbana: Paulo de
Frontin e Francisco Bicalho. Dentre suas principais obras, estão a abertura da Avenida Central
(Avenida Rio Branco a partir de 1912) - uma artéria rasgada de mar a mar do Largo da Prainha à
Praia de Santa Luzia (hoje, respectivamente, Praça Mauá e Praça Paris) -, a construção do Cais do
Porto num aterro da Praça Mauá até a embocadura do Canal do Mangue, a extensão até lá dos
trilhos da Central e da Leopoldina e a construção da Avenida Rodrigues Alves, da Beira Mar,
entre outras obras.
Ao mesmo tempo, procurava-se alargar as estreitas e insalubres ruas do centro, como a
Assembléia, a Carioca, a Visconde do Rio Branco, a Frei Caneca, a Uruguaiana, só para citar
algumas. A preocupação com o embelezamento da cidade vislumbrou a construção de jardins
como o Campo de São Cristóvão assim como a remodelação e ampliação das praças Tiradentes,
XV de Novembro, entre outras.
Nesse mesmo sentido de planificação urbana, de abertura de vias e artérias que ligassem a
cidade, a administração Pereira Passos deu atenção à melhoria do acesso à zona sul, construindo a
Avenida Beira Mar que, ligando a antiga praia de Santa Luzia até o Botafogo, foi edificada em
aterros. A avenida passou a ligar os diversos bairros da zona sul e facilitou a criação de outros.
Nesse período, foi dada atenção à melhoria das condições de higiene, saneamento e estética da
Lagoa Rodrigo de Freitas, configurando um novo traçado aos rios da região, construindo praças e
62
jardins abertos. Em 1906, foi aberto o segundo túnel até Copacabana58, onde foi construída a
Avenida Atlântica ao longo de toda a praia, dando origem ao bairro que mais tarde seria o locus
privilegiado da Bossa Nova e de outras expressões culturais.
Mas, voltando ao início do século, percebe-se que a zona sul e Copacabana ainda não
eram territórios musicais, Isto só viria a ocorrer na década de 40. Naquele momento, o território
musical carioca por excelência era o centro e suas circunvizinhanças59.
Até aqui, falou-se da música dos negros, a música de origem africana ser designada por
diferentes nomes, tendo em comum a umbigada, o ritmo sincopado que dá origem a uma dança
requebrada, identificada sempre por um acompanhamento feito por batuques (nome genérico
dado a todos os gêneros africanos ou praticados por negros). A partir do início do século XX, é
uma outra palavra geral que se teria para designar estas sonoridades – o samba. Esta palavra não
é nova, estando presente em documentos diversos desde o século XVIII, referindo-se sempre ao
universo cultural negro, ligada a uma tradição rural e não urbana. Quando, no início do século,
passou-se a denominar o ritmo “urbano carioca popular de origem africana” que se praticava
como samba, isto indicava um duplo movimento: um, ligado ao folclórico das raízes coloniais
rurais (principalmente da Bahia), de se denominar samba o que até aí era ligado ao “batuque”; e
outro, ligado ao popular urbano carioca, substituindo o maxixe (ou até o tango brasileiro).
Essa questão é importante na medida em que salienta um tentativa de definição (depois de
inúmeras outras definições e redefinições) de um gênero musical com dupla filiação: uma
folclórica, rural, colonial e outra popular, urbana, fruto da modernidade da virada do século. Estas
duas filiações fundidas numa única palavra, num único gênero musical, para além de deixarem
entrever a dificuldade de se estabelecer separações entre folclórico, popular e mais tarde,
massivo, apontando para a miscigenação cultural existente, denota também uma “convergência
ideológica”60 do que se queria como o ritmo nacional por excelência – o que só aconteceria, de
fato, na década de 30.
Esse processo ressalta o quanto a cidade vivia num ambiente difuso de convivência mútua
entre o velho e o novo. Formas tradicionais de visões de mundo, práticas e valores e as novas
formas culturais emergentes, em que a música popular transitava entre o universo rural ainda
58
O primeiro túnel, o Túnel Velho, foi construído em 1892. O segundo, o do Leme, ficou conhecido como Túnel
Novo. Eneida BERGER e Paulo BERGER, Copacabana: história dos subúrbios.
59
Simone Luci PEREIRA, Memórias de Copacabana: um hotel-monumento. Revista Cultura Vozes, n.5, v.91, p.137148.
60
Carlos SANDRONI, ibidem, passim.
63
sedimentado no dia-a-dia da cidade e o mundo urbano em construção. Mas é preciso entender
quais as relações que se davam entre estes traços folclóricos e populares num mesmo gênero, o
que remete às relações de origem de cada vertente – a primeira na Bahia, e a segunda no Rio de
Janeiro. Porém, faz-se necessário entender também a história social desta relação entre a cultura
baiana e carioca no Rio de Janeiro na virada do século.
Compreendendo a trajetória histórica carioca neste momento, evidencia-se um espaço
marcado por um cosmopolitismo repleto de contradições, fragmentado entre o universo rural e o
mundo urbano, em que despontariam tensões sociais e culturais elaboradas pelas experiências de
negros, imigrantes e indivíduos vindos do campo, a maioria sobrevivendo como sub-empregados,
desempregados, ambulantes, pequenos artesãos, operários, etc. Toda esta trama social
proporcionou conflitos/encontros sócio-culturais muito peculiares, que acabaram por dar um tom
à trilha sonora do cotidiano carioca, uma sociedade repleta de tensões e contradições que se
intensificaram na nova realidade em construção a partir de então. Aqui, é necessário lembrar que
a música popular é parte de uma realidade urbana com certa diversificação social.
No contexto de um país em transformação passando por mudanças econômicas e sociais a
partir do ciclo cafeeiro, explicitando um ambiente que se modificava rápida e intensamente, fazse presente também uma vasta população empobrecida e miserável à margem deste processo.
Ora, as malhas urbanas não possuindo condições de absorvê-los em atividades produtivas (pois
eram negros recém-libertos, imigrantes e migrantes nordestinos), acaba por expulsá-los, fazendo
com que passassem a viver numa espécie de semi-legalidade de precária cidadania ao se
incorporarem ao pequeno comércio de rua e ao sub-emprego61. Vale lembrar que cada um desses
grupos e ainda os cidadãos brancos da cidade já traziam consigo um conjunto de experiências
sociais específicas e que, ao se encontrarem nas ruas e em espaços públicos, surgiram diversas
situações de tensão, em que as representações culturais estabeleceriam a luta pela permanência e
sobrevivência por meio das misturas, associações, formas de solidariedades e conflitos.
Parece ter sido justamente nas fusões e confrontos entre essas diversas experiências que o
samba iria se estabelecer e se reproduzir. O processo de constituição da música carioca popular
oscilava na instabilidade das relações e mútuas influências entre o universo rural e as formas de
representação proporcionadas pelo mundo urbano. Isso fica ainda mais claro quando se lembra
(como já foi dito) das transformações desta cidade em expansão, que passava por mudanças
61
José M. CARVALHO, Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi.
64
estruturais, tendo em seguida ocorrido uma ação e um controle do poder público municipal no
sentido de estabelecer uma “nova ordem urbana” preocupada com o embelezamento, o
saneamento e a normatização deste espaço, excluindo os personagens que não se conformavam a
este projeto, como mendigos, ambulantes, negros, mulatos, nordestinos, prostitutas e os
habitantes do cortiços, perfazendo assim, uma prática de segregação, que resultou na divisão da
cidade em áreas nobres e pobres. Aí se ressaltam os espaços de convivência que passaram a ser
formados pelos excluídos deste projeto. Os muitos nordestinos baianos que migraram para o Rio
acabavam por formar uma certa “comunidade baiana” na cidade, mais precisamente nos bairros
da região portuária, ligados por fortes laços de solidariedade.
Isso se deve em grande parte pelo poder agregador das famosas “tias”, velhas baianas que
exerciam liderança na organização da família, da religião e do lazer, promovendo reuniões e
ajuntamentos em suas casas. Dentre elas, estão Tia Amélia e Tia Perciliana, mães de Donga e de
João da Baiana, respectivamente, que se tornaram famosos sambistas. Foi na casa de Tia Ciata,
famosa na história do samba por promover reuniões em sua casa na Praça Onze, que, em 1917 foi
composto coletivamente (embora seja Donga seu autor oficial) o primeiro samba gravado: Pelo
telefone. Foram estes sujeitos, nas reuniões das tias baianas, nas ruas e nos botequins, que criaram
uma produção musical classificada e batizada como samba.
Assim, nestes primeiros tempos, samba tinha ainda um sentido de festa, como atesta
Oneyda Alvarenga. Era qualquer baile popular com música, dança, comida, bebida, candomblé, e
onde tudo era concebido de forma não-separada, expressando aspectos variados da cultura
africana, sendo espaço de sociabilidade entre estes sujeitos. Vê-se que aqui se delineia um perfil
das festas ou bailes populares no Rio de Janeiro, indicando quais eram esses outros locais de
convivência que as camadas populares vinham constituindo, criando novos modos de reprodução
e difusão de sua cultura, num momento em que ainda não haviam se configurado as efetivas
modificações produzidas pelos meios
de reprodução gerados pela indústria radiofônica e
fonográfica.
No entanto, há que se ter cuidado para não cair na armadilha analítica de se compreender
o mundo das reuniões de Tia Ciata como algo isolado, impermeável, fechado e, por isso, puro e
autêntico, em que haveria, de um lado, o mundo do samba e, de outro, o mundo dos que são
exteriores a ele. O que se percebe é que muito do mito que se criou em torno da casa de Tia Ciata
tem a ver com o prestígio e a boa fama que ela gozava na sociedade carioca (ainda que em apenas
65
algumas parcelas desta). Esposa de um negro baiano que chegou a estudar medicina e trabalhava
no gabinete do chefe da polícia da capital federal, ela também era uma referência do universo
negro para as elites cariocas: na forma como tecia suas relações, sustentava a formação de uma
identidade negra baiana no Rio de Janeiro, ligada ao quitutes, aos orixás, à confecção de roupas e
alegorias de Carnaval.
Isto aponta para uma não-separação absoluta entre o mundo popular do samba e a
pequena burguesia urbana, e parece delinear formas de convivência entre as camadas sociais no
Rio de Janeiro, onde a própria espacialidade da configuração urbana proporciona o encontro, o
embate e também as maneiras de serem edificadas formas de misturas, pois a moradia das classes
populares não fica apenas nas periferias ou subúrbios da cidade mas na própria zona sul atual do
Rio, ocupada por condomínios da elite mas também por favelas, o que permite um certo tipo de
convivência.
Não se trata aqui de afirmar que esta convivência, por este motivo, seja pacífica, ou que se
encontrem abrandadas as diferenças sociais, o que se quer é salientar que há o encontro, a
percepção da existência do outro de maneira muito mais facilitada, como parte do cotidiano
carioca, configurando relações de hegemonia e não tanto de isolamento. Este aspecto iria se
constituir, inclusive, em uma das matrizes culturais do encontro entre a Bossa Nova e o samba
nos anos 60, em que passa a fazer parte dos estilos de vida das camadas médias intelectualizadas
da zona sul carioca um certo flerte com o universo popular, o samba, o Carnaval e suas escolas (o
marco paradigmático é a trajetória de Nara Leão).
Outro aspecto atesta uma permeabilidade de influências entre diferentes camadas sociais é
a organização espacial das festas nas casas das tias baianas. Havia sempre o batuque nos fundos,
o terreiro onde acontecia uma espécie de dança mais “primitiva” e “violenta”, algo próximo à
capoeira; o samba dançado na sala de jantar, o que significa que ele, como festa com música
africana, ficava neste ambiente mais recolhido da casa; e havia também o baile na sala de visitas,
que era o local onde os pares dançavam separados.
Ora, isto indica uma tentativa de organizar em espaços concretos diferenciados, práticas
culturais também diferenciadas, onde da sala de visitas até o terreiro, penetrava-se mais e mais
nas raízes da cultura africana e nas práticas cotidianas destes sujeitos. E mais, indica que na sala
de visitas, talvez pudessem ser recebidas pessoas cujo acesso à sala de jantar seria negado e,
66
inversamente, na intimidade da sala de jantar, as pessoas da casa poderiam se entregar às práticas
e comportamentos talvez intoleráveis às visitas formais.
A busca por delimitar espaços privados das casas com “biombos culturais”62, como diz
Muniz Sodré, era uma tentativa por preservar a intimidade, passando de lugares mais formais,
para outros, menos formais e mais “autênticos”. Isso denota, por um lado, que se havia uma
preocupação em fazer na sala de visitas um ambiente mais formal e comportado, era porque
pessoas alheias àquele universo popular negro freqüentavam também a casa. Por outro lado,
indica o quanto os traços europeus e elitizados de concepção arquitetônica e espacial das casas
também estavam sendo incorporados nestes locais, onde buscava-se a intimidade, a separação
entre áreas mais privadas da casa e outras mais livres à circulação geral. Tinhorão63 conta
inclusive que, ao contrário do Café Paraíso e de outros bares que eram pontos de encontro dos
músicos das camadas populares, a casa de Tia Ciata não recebia apenas boêmios e negros, mas
também profissionais como marceneiros, alfaiates, pequenos funcionários públicos, baianos bem
sucedidos no Rio e até repórteres brancos, como é o caso de Mauro de Almeida, autor da letra de
Pelo telefone, segundo foi registrado oficialmente. No entanto, vale lembrar novamente, não se
pode encarar estes “biombos” como uma interdição, mas muito mais como delimitador de
fronteiras, que são, no entanto, fluidas, sutis, permeáveis ou como filtros que selecionam o que
deve ser transportado de um lado a outro.
Na bibliografia sobre o samba, predominam abordagens que polarizam a visão do samba
na sociedade, colocando-o como algo isolado, cultura resistente à dominante, reprimido como
algo que tinha que se realizar e ser praticado escondido. Essas teses podem não se revelar
consistentes, na medida do que foi formulado acima. Hermano Vianna64 afirma que o grande
“mistério” do samba é exatamente compreender de que maneira este gênero musical foi aceito e
incorporado pelas elites como coisa de negros. Parece que desde seus primórdios, sempre existiu
entre samba e elite um interesse e apoio por parte das últimas, convivendo com a repressão e um
certo preconceito. O samba e a cultura africana não foram somente objeto de perseguição, mas
parceiros de um diálogo cultural de influências recíprocas como uma espécie de miscigenação, já
demonstrada no lundu. Perceber as mediações existentes neste processo é o que há de mais
desafiador no estudo do samba.
62
Muniz SODRÉ, Samba, o dono do corpo.
José Ramos TINHORÃO, Pequena História da Música Popular Brasileira.
64
Hermano VIANNA, O mistério do samba.
63
67
É desse modo que o ouvinte na cidade do Rio de Janeiro vai ganhando contornos próprios,
constituindo, desde o início do século XX, uma escuta musical mais aberta, incorporadora de
características diversas, em que o nomadismo está presente, mas não sem restrições, conflitos e
hegemonias. Quando se vê o bairro da Lapa atualmente e sua ambiência um tanto cosmopolita,
onde convivem bares e casas noturnas de diversos estilos musicais, com sujeitos advindos de
diferentes locais da cidade e de diferentes gerações, isso fica mais claro.
Stuart Hall65, ao trabalhar com o conceito gramsciano de hegemonia, colaborou para a
reformulação e crítica de uma teoria funcionalista sobre os meios de comunicação de massas
como poderosos e absolutos. Ele defende a necessidade de se pensar – quando se trata de
ideologia e do poder – em negociações, compromissos e mediações, evitando a idéia de alinhar
mecanicamente as questões culturais e ideológicas às de classe e de base econômica. Segundo
Hall, os processos culturais envolvem produção, circulação, distribuição/consumo e reprodução,
assumindo formas próprias, ainda que articuladas entre si e mais, é necessário definir maneiras
de decodificação das mensagens, entre elas a negociação como uma mescla de elementos de
oposição e adaptação, um misto de lógicas contraditórias que representam tanto os valores
dominantes, como também as apropriações por parte dos receptores relacionadas com suas
formas de vida.
Antonio Gramsci66 destaca o fato de não se poder compreender o popular como algo
produzido por, pelo povo ou para o povo, mas sim como aquilo que é adotado pelo povo,
apropriado por ele, por ser adequado às suas concepções de mundo. Vem daí a noção de não se
pensar a cultura popular como algo em si mesmo, algo isolado, autônomo, mas situada num
campo mais global, não podendo ser compreendida como pura e livre de contaminações. Há que
se notar que a relação da cultura popular com outras, é uma relação de forças, de luta por
hegemonia dentro do campo cultural e não algo que já possui as relações de dominação préestabelecidas, como muitas tendências supõem. Quando argumenta que não se pode pensar em
blocos isolados, Gramsci não se refere à cultura popular como resistência, como contestatória à
cultura hegemônica, mas fala sim de apropriação e decodificação, fala de um campo de luta pela
construção da hegemonia movediço, transitório, onde se ganha e se perde posições, enfim, um
campo onde nada é dado previamente.
65
66
Stuart HALL, Encoding/Decoding. In : ______ et alli. Culture, Media, Language.
Antonio GRAMSCI, Literatura e vida nacional. E também ______ Cartas do cárcere.
68
Nesse sentido, é possível pensar a música urbana carioca, e neste caso específico, o
samba, como manifestação popular sim, mas um popular constituído historicamente em relação
com o folclórico, com o rural, e também fruto do urbano, de um incipiente cosmopolitismo
carioca da virada do século em que conviviam influências culturais rurais, negras, européias e
também se percebia um grande nível de diversificação econômica e social. Tomado dessa forma,
o samba é exemplar para se pensar numa idéia de “cultura híbrida”67, como sugere Nestor
Canclini, aludindo este hibridismo à idéia de uma cidade, onde entra-se pelo popular, sai-se pelo
massivo, passa-se pelo erudito, cruza-se com o rural/folclórico. Assim é que se compreende na
cidade do Rio de Janeiro, bem como as manifestações culturais nela inscritas, uma trilha sonora
das experiências cotidianas das camadas populares.
Só assim é que se pode compreender o momento em que o samba se tornou mais
popularmente conhecido socialmente, quando de sua primeira gravação em 1917. O primeiro
aspecto a chamar a atenção é que a música tem como autor Donga, um dos muitos frequentadores
das reuniões em casa de Tia Ciata. No entanto, o que se sabe, é que os sambas ali compostos
eram coletivos, feitos por todos juntos, improvisando uma melodia, alterando uma nota ou outra,
acrescentando um verso, enfim, compondo conjuntamente, como mais uma atividade de
sociabilidade. A definição da autoria se deve às necessidades de um mercado fonográfico em
formação, em que a figura do autor era importante para dar legitimidade à nova música, e
permitir seu registro na Biblioteca Nacional, garantindo os direitos autorais ao seu compositor.
Isso é fundamental, pois compreender a história musical do Brasil até aqui, era tarefa em que se
supunha não encontrar (ou encontrar muito dificilmente) o autor das músicas. As reuniões
musicais, as apresentações, os encontros enfim, eram eventos coletivos, onde os músicos
reuniam-se como amadores, num tom informal e de sociabilidade, sem tanta preocupação
comercial ou de mercado, pois a concepção de autoria individual não se mostrava como algo que
merecesse atenção por parte dos músicos, uma vez que a música não era propriamente um meio
de vida para aqueles frequentadores das reuniões. A partir daqui, com o sucesso alcançado pela
gravação, a busca pela afirmação da autoria, com o registro do direito autoral, passou a ser cada
vez mais constante e assumida, gerando inclusive brigas entre músicos como Donga e Sinhô.
O sucesso da música deveu-se também aos esforços do mercado fonográfico em lançá-la
para o Carnaval de 1917 (a letra sofreu alterações, passando a citar o Carnaval). Esta época do
67
Nestor G. CANCLINI, Culturas Híbridas.
69
ano era o momento ideal, no Rio de Janeiro, para o lançamento de canções que almejavam o
sucesso popular. Antes chamado “entrudo”, o Carnaval era uma festa que praticamente inexistia
nos primeiros séculos de colonização, sendo praticado apenas algo parecido em datas festivas
oficiais. Figurando como reminiscência das festas pagãs greco-romanas, sugeria dias em que as
regras morais e de conduta seriam afrouxadas, onde escravos saíam nas ruas sujando-se uns aos
outros com farinha e polvilho e as famílias da elite ficavam em casa comendo, bebendo, jogando
tinas d’água em quem passasse na janela. Porém, não havia música, cantiga ou mesmo um ritmo
musical que desse a tônica da festa.
Isto permaneceu assim até finais do século XIX, quando as novas camadas médias
urbanas começaram a buscar, nestes dias, novas formas de diversão que não se assemelhassem à
promiscuidade das comemorações dos negros. Começaram a promover bailes de Carnaval, onde
dançavam a polca, dança trazida da Europa e a primeira praticada nos salões carnavalescos do
Brasil. Ao mesmo tempo, se instituiu outra prática de Carnaval: o desfile de carros alegóricos.
Já entre as classes populares, na tentativa de fugir à repressão policial contra a maneira de
brincar nos dias do entrudo, buscaram na tradição religiosa das procissões uma nova maneira de
folia: os cordões, formados por uma massa compacta de fantasiados, ao som de instrumentos de
percussão, avançando pelas ruas de maneira um tanto anárquica, uma vez que cada folião
dançava ao seu jeito. Desta maneira, o Carnaval, tornando-se uma festa cada vez mais popular
nos primeiros anos do século XX, necessitava também de um ritmo que o identificasse e o
organizasse, pois as músicas reuniam um pouco de tudo: trechos de árias de ópera, músicas
folclóricas do nordeste, entre outras. O samba, juntamente com a marcha, foram ritmos muito
bem aceitos na musicalidade carioca, entre outros motivos, por darem um rosto, uma identidade
ao Carnaval, por se tornarem as “músicas de Carnaval”, pois nos primeiros anos do século XX,
essa festa parecia expressar as contradições, multiplicidades e a diversidade social da cidade,
onde se misturavam elementos de diferentes matrizes culturais. Haviam as camadas baixas que
desfilavam na Praça Onze, as camadas médias que desfilavam em cordões (estes também já
incorporados por esta parcela da população) na Avenida Central (hoje Rio Branco) e os ricos que
desfilavam nos corsos com automóveis e brincavam nos grandes clubes.
Quanto à marcha, vale dizer que ela, com seu compasso binário, marcando o tempo forte,
mostrava-se muito adequada ao cortejo de rua, dando ritmo aos passos dos foliões. Vale lembrar
que o samba, a partir de 1917, embora tenha alcançado maior popularidade, soava muito rude e
70
estranho aos ouvidos das classes médias – devido ao seu toque muito amaxixado. Camadas estas,
muito mais ligadas a uma tradição melódica e rítmica mais conservadora, ligada à polca européia,
do que ao ritmo sincopado dos negros. Nesse sentido, é que a marcha ou “marchinha” acabou
sendo incorporada nos bailes e festas das camadas médias e altas concomitantemente ao
aparecimento do samba, como alternativa e até como negação ao ritmo, passando a se
desenvolver nos anos 20 e continuando por décadas nos carnavais dos clubes cariocas, tendo
também influências do ragtime americano.
Desta forma, tem-se a instauração de um ritmo oficial para o Carnaval e a fixação deste
como grande lançador de gêneros e de músicas novas, momento em que se passou a compor,
gravar e lançar músicas para que fizessem sucesso nesta época do ano. Delineia-se aí um
incipiente mercado fonográfico, que será melhor discutido adiante.
Detendo-se um pouco mais nos detalhes da gravação do primeiro samba, é possível
perceber a modificação de elementos musicais que denotam uma ação do mercado na arte e na
cultura. Sandroni68 cita depoimentos dos primeiros sambistas, contando que tiveram – na hora de
gravar o primeiro samba – de escolher algo do repertório coletivo com maiores possibilidades de
ser aceito na sociedade. Isto pode revelar uma escolha de letras, imaginários e elementos culturais
mais adaptados e “arrumados” para virem à tona e terem lançamento fora do circuito das festas
das tias baianas. Moldar estes elementos culturais para se adequarem aos meios de divulgação
existentes, significava tanto escrevê-los em partituras para piano, identificar-lhes um autor, fixarlhe o gênero ao qual pertencia (o que era inscrito tanto na partitura como no disco), fazer-lhe
arranjos para a banda, como também, mudar-lhe inclusive a sua letra.
Quanto a este último aspecto convém salientar que a letra original foi modificada por
diferentes motivos. Sandroni ressalta que, ao invés de “o chefe da polícia pelo telefone manda me
avisar que na Carioca tem uma roleta para se jogar”, foi gravado e impresso “o chefe da folia pelo
telefone manda me avisar que com alegria não se questione para se brincar”. Se em lugar de
“chefe da polícia” foi colocado “chefe da folia”, isso tem a ver tanto com a tentativa de ressaltar
o Carnaval na letra quanto com as intenções mercadológicas de fixar o novo gênero como música
associada a este evento assim como também foi uma forma de amenizar uma crítica ao poder e às
autoridades, com a letra sugerindo uma possível indiferença ou complacência por parte da
polícia frente ao jogo, que era proibido. Outros versos foram mudados em busca de uma rima
68
Carlos SANDRONI, Feitiço dcente.
71
formal, obedecendo às regras de rima tradicionais, algo ausente na letra original por não ser uma
preocupação dos sambistas.
Verifica-se, desse modo, que o samba, ao entrar para o mercado, modifica-se, perde
alguns elementos mais originais, autênticos, ingênuos, espontâneos, fruto da sociabilidade e da
informalidade das reuniões na Praça Onze. Como atesta Claudia Neiva Matos69, deixa de ter
apenas valor de uso e passa a ter valor de troca, ou seja valor comercial, produto de um mercado
fonográfico em vias de se industrializar. Assim, passa a seguir as regras também de um campo
cultural em busca de hegemonia, em busca de se afirmar como música popular por excelência, o
que traz, invariavelmente, a tentativa de se enquadrar à arte, à produção cultural com regras
estabelecidas pelo mercado, ainda que este fosse incipiente70.
Entretanto, não se procura firmar aqui uma visão purista acerca da cultura, resvalando
numa análise que vê na gravação do primeiro samba, exatamente o momento de sua morte, ou
seja, o fim de sua característica espontânea, autêntica, amadora e, por isso, melhor. O que se
compreende é que o samba se modificou, sim, alterou-se, ajustou-se, adaptou-se a exigências do
mercado, mas continuou a guardar traços de sua matriz cultural, da cultura negra das camadas
baixas do Rio de Janeiro, sendo uma das expressões de sua cultura. Mesmo modificado, híbrido,
miscigenado, o samba continuaria ativo, inovador, revelando elementos populares que nos
lançam interpelações a partir da cultura massiva. Mesmo sem os elementos mitificados da
origem, da raiz, ou com estes elementos muito menos aparentes, a cultura negra e o samba se
tornariam “popular-massivos”71, ou seja, como exemplares de um campo cultural de
contradições, movediço, fluido, onde figuram trabalho e ócio, legalidade e ilegalidade, ordem e
resistência, num circuito de entrelaçamentos, de idas e vindas, superposições evidenciadoras de
uma outra lógica, repleta de estratégias e táticas que se revelam como o caminho utilizado pelas
classes dominadas para o reconhecimento social.
Importante destacar aqui um debate que perdurou até a década de 20 em relação ao
samba, época em que se pode afirmar como sendo sua fase de definição: a briga existente entre
Sinhô e outros músicos fundadores do samba quanto a sua filiação baiana ou sua peculiaridade
carioca. Sinhô era um músico considerado erudito, se comparado aos outros, pois conhecia teoria
musical, era pianista e foi uma das grandes figuras que ajudaram a consolidar e difundir o samba.
69
Claudia Neiva MATOS, Acertei no Milhar: samba e malandragem no tempo de Getúlio.
Pierre BOURDIEU, As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário.
71
Jesús MARTIN-BARBERO, Dos meios às mediações.
70
72
Muito por sua causa, o gênero passou a ser identificado com a cidade do Rio de Janeiro, num
momento em que estava ainda realmente circunscrito ao espaço da cidade, e também por isso,
guardando uma certa identidade carioca como gênero musical nascido nesta cidade. Esta filiação
era motivo de controvérsias. Entre os próprios sambistas, havia a ala que buscava a filiação
baiana da música, ao que Sinhô (na verdade José Barbosa da Silva), se contrapunha72.
Coincidentemente com o falecimento de Sinhô, em 1930, o samba entraria em outra fase, a fase
de efetivação, onde o debate não se dava mais em função de sua filiação baiana ou carioca, mas
sim em torno de seu caráter nacional, como expressão brasileira, não tendo filiação regional
dentro do projeto nacional integrador varguista.
A partir da década de 20, tem-se o desenvolvimento e a paulatina aceitação deste novo
gênero musical, ainda em processo de definição. Note-se aqui a presença de um fator muito
importante na implementação de uma cultura massiva no país (efetivada somente na década de
40), que foi o surgimento do rádio. Introduzido no Brasil em 1922, quando da abertura da
Exposição Mundial, foi o despertar para uma novidade que se tornaria um dos meios
comunicacionais de maior alcance e mais popular. No dia 7 de setembro deste ano, foram
distribuídos 80 rádios-galena para captar o discurso do então presidente Epitácio Pessoa na
abertura da Exposição, no Rio de Janeiro. O número de emissoras e de aparelhos receptores
cresceu rapidamente. Nos anos 20, existiam 19 emissoras; em 1940, elas já somavam 78; em
1944, 106; em 1945, 111; e, em 1950, 300. Do mesmo modo, o número de radio-receptores, que
era de 30 mil em 1926, chegou a 659.762 em 1942. Em 1955, trinta e três anos depois da primeira
transmissão, existiam, no Brasil, 477 emissoras de rádio, e o número de aparelhos receptores
atingia quase um milhão73.
Até a década de 30, o rádio no Brasil se organizava basicamente em termos nãocomerciais, com as emissoras se constituindo em sociedades e clubes cujas programações eram
sobretudo de cunho erudito e lítero-musical. Mesmo considerando o seu crescimento em
números, na década de 20 ainda existiam poucos aparelhos e o ouvinte era obrigado a pagar uma
taxa de contribuição para o Estado pelo uso das ondas. Esta década configura-se, assim, como um
período de experimentação do novo veículo, não podendo ser considerada uma organização de
72
Edigar de ALENCAR, Nosso Sinhô do samba.
Luciano KLOCKNEY, O Repórter Esso e a Globalização: a produção de sentido no primeiro noticiário
radiofônico mundial. Texto apresentado no GT “Mídia Sonora” no XXIV Congresso da INTERCOM – Campo
Grande /MS – setembro 2001.
73
73
tipo empresarial, uma vez que o espaço de irradiação sofria contínuas interrupções e não havia
programação para todos os horários. Na década de 30, com a introdução dos rádios de válvula, há
uma difusão mais ampla junto a um público ouvinte agora em crescimento por conta da queda
nos custos de produção dos aparelhos e de uma mudança, em 1932, na legislação que passou a
permitir a publicidade no rádio, fixada inicialmente em 10% da programação total74. Isso acabou
por transformar o caráter do rádio no Brasil, pois, deixando sua feição mais amadora e
transformando-se em uma empresa comercial, anunciantes se tornaram suportes eficazes no
financiamento do funcionamento das emissoras, que podiam assim, fixar e estruturar sua
programação, com noticiários, programas de auditório, radionovelas, programação musical,
concurso de calouros, entre outros.
Em outro sentido, o rádio vai assumindo uma função de integração nacional, ligando a
todos a partir de uma voz sem rosto. Um som transmitido no espaço, podendo ser ouvido nos
diferentes ambientes das casas, para onde o som, os signos periódicos se remetem ao ouvir.
Lilian Zaremba destaca que o rádio – de acordo com Marshall McLuhan – pode ser visto
como implosão eletrônica, tambor tribal e sistema nervoso de informação. E acrescenta:
“de tal forma incrustado no cotidiano, o rádio extrapola o tradicional aparato dos sistemas de
comunicação, se apresentando como campo instrumental da ciência, arte e tecnologia (...) um processo [a
comunicação radiofônica] que pode ser considerado centenário (...) “a mensagem do rádio é uma
mensagem de ressonância e de implosão unificada e violenta. (...) McLuhan, ao mesmo tempo em que
desenha a mensagem radiofônica como sistema tecnológico capaz de se constituir como rede poderosa na
reversão da direção e sentido da civilização ocidental letrada, admite ser a experiência radiofônica algo
particular, onde as profundidades subliminares estão carregadas daqueles ecos ressonantes das trombetas
75
tribais com seu poder de transformar a psique e a sociedade numa única câmara de eco.”
Torna-se, assim, importante compreender a dimensão que a sonoridade ocupa na vida do
ser humano, pois é a partir das propriedades e particularidades do som que se funda a relação dos
indivíduos com as vozes e os objetos sonoros que vêm do rádio. Como afirma Mônica Nunes76, o
rádio, como veículo de comunicação e “ser da cultura”, parece não exercer apenas a função de
informar com rapidez e instantaneidade e tampouco se reduzir ao entretenimento, mas também
conformar a existência de um outro universo significante, moldado a partir da voz, do som e do
ouvir, em que vozes e sons constróem textualidades orais que veiculam signos míticos aptos a
74
Renato ORTIZ, A moderna tradição brasileira.
Lilian ZAREMBA, Idéia de rádio entre olhos e ouvidos. Revista Ciberlegenda (Prog. de Pós-Graduação em
Comuincação da UFF). n.2, 1999. (http://www.uff.br/mestcii/zaremba1.htm)
76
Mônica R. Ferrari NUNES. O mito no rádio : a voz e os signos de renovação periódica.
75
74
ritualizar a escuta radiofônica. Por meio disso, o rádio teria a função de atenuador das perdas
trazidas pelo tempo, pela modernidade, pela aceleração da história, trazendo aos indivíduos o
retorno ao presente absoluto.
Neste momento também, verificava-se o crescimento da indústria fonográfica. Esta,
depois de iniciar no Brasil com o repertório clássico/erudito, alguns tangos argentinos e ritmos
americanos como jazz e foxtrot, neste momento, já descobria e começava a prosperar com a
música popular, com destaque para as marchinhas e sambas cariocas de Carnaval, além de
algumas canções sertanejas paulistas. Mas, segundo Nicolau Sevcenko77, foi quando as
gravadoras se cruzaram com o potencial do rádio na difusão da música popular que a grande
“mágica” se deu, gerando o início da era de ouro do rádio, em que a vibração do público, aos
poucos, se ampliava. O rádio se valia dos discos, produtos das gravadoras, que usavam o primeiro
como divulgador de sua produção, sendo que muitos proprietários das gravadoras acabaram por
comprar também emissoras de rádio. Nesse momento, a produção expandia-se de forma
admirável, beneficiada pelo desenvolvimento econômico do setor urbano, em que as tiragens de
discos tornavam-se cada vez maiores.
Em meio a isso, é importante atentar para o modo como estas mídias sonoras poderiam
estar se disseminando para os seus ouvintes, nas suas sensibilidades, nas suas formas de
percepção e apreensão do real, salientando uma escuta do mundo mediada pela técnica. E em
relação à música não é diferente, pois estas mídias afetam a percepção, as formas de se escutar e
de se relacionar com as canções. Segundo Heloísa Valente,
“se antes, cada som da paisagem sonora era único e irrepetível, as formas de
mediatização técnica do som que foram surgindo e se aperfeiçoando, ao longo dos anos,
abalaram tanto a natureza, quanto a produção e difusão do som, uma vez que
possibilitavam, pela primeira vez na história, que este se libertasse do espaço e do tempo.
Com o advento das mídias, uma obra musical pode, a princípio, soar em qualquer espaço
e nas circunstâncias as mais diversas. Por isso, a canção popular urbana comercial,
composta para ser fixada tecnicamente (gravada) e transmitida pelas ondas elétricas e
eletromagnéticas (telefonia), apresenta características muito peculiares que a diferem da
canção popular tradicional ou da canção erudita, especialmente no que diz respeito à sua
performance.”78
77
Nicolau SEVCENKO, A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: ______ (Org). História da vida
privada no Brasil: República - da Belle Epòque à Era do Rádio. v 3.
78
Heloisa de Araújo Duarte VALENTE, As vozes da canção na mídia. São Paulo, 2000. Tese (Doutorado em
Comunicação e Semiótica). PUC/SP, p.29.
75
Nestas primeiras décadas do século XX, vivendo na cidade que se expandia cada vez
mais, transformava-se, crescia, expunha as diferenças sociais, permeada pela técnica, com a
eletricidade, o telefone, o fonógrafo, o rádio, este ouvinte das canções não deve ser encarado
como massa amorfa no cenário metropolitano, massacrada por todos estes elementos, perdida na
multidão. É importante considerar que a sua subjetividade parecia trafegar entre a atração e o
medo, o espanto e o choque, configurando uma personalidade cada vez mais “sofisticada” do
homem das cidades – como dizia Simmel79 – o qual filtra, seleciona e elabora um “ar blasé” na
tentativa de se proteger do turbilhão da vida moderna. Uma subjetividade, assim, que encontra a
brecha contra a massificação, contra o perder-se na multidão, na sua própria fragmentação, sendo
uma subjetividade moderna, que reorganiza os inúmeros choques cotidianos, buscando a
experiência que vai aparentemente se perdendo. Talvez, no lugar da técnica, conceito aqui tão
utilizado, pudesse se falar em “tecnicidades”80, para ressaltar a apreensão da técnica na
subjetividade, pensando nas transformações da sensibilidade e dos modos de percepção que
surgem nos indivíduos em função da técnica, re-organizando experiências, modos de ouvir,
escutas do mundo.
Com este desenvolvimento das mídias sonoras, não demorou até o Estado populista, que
se instaurava na década de 30 no Brasil, descobrir no rádio um eficaz veículo para a afirmação de
seu poder, passando a se utilizar das qualidades sensíveis da enunciação sonora, em que – como
diz o historiador Antônio Pedro Tota – o receptor vivia um momento no qual vários elementos e
mecanismos contribuíam para passar-lhe dados necessários ao fortalecimento de uma posição
ideológica indispensável ao novo status quo, uma ideologia identificada com o trabalho e com a
construção de um Brasil grande, um país do futuro81.
O Estado acabou por provocar, assim, a popularização do samba – numa política
nacionalista de difusão radiofônica de um sentimento nacional em busca das raízes culturais do
Brasil –, usado para legitimar uma cultura nacional por excelência. Um movimento em que “do
combate ao samba” dos primeiros tempos do século, passou-se
a utilizar um “samba de
79
Georg SIMMEL, A metrópole e a vida mental. In: Otávio Guilherme VELHO (Org.). O fenômeno urbano.
Jesús MARTIN-BARBERO, Arte, comunicação e tecnicidade no final do século. Margem- Tecnologia e Cultura,
n.8, 1999.
81
Antônio Pedro TOTA. Samba da Legitimidade. São Paulo, 1980. Dissertação (Mestrado em História). FFLCHUSP.
80
76
combate”82, com uso político e ideológico. Passa a haver a partir daí, o intuito de integrar o
popular e o folclórico, buscando na raiz negra e colonial do samba, a legitimidade para afirmá-lo
como gênero oficial, unindo nacional e popular, trazendo à tona o elemento folclórico, evocando
um passado ao qual o samba deveria pertencer. Um nacionalismo musical buscando implantar
uma espécie de “república musical platônica, assentada sobre o ethos folclórico”83.
Jesús Martin-Barbero oferece ainda mais subsídios para esta discussão salientando que,
para se delinear as relações entre massificação e populismo, é preciso compreender que no caso
brasileiro não foi só a crise do mercado mundial, com a recessão de 1929, a responsável pela
crise nacional, mas sim uma crise de hegemonia interna que colocou as massas frente a frente ao
Estado. A partir disso, o Estado procurou resolver a situação se auto-intitulando defensor dos
direitos das classes populares e, ao mesmo tempo, dirigente do processo de modernização do
país, processo que fez emergir contradições expressas na cultura, particularmente na música84. O
nacionalismo seria capaz de encobrir tensões e dissensões da heterogeneidade vividas pela
sociedade urbana brasileira naquele período, onde o popular, orientado pelas mãos do Estado e
difundido nos rádios em escala agora nacional, legitimava o popular oficial e hegemônico.
Na América Latina, o início da massificação coincidiu com a vigência dos governos
populistas e com o processo de construção das identidades nacionais, tendo a indústria cultural
uma missão das mais importantes. Pode-se afirmar que a implantação dos meios massivos latinoamericanos é concomitante ao ingresso das massas no cenário de reivindicações e de consumo,
estando a mídia ligada ao processo de massificação, não sendo sua conseqüência ou sua causa.
Estabelece-se assim, a idéia de se depurar um popular em termos de folclore, raiz, origem, lugar
idealizado de essência, autenticidade no mundo do passado rural, nomeando o povo como sendo
a própria alma da nação, numa tentativa de estabelecer uma tradição – ligada ao passado, à
pureza cultural, à autenticidade – que a própria modernidade urbana, massificada e industrial
engendrou.85
Importante também, neste momento, era o debate no campo cultural e mais precisamente
no musical em torno do popular. Mário de Andrade86, já em 1928, buscava diferenciar o
82
João Ernani FURTADO FILHO, Do combate ao samba ao samba de combate: música, guerra e política (19301945). São Paulo, 1998. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História – PUC/SP.
83
José Miguel WISNIK e Enio SQUEFF, O nacional e o popular na cultura brasileira – Música, p.146.
84
Jesús MARTIN-BARBERO, Dos meios às mediações. Op.cit..
85
Nestor Garcia CANCLINI, Culturas Híbridas.
86
Mário ANDRADE, Ensaio sobre a música brasileira, passim.
77
“popular” como sendo “autóctone”, do “popularesco, feito à feição do popular, ou influenciado
por modas internacionais”, ou seja, o popular urbano, não puro ou essencialmente tradicional. De
acordo com Wisnik, as considerações do autor devem ser inseridas num debate mais amplo sobre
a cultura brasileira dos modernistas da década de 20, que argumentavam, em linhas gerais, sobre
o caráter político-pedagógico da cultura e mais especificamente da música – evocando Platão em
A República, em que a música tem um poder agregador de promover a junção da totalidade
social, devendo servir como educadora a serviço do Estado. Desta forma, a “república musical”
deveria se assentar na idéia do popular folclórico e tradicional e extirpar as manifestações
musicais que não fossem genuinamente nacionais87. Opunha-se, assim, no debate modernista, por
um lado, a idéia de arte elevada, erudita e disciplinada, que faz bom uso do folclore rural,
estilizando estas fontes folclóricas como detentoras da fisionomia genuína da nação e, por outro
lado, as manifestações deturpadoras, mercadológicas, insubmissas à ordem e à história, que era a
canção popular urbana.
No entanto, este argumento modernista deixava de perceber, como argumenta Wisnik, que
o popular ali almejado, era assim considerado tão somente quando olhado à distância pelas lentes
estetizadoras de intelectuais eruditos, encarcerados em museus reais ou imaginários, preservando
a sua busca da pureza. As manifestações de ruas, rebeldes às classificações, fabrica de sons,
ritmos e danças a partir da bricolage própria do meio urbano eram desprezadas pelos
modernistas. A cultura urbana, com “seu próprio movimento ascendente e pela sua vizinhança
invasiva, ameaça entrar por todas as brechas da vida cultural, pondo em xeque a própria
concepção de arte do intelectual erudito”.88
Este debate sobre o popular ligado ao nacional e às raízes, contrário ao que vem de fora,
foi a tônica de algo muito presente nas discussões sobre cultura brasileira que levou a uma
distinção entre a cultura boa (ligada ao folclore e aos intelectuais eruditos) e a cultura má
(popular, urbana, comercial ou então erudita ligada ao que é internacional). Desse modo, foi
criado um espaço de posição defensiva, em que o projeto de autonomia nacional, visava barrar o
avanço da modernidade capitalista na cultura. Isso já estava colocado na década de 30, mas nas
décadas de 50 e 60 esta questão se mostraria decisiva.
87
88
José Miguel WISNIK e Enio SQUEFF, O nacional e o popular na cultura brasileira – Música.
Idem.
78
Nos anos 60, este debate teve como reforço histórico os “folcloristas da cidade”, ideário
corrente ainda na década de 30, conforme salienta Enor Paiano89. Os protagonistas da discussão
seriam produtores culturais e jornalistas como Almirante, Ary Vasconcelos, Lúcio Rangel, os
quais, à semelhança do Nacionalismo musical de Mário de Andrade, também defendiam a música
genuinamente brasileira, contra estrangeirismos e, de uma maneira protetora, buscavam guardar,
compilar
e organizar as manifestações populares do país. No entanto, este grupo não
compreendia o popular apenas como expressão regional e folclórica estilizada pela lente erudita
(vista como arte superior), e nem se valia dos órgãos estatais dirigidos à intelectualidade, mas sim
interferiam nos meios de massa, fazendo com que suas idéias tivessem circulação mais ampla
(escreviam em revistas de grande circulação a época), como também viam no samba urbano a
manifestação do popular nacional não restrito ao Rio de Janeiro.
Assim, é de suma importância localizar a dimensão do debate sobre o popular ligado ao
nacional presente na cultura brasileira, considerando suas origens, pois esta discussão será
fundamental para a compreensão da Bossa Nova, como música que nasce nos centros urbanos,
carregada da tradição musical que vinha ali se consolidando há muitos anos, e se defrontou (em
seu público e em sua crítica) com a controvérsia sobre o nacional–popular que se cristalizava
naquele momento e chegava ao seu ápice, influenciado pela conjuntura política e também por um
acirramento deste mesmo debate nos meios intelectuais e artísticos.
Voltando aos cantores do rádio, estes, conscientemente ou não, emprestaram sua fama e
prestígio aos interesses do governo, em que as músicas expressavam não só o alcance do rádio e
sua difusão, mas também elementos políticos e sociais. Em Cantores do rádio, marchinha
composta por Lamartine Babo, em 1936, e gravada pelas irmãs Aurora e Carmem Miranda no
mesmo ano, se diz “nós somos os cantores do rádio/levamos a vida a cantar(...)/nossas canções
cruzando o espaço azul/vão reunindo num grande abraço/corações de norte a sul”. Fica clara a
alusão a um projeto integrador nacional.
Ao mesmo tempo, intensificava-se a repressão policial e a censura, havendo um combate
ao indivíduo alijado da produção, aos sub-empregados, ao trabalho ilegal, em nome da
austeridade, honra do Estado e grandeza do país. Passou a ocorrer também, uma censura prévia às
músicas, evitando que temas políticos fossem tratados (exceto os que elogiassem o Estado Novo),
89
Enor PAIANO, O Berimbau e o som universal: lutas culturais e indústria fonográfica nos anos 60. São Paulo,
1994. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, USP, passim.
79
bem como a exposição e afirmação de formas ilegais de vida, como a malandragem, que incitaria
à desordem e a não-legalidade, algo que não era condizente com o Estado totalitário e ditatorial
que se implantava. Em 1940, por exemplo, o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) órgão do governo que cuidava da censura e das propagandas estatais - proibiu mais de 370
músicas e mais de 100 programas de rádio90.
Na tentativa de controlar os mais diversos segmentos da sociedade, o Estado Novo – a
exemplo do que fez com os sindicatos, trazendo-os para seu domínio, instituindo o “sindicalismo
de estado” – criou também o Dia da Música Popular Brasileira, uma maneira de enaltecer um
gênero, oficializá-lo, garantir-lhe as melhores condições de existência, divulgação e, assim,
mantê-lo sob sua égide. Mais ainda, o governo Vargas, mesmo antes de ser instaurado o Estado
Novo, tratou de oficializar o Carnaval a partir de 1933, com programas organizados pela
prefeitura, concurso de músicas de Carnaval, oferecendo subvenções ao concurso das Escolas que
começaram a existir a partir de 1928, quando no Largo do Estácio (zona norte do Rio) surgiu a
“Deixa Falar” num local frequentado pela malandragem do samba (como se verá mais à frente).
Já na década de 30, várias escolas desfilavam, em particular a Mangueira, vencedora dos
carnavais de 1932 até 1935. Nesse período, os desfiles das escolas mantidos pelo Estado
deveriam apresentar temas ligados à grandeza da nação, em caráter didático, dando origem aos
samba-enredos presentes também na forma como é conhecido hoje.
Além disso, era de propriedade estatal a rádio mais ouvida na época, a Rádio Nacional,
que contratava os artistas mais populares e prestigiados do país. A produção musical, em certo
aspecto, ia se tornando expressão deste “Brasil grande”, em que as letras iam pouco a pouco, cada
vez mais mostrando as grandezas do país, trazendo o samba-exaltação. Aquarela do Brasil,
composta em 1939 por Ary Barroso, talvez seja a mais conhecida dessas expressões. Vê-se assim,
a constituição e consolidação cada vez maior da idéia de um Brasil musical, um país afirmado por
sua música, encontrando nela sua mais perfeita representação, com destaque para as
peculiaridades e especificidades do país, o que fez com que a partir daí, cada vez mais a música
revelasse uma identidade diante de outras culturas e nações.
É preciso lembrar que o rádio e a indústria fonográfica lançavam músicas que alcançavam
cada vez mais ouvintes, muito em função de uma nova sociedade urbana que se instituía no
Brasil, fruto do crescimento industrial, caracterizada pelo crescimento e consolidação paulatina
90
KRAUSCHE, Valter. Música Popular Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983.
80
dos setores médios da população. Quando, na canção Cantores do rádio, se diz “de noite
embalamos teu sono e de manhã nós vamos te acordar”, isso pode ser lido como um confirmação
da presença deste veículo na vida cotidiana das pessoas deste meio urbano, acordando e fazendo
dormir o cidadão médio que trabalha e que tem horários a cumprir, ressaltando o público para
quem se dirigia esta música propagada no rádio e condizente com as intenções do Estado: o
trabalhador. O samba, desta forma, vai passando por um processo no qual deveria ser identificado
ao mundo regrado, da ordem, da legalidade, da oficialidade e da organização, e não ao batuque
dos negros, à boêmia, à malandragem, ao mundo do não-trabalho. Estaria surgindo aqui a idéia de
uma música a ser consumida por todos, expressão da maioria, uma música ligada à cultura de
massas, ao “povo brasileiro”. A ideologia populista do Estado Novo se assentava no trabalhismo,
secundado por uma intensa campanha discursiva acerca do papel do trabalhador na construção do
país, enaltecendo o operário e o próprio trabalho.
No entanto, é importante analisar as relações entre o samba e o mundo do trabalho. A
música popular parece ter nascido e crescido contemporaneamente à industrialização, ao
crescimento das cidades, à diversidade social nas mesmas, ao desenvolvimento do proletariado.
Isto tudo era decorrente da política de industrialização imprimida a partir de então, com um
inchaço das cidades provocado pelo deslocamento populacional de grandes contingentes que
chegavam às aglomerações urbanas em busca de trabalho. Isto porque o país ia abandonando seu
caráter agro-exportador91.
Ao lado deste mundo da ordem, a música popular esteve também articulada ao desajuste,
à desordem, por vezes como uma voz dissonante à ordem social. O samba nasceu dos negros, esta
parcela da população que, saída da escravidão foi procurar o seu lugar, o seu espaço dentro desta
sociedade, que muitas vezes lhe era adversa. Nesse sentido, como afirma Gilberto
Vasconcellos92, o percurso histórico da canção brasileira é contemporâneo do processo local de
formação da classe operária; porém, a esfera do trabalho se projeta sobre a espaço da música
como uma poderosa imagem invertida, onde há muitas vezes o exercício sistemático de negação
dos valores positivamente elevados pelo trabalho. No samba, por vezes, não é ressaltado o
91
A população urbana de trabalhadores em 1920 era de 293.673, enquanto que em 1940 saltou para 781.185 e em
1950, seriam 1 milhão de pessoas. A população urbana do Rio, que em 1920 era em torno de 1 milhão, salta para 2
milhões em 1930. José Ramos TINHORÃO, Pequena História da Música Popular Brasileira.
92
Gilberto VASCONCELLOS e Matinas SUZUKI, A malandragem e a formação da música popular brasileira. In:
Boris FAUSTO (Dir.). História Geral da Civilização Brasileira: O Brasil Republicano, s.n., 1984. t. 3, v.4.
81
operário, o trabalho, mas sim a malandragem, em analogia à “dialética da malandragem”93, como
princípio organizador da vida social brasileira no início do século.
Não se trata de construir o universo musical popular como sendo o da vadiagem, em
contraposição ao mundo do trabalho, como pólos excludentes, mas o que se coloca é uma relação
dialética, entre trabalho e não trabalho, ordem e desordem, legalidade e ilegalidade, em que o
universo musical popular carioca se constrói, de um modo que não prescinde da ordem social
mas também não consegue estar inserido completamente dentro dela. Ora, os primeiros sambistas
das reuniões nas casas das tias baianas viviam de ocupações incertas e aleatórias, sendo por isso
tantas vezes discriminados, e sua música vista pejorativamente. A própria letra original de Pelo
telefone ilustra isto, mostrando uma relação entre a ordem oficial e a desordem malandra.
Já na década de 30, a malandragem tornou-se a temática principal dos sambistas, levando
a uma confusão entre a figura do compositor e a do malandro, numa identificação em que os
sambistas acabam por se aproximar da malandragem, seja como recurso temático, seja pelo modo
boêmio de viver sem horários ou trabalho fixo e remunerado, seja ainda pela observação próxima
do malandro e pela convivência com ele.
Muitos compositores desta época, como Ismael Silva, Wilson Batista, Geraldo Pereira,
entre outros, viviam no reduto do samba àquela época: o bairro do Estácio. Entre estes, a temática
da malandragem e do não-trabalho eram freqüentes. Suas vidas eram, em geral, marcadas por esta
situação de instabilidade no que tange ao trabalho, sendo “biscateiros no limite entre o exército
de reserva e o lumpesinato”94, exercendo funções esporádicas de sapateiros, eletricistas, ajudantes
de obras, bombeiro hidráulicos, ajudantes de serviços gerais. Suas músicas pareciam compor o
seu habitat natural.
Durante a década de 20, o espaço do samba não se limitaria à Cidade Nova, ou à Praça
Onze no centro, mas se edificaria também no bairro do Estácio (na verdade, Estácio de Sá).
Situado entre Rio Comprido e Catumbi, o morro de São Carlos e a Zona do Mangue, nasceu uma
outra famosa escola de samba, que, na década de 30, competia não só no Carnaval com a
Mangueira e a Portela, mas também na busca de se firmar como o berço do samba, que era
praticado nos botequins e nos blocos de Carnaval - sustentáculos das escolas de samba durante o
ano. O Estácio era ponto de encontro de sambistas que se reuniam para fazer músicas, trocar
93
Termo cunhado por Antonio Candido. Apud Gilberto VASCONCELLOS e Matinas SUZUKI, A malandragem e a
formação da música popular brasileira.
94
Antônio Pedro TOTA, Samba da Legitimidade.
82
idéias, cantar, tocar, batucar95. Outro local que também começava a despontar nos sambas se
auto-intitulando como berço desta música é Vila Isabel, um bairro de classe média mais
tradicional que tinha na figura de Noel Rosa e sua vasta obra - um branco, filho de classe média
que chegou a estudar alguns anos da Faculdade de Medicina - um exemplo de como alguns de
seus botequins também serviam de espaço privilegiado para o universo do samba da década de
30.96
Cantando estes locais, muitos compositores tiveram suas músicas censuradas, como o
sambista Wilson Batista e sua canção Lenço no pescoço, que enaltecia a vadiagem, o “andar de
terno branco, lenço no pescoço e navalha no bolso”, finalizando com a frase “tenho orgulho em
ser tão vadio”. A partir daí, muitos dos sambas passariam a ser veiculados com um cunho de
ordem inscrita, valorizando o trabalho, a vida operária, a vida regrada, o casamento, a família, a
ordem social.
Porém, não se supõe aqui que o samba, a partir da década de 30 tenha se transformado
num produto cooptado, inserido na lógica populista, na ideologia do estado trabalhista, seguindo
seus preceitos, aderindo as regras do mercado, tendo ficado “desvirtuado” ou tendo perdido suas
características de música popular. Claro que as considerações acima têm de ser levadas em conta,
pois realmente o samba, em fase de consolidação, transformava-se e se expandia para fora do Rio
de Janeiro, contando inclusive com apoio institucional e dos debates dos “folcloristas da cidade”.
No entanto, estas considerações não podem ser encaradas como absolutas, numa análise que vê
no mundo da cultura apenas os reflexos infra-estruturais da sociedade, estando o samba, e a
música em geral apenas reproduzindo as mudanças ocorridas no âmbito econômico e político.
Desta forma, além de não se buscar ver no samba da década de 30 apenas um produto cultural
contaminado e dissuadido pela lógica do mercado e do Estado, também se busca perceber neste
gênero musical, elementos, nuances, traços de suas características elementares – transformadas,
re-adaptadas, articuladas às novas tecnologias, é claro, mas ainda assim populares.
A começar pelas suas próprias letras, o que se pode compreender é que, embora cerceadas
e censuradas, elas continuavam tematizando componentes da vida “malandra’” do compositor
popular. De acordo com Wisnik,
95
96
Mônica Pimenta VELLOSO, Mário Lago: boêmia e política.
Aldir BLANC, Vila Isabel: inventário da infância.
83
“elas [as canções referidas] serviram para generalizar um fato de maior importância, que foi a emergência
urbana de uma cultura negra carioca, mudando a fisionomia cultural e musical do país e do Rio de
Janeiro, em particular. As manifestações populares acabaram por emergir para a vida pública com uma
gestualidade outra, investida de meios irônicos do cidadão precário que aspira reconhecimento da sua
cidadania e acaba por parodiá-la através de seu próprio deslocamento. No momento em que fala, nas
letras, do trabalho, do horário do trem, da vida regrada, salienta sempre que mudou, ou “teve que mudar”
de vida, ressaltando seus condicionamentos, seus cerceamentos sociais, muitas vezes em tom irônico, de
97
sátira a si próprio, mas expondo, de qualquer forma, e de maneira sub-repitícia, a sua real condição”.
São inúmeras as diferenças percebidas entre o samba do início do século e o samba da
década de 30, mais definido e estabelecido como uma música urbana, em suas práticas sociais em
torno da música (reuniões nas casas das tias baianas x botequins do Estácio), nos lugares em que
era praticado, em seu estatuto como objeto de trocas econômicas (samba como valor de uso x
samba como valor de troca), em sua construção de personagens típicos da cidade (bamba x
malandro), em seus assuntos e sua temática (malandragem ingênua e assumida x malandragem
“arrependida”, em vias de ordenar-se) e em sua aceitação social (negado, perseguido x aceito
socialmente, legitimado). Esta forma de sobrevivência dos elementos populares no samba na
década de 30, pode ser vista também na sua estruturação musical, em que sentidos sociais e
formas musicais necessitam ser compreendidos numa cadeia complexa de relações.
Segundo Sandroni98, o samba dos anos 30 consistia num estribilho repetido pelo coro e
pontuado por improvisações dos solistas, parte importante na sua composição. O improviso na
década de 30 passou a ser muito menos ocorrente, devido à gravação, publicação, direitos
autorais, enfim, um conjunto de fatores que exigiam, ao lado do estribilho, a presença de uma
segunda parte que fosse propriedade de um dado samba. Fica clara assim, as suas modificações
frente aos sambas da época de Pelo Telefone. Novos instrumentos como a cuíca, o surdo, o
tamborim passaram a fazer parte do samba “moderno”, em detrimento do pandeiro, prato-e-faca e
palmas do início do século.
Ainda de acordo com Sandroni, a própria estruturação rítmica parece ter mudado. Os
primeiros sambas eram compostos de maneira “rapsódica”, isto é, de pequenas partes, pequenos
ciclos dando origem à canção (o que ressalta sua característica mais ligada ao rural). Sua
harmonia era mais simples, limitando-se quase que exclusivamente aos acordes de tônica e
dominante, e seu acompanhamento era muito mais amaxixado, ligado ao lundu, o que vale dizer
que sua rítmica se baseava no paradigma de tresillo, também chamado de “síncope
97
98
José Miguel WISNIK e Enio SQUEFF, O nacional e o popular na cultura brasileira – Música, p.133.
Carlos SANDRONI, Feitiço decente.
84
característica”. A partir dos anos 30, a composição harmônica ficou mais elaborada e o ritmo
muito mais contramétrico, mais batucado, onde a imparidade rítmica se estabeleceria e seria
aceita mais fortemente pelos ouvidos do público e pelos músicos oficiais, afirmando mais
fortemente um samba popular urbano carioca, que se transformaria na rítmica por excelência do
samba até hoje.
Embora se possa argumentar que o samba do Estácio dos anos 30 perdia em
autenticidade, perdia as raízes genuínas da música negra, sendo utilizado pelo Estado e se
mercantilizando, há que se reconhecer também que ele mantinha, neste estágio, suas
características rítmicas da cultura afro-brasileira e popular de maneira inusitada. A própria idéia
de “samba de breque”, instituída a partir desta fase, aponta para estas características duradouras e
permanentes. Sendo uma “parada” no meio da música (do inglês, break), produzida com o fim da
segunda parte da música para garantir o recomeço, com a introdução da fala do intérprete,
mostrava-se como um expediente utilizado para dar ares de ironia, malandragem sem dizê-la
propriamente, sem assumi-la na letra, mas dando seu toque por meio da estrutura musical.
Mostrava-se como uma forma de desvio, de improviso, de fuga às imposições e até de tática, no
sentido em que Michel de Certeau99 nomeia a forma de transformar o que é dado pela cultura
oficial em astúcia cotidiana de fuga aos padrões convencionais, de maneira subliminar, não
assumida e não completamente explícita. Para além disso, o improviso do samba de breque, a
volta, o recomeço, parecem sugerir uma noção outra de tempo, um tempo cíclico, reversível, que
pode recomeçar, fugindo a uma noção de racionalidade e linearidade a que os padrões morais e
ideológicos se filiavam.
Relembrando a passagem da gravação do primeiro samba, em 1917, é importante ressaltar
algo fundante para a reflexão sobre a música popular midiática: a questão da autoria. Este
momento, quando os sambas deixam de ser feitos coletivamente e passam a conter o nome de um
autor, é indicado em variados estudos como sendo o seu momento de cooptação pelo mercado,
levando-o a perder seus elementos originais. O fato de os sambas serem produzidos
coletivamente, apenas vocalmente, sem escritura em partituras, aponta também para uma
característica que nos remonta aos tempos “pré-modernos”, medievais, em que a própria
literatura escrita passava pelo mesmo processo de autoria e as noções de autor, copista e
99
Michel de CERTEAU, A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer.
85
intérprete eram nebulosas.100 O debate, tão presente sobre a cultura de massas, em que se discute
se é possível ou não a existência do autor num meio com tantos crivos e interferências ditadas
pela concentração técnica e burocrática da indústria, faz pensar na força da voz presente até hoje
nessa mesma cultura. A canção popular, por exemplo, vai muito além de uma idéia fechada de
autoria encerrada na grafia musical, que se quer autêntica e original. Mesmo afirmando-se como
locus de força da presença do autor, ela também tem as noções de autoria em dissolução, pois a
gravação, a produção musical, os arranjos, e a força do intérprete cantante lhe outorgam papéis de
criação, repartindo com os compositores a autoria da canção.
A partir deste momento, vê-se a efetivação de uma produção estável da música popular, o
que nos permite pensar a Bossa Nova como estilo e movimento nascido num ambiente onde o
campo musical se encontrava em vias de consolidação. Não havia um campo plenamente
consolidado; muitas de suas regras ainda estavam por ser tramadas entre seus agentes, processo
em que a própria Bossa Nova exerceu forte influência. De qualquer modo, alguns cantores e
compositores já desenvolviam uma produção estável, o rádio e o disco se afirmavam como seus
difusores e propagadores. Havia uma diversificação e ampliação do público potencializando o
consumo musical e de outros produtos relacionados, como revistas e jornais.
Importante, aqui, uma pausa para explicitar o que chamo de campo musical. Para melhor
entender este conceito do sociólogo Pierre Bourdieu, é necessário uma breve exposição de suas
reflexões sobre a sociedade. Pode-se tentar compreender o pensamento deste sociólogo como
sendo o de uma “sociologia da práxis”101, uma vez que nega qualquer forma de análise que fuja à
objetividade, evitando uma análise fenomenológica, mas também propondo algo que avance a
discussão. Em outras palavras, seu pensamento busca uma sociologia que integre, que faça a
mediação entre objetividade e subjetividade, entre o indivíduo e as determinações sociais que o
cerceiam. Ora, parece que o elo de integração é a noção de habitus, entendido como o conjunto
de disposições socialmente adquiridas ou inscritas nas formas de conceber o mundo dos sujeitos
de um grupo ou classe, pois o modo pelo qual se absorve e adquire os bens simbólicos é comum
ao seu grupo. O habitus funciona como um esquema de percepção e ação comum de todos os
indivíduos de um grupo, compondo seu “estilo de vida”: as formas pelas quais os indivíduos
interiorizam as regras, as estruturas objetivas do social. A gênese das práticas sociais estaria no
100
101
Paul ZUMTHOR, A letra e a voz: a “literatura medieval”.
Pierre BOURDIEU, Esboço de uma teoria prática. In: _____ Renato ORTIZ (Org.) Pierre Bourdieu.
86
habitus, no pertencimento a um grupo. Mais precisamente, a prática social seria fruto da relação
dialética entre uma situação social e um habitus. 102
O espaço onde os atores sociais agem e manifestam seu habitus é um espaço pré-fixado,
denominado por Bourdieu de “campo”, local onde se dá a luta e a concorrência entre os agentes
em torno de seus interesses. O campo, sendo pré-determinado, não dá margem de resistência ou
subterfúgios aos atores, que só podem executar aquilo que lhes é dado, a partir de condições
objetivamente estruturadas. Esse é um espaço onde se manifestam as relações de poder
estruturadas a partir da distribuição desigual de “capital social”, determinante das posições
ocupadas por seus agentes, divididos entre dominantes, caracterizados pela ortodoxia –
executando uma série de mecanismos e instituições que assegurem seu estatuto de dominação e
dominados, caracterizados pela heterodoxia, procurando manifestar seu inconformismo por meio
de estratégias de subversão e em confronto permanente com a ortodoxia 103.
O que é importante ressaltar é que, segundo Bourdieu, não há forma, ou possibilidade de
transformação deste quadro, pois mesmo os heterodoxos, não são nada mais do que necessários
para os dominantes, uma vez que sua “heresia” não questiona a própria lógica ou ordem do
campo, visando apenas à troca de posições em busca da supremacia dentro do campo. A oposição
não significa uma oportunidade ou um vislumbrar de mudança, mas apenas o reconhecimento dos
interesses que estão em jogo.
Nesta discussão, é necessário reconhecer as contribuições de Pierre Bourdieu a uma
sociologia dos agentes, de modo a compreender como as formas artísticas constituem relações de
força dentro do campo musical, quais suas formas de articulação, como se engendram, enfim,
como estão postas num meio social marcado por regras. Esta reflexão nos auxilia em muito do
que já foi dito até aqui, mas se faz necessário avançar, tentando interpretar as brechas e as
possibilidades de fuga apontadas por Michel de Certeau numa dada sociedade. Embora este autor
esteja falando em táticas por parte dos receptores, parece que se pode utilizar esta base conceitual
para pensar a criatividade, a margem de manobra possível dentro das instituições, dentro da
Indústria Cultural que se formava. É esta perspectiva de análise que se adotará também na
discussão sobre a Bossa Nova, mais à frente.
102
103
Pierre BOURDIEU, Gosto de classe e estilo de vida. In: _____ Renato ORTIZ (Org.) Pierre Bourdieu.
Pierre BOURDIEU, As regras da arte.
87
Estas improvisações do cotidiano podem ser vislumbrada nas formas destes músicos
sobreviverem e manterem suas características dentro do mercado fonográfico e dentro da lógica
industrial e mercantil que se impunha cada vez mais à música naquela época104. Os músicos
podem ser vistos como aqueles que se utilizam de ações táticas para – sem poderem contar com
um lugar próprio, um espaço seu –, assumir o lugar do outro, desenvolvendo artimanhas de modo
a reverter a situação a seu favor. Isso pressupõe criatividade, mobilidade, formas de fuga dentro
da indústria, por meio de ações parciais, sub-reptícias, individualizadas, microbianas.
O Rio de Janeiro era o grande centro da música popular, onde estas relações dentro do
campo iam se estruturando, com o funcionamento – além das rádios e gravadoras – de cassinos e
hotéis que serviam como palco para a realização dos músicos, cantores, instrumentistas,
arranjadores. Isso acabava por atrair músicos de outras partes do país, como Garoto, vindo de São
Paulo, Lupicínio Rodrigues, vindo de Porto Alegre, Dorival Caymmi, vindo da Bahia. Como
conta Valter Krausche105, muitos iam para o Rio atendendo ao chamado do rádio e do sucesso.
Esse chamado atraia músicas e músicos de diversas regiões do país que pudessem ser filtrados
pelos meios de comunicação de massa; um espaço que ia dando os contornos de uma
profissionalização, parecendo não haver mais lugar ao malandro, à música ingênua,
descompromissada, sem autor, fruto das reuniões informais. Nesse processo ia se formalizando
uma disciplina no mercado de trabalho musical.
A partir da década de 40, pode-se considerar efetivamente a presença de uma série de
atividades vinculadas a uma cultura de massas no Brasil, em consonância à existência de uma
sociedade urbano-industrial. Como aponta Ortiz106, não é que antes desta época não existissem
meios de comunicação, mas neste momento eles começam operar dentro de uma cultura de
mercado, a partir da reestruturação também sofrida pela sociedade, como já foi apontado. No
início da década de 40, segmentos da indústria fonográfica, sobretudo os que representavam
pessoas ligadas indiretamente à produção de discos, mobilizavam-se no sentido de regulamentar
suas atuações profissionais neste contexto, em que as empresas multinacionais já dominavam o
104
Renato ORTIZ, Prefácio. In: Marcia Tosta DIAS, Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e
mundialização da cultura.
105
Valter KRAUSCHE, Música Popular Brasileira. .
106
Renato ORTIZ, A moderna tradição brasileira.
88
cenário, surgindo a Associação Brasileira de Compositores e Editores, e em 1942, a União
Brasileira de Compositores (UBC). 107
Se por um lado tem-se o rádio e a indústria fonográfica nesta época já estruturados com
grande abrangência, trazendo novos parâmetros para a problemática da cultura e da sociedade,
como já foi visto, não se pode esquecer também do cinema. Nesta época, ele se torna um bem de
consumo, não só com os filmes americanos ganhando cada vez mais espaço no pós-guerra, mas
também com a produção nacional começando a se mostrar a partir da criação da Atlântida, em
1941, e da Vera Cruz, em 1949. Não se pode esquecer também do mercado editorial, com o
aumento da tiragem de livros, jornais e revistas. Neste segmento, surgiram as revistas de
variedades e também as ligadas ao rádio, revistas de fotonovelas, além de outras que tratavam dos
produtos da indústria cultural em formação. A área publicitária vai se efetivando também por esta
época, com revistas especializadas e com a criação de entidades profissionais. Em 1950, é
inaugurada a TV no Brasil. Enfim, o que também está presente em todos estes setores, e que vai
dando mostras da presença de uma cultura de massas, é o desenvolvimento de uma racionalidade
capitalista e de uma mentalidade gerencial, com destaque para uma economia que começa a se
organizar unicamente com vistas à produção de bens de troca e não mais de bens de uso.
Porém, como bem ressalta Ortiz, esta cultura de massas na década de 40 e 50 se
caracteriza muito mais pela sua incipiência do que por sua amplitude. Este, é um momento de
expansão do capitalismo que se realiza somente em determinados setores, não se estendendo para
a totalidade da sociedade. Por esta época, vai-se afirmando e consolidando no país, elementos de
uma cultura média, com um padrão médio, o que viria a ser a base para a real efetivação de uma
indústria cultural ou um “mercado de bens simbólicos” no Brasil, no final da década de 60.
Mas, voltando ao rádio e à área musical: na década de 40, após a estatização da Rádio
Nacional e a chegada dos representantes do Bureau Interamericano ao Brasil (órgão americano
destinado a coordenar os esforços dos EUA no plano das relações econômicas e culturais com a
América Latina) com a difusão de um american way of life, o rádio torna-se um veículo ainda
mais cobiçado pelos anunciantes, pois suas atrações de sucesso pareciam ser sinônimo de
consumo garantido dos produtos108. Com esta parceria – emissoras e anunciantes – efetivada em
termos sólidos, os artistas de rádio teriam trabalho e sucesso, e o rádio viveria, sua fase de ouro,
107
Edison Delmiro SILVA, Origem e desenvolvimento da indústria fonográfica brasileira. Texto apresentado no GT
“Mídia Sonora” no XXIV Congresso da INTERCOM – Campo Grande /MS – setembro 2001.
108
Sônia Virgínia MOREIRA, O rádio no Brasil.
89
influenciando hábitos e costumes de milhões de ouvintes, ocupando um espaço cada vez maior na
vida das pessoas.
Marta Avancini, em seu trabalho sobre os cantores do rádio, enfatiza o processo de
popularização destes, chegando aos anos 50 como um dos focos principais de atenção do público.
Os auditórios dos programas ficavam lotados de pessoas ávidas por encontrar seus artistas
preferidos. Esse público juntamente com os fãs-clubes eram eixos de sustentação e promoção dos
artistas. As revistas especializadas ajudavam a criar um clima de curiosidade e euforia acerca
deles, catalisando
interesses e incitando o público a opinar e participar da vida de seus
preferidos. Avancini lembra que, para se analisar o papel desempenhado pelos ídolos do rádio
nesta época, é preciso observar a complexidade existente no processo de construção destes ídolos,
evitando apreendê-los somente como modelos e elementos ideológicos exteriores ao contexto
social, mas compreendendo os tipos de relação articuladas a partir de sua presença, percebendo
formas de subjetividade, de identificação dos fãs frente aos seus ídolos dentro de um quadro mais
complexo da sociedade daquele momento. Tudo isso fazendo parte de uma generalização das
formas de sensibilidades em jogo à época.109 O que é fundamental aqui, é ter, no horizonte de
compreensão sobre a música desta época, o seu ouvinte, a massa urbana que escutava rádio e a
interação que havia entre esta massa e seus ídolos em suas performances.
Para complementar esta discussão sobre o rádio, Gisela Ostriwano argumenta que este
meio comunicacional fala, onde a linguagem oral pressupõe a presença das virtudes da linguagem
coloquial, entra as quais, clareza, objetividade, simplicidade. E, apesar de não funcionar
efetivamente com dupla mão-de-direção, o rádio nasceu como um meio de comunicação
interativo que se viu limitado nesta sua capacidade à medida que se constituía o sistema
econômico de sua exploração. Segundo a autora,
“a dupla mão-de-direção permite, por outro lado, o diálogo real entre emissor e receptor. Esta mobilidade
– tanto do emissor como do receptor – permitiu que fosse explorada plenamente a característica da
instantaneidade, que está intimamente ligada às condições de recepção por parte do ouvinte, simultânea à
transmissão (...) o rádio envolve o ouvinte, fazendo-o participar por intermédio da criação de um diálogo
mental com o emissor, sendo que a sensorialidade se faz presente. O ouvinte visualiza fatos,
acontecimentos, performances artísticas através dos estímulos sonoros que recebe, da entonação vocal, da
tonalidade, do ritmo da mensagem. A imaginação é despertada pela emocionalidade das palavras e dos
recursos de sonoplastia, permitindo que o receptor dê asas às suas expectativas individuais, à sua
imaginação. Nesse sentido, o rádio acaba sendo visto como um amigo, ou o substituto de um amigo
ausente. Por intermédio do diálogo mental, os apresentadores, cantores tornam-se íntimos do ouvinte. É a
109
Maria Marta AVANCINI, Nas tramas da fama: as estrelas do rádio em sua época áurea (Brasil, anos 40 e 50).
Campinas, 1996. Dissertação (Mestrado em História). IFCH- UNICAMP.
90
característica do intimismo: o rádio fala com muita gente ao mesmo tempo, como se falasse com cada um
110
em particular.”
Mas, voltando para o objeto de análise deste capítulo, a compreensão das origens musicais
e culturais da Bossa Nova, é preciso atentar para um tipo de música ou gênero musical que
começa a fazer cada vez mais sucesso e imperar no rádio e no disco: trata-se do samba-canção,
um estilo musical que foi ganhando cada vez mais importância nas décadas de 40 e 50. Suas
origens datam do final da década de 20, quando músicos semi-eruditos que trabalhavam nos
teatros de revistas no Rio de Janeiro, começaram a compor músicas para fazer sucesso fora da
época de Carnaval, daí sua designação original como “samba de meio de ano”. Inicialmente
abarcava composições feitas para figurarem durante o ano, sendo, dessa forma, não tanto de
poética alegre, satírica e de ritmo batucado e amaxixado como as do Carnaval, mas músicas que
resgatavam a melodia e a canção, herdeira – como já foi visto – da modinha. O samba-canção
atendia às intenções dos compositores semi-eruditos de irem deixando de lado o caráter jocoso do
samba de até então, em troca de um romantismo melódico de acordo com um gosto mais
diversificado das camadas urbanas que passavam a consumir música popular.
Lembrando do que já foi dito a respeito da modinha, como um gênero musical que
sobreviveu e se conservou no século XX em canções de Vicente Celestino, Francisco Alves e
outros, pode-se dizer que o samba-canção é seu herdeiro direto, com expressões de
sentimentalismo, inflexões de cenas românticas e
bucólicas, o que está evidente na sua
designação inicial – “samba de meio de ano” – como algo incompatível com a alegria dos sambas
de Carnaval. Como aponta Tinhorão111, seu sucesso se deve também ao fato de ser música para
ouvir e cantar, atendendo as exigências de lazer das massas urbanas.
Para melhor compreender o espaço social desta época de esplendor do samba e do sambacanção, nas décadas de 30 e 40, é necessário recorrer ao bairro da Lapa, mas a Lapa musical,
malandra, que no início dos nos 40 passava a ser vigiada, com a intensificação do policiamento e
fechamento de prostíbulos, cabarés, dancings e bares além da proibição do jogo em 1946112. Os
boêmios que freqüentavam o bairro tinham uma coisa em comum: todos cultivavam a música
popular, já que a boêmia constituía um modo de vida musical, juntamente com a bebida e a
110
Gisela OSTRIWANO, Rádio: interatividade entre rosas e espinhos. Texto disponível na Biblioteca on-line de
Ciências da Comunicação, 2000. (http://bocc.ubi.pt/pag/ortriwano-gisela-radio-interactividade.html)
111
José Ramos TINHORÃO, Pequena História da Música Popular Brasileira.
112
Alcir LENHARO, Cantores do Rádio: trajetórias de Nora Ney, Jorge Goulart e o meio artístico de seu tempo.
91
dança. O bairro se originou em torno de um misto de capela e seminário erguido no século XVIII
em homenagem a Nossa Senhora da Lapa. No início do século XX, entre os anos 10 e 20, a Lapa
assumia uma atmosfera esfuziante e dissoluta, características que acabaram por torná-la célebre,
identificada com a pulsação parisiense de Pigalle ou Montparnasse, (a zona sul e Copacabana
ainda não existiam como centros urbanos), sendo ponto de encontro de intelectuais e boêmios
como Di Cavalcanti e Heitor Villa-Lobos. Mas é também a partir desta época que passa a ser
tomada por pensões de mulheres, que acabariam se transformando em cabarés, todos
concentrados num espaço físico exíguo de no máximo quatro ou cinco ruas.
Mesmo que o espaço do samba não se restringisse apenas à Lapa, estendendo-se ao
Estácio, à Zona do Mangue, à Praça Tiradentes e à Vila Isabel, é possível afirmar, no entanto,
que o bairro era o centro irradiador do mundo do samba113, com seus malandros, prostitutas,
policiais e boêmios, e mais, era lá o ponto de encontro de todos, nesta fase anterior a transição da
vida noturna para Copacabana, mudança que aconteceria no final da década de 40.
O samba-canção, como um gênero musical que se valeu da forma musical da modinha e
da influência de outros gêneros musicais (como o bolero, o tango, por exemplo) tomou formas
diferenciadas. Foi produzido nos anos 40 e 50, no interior das classes populares, chamando a
atenção pelo grau de rebuscamento de suas metáforas, revelando uma tentativa de aprimoramento
lingüístico sintomática de um desejo de ascensão social por meio da arte. Uma poética líricoamorosa que ao mesmo tempo que guarda ligações com o romantismo, lhe é distante, por
comportar elementos da sentimentalidade e do excesso, sendo uma linguagem da paixão com
traços de melodrama, tanto no seu conteúdo semântico, nas suas letras, como também em sua
estruturação musical abolerada. O samba-canção contém, segundo Beatriz Borges114, o elemento
kitsch, ao operar uma apropriação de padrões de arte culta. Essa apropriação o coloca na fronteira
entre produção culta e produção popular, criando um gênero misto que se confunde muitas vezes
com o mau gosto. O rebuscamento poético e o derramamento caudaloso e exagerado das suas
frases parecem ser tentativas de legitimação, em busca por um status social e cultural. Os
principais elementos do samba-canção são o sofrimento, a angústia, o desespero, a desventura no
amor, a “dor-de-cotovelo”, a autopunição, o desejo de morte, a linguagem da dor.
113
114
Moacyr ANDRADE, Lapa: alegres trópicos.
Beatriz BORGES, Samba-canção: fratura e paixão.
92
Luiz Tatit115 diz que nessa música predominavam expressões de estados emocionais
ligados à disforia, com canções modalizadas pelo “ser”, operando tensões passionais tanto na
duração das notas como em sua frequência. Segundo este autor, a emotividade, a paixão só tem
sentido para quem a viveu, mas se torna cognoscível aos ouvintes, pela experiência transmitida
pelo cancionista, na forma de canção e na forma como vai lhe dar os contornos melódicos e
enunciativos, sendo aí o ponto máximo dos samba-canções: sua capacidade de ser convincente
pela forma melódica, com notas distantes entre si, reveladoras de uma tessitura musical alongada,
em que as notas mais agudas são exploradas para enunciar os sentimentos mais dolorosos.
Num outro sentido, o samba-canção continha em si elementos que apontaram para
caminhos diversos de musicalidade. Quanto a sua estruturação musical, originalmente criada por
compositores semi-eruditos e depois apropriada pelos músicos “de ouvido”ar, nascia como uma
alternativa mais nobre em relação ao samba de Carnaval, abrindo caminho para arranjos e
orquestrações mais ricas, transmitido pela vitrola e depois pelo rádio para ouvintes reunidos na
sala e não mais para a multidão delirante nas ruas. Nesse processo, novas formas musicais iam se
instaurando para novos estilos de ouvir, cantar, apreciar e consumir músicas. Daí nascia o que se
convencionou chamar nos anos 50, de “samba-canção sofisticado”.
Pode-se perceber, analisando a história da música, como os meios de acesso à informação
modificaram seus modos de fruição, introduzindo novas prática que alteraram, por exemplo, o
quando e o onde a música poderia se ouvida, em que situações isso poderia acontecer e que uso
se poderia fazer dela. O fonógrafo e o gramofone do início do século, além de pesados e de
difícil locomoção, estavam restritos a ambientes pequenos por conta de sua baixa intensidade
sonora. A miniaturização dos dispositivos de reprodução e o crescente aumento da potência
sonora modifica completamente o modo de apreciação musical. Como descreve o músico Daniel
Gohnl116, a fita cassete permitiu, por exemplo, que se pudesse selecionar a música ouvida no
carro, e, com o walkman, foi possível levá-la a qualquer lugar. Estas novas tecnologias, levaram a
música para grandes ambientes e para um número cada vez maior de ouvintes, permitindo sua
integração no cotidiano dos indivíduos.
115
Luiz TATIT, Análise semiótica através das letras e Luiz TATIT, O Cancionista: composição de canções no
Brasil.
116
Daniel GOHNL, A Tecnologia na Música. Texto apresentado no GT “Mídia Sonora” no XXIV Congresso da
INTERCOM – Campo Grande /MS – setembro 2001.
93
É necessário, portanto, que se considere os meios comunicacionais como fatores
influentes na composição deste gênero e no seu sucesso. Do mesmo modo como se analisa
fatores sociais, políticos e econômicos, é preciso acompanhar a história da tecnologia para
compreender os rumos da música. A tecnologia ajuda a delinear o funcionamento das estruturas
que regem a música pois, em meio às revoluções tecnológicas, novas idéias ou processos
criativos podem resultar em novos estilos de música ou na reformulação de estilos antigos.
Michael Chanan117 chama a atenção para as conexões entre o desenvolvimento das gravações, as
mudanças na interpretação da música clássica e a proliferação de novas formas de música
popular. Ele trata da trajetória da tecnologia na produção sonora, relatando o caminho desde os
primeiros tempos das transcrições mecânicas, passando pela elétrica, eletrônica e digital
chegando aos dias de hoje, enfatizando o papel das tecnologias na maneira de produzir e , gravar
os sons , e no modo como isto afeta também a qualidade do que é ouvido, marcando referências
nos padrões de escuta. Assim, compreende-se melhor a consideração já exposta neste capítulo a
respeito de os sistemas comunicacionais se ordenarem por questões de natureza da forma e da
técnica, em que ambas se influenciam.
O sistema de gravação elétrica, introduzido no Brasil no final dos anos 20, contribuiu para
uma melhor fidelidade sonora nas reproduções, levando a um desejo de melhorar a qualidade dos
arranjos e das orquestrações, visando também a um aumento das vendas. Isso acabou por trazer
para o rádio e para as gravadoras, músicos de boa qualidade e de boa formação118. Isto é de
fundamental importância para se compreender a Bossa Nova, pois diversos de seus músicos e
compositores surgiram neste ambiente de arranjadores nas rádios e nas gravadoras. Tom Jobim e
Newton Mendonça são alguns desses exemplos. É nesse contexto também que se compreende –
embora neste momento ainda não fosse corrente e usual e nem disseminado no gosto geral – o
advento de se cantar mais à meia voz, como fazia Mário Reis. Isso só foi possível por que as
tecnologias disponíveis à época favoreciam a captação do som. Nesse sentido é que se pode
compreender a possibilidade do aparecimento do estilo de cantar de João Gilberto. .
117
Michael CHANAN, Repeated takes: a short history of recording and its effects on music. 2.ed. London: Verso,
2000.
118
Valter KRAUSCHE, Música Popular Brasileira.
94
O que se verificou ao longo do século XX no Brasil, com o advento da indústria do disco,
foi um aprofundamento da segmentação do campo musical. Segundo José Roberto Zan119, é
possível notar este fenômeno tanto na música erudita quanto na popular, com o crescimento de
seu mercado por meio do sistema elétrico de gravação e expansão da radiofonia baseada no
modelo comercial. Após os anos 40, foram definidas duas grandes tendências no campo musical
popular, devido a uma reorganização dos espaços musicais, boêmios e artísticos: de um lado,
artistas e empresários começaram a se deslocar para a região central da cidade, reativando o
Teatro de Revista, definindo uma linha mais explicitamente de massa da música popular com o
baião, o xote e até ritmos estrangeiros como bolero, apresentando forte identidade com o rádio; e
de outro lado, surgiram as pequenas boates na zona sul, onde artistas, incorporando elementos
estéticos mais sofisticados, atraíam as camadas médias e altas, formulando um estilo de música
que vinha do samba-canção, na sua versão mais próxima do fox norte-americano. Isto foi
configurando, de maneira explícita, segundo Zan, uma hierarquia de gostos e de legitimidade na
música popular, reforçada por publicações e revistas voltadas para estes segmentos de mercado,
que atuavam como instâncias de consagração do produto musical perante seu público.
Ainda quanto ao samba-canção, pode-se perceber, quanto a sua estruturação musical, uma
proximidade e familiaridade com as músicas latino-americanas. As versões de músicas
estrangeiras eram muito freqüentes no ambiente musical dos anos 40 e nos samba-canções,
devido à paulatina penetração e inserção de uma fatia da música portenha, com seus tangos
trágicos, apropriados de maneira ainda mais “rasgada”. A música caribenha também se
popularizou por aqui, principalmente com o bolero. Sendo mais fácil de dançar, o famoso “dois
prá lá, dois prá cá” passou a estar presente nos clubes, boates, dancings, cabarés, auditórios,
traduzindo um certo gosto latino que passava a ser cultivado, em forma de samba-canção120.
Na verdade, o que parece haver neste momento é uma internacionalização da
musicalidade, incorporada num processo mais geral. Músicas francesas passaram a ser muito
difundidas no país, bem como as americanas. Da mesma maneira, é fácil perceber uma certa
“onda de mexicanização”, que se espalhou na música, nas novelas do rádio, no cinema de
lágrimas da América Latina, atestando uma matriz cultural do melodrama121. Antes disso, é
119
José Roberto ZAN, Do fundo de quintal a vanguarda: contribuição para uma História Social da Música Popular
Brasileira. Campinas, 1997. Tese (Doutorado em Sociologia)- IFCH/ UNICAMP.
120
Alcir LENHARO, Cantores do Rádio.
121
MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. Op.cit..
95
preciso saber um pouco sobre os locais da cidade do Rio de Janeiro que passavam a tomar conta
do cenário musical a partir de então e entre eles está Copacabana. Sua história remonta ao século
XVII, quando ali chegaram os primeiros proprietários de terras. Depois, já na virada do século
XIX para o XX, o bairro começa paulatinamente a se desenvolver com a expansão da cidade para
o litoral. Se até esta época o banho de mar ainda não era um hábito social, mas indicado apenas
por recomendações médicas, durante o século XX a ida à praia se populariza, e Copacabana
também cresceu, passando a ter, a partir da década de 30 e 40, uma vida noturna agitada com
bares e boates. Isso aconteceu tanto porque a Lapa – antigo local preferencial da boêmia –
mudara de feição, estando mais violenta e policiada, quanto por conta do fechamento dos
cassinos em 1946. Aliado a isso, Copacabana passava a atrair as camadas médias, interessadas no
conforto e no status de morar perto do mar e num bairro visto como cosmopolita.
Nesse ambiente, nos anos 50, conviviam cantoras como Nora Ney, Sylvinha Telles,
Maysa, Dolores Duran, pianistas como Newton Mendonça, Johnny Alf, Luiz Eça, Tom Jobim,
intelectuais, jornalistas e boêmios como Antônio Maria, Ronaldo Bôscoli e Vinícius de Moraes.
Esse convívio deixa as claras a vinculação e a proximidade existente entre a Bossa Nova e o
samba-canção, ressaltando como, por algum tempo, estiveram confundidos, nascidos que eram do
mesmo ambiente musical e social. É desse modo que é possível identificar o samba-canção em
duas vertentes diferenciadas, sendo uma mais ligada ao derramamento vocal, à expressividade
lingüística, ao elemento kitsch, e outra mais sofisticada, que incorporava o cool jazz e formas
mais sutis de interpretação. Estas diferenças se refletiam também na segmentação que o mercado
de música popular passava a ter.
Durante todo essa trajetória, pode-se perceber mudanças significativas na ambiência
musical brasileira popular hegemônica. A crescente influência americana trouxe paulatinamente
uma crítica a esta própria influência, como se pode ver na canção Chiclete com banana, com sua
letra sugerindo uma relação de igualdade entre padrões brasileiros e norte-americanos, mas em
cuja melodia e estruturação musical demonstra a absorção dos ritmos americanos. Diante deste
quadro, o samba foi se tornando cada vez mais lento e mais lírico, adquirindo uma espécie de
refinamento, tornando-se mais rico harmonicamente, virando uma canção de salão, com aspectos
adquiridos do jazz, ampliando o arsenal de acordes, possibilitando maiores sonoridades por meio
das dissonâncias e dos novos jeitos de se cantar. Quanto a este último aspecto, vale lembrar que
as vozes grandiloqüentes de Orlando Silva e outros começaram cada vez mais a competir com
96
estilos mais sutis de músicos com Dick Farney e Lucio Alves, que mantinham estreito contato
com a música americana, influenciados por Frank Sinatra, Nat King Cole e Chet Baker. Como
sugere Krausche122, nas boates de Copacabana, o piano e o intérprete pediam para serem ouvidos,
entoando uma canção diferente daquela abolerada para namorados que existia à época,
configurando-se assim, como um samba da solidão, da ausência, da tristeza, da “fossa”, em
consonância com um padrão ou estilo cool que se difundia no ambiente boêmio de Copacabana,
associado a um espírito de tristeza, instrospecção, intimismo.
O samba-canção, nos anos 50, transformava-se em música para pequenos espaços, para a
boite pequena, apertada, enfumaçada, regada a whisky. Ele era produto de um universo social
onde se buscava sofisticação, mas também era produto dos meios de comunicação de massa, em
que as técnicas de gravação se aperfeiçoavam cada vez mais e os arranjos com influência dos
musicais americanos imperava. Um samba-canção para ser ouvido na intimidade das pequenas
salas, com uma reprodução em massa, possibilitando também uma relação de intimidade com o
disco, abandonando o vozeirão operístico em favor de uma nova atitude do intérprete com o
microfone.
Parcelas de ouvintes das canções, freqüentadores desses espaços e consumidores dessa
musicalidade, vão acostumando-se a essas novas performances, com volume ou intensidade mais
baixa que passam a constituir um elemento a mais em seu repertório musical.
A música dos anos 50, mostra-se como um produto híbrido, miscigenado, que guarda
suas relações com o samba, com o kitsch associado às músicas aboleradas, mas também como um
elemento de sofisticação que, em muitos sentidos, se deve à música norte-americana, sobretudo
ao jazz.
Assim, parece ir se compondo um quadro múltiplo em que podem ser detectadas as
matrizes da Bossa Nova: sua ligação com a modinha como primeira forma de canção popular no
Brasil; como o samba e seu ritmo sincopado, expressão popular urbana do Rio de Janeiro; uma
forte relação com o samba-canção e seus elementos que falam do amor, da introspecção, da
natureza e também de seu ambiente musical, a zona sul do Rio e Copacabana e, finalmente, sua
ligação com o jazz norte-americano.
Quanto ao jazz, de origem híbrida, mestiça, multicultural, suas raízes podem ser
localizadas nas colônias inglesas na América do Norte do século XVII. Os negros escravos,
122
KRAUSCHE, Valter. Música Popular Brasileira. Op.cit..
97
vindos da África, chegavam às colônias e ali buscavam reconstituir sua tradição musical por meio
de seus cantos, da fabricação de instrumentos semelhantes aos utilizados em sua terra natal. Tudo
isso, no entanto, era proibido pelos seus senhores, que temiam o uso desses utensílios como
meios de comunicação entre os escravos, o que poderia gerar situações de revolta (isso explica,
em parte, o fortalecimento de uma tradição vocal na música negra americana – os hollers).
As primeiras manifestações musicais dos negros na América – as work-songs – eram
entoadas por estes, obedecendo ao esquema de “chamada-e-resposta”, característica que também
se verificava na música religiosa protestante. No entanto, entre os negros, a música se construía
pela improvisação. Este grito, em estado bruto, foi aos poucos assumindo novas formas,
incorporando elementos da cultura branca européia, originado, por exemplo, as gospel songs,
uma mistura das work-songs com os hinos protestantes entoados nas igrejas – locais onde os
negros eram obrigados a freqüentar – transformando os hinos métricos, de melodia e ritmo
europeus, em cantos sincopados acompanhados por palmas e batidas de pés.123
Esta música que vai, desde o seu início, sendo marcada pela mistura de culturas e de
influências acabou, nas últimas décadas do século XIX, sendo descoberta por compositores semieruditos, que passam a associar obras clássicas como as Liszt e Chopin, com os ritmos negros,
fortemente sincopados, originando o ragtime (ritmo rasgado, destruído). Note-se que o ragtime
foi um dos primeiros gêneros musicais consumidos em massa, por meio dos rolos de pianola,
antes mesmo da invenção da vitrola.
O blues foi outro gênero que influenciou na formação do jazz. Com uma estrutura básica
compondo uma estrofe de doze compassos, originária das antigas baladas anglo-saxônicas, este
gênero acentua sua origem resultante da fusão entre o grito primal, as canções de trabalho, os
acordes dos hinos religiosos e a estrutura das baladas. O blues tem como pressuposto a expressão
dos sentimentos, da tristeza, pois sua característica melódica é a blue note, a bemolização, o tom
menor (diminuição de meio tom) da terceira e da sétima notas da escala européia, o que lhe
empresta o ar triste e também sua beleza e originalidade. Mas se o blues era, no seu início, uma
forma essencialmente vocal, mais tarde acabou sendo adaptado para os instrumentos europeus,
desembocando no jazz. É preciso estar atento também para o fato de que por esta época surgem
as brass bands (bandas de metais), que se desenvolveram em New Orleans, advindas da época da
Guerra de Secessão, em que tinham o papel fundamental de encorajar os soldados nas batalhas.
123
FRANCIS, André. Jazz. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
98
Juntamente com o aperfeiçoamento técnico proporcionado pela revolução industrial, em que os
instrumentos puderam ser aperfeiçoados, melhorados e barateados, estas bandas viveram seu
auge na virada do século XX e foram de grande influência na formulação do jazz.
Assim, é possível associar o nascimento do jazz à mistura entre ragtime, brass bands e
blues, a partir daquele canto primal, e dos anos de mutações, absorções musicais e culturais,
modificações na forma, estrutura musical, o que o transformou
num gênero multicultural,
híbrido, mestiço, advindo de várias procedências.124
Desta forma, nas primeiras décadas do século XX, o jazz se estabelecia enquanto tal,
como resultado das influências múltiplas já explicitadas. Nesse momento, a sociedade americana
passava por inúmeras e profundas mudanças, com alterações nas relações de produção,
intensificação do processo de industrialização e de urbanização das cidades e a libertação dos
escravos, o que fez com que a população negra se dirigisse a centros urbanos como New York e
Chicago, onde passaram a trabalhar no setor industrial. Na falta de postos de trabalho no setor
produtivo, eles trabalhavam como cantores e músicos em bares e shows, o que denota que a
música, naquela sociedade, já ia adquirindo um caráter de entretenimento comercial, gerando
uma indústria musical – com o disco e o rádio – e de entretenimento ligado ao jazz. Eric
Hobsbawm125 define o jazz como um tipo de música relacionada à industrialização, aos padrões
de consumo, com a indústria fonográfica, o rádio e os espetáculos fazendo parte de um contexto
de modernidade e de transformações originadas no espaço urbano. Um espaço urbano que
possibilita a diversidade, o contato entre culturas diferentes, transformando tradições e
reorganizando a realidade cultural e também a produção e a comercialização cultural.
O jazz foi sendo constituído como fruto desta tensão do espaço urbano, entre legalidade e
ilegalidade, resistência, adaptações, modificações e reapropriações. Nisso, ele muito se assemelha
ao samba: uma música de raiz africana, mas modificada, readaptada, misturada aos elementos
brancos, expressão de uma cultura popular urbana mestiça. Tal qual o samba, vai passar de um
momento em que era renegado como cultura menor pela elite e pela cultura erudita, para depois
se tornar aceito, reconhecido e legitimado. No entanto, se aqui o samba foi legitimado por razões
ideológicas de uma política populista, como uma tentativa de associá-lo a um ideal de nacionalpopular, o jazz acabou por se legitimar como música erudita e elitizada, uma música para poucos.
124
125
Roberto MUGGIATTI, Jazz.
Eric HOBSBAWN, História social do jazz.
99
Este processo de apropriações do popular e do erudito nas sociedades urbanas mestiças, aponta
para o fato de que as designações de popular, massivo e erudito estão constantemente em
transformação, como parte das lutas pela conquista da hegemonia.
A elitização do jazz é fundamental para esta análise, na medida em que, na leitura
bossanovista deste gênero musical, se constrói a idéia de uma música elitizada que viria se somar
à tradição popular do samba. Por este motivo, a Bossa Nova foi é ainda criticada como música da
classe média da zona sul carioca que, elitista, deixou o samba e os valores nacionais populares de
lado para importar e incorporar elementos norte-americanos jazzísticos na construção de sua
musicalidade.
Bernardete Moraes126 descreve o jazz, em seu caminho trilhado até a década de 60, como
uma música caracterizada por uma intensa complexificação de elementos harmônicos
consolidados com a expansão urbana, apesar de suas origens estarem no campo e sua raiz ser
mestiça. É exatamente essa riqueza harmônica do jazz que seria absorvida pela Bossa Nova nos
anos 50.
A autora, ao reconstruir a história do desenvolvimento deste gênero musical, desde seus
elementos formadores – com o blues, spiritual e ragtime – até o jazz atual, aponta para um
primeiro estilo de jazz propriamente dito, o jazz tradicional cujo berço seria New Orleans. Essa
região do sul dos EUA tinha uma população bastante diversificada, o que levou as tradições
musicais informais dos negros a entraram em contato com a cultura erudita musical dos creoles,
descendentes dos colonizadores europeus, resultando nessa mistura que parece ter dado o perfil
deste primeiro estilo, em que os elementos musicais se fundiram, gerando uma música pautada
pela improvisação, mas também pela leitura e notação musical. O estilo New Orleans mostra-se
muito elaborado, com vozes instrumentais se cruzando, gerando polifonias e abrindo espaço para
improvisações. Seus instrumentos principais, trompete, trombone e clarinete, geravam um ritmo
assemelhado a uma marcha militar, mantendo, porém, uma pulsação de linhagem africana, com
o pulso forte no segundo e no quarto tempo, diferente da tradição européia, cujo pulso está no
primeiro e no terceiro tempo. É fácil perceber nesta música forte influência negra, tal qual o
samba.
126
Bernardete Silveira MORAES. Jazz: as matrizes da mestiçagem. São Paulo, 2000. Dissertação (Mestrado em
Ciências Sociais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, PUC/SP.
100
As mudanças provocadas pela Primeira Guerra Mundial fizeram com que muitos dos
músicos de New Orleans tivessem que se transferir para outras cidades, devido às intervenções
militares nos bairros musicais de população predominantemente negra. Um dos locais para onde
se dirigiram, foi a cidade de Chicago, gerando um segundo momento na história do jazz
tradicional. Na verdade, o estilo Chicago, que passaria a vigorar a partir de então, tinha como
elemento fundamental o fato de ser gravado e executado no gramofone, levando ao despertar da
música solo e à utilização do saxofone como base melódica para a criação de novos arranjos.
Com isso, os outros instrumentos de sopro puderam ser utilizados de modo alternativo criando a
harmonia completa das músicas. A formação de grupos foi o passo seguinte, gerando a
possibilidade de muitos artistas viajarem pelo país, propiciando o contato entre músicos de
diferentes procedências e gerando o aparecimento de outros estilos, como por exemplo o swing.
Este outro estilo, caracterizado por impulsos rítmicos, tendo por objetivo a movimentação
corporal, a dança, coincide com muitas mudanças e implementações ocorridas no campo do
entretenimento popular, modificando as formas de contratação dos artistas, gerando monopólios
de produção e estimulando as gravações. Para as corporações, torna-se vantajosa a gravação de
músicas adequadas ao entretenimento, feitas para tocar em grandes salões, com grandes bandas,
as big bands estimulando a dança e o hábito de se frequentar salões cada vez maiores e luxuosos.
Isto aconteceu na década de 30, mas já na década seguinte esta fórmula dava sinais de desgaste,
em parte pelo abuso e repetição das formas de apresentação127, em parte pela comercialização
excessiva, e em parte, também, pela estrutura rígida das orquestras que não dava espaço para a
improvisação do artista, algo fundamental no jazz.
No meio de tudo isso, surge o bebop, um movimento protagonizado por músicos
descontentes com o que era executado pelas grandes orquestras, dando origem ao que passou a se
denominar jazz moderno. Surgido dos encontros de músicos nos night clubs de New York em
jam sessions – após seu trabalho nas orquestras, para discutir os caminhos da música e também
para tocarem ao seu jeito –, o bebop é uma música complexa, difícil e elaborada, que soava a
princípio estranha aos ouvidos, sendo considerada “moderna”. Sua harmonia privilegiava os
improvisos, o que, se por um lado revelava alta dose de criatividade, por outro requeria muita
prática, habilidade e estudo por parte do músico, tendo como base uma musicalidade rápida,
complexa com predomínio da improvisação, acrescentando ao jazz a dissonância como elemento
127
Carlos CALADO, O jazz como espetáculo.
101
definitivo a partir de então. Tornou-se corrente no bebop a execução de standards populares com
outra roupagem, o que os transformava a partir da improvisação com harmonias dissonantes.
Este último estilo é o que mais interessa nesta análise da Bossa Nova, pois parece ter sido
ele, juntamente com o cool (um estilo mais intimista), o que mais de perto a influenciou. Suas
harmonias dissonantes, modo rápido de ser tocado, improvisação, interpretação de clássicos com
outra roupagem e um estilo cool, estão muito próximos do que se pode ver na musicalidade
bossanovista, permitindo que se possa considerar o jazz como uma outra influência, uma outra
matriz cultural e musical da Bossa Nova.
A Bossa Nova
Como defini-la? Ou como interpretá-la a partir de suas origens? Neste momento, está
dada a partida para uma compreensão que busca levar em conta todo o processo desenvolvido
até aqui.
Em primeiro lugar, muito se debate sobre o fato de a Bossa Nova ter sido uma linguagem
e um movimento que trouxe uma série de inovações ou, em outro extremo, um movimento de
mera continuidade. Tentando responder a essa polêmica, Walter Garcia128 sai em busca de pistas
no canto, na “performance” de João Gilberto, um dos principais representantes do movimento.
Analisando a “dicção” do cancionista, Garcia diz que a “batida” do seu violão, sua forma de
cantar em baixo volume sem efeitos na voz e no contratempo do violão foram criações do artista
que se mostraram trangressoras e diferenciadas no contexto da canção brasileira, mas que, ainda
assim, guardam influências dos tempos anteriores do cancioneiro nacional. Segundo o autor, a
batida rítmica da Bossa Nova,
estruturadora dojogo entre voz e violão, expressa uma
“contradição sem conflitos”, isto porque o caráter da voz de João Gilberto intervém evitando que
o mesmo se instale, suspendendo o conflito muitas vezes irreconciliável nas canções e unificando
os termos opostos entre canto e fala. O autor analisa também, a relação entre o
compositor/violonista/cantor e seu público ouvinte. Sua forma de cantar, que a princípio
desagrada e soa estranha, é incorporada aos ouvidos e ao repertório musical desses ouvintes, que
acabam estabelecendo com ele, com a sua “conversa cantada”, uma relação de aceitação e de
silêncio. Nos shows o único a cantar é o próprio cantor; não pode haver barulho, nem
acompanhamento por parte dos ouvintes. Garcia identifica também nesse processo, na relação
128
Walter GARCIA, Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto.
102
entre artista/ouvinte, a existência desta “contradição sem conflitos”. Quanto à relação com os
ouvintes, este é um debate que será deixado para os próximos capítulos.
Voltando-se para a questão da Bossa Nova e sua tradição, encontra-se esta última como
um conceito tantas vezes esquecido pelo pensamento marxista tradicional, que tendia a vê-lo
sempre como fator secundário, próprio à superestrutura ou ainda como algo inerte, morto. No
entanto, como sugere Raymond Williams, a tradição é a expressão mais evidente das pressões e
dos limites dominantes e hegemônicos, uma forma prática de incorporação que segue, porém,
intencionalidades referentes ao presente, que aponta para a existência de uma “tradição
seletiva”129, a qual é muito operativa no processo de definição e de identificação social e cultural.
É o caso de preferir se relacionar e se filiar a certos aspectos, elementos, estilos do passado e não
a outros, que são negligenciados, ocultados. No entanto, esta tradição seletiva acaba por passar
para a “história oficial”, uma idéia hegemônica da tradição, a versão mais correta do transcorrer
histórico de uma forma ou movimento artístico, por assim dizer. Assim, a tradição tem a ver com
a organização social contemporânea, isto é, tem a ver com o tempo presente a partir do qual se
fala e se seleciona.
No caso da Bossa Nova, isso fica muito claro quando se identifica uma tentativa dos
agentes produtores de serem considerados herdeiros de uma certa categoria de música brasileira:
a música sofisticada, o samba-canção, com influências internacionais, sim, mas um produto
nacional, ou ainda quando eles tentam afirmar uma filiação ao samba dos primeiros tempos.
Nesse sentido, há também um movimento em direção ao desligamento do samba-canção
abolerado, derramado e “brega” que se relatou mais acima. A filiação a esta tradição era (e ainda
é) rechaçada por parte dos bossanovistas. É desse modo que a tradição deve ser compreendida no
seu sentido ativo e hegemônico como uma tentativa de confirmação histórica e cultural que tem a
ver com interesses do presente, e não como algo preso ao passado, o contrário de inovação.
Muitas vezes pode-se pensar que a tradição seletiva está estritamente ligada às instituições
formalmente identificáveis e estabelecidas no campo social, mas também é possível notá-la – e de
maneira mais freqüente – nas “formações”130, que são movimentos, tendências que têm papel no
desenvolvimento de uma cultura, mantendo com as instituições uma relação variável, fluida, de
incorporação e de resistência. É aí que a Bossa Nova pode ser identificada e compreendida muito
129
130
Raymond WILLIAMS, Tradições, instituições, formações. In: ____ Marxismo e Literatura, passim.
Raymond WILLIANS, Formações. In: _____Cultura.
103
mais como formação e não como instituição ou movimento (no sentido mais sociológico do
termo), pelo menos em seu início como estilo musical. Por formação, compreende-se as
modalidades de auto-organização, como círculos, escolas, agrupamentos, enfim, que definem ou
apontam para tendências, intervindo no debate cultural ou, neste caso, musical. Quando a Bossa
Nova se inicia, nas reuniões dos apartamentos ou mesmo no trabalho de renovação musical nas
boates cariocas, não era mais do que um grupo de músicos e compositores com formações
diferentes, vindo de locais variados e em número reduzido, apesar de uma certa tendência de
rapidez de aglutinação, compartilhando alguns interesses comuns como a busca por uma música
com sonoridade diferente que associasse os elementos sofisticados do jazz com letras mais
coloquiais e sintéticas.
Esses encontros se caracterizavam por uma ausência de regras específicas para sua
formulação, reunindo sujeitos que vinham tanto de tradições poéticas mais clássicas como no
caso de Vinícius de Morares; músicos com formação erudita que acabaram misturando em suas
composições elementos populares, como fez Tom Jobim; músicos de formação jazzística como
João Donato e Johnny Alf; letristas advindos do meio jornalístico, como Ronaldo Bôscoli e até
jovens compositores em busca de uma renovação como Carlos Lyra e Roberto Menescal, entre
outros. Mais tarde, incorporaria ainda intérpretes como Maysa, Sylvia Telles, Lúcio Alves,
pertencentes a uma tradição do samba-canção mais sofisticado. Desta maneira é que o conceito
de formação informa muito mais acerca da Bossa Nova, que o de “movimento”, que sugere um
projeto coletivo combativo, coeso e uniforme, veiculado por meio de programas, manifestos ou
atitudes performáticas próprias, coesas e únicas.
Pensando mais sobre esta questão das diferenças dentro do grupo, seria importante atentar
para quais tradições este grupo olha, identifica-se e traz como marca. É possível perceber que
muitos grupos buscam desvencilhar-se de uma associação ao que foi imediatamente anterior.
Neste sentido é que se pode compreender melhor a questão residual e emergente dentro de um
movimento, como o que se guarda do seu passado e quais são os elementos novos. Mais uma vez
lembrando, residual é um elemento formado no passado mas que continua ativo no presente,
como no caso do samba-çanção de nomes como Dick Farney e Lucio Alves que usam elementos
deste passado musical. Arcaico é o que sobrevive do passado apenas como passado, ou seja, na
rememoração ou na vontade do esquecimento, naquilo que se quer negar, como as músicas dorde-cotovelo, de linguagem rasgada, derramada e exagerada. Por outro lado, o emergente são as
104
formas novas que atuam, pressionam mas que ainda não estão perfeitamente articuladas no
interior do grupo e que não necessariamente serão forças dominantes. É importante atentar para
esta complexidade de uma cultura ou de uma formação musical, sem permitir que os elementos
dominantes e hegemônicos encubram suas diferenciações. Esta tendência encobridora, como
aponta Raymond Williams, é
comum nas análises de movimentos como as “vanguardas”,
quando se busca apenas os marcos de ruptura, aquilo que as une, destacando, na obra de um
grupo, características formais e estilísticas como elementos de unidade. Quando esses elementos
comuns não são encontrados, ou se percebe sua recorrência apenas por um curto período de
tempo, logo a análise se desarticula e o movimento é visto como algo sem coerência interna. Isto
acontece, segundo Williams, porque se esquece de olhar para as características externas à obra,
nas quais podem ser compreendidas inúmeras questões relativas ao mesmo.
Mas ainda no campo da forma, José Estevam Gava131, num estudo recente sobre as
inovações harmônicas da Bossa Nova frente ao samba, ressalta algumas características que
podem ser elencadas como sendo seus princípios estilísticos, dentre os quais se destacam alguns
como uma empostação de voz mais natural e relaxada; um estilo camerístico caracterizado pela
economia e sutileza; uma certa independência entre a estrutura rítmica do acompanhamento em
relação à melodia; atenção aos detalhes nas gravações e, consequentemente, a retirada do papel
centralizador do intérprete da canção, abrindo espaço e dando importância para arranjador e
técnicos; desenvolvimento de uma linguagem violonística de acompanhamento; redução e
concentração dos elementos poéticos e musicais numa linguagem mais enxuta; caráter mais
coloquial desta narrativa musical e poética sem preciosismos vocais, entre outros. Segundo o
autor, o estilo musical da Bossa Nova apoiava-se em bases muito claras e definidas, onde
qualquer “deslize” ou variação na composição ou na interpretação, comprometiam esta solução
formal bem delineada.
Ora, baseando-se estritamente nestas características para compreender a Bossa Nova,
acaba-se por classificá-la como uma vanguarda. Embora estas características apontadas sejam
absolutamente pertinentes, este olhar estrito para a forma, acaba por lhe dar (como alguns autores
colocam) um caráter de movimento efêmero, tendo um fim prematuro, circunscrito a um período
muito curto e delimitado da história, excluindo a possibilidade mais ampla de encará-la como
131
José Estevam GAVA. A linguagem harmônica da Bossa Nova. São Paulo, 1994. Dissertação (Mestrado em Artes
- Musicologia). Unesp/SP.
105
formação, com diferenciações internas e sem uma necessária coesão, que dá, por isso mesmo,
margem à constituição de novas formações, ou até à permanência e conservação desta
musicalidade sob outras leituras e interpretações, geradoras de outras formas.
É difícil atribuir aos bossanovistas uma identidade única. Seu ar informal, descrito como
um “grupo de amigos que se reuniam para compor, tocar e cantar”, nas palavras de seus
participantes, é algo próprio das formações, que, a partir desse estado de fluidez, permite o
reconhecimento de diferenciações internas, de aspectos diversos que dariam, logo em seguida,
origem a outras formações, como foi o caso de compositores com temáticas mais sociais e de
protesto. Estes acabaram por se desligar da formação original, procurando e fundando formas
musicais mais adequadas ao ideário de engajamento e participação ligadas à questão nacional–
popular tão presente naquele contexto. Desta modo, esse estado fluído, próprio às formações, é
favorável às rupturas, o que é mais difícil de acontecer nos processos de institucionalização, em
que as características hegemônicas parecem se sobressair sobre as diferenças. Outrossim, na
modernidade, as formações tendem a ser mais comuns em épocas de transição e de intersecção no
interior de uma história cultural. No caso da Bossa Nova, ela vai apontar para uma série de
elementos culturais e musicais que eclodiriam nos anos 60, o que a torna elemento chave para o
entendimento da cultura musical brasileira.
É assim que se pode compreender que o “racha” – já tão comentado – da Bossa Nova, que
teria ocorrido em 1961/62 a partir da sua “ala politizada”, não teria sido uma quebra, um
desvirtuamento do movimento (como alguns querem destacar), que perdeu sua direção, ou em
que se perdeu como movimento. É necessário compreender que estas diferenciações estavam na
sua origem, em que setores das camadas médias urbanas já se alinhavam numa ideologia
nacionalista de valorização do popular e se valeram desta formação musical com características
modernas e populares para virem à tona. Em outras palavras, estes elementos estavam ativos e em
conflito desde o começo, fazendo parte e compondo suas feições.
Assim, se por um lado a Bossa Nova inovava em seus aspectos musicais, por outro
também guardava inúmeras relações com seu passado, não podendo ser encarada como ruptura.
Seu caráter sofisticado, como uma música de cunho camerístico, alta elaboração e complexidade
formal nas harmonias e no ritmo, apresenta várias ressonâncias com a música que já se fazia no
Brasil, permitindo que sejam identificados fortes elementos em sua linguagem que a vinculam a
uma tradição popular da música brasileira de fala coloquial e de canto falado. Num outro sentido,
106
não são poucos os autores que a articulam a uma matriz musical impressionista. Esta influência,
aliás, passou muitas vezes despercebida pois considerou-se que a harmonia triádica moderna
(supertertian harmony)132 utilizada pela Bossa Nova fosse de origem americana, quando, na
verdade, era uma prática comum nas composições francesas da passagem do século XIX para o
XX em compositores como Claude Debussy133. Tom Jobim foi um compositor em que é possível
perceber, em muitas de suas obras, esta matriz impressionista, possuindo acordes com notas
“estranhas”, como nonas, décimas primeiras, décimas terceiras.
Sem um aprofundamento maior sobre o impressionismo musical, cumpre dizer que ele
está relacionado com a figura do francês Claude Debussy, criador de um sistema de acordes
isolados que juntos formam o todo, livres da rigidez da harmonia tradicional, baseado mais no
ouvido e intuição do que nos tratados de harmonia e composição. Esses acordes, compostos dessa
forma, levaram seus contemporâneos a associá-los às pinceladas soltas dos pintores
impressionistas; daí essa denominação comum. A música impressionista é entendida como
galáxia sonora, parecendo uma nebulosa, sem contornos definidos e onde mar, vento e nuvens
sugerem imagens musicais. Na sua composição passam, a ter importância os acordes isolados, os
timbres e as pausas, com cada detalhe meticulosamente anotado, cada nuance de ritmo, harmonia
ou textura exatamente calculados, numa vontade de que o efeito sonoro fosse de improvisação.
Um estilo, portanto, que valorizava não tanto o caráter pragmático ou organizado da música
tradicional, mas sim a evasão das sensações, aquilo que os órgãos e sentidos captam. 134
Entretanto, como já foi dito, uma análise isolada de um estilo musical ou movimento,
parece ser um tanto quanto obscura, seja analisando sua obra, seu conteúdo, seja analisando o
grupo, a formação. Faz-se necessária, uma análise mais geral da sociedade, buscando identificar e
interpretar as condições que tornaram possíveis tais formações, tanto num âmbito mais geral,
político e econômico, quanto nas miudezas, nos cacos cotidianos, em profunda relação com a
totalidade.
A Bossa Nova parecia conter um ideário de modernidade, como sugerem as palavras de
seus participantes e sua configuração para além das fronteiras estritamente musicais, colocandose, entre outros aspectos, no âmbito da experiência urbana dos sujeitos nela inseridos. Aqui
parece importante recuperar proposições mais abrangentes reveladas a partir de idéias de
132
Idem.
Eric SALZMAN, Introdução a música o século XX.
134
Idem.
133
107
“modernidade”, de novos modos de ser e agir, em que esta música não se colocou apenas como
um novo estilo musical, mas se queria também como um novo estilo de vida.135
Considerando a experiência musical destes sujeitos – que cantam, compõem, tocam,
improvisam e se reúnem - para discutir, cantar e fazer shows – como inserida num conjunto
mais amplo de suas vidas urbanas, parece ser revelador o fato de essas experiências ocorrerem
em ambientes específicos como bares, universidades, e nas casas de seus participantes. Esta
análise busca contemplar a experiência bossanovista articulada ao meio social/cultural/econômico
dos anos considerados, partindo dos lugares e dos ambientes dos acontecimentos. O que se
procura desvendar são aspectos deste novo viver urbano proposto pelos bossanovistas, rastreando
a idéia de um “ser moderno” nos anos 50. A parte da cidade onde a Bossa Nova nasceu - em que
viviam grande número de seus agentes –, a zona sul, mais precisamente, Copacabana, também
colaborava para construir este ideário de modernidade. A discussão específica sobre a cidade será
retomada e melhor discutida num dos próximos capítulos.
No campo musical, a idéia de “ser moderno” estava também presente. Havia uma
tentativa de colocar o movimento como algo inovador, que rompia com a musicalidade
estabelecida, tanto nas letras, como também nas melodias, harmonias e, fundamentalmente, no
ritmo. Em relação a esta questão, era corrente na época avaliar a Bossa Nova e essa sua
“modernidade”, como algo inventado unicamente por João Gilberto, responsável por uma outra
maneira de cantar, sem os arroubos interpretativos que marcaram a sua passagem pelo conjunto
vocal Garotos da Lua, em 1950. Agora, ele cantava em baixo volume, dando a nota exata sem
vibrato, acentuando os tempos fracos da música e, no violão, acentuando a famosa “batida” 136,
que pode ser caracterizada pela introdução do uso dos acordes compactos, de elevada tensão
harmônica: a marcação dos beats em defasagem.
Dentro desta idéia de modernidade, estava contido um certo “ar despojado”, percebido na
memória da experiência de seus integrantes e dos ambientes frequentados; cores de uma
sociabilidade e de convivências que se queriam mais soltas, mais informais. Muitos de seus
participantes, em suas lembranças, não se cansam de falar sobre a “turma da Bossa Nova” como
135
Simone Luci PEREIRA, Bossa Nova é sal, é sol, é sul: música e experiências urbanas (Rio de Janeiro, 19541964). São Paulo, 1998. Dissertação (Mestrado em História Social) – PUC/SP.
136
“A chamada ‘batida clássica’ (tradicional, baseada no grupo semicolcheia, colcheia, semicolcheia)” é diferente do
que se considera a “batida da Bossa Nova”, “um defasamento no tempo físico entre os acentos tônicos periódicos da
linha melódica e os do acompanhamento causado pelo uso reiterado de síncopas.” Brasil Rocha BRITO, Bossa Nova.
In: Augusto CAMPOS, Balanço da Bossa e outras bossas.
108
um grupo de espírito irreverente.137 Aqui também se faz presente uma espécie de promoção dos
valores e preceitos juvenis que se espalhou pelas culturas ocidentais no pós-guerra, como parte de
um processo de formação não só das camadas médias, mas de um padrão médio de consumo e de
estilo de vida, em que a aquisição de bens não demarca apenas um fator econômico mas também,
como sugere Pierre Bourdieu, a estruturação de uma diferenciação social, a configuração de um
estilo de vida, demarcando um gosto próprio ao capital cultural formado pelo habitus dos
sujeitos, mapeando a posição de cada indivíduo na sociedade138.
Em resposta, ocorre uma setorização também da produção de bens de consumo,
especificando roupas, eletrodomésticos, cosméticos e também músicas para estes novos setores
sociais que entravam para o mercado de trabalho no pós-guerra, e que também poderiam
consumir, como as mulheres e os jovens. Um consumo de caráter real e simbólico. No entanto, há
que se olhar para esta questão de uma maneira mais ampla. Não se pode negar que haja realmente
uma massificação da sociedade, onde a cultura também foi modificada a partir do
desenvolvimento das sociedades modernas ocidentais, em que as massas urbanas passaram a ter
acesso a um novo padrão de vida, entrando cada vez mais no universo do bem-estar, lazer,
consumo, antes prerrogativa das classes altas.
O desenvolvimento do trabalho assalariado e as facilidades trazidas pela tecnologia,
possibilitaram ao homem um menor tempo de trabalho e, consequentemente, um maior tempo
para o lazer e para a vida privada, gerando um alto grau de individualização das pessoas. Em
outras palavras, como diz Edgar Morin, “a seiva da vida encontra novas irrigações fora do
trabalho. As vivências vão se refugiar no lazer e vão acentuar o movimento mais geral no sentido
da vida privada”139. Desta maneira, há que se entender o desenvolvimento da cultura de massas
também em função das necessidades individuais que emergem, fornecendo à vida privada as
imagens e modelos aspirados por estas pessoas. Estas aspirações, não podendo ser satisfeitas na
racionalidade das grandes cidades, necessitam da evasão trazida pela cultura de massas, na
procura por um universo imaginário da realização, liberdade, amor e felicidade.
137
Cf. Luiz Carlos MACIEL e Angela CHAVES. Eles e eu: memórias de Ronaldo Bôscoli; Luiz Fernando FREIRE
(Org.), Bossa Nova: som e imagem. Rio de Janeiro: Spala, 1996. Em ambos os livros, existem muitas citações de
histórias dos personagens da Bossa Nova que ressaltam sua informalidade, jovialidade, salientando estes aspectos
como característicos da vida no Rio de Janeiro.
138
Renato ORTIZ (Org.), Pierre Bourdieu.
139
Edgar MORIN, Cultura de massas no século XX : o espírito do tempo I – Neurose, p.89.
109
Os teóricos da Escola de Frankfurt já apontavam para esta questão ainda na década de 30.
Mas para além de uma “dialética da negatividade”140 ali proposta – em que se pensa a cultura de
massas como possuidora de uma “ideologia intrínseca”, alienando os indivíduos, mascarando o
real –, procura-se aqui enxergar na cultura de massas um componente do imaginário humano.
Novamente lembrando Edgar Morin, sua concepção de estética incorpora este imaginário, sendo
que na cultura de massas, esta magia – parte constitutiva da subjetividade do sapiens – faz-se
presente e atuante como parte dos mecanismos de identificação e projeção comuns a qualquer
cultura, mesmo a de massas (como uma “terceira cultura”), constituindo um corpo de símbolos,
mitos, imagens concernentes à vida prática e à vida imaginária, acrescentando-se à cultura
nacional, religiosa, humanista, deixando de ser vista apenas como uma invenção do capitalismo e
sinônimo de manipulação.
Ainda, segundo o autor, não há uma dicotomia entre real e imaginário ou entre
objetividade e subjetividade. Estas noções estão interligadas nos indivíduos, constituindo sua
complexidade e inacabamento; uma objetividade, assim, que já contém a dimensão imaginária, da
qual emerge a noção de “duplo”141. Segundo o autor, a análise da cultura de massas não pode ser
descolada da noção de que o homem possui em si a dimensão imaginária, que é o que pode
explicar muitas das escolhas, motivações que os sujeitos demonstram em sua relação com o
consumo cultural massivo. Para Morin, “o movimento que a impulsiona [a cultura de massas]
não é só do real para o imaginário, mas também do imaginário para o real; ela não é só evasão,
ela é ao mesmo tempo, e contraditoriamente, integração.”142
É por esta objetividade/subjetividade própria ao homem, que se estabelece sua ligação
com a cultura de massas, numa relação que é de diálogo e não de manipulação ou constituída por
um gosto de classe encarcerado dentro do habitus. A partir desta universalidade da subjetividade
e da sua não separação do real e do mundo objetivo é que se pode compreender as relações entre
as pessoas e essa cultura, estabelecendo um consumo em seu caráter imaginário, o que pode ser
interpretado como uma brecha possível ao indivíduo diante da sociedade de massas. Essa brecha
pode ser identificada a partir de diferentes formas de diálogo com estes elementos massivos, não
sendo possível conceber o real sem o traço multiforme e multidimensional do imaginário. O
consumo estaria evidenciando aquilo que já é constitutivo do indivíduo e os bens, reais ou
140
Susan BUCK-MORSS, Origen de la dialectica negativa, passim.
Edgar MORIN, O enigma do homem, passim.
142
Edgar MORIN, Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo I - Neurose. Op.cit..
141
110
simbólicos, consumidos estariam expressando características já existentes no imaginário, e não
criando novas necessidades e desejos.
Muito se argumenta sobre o fato de este consumo imaginário apontar para a questão do
espetáculo, definindo uma sociedade em que o olhar tem preponderância, é mais estimulado, e
também mais falseador, redutor, não permitindo leituras variadas por parte do receptor. No
entanto, é importante lembrar que a cultura auditiva, a audição, não ficam imunes às
considerações sobre sua possível característica alienante. Theodor Adorno trata a arte como a
antítese da sociedade, contendo elementos de tensão que a caracterizam como fato estético e
social, estabelecendo uma relação dialética entre o prazer e a totalidade, propiciando a síntese
entre o parcial e o essencial. Nela, estão internamente presentes as contradições da sociedade – o
“mascaramento intrínseco do real”143 e a possibilidade de sua negação. A arte deve ser algo que
rejeita esta realidade ao mesmo tempo que a apresenta criticamente ao mundo. Seria a arte a
possibilidade de fuga, de antítese de um mundo imperfeito, massacrado pela ideologia e pela
falsidade intrínseca.144
No entanto, segundo Adorno, a arte na sociedade burguesa (e, neste caso, a música)
assimila o modo de produção capitalista. Partindo dessa afirmação, o autor desenvolve o conceito
de “fetichismo” musical, no qual considera que o processo de publicização e circulação de bens
culturais passa a ter precedência sobre aquele no qual as obras ganham sentido. É assim que o
elemento de aparência sensível dos objetos estéticos, de uma obra musical, perdem-se naqueles
que caracterizam sua possibilidade de intercâmbio num contexto capitalista. O valor de uso é
sobrepujado pelo valor de troca na medida em que a função do estético incorporou à sua estrutura
uma função de justificação da própria lógica da produção. O caráter fetichista da música produz,
por meio da identificação dos ouvintes, o que é lançado no mercado, o seu próprio
mascaramento. A partir dessa concepção fetichista, o ouvinte desenvolve uma sensibilidade
auditiva absolutamente atômica e desarticulada.
O ouvinte, na sua descontração (que, aliás, é a tônica da vida sob a égide da indústria
cultural massificadora com o lazer e o “tempo livre”), dá margem à armadilha estratégica da
ideologia dominante, uma vez que esse modo de percepção musical – por meio do qual se prepara
o esquecer e o rápido recordar da música de massas – permite que se estabeleça uma situação de
143
144
Theodor ADORNO, O conceito de Iluminismo. In: Os Pensadores, passim.
Theodor ADORNO, Teoria Estética.
111
alienação. É nesse sentido que Adorno argumenta que na sociedade capitalista ocorre uma
"regressão da audição"145, caracterizada na música popular (ou "música ligeira") pelo afastamento
daquilo que está implicado em sua fruição como um exercício de percepção da totalidade quando
toda a obra se exprime.
No caso da música de consumo, esta apreciação é essencialmente parcial e dirigida para
um gozo que é alienante e reforçador das estruturas sociais que sustentam este modo de
produção. O prazer estético possível é um mero fetiche, um falso prazer e, por conseguinte, uma
falsa realização, pois, por seu intermédio, aquilo que é reafirmado e reificado são as forças
sociais que ditam as regras do gosto e que, ao mesmo tempo, são a sede de uma lógica industrial
de produção. A escuta regressiva, seria, assim, uma audição incapaz de articular as obras no
plano de uma totalidade conceitual, estando permanentemente tomada pelo contingente. Para
Adorno, a melhor caracterização possível deste fenômeno regressivo está na desconcentração
típica da relação com o jazz e com a música ligeira em geral.
No entanto, a perspectiva de se trabalhar com a escuta musical neste trabalho, segue por
outros caminhos, apontando para seu caráter polissêmico e fabulativo, aberto às múltiplas formas
de sentir e re-organizar a visão e escuta do mundo, incorporando a lógica própria das
apropriações e dos usos do receptor, compreendendo a sua capacidade de produzir significados.
Uma
música construída de formas, sons, gestos e conceitos, numa estrutura de
multisensorialidade, não admite valores definidos e verdades absolutas, ao contrário, comporta
liberdades (embora não absolutas), em que o ouvinte pode vir a tomar parte do trabalho musical,
como uma espécie de co-autoria, uma vez que a música só se completa na sua escuta.
Como argumenta Silvio Ferraz146, existe, na música, o “ritornelo” que, ao mesmo tempo
que é uma repetição demarcadora de um território, traça suas linhas de fuga. A repetição é o
elemento unificador da composição musical que, sendo algo complexo, possui a diferença
bloqueando uma repetição do mesmo. A diferença também está entre obra e ouvinte, destacandose na relação do compositor com outras obras, na relação entre tradição e tradução – quando o
autor se vale de seu repertório musical para compor, imprimindo uma marca própria e também
no âmbito da escuta musical, que produz sempre uma diferença diante do fator determinante
formulado pelo compositor, isto por conta das linhas de fugas presentes em toda obra musical.
145
146
Theodor ADORNO, O fetichismo na música e a regressão da audição. In: Os Pensadores, passim.
Silvio FERRAZ, Música e repetição: a diferença na composição contemporânea.
112
Além disso, a música estando inserida no campo do som, da voz, articula um outro tipo de
textualidade, o da oralidade. Lembrando Paul Zumthor, o termo “vocalidade” 147 é mais indicado
para o que será analisado: a função da voz, seu uso e sua historicidade. Zumthor revela, em suas
considerações sobre a oralidade, esta dimensão da comunicação que incorpora a fala humana e o
engajamento do corpo no
processo, montando uma teatralidade em que vários elementos
cristalizam-se em uma e para uma percepção sensorial. A este complexo, Zumthor dá o nome de
performance.148
Mais precisamente, para além de trabalhar aqui com a fala e com a voz, com os sons e
com a música, está também em questão a palavra cantada, a canção, que é a junção entre letra e
música. O encontro da palavra com a música estabelece o canto, o cantar, elemento fundamental
na música popular urbana deste século, suscitando harmonias, dissonâncias, contradições,
conflitos e junções149. Na canção, para além de uma gestualidade oral e vocal de quem canta, com
seu timbre e sonoridade, há uma gestualidade corporal, um jeito de se comportar, gesticular,
mover os lábios, fechar os olhos, que tem comunicação com o ouvinte, tornando-o co-autor da
obra. O termo “performance” parece ser de muita importância para compreender, para além da
canção e de seus significados, a forma como aquela é percebida sensorialmente por seus ouvintes
e o modo como estes se relacionam com aqueles símbolos corporais emitidos, numa situação em
que tato, peso, volume, sonoridade e visão, entre outros, são elementos de composição e
recepção. Desta maneira, este conceito de performance, intimamente ligado ao que é chamado de
sujeito receptor, deve ser acionado na tentativa de compreensão deste ouvinte, de sua escuta e de
suas maneiras de percepção.
Neste sentido, a performance bossanovista, intimista, sutil, econômica, mas ao mesmo
tempo ritmada, cadenciada, parece propor esta aproximação com seu público. Quando se imagina
os primeiros shows bossanovistas nas universidades cariocas, é necessário levar em conta que
este seu caráter intimista aproximava, criando elos entre os intérpretes e seu público. Tendo em
vista, de modo sempre presente, este elemento informal de aproximação, é possível identificar
um tom arrogante e distante de uma música difícil e elitista, exigindo concentração e
conhecimento por parte do ouvinte mas também uma música que embalava situações cotidianas.
147
Paul ZUNTHOR, A letra e a voz: a “literatura” medieval, passim.
Paul ZUMTHOR, Performance, recepção, leitura, passim.
149
Cláudia Neiva de MATOS; Fernanda Teixeira de MEDEIROS; Elizabeth TRAVASSOS (Orgs.). Ao encontro da
palavra cantada – poesia, música e voz.
148
113
Ainda dentro dos elementos de sua performance, suas letras simples, coloquiais, por vezes até
ingênuas e o seu ritmo que guarda aspectos do samba, proporcionavam este élan com seu público
jovem, como será discutido mais à frente.
Desta maneira, é importante frisar que aqui não se busca uma interpretação da Bossa
Nova como movimento de curta duração, por não ter alcançado popularidade imediata ou por
não ter unidade e coesão estilística, mas sim suas muitas diferenciações internas. Este tipo de
perspectiva puramente formal impede que seja olhada como música que se completa na escuta,
em que se pode interpretar elementos que vão muito além das amarras das análises de “escolas”
ou “movimentos” formalmente estruturados. Assume-se que a Bossa Nova, entre os anos de
1958/59 até 1963, existiu como um “movimento” reconhecido socialmente desta forma pela
imprensa e pela crítica, mas, compreende-se a Bossa Nova como formação e, neste sentido,
pensa-se suas diferenciações internas de onde se originaram outras formas musicais. Também não
se pretende classificá-la como música camerística, elitista e sofisticada, com dificuldade para
alcançar um público mais amplo exatamente por exigir concentração e ouvido educado, entre
outras solicitações. O que se pretende é toma-la em suas múltiplas mediações com a vida
cotidiana destes jovens ouvintes, buscando perceber os elos, as formas de escuta que contrariam
qualquer tendência redutora e classificatória, como se verá nos próximos capítulos.
A Bossa Nova, dentro dessa perspectiva, deixa de vista como música para ser ouvida e
entendida apenas por um grupo específico – as camadas médias educadas e com formação
musical – cujas práticas são fruto da constituição de seu habitus de classe ou grupo. Este modelo
de conduta, formado no processo básico de socialização, operaria uma relação dialética entre as
condições externas estruturais e as disposições e tendências internas, envolvendo também as
subjetividades e as práticas objetivas, constituindo uma “experiência subjetiva”. Estando
implícitas, estas práticas não precisariam ser ditas, isto quer dizer que são práticas para as quais
nenhum modelo explanatório ou discursivo é necessário. É assim um “sistema internalizado de
estruturas estruturadas e estruturantes”, como sugere Pierre Bourdieu150. Pode-se até argumentar
que o pensamento desse sociólogo considera uma certa mobilidade, no sentido de que as
estruturas são estruturantes, possuem um componente dado, mas também estão em movimento,
em andamento, fazendo-se e refazendo-se. No entanto, para ele, não é possível ao sujeito fugir
150
Pierre BOURDIEU, Esboço de uma teoria prática. In: _____ Renato ORTIZ (Org.) Pierre Bourdieu. Op.cit..
114
do destino social e cultural de seu grupo, nem mesmo lhe é possível driblar ou reinventar as
regularidades impostas pelos esquemas reprodutores.
A análise social de Bourdieu é de grande valor para o entendimento da sociedade e de
suas práticas por reconhecer a existência de um campo simbólico, uma autonomia para o campo
cultural e a existência de lutas por hegemonia, mas, é indispensável que seja superada, uma vez
que acaba enquadrando de modo redutor os sujeitos e as práticas. Embora não se deva perder-se
numa análise que projeta uma infinita criatividade nos receptores e busca encontrar esta
“criatividade” de maneira concreta, declarada, organizada, ainda assim é necessário interpretar o
cotidiano dos sujeitos. Mesmo reconhecendo que possuem um pertencimento cultural e social,
não se pode fazer deste uma amarra que não permita compreender as práticas que diferem, que
são fluidas, fragmentárias, que subvertem a ordem, a estrutura, em que os os sujeitos podem se
aproveitar exatamente do que as instituições formalizadas oferecem, para utilizá-las e apropriálas de maneiras diferentes.
Como bem argumenta Michel de Certeau151, seria o caso de valorizar as táticas desses
sujeitos, como ações conscientes, determinadas exatamente pela ausência de um lugar próprio,
valendo-se de uma espécie de calculismo, apesar da ausência de poder, trabalhando assim, com as
condições objetivas que lhe são dadas, reconhecendo a existência e força dos sistemas
reprodutores, mas traduzindo-se como a arte do fraco, que busca subverter a ordem dada por
meio de pequenas ações próprias ao cotidiano. As táticas se diferenciam das estratégias, que são
os movimentos estruturados da instituição, tendo como lugar o poder.
Os ouvintes da Bossa Nova parecem estar inseridos muito mais num processo dinâmico,
entre práticas e estruturas variáveis e fluidas que se realizam no cotidiano, do que encarcerados
em gostos de classe. Se a própria Bossa Nova continha em si, elementos populares, eruditos,
residuais, emergentes, constituindo-se como algo plural, não é possível pensar que seus ouvintes
eram também únicos, fechados em um grupo, compartilhando um único estilo de vida.
Avançando nesta reflexão, ainda que a Bossa Nova tenha tomado como hegemônica sua
sofisticação, as mediações possíveis com seu público podem não ter confirmado esta questão.
Volto a lembrar, não é o caso de dar ao âmbito da recepção um caráter absolutamente autônomo e
criativo, mas de pensá-lo em articulação com as instituições e sistemas reprodutores, perfazendo
esta relação dinâmica e complexa do cotidiano.
151
Michel de CERTEAU, A invenção do cotidiano : 1. Artes de fazer.
115
Para compreender ainda mais esta relação, cumpre retomar a questão da performance.
Zumthor, ao designar a performance mediatizada152 como a que prescinde da coincidência entre
espaço e tempo, separando o momento da interpretação do de sua recepção graças à utilização de
aparatos técnicos como o microfone de amplificação, o rádio, o disco, afirma também que isto
não significa necessariamente perda, pois os elementos vocais e as gestualidades próprias da
performance continuam, embora alteradas, presentes e interagindo na recepção. Pensando-se,
mais uma vez, no canto-falado de João Gilberto, que foi preservado como primeiro plano em
todas as suas gravações, revelando que sua performance entoativa e rítmica se preservou e
reverberou (de modos diferenciados, é claro) nos ouvintes.
A partir dessa discussão sobre performance e performance mediatizada é que se
compreende esta sonoridade bossanovista em relação ao desenvolvimento da cultura de massas
no Brasil, à instauração de um mercado de bens simbólicos, à industrialização da cultura e, mais
precisamente, em relação ao desenvolvimento das mídias sonoras. Atenta-se, assim, para o modo
como a técnica se relaciona com as sensibilidades e como as afeta.
Heloísa Valente ressalta que a introdução das tecnologias trouxe consigo questões
inovadoras, dentre elas, a alta-fidelidade que, para além de uma transformação puramente
técnica, foi uma transformação social, fazendo com que as performances ao vivo deixassem de
ser referência diante das performances mediatizadas. Segundo a autora,
“seu advento (o hi-fi - abreviação do inglês high fidelity) nos Estados Unidos, coincide com a
popularização da televisão, seguida da estereofonia. A conquista da alta-fidelidade e da estereofonia
constitui uma das razões que dinamizam o efeito da performance no receptor. A década de 1950, dentre
outros, é o momento do cool jazz e também dos crooners, e a característica intimista desses gêneros,
153
certamente seria incrementada com a aproximação tátil que a alta-fidelidade passou a oferecer.”
Por conta dessas transformações, é possível afirmar que a estética do canto popular
urbano ocidental contemporâneo está intimamente ligada à questão tecnológica, a sua mediação,
à midiatização, e não apenas aos instrumentos, uma vez que uma das novidades trazidas pela
modernidade foi a “transcrição eletromagnética” 154 dos sons, representada pelo microfone, pelo
registro fonográfico e sua difusão.
152
Paul ZUMTHOR, Introdução à poesia oral.
Heloisa de Araújo Duarte VALENTE, As vozes da canção na mídia, p.57.
154
Felipe ABREU, A questão da técnica vocal ou a busca da harmonia entre música e palavra. In: Cláudia Neiva
MATOS. et alli. (Orgs.). Ao encontro da palavra cantada – poesia, música e voz.
153
116
Tomando o canto intimista de João Gilberto e de outros bossanovistas que entrariam para
a cena musical, percebe-se essas mudanças de modo claro. No entanto, não se pode reduzir o
entendimento sobre a adoção deste volume mais baixo a uma
determinação, pura e
simplesmente, do incremento das técnicas – como se as vozes de alta intensidade tivessem
desaparecido com as técnicas de gravação. Esse modo de cantar faz parte de um projeto
estilístico, associado às possibilidades dadas pelo desenvolvimento tecnológico. Antes disso, o
mais valorizado na canção popular urbana era o nome do intérprete e a qualidade de sua voz,
associada a sua capacidade de empostação. A partir daqui, passa a ter importância a famosa
“ficha técnica”, em que estão não só instrumentistas, arranjadores, maestros, mas também
produtores, técnicos de gravação, engenheiros de som, layoutmen, entre outros profissionais que
participaram do projeto de gravação e edição do disco.
Todos estes aspectos, anteriormente desvalorizados, uma vez que se pensava no disco
como algo muito mais solo – ligado ao estrelismo e às vaidades pela potência vocal –, com a
Bossa Nova, assumiram posições de destaque em função da atenção aos detalhes e em função da
idéia de que a feitura de um disco é um trabalho de equipe. Essa mudança de perspectiva ajudou a
dissolver a noção de autoria e a elevar o nível técnico das gravações, passando a ser objeto de
atenção tanto os detalhes da gravação quanto a voz do cantor, num trabalho que buscava o
equilíbrio entre voz, instrumento e play-back.
A exploração mais consciente das possibilidades e recursos da gravação, como argumenta
Augusto de Campos, “suas novas bases de tratamento como coisa em si e não como registro
passivo da execução musical”155 permitiu o surgimento de novas empresas ligadas ao meio
fonográfico. Várias empresas nacionais já imprimiam e/ou distribuíam catálogos internacionais.
Desde 1929, a empresa norte-americana Columbia CBS era representada no Brasil pela Byington
e Cia, através do selo Columbia do Brasil e, após sua instalação no país em 1953, através do selo
Continental. Também a Chantecler, gravadora nacional, iniciou suas atividades em 1956,
distribuindo discos e utilizando o conhecimento adquirido por meio de seu contato com a RCA.
A partir da década de 50, muitas das majors internacionais que hoje dominam o mercado
iniciaram ou ampliaram suas atividades no país. A “Phillips-Phonogram (depois Poly Gram e,
atualmente, parte da Universal Music) instalou-se em 1960 a partir da aquisição da CBD; a CBS
155
Augusto de CAMPOS. Balanço da Bossa e outras bossas, passim.
117
(hoje Sony Music) – instalada desde 1953 – se consolidou a partir de 1963” 156. E, paralelamente,
a indústria como um todo foi alcançando alto nível de organização institucional em busca da
defesa de seus interesses, fato atestado pela criação da ABPD (Associação Nacional dos
Produtores de Disco), ainda em 1958.
Em meio a este contexto da indústria fonográfica nasceu a Bossa Nova. Quando surgiu
esta “nova” música, a imprensa e a crítica musical buscaram torná-la cada vez mais pública. Nos
shows universitários e nos clubes cariocas, logo surgiram empresários, homens de marketing e
estrategistas da indústria, dispostos a lançá-la comercialmente. Identificada como música jovem,
a Bossa Nova foi considerada um produto perfeito para este segmento de mercado que crescia
juntamente com o desenvolvimento urbano, industrial e o consumo.
No Brasil, até os anos 50, a segmentação do campo musical tinha como base uma cultura
de massas ainda incipiente e um mercado de bens simbólicos não unificado que permitia um
trânsito maior entre grupos de artistas eruditos e populares. A partir da Bossa Nova, isso começa
a mudar. Este movimento buscava se colocar – e de alguma forma assim também reverberava
socialmente – como algo distante do mau gosto hegemônico das rádios, apresentando-se como
um padrão estético mais adequado às aspirações das camadas médias desejosas de se sentirem
modernas e cosmopolitas. Vai operando-se, assim, uma cisão entre uma produção fonográfica
destinada ao grande público e um outro segmento auto-proclamado culto e sofisticado, que
buscava se legitimar pelo aprimoramento técnico e estético de suas produções em oposição ao
mero comercialismo. José R. Zan aponta para um certo posicionamento do músico bossanovista
em querer se caracterizar por um certo amadorismo, que não era de fato, mas uma convenção de
gênero, onde o descompromisso com relação à profissionalização e ao mercado passava a ser
uma categoria, um sinal de distinção na luta simbólica dentro do campo musical.157
O primeiro a descobrir o potencial de mercado da Bossa Nova foi André Midani, diretor
artístico da Odeon (multinacional) que, já em 1959, apressou-se em contratar os jovens artistas
para a gravação de um disco que seria lançado em seguida, acompanhado de diversas matérias na
imprensa, publicidade e programas de rádio. No ano anterior, a Odeon havia editado dois
compactos de João Gilberto, os quais pareciam ser a síntese do que buscava a nova música. No
ano seguinte, a Phillips (binacional), outra gravadora de grande porte tratou de sinalizar com
156
Eduardo VICENTE. Música e disco no Brasil: a trajetória da indústria nas décadas de 80 e 90. São Paulo, 2001.
Tese (Doutorado em Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, USP, p.67.
157
José Roberto ZAN, Do fundo de quintal à vanguarda.
118
Carlos Lyra – já a esta altura representante de uma ala mais politicamente engajada da Bossa
Nova – a elaboração de um outro disco, em paralelo ao da Odeon. Por esta época, as duas
gravadoras colaboraram para o acirramento dos ânimos entre os bossanovistas, convidando Lyra
para outra gravação, e financiando os shows das universidades num mesmo dia, dividindo o
público. Como conta Marcos Napolitano158, este primeiro “racha” da Bossa Nova já apontava
para o que seria o eixo fundamental dos embates da música popular nos anos 60: de um lado,
uma música como veículo ideológico e de outro uma música de conteúdo comercial, embora esta
divisão não possa ser compreendida em termos absolutos, numa relação de completa exclusão.
Essa divisão parece se mostrar como uma investida das gravadoras na diversificação de suas
posições, num mercado em que o rock já entrava com muita força.
Embora seja impossível, pela distância temporal, realizar uma “etnografia da produção”
da indústria fonográfica da época, é preciso compreender aspectos deste processo de produção
musical. O desenvolvimento da indústria fonográfica implicou também em formas mais racionais
de divisão do trabalho dentro das gravadoras, em foram constituindo-se departamentos com
finalidades específicas como as diretorias artísticas, comercial e de divulgação. Até os anos 50, a
coordenação geral das gravações era uma das funções acumuladas pelo diretor artístico da
gravadora, mas o crescimento do mercado acabou por impulsionar o surgimento de um outro
cargo, o de assistente de produção. Este, deveria selecionar o repertório, reunir maestros e
músicos, designar arranjadores, providenciar a autorização dos autores, marcar estúdio, dentre
outras coisas.
Com o aumento da complexidade de todo este processo, esse “assistente de produção”
acabou por se tornar o “produtor artístico”, responsável por todos os aspectos envolvidos na
gravação do disco. A ele cabia fazer a ponte entre o artista e a gravadora, subordinando-o, até
certo ponto, à racionalidade do mercado, mas também deixando margens para o desenvolvimento
de sua criatividade. Como aponta Rita Morelli159, esse profissional, na década de 70 já contava
com um poder de decisão maior do que o próprio artista, sendo uma espécie de mediador entre os
aspectos artísticos e mercadológicos do trabalho.
Para a Bossa Nova, o papel destes produtores foi fundamental, aglutinando músicos,
idealizando discos, convencendo as gravadoras a investir em discos distantes dos padrões de
158
159
Marcos NAPOLITANO, Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959/1969).
Rita MORELLI, Indústria fonográfica: um estudo antropológico.
119
sucesso da época, mas aceitos por segmentos mais refinados e sofisticados do mercado. Aos
poucos, conforme esse processo ia se desenvolvendo, outros sujeitos do interior da indústria
também iam buscando utilizar a nova música como produto para o mercado. Aloysio de Oliveira,
recém-saído da Phillips e da Odeon em 1961, que também era músico (acompanhou Carmem
Miranda no Bando da Lua), compositor (fazendo músicas inclusive com Tom Jobim) e produtor
de shows nas boates cariocas como o Bon Gourmet, acabou por fundar, em 1962, uma nova
gravadora, a Elenco, cujo objetivo era conquistar mercado com base na qualidade musical, só
produzindo discos de Bossa Nova, um processo, aliás, acompanhado pela fundação de outros dois
selos, o Forma e o Som Maior. Entre 1963 e 1967, a Elenco lançou mais de 60 discos, todos
caracterizados pela qualidade técnica e estilística, com capas cuidadosamente elaboradas com
apuro estético e artístico. Esse não era um selo que funcionava dentro de uma gravadora – o que
lhe garantiria boa distribuição e comercialização – mas sim uma gravadora independente que se
utilizava de estúdio, fábrica e esquema de distribuição da RCA, com autonomia para gravar o que
quisesse160. O mercado se dinamizava, a indústria descobre novos rumos e aponta para um certo
tipo de relacionamento entre as majors e as indies no país, as gravadoras nacionais, que tiveram
todas um curto espaço de duração sendo absorvidas pelas grandes empresas.161
Num outro sentido, para refutar esta questão, é necessário pensar também sobre o rádio
durante o fim dos anos 50 e durante os anos 60. A sua importância para a Bossa Nova – no Rio
de Janeiro – pode ser considerada pequena, pelo menos nos seus primeiros tempos e,
principalmente, se comparada ao papel que tinha na divulgação de outros estilos musicais. O
incremento e crescimento da indústria fonográfica não retirou ou diminuiu a importância do
rádio no âmbito musical, mas provocou um reposicionamento de mídias, uma vez que a Bossa
Nova se valia muito mais dos shows e dos discos. O rádio, no entanto, foi o veículo que a levou
para fora do Rio de Janeiro, atuando como propulsor inclusive no momento em que o mercado
consumidor paulista passou a comprar os discos e frequentar os shows universitários produzidos
no Teatro Paramount.
A inserção da Bossa Nova em São Paulo deveu-se muito à atuação de um DJ famoso à
época, Walter Silva, o “Pica-Pau”, um apreciador da nova música. Este paulistano atuava como
locutor em rádios do estado desde 1952 e, em 1958, quando começou a comandar seu programa
160
161
José Roberto ZAN, Do fundo de quintal a vanguarda.
Eduardo VICENTE, Música e disco no Brasil.
120
Pick-up do Pica-Pau, na Rádio Bandeirantes, acabou por ser seu principal divulgador,
executando maciçamente as composições cariocas, tornando-as muito conhecidas por aqui, isto se
for considerado que seu programa, em cinco anos de duração (1958-1963), teve uma média de
22 % de Ibope, marca até hoje não superada no rádio brasileiro. O papel de Silva em São Paulo,
como divulgador da Bossa Nova é de extrema importância, uma vez que, ele passou também a
produzir os famosos shows no Teatro Paramount na capital paulista162, trazendo os
bossanovistas, e dando espaço para outros artistas que se incorporariam ao novo estilo musical.
Tudo isso mudou um pouco a feição de intimismo que era uma das características iniciais da
Bossa Nova, introduzindo-lhe a idéia de espetáculo, de música cênica para grandes públicos.
Assumindo o papel de agente musical na Bossa Nova, Silva passou a trabalhar também
como produtor musical na TV Excelsior, inaugurada em São Paulo no início dos anos 60. Essa
emissora caracterizou-se pela busca de qualidade, tendo como alvo central na sua programação as
artes e, fundamentalmente, a música, o que a levou a produzir o primeiro festival de música
popular, em 1965, de uma maneira muito influenciada pelo sucesso que alcançavam os
espetáculos do Paramount. 163
Indo mais além nesta discussão sobre o mercado consumidor da Bossa Nova, vale a pena
atentar para as formas de organização das gravadoras em seus esquemas de distribuição e
divulgação naquele momento. A Odeon produziu os dois compactos 78 r.p.m. de João Gilberto
em 1958, que continham, no primeiro – lançado em julho – Chega de Saudade e Bim Bom, e no
segundo – lançado em novembro – Desafinado e Hobalalá, os quais, a princípio, demoraram para
se popularizar no Rio de Janeiro. As rádios em que essas músicas eram executadas eram a
Tamoios e a Eldorado, conhecidas por sua sofisticação, mas que, no entanto, tinham um público
muito limitado.
A Odeon, com estrutura de grande gravadora, teve a habilidade de planejar
estrategicamente o lançamento do primeiro compacto em São Paulo, buscando o interesse tanto
do responsável pela gravadora na cidade, quanto do gerente de vendas de uma loja de
eletrodomésticos e discos, financiadora de um programa de rádio comandado por Hélio de
Alencar, a Parada de Sucessos, da Rádio Excélsior-Nacional, que passou a executar o novo
compacto. Além disso, o programa Pick-up do Pica-Pau, de Walter Silva, dava prêmios a quem
162
Ao mesmo tempo, em São Paulo, outros jornalistas e publicitários, como Moracy do Val, Franco Paulino, Renato
Corrêa de Castro passariam também a produzir shows como o Noites de Bossa, no Teatro de Arena.
163
Walter SILVA, Vou te contar – histórias de música popular brasileira.
121
telefonasse para a rádio e cantasse a música da mesma forma que seu intérprete: com o ritmo
“atravessado”164. Intensificando as estratégias de lançamento, nessa mesma ocasião, João
Gilberto veio a São Paulo, onde participou de alguns programas de TV, cantando e dando
entrevistas. No ano seguinte, em 1959, Tom Jobim começou a gravar semanalmente um
programa na TV Paulista chamado O Bom Tom. Em todas essas ações, percebe-se a configuração
de estratégias de mercado fundamentais para a expansão do novo gênero musical. Essas
estratégias envolviam gravadoras, executivos, divulgadores, DJs, as TVs e também a produção de
shows em faculdades a princípio, depois em boates e, em seguida, nos grandes teatros.
Apesar desta pesquisa ter como objeto de análise a Bossa Nova e sua recepção no Rio de
Janeiro, não é possível esquecer São Paulo, como o local que a popularizou e lançou as bases
(nos shows nos teatros e nos programas musicais com a participação dos bossanovistas) para a
estruturação dos programas musicais e dos festivais televisivos. Na capital paulista, estavam
concentradas as emissoras de televisão, fundamentais no trabalho de divulgação da Bossa Nova
nos anos 60. Embora se considere tudo isso, não parece possível, no espaço desta pesquisa,
realizar um histórico do campo artístico e musical, bem como do meio social urbano de São
Paulo, tal qual foi realizado até aqui sobre o Rio de Janeiro. De qualquer forma, uma reflexão
sobre o ouvinte paulista também é considerada, uma vez que foi nesta cidade que sua
popularidade alcançou níveis de expressividade destacáveis.
Nesse contexto, é preciso considerar o papel da Bossa Nova na instauração de um novo
significado que o conceito de “popular” passaria a imprimir na canção brasileira, introduzindo
um processo de institucionalização da mesma que viria a se completar no final da década de 60,
transformando-se na sigla MPB (Música Popular Brasileira). Esta sigla parecia carregar traços do
grande impasse vivido durante toda a década de 60 entre a ideologia do engajamento nacionalpopular e a indústria fonográfica com seus interesse de mercado. Dilema que parece ter se
resolvido somente após os festivais e sobretudo após o Tropicalismo, com a entrada de um novo
estrato social para o panorama musical popular, tanto no campo da criação quanto no de seu
consumo. Setores mais altos das classes médias passaram a encarar essa música como algo
respeitável e, mais à frente, faixas das camadas mais baixas também foram incorporadas,
principalmente a partir do advento e da crescente veiculação desse tipo de música pela TV.
164
Depoimento de Walter Silva apud Ruy CASTRO, Chega de Saudade: a história e as histórias da Bossa Nova.
122
A trajetória da institucionalização da MPB, como aliada à idéia de algo de gosto
sofisticado, engajado e crítico, foi marcada pelo engajamento político e pela inserção na indústria
cultural numa dinâmica de resistências e incorporações, configurando as lutas por hegemonia
próprias ao campo musical. No entanto, não se pode radicalizar a noção polarizada, pondo a MPB
de um lado e o popular de outro, pois nos anos 70, estes campos iriam se encontrar por muitas
vezes.165
O que se percebe é que dentro da multiplicidade de questões que envolviam a Bossa
Nova, estava também a questão política. Se o debate sobre o popular e o nacionalismo na música
já vinha há muito tempo se estruturando (como já visto), parece ser com a Bossa Nova que ele
ganha cores decisivas. Como aponta Enor Paiano166, se os “folcloristas da cidade”–
maneira
como ele se refere aos agentes deste após o nacionalismo musical de Mario de Andrade, os quais
já admitiam a manifestação musical urbana como legítima – ainda não tinham um discurso que
lhes permitisse atuar no debate intelectual, também porque a música da época não lhes dava estas
condições, com a Bossa Nova estes elementos não faltavam, pois era uma música feita, em parte,
por uma juventude intelectualizada em busca de uma forma musical que superasse os impasses
de termos como “alienação” e “colonialismo” trazidos à tona e discutidos pelos intelectuais do
ISEB.
Um polo aglutinador destas tendências dentro da Bossa Nova foram os CPCs (Centros
Populares de Cultura) da UNE, a partir de uma crença no papel conscientizador e transformador
do intelectual orgânico, atitude inspirada nas idéias de Antonio Gramsci (trazidas para cá
exatamente por conta desse debate). Embora se possa argumentar a arbitrariedade ou o equívoco
das posições cepecistas em relação ao povo, eleito como personagem principal do debate e das
lutas políticas mas na verdade ausente de todo o processo, é preciso atentar para os elementos
colocados em pauta que acabaram influenciando posturas, debates e criações, interferindo no
jogo de forças de consolidação do campo artístico167 e, mais particularmente, do musical.
Primeiramente, o CPC deve ser entendido dentro de um contexto mais amplo de
estruturação de um ideário de nacionalismo, manifesto na política do nacional-popular, verificada
tanto no nacional-desenvolvimentismo da era Juscelino Kubitschek (1956-1960), como no
165
Eduardo VICENTE, Música e disco no Brasil.
Enor PAIANO, O Berimbau e o som universal, passim.
167
Heloísa Buarque de HOLLANDA, Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde – 1960/70.
166
123
nacional-reformismo do governo João Goulart (1961-1964).168 Tendo isso claro, utilizando-se das
considerações de Renato Ortiz169, é importante atentar para a própria noção de cultura popular
posta em evidência pelos Centros: uma idéia desvinculada da noção de folclore, uma vez que este
último era visto como um conceito paternalista, referindo-se às culturas tradicionais como algo de
raiz. O popular, defendido pelos cepecistas, era o urbano, instituído de um caráter transformador,
aliado à idéia de vanguarda, parte do ideário reformista do grupo. A cultura popular não era a
expressão da visão de mundo das classes subalternas, mas um projeto político que utiliza a
cultura como elemento de sua realização.
Neste sentido, sua filiação aos conceitos gramscianos se encerra, na medida em que não
vêem essa cultura como manifestações das classes subalternas, como assumia o pensador italiano.
Para os cepecistas, ela se manifestava nas ações dos agentes dos centros de cultura. A correlação
com o pensamento de Gramsci se mantém somente no que diz respeito ao papel dos intelectuais e
na organização da cultura, ainda que não de maneira absoluta, pois para Gramsci, o intelectual é
expressão das massas, estando organicamente vinculado à ela, enquanto nos CPCs, o intelectual
nunca sai de uma posição de exterioridade em relação às essas massas. Outra questão relevante
dentro da ideologia dos CPCs é a idéia do nacional compondo com o popular as faces de uma
mesma moeda, fazendo-se necessária uma conscientização sobre a dependência aos países
imperialistas. Este ponto pode ser considerado como herança do pensamento isebiano. Assim,
coloca-se em termos de “autenticidade”, a independência aos padrões culturais que vinham de
fora, e este componente autêntico só seria encontrado nas manifestações tradicionais regionais.
Desta maneira, os cepecistas recaíam na mesma armadilha dos folcloristas, buscando achar uma
cultura original, pura, livre de contaminações.
Embora algumas das proposições dos CPCs sejam criticáveis o fato é que a música
popular se viu – a partir da grande inserção de seus agentes neste ideário – pela primeira vez,
como personagem principal de uma articulação ideológica de grande porte, estando presente nas
discussões acadêmica e no debate da crítica musical, como polo aglutinador desta questão, o que
contribuiu em muito para a sua consolidação no campo musical170.
Não por acaso, sujeitos (compositores e intérpretes) da Bossa Nova como Carlos Lyra,
Nelson Lins e Barros, Sergio Ricardo, Nara Leão, Geraldo Vandré, inseridos que estavam neste
168
Marcos NAPOLITANO, Seguindo a canção.
Renato ORTIZ, Cultura Brasileira e Identidade Nacional.
170
Enor PAIANO, O Berimbau e o som universal.
169
124
debate, buscaram ainda no início da década de 60, composições que tratassem dos elementos
regionais, bem como músicas que revelassem a preocupação com o nacionalismo contra a
alienação e o subdesenvolvimento, ou ainda uma articulação com o samba urbano do morro, visto
como “de raiz”, trazendo à tona não só as composições, mas também a presença, nos shows,
(lembrar do Opinião) de artistas como Zé Keti, Nelson Cavaquinho, Cartola, entre outros. Desta
maneira, acabou se dando o rompimento com a Bossa Nova, que passou a ser considerada como
alienada e elitista. Essa atitude buscava confirmar uma noção de música popular aliada à idéia de
protesto e engajamento político, posição que viria a se acirrar depois do golpe de 1964.
Assim, no famoso “racha” ocorrido na Bossa Nova no início dos anos 60, dividida entre a
ala romântica, intimista, que cantava o amor, o sorriso e a flor, e a ala engajada, com
preocupações sociais e políticas, estão também presentes os interesses da indústria cultural e do
mercado, em que as posições ideológicas assumidas se davam também em função da lógica do
campo. Os músicos da chamada Canção de protesto queriam ser vistos como amadores, que
negavam o mercado. Esta atitude revelava uma busca por distinção e diferenciação em relação à
produção comercial, considerada alienada, que competia com o ieieiê, com os boleros que ainda
resistiam, com as versões italianas e com as baladas românticas. Uma negação do mercado, como
aponta Zan, a partir desse mesmo mercado, na busca por distinção.171
Havia, no entanto, um dilema dentro das formulações destes artistas, pois seu discurso e
teoria, que ressaltavam o engajamento, o compromisso político, o resgate das tradições regionais
nacionalistas, contrastavam com o alto grau de elaboração de suas composições, fato que acabava
vinculando-os à Bossa Nova. Parece que só em 1964, no show Opinião de Nara Leão, com a
participação de músicos do samba carioca do morro, bem como de um músico - João do Valle de tradição regional, é que este impasse começou a ser superado (embora ainda fosse motivo de
discórdia durante toda a fase dos festivais), com a aceitação de que uma proposta artística de
conteúdo transformador não precisava, necessariamente, estar desvinculada de sofisticação na
sua forma musical.
Neste show também convergiram riqueza musical, teatralidade e veemência performática
de palco em espetáculos de grande público. A substituição de Nara (por motivos de saúde) por
Maria Bethânia, com sua interpretação que se diferenciava do estilo contido da Bossa Nova,
lançou as bases das performances dos festivais televisivos que viriam a seguir, dentro da chamada
171
José Roberto ZAN, Do fundo de quintal a vanguarda.
125
“música de protesto”. Esta, como fator aglutinador do estilo musical popular que se instauraria
nos anos 60 constituindo o campo da MPB, tinha, por um lado, o legado da Bossa Nova e, por
outro, a função transformadora da canção.
É preciso lembrar que após o golpe militar de 1964, um outro dilema se colocava para a
canção política: a dúvida sobre o que se cantar, para quem e onde. A dupla situação do artista,
como criador cultural engajado e criador cultural para o mercado foi sendo administrada dentro
do pressuposto de que seu público era o “povo” e a juventude universitária (segmentos ainda
vistos como à margem do mercado). Desta forma, os shows universitários nos grandes teatros,
eram uma maneira de ampliar o público ainda reduzido da Bossa Nova. Realizados em São
Paulo172, após o sucesso do show Opinião, esses eventos reuniam um público estudantil e
apresentavam músicas que se queriam “samba autêntico”, mas que, na verdade, eram Bossa
Nova. Estes shows, no Teatro Paramount, se configuraram, conforme aponta Napolitano, como o
“elo perdido entre o círculo restrito da primeira Bossa Nova e a explosão da MPB nas
televisões”173, isto por conta da vibração do público e do modo como se concebia como a
afirmação da cultura nacional frente ao entreguismo aliado à ditadura militar.
Não se pode esquecer, também, do advento da TV no Brasil, na década de 50, momento
em que se instaurava o devir de uma sociedade imagética, visual. O potencial de público para a
música brasileira tributária da Bossa Nova, demonstrado por estes shows em São Paulo, foi
percebido pelos produtores e empresários da TV que fizeram desse veículo espaço para
elementos de encenação, gestualidades e performances mais expressivas já presentes nos eventos
ao vivo como nos shows de Elis Regina, por exemplo. Trazer essas perfomances para a televisão,
significava a possibilidade de ampliação de um público massivo que a música de protesto dos
shows universitários, ou do teatro musical (como Opinião, Liberdade, liberdade, Arena canta
Zumbi, entre outros). não conseguia alcançar.
A televisão, em processo de desenvolvimento e de estruturação, assimilava a música
popular, num momento em que sua programação necessitava de produtos novos. Os programas, a
princípio importados, e depois de música popular, firmaram-se nos anos 60, fazendo deste meio
de comunicação um de seus principais divulgadores. Foi na TV que se promoveu o evento
musicalmais significativo da década: os festivais. Em 1965, a TV Excelsior de São Paulo,
172
173
No Rio, a cena estava voltada para o “samba de morro”.
Marcos NAPOLITANO, Seguindo a canção.
126
organizou o I Festival de Música Popular, revelando talentos da Bossa Nova ou à nascente MPB,
para quem esses festivais foram palco de resistência e um local de afirmação de sua identidade
diante do ieieiê, que ocupava cada vez mais espaço no campo musical.174
Por conta do sucesso de Elis Regina no Paramount e no primeiro festival da Excelsior, foi
criado um programa semanal de música brasileira, O Fino da Bossa, apresentado por ela. Esse
programa não só ampliou o público de música popular, como aumentou sua faixa de consumo
para além da juventude, uma vez que era visto por toda família, o que acabou por permitir a
presença de outros artistas, de gêneros musicais e temporalidades diferentes e até contrastantes
com a imagem hegemônica da Bossa Nova
A partir da mediatização promovida pela TV, ocorreram modificações e re-arranjos dentro
da própria recepção da Bossa Nova, decorrendo em mudanças nas suas formas de audição e de
escuta, pois agora estava presente também o elemento visual. Ao contrário do que se possa
pensar, a escuta, nesse processo, não perdeu importância ou foi esquecida, ao contrário, ganhou
outros e multifacetados contornos. Com a instrumentalização da interpretação, a performance das
músicas se modificou, assumindo novas possibilidades estéticas, com vozes mais volumosas e
expansivas, coreografias e expressões faciais extrovertidas, o que abriu uma certa distância em
relação àquele padrão intimista dos primeiros tempos e introduziu
interpretativas
de
cunho
cênico,
visual,
corporal,
apontando
para
novas habilidades
uma
linguagem
multidimensional, “protoplasmática” da canção, como sugere Edgar Morin175.
Nesta análise da elaboração do campo176 musical, pode-se utilizar as formulações de
Bourdieu, no que se refere às lutas culturais, que informam sobre as estratégias de discursos, as
maneiras de atuar no campo, a acumulação do capital cultural, buscando compreender como a
história da MPB parece ser a história de uma luta por legitimidade, consagração e
reconhecimento, empreendida por um certo grupo, dentro da indústria e do mercado cultural177.
Retomando Gramsci, pode-se entender o processo de instauração da MPB nos anos 60,
por meio do conceito de hegemonia, em que a cultura popular e, neste caso, a música, deve ser
compreendida em uma relação de forças com a própria indústria fonográfica em fase de
174
Zuza Homem de MELLO. A era dos festivais – uma parábola.
Edgar MORIN. Não se conhece a canção. In: Linguagem da cultura de massas: televisão e canção, passim.
176
Pierre BOURDIEU, As regras da arte. .
177
No entanto, Bourdieu analisa o contexto europeu, no qual ocorreu uma autonomização do campo artístico erudito
em relação a outras esferas da sociedade, não se referindo à indústria cultural, com a qual entram em jogo questões
como sucesso, popularidade, lucro. Já no caso aqui analisado, a luta por legitimação não está separada das questões
da indústria e do mercado, mas, muito pelo contrário, estão intimamente ligadas.
175
127
estruturação e profunda articulação com o debate sobre o popular. Essa relação de forças e busca
de hegemonia, na formação da MPB, encontrava-se num espaço de luta entre um movimento de
autonomia por parte dos músicos populares, e um reordenamento da realização industrial e
comercial da canção, na efetivação de um mercado de bens simbólicos. Neste jogo dinâmico e
conflituoso, feitos de avanços, recuos, convergências e divergências, a idéia de que tenha havido
cooptação dos músicos pela indústria acaba se tornando obscura.
Desta maneira, na trajetória percorrida até aqui, de compreensão da própria Bossa Nova e
dos caminhos abertos por ela, busca-se atentar para a construção histórica de um produto cultural
complexo e híbrido, nas suas relações com as questões mais gerais pelas quais passava a
sociedade brasileira, e o Rio de Janeiro em particular, bem como a sua contribuição para a
constituição de um campo musical. É possível afirmar, assim, que este estilo musical expressa
aspectos relevantes das transformações que vivia a sociedade da época, no que tange,
principalmente, à midiatização. Um movimento musical que começou com um apelo
essencialmente sonoro, com uma forte ênfase nos detalhes técnicos da gravação, ajudando a
alavancar a indústria e o mercado fonográfico, com menor utilização radiofônica, e que foi
tomando, pouco a pouco, características de espetáculo, passando a ser fazer presente não mais
apenas nas mídias sonoras, mas também nas audiovisuais, apontando também para outras
direções que a (agora já) MPB tomaria.
Por outro lado, a Bossa Nova também expressa as transformações daquela sociedade não
apenas no que tange aos fenômenos midiáticos, mas também nas questões subjetivas, culturais –
o que, é claro, ocorria paralelamente ao, e imbricado nos, processos midiáticos. Desta maneira, se
a nova paisagem sonora parecia ser cada vez mais (já neste momento) entrecortada pelo ruído e
pelo polimorfismo com a inserção cada vez maior do rock e da música eletrônica, dela também
fazia parte, naquele seu primeiro momento, a sutileza, a delicadeza e o antibarulho sugeridos pela
Bossa Nova, propondo uma outra noção de tempo, menos apressado, agressivo, violento, ruidoso
no qual começava a viver a sociedade daquele período. A Bossa Nova pode ser considerada
como uma tentativa de pausa, de recolhimento no meio desse turbilhão que fazia os indivíduos
começarem a se perder, inseridos na modernidade. Nesse sentido, o impressionismo que a
caracteriza adquire um sentido especial como uma tentativa de sugerir mais do que dizer,
pincelando notas e acordes mais do que efetivando graves e agudos contundentes, num meio
urbano que estimula o anonimato, a perda em meio à multidão, onde a aceleração da história e os
128
choques cotidianos quase não permitem mais o encontro, a comunicabilidade, a possibilidade da
experiência.
Assim, feito este trajeto, e tendo apontado as questões fundamentais no que tange à Bossa
Nova, é hora de olhar, ou escutar, os seus ouvintes. Várias destas questões já levantadas sobre a
sociedade dos anos 50 e 60 são fundantes na compreensão da memória dos seus ouvintes,
constituindo cada parte dos capítulos seguintes como itens que dão pistas sobre a sociedade que
se vivia. Entendido o campo social em que esta audição se deu e seu contexto de recepção, é que
se pode, agora, compreender sua audição, sua recepção, na busca por reconstruir uma escuta
musical que ajudou a fundar um jeito de ouvir música, uma certa escuta do mundo. Uma
tentativa, assim, de captar o instante, o presente específico do ser, aquilo que ainda não foi
precipitado, mas está em solução, fluida, fugidia, fragmentária, não organizada e não fixa ou já
elaborada. Entre o que se sabe sobre as instituições, formações, tradições, e a maneira já
cristalizada e institucionalizada com que reverberam no meio social, é preciso captar o que está
em processo, em latência, as “estruturas de sentimento”178 de um grupo ou de uma geração;
formas materiais e concretas de se sentir e de re-organizar o que é dado mas que, no entanto, não
estão evidentes, claras, articuladas, necessitando de um olhar que as capture, enquanto estão
sendo elaboradas. Uma procura por uma escuta musical em solução, em andamento, que é
também uma escuta do mundo.
178
Raymond WILLIAMS, Estruturas de sentido. In: ____ Marxismo e Literatura. Op.cit..
129
PARTE II – Memórias de escutas
“O imperfeito é o tempo da fascinação: parece vivo e no entanto
não se mexe: presença imperfeita, morte imperfeita; nem
esquecimento nem ressurreição; simplesmente o cansativo engano da
memória. Desde o princípio as cenas tomam posição de lembrança,
ávidas de representar um papel: frequentemente
eu o sinto, eu o prevejo, no exato momento em que elas se formam. – Esse teatro
do tempo é exatamente o oposto da procura do tempo perdido;
porque me lembro pateticamente, pontualmente, e não
filosoficamente, discursivamente: me lembro
para ser infeliz/feliz – não para compreender. Não escrevo, não me fecho
para escrever o enorme romance do tempo do tempo reencontrado.”
Marcel Proust
A parte II da tese trata da recepção da Bossa Nova, sua escuta e seus ouvintes. Neste
segundo capítulo, serão discutidas teoricamente a memória e as premissas metodológicas
estabelecidas e utilizadas. Este é o momento de refletir sobre a recepção e sobre o modo como
está sendo abordada nesta pesquisa. Aqui também se contará um pouco das experiências
realizadas no trabalho com os depoimentos: o modo como foram feitos, as dificuldades, as
descobertas, os questionamentos e as inquietações surgidas durante todo o processo. Neste
momento, será tratada também a especificidade de ter a memória como fonte, num processo que
busca estabelecer um diálogo com autores clássicos em suas reflexões sobre a construção
memorialística, além de chamar para a discussão pesquisadores que realizaram trabalhos sobre o
tema. Ressalta-se a questão da oralidade, da memória oral e suas particularidades a partir das
formulações conceituais de Paul Zumthor e dos estudos que se valem das metodologias da
História Oral como fonte. Ainda considerando Zumthor, elabora-se a maneira como será
trabalhada a música e a escuta musical nos capítulos seguintes, buscando uma orientação que se
deixa atravessar por noções como performance, vocalidade, tradição e movência. Por fim, este é
um espaço de reflexão sobre o próprio processo de conhecimento, uma vez que trabalhar com
memória é também ofício de um pesquisador memorioso, no qual a distinção entre memória e
história e a estreita relação existente entre as duas, por vezes, leva a uma fusão ou a uma
separação e, às vezes, a um novo encontro, sendo o trabalho do historiador, também algo que se
utiliza da memória histórica, da tradição da qual se é herdeiro, mas em que se faz necessária uma
130
releitura deste passado à luz do presente. Parece ser esta a tarefa de um “narrador”1 que se deixa
envolver pela globalidade, força e poesia dada por Walter Benjamin a este conceito.
Cap. 2 A trama da memória
“Somente quando a alma e o espírito estão unidos num devaneio pelo devaneio
é que nos beneficiamos da união da imaginação e da memória. É nessa união
que podemos dizer que revivemos o nosso passado. Nosso ser passado imagina reviver.
(...) Quanto mais mergulhamos no passado, mais parece como indissolúvel
o misto memória-imaginação(...) No devaneio que imagina lembrando-se,
nosso passado redescobre a substância.”
A poética do devaneio, Gaston Bachelard
Memória: ato de lembrar, reter o que já passou. A reminiscência, o esquecimento. No ato
do memorioso, lembrar e esquecer, recuperar e apagar articulam-se num jogo dialógico fruto do
presente, um ato de reconstrução, restituição, restauração dos tempos pretéritos cuja base está no
momento atual, aquilo que se tem como importante, preponderante, no imaginário de hoje. A
memória reconstrói a própria relação entre passado e presente, o sentido que se dá à história.
Nesta complexa trama, presente está a memória que se analisa, interpreta: a dos
depoentes. Está também a memória do próprio pesquisador, daquele que se debruça sobre um
passado, uma terra estrangeira, a fim de recuperá-la em fiapos, cacos, fragmentos. A tradição, a
memória histórica, o horizonte de compreensão ao qual o pesquisador pertence e é herdeiro, é
fundante na compreensão das memórias que analisa e do passado em geral. Neste sentido, ao
estudar a Bossa Nova e sua escuta nos anos 50 e 60, é impossível livrar-se das próprias
considerações, memórias e da tradição cultural e histórica que se tem sobre este movimento
musical e sua época. Desvinculando-se de uma ilusão positivista de total e absoluta neutralidade,
isenção, objetividade na análise dos tempos pretéritos, assume-se que não há nenhum demérito
em incorporar estas questões na narrativa histórica, ressaltando o fato de o pesquisador estar
inserido no seu tempo, no fluxo insondável dos fatos que o rodeiam, no seu meio social,
carregado da visão de seu próprio momento.
Aqui, aborda-se as narrativas. Narrativas historiográficas do pesquisador no presente, que,
valendo-se de outras narrativas já realizadas sobre este momento histórico na elaboração de sua
1
Walter BENJAMIN, O Narrador. In: Obras escolhidas Vol.1.
131
própria interpretação do passado. Narrativa também de homens e mulheres que viveram este
passado e que, ao contarem suas experiências, constróem sua memória, tramando também novas
narrativas. Esta tese lida com estas várias camadas de sentido – interpostas, sobrepostas –
narradas.
A
interpretação
do
passado
requer
uma
inserção
do
pesquisador
em
sua
contemporaneidade, em que, entabulando com o passado um diálogo entre seus conceitos
presentes e os conceitos imbuídos nas suas fontes, pode-se chegar à compreensão de fragmentos
deste vivido. O diálogo estabelecido nesta pesquisa é entre uma pesquisadora no presente,
ouvinte de Bossa Nova, intérprete de seus sentidos, e os ouvintes de Bossa Nova na
temporalidade delimitada (anos 50 e 60). Nesta “fusão dos horizontes de compreensão que se
desloca sempre”2, é que parece ser possível interpretar as escutas da Bossa Nova daquele período,
uma vez que não são visíveis e não estão evidentes, são rastros do passado encobertos pela
história oficial que urgem ser resgatados.
Uma história oficial que, embora se possa argumentar que não é única, ainda assim é
hegemônica e tem força. Note-se aqui, a utilização do termo hegemonia, conceito que comporta a
idéia de relação, num jogo de forças em que nada é definitivo e no qual as posições encontram-se
em permanente dinâmica e interpretações e outras estão a todo momento aparecendo e disputando
espaço. Mas, como disse Walter Benjamin, “se o inimigo vencer, nem mesmo os mortos estarão a
salvo dele”, isto é, as imagens da história “apagadas” pela história oficial ou por um sentido
unívoco da Bossa Nova, só aparecerão se seus “cacos” dispersos, suas vozes não ditas, suas
ruínas puderem ser resgatadas, num jogo em que não se pode reconhecer a experiência passada
como esta foi efetivamente, mas pode-se captar constelações de imagens momentâneas, suas
fissuras, pode-se, enfim, captar “uma lembrança como ela fulgura num instante de perigo”3, ou
no momento em que é reconhecida com outras interpretações que burlam a hegemonia da visão
preponderante do passado.
A relação entre presente e passado é dialógica, possui a “aura” de um encontro, no qual
um resgate do passado só adquire sentido na medida em que possa ser restaurado no presente,
havendo uma recognoscibilidade entre ambos. Este encontro pressupõe a idéia de um tempo que
explode com o continum da História (diferente da idéia de série encadeada de fatos da história
2
Maria Odila Leite DIAS, Hermenêutica do quotidiano na historiografia contemporânea. Projeto História Trabalhos da memória, n.17.
3
Walter BENJAMIN, Sobre o conceito da História. In: Obras escolhidas Vol.1.
132
oficial), contendo ruptura e descontinuidade. Assim, num salto, momento desse encontro, os
“sofrimentos do presente podem criar ouvidos para que se ouçam gemidos sufocados no
passado.”4
Desta maneira, ressalta-se a figura do historiador indo ao encontro deste passado em
ruínas, como a figura de um narrador restaurando e atualizando os tempos pretéritos no presente.
Neste narrar, lida-se com um tempo outro, diferente de nossa contemporaneidade. Parece ser
nesta relação dialógica – que permite múltiplas mediações – entre o “eu” de pesquisador presente
e o “outro” dos tempos passados (objetos de estudo) que a narrativa aflora, onde é mister
interpretar o outro numa perspectiva relativista confrontando nossos conceitos presentes com os
do passado. Mais do que lidar com o tempo propriamente delimitado sobre o qual se debruça, a
narrativa do historiador traz também a marca de outras narrativas já realizadas, que chegam por
meio da historiografia escrita ou da tradição oral, as quais vão ajudar a formar a narrativa atual
contendo esta marca própria de quem narra.
Assim como Mnemosyne – a deusa grega da reminiscência - era também a deusa
representante da poesia épica, pode-se argumentar que o ofício do historiador-narrador está
ligado ao exercício de uma narrativa, de uma poética, em sua maneira de conhecer o mundo, de
um modo aberto, capaz de suscitar outras e sempre novas leituras, sem espaços e considerações
fixas, fechadas e explicativas. Uma poética presente na base, na origem da própria História com
seu “pai-fundador”, Heródoto, produtor de uma textualidade em que as fronteiras entre história,
memória, narrativa, poesia épica pareciam tênues ou até inexistentes. Quando surge a vontade de
explicar o passado, baseando-se em fontes confiáveis, empiricamente verificáveis, separa-se a
História da memória, bem como da narrativa e da poética5.
Porém, o ideal de memória infinita é contestado pela inorexabilidade e necessidade do
esquecimento – indispensável para se poder lembrar –, uma vez que a memória comporta sempre
a seleção. Neste jogo entre lembrar e esquecer, tece-se a narrativa historiográfica, em que
elementos são destacados mais que outros, incorporados, retirados, iluminados, apagados,
imaginados. Esta relação entre memória e História vai ganhando contornos e delineando uma
diferenciação.
4
5
Flávio KHOTE, Poesia e proletariado: ruínas e rumos da História. In: _____(Org.). Walter Benjamin, p. 17.
Jeanne Marie GAGNEBIN, O início da história e as lágrimas de Tucídides.
133
De acordo com Julio Pimentel Pinto, a história começa quando “a obsessão apaixonada da
memória é posta em suspenso e o passado é percebido pelo filtro da razão”6 do presente. Há que
se elaborar uma linguagem que, discursando sobre os tempos pretéritos, articule as muitas
temporalidades que dão corpo à memória, compondo assim uma “poética da memória” por meio
do estudo crítico do presente. A importância de refletir sobre esta questão reside no fato de que
tanto a história como a memória trabalham com o passado, possuindo fronteiras movediças, mas
ainda assim diferenciadas. Segundo Márcia D’Alessio7, os estudos da memória acabaram por
trazer modificações na própria historiografia, fazendo com que o conhecimento histórico e seu
discurso acabassem por incorporar uma preocupação não apenas com o vivido, mas com o
próprio conhecimento histórico, dessacralizando não só o vivido, mas seu próprio discurso visto
como tradição. Assim, é imperioso perceber que tanto quanto o discurso, a escrita também é
permeada pela memória, memória histórica da qual se herdeiro.
Pierre Nora afirma que história e memória se relacionam mas também divergem. Esta
última é a experiência vivida, carregada pelos grupos vivos, em permanente evolução, aberta à
dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, visando
a sentidos coerentes, lineares e unívocos. Já a história, é sempre desconstrução, uma operação
intelectual e laicizante exigindo análise e discurso crítico, apontando para as diferenças, as
tensões e os interditos8.
No entanto, isso não significa operar o conhecimento sobre o passado numa noção de
“memória como sagrada e de história como profana” 9. O que se busca é fugir dos padrões
estigmatizados da História oficial, compondo um trabalho historiográfico que se afaste dos
esquemas objetivistas e racionalizantes que estabelecem a distinção entre memória e história em
termos absolutos, enfatizando, ao contrário, a relação móvel, dinâmica entre elas. Isto reitera a
idéia do fazer historiográfico como um trabalho artesanal de atualização sempre renovada de uma
tradição, numa trama em que se tecem momentos diferenciados, temporalidades diversas,
lembranças e esquecimentos, continuidades e descontinuidades, objetividades e subjetividades.
6
Julio P. PINTO, Os muitos tempos da memória. Projeto História - Trabalhos da memória. n.17.
Cf: Marcia D’ALESSIO, Memória: leituras de Maurice Halbwachs e Pierre Nora. Revista Brasileira de História
História – Memória, História, Historiografia. v.13, n.. 25/26. E também Marcia D’ALESSIO, Intervenções da
memória na historiografia. Trabalhos da memória - Revista Projeto História, n.17.
8
Pierre NORA, Entre memória e história. Op. cit.
9
Marina MALUF, Ruídos da memória, 1995.
7
134
Rio de Janeiro, início do século XXI, assistimos aos noticiários impressos e eletrônicos
povoados de matérias dando conta de uma cidade violenta, perigosa, ruidosa, ameaçadora,
desordenada, caótica, distante dos ideais de anos dourados tão hegemonicamente construídos no
nosso imaginário sobre o Rio: aquela cidade tranquila, bela, praiana, embalada por um ritmo
cheio de bossa e por uma atmosfera de otimismo e felicidade própria aos anos 50. Em meio a
tudo isso, assistimos a um filme, Bossa nova, de Bruno Barreto que, com uma trilha sonora
essencialmente bossanovista, conta belas e divertidas histórias de amor, dominadas pelo acaso,
vividas num Rio de Janeiro atual. Encontros e desencontros de personagens em meio aos cartões–
postais da cidade como o Corcovado e o Cristo Redentor, as praias, o Pão de Açúcar, o Hotel
Copacabana Palace, o Morro Dois Irmãos, a Lagoa. Tudo numa atmosfera em que se sobressai o
lado tranquilo, sem conflitos e leve, transportando para a atualidade a beleza de um tempo a ser
guardado, recuperado, restituído e eternizado. O que se tem ali é um Rio de Janeiro e – por que
não? – um Brasil feito para ser visto no exterior, para ser elaborado, edificado e talvez fixado fora
daqui como um símbolo de suas belezas naturais, onde seus habitantes simpáticos e cordiais e a
sua bela música encantam os estrangeiros do filme.
Não são poucos os trabalhos (inclua-se aqui filmes, livros, etc.) que valorizam esta idéia,
esta construção da cidade como lugar belo, tranquilo, rememorando os anos 50, como se vê
abaixo.
“Tudo isto - violência sexual, gangues juvenis, drogas – é apenas um mergulho nos porões de uma cidade
que ainda não existia de fato. Todo esse mal que se escondia nos corações humanos se parecia mais com a
cara dos dias de hoje do que com a multidão sorridente que, paralelamente, transformava as matinês de
Tom e Jerry, no Metro Passeio, em um acontecimento de alegria espetacular.(...) nos dias 31 de dezembro
de 1950, haviam sido registrados apenas quatro assaltos. (...) [Em 1958] reproduz-se estatísticas de pouco
mais de um assalto a cada hora em toda a cidade. (...) com a perspectiva do tempo, os números parecem o
10
livro de ocorrências de uma delegacia no Céu. Mesmo na zona norte a violência ainda era folclórica.”
Mesmo não se constituindo e se assumindo como um texto historiográfico, temos neste
trabalho acima citado a tentativa de explicar e analisar os fatos e a história daquele momento, tido
como “dourado”. O fato de dizer que os crimes e os fatos ligados à “juventude transviada” não
eram senão coisas do “porão” da cidade, parece revelar uma tentativa de perpetrar uma imagem
de cidade e de tempos ideais, em que estes elementos do “porão”, “de uma cidade que ainda não
existia”, seriam apenas coisas que não se encaixavam no lado ou no substrato da memória
10
Joaquim Ferreira dos. SANTOS, Feliz 1958: o ano que não deveria terminar, p.143.
135
escolhido pelo autor sobre a época, que seria uma “vida sorridente nos cinemas”. No intuito de
desconstruir as camadas de sentido atribuídos aos tempos passados (e no caso desta pesquisa, os
anos 50 e 60), é importante deter o olhar sobre este trecho do livro de Joaquim Ferreira dos
Santos, como um exemplo de que muitas vezes a memória histórica hegemônica sobre um
período pode encobrir as tensões presentes nas experiências do cotidiano.
Como afirmou Edgar de Decca, “os fios da memória histórica são muitas vezes quase
invisíveis, uma vez que é próprio dessa memória apagar os rastros de sua própria constituição”11.
Desse modo, na busca de uma história que não apenas reafirme os mitos e dogmas da memória
histórica sobre um período, procura-se, aqui, desconstruir as interpretações do passado enredadas
na “teia do fato”12, levando em conta uma crítica elaborada a partir do presente, e por isso mesmo
constituída de fragmentos. É necessário um diálogo crítico quanto às visões hegemônicas do
passado, construídas no tempo, considerando estes mesmos marcos históricos dados, legitimados,
mas fazendo uso destes para torná-los objetos críticos de reflexão histórica.
Outras vozes surgem, porém. Ao nos depararmos com depoimentos, histórias de vida,
memórias, atribuições de sentido dos também habitantes da zona sul emergidos em outro filme,
Edifício Master, de Eduardo Coutinho, impossível não associá-los aos objetivos deste trabalho.
Pessoas comuns, com histórias de vida, à primeira vista, também comuns, trazendo à tona o viver
nas grandes cidades, a experiência contemporânea da solidão da metrópole, dos fluxos contínuos
e descontínuos da experiência urbana, da multidão, convivendo naquele mesmo espaço urbano
carioca – Copacabana – tão edificado em nossa memória. Podemos até argumentar que este
último filme deixa transparecer toda esta complexa trama cotidiana por se tratar de um
documentário, o que não é aqui refutado, uma vez que já há algum tempo se questiona os limites
e separações existentes entre ficção e realidade numa obra artística. Assim, sem jamais buscar
uma hierarquia de valores entre as obras fílmicas citadas (como se uma fosse a verdade e a outra
não, ou algo que o valha), o que se quer aqui destacar são os olhares, as percepções e as inserções
no presente diferenciadas, delimitando o que se quer registrar de uma cidade, de um tempo e de
um imaginário.
A questão poderia ser resumida, então, da seguinte forma: como desenvolver uma leitura
de um passado do qual se é herdeiro, como chegar a uma outra compreensão de uma tradição à
11
Edgar de DECCA, 1930, o silêncio dos vencidos: memória, história e revolução, p.18.
Carlos Alberto VESENTINI, A teia do fato: uma proposta de estudo sobre a memória histórica. São Paulo, 1982.
Tese (Doutorado em História) FFLCH - USP.
12
136
qual se pertence? Não se trata de negar ou lançar mão do passado e das interpretações feitas sobre
ele, afinal, isto constitui a tradição herdada e transmitida. Faz-se necessário um confronto com
esta tradição histórica como uma espécie de desafio crítico lançado por ela mesma. Neste
processo de confronto entre nós e nosso passado, é permitida a entrada de outras visões, que vêm
à luz pela mediação do antigo, através da interpretação13. Compreensões diferenciadas que
podem ser perseguidas ao se interpretar os tempos idos à luz da história e do presente numa
tentativa de revê-los, traduzindo a tradição utilizada para a sua compreensão em algo revelador
das diferenças e de outras leituras possíveis.
No estudo deste estilo musical, a fala de um dos seus autores tornou-se representativa,
estando autorizada a partir de uma experiência tida como legítima, por ter se dado dentro da
própria Bossa Nova. O fato de Ronaldo Bôscoli14 ser chamado a narrar suas memórias numa
tentativa de também contar a história do movimento colabora com esta visão de autoria como a
leitura oficial. Pensando-se na Bossa Nova como “monumento”15, algo cristalizado, idealizado,
marco histórico ligado a um Rio de Janeiro dos “anos dourados”, não se pode deixar de refletir
sobre a figura de Bôscoli, como um de seus integrantes que também acabou por se constituir na
memória histórica como um símbolo do movimento, seu ícone, o “senhor Bossa Nova”16. Nesse
sentido, em seu relato é possível perceber uma tentativa de resguardar este movimento, fixando-o
num “lugar da memória” 17.
“A Bossa Nova é, hoje, parte da história da cultura brasileira. Mas não só isso - uma memória. Vejo que
ela continua viva, numa dimensão planetária, pois é uma das expressões mais poderosas da música popular
brasileira. Concluo que a Bossa Nova precisa ter seu espaço natural, adequado à vitalidade de sua música
e sua poesia. (...) Eu tenho um sonho ... Quero ver esse sonho realizado. Quero um lugar, um espaço, uma
casa, em que a Bossa Nova possa ser apreciada, estudada, debatida, guardada, revitalizada. (...) [que
18
chama de] Casa da Bossa.” (grifos meus)
Bôscoli tanto afirma a pujança da Bossa Nova e seu valor como momento mais
importante da música brasileira, quanto demonstra uma certa preocupação com o seu
esquecimento, com um possível apagar de sua memória. Ele reconhece nos tempos atuais a
13
Hans-Georg GADAMER, O problema da consciência histórica.
Bôscoli foi jornalista, cronista, letrista, boêmio, produtor musical, homem ligado ao showbusiness e, acima de
tudo, um dos grandes divulgadores do movimento.
15
Jacques LE GOFF, Documento/Monumento. In: Enciclopédia Einaudi - Vol. 1. Memória-História. Lisboa:
Imprensa Nacional, s.d.
16
Este é o título de um livro escrito por um amigo próximo a ele, a partir das memórias que guarda do chamado
“Senhor Bossa Nova”.
17
Pierre NORA, Entre memória e história, Projeto História, n.10.
18
Ronaldo BÔSCOLI, Eles e eu: memórias de Ronaldo Bôscoli, p. 283-5.
14
137
necessidade de criação deste “lugar da memória”, num tempo em que a aceleração da história
parece não permitir mais o tempo de lembrar. A rapidez e o processo de globalização (ou
mundialização, ou pós-modernidade – assuma-se a designação e o arsenal teórico decorrente que
se quiser adotar), características da atualidade, impelem a viver em um mundo que parece se
tornar um só, comprimido temporal e espacialmente; onde o efêmero e o incessantemente novo
imperam, a duração de um fato histórico tem a mesma duração de uma notícia e a história tornase eternamente contemporânea. É esta a “aceleração da história” sugerida por Nora19, em que o
tempo de lembrar se dilui, o passado se perde em favor do presente, ameaçando os referenciais,
seus traços e seus vestígios. Assim, imperiosa é a busca pelo passado, por meio da memória.
Não por acaso, o final do século XIX e início do XX, foi o momento em que vários
autores, na filosofia, literatura, sociologia, voltaram-se para essa questão. Um momento em que a
industrialização e outras características da modernidade pareciam evidenciar uma aceleração dos
tempos, uma sensação de iminente perda ou atrofia da “experiência”, no sentido posto por
Benjamin20, como sendo matéria da tradição, da inscrição das narrativas e dos fatos na própria
experiência individual, no compartilhar, enfim, em que conseguimos apenas “meras vivências”.
Benjamin e também Zumthor21 apontam para a época anterior à modernidade, como sendo
um tempo em que narrativa poética e memória caminhavam juntas, tratando da mesma matéria: a
tradição. A narrativa acontecia espontaneamente, a memória não era perseguida pela atenção,
esforço e racionalidade, como na modernidade, pois a experiência, integrada à tradição e à
memória, afloravam naturalmente. No turbilhão da modernidade, a busca pela memória torna-se
indispensável – como uma tentativa de reconstrução da própria experiência – encontrar a figura
do narrador, aquele que ao contar experiências as integra em sua própria vida, imprimindo sua
marca, sem isenção ou exatidão, mas atualizando a tradição na modernidade, operando a sua
restauração, valendo-se de sua memória.
Maurice Halbwachs22 já no início do século XX escrevia sobre a importância da memória
em resguardar traços do passado como forma de se contrapor aos efeitos desintegradores da
rapidez contemporânea. Segundo ele, é o grupo que a sustenta, ela é social, coletiva, e acaba
19
Pierre NORA, O retorno do fato. In: Jacques LE GOFF e Pierre NORA (Orgs.), História: novos problemas, São.
A este respeito, conferir: O Narrador, Experiência e pobreza, A imagem de Proust. In: Obras escolhidas Vol.1. São
Paulo: Brasiliense, 1985. E também: Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Obras escolhidas Vol.3. São Paulo:
Brasiliense, 1989.
21
Paul ZUMTHOR, A letra e a voz: a “literatura” medieval.
22
Maurice HALBWACHS, A memória coletiva.
20
138
quando não tem mais o grupo como suporte, seja ele físico ou afetivo. O importante é a pertença,
o fato de a memória social ser vivida. O esquecimento ocorre quando não há mais o grupo, nem
fisicamente nem como pertencimento afetivo e o tempo da memória, conforme observa
Halbwachs, é o tempo longo contínuo, sem rupturas ou descontinuidades, aquele conservado no
presente.
Podemos considerar a reflexão de Halbwachs fortemente influenciada pelo positivismo de
Emile Durkheim, sobrepondo o grupo ao indivíduo e, mais ainda, considerando a memória
sempre como uma imagem viva, como um ato consciente. Embora aponte para o aspecto do
imaginário, das lembranças que não são reais – e ressalte que no trabalho com a memória
dificilmente obtém-se verdades absolutas e sim interpretações parciais, – o autor declara que a
imagem, quando concebida de maneira consciente, assume a identidade de coisa viva,
transforma-se em lembrança, deixando de ser nebulosa, fragmentária, involuntária ou
inconsciente. Tomar consciência das lembranças, significa estar vinculado a um grupo (enquanto
consciência). Assumindo uma lembrança como própria, o indivíduo se fixa afetivamente a um
coletivo cuja identidade é de suma importância. Segundo Michael Pollak23, memória e identidade
caminham juntas, são construídas mutuamente, estando em constante transformação,
deslocamentos e adaptações. Este autor já concebe a idéia da existência de processos
inconscientes e involuntários na memória. Mas as primeiras pistas dadas em direção ao trabalho
com o imaginário na memória, foram elaboradas por Henri Bergson, ainda no século XIX.
Em comum com Halbwachs, Bergson desenvolve a idéia do passado como conservação
no presente. Sua obra se localiza no interior de um debate da metafísica e da psicologia,
ressaltando as subjetividades, o espírito, os aspectos pessoais, individuais. Bergson não trabalha
com memórias de sujeitos específicos e como elas se dão, a partir de suas imbricações com o
mundo social, como Halbwachs. Ele reflete sobre a memória em si mesma, seu processo como
fenômeno do espírito humano, partindo da idéia de que as imagens da lembrança, do tempo
contínuo, estão intimamente ligadas à corporeidade, ou seja, à percepção que o indivíduo têm do
seu mundo físico e de sua consequente ação sobre o mesmo. Daí é que Bergson observa dois
tipos de cadeias percorridas por estes estímulos corporais no momento da lembrança. A primeira,
mais motora, articula imagem-cérebro-ação, relaciona imagens exteriores, corpo e as
modificações deste sobre as imagens. Aqui, é como se as sensações levadas ao cérebro fossem
23
Michael POLLAK, Memória e identidade social. Estudos Históricos, n.10, p. 200-212.
139
sempre restituídas aos nervos e músculos, gerando movimentos e ações, num caminho de ida e
volta. Quando este percurso de ida e volta não se cumpre, quando há um caminho só de ida dos
estímulos ao cérebro, sem que haja a volta destes às partes periféricas do corpo, parando no
cérebro, constitui-se a segunda cadeia, imagem-cérebro-representação, que já não é mais motora
e sim um esquema perceptivo24. Esta idéia de percepção é fundamental para se pensar a memória
pois, neste vazio deixado pelo caminho de ida e volta interrompido, abre-se o espaço para o
imaginário, os signos da consciência. Porém, há que se lembrar sempre: ação e representação
caminham juntas, têm em comum um ambiente, um mundo físico presente, gerador dos seus
impulsos, em que o esquema corporal é o responsável pela captação de imagens.
Necessário frisar que a percepção aludida por Bergson não deve ser confundida com a
memória. Se a “percepção pura” depende do meio físico atual, é um ato presente, então há outras
formas de percepção passadas, ligadas a outros estágios de psiquismo, outras experiências, outras
imagens captadas. Ele opõe a percepção pura, ligada à matéria, às idéias, nascida no interior de
um presente corpóreo contínuo ao fenômeno da lembrança, que é a memória. Esta oposição está
presente no título de seu livro, Matéria e memória.
Mas como a memória surge? Bergson argumenta que o esquema perceptivo não é mero
resultado de uma interação de um mundo físico com o sistema nervoso, estando presente também
a lembrança, impregnando as representações. Na sua explicação, ele traz à luz um outro conceito,
o de “conservação”, apontando para a nossa capacidade de guardar toda a vida psicológica já
decorrida, em que este passado se combina com a percepção do momento atual, misturando-se
com percepções reais do presente e com imagens já sentidas e evocadas. Assim, a memória
interfere em todo o processo subjetivo humano, fazendo a ponte entre o corpo presente e o
passado, alterando o processo atual de representações. Desta maneira, Bergson opõe memória e
percepção, mas argumenta que são inseparáveis, caminham juntas, sendo impossível a percepção
pura, uma vez que no momento em que esta ocorre, está também baseada em estados psíquicos
conservados em nós.
A partir da consideração de um passado conservado e atuante no presente, Bergson faz
uma análise interna desse processo, ressaltando que a memória não é homogênea e se divide em
dois tipos básicos: “memória-hábito”, a dos mecanismos motores, em que o corpo guarda
esquemas de comportamentos dos quais se vale muitas vezes automaticamente. Está ligada ao
24
Henri BERGSON, Matéria e memória.
140
nosso processo de adestramento cultural, requerendo a atenção para a repetição de gestos e
palavras; é o saber comer conforme regras sociais, dirigir, falar um idioma, etc. De outro lado,
temos a “memória-sonho”: as lembranças independentes de quaisquer hábitos, as lembranças
isoladas, singulares configuradas como “ressurreições do passado”, como lembra Ecléa Bosi25.
Seria o devaneio, no qual surgem as evocações espontâneas de imagens, revelando momentos
únicos, não-repetidos, irreversíveis. Bergson se ocupava em entender as relações entre a
conservação do passado e sua articulação com o presente, a confluência entre memória e
percepção, entre memória-hábito e memória-sonho, pois o indivíduo equilibrado integra os dois
tipos de memória. No entanto, valoriza o estudo da memória-sonho como pertencente ao reino
privilegiado do espírito livre, da “indeterminação”, chamando-a de “memória-pura”. É esta
memória que retém e alinha todos os nossos estados, dando a cada fato o seu lugar.
Neste sentido, fica uma questão: em que medida os conceitos bergsonianos podem nos
auxiliar na compreensão da memória e no seu tratamento metodológico. Silvia Borelli26 traz mais
elementos para este debate, ao se referir ao conceito bergsoniano de “intuição”, fundamental para
a metafísica e o “método intuitivo” do filósofo. Desenvolve assim, uma reflexão acerca das idéias
de Bergson, com importantes considerações sobre o uso da memória como fonte, comparando,
por exemplo, esta noção de “memória pura” com a idéia benjaminiana de ir ao encontro de um
passado em cacos e restituí-lo no presente, numa espécie de salvação. O conceito de “intuição” é
construído pelas categorias do “eu superficial” e do “eu profundo”. O primeiro se refere às
atividades intelectuais voltadas para o que é útil e cômodo, geradoras do hábito e em que a
apreensão do real se faz pela relação entre diferentes objetos, e não por aquilo que cada objeto
tem de essencial. Já o segundo diz respeito a uma apreensão do real que é dada por uma relação
de intimidade com o objeto, em que sujeito e objeto estabelecem uma relação sem mediações,
denominada por Bergson de intuição.
Neste método intuitivo, ressalta Borelli, fulguraria uma análise da memória e do passado
baseada em representações móveis, fluidas, fugidias, exigindo a interpretação (que se vale da
intuição), sem interesses utilitários, mas buscando compreender tudo o que é dinâmico e criativo
apontando para o devir, retendo do passado aquilo que já não é e antecipando o que ainda não é.
25
Ecléa BOSI, Memória-sonho e memória-trabalho. In: _____ Memória e sociedade : lembranças de velhos.
Silvia Helena Simões BORELLI, Memória e temporalidade: diálogos entre Walter Benjamin e Henri Bergson,
Margem, n.1.
26
141
Na elaboração de uma metodologia no trabalho com a memória, o esquecimento surge
como algo que a integra, tanto quanto a lembrança. Como nos sugere Pollak27, esquecer é a
ruptura, a lacuna, o vazio que pode ser uma defesa, uma vontade, mas que de suas
incongruências, pode gerar coisas novas, novas interpretações, possibilidades de releitura.
Benjamin28 argumenta que é importante olhar para o trabalho de rememoração e do
esquecimento, compreender como uma tradição foi construída ao longo do tempo, como as
camadas de sentido sobre o passado e as compreensões sobre ele acumulam-se como num
palimpsesto, ajudando a conformar a nossa visão presente sobre este passado. Nestas camadas,
estão presentes os esquecimentos, os ocos, os vazios requerendo um olhar apurado de um
“historiador materialista” que, ciente de que o momento presente – a modernidade – só possibilita
meras vivências e não mais experiências, vai ao passado na tentativa de salvá-lo, de recuperar
esta experiência perdida; um passado em ruínas, em cacos, exigindo seu esforço interpretativo.
Neste contexto, deparamo-nos com as formulações de Marcel Proust, autor que mantinha
intenso contato com a obra de Bergson, e que teve sua obra devidamente trabalhada por
Benjamin. Em Proust29, tem-se a narrativa como espaço privilegiado de análise – o seu tecer, sua
lógica interna em que aparecem três vidas articuladas: a vida vivida, a vida lembrada e a vida
narrada. Esta narrativa que articula tudo é o cerne da sua obra Em Busca do Tempo Perdido, cuja
base é a memória. Esta última é dupla, faz-se num jogo, é voluntária e involuntária, ação e
experiência, respectivamente, e remete às várias experiências da memória, a epopéia do lembrar
que se faz e refaz no presente. Uma narrativa construída no encontro entre temporalidades, na
textualização. A memória voluntária é aquela buscada conscientemente por motivações do
presente, o qual, estando empobrecido, necessita dos tempos pretéritos para obter respostas num
passado que nunca aparece em si mesmo, mas é sequenciado e linear. Este passado é recriado,
resgatado para dar outras definições e contornos ao presente, construído para ser a determinação
do presente que se deseja, sendo portanto uma busca causal, utilitária. No personagem de Proust,
há uma busca angustiada pela rememoração, dando a entender que este passado se perdeu, não
faz ecos e nem se conserva no presente.
27
Michael POLLAK, Memória, esquecimento, silêncio, Estudos Históricos, n.3, p. 3-15.
Cf. Walter BENJAMIN, A imagem de Proust; Experiência e pobreza; O narrador ; Sobre o conceito da História.
In: _____ Obras escolhidas.
29
Marcel PROUST, O tempo redescoberto.
28
142
Já a memória involuntária é fruto do imponderável, um passado que surge fragmentado,
descontínuo, em flashs, instantâneo, onde muitas vezes não se sabe onde ele se articula, a que se
vincula, onde se situa, sendo a incerteza seu indício maior, advindo de uma memória afetiva,
sonora, onde sabores, cheiros, sons, sensações táteis têm papel preponderante no processo. A
partir desta memória involuntária retoma-se a origem, em que os eventos surgem sem serem
solicitados, frutos do acaso, do aleatório, mas que contêm a “memória pura”, o tempo perdido,
redescoberto que aparece em lampejos, destituído de totalidade. No jogo de reflexos distorcidos
nesse espelho da memória, cabe ao historiador a capacidade de lidar com estas diversas
temporalidades, diversas imagens refletidas, organizando relatos e experiências, organizando o
tempo. Este é o ofício do narrador.
No entanto, não se deve encarar a memória voluntária e involuntária como separadas; ao
contrário elas estão articuladas. No rememorar involuntário aparecem cacos do passado que dão
conta da experiência na sua origem, mas para que isso ocorra é preciso o esforço consciente do
presente, a memória voluntária ajudando a atribuir sentidos a este tempo redescoberto. Os
fragmentos contidos no passado de quem recorda, encontram-se encravados, engastados na
memória coletiva, necessitando, dessa forma, de articulação.
Assim, feito este preâmbulo, é que se pode tratar mais propriamente do conjunto de fontes
mais importante desta pesquisa, que são as memórias dos ouvintes, a construção memorialística
oral de mulheres e homens que ouviam Bossa Nova nos anos 50 e 60.
Estes depoentes foram selecionados e analisados com os seguintes critérios: a pesquisa
está centrada na cidade do Rio e Janeiro, tendo sido selecionados moradores da cidade (na época
em estudo) que não necessariamente precisariam viver nela até hoje, nem tampouco terem
nascido lá, embora isto seja levado em conta para a interpretação dos depoimentos. Parece
relevante analisar a memória sobre a cidade do Rio e a construção no presente que se faz dela em
relação à Bossa Nova por quem ainda a habita e quem a deixou, por diferentes motivos, por quem
lá cresceu, por quem só chegou na juventude, etc.
A pesquisa envolveu 16 pessoas, resgatando tanto mulheres quanto homens. Esses
indivíduos eram jovens (por volta de 20 anos) no período de existência da Bossa Nova como
movimento assim reconhecido socialmente (1958 a 1964). Assume-se assim, que a categoria
juventude é fundante na reflexão, como já exposto. A maioria pertence às camadas médias da
sociedade, vários deles moram na zona sul do Rio de Janeiro, sendo que alguns sempre ali
143
viveram e outros vieram de outras partes da cidade já na juventude. Outros moram na zona norte
e central. E outros, ainda, moram em outras cidades, tendo deixado o Rio na década de 70.
Importante destacar que, na tentativa de compreender a recepção da Bossa Nova também
nos anos 60 – momento em que se tinha muito a mediação da TV para divulgação da música
popular, com vários movimentos musicais eclodindo, como as músicas dos festivais, a Jovem
Guarda, o Tropicalismo –, foram selecionadas pessoas dez anos mais jovens do que os
anteriormente citados, ou seja, os que têm por volta de 50 anos atualmente (e tinham por volta de
20 no final da década de 60). Essa decisão permitiu uma comparação entre o meio musical e
cultural do final dos anos 50 e início dos 60 e o final da década de 60, quando a indústria de bens
simbólicos e o campo musical popular já se instauravam concretamente no Brasil.
Outra questão relevante, é que foram escolhidos os ouvintes comuns da Bossa Nova, os
não especializados, ou conhecedores de música, ou necessariamente apreciadores do estilo.
Enfim, não se buscou a crítica especializada da Bossa Nova, mas os sujeitos comuns. Foram
selecionados homens e mulheres independentemente do gosto musical que têm ou tiveram em
relação à Bossa Nova, bem como depoentes que habitam a zona sul (local onde nasceu o estilo e
que é mais identificado com as camadas médias e altas) como também moradores de outros locais
da cidade. Mais ainda, se buscou uma certa variedade de históricos de vida como os que
trabalham ainda hoje, os que não trabalham, pessoas com profissões variadas, etc.
A forma de pesquisa no momento da entrevista foi a de “história de vida”, ou memória
livre, sem um questionário previamente produzido e sem uma sequência ordenada de assuntos a
serem tratados. A conversa girou muito mais em torno da compreensão de memórias de
juventude na cidade do Rio de Janeiro, de narrativas sobre cotidianos permeados de questões,
normas, mas também táticas e subversões, do que em torno de opiniões cristalizadas ou técnicas
sobre a Bossa Nova. Nesse sentido, é que se tornou necessária uma interpretação profunda destas
memórias, pois o objetivo central da tese não estava dito claramente pelos depoentes, mas
requeria interpretação. Assim, o depoente pôde falar, sendo interrompido poucas vezes, apenas
quando era necessário ressaltar alguma questão, pedir maiores esclarecimentos, pontuar algo que
não foi dito, estimulá-lo a narrar alguma passagem, etc.
Há que se atentar para as especificidades das “histórias de vida”, pois ao rememorar a sua
trajetória de forma mais completa possível, o depoente se esforça na construção de sua própria
identidade, num resultado de apropriação simbólica do real, contando suas experiências, emitindo
144
suas opiniões. Dando sentido aos gestos e fatos, o memorioso se torna sujeito de seus próprios
atos, percebendo seu papel singular na totalidade social. Por serem dotados de força narrativa,
apresentam aspectos da realidade vivida insuspeitos ao pesquisador, o que os torna elementos de
uma riqueza incomparável30.
A metodologia utilizada na seleção dos depoentes foi por aproximação e indicação, uma
vez que os assuntos tratados são muitas vezes de cunho privado, requerendo uma certa dose de
confiança mútua entre pesquisador e depoente. Preferencialmente, a entrevista foi realizada na
casa do depoente ou em qualquer outro lugar a sua escolha e, em algumas vezes, houve mais de
um encontro.
Assim, delimitada a metodologia, a pesquisa foi iniciada. A partir de algumas indicações
obtidas com pessoas que moram no Rio de Janeiro, foi feito o contato com estes sujeitos. Alguns
deles, prontamente se declararam dispostos a falar, demonstrando, inclusive, muito interesse em
participar do trabalho, em serem ouvidos, em rememorar, o que demonstra a vontade de lembrar,
a sensação de perda do passado e da tradição em favor do presente. Outros, entretanto, se
negaram, completamente, ou então se negaram a princípio, concordando depois, pois afirmavam
que não teriam nada a contribuir, não entendiam de música ou não gostavam de falar do passado.
Algo bastante interessante no decorrer dos depoimentos foi que, aqueles que os
concederam, falaram de sua juventude, infância, casamento, entregaram-se ao ato memorioso,
gostaram muito da experiência, ao perceber, aos poucos, que o trabalho buscava muito menos
saber sobre a Bossa Nova, dentro de um discurso elaborado, sobre considerações relativas à
música, mas procurava muito mais, na história de vida de cada um deles, indícios de uma época,
fragmentos de uma escuta. Alguns se entusiasmaram tanto com o trabalho que se dispuseram a
indicar outros nomes, levando em consideração os que “gostam de falar” e não pensando em
pessoas que “conheçam muito sobre música”, como a princípio interpretavam que esse era o
objetivo do trabalho.
A antropóloga Teresinha Bernardo aponta para a necessidade e a importância de se
estabelecer um clima amistoso e de confiança entre depoente e pesquisador para se ter acesso a
estas vidas vividas, em que um trabalho com emoção se perfaz, uma vez que, por vezes, há
30
Antonio Torres MONTENEGRO, História oral, caminhos e descaminhos. Revista Brasileira de História –
Memória, História, Historiografia, n.. 25/26.
145
grande alegria por parte dos entrevistados, tanto por se sentirem importantes, como também pelo
fato de terem alguém de fora do ambiente familiar para contar suas histórias e experiências.31
No entanto, algo deve ficar muito claro: estas memórias que se tornaram visíveis na
pesquisa como “fontes históricas”, não substituem de forma alguma a interpretação feita no
presente. Em outras palavras, não se toma estes discursos produzidos na atualidade como a
verdade dos fatos ou a verdadeira significação da audição naquele tempo. É necessário ter como
pressuposto que, muitas vezes, a memória pode muito mais encobrir sentidos do que desvelá-los,
uma vez que o tempo, a tradição e as leituras da Bossa Nova já produzidas pela memória
histórica, muitas vezes podem permear hoje a construção memorialística destes ouvintes. As
diferenças nas memórias de homens e mulheres ouvintes são dialogadas, nas suas formas
específicas de atribuir significados, nos seus conceitos presentes sobre a Bossa Nova, nas suas
formas de articulação daquilo que ouviam em seu cotidiano diferenciado. A historiadora Marina
Maluf afirma que
“a rememoração feminina está engastada nas experiências e nos papéis que as mulheres exercem tanto na
vida familiar quanto na social, assim como no sistema de valores e representações extremamente
diferenciado, no qual o masculino é construído de maneira positiva, em oposição ao feminino, que se
32
edifica de maneira negativa”
Desta forma, impossível não atentar para o fato de que as memórias femininas – por
exemplo – poderiam apenas reafirmar ideologias e pressupostos prontos no que tange às
diferenças de gênero. Da mesma maneira, difícil não levar em consideração também o fato de que
estas memórias (tanto de homens como de mulheres) poderiam estar refutando conceitos e
estereótipos cristalizados sobre a Bossa Nova: um movimento nascido num local belo, tranquilo,
em que imperavam os “anos dourados”, entre outras visões unívocas.
Outro aspecto importante no que se refere às memórias de homens e mulheres, é que as
últimas, em todas as abordagens feitas para a obtenção do depoimento, se mostraram muito mais
abertas a falar, prontamente se dispondo a rememorar e contar suas experiências, enquanto que os
homens apresentaram maior resistência (com exceções) a fazer o mesmo, ou se negando a falar,
ou ainda, quando concordando, acabando por ficar presos a uma tentativa de “explicar” a Bossa
Nova, não se permitindo muitas vezes, falar sobre suas próprias experiências. Isso se deve, em
parte, ao fato de a pesquisadora ser uma mulher, o que por si só já coloca alguma distância e
31
32
Teresinha BERNARDO, Memória em branco e negro: olhares sobre São Paulo.
Marina MALUF, Ruídos da memória. op.cit. p. 102.
146
reserva por parte deles em falarem de suas vidas particulares. Mas parece se referir também às
próprias características do gênero masculino, de maior fechamento e interiorização das
subjetividades.
No entanto, isso não faz com que a memória seja uma fonte menor, ou menos confiável.
Neste trabalho há sempre a possibilidade da ruptura, de surgimento de ecos do passado que não
correspondem a uma noção de continuidade e repetição. Assim, o fato de os homens falarem ou
rememorarem menos, buscarem explicações sobre a Bossa Nova, seus silêncios, seus não-ditos
foram levados em consideração e usados como motivo para reflexão. Para compreender estes
aspectos, é necessária uma interpretação das entrelinhas, dos pormenores, dos detalhes, não se
deixando envolver pela narrativa como se ela trouxesse a verdadeira noção sobre os fatos
ocorridos. O que se quer assumir é que o discurso memorialístico é lembrança e esquecimento,
contendo aquilo que o memorioso julga importante ser registrado. Valer-se da memória destes
ouvintes deve ser o trabalho de ler textos, de tentar compreender este vivido em diálogo com
outras fontes ou linguagens (imprensa, dados sobre a produção, e outros) sempre numa
perspectiva de interpretar e não de encontrar as verdades já prontas. Seria o caso, portanto, não de
abrir mão da “vontade de verdade”33 a que as ciências sempre estão de alguma forma atadas, mas
de criticar o conceito de verdade no qual, por vezes, nos baseamos, pautado em mensurações,
critérios de verificações, empirias e visibilidades objetivas.
Desta forma, pode-se analisar os depoimentos destes ouvintes da Bossa Nova, como um
processo de recordar que permite identificar o que pensam que eram no passado e o que pensam
que são no presente, sendo que as histórias narradas não se configuram como representações
exatas do seu passado, mas trazem sim, aspectos desse passado, moldados de forma a se
ajustarem às suas necessidades e aspirações do presente, isto é, à imagem atual que o indivíduo
tem sobre si ajuda a moldar suas reminiscências onde fatos julgados como importantes dão
sentido às aspirações atuais criando consonância entre passado e presente34.
A matéria-prima aqui é a memória oral, o depoimento falado. De partida, isto já é uma
ruptura com a hegemonia das fontes escritas consideradas preponderantes ou mais confiáveis
para dar conta do passado. O depoimento oral traz em si uma pluralidade de aspectos subjetivos
que o diferencia das fontes escritas, envolvendo uma forte carga emocional, o contato com o
33
Jeanne Marie GAGNEBIN, Verdade e memória do passado. Trabalhos da memória -Rev. Projeto História, n.17.
Alistair THOMSON, Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a história oral e as memórias.
Projeto História – Ética e História oral, n.15.
34
147
depoente, fatores que interferem na narrativa e na sua interpretação. Fornecem, assim,
informações acerca das emoções, sentimentos, crenças e motivações do depoente,
proporcionando, por sua vez, uma pesquisa qualitativa, rejeitando uma suposta objetividade e
neutralidade do investigador, mostrando-se como um fazer científico que se deseja alcançar.
Neste ponto, surge um dos principais problemas para quem opta por este método: a
verificação do grau de veracidade do que está sendo dito. No entanto, nunca é demais lembrar
que trabalhando com estes instrumentos de pesquisa, está-se lidando com a subjetividade dos
indivíduos, com o que ele deseja revelar, ou prefere ocultar e com a imagem que ele quer
formular no presente, sendo que a personalidade, a postura e as atitudes do pesquisador também
interferem no tipo de resposta obtida. A narrativa oral sobre si mesmo não é apenas um depósito
passivo de fatos, mas um processo ativo de criação de significados, em que é preciso atentar para
as inúmeras modificações do passado forjadas pela memória, evitando uma possível confusão dos
testemunhos orais como a própria história. É preciso compreender assim, o porquê daquela
construção memorialística, de modo a não estabelecer julgamentos sobre verdade ou falsidade
das informações.
O trabalho com depoimentos parece ser de grande valia e utilidade ao favorecer alguns
aspectos, como o fato de pesquisador e depoente estarem juntos num processo de interação, em
que o contato direto favorece uma maior flexibilidade para a obtenção de informações. Este
contato também é importante por permitir ao pesquisador a observação do depoente e a situação
geral de quem responde, com seus sentimentos e feições. Isso possibilita ainda um envolvimento
entre pesquisador e pesquisado, em que as emoções e os sentimentos percebidos podem, muitas
vezes, contradizer o que está sendo dito. Por outro lado, a experiência da oralidade parece ser
mais motivante, com o pesquisado estando mais impulsionado a falar, sem as tantas travas postas
pela narrativa escrita, liberando o fluxo da memória35.
Entretanto, há que se tomar alguns cuidados e levar em conta algumas técnicas no
trabalho com a história oral. Uma delas é a relação pessoal, uma vez que o sucesso do trabalho
depende fortemente da criação de uma atmosfera amistosa e de confiança, sendo importante não
se criar um clima de desconfiança, antagonismo ou superioridade nas abordagens. Num primeiro
momento, durante os depoimentos, as atitudes e opiniões do pesquisador não devem aparecer,
tentando ser o mais neutro (o quanto possível, posto que neutralidade absoluta não existe),
35
Paul THOMPSON, A voz do passado – História Oral.
148
evitando induzir ou sugerir as respostas, permitindo que o depoente sinta-se livre para construir
sua narrativa36.
Aqui, estamos tratando da oralidade, algo diferente intrinsecamente de outras formas de
tradição, de linguagens, de formas de expressão, possuindo uma especificidade própria. Muitas
vezes, no momento da transcrição, a tendência é a de transformar uma narrativa oral em escrita.
Isto resulta na perda de elementos essenciais como o tom, a velocidade, o ritmo, impossíveis de
serem expressos por traços da linguagem escrita e suas pontuações. Sendo o discurso oral uma
narrativa, muitas vezes a duração dos eventos descritos não coincide com a duração da narração.
Desta forma, é importante deter o olhar na obra do estudioso da cultura, Paul Zumthor –
por exemplo, o seu trabalho sobre a literatura medieval37 ao compreendê-la sobretudo como um
estudo da voz e muito menos da palavra escrita – que traz considerações sobre a oralidade, a
tradição oral e a transmissão oral. Um dos pontos nodais de sua obra é seu interesse não pela
palavra oral em si, mas pelo seu suporte vocal, seu elemento realizador, a voz humana, como
local privilegiado para o estudo das culturas, como a fonte de energia que as anima. Voz que
implica em corpo, seu uso, seu engajamento, sua presença. Ele a considera em sua ação num
tempo/espaço específicos, determinada ao mesmo tempo no plano físico, psíquico e sóciocultural. Zumthor, prefere, ao termo oralidade, a palavra “vocalidade”, que é a historicidade dessa
voz, considerada como portadora de linguagem, já que por ela e nela se articulam sonoridades
com significados. Estas considerações são importantes tanto para a análise da memória oral dos
depoimentos dos ouvintes (como já foi bastante explicitado), como também para se refletir num
outro âmbito da oralidade que também é central neste trabalho: a canção. Pois, para além de
oralidade e da vocalidade, Zumthor fala em performance38, e a define como uma ação complexa
pela qual a mensagem ocorre no hic et nunc, transmitida e percebida simultaneamente, tendo
emissor, destinatário e circunstâncias se confrontando concretamente, onde o gesto e o corpo têm
papel preponderante, numa espécie de teatralidade. Quando, enfim, comunicação e recepção
coincidem no tempo, acontece uma situação de performance, dizendo respeito às diversas
manifestações da oralidade, tomando emissor e receptor como realizadores da “obra poética”39 –
um “drama à três”, envolvendo emissor, texto e receptor. Desta maneira, os gestos, a entoação da
36
Alessandro PORTELLI, Algumas reflexões sobre ética e história oral. Projeto História–Ética e História oral, n
15.
37
Paul ZUMTHOR, A letra e a voz: a “literatura” medieval.
38
Paul ZUMTHOR, Performance, recepção, leitura.
39
Paul ZUMTHOR, Introdução à poesia oral.
149
voz, o olhar, a respiração estabelecem uma situação comunicativa que põe em ação e em contato,
o emissor, o texto e o receptor, o qual tem também um papel ativo no processo de comunicação.
Isso fica claro se pensarmos no contato pessoal entre cantor/músico e ouvinte, como num show,
por exemplo.
Mas e a performance mediatizada tecnicamente? A performance encerrada no disco, no
rádio, na TV? Zumthor também fala sobre este tipo de fenômeno, ressaltando que esta oralidade
deve ser entendida como uma situação em que não há necessariamente a coincidência entre
espaço e tempo e o momento da interpretação não é o mesmo da recepção. Ao necessitar de
aparatos técnicos para a emissão da mensagem, ou ainda, para a emissão e recepção, a
performance da oralidade mediatizada tem seus aspectos alterados com a abolição da presença
física de quem traz a voz, estabelecendo uma recepção que muitas vezes deixa de ser sempre
coletiva, tornando-se individual, pressupondo um ouvinte em movimento. Aliado a isso, a
performance se interioriza, e o ouvinte participa com suas fantasias, pois o suporte midiático
tende a apagar as referências espaciais da voz viva – o espaço em que se desenrola é
artificialmente composto. A mediação eletrônica fixa a voz, abole seu caráter efêmero, fugaz,
retira-a do puro presente cronológico, pois a voz que transmite é também reiterável
indefinidamente, embora de maneira abstrata. Segundo Zumthor, a mídia retirou a corporeidade
da performance, produzindo uma desencarnação, com perda de tatilidade, peso, volume, olfato,
com perda da presença do corpo, enfim.
Porém, a presença do corpo se transforma mas não deixa de existir. A mediatização não
faz com que deixe de existir performances ou vocalidades. Numa gravação, no rádio, na canção
mediatizada, por trás da voz gravada há uma gestualidade, uma plasticidade da voz, há a presença
de um corpo, de qualquer forma. Não se pode mais vê-lo, mas suas pulsações estão presentes,
respirações, sentimentos, energia vital. Tem-se, de qualquer forma, um corpo, e isso é que é
definidor da performance.
Embora se possa argumentar que a performance mediatizada está destituída de presença,
de “aura”, há que se lembrar que mesmo a gravação (com todo seu aparato técnico) contém
elementos que lhe são característicos, próprios, não sendo apenas uma perda. Ela se modifica,
claro, mas nem por isso é algo a ser desmerecido e visto como menor ou como falseador. A
interpretação feita pelo cantor tem comunicação com o ouvinte. Por trás dos recursos técnicos, do
150
timbre do cantor, há uma gestualidade oral; por trás da voz que canta, há uma voz que fala40 e é
esta palavra cantada que produz em quem ouve a formulação de sentidos, daí a importância em se
analisar a interpretação do cantor, mesmo mediatizada tecnicamente, pois ainda assim, há a
assinatura própria do intérprete, seu traço característico nos arranjos, no processo de captação
sonora, na utilização do microfone, etc.41 É necessário lembrar, ainda, que o ruído de fundo da
nossa época, constituído por canções midiáticas, é o lugar onde vive a nossa oralidade cotidiana,
possíveis produtoras do engajamento corporal ressaltado por Zumthor como peça fundamental
na performance.
Assim, as canções da Bossa Nova nesta pesquisa são entendidas em sua performance, ou
seja, por meio dos discos e gravações da época, numa tentativa de interpretar a sua comunicação
com seu público, com seus ouvintes, compreendendo de que maneira afetavam sua percepção e
como dialogavam neste encontro. Privilegia-se, assim, o uso da voz – a vocalidade –, a
linguagem em sua função dialógica na performance, chamando a atenção sobre o aspecto
corporal (em que entram voz, imagem e o próprio corpo) desta voz cantada, seu modo de
existência como objeto de percepção e de escuta. Segundo Zumthor, “a transmissão da boca ao
ouvido opera o texto, mas é o todo da performance que constitui o locus emocional em que o
texto vocalizado se torna arte e donde procede e se mantém a totalidade das energias que
constituem a obra viva.”42 Vem daí a procura por ouvintes que tivessem escutado e assistido à
Bossa Nova no final da década de 60 pela TV e as diferenças em relação àqueles que a ouviram
principalmente (ou apenas) no rádio ou disco.
Mas, se os ruídos do fundo de nossa época são as canções, há que se indagar como estes
ruídos foram constituídos, de que paisagem sonora estamos falando. De acordo com Murray
Schafer43, a escuta é percebida como o centro de um complexo relacionamento entre o ouvinte e
seu meio ambiente, em que todos os sons pertencem a um campo contínuo de possibilidades
dentro do domínio da música, incorporando sons, ruídos. Isto tudo daria origem à paisagem
sonora, que é a tradução de soundscape, em analogia à landscape e se refere a qualquer ambiente
sonoro ou qualquer porção dele visto como campo de estudos, podendo ser este um ambiente real
ou construções abstratas, como música, programas de rádio, etc. Assim, os sons presentes na
40
Luiz TATIT, O cancionista: composição de canções no Brasil.
Heloisa de Araújo Duarte VALENTE, As vozes da canção na mídia, São Paulo, 2000. Tese (Doutorado em
Comunicação e Semiótica). PUC/SP.
42
Paul ZUMTHOR, Introdução à poesia oral, p.33.
43
R. Murray SCHAFER, O ouvido pensante; e também A afinação do mundo.
41
151
paisagem sonora interferem diretamente nos órgãos sensórios, colaborando para a constituição de
novas formas de sensibilidade e novos hábitos.
Desta forma, importante atentar para quais efeitos têm os sons do ambiente, ou quais
relações se estabelecem entre eles (os sons) e a música de uma época, que diferenciações
existiriam numa musicalidade composta num meio urbano, na metrópole ruidosa, ou no campo,
ou ainda à beira do mar. Importante perceber que cidade, que espaço urbano era aquele habitado
pelos músicos compositores de Bossa Nova, e mais ainda, que territórios eram vivenciados por
seus ouvintes, que ajudavam a conformar uma paisagem sonora fundamental para estabelecer
uma escuta musical.
Encarar este ouvinte como alguém que passeia, compondo uma narrativa urbana, sonora,
uma experiência na cidade como o flaneur44 benjaminiano que se constitui no ondular da massa
metropolitana, fazendo parte dela e ao mesmo tempo negando-a, olhando-a de fora. Um caminhar
pela cidade formulador de uma experiência por meio de seus fragmentos, um indivíduo que
admira as vitrines, o consumo, assiste à TV, ouve o rádio, os discos, mas que também vai à praia,
e se fascina diante das montanhas e da natureza. Ele vive a aceleração do tempo, a desenfreada
proliferação dos prédios, o extremo processo de super-povoamento de Copacabana ainda nos
anos 60. Tudo isso parece contribuir para uma melhor compreensão desta escuta da Bossa Nova.
Se a paisagem é o signo preponderante para este habitante da cidade moderna que o Rio de
Janeiro já se tornara, a paisagem urbana, repleta de imagens e choques que estimulam o olhar e a
contemplação não está separada da paisagem sonora que também compõe este ambiente, onde
luzes, cores, vitrines, prédios, montanhas, cheiros, ruídos, presenças físicas, músicas vão
delineando o tempo em questão, na percepção multi-sensorial que tem dele o ouvinte da Bossa
Nova.
De acordo com Heloísa Valente, tem-se assim,
“uma sincronização do tempo social expresso na música, que termina por se elaborar na escuta desta
música e desta paisagem sonora. A tecnologia e os instrumentos musicais, seus ritmos, intensidades,
volumes, também ajudam a expressar esta paisagem sonora na música, sendo necessário perceber suas
permanências, modificações, que se salientam como fundamentais para uma história das mídias sonoras.
No entanto, a mudança por que passam as mídias sonoras não dependem exclusivamente das tecnologias,
mas sim dos códigos culturais que determinam o conjunto de valores que organizam internamente a
sociedade, onde alguns estilos ou gêneros musicais parecem exprimir um tempo e seu espírito, uma
sociedade, contendo os elementos sonoros próprios à ela (...) “o exemplo da música e da canção,
particularmente, revela-se como uma fonte privilegiada de textos e subtextos (culturais, musicais) (...)Estas
44
Walter BENJAMIN, O Flanêur; Sobre alguns temas em Baudelaire. In: _____ Obras escolhidas.
152
razões parecem suficientes para crer que a música – e dentre as músicas, a canção - seguirá como valioso
45
testemunho do espírito do seu tempo”.
Bem, ao tratar da Bossa Nova, impossível deixar de lado (como já se falou no início deste
capítulo) sua imensa e profícua edificação no imaginário brasileiro, que a faz ser lembrada
sempre como marco da MPB, música-símbolo do país, símbolo de uma cidade, de um tempo. Foi
dessa forma que se tornou um monumento na música brasileira, lembrada, cultuada, vista como
marco fundador. A questão posta é: como trabalhar sua performance, se esta não é mais original?
Como trabalhar a primeira impressão, a primeira forma de escuta, se há um distanciamento
temporal?
Segundo Zumthor, a performance, encarada como emergência/fenômeno que sai de um
lugar, atinge plenitude e volta para o seu mesmo lugar, ultrapassando o curso comum dos
acontecimentos e tornando-se obra poética, envolve cinco momentos: 1. Produção; 2.
Transmissão; 3. Recepção; 4. Conservação; 5. Repetição. O momento da performance se refere
aos itens 2 e 3, ou seja, à transmissão e à recepção, sendo às vezes referente também à produção,
no caso das improvisações. Isto é o que o autor caracterizava como “transmissão oral”,
diferentemente da “tradição oral”, que se refere aos itens 1, 4 e 5: produção, conservação e
repetição46. Aqui, Zumthor se referia ao modo de existência da poesia oral fora da performance,
fora do momento único de seu acontecimento irrecuperável, e de que maneira se determinariam
sua conservação.
O discurso oral é pouco durável. Exatamente por seu dinamismo, ele está a todo
momento, a cada nova performance, se re-elaborando, adaptando-se, possuindo uma falsa
reiterabilidade, numa potência criadora e recriadora do passado e do presente, qualidade que
Zumthor chamava de “movência”47 das obras. Esta característica é articulada ao nomadismo dos
textos orais, seu poder de migrarem para tempo e espaços diversos, aderindo e sendo
incorporados a outras culturas. Daí a noção das performances não possuírem formas fixas,
estáveis, mas serem flexíveis, “inautênticas”, fazendo com que noções tão caras, firmadas e
definidoras da cultura escrita, tais como autoria, plágio, percam-se ou se desloquem.48
45
Heloisa D. VALENTE, O espírito do tempo, os tempos do espírito: nos (com)passos dos beats dos hits. Revista
Eletrônica de Semiotica, Cultura e Midia (CISC) n. 1.
(http://www.cisc.org.br/ghrebh/artigos/01heloisa28092002.html)
46
Paul ZUMTHOR, Introdução à poesia oral.
47
Idem.
48
Paul ZUMTHOR, A letra e a voz: a “literatura” medieval.
153
Ao se moverem, as performances se modificam não apenas em seu conteúdo, mas
também na sua função social, pois são liberadas aos caprichos do tempo, oscilando na
indeterminação de sentidos feita e refeita por ela a todo momento. A performance se refere não à
idéia de completude, mas ao desejo de realização, comportando sempre o inacabamento. A sua
forma só é percebida nas situações em que está se processando, pois a cada uma nova situação, a
“forma se transforma”.
Zumthor chamava de “tradição”49 esta capacidade de guardar do passado os seus rastros,
para que nos ajudem e colaborem conosco no presente. Nas sociedades midiáticas, a tradição se
configuraria nas respostas múltiplas dadas pelas culturas ao desafio que nos lança a rapidez, a
fugacidade do tempo, a aceleração da história, a presentificação incessante. Este passado,
construído na tradição, não é contínuo ou linear, ao contrário, comporta a ruptura que é o
esquecimento, escolhendo aspectos, encobrindo outros, sendo seletivo. No seu processo de
transformação, a tradição se move, se modifica, cria hiatos que servem ambiguamente para
conservar os dados e para possibilitar tensões criadoras, com energias próprias. A tradição, assim,
é como um saber cumulativo que as culturas têm de si próprias e que empregam nas linguagens,
nas poéticas, na oralidade.
Pode-se falar, desta maneira, em tradições presentes no ato de rememoração das poesias
orais, como também de tradições presentes na própria poesia oral, ou seja, aquilo que, dentro das
formas variadas de oralidade poética, está saturado, carregado de passado.
A partir do que foi dito sobre a tradição, pode-se compreender suas formas de
conservação. Entra-se, assim, na idéia de duração e memória proposta por Zumthor, em que a
conservação pode ocorrer, por um lado, na memória direta ou indireta das gerações, e também
nas formas de oralidade. Uma memória gerando sempre outras performances, nunca iguais, mas
re-interpretações. Por outro lado, a conservação pode ocorrer na utilização de arquivos, como o
escrito, o disco, o filme, o vídeo, etc. Tem-se a vontade de fixar, registrar, de não se deixar
perder, de encerrar em lugares salvaguardadores do tempo infinito, transmutando-se no
atemporal. Isso advém da própria sensação de fragilidade que a poesia oral possui, de sua
fugacidade, de sua capacidade de captar o instante, de se modificar, de possuir uma instabilidade
radical. Seria a tentativa, assim, de assegurar as “frágeis” performances de sua condição temporal
inexorável.
49
Paul ZUMTHOR, Tradição e esquecimento.
154
Neste sentido, retoma-se a questão metodológica traçada acima: como – apesar do
distanciamento temporal – captar performances que já passaram, performances de outros tempos,
uma vez que não há mais a pretensa originalidade? Aqui entram em cena os arquivos e a
memória, as maneiras de conservação. As tecnologias, as mídias sonoras podem cumprir este
papel como fontes históricas, prestando-se ao papel de “lugar de memória”, de
documentos/monumentos para guardar a realização da obra “tal como foi”. A tradição guardada
nos discos, nas gravações, nos arquivos estão saturadas de elementos que, ouvidos no presente,
suscitam diversas formas de percepção e, por que não, de novas performances. As mídias
sonoras, e neste caso, o disco, podem assumir esta função documental. Na busca pela escuta da
Bossa Nova feita por seus ouvintes hoje, podemos nos valer destes objetos que guardam a
memória de um tempo, de uma paisagem sonora, de um mundo, de uma experiência. Retomando
Bergson, a percepção que o ouvinte faz hoje desta música já não será a mesma daquela feita em
outros tempos, pois o presente é outro, a cidade é outra, a paisagem sonora também. No entanto,
a memória está latente e no momento em que esta percepção é ativada, outras formas perceptivas
guardadas podem vir à tona por meio da memória-sonho, ou da memória involuntária. O sujeito,
ao ouvir música, têm suscitadas impressões, sentimentos, lembranças de sua infância e juventude,
acionando seu imaginário como numa viagem em busca das origens, podendo ter a experiência
do sujeito que passeia pela paisagem sonora de seu tempo, como um flaneur. Neste sentido, é que
a música e seu registro midiático podem servir como lugar de memória, local de guardar
experiências fixadas que, no entanto, não estão estáticas, mas sempre relidas no presente de quem
escuta.
A tradição guardada nos discos, as canções da Bossa Nova, possuem esta característica de
nomadismo e movência em que se adaptam, reintegram-se e se modificam em locais e épocas
diferentes, num tipo de miscigenação saturada de elementos que, ouvidos no presente, suscitam
diversas formas de percepção e também novas performances. Não por acaso, hoje se pode escutar
no rádio e nas pistas de dança, a obra de Bebel Gilberto e mesmo a canção Só tinha de ser com
você, de Tom Jobim, tocada numa roupagem moderna, eletrônica, mixada pelo
DJ Patife,
incorporando drum’bass, e cantada por Fernanda Porto. Ao que tudo indica, esta é a forma
audível e possível para o grande público – e principalmente para os mais jovens – da Bossa Nova,
num momento em que a calma, o tempo mais lento, sugeridos pelo estilo “original” não parecem
encontrar lugar num mundo acelerado e numa paisagem sonora tão diferente. Jovens que a
155
escutam e que se identificam como algo que lhes faz sentido, algo que os afeta. Assim, talvez seja
a partir de uma performance específica da Bossa Nova que esta mediação apareça. Desta forma, é
que se chega à idéia de recepção e de apropriação, ou seja, ao modo como os sujeitos percebem,
de que maneira, por que caminhos, por quais elementos. É daí que o conceito de medição parece
ser apropriado.
O que interessa aqui, no entanto, é a apropriação feita por jovens de outrora, os ouvintes
adultos de hoje, em suas memórias. Assim, é preciso buscar compreender que elementos podem
ter sido estes que fizeram com que estes jovens nos anos 50 e 60 se identificassem, gostassem,
consumissem esta música. Compreender quais recursos performáticos, midiáticos, subjetivos,
imaginários podem ter sido facilitadores deste encontro.
Para isso, é necessário recorrer a alguns conceitos trabalhados pelos estudos de recepção.
Deixo claro que embora existam várias correntes de pensamento, de variadas áreas trabalhando
com recepção – como a teoria de usos e gratificações, a estética da recepção, entre outras – aqui
estamos dialogando com o pensamento latino-americano, mais precisamente as formulações de
Jesús Martin-Barbero50. Partindo de um ponto de vista sobre cultura de massas e comunicação
diferente do frankfurtiano – hegemônico até então – , o autor utiliza a idéia de apropriação, e
percebe a recepção como prática complexa de construção de sentido que se dá no cotidiano.
O autor desloca o foco de análise dos meios comunicacionais, reposiciona o seu papel e
privilegia as mediações próprias da recepção, entendida agora como o meio, a possibilidade e a
forma de encontro entre emissor e receptor, em que se enfatiza a posição da cultura no cotidiano.
O processo comunicacional deixa de ser visto apenas como uma relação de dominação da
indústria cultural ditando padrões a receptores apáticos. Verifica-se a participação de mais
elementos que devem ser compreendidos neste complexo jogo: as mediações. Assim, ocorre um
desligamento das análises tão correntes que vêem o receptor como alguém indefeso e apático
diante do poder absoluto da mídia. Ao chamá-los de sujeitos receptores, Martín-Barbero lhes dá
um papel de agentes do processo (apesar de não serem livres, absolutos e independentes das
ideologias), com capacidade de diálogo, negociação e formulação de sentido. A isso tudo está
articulado o conceito gramsciano de hegemonia, como já exposto no primeiro capítulo,
envolvendo negociação, poder, re-arranjos de posições, assimilações, incorporações de elementos
culturais diversos, como popular, massivo, erudito, em que ora há contenções, ora resistências.
50
Jesús MARTIN-BARBERO, Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia.
156
O conceito de mediação supõe o entendimento do todo do processo de comunicação,
configurado como um lugar de interação entre o espaço da produção e o da recepção, uma
estrutura incrustada nas práticas sociais e no cotidiano das pessoas.51 As mediações seriam
formas de percepção da realidade, maneiras pelas quais uma mensagem, no caso musical, chega
ao seu ouvinte e lhe afeta, gerando uma formulação de sentidos. É o modo como, enfim, este
ouvinte se apropria desta música, pressupondo que não acontece uma mera reprodução do que
lhe é posto, mas sim de leituras diferenciadas com uma produção de sentido também plural sem
que, no entanto, isto signifique um receptor completamente autônomo a tudo que lhe é
direcionado pelos meios. Isto supõe uma apropriação historicizada, em que cada grupo analisado
deve perceber as medições próprias e específicas do modo de apropriação das mensagens.
É importante recuperar, entre outras, como forma de mediação, a situação de escuta e
contato com a Bossa Nova: como a música era ouvida, se era no rádio, se em família, com
amigos, no trabalho ou só; se a partir dos discos, se em reuniões em casas de amigos, se em
shows; ou ainda, se a partir das críticas na imprensa, etc. Pode-se levar em consideração, como
também sugere Martín-Barbero, a competência cultural do receptor, o que ele está acostumado a
ouvir, a quais performances musicais está familiarizado e com as quais se identifica, qual o seu
repertório. O conceito de mediação, no entanto, não se refere apenas à cultura formal, engloba
também a cultura dos bairros, das cidades, das tribos urbanas, sendo uma marca cultural
viabilizada pela experiência cotidiana. Desta forma, é necessário estar atento às leituras
diferenciadas que estes ouvintes podem fazer da Bossa Nova, dependendo de sua educação
formal, mas também de seu repertório musical, dos lugares da cidade em que habitam, etc.
Com o referencial teórico e metodológico acima traçado, e com os depoimentos
realizados, é que se tem o capítulo 3, em que interpreta-se estas memórias. Cada um de seus subitens, mostram os aspectos que foram mais relevantes nos depoimentos que serão analisados: a
cidade, a juventude e a política, a questão de gênero, e a questão da escuta e do olhar.
51
Maria Immacolata LOPES et alli, Vivendo com a telenovela: mediações, recepção, teleficcionalidade.
157
Cap. 3 – Ecos da Bossa Nova
“Aquela senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem...
Para que é preciso ter piano?
O melhor é ter ouvidos E amar a natureza.”
O guardador de rebanhos, Fernando Pessoa
Ecos, repetições sonoras. Entre os tipos de sons existentes num dado local, podemos
distinguir o direto, aquele que vem do emissor (seja ele um instrumento ou uma voz); o precoce,
que resulta dos primeiros reflexos a alcançarem nossos ouvidos, advindos do esbarrar nos limites
do espaço em que se está; e finalmente, o eco.1 Este, aos poucos se forma e desaparece, enquanto
ondas de som ricocheteiam em todas as superfícies. Entre os especialistas em acústica, o segredo
para se obter um local em que se possa ouvir perfeitamente as sonoridades, seria fruto do
equilíbrio entre os ecos e os sons diretos e precoces, a fim de que se alcance uma melhor
definição sonora. Sem o eco, dizem os especialistas, a sonoridade fica “seca” demais, pois ele é
como um pano de fundo para as harmonias, apoiando o processo no qual o cérebro combina sons
subsequentes e dá-lhes ligação, tendo como ajuda esta tela de fundo, para lembrarmos por mais
tempo os sons passados e combiná-los com os seguintes.
Esta noção de eco parece auxiliar na compreensão das escutas musicais de outros tempos.
Por ela é que se vislumbra interpretar as escutas da Bossa Nova como experiências já passadas,
que chegam somente através de reverberações suscitadas pela memória. Ondas sonoras, vidas
vividas, cotidianos talhados de experiências que são interpretados hoje, depois de muito ecoarem
no tempo, se combinarem e recombinarem com outros sons, outras experiências, outras
interpretações, necessárias para esta que ora se apresenta. Ecos da Bossa Nova, assim, que
seguirão soando, dando telas de fundo para outras e futuras composições e interpretações sobre
esta música.
Este terceiro capítulo busca analisar os depoimentos dos ouvintes, as suas memórias.
Dividido em cinco sub-capítulos, seus títulos, bem como seus conteúdos, têm como base aquilo
que foi mais recorrente nas vidas lembradas durante o trabalho de reminiscência – aquilo que
mais reverberou e ecoou no tempo. O que se compreendeu desses depoimentos será trabalhado
1
Robert JOURDAIN, Música, cérebro e êxtase: como a música captura nossa imaginação.
158
em trama com outras fontes como as canções, os depoimentos dos bossanovistas e o material
publicado pela imprensa da época, numa tentativa de interpretação do cotidiano da época.
Cap. 3.1. – Entre escutas e olhares
“Inventei a cor das vogais! – A negro, E branco, I vermelho,
A azul, U verde. - Regulei a forma e o movimento de cada consoante e,
com ritmos instintivos, nutri a esperança de inventar um verbo poético
que seria um dia acessível a todos os sentidos. Eu me reservava a sua tradução.
Foi, antes, simples estudo. Eu escrevia silêncios, noites,
anotava o inexprimível. Fixava vertigens.”
Alquimia do verbo, Arthur Rimbaud
Refletindo sobre os dias atuais, é notória a presença daquilo que é veiculado pelos meios
de comunicação em nossa vida e no cotidiano, delineando uma cultura e até uma percepção do
mundo diversa das tradicionais, sejam elas, eruditas ou populares. Uma “cultura das mídias”,
como aponta Lúcia Santaella2, evidenciando as estreitas relações entre cultura e comunicação e
onde a regra é a mutabilidade, em que se arranjam e rearranjam – acelerada e incessantemente –,
elementos eruditos, populares e de massas. A linguagem propagada pela cultura das mídias
possui uma natureza altamente híbrida, misturando elementos de níveis culturais variados, bem
como matrizes de pensamento e linguagens também diversas como a sonora, a visual e a verbal.
Desta maneira, as peculiaridades que podem ser criadas por estas interações entre as linguagens,
produzem efeitos diferenciados na percepção do receptor, em seus dados cognitivos, psicofísicos
e no seu cotidiano.
Em muitos depoimentos, esta experiência cotidiana em meio às percepções do mundo
permeadas pelas mídias vinha à tona, exigindo a compreensão da formas como se articulava e se
estruturava a cultura das mídias nos anos 50 e 60, o modo como foi percebida pelos seus
receptores – mais precisamente pelos ouvintes da Bossa Nova – e como isto foi guardado por
suas memórias. Ouvintes convivendo com mídias variadas em seu cotidiano, passeando entre
escutas e olhares, com percepções variadas do mundo compondo sua experiência. É isto que se
busca interpretar neste sub-capítulo.
Como já apontado no capítulo 1, a cultura de massas foi se estruturando no Brasil na
década de 40 e 50, potencializando formas de consumo que, para além de sua concretude e
objetividade, possuem um caráter imaginário, segundo Morin.. Indo além, este consumo
2
Lúcia SANTAELLA, Cultura das mídias.
159
imaginário aponta em mais uma direção: a do espetáculo, cujo fundamento hegemônico é a
imagem, o olhar. É possível afirmar que neste momento estudado, esta dimensão imagética vai
tomando características muito peculiares e intensas na sociedade moderna – aqui pensamos mais
especificamente na carioca por ser o interesse específico desta pesquisa – onde a visão vai se
tornando o sentido mais estimulado na cultura de massas e de consumo, como se pode notar, por
exemplo, na imprensa da época principalmente através de seu fotojornalismo.
Segundo Ana Maria Mauad, a fotografia documental teve grande importância no século
XX. Nesse período se destacaram nomes como Robert Capa, Henri Cartier-Bresson, Bruce
Davidson, Ernst Haas, George Rodner, Denis Stock, Sebastião Salgado, dentre outros que
realizaram, de formas distintas, esse tipo de fotografia, subentendida como evidência,
comprovação oficial. Acompanhada deste atributo, a fotografia passou a ser considerada, ao
longo do século, a testemunha ocular da história.3
Embora saibamos que entre o fotógrafo e a imagem que elabora – com todas as etapas de
edição e publicação da foto – existam muitas outras questões em jogo, o mito da verdade
científica positivista foi reforçado com o ideário do olhar neutro da câmara fotográfica, cuja
capacidade de tirar instantâneos da realidade forneceu à fotografia documental o estatuto de uma
verdade anunciada. O que estaria exposto na imagem seria um pedaço da realidade congelada no
tempo e, por isso mesmo, isenta de qualquer contaminação. Assim, segundo Mauad, “reedita-se
a ilusão oitocentista com a qualidade técnica do século XX, com a autoridade de testemunha
irreprimível que a imprensa ilustrada adquire a partir dos anos trinta, devido a este suposto poder
de convencimento das imagens instantâneas”. Reforçando esta idéia , a presença do fotógrafo
junto com o repórter na cobertura dos acontecimentos era realçada, originando o fotojornalismo
como uma tentativa de exprimir, por imagens, a realidade objetiva e literal do evento retratado de
um modo mais fiel do que com as palavras.4
No Brasil, o fotojornalismo teve como ponto de partida e desenvolvimento a primeira
revista ilustrada, O Cruzeiro. Publicada a partir de 1928, dentro dos padrões internacionais da
Life, Time e Paris Match, esta revista adotaria, desde o início dos anos quarenta, a idéia de
reportagens fotográficas, nas quais trabalhavam fotógrafos e repórteres, coordenando o texto
escrito com o texto visual. Dentre as duplas mais famosas, responsáveis por matérias impactantes
3
Ana Maria MAUAD, Imagens da terra: fotografia, estética e história. In: Primeiros Escritos. n° 7- julho de 2001.
Helouise COSTA, Aprenda a ver as coisas: fotojornalismo e modernidade na revista O Cruzeiro. São Paulo, 1992.
Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, USP.
4
160
sobre o Brasil, seus problemas, mas também suas belezas e riquezas, estavam Davi Nasser e Jean
Manzon5. Segundo Helouise Costa,
“o redimensionamento de O Cruzeiro a partir da inclusão da fotografia como elemento ativo da
reportagem, a variedade dos assuntos abordados e o surgimento de uma fotopublicidade atuante foram a
mola para a sua expansão. Expedições à floresta amazônica para contatar tribos indígenas, o carnaval e as
praias cariocas, os esportes e a polícia, o glamour das atrizes, os acidentes automobilísticos, os crimes
famosos a vida das nossas grandes cidades. Tudo era motivo para uma boa fotoreportagem, satisfazendo
plenamente o gosto da classe média brasileira. Em 1952 explodem as vendagens desta revista: 700 mil
6
exemplares vendidos!”
A revista, responsável pela crônica social, política e artística do Brasil e do mundo, trazia,
já naquele momento, vários elementos que hoje caracterizam esse
mercado editorial: um
planejamento de marketing agressivo, investimento técnico, uma preocupação com o padrão
visual e com o esquema de distribuição e de publicidade. Esse quadro sugere que daquelas
páginas despontava – com grandes fotografias – uma idéia de um país projetado para o futuro,
grande, em desenvolvimento, industrializado, moderno. Surgia também em O Cruzeiro, a
tentativa de consolidar uma história oficial e unívoca do país, comprovada pelas imagens
fotográficas que registrariam o instante exato dos acontecimentos, buscando sem dúvida a
projeção de uma certa unificação da nação por meio da comunicação e cultura de massas, como
nos aponta Maria Celeste Mira.7
Inúmeras são as matérias, reportagens, e mesmo peças publicitárias, recheadas de
fotografias que ocupam a quase totalidade da notícia não só em O Cruzeiro, mas também nas
revistas Manchete, Fatos e Fotos, bem como no jornal Última Hora. Essas matérias tratavam de
assuntos variados, tais como descobertas científicas, transplantes de órgãos, descobertas de locais
de consumo e tráfico de drogas, expedições antropológicas, belezas naturais, ou ainda a
exploração da tristeza e desconsolo da família da jovem Aída Curi, morta em 1958, depois de
violentada e jogada do alto de um prédio residencial da zona sul por dois rapazes da chamada
“juventude transviada”. Notícias que apelavam para o fantástico, sensacional, emocional,
dramático, choroso, em forma de “denúncia”, ou “furos”, que se valem em grande parte do
5
Marialva BARBOSA, O Cruzeiro: uma revista síntese de uma época da história da imprensa brasileira. In: Revista
Eletrônica UFF.
6
Helouise COSTA e Renato RODRIGUES. A fotografia moderna no Brasil. Apud Ana Maria MAUAD. Imagens da
terra: fotografia, estética e história. LOCUS: Revista de História. (Versão eletrônica indisponível atualmente).
7
Maria Celeste MIRA, O leitor e a banca de revistas: a segmentação da cultura no século XX.
161
conteúdo imagético para “explicar” os acontecimentos e dar-lhes a versão definitiva, verdadeira,
comprovada e atestada através das fotografias.
Já desde o século XIX, é possível perceber no campo do jornalismo o uso e a difusão de
almanaques de humor devassos, panfletos sobre crimes pavorosos, enfim, uma imprensa
sensacionalista se valendo da promoção do fait divers. Expressão que significa, “fato do dia” ou
“notícias diversas”, remetendo à idéia de notícias variadas com importância circunstancial, se
constituindo num elemento relevante para a promoção e alimentação do entretenimento no
noticiário. Um tipo de notícia onde “desgraça pouca é bobagem”8, aberto a várias definições,
espaço no jornal para tudo o que não se classifica, buscando ser um atrativo para o leitor formado
após a consolidação da imprensa industrial. Uma de suas características é a de um tempo
homogêneo e vazio, em que os fatos ali mostrados não se relacionam entre si e com outros
aspectos da vida cotidiana, conformando um tipo de informação efêmera como o tempo e a vida
na modernidade e no meio urbano9. Configura-se ainda, muitas vezes, como um jargão da
imprensa, designando toda e qualquer notícia que implique rompimento insólito ou extraordinário
do curso cotidiano dos acontecimentos, buscando ter alto potencial de atração para o leitor.
É importante atentar para a definição do semiólogo francês Roland Barthes, que
transformou o termo em um conceito analítico. Segundo ele,
“o fait divers é uma notícia de ordem não classificada, dentro de um catálogo mundialmente conhecido
(políticas, economia, guerras, espetáculos, ciências, etc); em outras palavras, seria uma informação
monstruosa, análoga a todos os fatos excepcionais ou insignificantes, breve, aquele normalmente
classificado, modestamente, abaixo da categoria de Variedades.(..) uma informação total, ou mais
precisamente, imanente, que contém em si todo o seu saber: não é preciso conhecer nada do mundo para
consumir um fait divers; ele não remete a nada além dele próprio; evidentemente, seu conteúdo não é
estranho ao mundo: desastres, assassinatos, raptos, agressões, acidentes, roubos, esquisitices, tudo que
remete ao homem, à sua história, à sua alienação, a seus fantasmas, aos seus sonhos, aos seus medos [...]
no nível da leitura, tudo é dado num fait divers: suas circunstâncias, suas causas, seu passado, seus
desenlace; sem duração e sem contexto, ele constitui um ser imediato que não remete a nada de
10
implícito”.
Este tipo de informação é constituído por duas notações: causalidade e coincidência, onde
as notícias convergem para estas idéias, através das quais o discurso jornalístico e ficcional
manejam uma certa idéia de destino. Constitui-se em um signo que se fundamenta como uma
informação auto-suficiente, sem duração e sem contexto.
8
9
Marlyse MEYER, Folhetim. uma História.
10
Susan SONTAG, Diante da dor dos outros.
Roland BARTHES, Estrutura da notícia. In: Crítica e verdade, p.58.
162
Edgar Morin, quando observa a existência de “vasos comunicantes” no interior da cultura
de massas, aponta para o fato de que em um espetáculo de cinema, num filme romanesco, por
exemplo, existe também uma parte de atualidades e de informação. Por outro lado, na imprensa,
ao lado do caráter informativo, existe também o romanesco, o que faz a cultura de massas
extravasar o imaginário e ganhar a informação jornalística. O romance-folhetim e o conto foram
introduzidos no jornal desde o século XIX, mas é no auge da cultura de massas no século XX que
se forma uma imprensa periódica de cunho sentimental, aventurosa, policial, baseada nos fatos
variados, no sensacionalismo. A fórmula do fait divers reúne informação e invenção ao mesmo
tempo, a ponto destas se confundirem, com uma tênue linha separando real e imaginação.
Informação e entretenimento, assim, se comunicam, se interpelam na cultura de massas, não
possuindo fronteiras rígidas, pois no fait divers, “as proteções da vida normal são rompidas pelo
acidente, catástrofe, crime, paixão, ciúmes, sadismo. [seu universo] tem em comum com o
imaginário (o sonho, o romance, o filme) o desejo de enfrentar a ordem das coisas, violar os
tabus, levar ao limite, à lógica das paixões”.11
Dessa maneira, pode-se afirmar que o fait divers se caracteriza como um elemento
catalisador e estimulador do entretenimento, da espetacularização, pois carregando em sua
essência o humor, o espetáculo e a emoção, põe em relevo aspectos do imaginário humano, seus
sonhos, fantasias, mitos, medos, tal qual um filme, uma telenovela ou uma série, sendo que hoje
inúmeros estudos indicam sua presença não apenas no jornalismo impresso, mas também na TV.
Na cultura de massas, este tipo de informação acabou por se manifestar mais constante e
explicitamente nas imagens, seja nos noticiários de TV, seja nas novelas, em função de sua
característica de espetacularização e de sua aptidão por se tornar imagem, o que sugere a força
que esta possui nos imaginários, produzindo sentidos determinados pela autoria, e por isso
mesmo ideológicos.
Barthes analisa a mensagem fotográfica da imprensa12 como um sistema próprio, que
possui dois sistemas prévios, nela aglutinados: um propriamente fotográfico, cujos constituintes
imediatos são linhas, superfícies e tonalidades; e outro, o texto escrito que a acompanha em
forma de título, legenda ou artigo. Este último, possui um código – o lingüístico – cujas regras
obedece, onde, entre a coisa que fala e a mensagem falada, se interpõe um código que não reflete
11
12
Edgar MORIN, Cultura de massas no século XX : o espírito do tempo I – Neurose, p.100.
Roland BARTHES, A mensagem fotográfica. In: Luís Costa LIMA (Org.), Teoria da cultura de massa.
163
a realidade objetiva, mas lhe impõe elementos conotativos, ou seja, junta à mensagem uma
mensagem segunda, mergulhada num código (que é a língua). Já o primeiro, o fotográfico, é uma
mensagem à princípio sem código, pretendendo-se a pura transcrição do real, análoga àquilo que
fotografou, ou seja, pura denotatividade ou “plenitude analógica” que esgota completamente o
seu ser em objetividade. No entanto, é claro, Barthes não se restringia à esta explicação da
fotografia, mas aludia à esta uma conotação, isto é, a imposição de um sentido segundo à
mensagem propriamente dita, que se elabora nos diferentes níveis da sua produção (escolha,
tratamento técnico, enquadramento, etc), e produz o seu “estilo”, o qual é o responsável por
introduzir o caráter conotativo na fotografia. Ora, é exatamente esta idéia – esta separação entre o
que se quer que seja a fotografia, por parte de seu emissor e de seu canal (pura analogia do real,
denotativa), e aquilo que ela acaba se tornando no receptor (conotação – embora esta não se dê
apenas na recepção) – que faz Barthes percebê-la como algo que presta serviço às mitologias
contemporâneas da cultura de massas, que buscam afirmar a pretensa isenção, objetividade e
analogia do real nas imagens fotográficas.
Observa-se na imprensa na década de 50 características que podem ser apontadas como
exemplares para o reconhecimento do fait divers. Embora não se refira somente à imagens, há
inúmeras reportagens e matérias buscando colocar na imagem fotográfica a explicação dos fatos,
esvaziadas de qualquer sentido mais profundo, de contexto, de característica “política”, sem
ligação com outros fatos, imanente, contendo em si todo o seu saber. Imagens muitas vezes com
um cunho insólito, atípico, excepcional, na intenção de atrair o receptor para consumir uma
informação por ele reconhecida como espetacular e auto-explicativa. Isto apontaria para esta
questão da visão como matriz de linguagem privilegiada, em que, pela imagem, se tinha a
pretensão de traduzir de maneira infalível os desejos e ambições daquela sociedade. Um
tempo/espaço em que o olhar, é preponderante, um sentido estimulado, formulando uma certa
“sociedade da aparência”, como aponta Alexandre Godoy13, no momento de nascimento da
cultura visual na sociedade brasileira em geral, com o papel preponderante das camadas médias
tanto neste processo, como na passagem de uma sociedade burguesa para uma sociedade de
massas.
13
Alexandre Pianelli GODOY, Imagens veladas: a sociedade carioca entre o texto e o visor (1952-1957). São Paulo,
2000. Dissertação (Mestrado em História) - PUC/SP.
164
No entanto, há que se entender esta valorização da imagem não por ela mesma, ou como
fruto da modernidade e da tecnologia, mas também como experiência do imaginário. Nela, estão
presentes a dimensão mitológica, ancestral e constitutiva da subjetividade humana – o olhar – ,
não sendo portanto, algo exterior ao indivíduo, independente e por isso manipulador, fruto de um
mundo dominado pela técnica que valorizou o que é visível. Muitas tendências de análise têm
procurado destacar este possível caráter redutor da imagem em detrimento de outras formas
sensoriais e de percepção do mundo, polarizando a questão, argumentando que, por exemplo, a
escuta seria melhor do que a visão, por ser mais fabulativa ou criativa. Essas afirmações
se
colocam numa perspectiva que identifica sempre uma perda em relação à cultura de momentos
anteriores. Paul Zumthor14 aponta para este fato, ao analisar a oralidade e a escrita como tradições
culturais, afirmando que não se deve colaborar para uma idéia de nostalgia e perda em relação à
oralidade – como se ela tivesse sido completamente sufocada e diluída com a hegemonia da
escrita e depois da imagem e estando presente apenas em culturas “primitivas”. Exatamente por
sua característica de “movência”, a força da oralidade e da voz se faz presente na cultura de
massas.
Não se pode deixar de considerar que o olhar passou a ter hegemonia sobre outros
sentidos, numa época do Racionalismo no mundo das idéias, do desenvolvimento da imprensa, e
ainda do Renascimento no mundo das artes, com seu apelo ao uso da perspectiva que incita o
olhar. Todos estes fatores ajudaram a configurar a visão como sentido humano mais aguçado,
fonte de informações sobre o mundo, que se não embotava os outros sentidos, pelo menos
diminuía sua preponderância. Murray Schafer chama a atenção para este fato, ao destacar as
modificações sobre a forma como o homem do Renascimento passou a conceber a idéia de Deus
:se antes desse período Deus era concebido como som ou vibração, não sendo permitido aos
homens o verem sob pena de morte, é na Renascença que Ele se torna retratável, visível,
passando a ser representado nos quadros, telas e murais das igrejas, exposto ao olhar.15
Muitas análises procuram compreender a imagem e o olhar como mais fixadores, autoexplicativos, redutores, sendo a sonoridade, a escuta, a audição como mais amplificadoras,
polissêmicas, onde, a cada nova escuta se reorganiza a percepção do mundo, aberta à novas
interpretações, encontrando brechas para a lógica racional linear, que valoriza o empírico, o
14
15
Cf. Paul ZUMTHOR, Introdução à poesia oral.
R. Murray SCHAFER, A afinação do mundo, passim.
165
concreto, o visível, o aparente e a imagem, tônica dominante da cultura ocidental moderna.
Perfaz-se assim uma contraposição entre o olhar e a escuta onde, na tentativa de encontrar uma
brecha a este suposto domínio da imagem visual – algo que se desprenda e supere a lógica
dominante ocidental, iluminista e racional –, recai-se numa análise que entende a escuta como
única lacuna possível, possibilitadora das bifurcações, dando vazão às incertezas, às
interpretações, às subjetividades. Não se procura aqui referendar esta contraposição, e nem
elencar hierarquicamente as matrizes de linguagem em graus de possibilidade de elaboração por
parte do receptor, mas sim compreendê-las como formas de percepção do mundo em constante
articulação e dinâmica, sem associar a imagem apenas à modernidade ocidental racional.
É possível localizar a presença da imagem visual como constitutiva da experiência
humana no mundo desde os primórdios, nas origens do Homo sapiens. Longe de ser algo exterior
ao indivíduo, a imagem é própria do humano, lhe é intrínseca, estando na base de sua experiência
de percepção do mundo. Claro que para olhar figuras em perspectiva, ou mesmo a fotografia, nos
é requerido um conhecimento, um treinamento prévio mas a experiência da visão como sentido
apurado e preponderante, surge na constituição do homem. Como aponta Edgar Morin, a
novidade trazida com o surgimento do Homo sapiens é aquilo que se julga como sendo espiritual,
o seu lado imaginário, mítico e não tanto seu lado objetivo/racional/técnico, uma vez que naquele
momento de surgimento da espécie sapiens, o homem já era “socius, faber e loquens”16. Convém
examinar melhor este percurso, apontado por Morin, para compreendermos a constituição desta
subjetividade do humano. Segundo ele, é no aparecimento da sepultura e da pintura que podemos
localizar a irrupção desta “consciência subjetiva”17.
Os neanderthaleses foram os primeiros a construir sepulturas, onde os corpos são postos
em posição fetal (indicando um novo nascimento) ou sobre flores (que indica uma cerimônia
fúnebre), por vezes pintado, outras vezes enterrado com utensílios (sugerindo uma crença em
relação a continuidade da vida). Ora, isso revela não só a irrupção da idéia de mortalidade para o
homem, mas mudanças na sua consciência que permitiram esta irrupção, indicando uma
concepção diferente da morte, onde ela não é apenas sentida e ressentida como perda, lesão
irreparável (pois os animais também possuem esta faculdade) mas percebida como transformação
16
17
Edgar MORIN, O enigma do homem, passim.
Idem.
166
de um estado em outro, perfazendo uma consciência da noção de tempo (presente, futuro e
passado).
Ao mesmo tempo, a partir da idéia da possibilidade de uma outra vida, surge também, no
sapiens, o imaginário, a idéia do mito, do irreal, do subjetivo, do que não se pode ver mas
imaginar. A partir daí, imaginário e mito passam a ser produtos e produtores do destino humano.
Nesta proteção contra a consciência e a inexorabilidade da morte – que os rituais funerários, o
mito e a magia sublinham – está presente a interação entre uma consciência objetiva (reconhecer
a mortalidade) e uma consciência subjetiva (afirmando a imortalidade ou a transmortalidade),
constituindo a base do homem de maneira inseparável e integrada. Neste sentido surge, para
Morin, a “brecha antropológica”: a coexistência desta dupla consciência, variando mais para um
lado ou outro dependendo da cultura e da sociedade.18
Já no caso da pintura, esta consciência subjetiva aflorada fica ainda mais notória. São
muitos os indícios da presença de elementos gráficos dos mais variados entre os neanderthaleses.
Pinturas e desenhos no corpo, nas pedras, nas paredes compreendem a grafologia do sapiens.
Aqui se pode notar não apenas o nascimento da arte, algo estético com finalidade em si mesma,
mas também o nascimento dos rituais, magias expressas em seus desenhos, ideogramas, etc. Estes
dois tipos de fenômenos – artísticos e mágicos – não se dissociam, mas são a base daquilo que
Morin chama de “estética”19, que articula arte e magia, representação do mundo e ritual de
invocação mágica, ritualística, imaginária, trazendo à presença algo ausente. Assim, tal qual na
sepultura, o imaginário e a magia irrompem no homem também na pintura. Aqui é necessário
compreender a questão do “duplo” aludida por Morin. O homem toma consciência do duplo,
atestada pela sombra móvel que o segue, pelo desdobramento da pessoa no sonho, na lembrança,
no reflexo na água. Enfim, pelo atestar da imagem20. A partir daí, esta não é algo simples, mas
contém a presença do duplo do ser representado e permite a ação sobre este ser. Na consciência
do homem, os objetos passam a ter existência mental mesmo sem a sua presença material. Fica
mais clara, assim, a idéia deste duplo, onde o mundo exterior, os seres, os objetos, o ambiente à
volta passam a adquirir uma segunda existência, “uma existência da sua presença no espírito fora
18
Idem.
Edgar MORIN, Os campos estéticos. In: Cultura de massas no século XX : o espírito do tempo I - Neurose.
20
Cf. Edgar MORIN, O encanto da imagem. In: ____ Cinema ou o homem imaginário.
19
167
da percepção empírica, sob a forma de imagem mental, análoga à imagem que forma a
percepção, visto que não se trata senão desta imagem relembrada”.21
Enfim, o que a pintura revela, é a ligação imaginária do homem com o mundo além da
objetiva. Por um lado, o grafismo vai a todo momento invadir o espírito, invadi-lo com objetos,
cenas, seres do mundo exterior (mesmo quando ausentes) e por outro lado, as imagens mentais
vão invadir o mundo exterior. Para organizar ideologicamente e concretamente nossa ligação com
o mundo exterior e para transpor esta “confusão”, criaria-se o mito e a magia. Imagem, mito, rito
e magia são fenômenos interligados e indissociados no homem, presentes desde sua constituição
fundamental, como ser imaginário e imaginante, se manifestando também na relação ambígua
entre o cérebro humano e o ambiente, que corresponde à diferença entre subjetividade e
objetividade, imaginário e real presentes em nós.
Desta maneira, a imagem visual nos é intrínseca, constitutiva como seres imaginários.
Não é portanto, algo exterior, fruto da modernidade que privilegiou o olhar ou a imagem em
detrimento de outros sentidos e perceptos humanos. No processo de rememoração isto está muito
presente.
“Morei numa casa em Botafogo, numa rua sem saída, cheia de amendoeiros, com uma pracinha no fundo,
minha infância foi maravilhosa, foi “a infância”. A minha rua era cheia de crianças, a minha casa está
praticamente intacta até hoje, então sempre que eu passo lá, saio da rua São Clemente que é uma rua super
movimentada, é na altura do número 139, fica... à esquerda tem a rua Estácio Coimbra, casa número 40, de
tijolinho, com janelas brancas, em frente tinha um terreno baldio que a gente chamava ‘a obra’, que tinha
sido uma demolição (...) Em frente desta rua tem a Casa de Rui Barbosa, que existe também até hoje... e eu
ia pra lá com a babá de manhã, eu levava miolinho de pão para jogar no laguinho e os bichinhos que eu
achava que iam virar sapo... e também... puxava um cabelo com raiz porque diziam que quando colocava
cabelo com raiz lá dentro virava cobra. Minha infância foi muito encantada....” (Glória)
Estas são lembranças que testemunham um tempo vivido num espaço da cidade,
lembranças que evocam imagens em detalhes da rua, das casas da vizinhança, da casa materna
com seus ornamentos, sua fachada, dos locais próximos onde se brincava, e onde, para Glória, as
imagens lembradas são cruzadas com os elementos imaginários, míticos da infância e suas
“estórias”. Um rememorar por imagens que, no entanto, não se fecha e se autoexplica, mas se
abre à fabulação, remetendo àquilo que não era palpável e objetivo nestas imagens, mas às suas
características subjetivas, imaginantes e imaginárias: a infância “encantada”, aludida por Glória.
A memória espacial da casa dos pais, é de fundamental importância na rememoração da
infância, nos lembra Ecléa Bosi.22 A partir dela, organizamos as ruas em volta, a cidade, o
21
Edgar MORIN, O enigma do homem, p.99.
168
mundo. Um espaço reduzido como a casa, a rua, o terreno vizinho vazio são possibilidades de
aventura, de sonhos, de imaginação. O espaço vivenciado pela criança na casa materna/paterna é
mítico, repleto de fábulas, com locais na mesa bons para se comer, porões repletos de memórias
contadas, habitadas por monstros, fantasmas, etc. A importância destas passagens na vida de
Glória mostra que lembrar de tudo isso é voltar àqueles tempos e recuperá-los com sentidos
especiais para o seu presente, em que os pais já se foram, mas lhe deixaram marcas profundas no
cotidiano infantil, nas histórias contadas, nas brigas com os irmãos, entre outros fatos comuns à
infância, tecendo o fio condutor de sua vida, a “explicação” buscada por ela para ter se tornado
escritora e poeta, para ter a vida que tem.
Bergson argumentava sobre a importância da percepção para a formação de lembranças,
buscando compreender as relações entre a percepção e a memória, em como a conservação do
passado se imbrica na articulação do presente. A “memória-pura”, distinta da memória-hábito, se
atualiza na imagem-lembrança, e traz para a consciência, um momento único da vida, irrepetível,
sendo evocativa, não mecânica, presente nos sonhos, no devaneio, na poesia. O passado
conservado no espírito, assim, irrompe através de imagens da memória ou memória de imagens.23
Muitos são os especialistas em psiquiatria ou neurologia que têm atestado o fato de que
rememoramos prioritariamente por imagens.24 O nosso aprendizado, como também coloca a
psicologia cognitiva, se faz através da elaboração de imagens mentais, ponto de encontro
dinâmico entre a emoção, a percepção e a memória, uma vez que o conhecimento factual,
necessário para o raciocínio e para a tomada de decisões, chega à mente sob a forma de imagens,
as chamadas “imagens perceptivas”, assim como a reflexão, a lembrança de alguém, ou de um
lugar; qualquer desses pensamentos é constituído por imagens construídas pelo cérebro. Apesar
de a palavra imagem não se referir apenas às imagens visuais e nem apenas aos objetos estáticos
– sempre formados por percepções –, a noção de imagem está ligada sobretudo à experiência
visual, pois os olhos, como órgãos de visão, constituem um espaço privilegiado da construção de
imagens. No plano neurobiológico as concepções tendem a confirmar a existência de dois pólos
na atividade mental: um ligado às funções de linguagem mais abstratas e outro à visualização.
De acordo com o neurologista Antonio Damásio25,
22
Cf. Ecléa BOSI, Memória e sociedade: lembranças de velhos.
Cf. Henri BERGSON, Matéria e memória.
24
Cf. Antonio DAMÁSIO, O Erro de Descartes – Emoção, Razão e Cérebro Humano.
25
Idem, p. 363.
23
169
“as imagens parecem ser geradas por uma maquinaria complexa constituída por percepção, memória e
raciocínio. A construção é por vezes regulada pelo mundo exterior ao cérebro, pelo mundo que está dentro
do nosso corpo ou à volta dele, com uma pequena ajuda da memória. As imagens não são armazenadas sob
a forma de frames de coisas, acontecimentos ou palavras; ele não arquiva fotografias de pessoas nem
armazena filmes de cenas da nossa vida; ele faz, antes, uma interpretação, uma nova versão reconstruída
do original. Temos no entanto a sensação de que podemos evocar nos olhos ou ouvidos da nossa mente,
imagens aproximadas daquilo que experienciamos anteriormente, podendo ser sonoras ou visuais, táteis,
gustativas ou olfativas mas são predominantemente visuais. Diz-se frequentemente que o pensamento não é
feito apenas de imagens, que é constituído também por palavras e por símbolos abstratos não imagéticos.
Ninguém negará que o pensamento inclui palavras e símbolos. Mas o que essa afirmação não dá conta é do
fato de tanto as palavras como os outros símbolos serem, eles próprios, imagens. Se não se tornassem em
imagens, por mais passageiras que fossem, não seriam nada que pudéssemos saber”.
Segundo Santaella, não se pode negar uma hierarquia em níveis de complexidade entre os
sentidos humanos, sendo a visão o mais elaborado deles, uma vez que nenhum outro sentido goza
do mesmo tipo de intimidade e proximidade que o olho mantém com o cérebro, podendo-se
afirmar que ele é uma parte do cérebro em interface direta com o mundo externo, conectado
direto à ele, pelo sistema nervoso central.26
Em outro depoimento, a memória da infância e da casa materna também evoca imagens
mentais visuais.
“Nós morávamos numa casa na rua Sorocaba, uma casa antiga [no bairro de Botafogo]. Que agora, há
pouco tempo, pouco tempo que eu digo deve ter uns 5 anos, é que se transformou num belíssimo prédio. Até
eu me lembrei muito de Cecília Meirelles, quando eu passei lá...Que a Cecília tem uma poesia muito bonita
em que ela diz: - Levaram as grades de prata da minha varanda [se emociona] - Aí eu me lembrei disso,
que as nossas grades não eram de prata, eram escuras. Como é que eu posso chamar aquilo? Eram tão
conhecidos na época...Mas aquilo pra nós, representava assim um mundo.... Quando papai veio de São
Paulo pra cá, ele ficou muito tempo lá, nós ficamos muito tempo lá. Casa alugada; até ele comprar uma
casa aqui nessa rua Álvaro Ramos, ali mais a diante, uma casa de três andares, linda. Foi até... eu soube
outro dia pelo jornal, foi tombada a Vila. Imagina que beleza! Que é uma Vila linda, estilo normando.
Linda a Vila...e nós moramos lá muito tempo. Eram três andares. (...) antes de ir pra lá, nós moramos nessa
casa alugada, uma casa enorme, com quintal, com varanda.” (Maria Amélia)
Para a Psicologia, geralmente as emoções fortes suscitadas pela visão ou por alguma
sensação perceptiva, fazem o indivíduo ir em busca do passado que se assemelhe àquela sensação
presente27. Mesmo não tendo sido diretamente provocada pela visão da casa da infância, Maria
Amélia parece impelida a buscar no passado uma imagem que se associe ao seu sentimento
presente de emoção. Ao lembrar das diferentes moradas dos pais, quando criança, da vila com
casas em estilo normando, ou do gradio do portão que não existe mais – fosse ele escuro, de
26
Cf. Lúcia SANTAELLA, Matrizes da linguagem e pensamento: sonora visual verbal.
Lucia Maria COELHO, Imagens da memória: na prova de Rorschach e na obra de Proust. Revista Imaginário –
Memória, n.2, Jan/1995.
27
170
prata, ou não – ela descreve imagens, sem conseguir lembrar ao certo seus detalhes ou qualidades
específicas, com muitas reticências, pausas, comunicando apenas a idéia geral, pois a
verbalização da imagem afetiva e subjetiva interfere na filtragem dos termos descritivos. Uma
memória das imagens visuais da infância e juventude que aflora não por imagens presentes, mas
por outras vias, como por exemplo a escuta, uma vez que esta rememoração surgiu no momento
em que ela escutava a pesquisadora perguntar sobre sua infância. Uma pergunta inusitada para
Maria Amélia, cuja expectativa se voltava para uma conversa específica sobre Bossa Nova. Dessa
surpresa, é possível inferir que daí decorram suas pausas, reticências, dificuldades em elaborar
estas memórias num fluxo verbal contínuo, trazidas à tona tanto conscientemente,
voluntariamente, na busca pelas lembranças da infância, mas também interpeladas pelo
componente involuntário do lembrar, com a poesia que a emociona ou os esquecimentos, ambos
compondo a trama complexa da memória.
Da mesma forma que o mergulho da madeleine no chá de tília – aludido por Proust28 –
pode proporcionar a sensação do sabor do pequeno bolo, mas também o resgate de todos os
personagens, aromas, sabores, flores do jardim de Swann, as casas, a igreja e toda Combray,
também aquele gradio escuro – que Maria Amélia não recorda de que material era feito –
representava-lhe o mundo e, ao ser rememorado, evoca passagens de sua vida, mudanças de casa.
O portão que era também o contato com o mundo externo à família, com amigos e namorados,
que aciona os vários sentidos, provoca a lembrança de uma poesia e a faz se emocionar.
Parece assim, que o captar de outros tempos, seja na memória ou até no ofício
historiográfico se dá muitas vezes por constelações momentâneas de flashs que nos atravessam
velozes, nos interpelando e nos inspirando as “imagens proustianas”29, onde a memória associase às imagens, numa atitude semelhante a do anjo da História benjaminiano que olha o passado
como catástrofe, acumulação de escombros, ruínas, mas é impelido pelo vento do paraíso em
direção ao progresso.30
No entanto, a memória opera também pelos sons, pela audição e escuta. As lembranças
também estão povoadas de sonoridades. Mesmo sem a complexidade da visão e estando mais
distante do cérebro que aquele sentido, os sons captados pelo ouvido – apesar de seu poder
28
Cf. PROUST, Marcel. O tempo redescoberto.
Walter BENJAMIN, A imagem de Proust. In: Obras escolhidas, passim.
30
Walter BENJAMIN, Teses sobre a filosofia da História. In: KHOTE, Flávio (Org.). Walter Benjamin. São Paulo:
Ática, 1991.
29
171
referencial mais frágil, e da impossibilidade de poder representar algo que está fora dele31 –
apresentam alto poder de sugestão e de evocação, tendo grande força na constituição de memória.
Até agora falamos em imagens mentais, ou seja, quaisquer sensações cognitivas que se valem de
imagens visuais, que ocorrem na ausência ou não de estímulos externos, como a lembrança da
casa da infância ou a evocação de metáforas ligadas a imagens para se alcançar o passado. No
entanto, as imagens mentais ou representações mentais, podem ser também auditivas, onde se
pensa por sons, em seu ritmo, frequência, intensidade, altura, diapasão, harmonia, dissonância,
ruídos. Uma experiência mental, muitas vezes difícil de ser expressa verbalmente.
“eu tenho dois filhos, um é fechado, é sério, o primeiro. Tem 25 anos, casado, com uma filha, fazendo
doutorado nos Estados Unidos. O segundo, por contingências da vida, eu não sei porque... é tão adorável
quando o primeiro, mas é inseguro, é inseguro e me preocupa (...) é que ele mexe muito comigo, ele é um
menino muito bonito, depois eu te mostro o retrato dele, sempre teve um problema de relação com o irmão
muito grande, porque ele sempre se achou menos que o irmão, como não é [enfática], e ele hoje em dia faz
vestibular para Medicina, mas ele já terminou Desenho Industrial na PUC... e aqui nas formaturas, eu não
sei como é que é em São Paulo, mas nas formaturas agora aqui, a comissão de formatura, na hora em que
eles passam cumprimentando todo mundo, eles pedem, a comissão de formatura pede que cada aluno diga
uma música que o defina (...) Quer dizer, a música define [gagueja]... define realmente a coisa (...) Bom...aí
eu perguntei pra Leandro: - Leandro, qual é a tua música? - Ah não! Isso é surpresa! - Fui eu lá pro
auditório da PUC no dia da formatura dele ... e .... claro, já é um momento de...de stress...de stress não, de
alegria... Você está com um filho se formando, missão cumprida na vida, né? E na hora que Leandro
Falcão de Araújo: “Eu fico com a beleza das respostas das crianças, é bonita, é bonita e é bonita...” [canta
com emoção]. Olha, Simone, o que eu chorava, mais o que eu chorava... E eu buáaaa..... [risos]
“Viver e não ter a ver..”. Isso é tudo o que eu quero pra ele! ... Mais uma vez você vê o quanto você ... essa
música diz tudo.... o que eu quero é que ele seja .... que ele não tenha medo de ser feliz. O que eu quero é
que ele vá em frente, que ele entenda que não tenha que ter vergonha de ser o eterno aprendiz. Porque nós
somos eternos aprendizes, né?.... É a verdade....que a vida é saúde e sorte, né? Que é melhor do que a
morte, porra! [chora muito]” (Eliane)
Deste belo trecho das memórias de Eliane, alguns elementos indicam a força da
sonoridade na sua vida e percepção do mundo. Ao usar músicas para descrever as pessoas, não
apenas por suas letras – das quais não se lembra tanto quanto das melodias, que lhe “pegam”
mais -, mas por sua sonoridade, para “definir realmente a coisa”, ela deixa entrever sua
experiência de maternidade com os sons dos filhos, suas canções na infância ou na formatura, e
também o fato de não cantarem – o que, segundo nos conta, era motivado por uma espécie de
tristeza, situação que a preocupou em variados momentos da vida. Uma vida lembrada através de
músicas e sonoridades, presentes na sua forma onomatopaica de falar, denunciando a presença da
oralidade como um dos fundamentos de sua linguagem. Passagens importantes de sua trajetória,
como o nascimento dos filhos, a infância deles, o divórcio, a morte dos pais, são lembradas
31
Lúcia SANTAELLA, Matrizes da linguagem e pensamento.
172
através de canções que ajudam a exprimir o que sente. Isto se dá de modo bastante explícito
quando o depoimento de Eliane se faz acompanhar por LPs postos por ela durante o depoimento.
Essa canções servem como ferramentas de memória, ajudando a nomear seus sentimentos e
lembranças. A afirmação de que a música expressa tudo aquilo que deseja para o filho, abre as
portas para a compreensão de que os sons e a escuta perpassam toda
sua experiência.
Importante registrar que apesar do depoimento de Eliane ter durado mais de três horas, ela
se mostrava cada vez mais disposta e entusiasmada com o ato de rememorar, entregando-se ao
que – a seu ver – não fazia parte do interesse primordial desta pesquisa, “fugindo da Bossa Nova”
e falando sobre a própria vida. A partir daí, memória involuntária, emoções, elaborações do
presente e dos caminhos apontados pelo próprio ato de rememorar foram lhe mostrando questões
de sua vida atual, o que a levou a encerrar o depoimento dizendo que “teria de contar tudo isso
prá analista”, pois no momento em que foi rememorando, a partir das sonoridades que
pontuaram-lhe a vida, o presente adquiriu novos sentidos como, por exemplo, o desejo de voltar a
se dedicar ao estudo da música.
De acordo com a psicologia cognitiva e a neurologia, as imagens mentais32 (visuais ou
auditivas) ocorrem em áreas do cérebro voltadas para a percepção, onde o córtex visual ou
auditivo são estimulados quando surgem as suas imagens mentais correspondentes. Daí a idéia de
que mesmo os surdos ou cegos possuem imagens mentais, que são ativadas ao serem evocadas
em áreas específicas de seus cérebros. Desta forma, há a percepção, mesmo que não possa haver
a sensação de ver ou ouvir. 33
Ora, para compreendermos percepções, sensações, imagens mentais, temos que partir da
idéia de que se tratam de atividades do sistema nervoso iniciadas com a experiência sensorial
derivadas dos receptores sensórios: os órgãos humanos. Assim, entendamos melhor como
funciona a audição. Primeiramente, há que se saber que o som existe como ondas vibratórias que
se propagam no ar, ou seja, necessitam de um meio físico para se expandirem, se agitarem e
assim gerarem as vibrações denominadas sons (isto pode ocorrer também na água e em outros
meios, embora de maneiras diferenciadas). O som como onda, ocorre no tempo sob a forma de
uma periodicidade, isto é, uma ocorrência repetida dentro de uma certa frequência; seqüências
rapidíssimas de impulsão e repouso, ascensão e queda destes impulsos, seguidos de sua
32
33
Michael POSNER, Images of mind.
Cf. Oliver SACKS, O homem que confundiu sua mulher com um chapéu.
173
reiteração. Sendo um sinal oscilante e recorrente, os sons se dão em pulsos de acordo com uma
periodicidade e uma frequência que se apresentam basicamente em duas dimensões: as de
duração (rítmicas) e as de altura (alturas melódico-harmônicas). Como aponta Wisnik34, a onda
sonora se faz de oscilações entre presença e ausência, som e pausa registrados pelo tímpano como
compressões e descompressões, sem as quais ocorreria um espasmo.
O som pode ser medido em ciclos por segundo, isto é, a quantidade de vezes num segundo
que uma molécula de ar capta energia das ondas sonoras que vêm em sua direção e passa para
outras moléculas, recomeçando o ciclo em seguida. Os sons nascem da colisão de moléculas
entre si, sendo um fenômeno mecânico. Um tambor, ao ser tocado, é um pulso rítmico, podendo
ser percebido em suas freqüências como recortes de tempo, com suas variações e recorrências.
Mas se as freqüências rítmicas forem tocadas por algum instrumento acelerador, acabam
mudando de caráter, passando de um estado de granulação veloz, saltando para o patamar de
altura melódica.35 A partir daí, os ciclos delimitam o diapasão do som, a sua altura.
Nesse processo, a faixa audível humana fica mais ou menos entre 16 e 20.000 ciclos por
segundo. Imaginando as teclas de um piano, abaixo da mais grave (16 ciclos), não ouvimos nada,
apenas sentimos vibrações. O mesmo acontece acima da tecla mais aguda, o nível superior da
faixa audível. Ele não pode ser captado por nossos ouvidos, mas continuam escutáveis por
animais como cães ou gatos, por exemplo. Além disso, as ondas de som, ao se movimentarem no
ar, vão se enfraquecendo, sua intensidade (que comumente chamamos de volume) vai
diminuindo. Medida em decibéis, a intensidade do som que o ouvido humano consegue captar,
desde o mais baixo ao mais alto fica em torno de 120 decibéis36. Para além das propriedades de
altura e intensidade, o som ainda possui mais duas outras: as durações – referentes ao tempo, ao
ritmo– e os timbres, que são a multiplicação colorística das vozes ou instrumentos. Voltaremos à
este assunto mais à frente.
Embora estas informações sejam importantes e se para a Acústica – área da Física que
estuda os sons – o que interessa é apenas a forma como estas ondas vibratórias se propagam no
ar, aqui interessa saber como elas funcionam no ouvido e na percepção humana, considerando
que o som físico é diferente da sensação sonora. No intricado processo de audição e escuta, os
sons se fazem diferentes daqueles que foram produzidos.
34
Cf. José Miguel WISNIK, O som e o sentido: uma outra história das músicas.
Idem.
36
Cf. Murray SCHAFER, O ouvido pensante.
35
174
Cumpre saber que, dentre os sentidos humanos, o auditivo foi o último grande sistema
sensorial a surgir, seguindo-se à visão, o toque e o paladar, já bem desenvolvidos. No entanto, a
complexidade fisiológica do olho e do ouvido, faz destes órgãos decodificadores de informações
que não se exaurem no ato perceptivo, ou seja, podem criar matrizes de linguagem e de
pensamento e, além do mais, suas percepções podem ser armazenadas na memória com certa
persistência, sendo que esta faculdade é ainda maior para o olho do que para o ouvido, e muito
maior do que a dos outros sentidos. 37
Entendamos melhor o ouvido. Após vir como onda de pressão no ar, o som entra primeiro
no sistema mecânico-receptivo do ouvido, envolvendo a vibração mecânica da membrana
timpânica (tímpano) após passar pelas orelhas e o canal do ouvido, que servem como ressoadores
do som. Ao bater no tímpano, é acionado o sistema ossicular (três ossos presos a ligamentos),
inicialmente empurrando o martelo – primeiro osso–, que puxa a bigorna (segundo osso), o qual
por sua vez, esbarra no estribo (terceiro osso). Neste sistema mecânico – que lembra um piano –,
o som já está no ouvido médio onde se dá a adaptação e conjugação das ondas mecânicas de gás
(o ar) e de um fluido, como o que se encontrará mais adiante, no ouvido interno. O último osso, o
estribo, é alavancado pelos dois primeiros e entra neste ouvido interno, (ou cóclea), transmitindo
vibrações sonoras neste líquido coclear. 38
Sistema de tubos enrolados (vem do latim cochlea – caracol), a cóclea contém uma
membrana basilar em cuja superfície está o órgão de Corti, os receptores celulares ciliados,
sensíveis a estímulos mecânicos. Estas células realizam sinapses com uma rede de terminações
do nervo coclear, as quais se dirigem para o gânglio espiral de Corti que, por sua vez, envia
axiônios (parte prolongada dos neurônios) dali até o sistema nervoso central. É neste momento
que, da mera função fisiológica, o som passa à função de estímulo sensorial, ou impulso nervoso.
Em outras palavras, do ato fisiológico do ouvir, passa-se à experiência sensorial de escutar. É
neste ouvido interno, no órgão de Corti, que existem agrupamentos de neurônios especiais, as
células capilares, com sensibilidade para discriminar freqüências de sons diferentes, mais agudos
ou mais graves. Interessante notar que todo este processo do sistema auditivo utiliza um órgão e
suas subdivisões, infinitamente pequenas, se comparadas a outros órgãos sensoriais humanos,
como por exemplo a visão. 39
37
Cf. Lúcia SANTAELLA, Matrizes da linguagem e pensamento.
Cf. Arthur GUYTON, Fisiologia humana. 6.ed.
39
Cf. Robert JOURDAIN, Música, cérebro e êxtase.
38
175
Todo este percurso de esforço de entendimento dos processos fisiológicos da audição
humana, tem como objetivo compreender como escutamos os sons, como eles nos interpelam,
como nos fazem sentido. Roland Barthes40 fez uma importante e valiosa reflexão acerca da
escuta, distinguido-a do ato fisiológico e mecânico de “ouvir”, conferindo-lhe um estatuto de ato
psicológico que só se define por seu objeto e por sua intenção. Barthes elencou ainda três tipos de
escuta: a primeira, cuja atenção é dirigida para “índices”, servindo de alerta à presença de
alguém, de um perigo ou do objeto amado. Opera também com um princípio de seleção,
avaliação e apropriação da situação espaço-temporal, captando graus de distanciamento e
proximidade do mundo em volta, fazendo com que se possa distinguir o que era confuso e
indeterminado, transformando-o em algo pertinente e distinto, garantindo, assim, uma certa
segurança, uma vez que ajuda a definir o espaço territorial, o que é familiar e que é estranho.
Já a segunda escuta, refere-se à decifração. Ocorre quando o ouvido busca captar signos
mediante determinados códigos e a escuta se afasta da mera função vigilante para se tornar
criação. Com o ritmo – a pulsação regular de incisões rítmicas longamente repetidas, uma
característica humana que remonta ao período pré-histórico – vai se tornando possível a
existência da linguagem, pois o signo está baseado entre um ir e vir do marcado e do não
marcado, aquilo que Barthes chama de paradigma. A transformação do índice em signo é a
característica básica da segunda escuta, que é a do sentido, da decifração não do possível (como
uma presa ou o objeto de desejo), mas daquilo que está escondido, imerso na realidade – o
mistério, o obscuro que espera por nossa decodificação a partir de códigos para vir à consciência.
Uma escuta que acaba colocando em relação dois sujeitos, uma interpelação total de um
indivíduo a outro, como um cantor que com sua voz entra em contato quase físico com o ouvido
do sujeito que o ouve, em que escutar quer dizer também tocar, saber da existência do outro. Esta
escuta decifradora transforma o homem em ser dual, numa interlocução na qual o silêncio do
ouvinte é tão ativo quanto a palavra do emissor, onde a “escuta fala”.
Por fim, a terceira escuta, para a qual Barthes dá uma abordagem moderna – comparandoa com a escuta psicanalítica – onde o que interessa é menos o dito ou emitido, e muito mais quem
fala e emite, não esperando signos determinados ou classificados, desenvolvendo um espaço
intersubjetivo não concebível sem a intervenção do inconsciente estruturado como linguagem,
num jogo de transferências, em que escutar é escutar-se. A escuta da voz inaugura a relação com
40
Cf. Roland BARTHES, A escuta. In: O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III.
176
o outro, processo em que o movimento corporal tem muita importância. Pela voz, conhecemos a
maneira de ser do outro, seu estado de alegria ou tristeza, transmitindo por vezes apenas a
imagem do corpo do outro. Aqui a voz muitas vezes pode encantar mais do que o conteúdo do
discurso. De acordo com Barthes, o que se ouve nesta terceira escuta é aquilo que não é dito,
varrendo espaços desconhecidos, é implícito, indireto, retardado, disperso numa abertura
polissêmica, desfazendo a lei de uma escuta única e entrando no âmbito do ele chama de
“significância”. Nesta escuta total, inusitada, criativa, há um processo de fruição permitindo que
o indivíduo conheça melhor o outro e, fundamentalmente a si próprio; numa escuta do não
decifrado, do desejo, da vida.
Além de refletir sobre a escuta, cumpre compreender como ela é armazenada na mente e
na imaginação, compondo imagens mentais que são acionadas numa nova escuta ou mesmo por
emoções que as recuperam de alguma forma, trazendo-lhes à tona. Assim, adentramos no campo
da memória, uma vez que as imagens mentais guardam com ela intensas relações por serem
interiores ao cérebro. Em primeiro lugar, é preciso saber que não existe um lugar no cérebro
destinado ao armazenamento de lembranças. Não há um neurônio ou um feixe deles destinados a
guardar idéias, coisas, pessoas, lugares diferenciados. O cérebro lembra por categorização e não
arquivando algum tipo de instantâneo fiel. Cada percepção sentida pelo cérebro (visão, cheiro,
som, sensação) é dissecada, em busca de suas relações mais profundas, sendo esta rede de
relações aquilo que é guardado e acionado na lembrança. Desse modo, lembranças não são
exatamente resgatadas, mas recriadas, processadas a cada vez de maneira diferente pelas ligações
entre as diferentes áreas do cérebro que entram em ação no momento da interligação dos
neurônios destas diferentes partes cerebrais. 41
É assim que se compreende as relações múltiplas estabelecidas no momento da
lembrança, quando são acionados os perceptos variados dos cinco sentidos humanos, quando, por
exemplo, se recorda a voz de uma pessoa ou de uma canção, e os cheiros, os sabores envolvidos
naquela situação em que se escutou, são também lembrados. Isso decorre em parte porque a
região do cérebro onde se dá a percepção sonora está na área da medula espinhal, localizada no
tronco cerebral. Isto quer dizer que antes de chegar ao córtex, os sons passam pelo tronco
cerebral e é ali que se realiza a localização do som e sua associação a outros perceptos, momento
de encontro com a visão, com o toque, manejando os movimentos dos olhos e dos ouvidos.
41
Robert JOURDAIN, Música, cérebro e êxtase.
177
Atualmente existem muitas pesquisas demonstrando que nas camadas mais profundas do tronco
cerebral, os mapas dos diversos sentidos humanos estão em intensa relação, combinando
informações advindas de todos eles e interligando-os em nossa percepção, lembrança, memória.42
Por outro lado, e intimamente relacionado à tudo isso, a memória, para além de ser uma
faculdade orgânica ou uma função do espírito humano,como queria Bergson, é também social,
um dado coletivo, inscrita na cultura, num tempo e num espaço. Se estamos tratando neste subcapítulo das experiências de sujeitos que viveram na sociedade carioca dos anos 50 e 60, em meio
à sons e imagens, escutas e olhares, é importante atentar para a paisagem daquele local, uma
paisagem visual da cidade com suas ruas, prédios, praias, florestas e uma paisagem também
sonora, o ambiente acústico em que se vivia.
O conceito de “paisagem sonora”43 diz respeito ao universo de sons do ambiente e a forma
como os indivíduos se relacionam com eles. Segundo o formulador do conceito, o compositor
canadense Murray Schafer, a audição é um sentido especial, uma vez que não pode ser fechado,
como os olhos, “pois não tem pálpebras”. Desta maneira, sua única forma de se resguardar, seria
o desenvolvimento de um mecanismo de proteção contra sons indesejáveis, denominados por ele
de ruído. A preocupação central do autor está centrada numa “ecologia acústica, que busca um
projeto mundial de orquestração da paisagem sonora mundial”, formulando “ouvidos pensantes”,
isto é, que refletem sobre o que escutam e conseguem distinguir sons de ruídos. Ora, se a escuta
não é um ato passivo, mas implica em compreender significativamente os estímulos sonoros
levando em consideração todo o contexto envolvido, é importante, na análise de uma sociedade, a
interpretação ou compreensão de sua paisagem sonora, composta de suas músicas, canções,
ruídos das ruas, máquinas, e sons naturais, como o do mar, dos pássaros, das vozes humanas.
A paisagem sonora da modernidade mudou muito. Na paisagem sonora rural se tinha um
sistema hi-fi (alta fidelidade), em que os sons separados podiam ser claramente ouvidos em razão
do baixo nível de ruído ambiental, onde também havia uma sobreposição menos frequente.
Fazendo uma alusão à imagem, é uma paisagem que contém perspectiva, com figura e fundo
distinguidos, onde os sinais se sobrepõem claramente aos ruídos. Já na paisagem sonora urbana,
fruto da modernidade, temos um sistema lo-fi (baixa fidelidade), onde os sinais acústicos
individuais são obscurecidos em uma população de sons super densa. Assim, os sons
42
43
Arthur POPPER et alli. Mammalian auditory pathway: the neurophisiology.
Murray SCHAFER, Op. cip..
178
fundamentais são mascarados pela ampla faixa de ruído, perdendo-se em perspectiva – o que vem
em primeiro plano, em segundo e fundo –, num estado de aglomeração, difíceis de serem
distinguidos.44
Convém discutir aqui o conceito de ruído. Entendido como qualquer som negativo,
indesejável ao som musical, colaborando para destruir o que se deseja ouvir, algo que interfere na
comunicação. É uma categoria mais relacional do que natural; é uma categoria histórica, variando
segundo culturas, épocas ou situações. Seria um som que desorganiza outro, sinal que bloqueia o
canal, desloca o código, uma “desordenação interferente”45. Tudo isso dá ao conceito um caráter
complexo. Ora, a música é constituída sempre de som e ruído, num jogo que tenta organizar os
sons caóticos existentes no mundo. Para o canto gregoriano medieval, timbres, notas diferentes
soavam como ruído, uma vez que era uma música feita para ser cantada em uníssono, por homens
e sem acompanhamento. Na música clássica erudita européia dos séculos XVI a XIX, barulhos
em salas de concerto, por exemplo, seriam considerados ruídos. Já na música do século XX, o
ruído (que vem à tona pela própria configuração da vida moderna) passa a ser encarado de uma
outra forma: barulhos de todo o tipo são concebidos como integrantes efetivos da linguagem
musical, como se pode verificar nas obras de Igor Stravinsky, Arnold Schoenberg, Eric Satie e
tantos outros.46 Importante pensar, neste sentido, o quanto as dissonâncias elaboradas, fruto da
pesquisa harmônica dos compositores da Bossa Nova podiam ser consideradas pelos ouvintes
como ruídos, bem como o timbre da voz de João Gilberto ou de Nara Leão, por exemplo, também
poderiam ser assim compreendidos, uma vez que o que imperava nos rádios e na escuta musical
da época eram as vozes potentes e empostadas de um Orlando Silva ou Francisco Alves.
Desta maneira, a música contemporânea passou por transformações, abrindo espaço para
incorporar aquilo que convencionalmente se chamava de ruído; numa mudança organizada pelos
próprios músicos em suas atividades de criação, redefinindo este conceito. John Cage, por
exemplo, ao abrir a sala de concertos e permitir a invasão de suas composições por sons da rua,
indicava que a música devia resultar dos sons que vem de dentro e de fora dos locais destinados à
ela. Com isto ele anunciava uma concepção musical moderna, dizendo que “música são sons,
sons à nossa volta, quer estejamos dentro ou fora das salas de concerto”.47 É assim que a música
44
Cf. Murray SCHAFER, A afinação do mundo.
Cf. José Miguel WISNIK, O som e o sentido.
46
Idem.
47
Apud Murray SCHAFER, O ouvido pensante, p.120.
45
179
contemporânea, impulsionada pelas pesquisas da música concreta e da eletroacústica, vai
incorporando os ruídos, que até então não pertencia ao âmbito musical. Voltaremos à este aspecto
mais adiante.
Tudo isso permite compreender que as canções de uma época, de uma cidade mantêm
relações com a paisagem sonora deste local, cuja intervenção chega, inclusive, às performances
musicais com maior ou menor amplitude, com modos mais graves ou mais agudos, mais
intimistas ou não e mais, interfere também na escuta musical e do mundo. Os ruídos passam a
estar presentes nas músicas, dentro delas, na textura de sua linguagem, mas também no ambiente
que lhe é externo, no habitat urbano-industrial de quem escuta, na paisagem sonora da cidade
moderna.
Mas como analisar esta paisagem sonora? Segundo Schafer, em primeiro lugar,
descobrindo seus aspectos significativos, importantes por sua individualidade, quantidade e
preponderância. Distingui-los entre “sons fundamentais”, “sinais” e “marcas sonoras”. Por som
fundamental, entenda-se o som básico, o referencial, que em música é a tonalidade; eles não
precisam ser ouvidos conscientemente, são hábitos auditivos. Aludindo novamente à idéia visual,
seria o fundo, o segundo plano num quadro. Eles estão presentes relacionando-se de alguma
forma aos nossos estados de espírito, aqueles criados pela geografia, clima, pela natureza:
barulho do mar, do vento, da chuva, etc. Já os sinais, são os sons destacados, ouvidos
conscientemente, os que emergem ao primeiro plano; deve-se dar atenção a eles pois são recursos
de avisos acústicos, como sinos, apitos, sirenes, buzinas, etc. E por fim, as marcas sonoras, os
sons de uma sociedade ou comunidade que são únicos, ou que possuam qualidades peculiares que
os tornam significativos ou notados pelas pessoas do lugar.48
A vida nas cidades produz uma paisagem sonora com mais elementos do que estes acima
descritos. Estes são oriundos da vida industrial, ou artificialmente construídos, contínuos, que não
mais nascem e morrem como os sons naturais, mas permanecem indefinidamente, como zunidos
de máquinas, por exemplo. Outro elemento introduzido na paisagem sonora moderna é a
separação do som de sua fonte original, amplificando-lhe e dando-lhe vida independente, a
chamada “esquizofonia”49. A análise da nova paisagem sonoro-musical, portanto, deve incorporar
todas as potencialidades sonoras expressivas, fazendo-as interagir. Essas potencialidade são
48
49
Cf. Fátima Carneiro SANTOS, Por uma escuta nômade: a música dos sons da rua.
Cf. Murray SCHAFER, O ouvido pensante.
180
ritmo, textura, melodia, amplitude, timbre, e também silêncio e ruídos. Para se compreender a
música, é necessário analisar também a paisagem sonora onde foi composta e escutada e as
relações deixadas por esta na canção e na sua performance.
Pensando-se em como a “paisagem sonora” pode se prestar a traduzir elementos ao
mesmo tempo sonoros e visuais, é que se busca compreender quais relações se estabelecem entre
a sonoridade bossanovista – tão ritmada, calma, sem deixar de ser também dissonante; com uma
poética que lembra o concretismo, mas também cheia da prosódia carioca de falar no diminutivo,
com expressões coloquiais – e as imagens por ela construídas, sugerindo impressões,
sentimentos, e, ao mesmo tempo, imagens, que são da cidade, da natureza, da mulher amada, do
cotidiano carioca, nesta sociedade que passava por transformações, num processo em que a
cultura visual passava a ganhar muito espaço.
Lembrando de momentos da história das artes em que estes elementos visuais, sonoros e
verbais encontram-se intimamente ligados, podemos compreender melhor isto. Na música
Impressionista do século XIX e início do XX, por exemplo, os sons sugerem impressões, com
notas e acordes soltos, como se fossem pinceladas aparentemente aleatórias, apontando para uma
relação próxima entre a pintura e a música, artes visuais e sonoras. Podemos interpretar em que
sentido a Bossa Nova também está expressando esta relação intrínseca à sociedade carioca
daquele período, entre sons, escrituras e imagens, em meio a um caminho de transformação para
uma sociedade de massas, de consumo e audiovisual, estruturada já no final da década de 60.
Estabelecendo uma estreita e complexa relação entre os sentidos humanos, é necessário lembrar
que as imagens e os sons se complementam..
“Mas pra que?
Pra que tanto céu?
Pra que tanto mar, pra que?
De que serve
Esta onda que quebra
E o vento da tarde?
De que serve a tarde?
Inútil paisagem
Pode ser que não venhas mais
Que não venhas nunca mais
De quem servem as flores
Que nascem pelo caminho?
Se o meu caminho sozinho é nada
É nada, é nada”
(Inútil paisagem)
181
“Eu, você, nós dois
Aqui neste terraço à beira mar
O sol já vai caindo
E o seu olhar
Parece acompanhar a cor do mar
Você tem que ir embora
A tarde cai, em cores se desfaz
Escureceu, o sol caiu no mar
E aquela luz lá embaixo se acendeu
Você e eu
Eu, você, nós dois
Sozinhos neste bar à meia luz
E uma grande lua saiu do mar
Parece que este bar já vai fechar
E há sempre uma canção para contar
Aquela velha história
De um desejo
Que todas as canções têm pra contar
E veio aquele beijo
Aquele beijo
Aquele beijo”
(Fotografia)
Canções que evocam imagens, sonoridades e poesias que remetem à experiência visual.
Em Inútil paisagem, o próprio título é visual, descreve imagens que, no entanto, não adiantam ao
narrador, por ele estar se sentindo sozinho à despeito da bela paisagem. Em Fotografia, a
descrição visual da cena onde ocorre o encontro amoroso se mistura com os sentimentos do autor.
A canção se coloca como uma linguagem híbrida entre a matriz sonora e a verbal, mas ao
ser executada ao vivo, num show, por exemplo, ou ainda na TV, traz para a cena também a matriz
visual.50 Uma fala que se torna música e vice-versa, e onde o som, inseparável da letra, por vezes
se limita a acompanhar o potencial sonoro da fala, com suas durações, articulações, entonações e
ritmos.
Ambas as canções possuem uma estrutura temporal lenta, mais introspectiva, sugerindo
uma velocidade que está em consonância com as paisagens visuais descritas, com imagens do
mar, dos ventos à tarde, do entardecer, etc. Estas imagens sugerem uma idéia de tempo lento,
devagar, em contraposição à um tempo acelerado que a cidade moderna carioca já vivia àquela
época. O ritmo é próprio ao ser humano em sua sensação de temporalidade, com os ritmos vitais
de batimentos cardíacos até a sensação dos ciclos da natureza, como dia e noite, por exemplo, ou
as mudanças de estação, etc. Por isso o ritmo, na música, se coloca como a dimensão primeira de
50
Lúcia SANTAELLA, Matrizes da linguagem e pensamento.
182
percepção, uma imediaticidade sensível, aquilo que primeiro se percebe ao ouvir, pois é o seu
próprio sistema nervoso, em sintonia com os ritmos vitais, biológicos, naturais; tanto é assim que
podem existir músicas sem melodia ou harmonia. Por ser tão vital, acaba-se pensando sobre ele,
isto é, a formulação de leis ou estruturas rítmicas nas músicas, parece ser uma tentativa de
interrogar o tempo, desenhar suas formas.51 O ritmo ainda está ligado a corporeidade, imbricado
no corpo e em seus pulsos, impelindo a um acompanhamento, daí sua articulação com a
sonoridade e com a dança. Quando associado à noção de tempo, pode expressar tempos
evolutivos, como acontece nas sonatas de Beethoven; ou tempos cíclicos, em músicas modais; ou
ainda tempos reversíveis, em músicas circulares ou que sugerem paradas para se recomeçar
novamente.
O ritmo sugere a direção da música, articulando seu percurso, lembrando a função da
linha, do traço na pintura e no desenho. Dentro da noção de ritmo musical, temos outros fatores,
como a duração e o acento (a ênfase em uma nota para soá-la por mais tempo), sendo que a
combinação de ambos gera a complexidade rítmica na música. Na música ocidental dos séculos
XVI ao XVIII, a organização rítmica buscava a regularidade, com acentos colocados no primeiro
pulso de cada medida ou compasso recorrentemente e durações também regulares entre notas
mais longas e breves. No entanto, a música do século XIX e XX incorporou cada vez mais a
rítmica irregular, advinda tanto da música erudita como também da popular, com a influência da
música africana e da síncope, como já foi discutido. Segundo Santaella, a revolta contra os
metros estandardizados da música clássica surgia juntamente coma ruptura do verso na poesia, da
figura na pintura e escultura, da linearidade narrativa no romance, num contexto mais amplo de
contestação às simetrias tradicionais das artes em favor do inesperado.52
Nas canções da Bossa Nova, já foram apontados alguns aspectos relativos ao seu ritmo, a
saber, a utilização da estrutura tradicional do samba de umamaneira diferenciada, assimétrica,
com acentos em pulsos inesperados. O samba e o samba-canção, anteriores a Bossa Nova e
cultivados nas canções brasileiras no século XX, possuem compassos fixados em 2/4, sendo
alguns
mais
lentos
outros
mais
rápidos,
baseados
no
esquema
semicolcheia/
colcheia/semicolcheia. A estruturação rítmica na Bossa Nova se tornou mais diversificada e
complexa, criando uma nova célula rítmica, quaternária – como aponta Júlio Medaglia53 – e
51
Idem.
Idem.
53
Cf. Júlio MEDAGLIA, Música Impopular.
52
183
articulando a estruturação melódica. A chamada “batida bossa nova” se refere a uma defasagem
no tempo físico entre os acentos tônicos periódicos na linha melódica e os do acompanhamento
causado pelo uso reiterado de síncopes, causando uma certa impressão de birritmia, superposição
de duas partes da obra, ambas com a mesma métrica de tempo, mas com acentuações de pulso
diferentes.54 A isso se acrescente a maneira da interpretação das canções que produzia
acentuações de pulso inesperadas a cada performance, como se pode verificar até hoje nas
gravações de João Gilberto, por exemplo, onde uma canção é repetida várias vezes, e cada vez se
produz uma acentuação rítmica diversa. Uma noção de tempo – suscitada no ouvinte – de
reiterabilidade, de reversibilidade, e mudanças, em que uma música de pulsos lentos, mas que é
executada em um curto espaço de tempo, pode dar a sensação no ouvinte de algo demorado,
lento, pois a duração “‘real” não coincide muitas vezes com a sensação de duração de quem
escuta.
Se tomarmos uma das primeiras gravações da canção Fotografia, feita em 1959 por
Sylvinha Telles, podemos perceber este aspecto rítmico, em que as frases, os versos, vão sendo
pronunciados de maneira inesperada, com uma pulsação que parece produzir sempre uma
sensação de adiantamento, em que a defasagem do acento da melodia cantada, em relação ao
acento e duração dos instrumentos que acompanham a interpretação vocal, sugerem a resolução
da situação descrita pelas palavras evocadoras deimagens, compondo a fotografia, a
representação visual da cena em que o amor e o encontro se desenrolam, culminado com um
beijo. O mar tão fortemente presente na fotografia deste ambiente e seus ritmos de continuidade
e descontinuidade dos sons, com suas ondas com pulsações rítmicas reiterantes, bem como o dia
que acaba com o sol, que cai no mar e é sucedido pela noite, vai sendo contraposto ao ritmo
sincopado da voz que canta. Esta estrutura vai dando os contornos e a direção temporal para onde
deve seguir o caminho das imagens, da resolução dos conflitos de maneira não igual, mas
diversa, recriada a cada nova escuta.
Muitos são os ouvintes que ao rememorarem a Bossa Nova, sua escuta e a época vivida,
permitem interpretar questões relativas às impressões sobre o tempo e as durações daquele
momento histórico. Lembranças de canções sempre associadas à calma, ao que é lento, alegre,
harmônico sublinham o papel da memória na sensação das músicas, aspecto ligado a importância
54
Cf. Brasil Rocha BRITO, Bossa Nova. In: Augusto de CAMPOS, Balanço da Bossa e outras bossas: antologia
crítica da moderna música popular brasileira.
184
do ritmo nas mesmas. Muitas vezes podemos perceber na Bossa Nova, interpretações e
performances rápidas, com toque rápidos do piano ou do violão, com forte cor jazzística; no
entanto, o que a memória retém, a duração nela inscrita, é a de uma temporalidade calma,
contínua e sem sobressaltos. Isso sugere uma sociedade que já não era mais tão sossegada e lenta,
onde o turbilhão da modernidade parecia impulsionar uma certa reação representada exatamente
pelo tempo lento bossanovista, uma impressão de tempo recolhido, calmo, dos encontros à beiramar, numa cidade que já os fazia perderem-se na multidão, no desencontro. A memória é o que
possibilita a “ação do ouvinte na obra e a ação da obra no ouvinte” 55, em que o tempo é o alvo e
objeto de manipulação e controle por parte de quem cria a música e por parte de que a recria –
seus ouvintes – , de acordo com as dinâmicas temporais sentidas ou buscadas.
Um outro aspecto de maior importância dentro da música é a melodia, estrutura que se
refere aos sons consecutivos que variam de altura e duração, formando a idéia musical, seu
fraseado. Analogamente ao ritmo – como direção da música como um traço no desenho de
maneira horizontal – a melodia pode ser vista como o elemento vertical da música, sua altura,
extensão do diapasão dentro da canção, desde sua nota mais grave até a mais aguda. Na Bossa
Nova, esta dimensão é muitas vezes curta, com notas próximas, e intencionalmente pouco
variadas, como se pode perceber, por exemplo, em Garota de Ipanema, que pode soar – pelo
menos em seus versos iniciais e estandardizados – até como uma melodia de desenho um tanto
repetitivo. Ou ainda em Samba de uma nota só, que vai narrando o “samba” que se apresenta
numa mesma nota. Esta pouca variabilidade nas melodias pode ser compreendida como a
tentativa de jogar o foco da canção sobre uma harmonia cada vez mais complexa. Em Fotografia,
mais uma vez, as notas se apresentam na maioria das vezes próximas, compondo um desenho
melódico que se reitera.
Outras canções, no entanto, mostram uma tessitura melódica bastante ampla, com
intervalos de notas distantes, passando dos agudos aos graves e vice-versa, dando uma
característica mais lírica às canções. De maneira universal, como aponta Murray Schafer, “sons
agudos nos sugerem os céus, assim como os graves, o inferno”56, isto é, as notas agudas nos
sugerem a inflexão da euforia, das resoluções dos conflitos, assim como os graves, nos sugerem a
disforia, a tristeza, melancolia, como podemos interpretar na canção Inútil paisagem, a qual já se
55
56
Eduardo SEINCMAN, Do tempo musical.
Murray SCHAFER, O ouvido pensante, p.82.
185
inicia com uma sucessão ascendente de notas na pergunta do intérprete sobre o porquê da
existência de todas as imagens visuais narradas. Na descrição das mesmas, a melodia vai caindo
em escala de notas descendentes, numa constante indagação que possui um mesmo desenho
melódico sugerindo que as imagens, a bela paisagem visual não lhe servem de nada, são uma
inútil paisagem, ponto em que a melodia é mais grave.57
No entanto, a melodia não se resume à sua dimensão, à extensão e distância de suas
alturas, ela também possui a característica do ritmo, que surge na Bossa Nova, muitas vezes com
as antecipações nos acentos de pulso (como já descrito). Outro elemento das melodias é a sua
progressão, que é o intervalo entre as notas, o modo como a melodia se move entre elas. Na
Bossa Nova, ela é pontuada por notas dissonantes, que se combinam com a harmonia complexa
que se tinha, com notas estranhas à tonalidade original que se sustentam por longos períodos
dentro das canções, alcançando a resolução dos acordes apenas no final da música, onde a
melodia volta para as notas dos acordes centrais pelos quais se organizam a canção.
“aí eu fui apresentada à um compositor de Bossa Nova que me encantou.... Carlinhos Lira... que música
dele mesmo que me encantou? ‘O tempo passa e a chuva cai de mansinho...’ e aí vai, eu sei que no final é
‘pobre barquinho, velho amiguinho de papel, vai, vai, barquinho, triste, sem vida por...’ enfim, Carlinhos
Lira me tocou, mas por que? Porque não era aquela coisa marcada [como achava que era João Gilberto].
Era mais lírico, e aí eu curtia...(...) Então eu lembro do Sérgio Rodrigo [refere-se a Sérgio Ricardo], eram
músicas lindas... essas músicas ao mesmo tempo, mexiam também, o Trio Tamba, com Luizinho Eça, enfim,
tinham determinadas músicas que mexiam muito com a gente por causa do lirismo, era o lirismo. Era muito
mais a escuta do que a letra, tá? O lirismo era uma coisa... era bonito demais, eram músicas muito
bonitas.” (Eliane)
Eliane afirma várias vezes que se identifica com uma canção, e a memoriza mais
facilmente quanto mais lírica esta for. Ela guarda a melodia, e quase sempre a rememora com
detalhes, mas a lembrança das letras, seu conteúdo, o nome do intérprete muitas vezes são
esquecidos. É a sucessão de notas que se faz presente, pontuando todo o depoimento, que se torna
algo cantado.
A melodia, na canção popular, é o conjunto de notas articuladas entre dimensão, ritmo e
progressão conformando o tema musical; é aquilo que é vocalizado, cantado pelo intérprete.
Aliado à noção de melodia, o timbre é o que diferencia eidentifica um som. Uma mesma nota,
numa mesma frequência e amplitude (volume) ao ser entoada por instrumentos variados
produzirá sempre sons diferentes, o mesmo acontece com as vozes humanas. É a especificidade
dos timbres que individualiza os sons cantados, conferindo-lhes cores,
57
matizes especiais,
Cf. Luiz TATIT, O Cancionista: composição de canções no Brasil.
186
ajudando a preencher o espaço entre as linhas horizontais do tempo rítmico e as linhas verticais
da melodia. Essas cores podem ser quentes, e se dirigirem até o ouvinte, ou frias, movimentandose a partir dele, com características mais emocionais ou sintéticas. Este aspecto musical,
juntamente com os outros, pode ser considerado como de fundamental importância para a
formulação de imagens mentais – visuais e auditivas – no momento da escuta, evocando imagens
musicais que se desenrolam no tempo em seus traços horizontais, compondo uma noção de
temporalidade e arranjando-se verticalmente entre os sons graves e agudos da melodia,
delineando estados de espírito e sentimentos, começando a sugerir o preenchimento destas linhas
com cores e tonalidades diversas.
A forma de interpretação mais intimista e discreta dos intérpretes da Bossa Nova gerava
críticas e muitas vezes rejeição por parte dos ouvintes, que criticavam essa postura, considerandoa por demais relaxada, uma interpretação feita por cantores “que não tinham voz”. Ora se
escutarmos a canção O barquinho, gravada por João Gilberto em 1960, podemos compreender
algumas questões.
“Dia de luz, festa do sol
E um barquinho a deslizar
No macio azul do mar
Tudo é verão e o amor se faz
Num barquinho pelo mar
Que desliza sem parar...
Sem intenção, nossa canção
Vai saindo desse mar
E o sol
Beija o barco e luz
Dias tão azuis!
Volta do mar desmaia o sol
E o barquinho a deslizar
E a vontade de cantar!
Céu tão azul ilhas do Sul
E o barquinho, coração
Deslizando na canção
Tudo isso é paz, tudo isso traz
Uma calma de verão e então
O barquinho vai
A tardinha cai”
Com uma letra também eminentemente visual, sugerindo uma paisagem diurna do mar, do
céu, do sol, com um ritmo sincopado e uma melodia com notas muito próximas, o resultado se
alinha muito mais a um comentário coloquial do que a uma declamação emocional. O timbre de
João Gilberto parece coroar estes elementos, com uma empostação vocal extremamente
187
pesquisada e elaborada para soar sem vibratto, num canto quase falado, sem nenhum efeito na
voz – na época julgada como inadequada para o canto. Esse timbre parece evocar cores frias,
distantes ao ouvinte.
“olha, eu sinceramente, particularmente, eu não gosto de João Gilberto, sabe, eu não gosto. Eu gosto muito
mais de Roberto Menescal, de uma Wanda Sá cantando, Edu Lobo. Eu acho que era uma coisa... meio que
só prá ele entender, muito metida (...) Como as primeiras músicas falavam muito de céu, sol, essas coisas,
era uma coisa muito perto da gente, né? As músicas, era uma coisa...você adolescente, romântica, as
primeiras letras era uma coisa assim muito mais perto da gente do que, sei lá, Frank Sinatra, Ray Connif.
Eu achava uma coisa muito perto, era uma coisa que tocava por isso...”. (Marta)
Interessante perceber como Marta vai rememorando sua juventude e como era ser jovem
na zona sul do Rio nos anos 60, curtindo a praia, o dia, a cidade. A Bossa Nova lhe fazia sentido
por isso, pelos elementos que ressaltava e que eram identificados com a sua experiência. O que
havia de mais interessante nisso tudo era o ideário trazido por aquelas canções, representado
através das imagens visuais que compunham. Essa relação se constituía em detrimento de seus
intérpretes. João Gilberto, com sua complexa elaboração timbrística e voz anasalada, era
considerando distante de tudo aquilo que a Bossa Nova parecia ser para ela. Seu timbre frio,
“seco”, segundo suas memórias, não lhe alcançava, não lhe era acolhedor, não lhe fazia sentido
em meio àquilo por ele cantado, isto sim completamente familiar.
Outro depoimento que evoca esta mesma música parece revelador.
“a Bossa Nova, ainda não tinha me pegado... aí eu escutei o “dia de luz, festa de sol e um barquinho a
deslizar (..) do mar”... já comecei a gostar... “tudo é verão, amor se faz num barquinho pelo mar”... E aí,
essas músicas me tocaram muito... eu achava alegre. Por exemplo, do João Gilberto, eu acho que, não sei
nem se é dele, mas eu acho que é dele, eu acho que era a Astrud que cantava, aquela, como é que é?
“Chega de saudade, a realidade é que”... apesar da dissonância do tom. E, eu curtia, comecei e curtir
terrivelmente Vinícius, Vinícius é maravilhoso, é indescritível, eu acho... ele e o Tom era uma coisa pra
mim. Músicas como “Mas pra que, pra que tanto céu, pra que tanto mar, pra que?”( ...) enfim, eram
músicas que eu curtia...” (Eliane)
Embora tenha admitido que não gostava de João Gilberto, considerando-o muito
hermético e sem comunicação com o ouvinte, Eliane associa ao intérprete as músicas que tanto
“curtia”, com tons felizes, com imagens ressaltadas da cidade e da alegria que ela percebia, se
identificava e guardava na memória. Indo além, ela associa músicas aparentemente tão diferentes
como O barquinho (otimista e alegre, onde a paisagem natural se associa com a felicidade) e
Inútil Paisagem, (uma canção triste, onde a beleza da paisagem se torna inútil diante da tristeza
relatada), numa narrativa em que ambas parecem ser alegres, pois na construção memorialística o
que se registrou com maior clareza foi o estado de alegria, embora a tristeza se faça presente,
188
mesmo que de outro modo, numa adolescência e juventude lembrada por Eliane que, em meio a
festas, namoros e estudos, atividades comuns à vida juvenil, são pontuados também momentos
conturbados, como os da prisão do pai militar, e as perturbações familiares decorrentes de tudo
isso. As dificuldades da vida vivida estão presentes, mas o que se destaca com maior frequência é
a harmonia da vida na juventude articulada à música também lembrada como feliz.
No entanto, a interpretação da mesma música por Maysa, no ano de 1963, com bastante
sucesso e repercussão à época, provoca outras sensações sonoras. Mais ligada ao samba-canção –
assim como Sylvinha Telles – Maysa possuía um timbre que emprestava a O barquinho de
maneira diferente. Uma sonoridade mais densa, sensual, áspera até, provocando uma espécie de
aproximação entre intérprete e ouvinte, pondo cores mais quentes e fortes a este quadro da
natureza.. Maysa era reconhecida como uma mulher triste, deprimida, uma cantante cujo timbre
expressava esta dor, marcada por uma vida pessoal conturbada (o que era público) e que se
articulava às canções “dor de cotovelo” tão comuns a época.
Podemos lembrar das considerações feitas por Roland Barthes sobre o contato entre a
língua e a música, onde uma língua encontra uma voz, o “grão da voz”58, assumindo uma postura
dupla: a de ser língua e a de ser música. Aquele lado abstrato prazeroso, agradável, em que a voz
do cantor é individual, fazendo com que se ouça um corpo que, desconhecido seu nome ou sua
personalidade, é um corpo destituído de materialidade, mas transporta para a simbologia
expressiva da materialidade de um corpo falando, na “volúpia de sons-significantes”, fazendo
brotar o gozo que chega até o ouvinte.
O sucesso de uma performance vocal e gestual mais densa e associada à canções tristes
em músicas edificadas na memória como alegres, faz emergir sensações diferentes e até
contraditórias nas memórias das canções, constituindo um rico processo de descoberta da
complexidade do ato memorioso. Embora os compositores declarassem e ainda hoje declarem a
Bossa Nova e O barquinho, em particular, como símbolo de alegria e luminosidade que o estilo
queria significar, a escuta parece evocar sentidos outros não necessariamente correspondentes às
intencionalidades da autoria. Talvez muitos ouvintes escutassem esta música e sentissem outras
emoções, não tão alegres assim, pois este mesmo barquinho no sol está, também, deslizando num
mar à deriva, sem rumo, solitário, no fim da tarde, talvez esperando um dia seguinte melhor.
58
Roland BARTHES, O grão da voz. In: O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III, passim.
189
Tomando-se esta afirmação como procedente não é à toa que a performance vocal, gestual e
comportamental de Maysa agradasse mais do que a forma “seca” de João Gilberto.
Embora não faça parte do universo de pesquisa os ouvintes de São Paulo, importante
registrar outras memórias relativas à esta mesma canção. Como já foi dito no capítulo 1, a Bossa
Nova teve grande repercussão em São Paulo a partir de 1959, com a divulgação promovida pelo
DJ Pica-pau, o radialista Walter Silva, o que levou muitos ouvintes de classes sociais variadas e
moradores de diferentes regiões da cidade a ouvirem canções da Bossa Nova. A paulista Vania,
com 18 nos em 1963, moradora da zona norte de São Paulo, como até hoje e na época empregada
numa fábrica de espelhos, oferece ricos elementos pra se pensar na escuta e suas emoções em
meio ao trabalho.
“a gente não falava Bossa Nova, mas sim a ‘nova bossa’ ... porque tudo que era novo era a nova bossa, era
o contrário, a gente usava bastante este termo, entre nós. Nos trabalhávamos ali em 7 mulheres... e quando
ia tocar ... o ritual de ouvir O barquinho, que mais mexia com a gente era à tarde, a gente até ouvia
durante o dia, mas nunca era igual à ouvir à tarde, não sei se era pela hora, ou pelo serviço que se fazia
naquela hora, pois era a hora de se queimar o espelho, mas cada uma largava o que tava fazendo e ia prá
perto do rádio... era um lugar grande e um rádio de madeira e só duas ou três pessoas ficavam bem
próximas ao rádio, as outras ficavam longe .... e eu deixava tudo o que tava fazendo ... nessa época eu era
contadora da empresa e largava tudo.....a gente ia prá perto do rádio, aumentava o radio e se fazia silencio
total...só se voltava a trabalhar depois...lembro do vestido verde que eu estava usando... que era o mesmo
que eu tinha usado dias antes, quando sai com meu namorado(...) uma vez que a gente tava ouvindo e as
meninas estavam passando o fogo, passava-se uma tocha de fogo feita na ponta de um ferro, e passava-se
assim.... [faz o gesto] quando elas passavam assim, o mar lembrava aquela tocha de fogo passando..... o
mar e o fogo, a gente associava.... quando terminava eu e a Lucia, a gente falava - Eu pensei a mesma coisa
que você,- essa tocha de fogo lembrando o mar - Não era em linha reta, elas não passavam a tocha com a
mão durinha, era leve, parecia um onda, fazia a gente lembrar muito do mar. Um pingo que caía e ficava
mais escuro, aquilo representava o barquinho e ficava ondulado... nossa a gente lembrava muito... era tão
nítido aquilo que parecia que a musica falava dentro da gente [se emociona]
Ela conta que telefonavam para a rádio durante o trabalho, pedindo para tocar esta música,
que tinha de estar sempre entre “10 mais”. Vania afirma tantas vezes seu desagrado em relação
aJoão Gilberto, considerado “seco, cáustico, frio, distante”. Maysa, ao contrário, agradava e era
ouvida repetidamente todos os dias, numa espécie de ritual, em que o ritmo mecânico, racional e
burocrático da fábrica entrava numa outra temporalidade, instaurando uma escuta silenciosa,
aberta à imaginação, à elaboração de imagens e sentidos. Esta situação era potencializada pela
associação entre a hora do dia que mais lhe comovia – o fim da tarde – com a tardinha que caía
na canção. Este estado de melancolia evocado por Vania e pela canção dá a sensação de uma
espera sempre renovada pelo novo dia para se ouvir novamente, na esperança de uma escuta já
190
em outra situação. Após o ritual da escuta, voltava, em seguida ao ritmo do trabalho, só que num
tempo que já se ritualizara e parecia ser reversível.
Parece que mesmo a voz de Maysa era, para a memorialista, também seca, áspera, doída
até, mas para aquelas moças isto fazia sentido, estabelecendo uma identificação com os
sofrimentos. Vania lembra em várias passagens que esta música expressava o momento difícil
pelo qual passava em sua vida sentimental. É importante notar como na sua construção memorial
presente, isso ainda é muito forte, trazendo à tona os sofrimentos amorosos e as desilusões de um
ideal de amor romântico. Em vários outros depoimentos de mulheres, o amor, o primeiro
namorado, o romantismo são evocados, bem como detalhes sobre as roupas usadas, os adereços,
e todos os outros elementos que fazem parte do mundo feminino. Embora esteja aí presente a
vontade de lembrar, buscando recordar a Bossa Nova, o componente involuntário se coloca na
imagem do vestido verde – o mesmo usado dias antes com o namorado – , que ao aparecer
sorrateiramente em meio às lembranças da música, causa-lhe uma grande pausa, um silêncio que
parece revelador.
Nas suas lembranças tão imagéticas, com as cores e os formatos da tocha queimando, o
desenho do fogo ondulado no espelho, a disposição dos móveis na sala da fábrica, pareciam
evocar nela as imagens do mar, do céu, do sol todos tão distantes do local onde se encontrava.
Um mar, assim, contrastado com o fogo e ao mesmo tempo à ele associado, como fluidos
obscuros, atraentes e amedrontadores, objetos dos devaneios, das sensações, como sugere
Bachelard59. Um barquinho representando o imponderável, o insondável, o acaso, o imprevisível,
o que está à deriva, furando o que é contínuo, a repetição da vida mecânica.
Um outro aspecto que aqui se explicitará como componente da análise musical é a
harmonia, seu aspecto mais complexo, que apareceu na música ocidental apenas no século XI.
Ela se refere à combinação de sons simultâneos dentro da música, a combinação de notas em
contraposição à sucessão de notas que é a melodia. A harmonia compõe uma idéia de
profundidade na música (como se verá também com a amplitude ou volume do som), como uma
terceira dimensão da a imagem mental. Funciona como a perspectiva de um quadro, podendo ser
mera acompanhante da melodia ou, em outro extremo, sua cúmplice, sustentando e guiando a
mesma, dando sua forma, conduzindo os desenhos de suas curvas, como é o caso da Bossa Nova.
Duas ou mais notas soando juntas, simultaneamente, acabam por criar o intervalo harmônico de
59
Gaston BACHELARD, A chama de uma vela, passim.
191
uma música, vindo de duas ou mais vozes num coral, ou de instrumentos tocando juntos notas
diferentes, ou ainda de um mesmo instrumento – com capacidade de soar mais de uma nota
simultaneamente (piano, violão, etc).60
A harmonia tem sua origem na música ocidental com os cantos dos monges na Idade
Média. Ali, cantava-se sempre uma sucessão de notas, em uníssono, separadas apenas por linhas
vocais – partes – idênticas de todas as maneiras, exceto por serem separadas por vários graus,
divididas em “meia oitava” e formando intervalos considerados perfeitos, consoantes,
esquecendo-se do trítono (o intervalo de três tons que divide a oitava ao meio) que causava
estranhamento, visto como ruído, dissonância61. Mas a partir do século XI, as partes individuais
deste modo de cantar – chamado organum – começaram a seguir por trajetória diferentes, a parte
superior por caminhos mais ornamentados no agudo e a parte inferior em direções contrárias ao
agudo, onde as vozes saíam por vezes de sincronia e se encontravam no decorrer da música em
uníssono. Nascia assim a polifonia, com várias linhas independentes cantadas simultaneamente
ou com linhas idênticas cantadas com uma separação de vários compassos, quando a primeira voz
já estava no quinto compasso ou noutro, a segunda voz começava o primeiro compasso. Um
exemplo disso pode ser visto na famosa gravação da canção Pela luz dos olhos teus, com tom
Jobim e Miúcha cantando uma mesma linha melódica em turnos distintos.
Esta polifonia medieval lançou as bases para o sistema harmônico ocidental do período
clássico, ajudada pelo desenvolvimento dos órgãos nas igrejas, que sustentavam notas diferentes
para se combinarem com as vozes. Isso permitia a concepção da música não apenas como vozes
em movimento, mas com notas sobrepostas. Desta maneira, se desenvolvem os acordes, as notas
agrupadas em três ou mais, soando juntas, numa música com forma vertical. Isso aparece na
história ocidental em concomitância à modernidade, como uma linguagem capaz de expressar o
mundo através da profundidade e do movimento, da perspectiva e da trama dialética.62 No
entanto, estas notas soando simultaneamente, não são quaisquer notas aleatórias, mas compostas
em intervalos definidos entre si pelas convenções musicais da harmonia, podendo ser os mais
simples, como as tríades que são três notas com dois intervalos de terça entre elas (como por
exemplo do-mi-sol), formadas pelo primeiro grau da escala, que será a tônica da música, o quarto
grau da escala, que será a subdominante e o quinto grau, que será a dominante, até as
60
Lúcia SANTAELLA, Matrizes da linguagem e pensamento.
José Miguel WISNIK, O som e o sentido.
62
Idem.
61
192
combinações mais complexas. Isso formaa tonalidade da música, o centro tonal com três notas
que dará a base para toda a composição. Foi a partir desse tipo de acorde que se desenvolveu a
música ocidental até o final do século XIX, quando compositores passaram a buscar novas
fórmulas para a estruturação dos acordes.63
Com o desenvolvimento dos instrumentos da música de concerto e das orquestras de
sinfonia no século XIX, as harmonias evoluíram ainda mais. Há que se compreender aqui uma
outra propriedade da harmonia musical, que é a forma de construção de progressão dos acordes
(passagem de um a outro), dividindo-se entre consonância e dissonância. A consonância é um
combinação de notas cujos intervalos resultam consoantes, estando com notas próximas ao centro
tonal da música, o acorde que a origina, sugerindo uma sensação de repouso, organização e
relaxamento. Já a dissonância, ocorre quando surge um intervalo não previsto entre as notas e
será mais dissonante quanto mais intervalos desse tipo houver no acorde, sugerindo a idéia de
tensão dinâmica que faz a música se movimentar com notas distantes do centro tonal. A música
se faz assim neste jogo entre tensão e repouso, com a dissonância criando a atividade e
incompletude e a consonância levando ao preenchimento e repouso. No entanto, o sentido de
consonância e dissonância é cultural e histórico, havendo sempre um alargamento no sentido
harmônico de modo a haver maior tolerância às notas diferentes e distantes dos centros
harmônicos.
Se na estruturação harmônica tradicional, a idéia é sempre obter um sucessão de acordes
que se movimente em progressões ritmadas, em tempos específicos da música e com poucas
alterações de notas, dentro do acorde inicial que é o centro tonal da música, as inovações de
compositores como Wagner ou Mahler buscavam transições harmônicas alongadas, prolongando
as resoluções dos acordes durante atos inteiros de suas óperas em modulações de um tom para
outro, sugerindo apenas leves notas do centro tonal da música. Mas foi com Claude Debussy que
a pesquisa harmônica da música ocidental tomou outros caminhos. Inspirado também pela música
oriental, Debussy começou a elaborar uma música que fugia da arquitetura tonal habitual, se
afastando dos acordes que gravitassem em torno dos centros tonais, passando a usar a escala de
seis graus (e não mais de cinco), com intervalo de segunda maior, evitando o quarto e o quinto
tom da escala, decisivos harmonicamente para a tonalidade tradicional e acrescentando notas
como sétimas, notas, décimas segundas, etc. A partir dele, foi desenvolvida toda a inovação
63
Robert JOURDAIN, Música, cérebro e êxtase.
193
harmônica na música ocidental do século XX, desde a aventura neo-clássica de Stravinsky (que
tinha liberdade harmônica, mas limitando outros aspectos da música às formas tradicionais) até as
abordagens radicais que descartaram por completo a tonalidade clássica em favor de um novo
sistema harmônico, o dodecafonismo de Schoenberg.64
Segundo José Estevan Gava65, a Bossa Nova, se caracteriza por uma harmonia que usa
intervalos “raros”, novidade trazida do jazz e da música impressionista francesa, mais
especificamente com Debussy, transcendendo os acordes básicos da harmonia tradicional
presentes na música popular brasileira. Essa composição é resultado de pesquisas e do uso
intenso de acordes alterados, uma tendência ao alargamento tonal e às modulações, mudanças de
tonalidade dentro da canção, com recursos de inclusão de notas estranhas aos acordes como
nonas, décimas primeiras, décimas terceiras, por exemplo. Trazendo novos elementos para esta
discussão, Brasil Rocha Brito ressaltava já em 1960, a conciliação, na Bossa Nova, de modos
maiores e menores na harmonia, notas de regiões maiores e menores do centro tonal se
interpenetrando, o que se explicita ainda mais porque se fazer acompanhar pelas notas da
melodia, que incrementam a complexidade harmônica. A melodia auxilia na sustentação das
dissonâncias por um longo período de tempo, igual ou superior ao da resolução que é muitas
vezes utilizada com diminuto valor de tempo, dando lugar ao início de um novo fraseado.66
Juntamente com a harmonia, como indício de uma terceira dimensão há que se considerar
os arranjos e a amplitude, na formação de uma textura musical. A amplitude também ajuda a
constituir a idéia de perspectiva e profundidade, através dos volumes, dos sons fortes ou fracos
diferenciados nos temas, ressaltando o que está em primeiro plano ou ao fundo, compondo a
dinâmica musical. A Bossa Nova, ao primar pela economia e discrição na interpretação vocal do
cantor equaliza os arranjos instrumentais com essa voz, colocando-os na mesma amplitude. O
mesmo se dava durante a mixagem. Quanto aos arranjos, vale destacar alguns aspectos. Em geral
as músicas populares da época eram compostas para voz e violão e ou voz e piano, com a
orquestração surgindo posteriormente, realizada por outra pessoa que não o autor. Essas
orquestras entravam acompanhando o intérprete de um modo discreto, evitando estabelecer
qualquer tipo de contraste com a voz do cantante. Na Bossa Nova isto se intensifica, onde as
64
Júlio MEDAGLIA, Música Impopular.
José Estevam GAVA, A linguagem harmônica da Bossa Nova. São Paulo, 1994. Dissertação (Mestrado em Artes Musicologia). Unesp/SP.
66
Brasil Rocha BRITTO, Bossa Nova. In: Augusto de CAMPOS, Balanço da Bossa e outras bossas.
65
194
canções em geral possuíam a característica de integrar melodia, harmonia, ritmo, contraponto,
com os arranjos na realização da obra e na sua gravação, de maneira a não permitir a prevalência
de qualquer um destes elementos sobre os demais, originando uma não hegemonia entre os
elementos da canção, dando igual atenção e importância à todos.
Colocadas as características e os elementos principais que compõem uma canção (ritmo,
melodia, harmonia, timbre, amplitude, etc.), é possível compreender, de um modo mais claro, a
sua ligação com as imagens mentais visuais, com a sensação de espacialidade suscitada pela
música no ouvinte. A escuta parece acionar em nossa mente, a elaboração de imagens mentais
que são auditivas e também visuais, em que sons sugerem cores, profundidades, alturas,
grafismos em vertical, horizontal, perspectiva, elaborando um quadro imagético que interage com
os sons. Deve-se levar em conta que da mesma forma que ao olho é mais fácil perceber as
dimensões espaciais de altura e largura se ajustando aos padrões da retina do que perceber a
profundidade ou terceira dimensão, assim também a direção do tempo musical e a altura de seu
diapasão são mais facilmente percebidas pela cóclea e pelo tronco do cérebro – facilitando a
memorização e a identificação de melodias e ritmos –, do que a harmonia, dos acordes e das
tonalidades.67
Mas, para além das características da linguagem musical e de seus elementos estruturais,
importa aqui entender como se dava a sua performance, a interpretação do artista no ato do
cantar, o modo como isto era percebido, sentido e apreciado ou não pelos ouvintes. Compreendese que a escuta da Bossa Nova se dava num ambiente sônico onde conviviam sons diversos, isto
partindo do pressuposto de que a escuta das canções e todos os seus aspectos técnicos e
estruturais de sua linguagem, devem ser entendidos como estando no meio de sons do cotidiano.
As músicas chegavam aos ouvintes através do rádio, do disco, da TV ou até pelo microfone,
configurando uma situação mediada pela técnica que, por si, impõe e contém seus próprios
ruídos. Além desses ruídos, outros se faziam presentes como os sons da cidade, das tarefas da
casa, das conversas, do mar, entre tantos outros. A paisagem sonora do cotidiano destes ouvinte é
uma paisagem formada por sons da vida e também por sons musicais, compondo esta escuta que
se pretende interpretar. Paisagem sonora e linguagem musical se interpenetram e compõem o
universo sônico daqueles que escutavam a Bossa Nova nos anos 50 e 60.
67
Robert JOURDAIN, Música, cérebro e êxtase.
195
“o primeiro namorado que eu tive, fora besteirinha de infância, eu estava indo para um baile de formatura
com a minha mãe... e ele arranjou o carro do pai dele e nós fomos pro baile, eu sentada na frente, mamãe
atrás com duas amigas minhas, não... uma amiga minha e a mamãe e eu ouvi no rádio do carro pela
primeira vez “Chega de saudade”, da Elizete Cardoso, então isso foi marcado assim.. o primeiro baile que
eu fui, baile de vestido de baile... uma música diferente, que depois tocou também no baile e passou a ser
um símbolo assim, de começo de vida, de namoro de verão, de juventude... então a Bossa Nova
acompanhou, vamos dizer... não os melhores anos da minha vida, porque todos eles são bons ou ruins, mas
significava tudo o que é sol , é sal, é chuva, é namoro, é luar, é romance, é aventura, é liberdade, é paixão,
é romantismo, é a coisa romântica que pra mim transformou o Brasil...(...) Aí que eu ouvi “Chega de
tristeza” [sic] cantada pela Elizete, eu senti que algo diferente tava acontecendo na minha vida ... uma
batida diferente... Olha, era tão diferente tudo naquele dia que eu não sei... nessa época eu tinha 18 anos.”
(Glória)
Glória lembra-se de ter ouvido Bossa Nova pela primeira vez no rádio. Ela recorda de
Chega de Saudade cantada por Elizete Cardoso com acompanhamento de João Gilberto que, ao
violão, já introduzia as inovações harmônicas e rítmicas que o tornariam singular e famoso. Esta
gravação, de abril de 1958, fazia parte de um LP lançado em maio do mesmo ano, que trazia
parcerias de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, com arranjos de Tom Jobim. João Gilberto está
presente em apenas duas faixas: Chega de Saudade e Outra vez. Lançado pelo selo “alternativo”
Festa, o LP fez pouco sucesso, com tiragem de apenas duas mil cópias. No entanto, acabou sendo
reconhecido como o marco histórico do “nascimento da Bossa Nova” ainda que somente algum
tempo depois, isto porque Elizete ainda era considerada uma intérprete tradicional do sambacanção e muitas das canções ali interpretadas ainda continham letras com forte ligação ao ideário
do samba-canção como Modinha, O que tinha de ser e Serenata do Adeus, todas com forte apelo
emocional, poesia rebuscada e alto teor de sofrimento. Somente alguns meses mais tarde, João
Gilberto gravaria seu 78 rotações, onde dava a Chega de Saudade e Bim Bom, sua própria
interpretação cantando de maneira diferenciada, provocando um real impacto nos meios de
comunicação, na crítica musical e no público.
No entanto, na construção da memória de Glória, foi Chega de Saudade cantada por
Elizete que lhe causou impacto como representante da nova música, uma música associada a
alegria, ao início da juventude, às festas, aos namoros, à vida na praia. No movimento da
memória de Gloria, “tudo naquele dia era tão diferente”. Os aspectos de sua vida que entrava
numa outra fase – pelo menos na memória de hoje – se misturam aos elementos musicais que
ouvia, mesmo numa gravação citada que não apresentava ainda aspectos totalmente inovadores.
Mas para a memorialista, a batida diferente já estava colocada ali, pois no trabalho de
rememoração, a música lhe aciona lembranças da vida, da experiência do debutar -na juventude,
196
com o primeiro namorado, o primeiro baile, o primeiro vestido, iniciando a vida de amores,
romance, paixão, liberdade. A Bossa Nova, para ela, representa tudo isso.
Esquecimentos ou confusões em relação a quem era o intérprete da canção ou ainda a
troca da expressão “chega de saudade” por “chega de tristeza”, põe à vista o involuntário, que
nos interpela, surgindo sem que nos demos conta do porquê. A tamanha alegria construída na
rememoração de Gloria, para quem aquela época significava tudo o que era “sol, mar, amor,
liberdade” contraria a fixação, no presente, de “tristeza” ao invés de “saudade” e também de
Elizete Cardoso, no lugar de João Gilberto. Embora a memória procure dar um sentido à
juventude como momento feliz, fica latente a melancolia, principalmente quando, em outras
passagens de seu depoimento, ela nos conta sobre a grave doença que teve na juventude, uma
hepatite rara que a deixou internada por quase um ano, e mais outro ano de convalescência em
casa, sob austeros cuidados médicos, sem poder sair, dançar, trabalhar, estudar.
Pode ser ressaltado ainda, o fato de que a escuta da canção citada se deu em meio aos
ruídos que a circundavam, como o barulho das conversas no carro, e no baile, das outras músicas
também tocadas ali, os sentimentos envolvidos neste dia, tudo isso sendo recordado como
acontecimentos importantes da vida. Não foi uma escuta solitária, atenta aos pormenores
estruturais da canção, com seu ritmo, melodia, harmonia, mas uma escuta em meio à vida,
permeada de emoções e descobertas. Na escuta de Glória, se faz importante para articulação de
suas memórias hoje, os elementos circunstanciais que a envolviam, os aspectos emocionais que
influíram na forma como elaborou esta canção em sua percepção e na forma como é lembrada
hoje. Glória, hoje uma psicanalista, tem consciência das emoções contidas nas lembranças e no
modo como se percebe o mundo, tendo compreendido, desde os contatos iniciais com a
pesquisadora que, o que se buscava era a experiência dos ouvintes, as vidas vividas atravessadas
pela Bossa Nova, e não uma explicação sobre o movimento, embora na memória involuntária isto
tivesse surgido diversas vezes. Uma paisagem sonora, assim, evocada nas lembranças por Gloria,
onde o sons da canção se misturam aos sons das conversas, dos namoros, da ambiência do baile,
impedindo uma escuta atenta e especializada, compondo imagens mentais visuais e sonoras em
que harmonias, melodias, ritmos da canção e do cotidiano, ritmos orgânicos e do tempo da vida
parecem estar se interpenetrando. Mais ainda, esta escuta se dava com os sons do rádio, que à
esta época e ainda num rádio de carro deveria produzir muitos chiados, indicando uma baixa
fidelidade sonora. Entretanto, era um aparelho que possuía um valor incomparável nas
197
experiências cotidianas nos anos 50, revelando formas de se ouvir e de se dialogar com o que se
escutava.
Mônica Nunes aponta para a importância de se compreender a dimensão que a sonoridade
ocupa na vida do ser humano, pois é a partir das propriedades e particularidades do som que se
funda a relação dos indivíduos com as vozes e os objetos sonoros que vêm do rádio. Este, como
veículo de comunicação e ser da cultura, parece não exercer apenas a função de informar com
rapidez e instantaneidade, tampouco se reduzir ao entretenimento, mas parece também ressaltar a
existência de um outro universo significante, moldado a partir da voz, do som e do ouvir, onde
vozes e sons constróem textualidades orais que veiculam signos míticos aptos a ritualizar a escuta
radiofônica. Por meio disso, o rádio parece ter a função de atenuador das perdas trazidas pelo
tempo, pela modernidade, pela aceleração da história, permitindo aos indivíduos “modernos”, o
retorno ao presente absoluto, com a ritualização do calendário e uma repetição sempre renovada a
cada dia..68
“nós tínhamos, por exemplo, uma amiga que morava em Copacabana, Maria Lúcia Peixoto, foi minha
colega de faculdade. A Maria Lúcia recebia na casa dela o Luís Carlos Vinhas, tocava piano na casa da
Maria Lúcia de graça, o Normando que você deve conhecer pelos seus estudos. Normando tá cantando em
Paris, morando em Paris há muito tempo. Mas Normando também foi um desses precursores da Bossa
Nova. Então Normando cantava lá na casa da Maria Lúcia. Quem mais? Luís Carlos Vinhas,
Normando...Roberto Menescal! Imagina, como é que vou esquecer do Menescal. Com esses todos, a gente
convivia assim... eu ia nessas reuniões todas, e às vezes não tinha nem reunião. No domingo ela me ligava:Maria Amélia, olha, Normando hoje vem cantar aqui - Aí o Menescal ia pro piano, o Vinhas, quer dizer,
olha, é uma história...Quando você me falou pelo telefone [sobre o depoimento], eu disse: - É...realmente eu
acho que eu tenho algo pra contar - Porque é um privilégio! Você viver uma época dessa e ter
contato...Deixa estar que aos 15 anos eu já tinha tido contato com Carlinhos Lira, que também, pra mim, é
um dos maiores se não o maior. Eu ouvi nos jardins do Clube da Aeronáutica, ‘Lobo Bobo’ e ‘Maria
Ninguém’ cantado por ele. Entendeu ? Lá nos jardins. Tava muito barulhenta a música lá no salão e ele
disse: - Quer ver as músicas que eu faço? Ce quer ver? Ele tinha 23 anos, né. Aí nós nos afastamos um
pouquinho ali no jardim do Clube da Aeronáutica e ele cantou ‘Maria Ninguém’”. (Maria Amélia)
Temos assim, duas diferentes lembranças de escutas da Bossa Nova. Glória, cuja primeira
audição é mediada pela técnica das ondas hertzianas, e Maria Amélia que se recorda de conhecer
a Bossa Nova, por meio de seus músicos, no contato direto com os mesmos, sem mediações
tecnológicas, em locais mais privados. Diferentemente da escuta radiofônica, temos a lembrança
de escuta de Maria Amélia, que se dava nas reuniões com os músicos em casa de amigos ou nos
clubes. Essa proximidade, tanto física quanto sentimental, com os intérpretes reverberam nesta
percepção e na lembrança da mesma. O músico, o intérprete parece ser alguém de suas relações,
68
Mônica R. Ferrari NUNES, O mito no rádio: a voz e os signos de renovação periódica.
198
como um colega de faculdade, o namorado de uma amiga, tornando o ambiente mais informal e a
música ouvida mais próxima, mais ligada ao seu cotidiano, aos seus afetos e sentimentos.
Importante atentar assim, para as especificidades desta performance ao vivo. Nela, todo o
universo, a ambiência, a atmosfera, o todo circunstancial faz parte de uma obra. Não se pode
apreendê-la apenas em seu nível semântico, verbal, mas em sua completude, constituída como
forma – que não é fixa nem estável, mas uma “forma-força” –, constituindo um dinamismo que
só se realiza na performance, seu elemento constituinte. Os elementos da canção, sua harmonia,
melodia, ritmo, timbre do cantor, etc, só fazem sentido juntos numa situação de performance,
onde conjugam-se o tempo, o lugar, a finalidade da transmissão, a ação do locutor, a resposta do
público. Parece assim, que as regras (sempre dinâmicas) da performance importam mais que as
regras textuais. 69
As maneiras de escutar, perceber e compreender esta música também serão diferentes.
Maria Amélia se recorda ainda que ouvia no rádio muito mais Angela Maria e outros cantores da
fase áurea do rádio, do que Bossa Nova. Mas na sua escuta da Bossa Nova, interpunha-se as
emoções resultantes da proximidade com o intérprete. Nas suas memórias desta escuta, se
percebe uma tentativa em rememorar a Bossa Nova voluntariamente, naquilo que ela participou
do movimento, buscando por seu passado, num esforço consciente e voluntário de lembrar de
algo a ser dito à pesquisadora. Isto a levou a selecionar aspectos reveladores de sua proximidade
com os músicos e autores, os “verdadeiros” participantes da Bossa Nova, se esquecendo, ela
própria, que também era uma co-autora, participante, ouvinte. Um esquecimento deflagrador da
idéia de que a autoria é a fonte mais autorizada a falar.
Nesta escuta da Bossa Nova lembrada por Maria Amélia, o ambiente afeta a percepção,
assim como os ruídos externos à música que aqui parecem ser menores do que os descritos por
Glória. Em reuniões nas casas ou apartamentos, os ruídos, os sons externos talvez se impusessem
menos, uma vez que as reuniões aconteciam em torno da música, era ela o mote para os
encontros, onde também se conformavam várias formas de relacionamento como longas
conversas e namoros. Outros poderiam ser os ruídos desta paisagem sonora, talvez internos às
próprias músicas, algo soando estranho, diferente, inovador, dissonante, des-ritmado, cantado em
volume baixo demais – características todas da Bossa Nova.
69
Paul ZUMTHOR, Op.cit.
199
Segundo Zumthor, performance implica em competência, estando ligada ao conhecimento
que transmite, afetando-o, modificando a mensagem. O intérprete assim tem papel fundamental,
pois comunicando, marca um saber que implica e age sobre as condutas, configurando valores
encarnados num corpo vivo, estabelecendo um tipo de cumplicidade entre os atores envolvidos.
Se faz presente aqui, a idéia de eficácia deste intérprete, uma vez que performance implica
também em reconhecimento, a realização de um material reconhecido como tal pelos receptores,
ressaltando um intérprete que assume sua responsabilidade na mensagem emitida, sua marca.
Enfim, reitera uma noção de “saber fazer” e também de “saber ser”70. A performance se encontra
atada a um contexto cultural e situacional em que a ação se desenvolve num tempo e num lugar.
Liga-se também a um corpo e à sua competência como também a um corpo que recebe, que pulsa
e emana calor. Isto, por se tratar de um drama à três: interprete, texto e ouvinte, em que este
último é co-autor da obra.
Não foram poucos os depoentes que admitiram em suas memórias que não gostavam de
João Gilberto, com seu timbre e forma de cantar e tocar violão, achavam-no estranho, o que no
presente adquire ares de algo muito hermético, elaborado demais, feito para ser entendido apenas
por ele. Claro que entra aí a distância temporal, quando a Bossa Nova e ele já foram consagrados
na história e na memória oficial como símbolos de qualidade musical, de inovação. O que estas
memórias permitem perceber é que aquilo que hoje é assumido como algo que não se gosta
apenas de maneira muito particular e declarada até com alguma reserva, poderia ser à época algo
considerado ruim, rechaçado, rejeitado, algo desagradável aos ouvidos e às sensibilidades.
Entram em cena assim, para se compreender a memória das escutas, aspectos relacionados
às percepções ligadas aos cinco sentidos humanos. A performance da oralidade mediatizada tem
seus aspectos alterados com a abolição da presença física de quem traz a voz. A mediação
eletrônica fixa a voz, retira-a do puro presente cronológico, tornando essa voz transmitida
reiterável indefinidamente, embora de maneira abstrata. Zumthor argumenta que apesar da mídia
ter retirado a corporeidade da performance, produzindo uma espécie de desencarnação, este corpo
não desaparece totalmente, estando os cinco sentidos ainda presentes, embora de outra forma.
Com a mediatização, a performance ou a vocalidade são mantidas ainda que a partir de um corpo
transformado.71
70
71
Paul ZUMTHOR, Performance, recepção, leitura.
Paul ZUMTHOR, Ibidem.
200
Embora os cinco sentidos sejam importantes na percepção do mundo, na maneira como
nos relacionamos com o mundo exterior, é preciso destacar que entre os sentidos humanos, a
visão e a audição, e seus órgãos correspondentes, como os olhos e os ouvidos, estão muito mais
codificados que os outros. Por estarem mais diretamente conectados ao cérebros, podem
estabelecer sistemas de linguagens e de pensamento e também de memórias. Tato, olfato e
paladar, ao necessitarem de outros aparatos para se conectarem ao cérebro e assim às sensações,
buscam apoio em outros códigos, não gerando, por si próprios, linguagens ou memórias72. A
questão que aqui se levanta é como esta experiência se concretizava nos anos 50.
Importante verificar, na lembrança dos próprios bossanovistas, jovens que eram nos anos
50 e 60, traços desta formação cultural que passava pelo cinema, pelo consumo de elementos
culturais advindos da cinematografia norte-americana, traduzido em imagens e sons.
“era tudo muito reprimido e você vivia muito era o que ? Era o cinema americano, que impunha todos os
conceitos. Você tinha uns padrões assim: Sinatra, aquele chapéu, aquele cigarro, aquele copo de uísque.
Então as pessoas viviam muito esse clima, e ficava ... dava aquela olhada, e tal. E aquilo demorava dias
pra falar com a pessoa. E eu me lembro que , eu devia estar no mesmo clima, todo mundo vivia esse clima,
e eu tava numa festa no Leblon, e tinha uma moça, que depois ficou muito amiga minha, que tava com o
Sérgio Ricardo conversando, e eu tava fazendo aquele tipo desprotegido... Aí, daqui a pouco, a moça me
deu uma olhada assim ... aí acabou de falar com o Sérgio e veio na minha direção. Eu já fiquei espantado,
porque era tudo que eu queria, mas fiquei espantado, entende? Achava que eu é que tinha que ir na direção
dela. Ela sentou e : “Tudo bem?” E eu : “Tudo bem.” E ela: “O que que você quer comigo?” Aí eu quase
caí da cadeira. Ela falou: “Claro que quer, você tá me olhando há meia hora, tá fazendo caras e bocas...”
Quer dizer, foi a primeira pessoa já com a cabeça diferente, dizendo: “vamos conversar, vamos quebrar
73
isso...” (Roberto Menescal )
Um consumo cultural entre elementos sonoros e visuais com as músicas e o cinema, onde
os modelos culturais que se evidenciavam na cultura de massas e no cotidiano, circulavam
socialmente contribuindo para a formação dos imaginários sociais. O cinema, com o modelo de
masculinidade repleto de charme e glamour com Frank Sinatra, e tantos outros personagens
compondo a “mitologia moderna”74 dos anos 50, compondo as cores da construção de um
imaginário de mundo ideal (conjugado ao avanço tecnológico dos anos pós-segunda guerra),
“acima dos conflitos terrenos, voltados para o amor, a fantasia, o deleite, projetados nas telas dos
cinemas como extensão do imaginário do povo, sob um clima musical catalisador das emoções
eufóricas”75. Igualmente as moças, inspiradas na promoção dos valores femininos, buscavam
72
Cf. Lúcia SANTAELLA, Matrizes da linguagem e pensamento.
Depoimento concedido em 25/01/96, no Rio de Janeiro.
74
Edgar MORIN, Cultura de massas no século XX : o espírito do tempo I - Neurose.
75
Luiz TATIT, O Cancionista: composição de canções no Brasil.
73
201
padrões comportamentais inovadores que supunham ousadia e liberalidade. A Bossa Nova, por
sua vez, em suas canções e na memória de seus participantes, se correspondia e se deixava
penetrar com e por estes imaginários, revelando nuanças de uma visão de mundo otimista e
“moderna”. Por outro lado, esta própria idéia de modernidade, ressaltada no depoimento,
contrasta com elementos comportamentais referentes a um imaginário mais conservador, onde o
comportamento de uma mulher mais liberalizada, que toma a iniciativa diante dos
relacionamentos amorosos, se não era tido como errado, ou digno de reprovação, pelo menos
“assustava”. Na trama da memória, o retido é a modernidade, mas nos seus interditos, nas suas
entrelinhas, podemos identificar aspectos que entram em choque frente à mesma.
Recorrendo aos pressupostos mcluhanianos – que atestam que “o meio é a mensagem”76,
isto é, uma mensagem não se reduz ao conteúdo manifesto, mas ao contrário, comporta um outro,
latente que emana da própria natureza do medium que a transmite – não podemos negar as
particularidades ou especificidades das mídias. No caso das mídias sonoras, seu aparecimento
ocorre e se difunde na modernidade, num momento em que se opera uma separação entre os sons
ouvidos e as suas fontes originais, num corte livre do som e sua origem natural, a
“esquizofonia”77.
No entanto, há que pensar este corte, esta quebra, não por sua pretensa malignidade, mas
como parte de algo maior, a saber, o desenvolvimento de utensílios e ferramentas que o homem a
todo momento cria e recria para seu próprio uso, para auxiliá-lo nas tarefas mais diversas.
Utensílios , que em sua relação com o ser humano, são recriados, e modificados ao mesmo
tempo que alteram sensibilidades, percepções, maneiras de ver, ouvir, sentir o mundo. Segundo
Santaella78, as mídias sonoras e audiovisuais surgem como máquinas que funcionam como
extensões dos sentidos humanos – as máquinas sensórias – dotadas de uma inteligência sensível,
na medida em que corporificam um certo nível de conhecimento teórico sobre o funcionamento
do órgão por elas prolongados como o olho e o ouvido, por exemplo. Máquinas que são
cognitivas, tanto quanto os órgãos humanos e sua sensorialidade.
Nas culturas latino-americanas, segundo Martín-Barbero, o que se pode perceber, é que o
rádio exerceu o papel de promotor da “primeira modernidade”, fazendo a ponte entre uma cultura
oral, rural, tradicional e uma cultura de massas, urbana, industrial, introduzindo nesta última, a
76
Marshall MCLUHAN, Os meios de comunicação como extensões do homem.
Murray SCHAFER, O ouvido pensante.
78
Lúcia SANTAELLA, Cultura das mídias.
77
202
expressividade daquela, possibilitando a passagem da “racionalidade expressivo-simbólica à
racionalidade informativo-instrumental organizada pela modernidade”79. Enquanto na Europa
houve – muito claramente – uma passagem da hegemonia da cultura oral para uma cultura
escrita, por aqui esta cultura oral primordial foi sendo entrecortada pela tecnologia audiovisual.
Nesse processo, oralidade e imagem, escuta e olhar não se excluem. Dito isto, há que se
compreender as transformações dessa cultura a partir da articulação de todas estas matrizes,
perfazendo uma “segunda alfabetização” ou “oralidade secundária” latino-americana, passando
de uma cultura oral para uma cultura audiovisual, sem deixar de lado seus traços orais, vocais e
auditivos. Desta maneira, se relativiza o papel da imagem como totalizante, manipuladora e
absoluta, ainda mais porque a canção – forma de poesia oral – iria, nos anos 60, tomar a dianteira
no debate sobre a cultura, compondo um campo onde a música popular teria hegemonia.
Assim, é necessário indagar sobre a relação mantida entre alguns ouvintes da Bossa Nova
com os meios comunicacionais do momento: a TV, o rádio, o disco, os jornais, as revistas de
variedades repletas de imagens, publicidade, entre outros, buscando descobrir como, enfim,
caminhavam em meio a isso elaborando sua percepção do mundo.
“só vim pra zona sul quando já... na primeira adolescência. E o meu contato com a Bossa Nova foi durante
os anos 60. É...em meados dos anos 60, exatamente quando eu estava entrando na adolescência, tive o
contato não só com a Bossa Nova mas com toda a música que, que na época, enfim, fazia sucesso; música
dos Beatles, da Jovem Guarda, né, nós gostávamos disso tudo (....) nessa época de Beatles, Jovem Guarda e
etc, tomar uma garrafa de Coca-cola era um luxo, quer dizer, nós ainda não estávamos dominados
inteiramente pelo consumismo. Nós não éramos uma sociedade, uma sociedade de consumo, ainda.
Estávamos ingressando nesse mundo. Mas foi pela televisão que eu cheguei a Jovem Guarda. Pela
televisão, os programas da TV Record, se não me falha a memória, a turma da Jovem Guarda, né. Agora,
eu percebia que os meus amigos paulistanos e paulistas, eles eram muito mais influenciados pela Jovem
Guarda do que nós, aqui do Rio. Muito embora, o Roberto Carlos quando saiu do Espírito Santo, tivesse
vindo pra cá. Era da Tijuca também, da rua do Matoso. Ele, Erasmo Carlos e todo mundo. A gente chegou
a vê-los, né, e tudo. Garotos ainda, eu estudava ali perto, no colégio Lafayette... Mas foi pela televisão.
Beatles, Beatles, pelo cinema. O filme “Help” foi decisivo pra isso, provocou uma série de novidades. O
cinema, que era um sacrário, onde no máximo uma piadinha durante o filme de um gaiato pra todo mundo
rir(...) De repente, todo mundo dançava dentro do cinema. Eu vi o filme “Help” 16 vezes .... 16 vezes que
eu vi o filme “Help”! Era o filme ? Não, não era o filme. Era a farra. Quer dizer, eu estava indo a uma
festa quando eu ia ao cinema ver o “Help”, né. E os Beatles nos pegaram, a mim, eles pegaram dessa
forma. O Vinícius de Moraes, ele disse uma coisa...que ache genial. Ele falou assim: - Não, o Iê-iê-iê é
assim... é terapêutico. E era, era. A gente...o processo da carnavalização, da exorcização, os negócios do
demônio, a dança e coisa e tal (rindo)(...) Então os Beatles pelo cinema, Jovem Guarda pela televisão. Pelo
disco, Bossa Nova. Nossa opção era aquele disco de Bossa Nova..... Ah ! Sim. E música americana. Música
americana! Frank Sinatra, Nat King Cole... eu comprava, comprava disco. Sem dúvida.” (Carlos
Alberto)
79
Jesús MARTIN-BARBERO, Os exercícios do ver, p.42.
203
Carlos Alberto, ao dar sentido à trajetória de sua vida, recorda-se da música como algo
estruturante. Embora no início do depoimento tenha frisado a sua vinculação à cultura letrada, se
apresentando como professor de literatura e de teoria literária, e contando que havia tentado
seguir carreira diplomática além de ter cursado, duas faculdades, deixa entrever que na sua
juventude, a cultura midiática advinda do cinema e da TV, as músicas jovens como o rock and
roll, a Jovem Guarda, música americana e também Bossa Nova, ocupavam grande espaço como
elemento constituinte dos imaginários dos jovens nos anos 60. Um consumo de músicas, canções
em forma de discos e rádios, mas muito fortemente, um consumo de imagens visuais midiáticas
num momento em que a TV começa a se fortalecer como meio de comunicação. O relato de
Carlos Alberto deixa claro que a segunda metade dos anos 60, por conta de todas esses
acontecimentos, apresenta fortes diferenças em relação ao universo midiático da década anterior.
“eu era muito ligada mesmo nessa coisa de música e ver show de samba (...) Íamos muito pra Mangueira e
aí a gente tinha uma turma ali em Botafogo, e íamos pra festas, pra carnaval e íamos pra escola de
samba... E aí tinha... começou a aparecer Nara Leão, Bethânia, né, ainda era bem garota, depois Nara
Leão que eu era apaixonada.... ela foi assim uma gracinha da história, né? E então a gente, e essa casa
dessa família vizinha que a gente andava muito junto, também se dançava o fim de semana inteiro. As
pessoas perguntavam se era um clube a casa. Porque era uma casarona também daquelas de Botafogo e
nós dançávamos, dançávamos, sempre sabíamos todas, todas as músicas, todas as danças, todas aquelas
coisas. Hooly Goolly, sabíamos todos os passos, todas aquelas danças que vinham, né, trazendo, novas, e
nós sempre treinávamos e dançávamos muito. E de ensaio em escola de samba e tinha aquelas coisas
daqueles shows do Arena, em Copacabana e o Opinião. Depois Vinícius de Moraes, eu era apaixonada,
completamente apaixonada (...) meu irmão, um dos meus irmãos fazia cinema, era fotógrafo de cinema, e
então, eu era garota, tinha uns 16 anos, eu e a namorada dele éramos muito amigas. Então tinha festas no
Cinema Novo, aquilo tudo, a gente sempre era convidada. Nós éramos as garotinhas que éramos figurantes
de festa de Cinema Novo daquela época (...) E uma coisa muito engraçada que eu já era apaixonada pelo
Vinícius, achava o Vinícius assim uma coisa e era amigo do Andrade Neves, amigo desse meu irmão, dessa
turma de cinema. E uma vez nós fizemos uma gravação, nos chamaram no Zum zum ; e era o Baden
tocando e nós éramos as ‘meninas’ do bar, estávamos com o Vinícius e ele cantava e conversava com a
gente (....) E o Vinícius, que nem é pra gente da minha idade, né? Não sei, não sei. Não sei como que é essa
faixa mas pra mim, quer dizer, meu grande, meu primeiro ídolo musical foi o Elvis Presley, era assim uma
paixão, com a coisa da sensualidade (....) Eu me lembro de Leila Diniz, era aquela coisa do cinema novo,
mas não era assim... quer dizer, ela era o ícone da liberdade sexual, assim... mulher, liberada, era o auge
ela era o ícone disso mesmo... eu achava isso tudo o máximo, desde a Brigit Bardot, eram os meus ícones
assim, era uma coisa muito sensual, pra mim era tudo muito sensual (...) Olha, lá em casa rolava Seleções,
se você quiser saber. Rolava muito, é engraçado, né? Eu adorava ver fotonovela, já garota, né? O barato
era fotonovela que era uma coisa meio escondida mesmo, era fotonovela, era proibido, aquilo ali tinha
interesse total . .” (Rita)
As memórias de Rita se constróem também entre aquilo que ela via prioritariamente. Suas
lembranças sobre o que ouvia no rádio ou nos discos, embora se coloque como uma ouvinte
assídua, é pouca, o que faz com que suas recordações sobre as músicas sejam sempre em torno
das imagens cinematográficas, dos seus ícones sensuais, das danças coreografadas que se
204
aprendia na TV, nos filmes ou nas festas. E a lembrança da própria Bossa Nova se apresenta de
uma maneira fortemente imagética, através da presença nos shows de Nara Leão e Vinícius de
Moraes. Um consumo cultural diversificado, incorporando cinema francês, americano, TV,
música brasileira e rock and roll, os almanaques e as fotonovelas, numa experiência, que ia
sendo montada a partir destas várias linguagens midiáticas. Interessante notar que entre os
programas juvenis musicais lembrados por Rita, estava também o samba de escolas como a
Mangueira, o que atesta uma aproximação dos jovens da zona sul com a cultura do “samba do
morro”, se não tanto, no caso de Rita, por uma questão político e ideológica de resgate de uma
cultura pura, nacional e autêntica – como este não dito de Rita nos deixa interpretar – pelo menos
como uma matriz cultural musical marcante na vida destes jovens.
Rita, e também Carlos Alberto e Roberto têm hoje por volta dos 50 anos, o que significa
que são de uma geração mais jovem, ouvintes da Bossa Nova nos anos 60, momento em que a
TV e o cinema tinham ainda mais penetração entre a sociedade carioca e entre os jovens do que
na década anterior, com outros movimentos musicais também ocorrendo.
É necessário pensar sobre o papel das mídias audiovisuais tanto na performance das
canções como nas maneiras de percebê-las, senti-las, enfim, escutá-las e vê-las. Muitos dos
ouvintes entrevistados se lembram de ter escutado a Bossa Nova por meio dos discos e do rádio,
especialmente aqueles que viveram sua juventude ainda nos anos 50, quando o meio principal de
divulgação deste gênero musical eram as mídias sonoras. Eles entravam em contato com vozes,
sonoridades e performances que lhes chegavam por meio de uma escuta destituída do olhar, em
que rostos, corpos, posturas, atitudes e gestualidades do intérprete eram imaginadas. Canções que
em sua maioria eram de letras coloquiais, criando uma atmosfera intimista que se transmitia ao
ouvinte, na sua escuta em casa, nas festas, sozinhos ou em grupos.
Porém, como já indicamos no capítulo 1, a partir de 1964, começaram a ser promovidos,
principalmente em São Paulo, mas também no Rio, shows de Bossa Nova que começavam a se
diferenciar daquele intimismo até então predominante. Realizados em teatros para um público
maior, e promovidos pelos centros acadêmicos das universidades, estes shows começaram a
apontar para um novo caminho que a Bossa Nova tomaria. Realizados em palcos grandes, para o
grande público, num contexto histórico e político marcado pelo recente Golpe Militar que
implantava a ditadura no país. Esses eventos, como aponta Napolitano80, desempenharam um
80
Marcos NAPOLITANO, Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959/1969).
205
papel, de intermediários institucionais entre estes novos artistas e seu novo público, a juventude
universitária, ampliado após o Golpe. Transformando-se em arena para a resistência e crítica ao
regime político que se instaurava, esse público tinha características e importância ideológica, o
que acabava por modificar também a performance bossanovista, deixando o intimismo, a
economia de gestos, para assumir uma gestualidade corporal mais marcada por parte do cantor,
ajudando a empolgar a juventude que lotava os teatros, movidos pela paixão política e pelo que
aqueles eventos representavam.
Estes shows serviram como base ou espécie de protótipo para a entrada da Bossa Nova na
TV, tanto com programas musicais como “O Fino da Bossa”, como nos festivais da canção. Este
novo meio de comunicação, como aponta Zan81, veio alterar a natureza da produção musical e
estabelecer um novo patamar nas relações com o consumo de música popular no Brasil. A partir
desse momento entra em jogo, na escuta da canção, outros elementos da performance – não
apenas os sonoros – que, estruturados como imagens, encenação e interpretações mais
contundentes, em volume maior, expressam gritos de guerra e resistência, acompanhados por um
movimento de braços e mãos – pensando em Elis Regina – que encontraram na TV um espaço de
exibição e um veículo de ampliação do público da Bossa Nova. Aquele estilo de interpretação
com banquinho, violão e voz de pequeno alcance consagrado por João Gilberto, ou as
interpretações e arranjos jazzisticos dos trios, vão sendo substituídos por grandes palcos e
grandes orquestras onde cantores com voz mais volumosa, e jeitos extrovertidos e expressivos,
passam a ser a atração. Wilson Simonal é um dessesexemplos.
Para este ouvinte que passou a conhecer a Bossa Nova a partir de meados dos anos 60, ela
era não apenas sons, vozes, timbres, mas também imagens, características cênicas, expressões
faciais. Lembrando mais uma vez Napolitano, parecia não existir tanto choque entre o padrão de
escuta daqueles acostumados ao rádio nos anos 50 e os festivais na TV nos anos 60, isto porque a
solenidade que imperava nas performances de palco, na presença do público, no cerimonial dos
apresentadores, tinham matrizes na cultura radiofônica. No entanto, há que ser consideradas as
diferenças entre a pura escuta e a escuta aliada ao olhar, em que se passa a “ouver a
performance”, como sublinha Heloisa Valente82, gerando diferenças tanto na forma destas
81
José Roberto ZAN, Do fundo de quintal a vanguarda: contribuição para uma História Social da Música Popular
Brasileira. Campinas, 1997. Tese (Doutorado em Sociologia)- IFCH/ UNICAMP.
82
Heloisa de Araújo Duarte VALENTE, As vozes da canção na mídia. São Paulo, 2000. Tese (Doutorado em
Comunicação e Semiótica). PUC/SP.
206
performances, que agora eram para ser também olhadas, como também nas sensibilidades,
percepções, processos de significação, maneiras, enfim de escutar esta canção, nas quais os
aspectos visuais por vezes se encontram mais fixados na memória.
É desse modo que é possível compreender que a memória destes ouvintes da Bossa Nova
estudados se fazem por imagens e sonoridades rememoradas, compondo dando eixo e direção às
suas trajetórias de vida, às suas experiências. Uma memória articulando os diversos sentidos e
órgãos sensoriais, compondo um “mapa afetivo”83, como bem coloca Ecléa Bosi, daquele meio
urbano onde se viveu. Uma experiência na cidade, questão objeto de análise no próximo subcapítulo.
O objetivo deste sub-capítulo “Entre escutas e olhares”, foi traçar um caminho pelo tempo
e espaço da época estudada, considerando o cotidiano das experiências dos ouvintes que vão se
deixando conhecer através de sons e imagens, advindas da memória ou de documentos da época,
como as canções e a imprensa por exemplo. Conhecendo assim aquele espaço/tempo, como nos
sugere o protagonista do filme O Céu de Lisboa, de Win Wenders que, na captura de sons para
um filme, cujas imagens já haviam sido feitas, vai desvelando a cidade, sua sonoridade, seus
ruídos, sua língua, sua prosódia, seus habitantes, suas vozes, músicas e particularidades como um
amolador, um grupo musical, um bonde, um rio, entre outras idiossincrasias de um espaço que é
único e diverso. Um conhecimento que vai sendo montado entre escutas e olhares e se
manifestando
83
nos
sentimentos.
Ecléa BOSI, Memória e sociedade: lembranças de velhos.
207
Cap. 3.2. – A cidade
“No sonho, na margem esquerda do Sena, em frente de Notre Dame. Lá estava eu,
mas lá não havia nada que fosse igual a Notre Dame. Uma construção de tijolos dominava,
apenas com os últimos degraus de seu maciço, um elevado teto de madeira.
Mas eu permanecia lá, subjugado, justamente defronte de Notre Dame.
E o que me subjugava era a saudade. Saudade justamente da Paris na qual
eu me encontrava aqui no sonho. Portanto, de onde essa saudade? E de onde
esse objeto totalmente desfigurado para a cidade, irreconhecível? Em suma:
no sonho eu me chegara bem perto dele. A saudade inaudita que aqui me
atingiu no coração da coisa almejada, não era a que, da distância, impele à imagem.
Era a saudade ditosa que já atravessou o limiar da imagem e da posse
e só conhece ainda a força do nome, do qual a coisa amada vive, se
transforma, envelhece, rejuvenesce e, sem imagem, é o refúgio de todas as imagens.”
Imagens do pensamento, Walter Benjamin
Rio imagético, visto e interpretado por quem vive fora da cidade. O Rio dos cartõespostais, do cinema, da publicidade e das telenovelas. Cidade construída pela memória ou por
narrativas alheias. Focos que avançam sobre seus detalhes, presenças, ausências e fragmentos
estruturando um olhar atual que busca conhecer, por meio das memórias dos ouvintes da Bossa
Nova, a cidade de outrora.
Como já dizia o poeta sobre as paisagens, algumas nos vêm por lembranças próprias,
outras “pela mão de Deus/ Outras pelas mãos das fadas/Outras por acasos meus/Outras por
lembranças dadas”.1 Penetrar nesta cidade do passado é lidar com palimpsestos, camadas de
sentido acumuladas e sobrepostas onde se confundem presente e passado, imaginação e realidade,
memórias próprias e memórias dos ouvintes, olhar de pertencimento e olhar de viajante. Um Rio
visto por quem o conhece, mas não lhe pertence; compreendido por “quem vem de outro sonho
feliz de cidade”, mas que reconhece ali configurações, questões, movimentos, ritmos,
sociabilidades próprias, jeitos de ser, de viver e ler a cidade. Minhas imagens da cidade vão se
misturando às imagens projetadas pelas memórias narradas, compondo um quadro muito bem
descrito pelo poeta: “Paisagens.... Recordações/ Porque até o que se vê/ Com primeiras
impressões/ Algures foi o que é,/No ciclo das sensações.” 2
Cidade vista como local de boêmia e malandragem; onde se vive com prazer, alegria,
preguiça e informalidade. Uma representação, segundo Maria Alice R. Carvalho, pautada num
discurso que a encara como fragmentada em sua vida social, inventando-lhe sempre personagens
1
2
Fernando PESSOA, O eu profundo e os outros Eus.
Idem.
208
que seriam “símbolos” territorializados, fechados em áreas, bairros, ruas, bares, botequins,
esquinas e trechos de praia como “pequenas repúblicas” contrárias ao mercado e à modernização
capitalista, dando corpo a idéia de uma certa “essência” carioca ligada a um inconformismo
espontâneo. A produção discursiva sobre o Rio reproduz até hoje esta imagem fragmentada da
ambiência urbana, conferindo perenidade e força normativa às imagens de cisão e polarização
entre zona sul, zona norte e subúrbio, numa idéia que acaba também compondo um “mundo do
asfalto”, moderno e capitalista se contrapondo aos bolsões de miséria das favelas.
A distância entre essas áreas não é geográfica, mas cultural, onde as regiões pobres dessa
“outra” cidade estão situadas aquém de uma cultura de massas, assumindo uma postura de
resistência, num ideário de separação entre “sociedade” e “comunidade”3. Dentro desse quadro,
as favelas e seus habitantes são colocado sob suspeita, considerados como ameaçadores à ordem
urbana, uma massa incontrolável disposta a descer dos morros e invadir a cidade. Essa construção
está cotidianamente presente na imprensa, no cinema, na TV e na publicidade, reiterando a idéia
do medo e da periculosidade como características próprias ao Rio. Esta imagem urbana carioca
tem uma história da qual trataremos mais adiante.
Entretanto, a partir de um olhar e de uma escuta atenta, o que se pode perceber na cidade é
um Rio também polifônico – usando a expressão cunhada por Canevacci para designar São Paulo
– onde vozes, sotaques e sonoridades também se cruzam, justapondo-se numa multiplicidade de
vozes que se encontram, contrastam e diferem, conformando uma prosódia peculiar. Uma
polifonia musical dada pela Bossa Nova, pelo funk, pelo charm, pelo samba, pelo choro, pelo
pagode, cada qual fruto de locais específicos do meio urbano, mas que já nascem híbridos, vindo
a misturar-se anda mais ao se encontrarem. Uma cidade para ser vista e ouvida, dona de nuanças
e timbres próprios que se deslocam num tráfego incessante de significados, experiências e
leituras, conformando uma “cidade patchwork”4.
É desta cidade que tratará este subcapítulo. Uma cidade que suscita a idéia de encontro,
com as misturas próprias ao meio urbano e aos rearranjos culturais que isto impõe. Ao se buscar a
cidade do passado, procura-se compreender traços da origem deste local constituído de modo
híbrido, mas que no imaginário dos seus habitantes e dos que o vêem de fora se apresenta como
fragmentado em territórios isolados.
3
4
Maria Alice Rezende de CARVALHO, Quatro vezes cidade, passim.
Massimo CANEVACCI, A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana, passim.
209
As experiências dos ouvintes da Bossa Nova nos anos 50 e 60, feitas da montagem
caleidoscópica que é própria do viver urbano, compõem itinerários e sociabilidades que recusam
uma linearidade e se mostram como uma edição de imagens, sonoridades, influências, tradições e
choques que estruturam suas vidas. Da mesma forma, estas experiências podem ser captadas hoje
com uma forma de fazer “historiografia como montagem”5, num procedimento de colagem de
cacos dispersos em que jamais se alcançará a totalidade dos fatos vividos, configurando-se, este
trabalho, muito mais como uma tentativa de reunir e elaborar constelações de trechos, imagens,
sons e memórias para assim contar a história da cidade.
Aspectos da história da cidade
No primeiro capítulo já tratamos de alguns aspectos da história do Rio de Janeiro em suas
transformações urbanas, a famosa “era dos melhoramentos” proposta e executada pelo prefeito
Pereira Passos nos primeiros anos do século XX. Uma reformulação urbana pautada pela
racionalidade do uso do espaço, bem como pela idéia de “embelezamento estratégico” que
enobrecia as necessidades técnicas e sociais com fins estéticos traduzidos pela busca de uma
planificação com abertura de largas avenidas, canalização de rios, desmonte de morros,
destruição de cortiços e ruas estreitas numa proposta de remodelação urbana nos moldes
europeus6. Ao mesmo tempo, buscava também a normatização do espaço público, sua
higienização de cunho não apenas médico-sanitarista, mas também social e racial, com a retirada
de pobres e negros que por ele vagavam7, prática que se ajustava aos anseios das elites no avanço
do capitalismo nascente. Surgia uma outra cidade, onde novas intervenções como a Avenida
Central e o Canal do Mangue conviviam com velhas e estreitas ruas como a do Ouvidor e do
Rosário. Com esta reformulação urbana, aproximadamente 15 mil pessoas foram expulsas de
suas casas localizadas no centro da cidade, outras tantas continuariam ali por perto, subindo os
morros e compondo as favelas, mantendo-se presentes no novo cenário urbano. Começava a se
desenhar a fisionomia da metrópole moderna cujo desenvolvimento se daria ao longo de todo o
século.
5
Wili BOLLE, Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin.
Cf. Carl SCHORSKE, Viena fin-de-siecle: política e cultura.
7
Cf. Lilia M. SCHWARCZ, Retrato em branco e negro.
6
210
Esta “modernidade”, na passagem do século XIX para o XX, possuía um certo caráter
artificial, o que deixa claro a contradição entre processos modernizadores, com uso da técnica e
de discursos que procuravam inserir o Brasil numa “belle époque”, e as reais condições
econômicas e sociais limitadas dos países periféricos8. Aliado a isso, havia uma fragilidade das
relações e nexos entre o mundo das camadas populares e a ordem institucional política na então
capital da República9. Durante as primeiras décadas do século XX, a modernidade carioca
qualifica-se muito mais por uma aspiração, como um projeto ainda incipiente do que por sua
efetivação, dado que numerosas parcelas da população ficavam à margem de todo este processo.
Maria Alice Carvalho argumenta que na Europa do século XIX predominaram dois
principais modelos de evolução modernizadora e política – o inglês e o francês – que tiveram
ressonância nas configurações das cidades modernas. O primeiro se caracterizou pela passagem
da ordem feudal para um regime de competição entre barões e burgueses, seguido da instauração
de um conjunto de reformas que propiciaram a incorporação das massas ao mundo de liberdade e
direitos. A cidade passou a ser um espaço de competição, onde direitos e valores eram
previamente instituídos. No modelo francês, a participação das massas no cenário urbano teve
lugar sem que estas regras tivessem sido institucionalizadas previamente, numa situação em que a
transição para a modernidade, sob o signo da revolução, opôs a cidade à aristocracia, cindindo-a
em duas partes regidas por normas e valores concorrentes.
Ainda segundo Carvalho, a caracterização da modernização do Rio de Janeiro nos
primeiros tempos republicanos aproxima-se mais do modelo francês, embora a incorporação das
massas não tenha se dado pela via revolucionária mas sim por arranjos políticos que só se
efetivariam completamente no Estado Novo. A cidade moderna carioca caracterizou-se neste
início do século XX como uma “cidade-Estado” e não como uma “cidade-mercado”. Era do
Estado a tarefa de organizar e contornar as contradições entre os mundos alternativos que a
compunham, tendo o Estado Novo à frente deste processo de incorporação das massas ao mundo
do consumo e modernização10.
Antes desse período não existia ainda uma “política urbana”, uma vez que os “problemas
urbanos ainda não haviam sido inventados” e “a cidade ainda não era tematizada como uma
8
Cf. Jeffrey NEEDELL, Belle époque tropical.
Cf. José Murilo de CARVALHO, Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi.
10
Cf. Maria Alice Rezende de CARVALHO, Quatro vezes cidade.
9
211
questão”11. Esta falta se deve à idéia que norteou os debates das primeiras décadas do século, que
foi a discussão sobre o caráter e a identidade da nação – rural ou urbana? – passando ao largo das
questões sobre a cidade, do direito à cidadania e das questões sociais no meio urbano. Somente a
partir do final da década de 10 e na década de 20 é que se pode falar numa “política urbana” mais
claramente definida com uma visão mais sistêmica da cidade. Com isso, surge um novo campo,
uma nova disciplina – o urbanismo – que tinha em seu meio tendências diferentes, lutando por
hegemonia nas discussões sobre as intervenções na cidade, tendo o Clube de Engenharia como
principal locus de debates. A própria construção do Caminho Aéreo do Pão de Açúcar, finalizado
em 1918, vem atestar esta noção da engenharia como ciência a serviço da modernização da
república e sua capital. 12
Entre o final da década de 20 e 30, variados planos foram intensamente debatidos e
elaborados, culminando na contratação do urbanista francês Alfred Agache, cujo projeto acabou
não sendo efetivado. A disputa por hegemonia dentro desse campo e no campo da política acabou
sendo “vencida” por aqueles que conseguiram demonstrar o “urbanismo como necessidade não
só de reordenação da cidade, mas de enquadramento da própria sociedade”.13 Nesse processo, foi
redefinida a ordem urbana, legitimando-se um saber técnico e científico sobre a cidade, sem, no
entanto, ser discutida a questão da cidadania e do direito à cidade. A questão social, traduzida
como uma questão nacional, ficou a cargo do governo populista que se implantaria tendo como
tarefa conduzir uma ideologia da construção da nacionalidade e da incorporação das massas à
modernização.
Até o final do século XIX, o espaço urbano residencial do Rio estava localizado entre
alguns morros da zona central onde as camadas sociais conviviam – claro que não sem conflitos –
, diferenciando-se apenas no tipo de moradia. No entanto, após o início do século XX, a
separação começa a se configurar, levando a formulação de mapas sociais demarcados a partir de
áreas delimitadas.14 Em 1937, por exemplo, uma lei de zoneamento definiu áreas residenciais,
industriais e comerciais, o que fez com que a zona sul se desenvolvesse mas também sofresse os
efeitos da especulação imobiliária crescente por conta da falta de uma política governamental
11
Robert Moses PECHMAN, C idades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista, p.393.
Cf. Renata Santos Silva, O gigante e a máquina: Pão de Açúcar. In: Paulo KNAUSS (Org.), Cidade vaidosa:
imagens urbanas do Rio de Janeiro.
13
Robert Moses PECHMAN, Op. cit.
14
Patrícia FARIAS, Pegando uma cor na praia: brancos, morenos e negros no espaço público carioca. Rio de
Janeiro, 2000. Tese (Doutorado em Antropologia). Museu Nacional – UFRJ.
12
212
mais séria que organizasse a ocupação da cidade. Esse problema era agravado pelo fato de ser o
Rio de Janeiro Distrito Federal, o que dificultava as relações entre o poder municipal, estadual e
federal. A distância da zona norte e dos subúrbios, estabelecidos ao longo das linhas ferroviárias
da Central do Brasil e Leopoldina, em relação ao centro15, constituiu a idéia de segregação que
passou a povoar o imaginário carioca de que a cidade se organizava em territórios delimitados e
com identidade própria.
Esta distância, provocada também pela própria geografia com sua cadeia de montanhas,
fez com que surgissem, a partir da década de 40, subcentros urbanos especializados em funções
comerciais e de serviço. O bairro de Copacabana tornou-se um destes subcentros, atraindo tanto
habitantes de regiões próximas ainda em processo de desenvolvimento, como Ipanema e Leblon,
como também pessoas de outras áreas da cidade que ali foram trabalhar e morar. A expansão do
bairro resultou num inchaço populacional que levou à substituição de pequenos prédios,
construídos no final da década de 20 e início de 30, por edifícios de dez, doze pavimentos
divididos em apartamentos pequenos, os conjugados. Esta aglomeração deu origem à formação
das primeiras ocupações dos morros da zona sul, saída encontrada por trabalhadores que
precisavam ficar próximo de seu lugar de trabalho.16
Imagens da cidade
Esta conformação de metrópole vivida pelo Rio de Janeiro na década de 50 é o texto a ser
analisado neste momento. Um texto com formas empíricas que se articulam e interagem na
percepção da cidade como linguagem e comunicação, algo a ser lido tanto em si mesmo quanto a
partir das leituras de seus habitantes, neste caso, os ouvintes das canções da Bossa Nova,
estruturando uma representação deste meio urbano, atualizando-o como enunciados e traçados
que caracterizam os usos da cidade.17
Viver e habitar os ambientes, tecer a vida em meio ou em torno deles, tendo-os como
pano de fundo ou como proximidade essencial. A paisagem, este espaço topográfico que se deixa
envolver num lance de vista, sugere a configuração daquilo que está no entorno, rodeando, aquilo
que é visto e escolhido como referência. Diversos autores, poetas e filósofos, ao tratarem do locus
15
Cf. Ciro Flamarion CARDOSO y Paulo Henrique ARAÚJO, Río de Janeiro.
Cf. Ciro Flamarion CARDOSO y Paulo Henrique ARAÚJO, Op. cit.
17
Cf. Lucrécia D’Aléssio FERRARA, Olhar periférico.
16
213
em que se vive e habita, começam pelas paisagens e pelo modo como ela os afeta. Como sugere
Simon Schama, paisagens naturais que aparentemente não têm qualquer relação com a cultura ou
com a sociedade que as modificou travam com essa sociedade relações profundas, mostrando-se
como produto também da cultura, diferentemente do que uma tradição hegemônica racionalista
ocidental poderia supor. Segundo ele, existem na nossa apreciação ou relação com a paisagem
natural “veios do mito e da memória”18 .
Os lugares são elementos que atuam – direta e indiretamente – na subjetividade dos
indivíduos. A ligação do sujeito ao seu meio – que por sua vez é uma inscrição marcante nos
imaginários sociais –, coloca o espaço também como peça importante na gama variada de agentes
que postulam as experiências cotidianas, deixando de ser apenas mero pano de fundo ou uma
coincidência. Mais do que falar em espaços ou em lugares, fala-se sobre o urbano. Pode-se
perceber na cidade, elementos físicos ou pontos marcantes que se tornaram referenciais comuns
aos seus habitantes, os “espaços-sínteses”19 de memória coletiva, elementos físicos de
significações compartilhadas, topografias intimamente ligadas à vida das pessoas, algo que une
vários indivíduos com experiências e memórias comuns. Constrói-se, assim, a idéia de
legibilidade das cidades, como algo possível de ser decodificado por seus habitantes ou por seus
visitantes, um espaço que existe como objeto da percepção dos sujeitos, impregnado de memórias
e significações.20
A cidade, para além de sua existência material, é também produto das “imagens mentais”,
como destaca Giulio C. Argan21. Essas imagens se constituem pela memória, pela tradição, pela
história oficial, pela mídia, pelas artes, enfim, por meio das variadas formas pelas quais a
imaginação social se alimenta, se sustenta e se transforma. Tecidas a partir da complexa relação
entre natureza e história, as cidades, por vezes, possuem tamanha intervenção humana, que a
natureza é vislumbrada de maneira distante, em rios ou montanhas ao longe. No Rio de Janeiro,
acontece de forma diferente: a paisagem natural da cidade está em íntima relação com seus
habitantes e com seus visitantes. Segundo Margarida Neves, desde a época colonial, passando
18
Simon SCHAMA, Paisagem e memória. passim.
Maria Alice Rezende de CARVALHO, Quatro vezes cidade, p.96.
20
Cf. Kevin LYNCH, A imagem da cidade.
21
Giulio Carlo ARGAN, História da arte como história da cidade, passim.
19
214
pelo Império e até o século XX, pode-se perceber a estreita relação entre a constituição histórica
do Rio de Janeiro e sua paisagem natural. Nele, “a cidade é a paisagem.”22
A percepção desta tese Escutas da Memória é fruto da interpretação de uma pesquisadora
que não é natural e nem mesmo moradora do Rio de Janeiro. Embora tenha feito muitas incursões
pelo meio urbano, entrando em contato com suas paisagens, experiências, costumes, sabores,
odores e sonoridades, mesmo tendo vivido a cidade e na cidade, o olhar do viajante é sempre
interposto à interpretação de alguém que não pertence ao lugar. Como lembrava Proust23, o
caminho de travessia das distâncias entre o eu atual e o eu buscado nas memórias – uma distância
que se torna viva pela rememoração – compara-se a uma viagem em que recordação, a própria
viagem e o viajante, encontram-se em relação. Ler a cidade assim, é como estar na pele de um
viajante que vai ao longe, olha, sente, percebe e deixa-se afetar, misturando suas sensações com
as memórias de seus sujeitos analisados. Um longe que é também muito perto, onde
distanciamento e proximidade se confundem e se separam, voltando a se encontrar na experiência
do estranhamento.
Para além da importância do espaço físico na construção da experiência urbana – algo de
fundamental importância para a interpretação do cotidiano daqueles que escutavam a Bossa Nova
–, este estilo musical apresenta uma forte tendência em ressaltar a paisagem da cidade com seus
elementos naturais ou pontos de referência. Como já foi posto anteriormente, são canções de
apelo fortemente imagético, com letras que evocam paisagens da cidade ou da natureza: as
imagens urbanas cariocas. Há também, nestas músicas, a construção de experiências urbanas
específicas nos locais da cidade, como a zona sul, o Corcovado e as praias, o que colabora para a
recolocação no meio social destes espaços construídos pelas canções.
Dessa forma, vai-se elaborando a idéia de território24 como um local vivenciado, um
espaço construído contrapondo-se à noção de espaço dado, supondo um processo de constituição
que inclui subjetividades e experiências no qual estão presentes significações, percepções e
experiências, em que, por exemplo, uma rua, uma praia, um bar ou uma montanha tornam-se
marcos e estão carregados de experiências, sentidos e memórias. O espaço urbano, além de sua
existência material, é também um código, um sistema de representações a ser lido, o que aponta
22
Margarida de Souza NEVES, A cidade e a paisagem. In: Catálogo da Exposição A paisagem carioca. Rio de
Janeiro: Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, 2000.
23
Marcel PROUST, O tempo redescoberto.
24
Cf. Raquel ROLNIK, História urbana: história na cidade? In: Ana FERNANDES e Marco Aurélio GOMES
(Orgs.). Cidade e História: modernização das cidades brasileiras nos séculos XIX e XX .
215
para a necessidade de entender a percepção dos processos de territorialização e reterritorialização
do meio urbano e suas relações com a vida cotidiana dos sujeitos históricos. A configuração da
cidade destina ao espaço um papel específico e catalisador, transformando-o em fonte, da mesma
maneira que um arquivo ou registro. No espaço, pode-se ler um processo histórico das formas de
organização social.25
As territorialidades do espaço urbano originam lugares sociais híbridos e, por vezes,
efêmeros, uma vez que estas mesmas fronteiras simbólicas que separam a cidade – destacando
lugares com diferentes práticas sociais e visões de mundo – colocam também estes territórios em
contato, propiciando a formação de uma arquitetura de territórios como um grande mosaico de
superposições e entrecruzamentos que, ao contrário de possuírem identidade única, assumem um
caráter fluído, sem limites fixos e constantes, em que fronteiras movediças se interpenetram e se
misturam, levando a uma flexibilização das categorias antropológicas como identidade, território,
fronteira, etc.26
Neste sub-capítulo, serão analisados os espaços urbanos e a experiência dos ouvintes da
Bossa Nova na cidade, experiências que se acham, às vezes muito próximas, às vezes muito
distantes dos espaços representados e construídos pelos agentes/autores da Bossa Nova em suas
canções e memórias, e com a imprensa da época. Aqui, procura-se identificar os espaços cariocas
como locais de convivência, referência e prática social, rastreando a pluralidade de maneiras nas
quais estas pessoas edificam suas experiências urbanas em permanente elaboração e
reelaboração. Tendo como pressuposto a noção de experiência27, em que os valores dos sujeitos
são, não apenas pensados, mas vividos dentro de um mesmo vínculo com a vida cotidiana,
procura-se encarar a relação dos indivíduos com seu meio espacial de forma não apenas
funcional, mas sugerindo que a relação do sujeito com seu espaço/tempo é permanente e mútua,
no qual a constituição do território só é possível enquanto marca, expressão dos sujeitos sociais.28
Vai-se elaborando, assim, um mapa da cidade como uma cartografia que é afetiva,
levando em conta memórias, significações, identificações e sentidos atribuídos ao espaço urbano,
presentes em suas paisagens naturais, nos prédios, ruas e monumentos, no sentido amplo
25
Raquel ROLNIK, Op. cit. E também: Cf. ___________ O que é cidade?
Antônio ARANTES, A guerra dos lugares: sobre fronteiras simbólicas e liminaridades no espaço urbano. Revista
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro: s.n., p.191-203, 1994.
27
E. P. THOMPSON, O termo ausente : experiência. In : ___ A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma
crítica ao pensamento de Althusser.
28
Raquel ROLNIK, Op.cit, p.29.
26
216
conceituado por Le Goff29. Uma interpretação que é fruto da cidade atual e das percepções
construídas sobre ela, com suas complexidades e idiossincrasias, mas também com lembranças
que recuperam, imaginam e constróem a cidade que se quer viver, conformada a partir da
memória, seja a memória voluntária ou a involuntária. Cidades reais e ideais que vão se
misturando no presente, trazendo à tona construções da memória histórica e até da história oficial
mas que, no entanto, vão permitindo interpretar fios do cotidiano destes ouvintes.
“nasci no Rio, na zona Sul; a partir dos 4 anos eu fui morar em Ipanema, morei dos 4 aos 24 (...) Quando
eu nasci, meus pais moravam com a minha avó e irmã em Copacabana. Daí eu fui me aproximando de
Ipanema, com 4 anos fui pra Ipanema e fiquei até os 24, então eu vivi muito Ipanema naquela época,
glamourosa ‘República de Ipanema’, quem freqüentava a praia de Ipanema eram os moradores, os turistas
iam a Copacabana, Ipanema era uma praia que você falava com todas as pessoas, era difícil andar em
Ipanema, você parava tanto pra conversar, você na conseguia andar na praia, todo mundo conhecia todo
mundo, eram um lugar muito amistoso, o Rio de Janeiro era um lugar muito amistoso, você andava a
qualquer hora da madrugada por todas as ruas e, com um ventinho (...), comparado com o que é hoje; já
tinha morro, é claro, já tinha favelado, mas não se compara com esse sobressalto de hoje do Rio de
Janeiro...Ipanema explodiu, a construção e a verticalização foram nos anos 70 mesmo. Então, quando eu
fui morar em Ipanema com 4 anos, alugava-se cavalo aos domingos, na praça General Osório, que é onde
eu morava, a minha mãe mora até hoje, eu morava na época; alugava-se cavalo nos fins de semana, então
você tem idéia de que era outra coisa, né? Eu pescava, atrás da minha casa... eu pescava, até hoje tem
pescador lá, mas eu pescava. A gente pescava no Jardim de Alá quando eu era criança, eu ia pra lá pescar
lambarizinho, pegava muito, não era pouco não, pegava muito, não precisava nem de anzol, tinha tanto
lambari que se colocasse a mão levava, então era muito diferente de Ipanema.... Ipanema não tinha
comércio, a gente pra fazer compra, a gente tinha que fazer compra em Copacabana, pra comprar roupa,
né ? então não tinha comércio, era residencial mesmo. Aí depois, nos anos 70, depois dessa explosão... e é
isso, esse processo do Rio de Janeiro tá na Barra, indo pra Barra.” (Roberto)
Roberto vai rememorando o espaço urbano onde viveu a infância, adolescência e
juventude. Um pedaço da cidade peculiar, calmo, com casas e conhecidos nas ruas, onde era
possível até mesmo pescar atrás de casa, no Jardim de Alá. Um bairro que nem sequer possuía a
vida agitada das lojas e do comércio, sem os problemas comuns às metrópoles, como violência,
poluição e anonimato. Lembranças que contemplam muito mais o período de sua infância,
conformando uma cidade que não segue necessariamente a linearidade e a racionalidade do
espaço urbano construído, mas que se utiliza de montagens aleatórias, captando sensações e
sentidos, reunindo locais distantes na construção da memória como a Praça General Osório e o
próprio Jardim de Alá. A cidade da infância rememorada é a que segue as incoerências próprias
da vida e não a linha reta das planificações urbanas que buscam abolir o acaso e as incertezas.30
29
30
Jacques LE GOFF, Documento/Monumento. In: Enciclopédia Einaudi Vol 1. Memória-História.
Cf. Walter BENJAMIN, Obras escolhidas. Vol.2 -Rua de mão única.
217
Faz-se presente um sentimento de melancolia por tempos perdidos e pela cidade perdida,
representado pela água do canal que, de tão poluída, não possui mais peixes, e pelos prédios da
orla litorânea que podem encobrir a visão do mar, retirando dos indivíduos mais do que simples
materialidades. Partes de si e de suas experiências também se vão nestas modificações urbanas.
As lembranças que têm assento nas “pedras da cidade”, como coloca Ecléa Bosi31, possuem
relações com os afetos de maneira mais profunda do que se pode supor. Na relação com o espaço
à volta, pode-se interpretar os posicionamentos no mundo, as relações estabelecidas com os
outros e a ligação com a natureza, cujos vínculos são abalados pelas mudanças urbanas, apesar da
memória sempre presente insistir em restituir.
“O Rio de Janeiro naquele momento... a primeira coisa que me vem é muita praia, muito verão, muita
maconha, né ? Eu me esbaldei nos verões da minha geração. Eu era garota, ia à praia e tinha um corpo
bonito, cabelão e me esbaldava. Me lembro muito dos verões e de ir às festas e de dançar, e de ir pras
festas do Cinema Novo e de estar morena e de estar fazendo sucesso (...) Ah, ia a Ipanema, Posto 9, tinha o
pessoal do Cinema Novo que ia ali também. É que Cinema Novo andava muito nessa rua da Matriz também
.... e eu morava nas Palmeiras que era do lado. Então, a gente tinha muita .... e, enfim, o verão era esse.”
(Rita) (grifo meu)
Para Rita, a cidade lembrada é aquela da juventude, com as experiências vividas nesta
fase da vida. A “maconha”, os namoros, as festas, a sensualidade do corpo bronzeado na praia de
Ipanema, que neste momento, década de 60, assume papel de destaque no imaginário carioca
como local de modernidade, liberdade e resistência política. Uma memória que, ao ser
voluntariamente procurada, é associada às experiências juvenis no verão, mas que surpreende por
meio do ato involuntário de Rita ao sobrepor e confundir verão e cidade, ao final de sua narrativa.
Para ela, a cidade, o verão e as experiências juvenis estão emaranhados à sua vida pessoal. Ato
voluntário de busca pelo meio urbano que se quer lembrar, aliado ao que atravessa
involuntariamente suas memórias.
As memórias de Rita e Roberto, que hoje são casados, parecem se apoiar mutuamente,
mostrando-se comuns ou em consonância. Não surge como despropositado salientar o fato que
hoje eles vivem num bairro bucólico, inclusive no nome – Fonte da Saudade –, num apartamento
cuja varanda se debruça sobre a paisagem da Lagoa. A memória pessoal aqui mostra-se vinculada
à memória do grupo, numa relação que dificulta a tarefa de definir os limites do lugar onde acaba
uma e começa a outra. “O recurso a contribuições exteriores ou à memória coletiva é essencial
31
Cf. Ecléa BOSI, Memória e sociedade.
218
para a reconstrução pessoal de imagens de outros tempos. Para que a memória pessoal se realize
ela sempre se socorre da memória alheia, que funciona como um repositório de pontos de
contato”32. Embora Rita e Roberto tenham idades equivalentes, estejam casados há muitos anos,
pertençam a um mesmo grupo e tenham vivenciado os mesmos locais da cidade, suas memórias
caminham por trilhas diferentes: para ele, Ipanema é o bairro bucólico da infância, uma espécie
de paraíso perdido; e para ela, o mesmo bairro é a topografia da juventude e de suas liberalidades
nos anos 60, tempo muitas vezes evocado como sinônimo de liberdade e rebeldia. Essa cidade do
passado, quando voluntariamente buscada, suscita memórias diferenciadas que guardam relações
com o presente de cada um.
Vai-se adentrando numa memória dos locais vividos e repletos de experiências que, no
movimento dessa memória, edifica paisagens urbanas ideais, onde os limites entre real e o que é
imaginado são frágeis e tênues. Essas são cidades da memória. Isto se coloca não apenas entre os
ouvintes analisados, mas também entre outros jovens cariocas dos anos 50 e 60 que,
rememorando sobre sua cidade nos dias atuais, dão pistas sobre um ideário carioca que parecia
existir à época e que se perpetua na atualidade como uma espécie de sentimento nostálgico. Para
Ronaldo Bôscoli, letrista da Bossa Nova e um de seus grandes divulgadores, a cidade ideal é bela
e tranquila, uma “Cidade Maravilhosa”.
“É tolice pensar que somente mulheres possam ser musas. Eu fiz umas dez músicas para a minha cidade.
Inspirado pela beleza e energia do Rio de Janeiro, pelo qual sou profundamente apaixonado. A [música]
mais importante é Rio. Não me canso de admirar a grandeza e grandiosidade dessa minha cidade tão
33
linda.”
Bôscoli buscava afirmar que essas canções foram compostas querendo sublinhar um meio
urbano belo e cheio de “energia”, revelando uma certa construção imaginária da cidade onde a
memória constrói sentidos e organiza os tempos passados. Ele procurava explicar suas
motivações e inspirações. É possível indagar, no entanto, se Bôscoli ressaltava apenas este
sentido unívoco do Rio, como uma cidade bonita, tranqüila e ingênua, evitando os aspectos
dissonantes. É possível indagar também se a música se deixa explicar apenas pelas motivações
32
Marina MALUF, Ruídos da memória: a presença da mulher fazendeira na expansão da cafeicultura paulista. São
Paulo, 1994. Tese (Doutorado em História Social). FFLCH - USP. p. 33.
33
Ronaldo BÔSCOLI, Eles e eu: memórias de Ronaldo Bôscoli (depoimento a Luiz Carlos Maciel e Angela
Chaves). p.158.
219
declaradas pela autoria ou se é possível identificar em suas construções poéticas, melódicas e
rítmicas outras leituras ou escutas divergentes.
A própria canção citada por Bôscoli, Rio, embora evocada e guardada na memória como
algo otimista e alegre, deixa entrever também traços de melancolia. Sua melodia, com notas
próximas e ritmo sincopado na primeira parte, dá lugar à uma segunda parte mais lírica, com
notas distantes e com maior duração, momento em que fala dos sentimentos e da cidade como
local do amor, associando a lua e a noite. Em seguida, a melodia volta a ter ritmo bastante
sincopado, mas com notas ainda de longa tessitura, indicando uma cidade que acaba com
qualquer tristeza, uma cidade que não dorme e não se cansa, aludindo a uma metrópole já não tão
calma assim.
Esta cidade do Rio de Janeiro, nos anos 50, já não era tão harmoniosa e unívoca como
mostram as reminiscências de Bôscoli. Na imprensa da época, uma matéria intitulada “As 7
maravilhas do Rio”34 apresentava suas mazelas num texto irônico e sarcástico, beirando o
deboche.
“FAVELA – Não é problema, como dizem; do contrário já o teriam resolvido. A verdade é que elas dão um
toque de poesia na paisagem (...)Do lado de dentro, seus habitantes vivem felizes porque quando chegam à
janela vêem a paisagem da civilização, com seus arranha-céus, suas praias e seus automóveis – ao passo
que nós só vemos favela.
TRÂNSITO – Dizem que no Rio é onde morre mais gente vitimada pelo trânsito, mas não se tem certeza,
porque quando alguém sai para fazer a estatística, morre atropelado.
TELEFONE – Milhares e milhares de pessoas aguardam, pacientemente, há vários anos, o recebimento
deste milagre da ciência. (...) Um dia a Cia. Telefônica lhe comunica que chegou a sua vez e a distração
acaba : então começa o drama.(...)
BURACOS – Segundo os técnicos é sinal de progresso; segundo os poderes públicos, é falta de verba e,
segundo os humoristas, é a construção do Metrô.”
Aqui está uma crítica aos problemas da cidade, considerações acerca de seu
desenvolvimento urbano desordenado, com reformas inacabadas, habitações precárias e serviços
públicos mal realizados. São apresentados elementos que dão conta de uma cidade que já
começava a viver as conseqüências de um desenvolvimento acelerado e desordenado, onde
aspectos negativos característicos da vida nas metrópoles já podem ser pressentidos. O excesso
de veículos é outro ponto bastante acentuado pela imprensa da época.
34
Revista Manchete, 19/09/59.
220
“Diante da escassez de locais de estacionamento no centro da cidade, a solução é deixar os carros nas
calçadas. (...) Justamente para corrigir tal anomalia, as autoridades do trânsito das maiores cidades
brasileiras estudam, atualmente, a adoção do “parquímetro”, aparelho que se encarregará de medir o
tempo e cobrar o estacionamento nas zonas de maior acorrência. (...) eis o aparelho mágico, capaz de
35
multiplicar os locais de estacionamento na cidade.”
O trânsito se apresenta como um grande problema, necessitando de soluções “mágicas”
para corrigir tamanha “anomalia”. Esse quadro preocupante é destacado por fotografias de carros
enfileirados ou estacionados desordenadamente nas calçadas, reforçando a idéia de caos de uma
cidade superpovoada.
“Bom, dando uma de saudosista, naquela época era um momento bem diferente .... Muito, mas muito menos
carros, raras pessoas tinham carros naquela época, e a vida não era tão problemática como é hoje. Então,
é até difícil a gente fazer uma comparação, porque hoje em dia os problemas são muito maiores (...)Puxa,
toda noite eu saía ... toda noite saía, e muitas vezes a pé, e hoje em dia você não faz isso. E tem outra coisa,
a televisão praticamente não existia, então você não se prendia a isso, hoje em dia você se prende pela
televisão ... você deixa de ir a um cinema, que era um programa prá namorar, ou até mesmo prá fazer um
programa com um amigo ou com uma namoradinha, sair do cinema e ir comer uma pizza, que era o
programa da época. (...)Então você saía, como um programa de prazer, e hoje em dia você só sai por um
programa obrigatório ... você não sai a pé da tua casa prá ir num cinema na Avenida Atlântica , não vai
fazer isso, depois sair de lá e ir comer uma pizza ou jogar conversa fora com um amigo e tal. Você só vai
se tiver a obrigação de ir a uma festa, a um jantar, uma inauguração, uma estréia, um show, um negócio
36
assim ...” (Chico Feitosa )
Feitosa é músico e produtor musical, tendo convivido neste meio como autor de algumas
letras das canções da Bossa Nova. Na sua fala, é possível perceber uma desvalorização dos
tempos atuais, em que o Rio de Janeiro é considerado uma cidade violenta e perigosa, onde seus
moradores se sentem amedrontados, presos a suas casas e às dificuldades da metrópole. A cidade
do passado, ao contrário, é valorizada é exaltada como um lugar seguro, distante do que viria a se
transformar. Nessa construção presente, o passado é idealizado e visto com um distanciamento
temporal que filtra do passado o que há de melhor e do presente apenas o que existe de ruim.
Entretanto, a cidade – como transparece em outros momentos do depoimento de Feitosa e
também em muitas das letras das canções – já era percebida nos anos 50 como muito povoada e
aglomerada. A saída ou alternativa estava na natureza, ainda que no filtro do memória, o retido
tenha sido a cidade idílica imaginária. Baseados no depoimento de Feitosa, pode-se argumentar
que os aspectos negativos do desenvolvimento acelerado por que passava a cidade naquele
momento eram restritos à região central ou aos subúrbios, estando a zona sul excluída deste
35
36
“Fómula ‘P-P’ [parou, pagou] no trânsito”. Revista Manchete, 24/10/59.
Depoimento concedido em 22/04/96, no Rio de Janeiro.
221
processo. No entanto, em contraposição a essa imagem, um artigo da imprensa afirmava que “ao
longo da mais famosa avenida da América do Sul, apenas 30 casas ainda resistem aos arranhacéus ...”
“São na verdade cada vez mais numerosos os arranha-céus e cada vez mais escassas as casas (...) [Há] o
constante assédio dos incorporadores e corretores, que se empenham em pôr a casa a baixo, oferecendo
milhões e mais milhões (...) Até quando elas escaparão das picaretas? (...) Apenas cerca de trinta pessoas
37
completam a lista de proprietários que ainda fazem fincapé.”
Surge assim uma idéia de cidade em franco desenvolvimento, metrópole moderna e
verticalizada. em que mesmo o bairro de Copacabana, tão cristalizado nas memórias, também não
escapa a este processo. A metrópole crescendo nesse ritmo passa a viver com novos problemas,
entre eles, como mostra a reportagem, a “socialização da praia” e o desejo de preservação dos
“caixas altas” no bairro, moradores das últimas mansões da Av. Atlântica , evitando sua invasão
pelas camadas mais baixas da sociedade que começavam a ocupar seus inúmeros conjugados.
Gilberto Velho conta que “a partir dos anos 40 e 50, a intensa propaganda em torno do bairro [de
Copacabana] – onde ressaltava-se a praia, o lazer, os serviços, as facilidades, o status – levam a
um crescimento desordenado, com problemas de circulação, super-povoamento, higiene.”38 Um
bairro que, já naquela época, começava a entrar num processo de decadência, superpovoado e
com precárias condições de habitação e serviços não condiz com o paraíso perdido das memórias.
Não se trata aqui de qualquer meio urbano ou cidade grande, mas da metrópole moderna.
Ao se refletir sobre os acontecimentos de ordem econômica, política, social e cultural que a
originaram, algumas tendências de análise buscam interpretá-los apenas como sinônimo de
“modernização”, entendida como um complexo de estruturas e processos materiais desenvolvidos
por conta própria e independentes de qualquer interferência subjetiva. De um outro lado, como
aponta Marshall Berman39, estão, os que consideram a vida moderna apenas como fruto do
espírito humano, utilizando o termo “modernismo” para qualificar as produções artísticas e
intelectuais tidas como processos autônomos. A perspectiva aqui adotada, no entanto, contrapõese a essas duas visões bifurcadas, considerando que nesse processo as forças materiais e as
espirituais estão numa relação de interdependência.
37
“Onde só os caixas altas moram em casas baixas”. Revista Manchete, 05/09/59.
Gilberto VELHO, A utopia urbana: um estudo de Antropologia Social., p.19-20.
39
Cf. Marshall BERMAN, Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.
38
222
Segundo Walter Benjamin, a cidade moderna só pode ser encarada como fruto da
industrialização e do processo de desenvolvimento das forças produtivas, aliada à idéia de um
espírito, uma subjetividade também modernos. Uma cidade moderna possível apenas pelas
materialidades desenvolvidas pelo capitalismo europeu do século XIX, mas que extrapola esta
dimensão, incorporando também a noção de metrópole com uma atmosfera e um clima
propriamente cosmopolitas. Benjamin, ao analisar a cidade de Paris no século XIX, o faz pela
construção de personagens que atuavam no cenário urbano em diferentes campos como o
artístico, tecnológico, político, no campo do planejamento urbano, mas também na boêmia e na
marginalidade, como o trapeiro, a prostituta e o flâneur. Por meio desses personagens, as
passagens/galerias, as avenidas largas, o mercado financeiro, as exposições universais, a multidão
nas ruas, os panoramas, o cinema e a fotografia40, a cidade moderna vai se mostrando.
Para se pensar a metrópole, é necessário levar em conta seus elementos materiais, mas
também essa espécie de atmosfera que a cercava. Considera-se a existência da multidão uma
turba que se adensava como hordas humanas se deslocando no espaço público, compondo um
espetáculo espantoso, surpreendente e indigno por apontar para a questão social de uma
população pobre e muitas vezes miserável. Essa multidão deixa ser encarada, como tantas vezes o
pensamento médico, urbanista e social do início do século XX a ela se referiu, como uma
totalidade ou massa amorfa sem objetivos ou projetos, ameaçadora ao controle e à ordem social41,
passando a ser caracterizada como condição do moderno. Na multidão, é possível a dispersão,
entendida como uma experiência vital num ambiente que promete aventura, poder, alegria,
transformação pessoal e transformação das coisas em redor, mas que também ameaça destruir
tudo o que se é, o que se sabe e o que se tem. Um ambiente onde a tônica é o turbilhão, o
torvelinho de acontecimentos simultâneos e efêmeros sempre em permanente desintegração e
mudança, onde “tudo o que é sólido desmancha no ar”.42 Não há como pensar a cidade moderna
sem pensar na destruição, nas ruínas que vão se justapondo às mudanças. Antigo e novo vão
seguindo conflituosos no espaço físico mas também nos costumes, hábitos e estilos de vida.
40
Walter BENJAMIN, Obras escolhidas. Vol.3.; e também Walter BENJAMIN, Paris capital do século XIX. In:
Flávio KHOTE (Org.). Walter Benjamin.
41
Maria Stella BRESCIANI, Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. E também Maria Stella
BRESCIANI, Metrópoles: as faces do monstro urbano. Revista Brasileira de História. n. 8/9, 1985.
42
Marshall BERMAN,Op. cit.
223
Na cidade moderna, pode-se viver também a aventura dos “choques”43 interpretada por
Benjamin como “alegorias imagéticas”; fragmentos que formam uma subjetividade moderna
caleidoscópica. A constante transformação exterior e interior obriga o homem urbano a um
crescente processo de individuação como modo de manter um núcleo de autocompreensão. Tal
procedimento, segundo Georg Simmel, traria uma subjetividade altamente pessoal que levaria à
dissociação, à indiferença para com os demais, e ao sentimento de solidão. Segundo ele, o
homem das metrópoles vai adquirindo um caráter psicológico e subjetivo cada vez mais
sofisticado para lidar com os estímulos sensoriais e impulsos nervosos a que é submetido a todo
instante no meio urbano.44
O autor, já no início do século XX, refletia sobre a vida moderna e a racionalidade que lhe
é inerente, buscando identificar no tripé indivíduo/vida/cultura a base para o entendimento dessa
nova subjetividade, pautando-se por questões psicológicas. Segundo Simmel, o indivíduo, para
preservar sua autonomia e individualidade entre as esmagadoras forças sociais, tecnológicas,
racionalidades da vida moderna, teria que desenvolver uma subjetividade altamente elaborada
com um forte caráter calculista, intelectual e impessoal, traduzida por um ar “blasé”, fruto desta
elaboração do intelecto, em que os indivíduos passam a filtrar imagens e sentimentos, garantindo
o espaço da subjetividade e da liberdade. Ser blasé não é ser passivo ou estar anestesiado frente
ao turbilhão de acontecimentos cotidianos, mas assumir uma atitude distanciada como uma
espécie de defesa diante do excesso de estímulos nervosos, única possibilidade de sobrevivência
e de exercício de liberdade neste meio.
Compõe-se, segundo Benjamin, uma experiência da modernidade fragmentada – como a
montagem expressa no cinema – na forma de caminhar pela cidade, no convívio com os outros,
na predominância da imagem e do alegórico, enfim, uma nova sensibilidade moderna que o
citadino acaba por desenvolver. Uma experiência sensorial elaborada para suportar as novidades
e a surpresas de um mundo exterior, em que a atenção deve ser redobrada de modo a evitar o
choque, o qual, no entanto, pode gerar um atravessamento, uma desestabilização por via
involuntária e inconsciente, que é a própria possibilidade de sobrevivência da “experiência” na
modernidade. Essas experiências superariam, desta forma, as meras “vivências” advindas da
interiorização e da banalização da informação e da novidade (processo no qual a imprensa teria
43
44
Walter BENJAMIN, Obras escolhidas. Vol.3.
Georg SIMMEL, A metrópole e a vida mental. In: Otávio G. VELHO.(Org.). O Fenômeno urbano.
224
forte responsabilidade) bem como a consciência das fragmentações da vida moderna. O conceito
de vivência se coloca quando fatos exteriores não têm mais a capacidade de se integrarem à vida
interior, quando o choque já não interfere mais nas impressões e sensações postas pelo mundo. A
“experiência” na modernidade, contudo, é sempre feita da colagem e montagem de fragmentos,
numa constelação que remete à idéia de totalidade, mas que é feita de cacos esparsos e
fragmentos perdidos e transitórios, os quais, em algum momento, pela memória involuntária,
efetivam-se como uma experiência45 predominantemente imagética, lembrando a estética do
cinema como uma edição do que foi recolhido pelas ruas da cidade.
Ainda segundo Benjamin, o poeta Baudelaire conseguiu capturar estas nuances da cidade
e da vida moderna, transformando-as em “imagens dialéticas”, as quais possibilitariam ao homem
urbano compor uma experiência onde estas imagens contêm o que a cidade já foi ou pode vir a
ser, misturando as temporalidades do passado, presente e futuro. Essa composição do ambiente
urbano da Paris do século XIX se dá por meio de elementos que sugerem a proeminência do
olhar. São os panoramas, as pinturas, na cidade que lembram o campo, incluindo-o em sua
paisagem; as passagens ou galerias onde o transeunte vislumbrava moda e as vitrines feitas de
ferro e vidro, compondo um espaço intermediário entre o privado e o público; ou ainda as
fisiologias – livros de bolso que se prestavam a descrever os tipos da cidade –, precursoras das
atuais revistas ilustradas e de onde viriam as bases imaginárias para o aparecimento das histórias
de detetive.46
Todos estes elementos pareciam ser indícios de uma preparação do olhar deste homem
urbano para um mundo moderno repleto de imagens, tornando seus equipamentos sensoriais
aptos a lidar com a metrópole moderna como um espaço de choques, onde a superposição de
palavras, gêneros literários e perspectivas de apresentação das imagens vão dando indícios da
mentalidade burguesa que marcaria a fisionomia desse ambiente, propício a situações efêmeras,
“vivências” em que a subjetividade não é mais atravessada por elementos que poderiam
possibilitar as “experiências”.
A idéia do moderno, no Rio de Janeiro da década de 50, sugere uma sociedade onde
indústria, moda, comportamentos, arquitetura e publicidade, no período pós Segunda Guerra
Mundial, passavam por um profundo processo de transformação, configurando um “mundo
45
46
Walter BENJAMIN, Sobre alguns temas em Baudelaire. In: _____ Obras escolhidas.
Wili BOLLE, Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin.
225
novo”, onde elementos do cotidiano eram inseridos na idéia de modernização, valorizando o que
é novidade em detrimento da tradição. No campo musical, esta concepção também se fazia
presente. A Bossa Nova buscava se apresentar como algo inovador que rompe com a
musicalidade anterior e se coloca como vanguarda.
Após o período Vargas e o fim da Segunda Guerra, com a abertura das importações e o
investimento de capital estrangeiro, o país ingressa numa fase de desenvolvimento econômico
mais acentuada, com processos de urbanização e de industrialização acelerados. Neste contexto,
alteram-se também os padrões de consumo. A instituição do salário mínimo possibilitou aos
trabalhadores acesso aos produtos industrializados, impulsionando o consumo e permitindo a
abertura do leque de ocupações no mercado, o que levou à expansão e à incorporação de novos
estratos sociais, com o desenvolvimento dos setores secundários e terciários da economia, que
passaram a abranger também as mulheres e os jovens. Enquanto as camadas populares vão, ainda
que de maneira devagar, conquistando o direito ao consumo, as camadas médias urbanas passam
a ganhar, cada vez mais, força e destaque na economia, na política e na cultura, adotando os
padrões de referências e os valores norte-americanos.47
Um padrão médio de vida consubstanciado nos ideais propagados pela cultura de massas,
que promete felicidade, aventura, beleza e juventude, pautando uma “sociedade de aparências”48,
vai-se solidificando neste momento, pondo liberdade e consumo como lados da mesma moeda.
Uma idéia de modernidade aliada ao ideal de progresso nestes anos de euforia pela
democratização do país e da idéia de que aquela era uma época especial tanto pela conquista do
campeonato mundial quanto pelos “50 anos em 5” de JK, passando pela capital federal com ares
modernos sendo projetada e construída no interior do país, por uma nova música, um novo teatro
e um novo cinema. Uma sociedade “bossa nova”, expressão muito corrente à época, designando
tudo o que fosse moderno, renovador, atual, fruto do progresso e sinônimo da modernidade que a
década de 50 trouxe à tona.
A idéia de metrópole moderna no Rio de Janeiro vai-se completando neste momento,
quando as condições materiais da industrialização capitalista já se achavam colocadas, assim
47
Maria V. de Mesquita BENEVIDES, O governo Kubitschek: desenvolvimento econômico e estabilidade política. ;
Anna Cristina FIGUEIREDO, Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada: publicidade, cultura de consumo e
comportamento político no Brasil (1954-1964). São Paulo, 1996. Dissertação (Mestrado em História). FFLCH USP.
48
Alexandre Pianelli GODOY, Imagens veladas: a sociedade carioca entre o texto e o visor (1952-1957). São Paulo,
2000. Dissertação (Mestrado em História) - PUC/SP.
226
como a estruturação da vida nas cidades com a prática do consumo, a ascensão das camadas
médias pequeno-burguesas e a consolidação de uma cultura de massas, além de uma vida cultural
e uma ambiência cosmopolita cheia de contradições, em que as desigualdades sociais estavam
expostas nas multidões próprias ao meio urbano.
Pode-se pensar nas experiências urbanas daqueles que viviam no Rio de Janeiro, nos
passeios a pé pelas ruas da cidade, nas idas à praia e aos bares, buscando, desse modo, recompor
a zona sul, mais precisamente Copacabana e Ipanema, neste processo de metropolização da vida,
como o já descrito. Um local e uma época que, embora sejam lembrados por sua tranqüilidade,
apresentam-se com aspectos que fogem a esta caracterização unívoca. Antônio Maria, cronista
dos anos 50 e início dos 60, ocupava-se em narrar o cotidiano de Copacabana e de seu submundo
relatando crimes, tragédias, boêmia, prostituição, desamores. Em suas crônicas vai surgindo uma
cidade e um bairro sofrendo melancolicamente por um tempo que passara e que, naquele
momento, era apenas um local de solidão e angústia, com uma multidão acotovelando-se nas
calçadas entre vitrines e bares. Antônio Maria narrava também os passeios das moças, belas
mulheres sem nome ou identidade perdidas no turbilhão da cidade. A crônica vai permitindo que
se interprete indícios do cotidiano desta cidade que se deseja alcançar. Através dos olhos dos
cronistas e dos poetas, ela vai se mostrando estruturada sobre o inesperado, sobre os encontros e
desencontros, um espaço de conflito carregado de erotismo, sedutor e surpreendente. O belo e
conhecido poema de Charles Baudelaire, À uma passante, é a metáfora perfeita para esse
momento. O poeta mostra-se surpreendido e profundamente afetado por uma mulher com quem
cruza em meio ao frenético alarido das ruas de Paris do século XIX. Essa mulher o fascinava em
meio à multidão, despertava seu interesse em meio à massa que a trazia, mas que também a
levava para longe; um amor, assim, à primeira e à última vista. A aglomeração, a multidão
provoca o espanto, o inesperado, o fortuito, despertando repentinos sentimentos, efêmeros.
“Olha que coisa mais linda
Mais cheia de graça
E ela menina que vem e que passa
Num doce balanço
Caminho do mar
Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado é mais que um poema
É a coisa mais linda que eu já vi passar
Ah! Por que estou tão sozinho?
Ah! Por que tudo é tão triste?
227
Ah! A beleza que existe
A beleza que não é só minha
Que também passa sozinha
Ah! Se ela soubesse que quando ela passa
O mundo sorrindo se enche de graça
E fica mais lindo
Por causa do amor”
(Garota de Ipanema, 1962)
Esta canção, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, permite vislumbrar essa situação de
encontro/desencontro no espaço da cidade. Como bem observa Tatit49, a primeira parte da canção
qualifica a moça, caracteriza seu modo de ser e sua maneira de agir, a descreve como bonita,
bronzeada, graciosa, e dona de um balanço que se mostra enquanto caminha até o mar. Nesse
trajeto, ela vem, passa e produz fascínio. Esta descrição – em frases simples e coloquiais, sem
elaborações lingüísticas rebuscadas ou líricas, numa fala cotidiana como um comentário
despretensioso – é embalada numa melodia de notas próximas e reiterativas que tematizam o que
se quer narrar, dando destaque muito mais às matrizes rítmicas bem marcadas, aos ataques de
consoantes que se quer afirmar, permitindo expressar o balanço que envolve a mulher e sua
sensualidade.
Na segunda parte, a descrição eufórica e, ao mesmo tempo, coloquial e amena dá lugar à
expressividade lírica de sentimentos íntimos, quando o narrador se pergunta por que está só, por
que tudo é tão triste e por que existe uma beleza que no entanto não lhe pertence, e “passa
sozinha”. Os sentimentos de vazio e de falta descritos são acompanhados por uma mudança de
tonalidade, um ritmo mais lento, uma melodia com contornos que vão ficando gradualmente mais
agudos e líricos conforme a sensação de tristeza do narrador. Ao final, mesmo voltando a um
esquema melódico e rítmico semelhante ao do início, há ainda notas de tessitura mais estendida,
culminando na frase “por causa do amor” praticamente numa mesma nota.
A Bossa Nova, tantas vezes vista como uma música alegre sem formalizações ou
estruturas musicais passionais e pessimistas, parece estar aqui deixando entrever outras formas de
se sentir a cidade e sua vida cotidiana. Um meio urbano propício ao inesperado como a visão de
uma garota que vem, passa e fascina, possibilitando um encontro que não acontece. Ela não
pertence a ninguém, está de passagem, faz parte do fluxo da vida moderna e de suas liberdades.
Embora a memória oficial sobre a autoria desta canção afirme que os autores conheciam a tal
49
TATIT, Luiz. O Cancionista: composição de canções no Brasil.
228
moça e que travaram com ela contato posterior ao período da composição, a poesia e a música
não se deixam prender assim tão esquematicamente pelas explicações da autoria. Esta canção
aponta para o modo como as narrativas urbanas, por meio de crônicas, poesias e canções, ajudam
a construir uma imagem da cidade composta através das percepções do viver urbano de uma
época, sugerindo aspectos das experiências cotidianas naquele tempo/espaço.
A escuta da canção não se deixa levar completamente pelo fato de Helô Pinheiro – vizinha
do bar onde supostamente foi composta a música, na esquina das ruas Prudente de Moraes e
Montenegro (hoje Vinícius de Moraes) – ser ou ter ficado conhecida pelos autores. As memórias
dos ouvintes, hoje, revelam muito mais a forma como o amor e os encontros que são ali narrados,
tanto nas letras como na estruturação musical, podem ser percebidos como reveladores de uma
liberalidade que era própria da zona sul e de um tempo que se iniciava, compondo uma vida na
metrópole onde o turbilhão de pessoas, acontecimentos, interesses e paixões seriam
preponderantes, independente de sua continuidade ou até mesmo de sua realização concreta.
A cidade da aglomeração, com seus habitantes que tomam as ruas, aponta em Garota de
Ipanema para uma situação de solidão e anonimato, mas também acena com a possibilidade de
encontros que mesmo sendo efêmeros, permanecem. O amor aqui é uma das portas de entrada na
cidade, é ele que obriga a procura e o encontro, nutrindo-se das surpresas, do inesperado e do
desconhecido oferecido pelo meio urbano cosmopolita. Ao falar de sentimentos íntimos e
particulares, a música fala também da experiência que é viver nas ruas, lançando-se à
mundanidade, à procura de vida.
Segundo Benjamin, a cidade da multidão, a selva ou “floresta de símbolos” é também o
lugar onde é possível o anonimato, o refúgio, o esconderijo. Ao analisar a obra de Baudelaire
como a própria alegoria da modernidade e da figura de um artista no mundo do mercado, o
filósofo alemão aponta para o fato de que o poeta tendo sido tradutor de contos policiais como os
de Edgar Allan Poe, acabou por adotar também o gênero – embora nunca tenha produzido
nenhum romance policial –, deixando sua obra ser perpassada por esta forma de fazer literatura.
Os elementos decisivos desse gênero, segundo Benjamin, estariam também na obra do poeta: a
vítima e o local do crime, o assassino e a massa, a cidade de labirintos que guardava mistérios a
serem lidos por quem nela caminhasse e se perdesse, rasgada que era pela própria condição de
modernidade.
229
Assim, não por acaso, é com a metrópole moderna que surge o romance policial, como
gênero literário, com a idéia do criminoso que se esconde na multidão, em seus meandros,
submundos e também a figura do detetive buscando, por meio dos vestígios deixados nas
fisionomias, nas imagens, nas pegadas e nos cacos da cidade, indícios do que se quer achar,
pondo em pauta a idéia de que era preciso também saber decifrar a cidade. Neste sentido, vai
surgindo uma modernidade pelo avesso, seu outro lado composto por um submundo de
prostituição, vagabundagem, marginais e bas-fond.50
Na imprensa carioca, já desde o século XIX, é possível perceber a presença desta imagem
da cidade como local do mistério, embora o Rio ainda não fosse uma metrópole industrializada.
Discursos médicos, policias e também folhetins, além das crônicas e dos contos evidenciavam o
medo.51 Durante o século XX, esse elemento vai se intensificando e modificando-se. Nos anos
50, é possível perceber mais claramente a disseminação deste sentimento por meio das crônicas
de Copacabana de Antônio Maria, dos romances-folhetins de Nelson Rodrigues ou, deste mesmo
autor, os textos publicados em seção fixa no Jornal Última Hora intitulada “A vida como ela é”.
Por meio dessa produção literária, ia sendo resgatado aspectos da modernidade que não eram
enfatizados nos discursos hegemônicos, fazendo com que surgisse uma cidade sem aura, sem sua
dimensão de beleza ou cultura, a “cidade das letras”.
A escrita do cronista surge, diz Benjamin, como a possibilidade de sobrevivência da
narrativa na modernidade, aquela que une narrador, narrativa e receptor na mesma cadeia de
experiências, onde se intercambiam passagens e imagens, em que é possível o inacabamento, os
fios soltos, a abertura para que possam ser geradas outras narrativas52. O cronista moderno surge
exatamente no momento da imbricação entre os diferentes tipos de literatura (o que Baudelaire
personificava), em que o artista, escritor, transformando-se também em mercadoria, é obrigado a
cronicar, uma vez que a dimensão aurática da literatura não lhe permite mais sobreviver no
mundo capitalista do mercado.
Benjamin argumentava sobre as dificuldades de sobrevivência da narrativa nas sociedades
modernas, uma vez que as experiências estavam se perdendo, sendo substituídas por meras
vivências.53 Isto se deve, segundo o autor, à falta de comunicabilidade entre narrador e ouvinte,
50
Walter BENJAMIN, Paris capital do século XIX. In: Fávio KHOTE (Org.), Walter Benjamin.
Cf. Robert Moses PECHMAN, C idades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista.
52
Cf. Walter BENJAMIN, O narrador. In: Obras escolhidas. Vol. 1.
53
Walter BENJAMIN, Experiência e pobreza. In: Obras escolhidas. Vol.1.
51
230
impossibilitando a integração desta narrativa no ouvinte, pondo uma distância cada vez maior e
mais rápida entre as gerações, além da divisão social e técnica do trabalho que fragmenta o
tempo, dificulta ou até mesmo impede a narração das experiências em meio a este ambiente. Por
outro lado, o papel da imprensa, do jornal e da notícia, aspirando a uma verificação imediata e
relacionando-se com o que é próximo e compreensível em si mesmo, distancia-se da narrativa,
cuja principal característica é a abertura para a interpretação e a possibilidade da releitura. A
imprensa vai surgindo na modernidade como aquilo que se institui e se alicerça como verdadeiro,
tendo como função a objetividade e a isenção na descrição dos acontecimentos.
Na análise das memórias dos ouvintes da Bossa Nova, em paralelo com a análise da
imprensa do período, percebe-se uma tensão entre uma “cidade da memória” e uma “cidade da
história” tida como verdadeira e tornada narrativa por meio da imprensa. Uma tensão que se
instaura entre uma cidade ideal da memória e a cidade como ela “era” contada pela imprensa.
Cumpre sublinhar que a função de narrar a tradição e os acontecimentos relacionados à
comunidade foi em parte assumida pela imprensa na modernidade, uma vez que o romance –
nascido da separação entre indivíduo e sociedade – ganha a função de contar sobre o indivíduo,
passando a difundir as dimensões de experiência do autor e não mais a universitas.54
A perspectiva adotada aqui, quando se toma a imprensa como fonte, é pensá-la como
discurso sobre o real, como representação que veicula normas e ideologias, e não o real tal como
foi.55 Da mesma forma, não se compreende que estas “cidades” – a real e sua representação –
estivessem tão polarizadas assim, sem intermediações ou pontos de contato. Nas memórias que
constróem um ideal unívoco dos anos 50 como tempos melhores, existem silêncios,
esquecimentos, detalhes, pausas, elementos involuntários que permitem a interpretação de
mediações entre estas cidades apenas aparentemente polarizadas.
“A verdade é essa, que a maioria [das canções da Bossa Nova] mostra coisas bonitas, alguns fazem
engraçadinho, alguns fazem sério (...) mas a grande maioria mostra o amor, mostram o belo ... ou... pelo
56
menos... a ilusão do belo, a ilusão do amor, que podem não ser uma realidade....”(Chico Feitosa )
Neste depoimento, a forma como Feitosa vai construindo sua narrativa é fundamental para
compreender o sentido do que está sendo dito. Ao mesmo tempo que afirma que a Bossa Nova
54
Verena ALBERTI, Literatura e autobiografia: a questão do sujeito na autobiografia. Estudos Históricos, v.4, n.7.
p.73.
55
Renée ZICMAN, História através da imprensa: algumas considerações metodológicas. Projeto História, n.4.
56
Depoimento concedido em 22/04/96, no Rio de Janeiro.
231
falava do belo, bonito e harmonioso, também assume esses ditos como falas ilusórias. As
reticências e sinais gráficos da transcrição não conseguem dar conta da carga de sentimentos que
invadiram o depoente neste momento, quando deixa transparecer a ambiguidade de suas
memórias que, embora pareçam querer construir univocamente o passado, deixam vir à tona
certos elementos que dão conta, não apenas da ambigüidade da própria memória, mas também da
existência de situações conflituosas deste passado rememorado e deste presente de onde partem
as bases do discurso.
“Vida noturna: o espetáculo começa quando a persiana sobe. (...) Os notívagos não mudam, mudam as
boates. Com o incêndio do Vogue, surgiu o Sacha’s, sempre lotado pelos grã-finos, políticos e homens de
negócio (...) “Beco das garrafas”: das portas das boates saem notívagos; das janelas dos edifícios saltam
57
garrafas. É a lei do silêncio.”
Nos final dos anos 40 e durante a década de 50, Copacabana passou por um intenso
crescimento demográfico. Um livro escrito em 1959, que se propunha a contar a história do
bairro, relata o deslocamento de pessoas que deixavam casas grandes e com jardins e se
transferiam para Copacabana. Esse movimento de migração interna fez com que o bairro
passasse de 74.133 habitantes em 1940, para 129.249 em 1950, um salto de 74%, numa única
década. Em 1959, sua população já era calculada em 300.000 habitantes.58 A vida noturna,
movimentada por cantinas, bares, restaurantes, hotéis e boates, espalhava-se pelas ruas do bairro,
apesar de se concentrar principalmente na avenida da praia, a Avenida Atlântica, e em suas
travessas. Todas essas mudanças são relatadas pela imprensa, como no trecho anteriormente
citado. Mas paralelo a esse processos, surgiam novas profissões e formas de auto-sustentação,
“Enquanto isso, sem incursões na vida noturna, outros inventam profissões para ganharem o pão de cada
dia. (...) Os “olheiros”, por exemplo, são molecotes que fazem verdadeiros loteamentos das calçadas dos
cinemas, para dizerem que tomaram conta dos automóveis estacionados. (...) A Polícia de Copacabana é
deficiente porque está mal aparelhada. A população cresceu e a Polícia continuou na mesma, se não
regrediu. (...) Com o aparecimento do 2º Distrito Policial, em Ipanema, as responsabilidades foram
divididas. Ainda assim, falta muito para uma perfeita repressão ao crime que se alastra de forma
alarmante. Os assaltos e furtos se repetem a cada instante. (...) a insegurança da população é quase
59
total.”
57
“Copacabana nua e crua”. Revista Manchete, 08/60. p.74-9.
Eneida BERGER e Paulo BERGER. Copacabana: história dos subúrbios. s.n., p.8.
59
“Copacabana nua e crua”. Revista Manchete, 08/60. p.74-9.
58
232
Esta matéria, intitulada “verdade com números e fatos” descreve o bairro, suas ruas, seus
habitantes e frequentadores, destaca os locais de lazer e a praia, acentuando aspectos negativos
como a violência na noite, a “delinqüência juvenil”, a superlotação das ruas, a alta densidade
demográfica (30 habitantes por metro quadrado), a poluição da praia e as favelas que rodeiam os
prédios. Um texto que se apresenta como verdade única, absoluta e comprovada dos fatos,
mostrando a “verdade nua e crua”.
Porém, não se trata de um texto informativo pura e simplesmente, trata-se de uma crônica
composta por elementos que apontam para uma cidade equilibrada e ordenada (aquela que se
queria), com o cosmopolitismo de “Paris, Nova Iorque ou Roma” – o que traz o “bom gosto por
contágio” – convivendo com “donas-de-casa refinadas”. Do outro lado deste refinamento está a
cidade “real”, com problemas derivados deste próprio desenvolvimento. Por trás da expressão
“espetáculo noturno”, está uma cidade com notívagos em boates mas também uma outra com
“molecotes” nas calçadas.
É construída assim uma cidade ambígua. A crônica, ao interpretar a vida de todo dia para
si e para seus leitores a partir da seleção e da interpretação do que seja esse cotidiano, mostra-se
uma fonte preciosa para a compreensão deste mesmo cotidiano em suas multiplicidades e
tensões. Presente na história carioca desde as primeiras décadas do século XIX, ela ajuda a
elaborar um ideário de cidade não mais como aquela dos viajantes que narram o exótico,
diferente também do discurso médico voltado para as doenças e miasmas sociais e morais. A
crônica fala da vida de todo dia, configurando uma urbanidade na qual, como coloca Robert
Pechman, a cidade vai assumindo sua face “potencialmente cosmopolita” devido à sua
“capitalidade”.60
O cronista é o narrador da história do cotidiano. O que o diferencia em relação ao
historiador tradicional é que este último deve ficar atento muitas vezes à estrutura do texto, à
erudição, a comprovação dos fatos com fontes fidedignas e a uma compreensão imparcial das
mesmas associadas às explicações verificáveis. O cronista, por sua vez, é livre para fazer a
seleção e a interpretação dos fatos, sem a preocupação com o encadeamento linear e exato destes,
construindo um comentário quase que impressionista e subjetivo, uma espécie de figura
caleidoscópica. No entanto, entre historiador e cronista é possível identificar uma espécie de
mútua influência, isto desde que se possa libertar-se de um objetivismo positivista, incorporando
60
Robert Moses PECHMAN, C idades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista.
233
o olhar e a sensibilidade do cronista em relação aos detalhes e ao que parece insignificante.
Ambos, assim, teriam como objeto de construção a memória, fazendo vir à tona imaginários
sociais, visões de mundo e de uma época, construindo lugares da memória e suportes físicos que
exercem função material e simbólica. 61
A crônica, como modalidade da literatura urbana, surge como a possibilidade da narrativa
na modernidade, na vida das cidades, como o que conta, relata e interpreta experiências. Isto traz
a marca do cronista, como a “mão do moleiro no argila do vaso”, gerando comentários, debates
posteriores, críticas e releituras. Como aponta Beatriz Resende62, o Rio de Janeiro é a cidade da
crônica, o lugar, no Brasil, onde esta forma nasceu, cresceu, e se fixou de modo peculiar, numa
perspectiva de, ao falar da cidade, falar do país. O Rio de Janeiro era a capital do Império e
depois capital da República, tendo sobre si a responsabilidade de encabeçar um projeto de nação.
Desde o século XIX, quando as crônicas eram publicadas nos jornais ao lado das contribuições
européias como os romances-folhetins, numa aspiração ao cosmopolitismo das letras e da cidade,
assumiram papel de destaque cronistas como Benjamin Constallat, João do Rio, Lima Barreto,
Nelson Rodrigues, Antônio Maria, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Marques Rabelo,
Ibrahin Sued, Tutty Vasques, entre tantos outros que até hoje continuam narrando
incansavelmente o cotidiano das cidades.
A crônica deve ser encarada como algo que nutre relações com a ficção e a realidade,
jornalismo e literatura, narrativa e História; uma interpretação subjetiva em formato textual. Em
outros momentos da década de 50, pode-se perceber artigos na imprensa que, preocupados em
apresentar os problemas da metrópole em formação, oferecem subsídios para interpretar esta
cidade em toda sua ambiguidade.
“O mar continua se justificando nas praias cariocas. Não fora ele e teríamos uma população de gente suja,
encascarrada, tresandando odores não muito recomendáveis. Porque água não existe nos chuveiros da
zona sul. Nem para homeopatia. (...) Pedro Álvares Cabral ficaria muito surpreso se resolvesse redescobrir
o Brasil, neste verão apimentado, e lançasse as âncoras de suas naus nas águas outrora límpidas do
63
Arpoador.”
61
Margarida de Souza NEVES, História da crônica: crônica da história. In: Beatriz RESENDE (Org.), Cronistas do
Rio.
62
Beatriz RESENDE, Rio de Janeiro, cidade da crônica. In: ___ (org.) Cronistas do Rio.
63
“Com calor e sem água a vida é melhor”. Revista O Cruzeiro, 20/03/54.
234
Aqui, a falta de água na cidade é compensada pelo mar que, apesar de estar poluído, é a
única saída para os odores e as sujeiras resultantes desse problema de abastecimento que dificulta
a vida da população no “apimentado” verão carioca. Apesar do tom de crítica, mais adiante, no
mesmo texto o autor se desculpa por estar falando mal da cidade. Ele faz isto citando a afirmação
do escritor Rainer Maria Rilke de “jamais escrever sem estar sentindo realmente necessidade de
fazê-lo”, conselho que, segundo o próprio cronista, está sendo contrariado no seu texto. Aqui
mais uma vez estão as duas formas da crônica falar da cidade, uma ressaltando seus defeitos e
sentindo que sua beleza está se perdendo e outra, por conta desta percepção, posta por uma certa
hesitação em criticá-la. Convém perguntar por que a crônica é tão lida e apreciada no Rio de
Janeiro. Pode-se afirmar que nos anos 50, particularmente, elas traduziam uma cidade que já não
era tão tranquila, pacata ou calma, colaborando para a adaptação dos leitores aos novos tempos,
atuando como narradoras do dia-a-dia e de suas mudanças, preparando sensibilidades e
subjetividades a partir das experiências vividas dentro de um processo de metropolização. As
canções da Bossa Nova, tematizando a cidade e sua vida, podem ser vistas como crônicas do
meio urbano, narrativas que resistem à dissolução provocada pela modernização.
Está também na imprensa a demonstração de aspectos de uma cidade que, para além de
seus problemas operacionais (com o trânsito, e as telecomunicações, por exemplo), salienta certos
elementos ligados à moral e aos comportamentos que se queria regrar.
“Em qualquer esquina da cidade, hoje se vende cigarro de maconha, e em qualquer rua movimentada ou
pacata dos nossos subúrbios, do centro, de Copacabana, Leblon e Ipanema, fuma-se maconha como se
fuma qualquer cigarro de fumo inofensivo, tranquilamente, sem sustos (...) os viciados deixaram de ser
apenas os marginais (...) Viciado em maconha agora, tanto pode estar o menor de idade, levado à prática
por um coleguinha de colégio que fumou “de brincadeira”, num apartamento, como o filho mais velho,
que resolveu “experimentar” e ficou gostando. E também a filha, maior ou menor de dezoito anos, que,
com o namorado, livro debaixo do braço, vai com um pequeno grupo “matar” aulas na Quinta da Boa
Vista, no cinema ou em qualquer lugar em que esteja longe das vistas dos mais velhos. O vício não escolhe
64
caras.”
Aqui está um “mal da cidade” que parecia vir se alastrando: o problema das drogas e do
vício. Apesar de não ser novidade, a situação se agravava nesse momento, porque passava a ser
algo que estava chegando às famílias dos bairros da zona sul e, de modo mais preocupante, aos
jovens. Uma reportagem recheada de fotografias com “flagrantes” desses jovens fumando,
64
“Vício dentro da noite”. Revista Manchete, 03/59.
235
revelava-se como “furo” com a pretensão de traduzir a realidade incontestável, visível e por isso
comprovada.
Entre a cidade idealizada e construída pela memória e uma cidade em desequilíbrio com
jovens “viciados” – pertencentes à famosa designação comum à época de “juventude transviada”
–, existiriam outras cidades ou melhor dizendo, outras experiências urbanas, postas por habitantes
que não se enquadravam nestas noções polarizadas. Essas experiências urbanas são plurais, fios
de práticas nas mediações tensas do cotidiano. A reportagem revela ainda que a vida noturna
retratada pelas câmeras fotográficas e pelo jornalista é desafiadora e perigosa, acontecendo em
um local propício para práticas desviantes. Se constitui um discurso normativo que busca regrar a
cidade em suas artérias, ruas e esquinas, apontando para o que não deve ser aqui representado
pelos consumidores da “erva maldita” e pela inação da polícia carioca que “não toma
conhecimento” permitindo, dessa forma, a livre ação dos “atravessadores”. A cidade construída
nesta matéria está fugindo ao controle, está em desequilíbrio e alheia ao padrão que se inferia.
Antônio Maria, narrador boêmio melancólico das noites de Copacabana trazia para seus
leitores um mundo de contrastes onde o ideal de modernidade, sofisticação e embelezamento,
referenciais hegemônicos do bairro, eram
postos a nu por um lado trágico, feio, podre e
marginal. Antônio Maria, no século XX, no Rio de Janeiro e Baudelaire, no século XIX, em
Paris, apresentam pontos em comum: ambos criticavam a modernidade e o lucro fácil, o mercado
das letras e das artes, o escritor como mercadoria tal como uma prostituta; ambos com uma
melancolia refugiada nas drogas ou no alcoolismo, mas também no lirismo, deixando-se perder
na multidão sem perder a consciência de si mesmos (“ninguém me ama, ninguém me chama de
Baudelaire”); ambos solitários dentro dessa multidão mas em contato direto e diário com ela,
procurando dar-lhe uma alma. Cronista e poeta revelam aquilo que é próprio à vida moderna,
uma espécie de contradição, o paradoxo entre pertencer e não pertencer, entre criticar e se deixar
deslumbrar pelo consumo e pela vida moderna. Antônio Maria dizia, como aponta Vera Lins que,
“escrevia para aliviar a memória”65. Tal qual Baudelaire, a memória lhe era algo caro, mas era
próprio de sua modernidade saber de sua força e de sua fragilidade, saber do vigor do presente e
sentir sua morte próxima, a efemeridade da modernidade66. Ambos falavam, narravam, buscavam
compreender os tipos da cidade, as máscaras dos citadinos, seus personagens, como uma tarefa
65
Vera LINS, Antônio Maria: Baudelaire nas noites do Rio. In: Beatriz RESENDE (Org.), Cronistas do Rio.
Jeanne Marie GAGNEBIN, Baudelaire, Benjamin e o moderno. In: ___Sete aulas sobre linguagem, memória e
história.
66
236
desenvolvida à margem da tradição oficial que salientava os outros rostos dessa metrópole que
não devem ser encarados como opostos aos normativos, mas em confluência, como encontros e
misturas que a cidade polifônica e polimórfica apresenta.
De uma outra forma, esta cidade que está fugindo ao controle regrado apresenta também
na imprensa seus comportamentos.
“cada um namora como pode (...) senta numa laje fria, ao lado de sua amada, e finge que está olhando o
mar, a lua, as estrelas - mas o que ele está mesmo é vigiando pra ver se não aparece um guarda. (...)
Encontrar um banco vago, depois das dez da noite, na orla marítima carioca é mais difícil que estacionar
carro às três da tarde, no centro da cidade. Os casais de namorados se sucedem, uns ao lado dos outros,
numa demonstração incontestável de que até o romance se encontra inflacionado. As calçadas das praias
67
se transformam numa vitrine de amor exibido nas suas formas mais estranhas.”
A descrição dos namoros na orla da praia descreve uma cidade lotada e “inflacionada” até
no que diz respeito ao “romance”. Essa cidade que se quer normatizar desqualifica as
demonstrações de carinho em público, vistas como formas “estranhas” e, de certa forma, ilegais,
uma vez que os jovens ficam atentos à vigilância policial. Esta cidade foge às regras, não só em
seus submundos marginais, nas suas entranhas mas também em sua roupagem, em que a praia
passa a ser não só vista como uma vitrine comportamental, mas também como localização
geográfica estratégica; a extremidade da cidade mas também seu coração, onde a vida pulsa,
tornando-se, portanto, um lugar que deve ser vigiado e controlado de modo a evitar excessos.
Os jovens namorando à noite na praia, escondidos, longe dos olhares disciplinadores dos
policiais ou dos mais velhos estariam evidenciando uma outra espacialidade, compondo o que
Michel de Certeau considera como “práticas estranhas ao espaço geográfico das construções
visuais, panópticas ou teóricas”, uma forma específica de operações ou “maneiras de fazer”68. Em
outras palavras, estas indeterminações apontam para práticas dos jovens na cidade que,
encobertas pelo discurso regrador não puderam ser documentadas, mas que parecem constituir-se
nas práticas efetivas e concretas do cotidiano tenso que se quer recuperar.
Muitos ouvintes falam sobre o modo como se apropriavam do espaço, mantendo-se
alheios ao processo planificador racional do desenho das ruas, das praças, dos locais permitidos e
dos interditados, elaborando uma outra leitura da cidade, com um uso alternativo dos espaços
ocupados ou percorridos, efetivando locais de convívio, compondo uma experiência que não se
67
68
“O amor apanhado em flagrante”. Revista Manchete, 12/09/59. p.34-7.
Michel de CERTEAU, A invenção do cotidiano - 1. Artes de fazer, p. 172.
237
enquadrava completamente no uso da topografia da cidade como queriam os discursos
normativos. Muitas vezes o planejamento funcional buscou combater os recantos que os
indivíduos escolhiam para viver, um canto da praia, as pedras do Arpoador não iluminadas, um
muro de terreno baldio onde se recostavam, marquises de prédios sem gradios que agora o isolam
da rua – todos elementos que fazem falta e que a memória registra como resistência às
mudanças.69
Sob a cidade real, fisicamente tangível, esquadrinhada por técnicos na racionalidade
aparente das edificações e do quadriculado de ruas, avenidas e praças existe uma outra cidade que
guarda semelhança com a primeira, mas que, no entanto, mostra-se como um plano não explícito,
tecido por usos e apropriações da sua topografia, fruto da atividade conotativa de ler a cidade a
contrapelo, construindo referências simbólicas com fortes significados para quem as viveu.
Entre uma “cidade ideal”, imaginária e uma “cidade real”, que se quer verdadeira, há
diversos elementos de confluência, em que a memória estaria não apenas construindo sentidos de
uma cidade ideal e a imprensa apenas constituindo aspectos de uma cidade equilibrada que se
queria, mas colocando estes discursos em diálogo, muitas vezes interpenetrando-se e redefinindo
fronteiras, pois ajustam-se ora mais para um lado, ora para outro.
“Cada esquina do Rio de Janeiro guarda uma surpresa. Sua ternura se derrama, mansa e gorda, sob mil e
um aspectos.(...) A cidade profundamente ela mesma : inigualável. A Candelária com sua moldura móvel de
nuvens, a cada hora é diferente. Com o tapinha nas costas é que funciona a cordialidade dos cariocas. (...)
O poeta disse que era 300, era 350. E quantas cidades coexistem neste Rio único ? (...)Por tudo isso, e pelo
70
mais que não ocorre no momento, é que o Rio se faz a mais querida entre as cidades queridas.”
Este discurso da imprensa procura resguardar uma cidade que se queria; para isso não só
aponta os seus males, mas também uma cidade ideal, “única”, “querida”, “terna” e “inigualável”,
com um “sol-poeta que reinventa a fachada dos prédios”, isto é, uma cidade com cada vez mais
edifícios, novas construções, mas ainda com “ternura”, “brejeira em Copacabana ou suburbana
nos subúrbios”. No entanto, é preciso notar, esta própria matéria aponta para uma cidade que já
não se tem, uma cidade que já “não ocorre no momento”, ou que não se consegue ver, pois
intitula-se “apesar dos pesares, cidade maravilhosa”, numa espécie de discurso tomado pela
nostalgia.
69
70
Ecléa BOSI, Memória e sociedade.
“Apesar dos pesares, cidade maravilhosa”. Revista Manchete. 04/59. p. 84-9.
238
Bela é a idéia de que “cada esquina guarda uma surpresa”, numa alusão ao fato de que, a
despeito da racionalidade do planejamento urbano as surpresas ainda são possíveis.
“Os que nasceram no Rio ou há muito tempo moram aqui, passam sem ver pelos mais curiosos aspectos da
cidade que o povo já está chamando Velhacap. Aos olhos de um homem chegado das brumas londrinas
para o valente sol carioca nada, entretanto, nada passa desapercebido, tudo merecendo atenção. (...) são
necessários olhos de ver. Olhos que saibam retirar de cenas mais aparentemente comuns todo o seu
71
substrato de poesia. Nós cariocas, natos ou por livre escolha, já não vemos nada disso.”
Ainda dentro dessa polarização entre o que se quer e o que se tem, o texto aponta também
para o fato que os seus habitantes não conseguem mais ver, numa alusão à uma experiência que
suprime o tempo para ver, perceber e sentir de modo a assim retirar “substratos de poesia”. Só o
estrangeiro (no caso, um fotógrafo inglês que fez o registro fotográfico a partir do qual o texto foi
construído), aquele que vem de fora, é capaz de ver esta cidade desejada. Esta afirmação se
assenta sobre a idéia de que para perceber a cidade é necessário um certo distanciamento, um
pertencer sem pertencer, de modo a ser possível o estado de espanto diante de fisionomias e
situações que provocam a imaginação. Há também um distanciamento temporal de quem não está
completamente inserido ou alienado na modernidade e que faz da cidade moderna uma cidade
também antiga.
Esta imagem da cidade construída é sutil, mostrando a cidade ideal como a que já não se
consegue ter, numa situação de diálogos e tensões entre o “dever ser” e o que “era”, em busca de
conhecer as apropriações e as mobilidades que fogem ao normativo e ao que se quer para as
práticas do espaço. Lembrando mais uma vez Michel de Certeau72, seria como capturar “alguns
dos procedimentos – multiformes, resistentes, astuciosos e teimosos – que escapam à disciplina
sem ficarem mesmo assim fora do campo onde se exerce”, os quais aparecem “sob os discursos
que a ideologizam, [a cidade]” proliferando-se em “astúcias e combinações de poderes sem
identidade legível, sem tomadas apreensíveis, sem transparência racional”. Um uso da cidade
aberto ao acaso, sem a racionalidade cartesiana da linha reta, da geometria e da exatidão,
sugerindo a idéia do “jogo de azar”, do jogador que num lance de sorte pode ter tudo
modificado73.
71
Idem. p. 87.
Michel de CERTEAU, Op. cit., p. 174-5.
73
Olgária MATOS, O direito à paisagem. In: Robert PECHMAN (Org.). Olhares sobre a Cidade .
72
239
Nas análises já feitas sobre o movimento musical da Bossa Nova, as referências ao Rio
de Janeiro, mais precisamente, a lugares específicos são recorrentes. Estas construções demarcam
um olhar que se constrói não apenas nas imagens visuais da cidade, mas também em “trilhas
sonoras”. As canções, por muitas vezes, trazem referências não só à uma vivência carioca, um
jeito de ser, um estilo de vida próprios ao Rio, como também faz alusões claras a lugares e
paisagens, construindo referenciais, que denotam uma imagem da cidade até hoje. Paisagens
visuais e sonoras sobrepondo-se num texto que vai sendo lido, escutado e decodificado de
diversas maneiras.
Percebe-se e interpreta-se uma cidade de outrora, não apenas por ela mesma como um
lugar onde se desenrolam as ações, mas como um meio urbano que, na dinâmica de suas
modificações físicas e provocadas nos imaginários, interage com os seus habitantes. Criam-se
vínculos afetivos, pontos de identificação que se tornam referência comum a um sem número de
pessoas. Estes pontos de referência e de identificação sublinham aspectos das formas de perceber
a cidade que entravam em jogo ainda no início da década de 50. Voltando a Benjamin e a sua
descrição dos panoramas na cidade moderna, como grandes pinturas feitas nas ruas ou em locais
públicos, imitando de forma perfeita a natureza, e também considerando o surgimento de uma
literatura panoramática recheada de imagens do campo e da natureza, pode-se pensar que havia
no habitante da metrópole um novo sentimento, uma nova necessidade: a de trazer o campo para
dentro da cidade de modo que esta se abrisse em paisagem.74
Sem paralelismos, anacronismos e apropriações conceituais indevidas, é possível perceber
a presença deste sentimento que os panoramas e a literatura panoramática deixam entrever na
Paris do século XIX também na Bossa Nova nos anos 50 e 60. Dizendo de outra forma, pode-se
falar, analogamente, de um certo espírito na cidade que constituiria uma “música panoramática”,
revelada pela Bossa Nova. São canções que se referem ao idílio e à paisagem natural, numa
perspectiva de exaltá-la. Um exemplo é a Sinfonia do Rio de Janeiro, composta em 1954 por
Tom Jobim e Billy Blanco, uma suíte composta de onze músicas, que têm como base, a cidade do
Rio e seus elementos – suas belezas e seu cotidiano – mostrando-se como uma tentativa de
representação do Rio como um todo, onde os compositores falam do local em que viviam, a zona
sul, Copacabana, Arpoador, as praias, as montanhas, o sol, o mar, mas falam também do morro e
de seus elementos como a pobreza, a “pureza cultural”, o samba, o Carnaval e o dia-a-dia dos
74
Walter BENJAMIN, Paris capital do século XIX. In: Flávio KHOTE (Org.), Walter Benjamin.
240
trabalhadores. Na Sinfonia, as montanhas, os morros da cidade são colocados como um
componente a mais nas referências ao que é belo no Rio, suas inúmeras montanhas compõem
com o sol e o mar, a paisagem propícia para a felicidade, para a realização pessoal, e para a
essencialidade da vida ligada à natureza, compondo um discurso do olhar para si mesmo e para os
sentimentos, inspirados pela paisagem carioca. A natureza aqui relacionada se entrecruza com os
sentimentos, pois – como sugerem os compositores – depois de ver “o sol, a montanha e o mar” e
“depois de ver, sentir e amar”, numa clara articulação entre a paisagem natural e a vida cotidiana,
“nada mais importa”.
Além das letras imagéticas, a própria estruturação musical vai compondo uma sonoridade
que também pode ser interpretada como possuidora de elementos da paisagem natural. Na sua
orquestração elaborada com aberturas e interlúdios representando sons do amanhecer, do mar dos
pássaros e da vida agitada na cidade, há um reencontro com a natureza ao final. Tal qual o
movimento musical romântico já o fazia, aparece aqui um tom de melancolia e de busca de
preservação da tradição diante da ameaça de destruição trazida pela modernidade. Tudo isso
expresso em sua estruturação musical. A primeira gravação, feita ainda em 1954 pelo selo
Continental, tendo como intérpretes cantores que já gozavam de certo prestígio e faziam parte do
cast da gravadora, como Dick Farney, Lucio Alves, Nora Ney, Doris Monteiro e Os Cariocas,
não fez sucesso à época, o que pode ser explicado tanto por ter sido gravada em LP, que era ainda
um artigo de luxo no Brasil, mas também por ter um forte cunho erudito, reforçado por seu lado
B que trazia orquestrações elaboradas. De qualquer forma, essa gravação já anunciava algumas
questões que seriam trabalhadas e formalmente elaboradas pela Bossa Nova, como a
interpretação já diferenciada dos cantores com uma performance vocal sem empostação,
contrariando o que era comum no rádio da época, além da já discutida evocação a natureza.
Essa forte tendência em evocar a natureza, torna-se curiosa numa cidade onde a paisagem
natural está tão próxima, tão presente, e pode levar a uma leitura de que apesar dessa
proximidade, paira no ar uma sensação de perda, um sentimento de que a vida moderna e seu
turbilhão roubava o tempo de olhar para a natureza de modo a senti-la como marca presente,
tornando-se necessário falar explicitamente sobre ela.
“Minha alma canta
Vejo o Rio de Janeiro
Estou morrendo de saudade
Rio, teu mar, praias sem fim
241
Rio, você foi feito pra mim
Cristo Redentor
Braços abertos sobre a Guanabara
Este samba é só porque
Rio, eu gosto de você
A morena vai sambar
Seu corpo todo balançar
Rio de sol, de céu, de mar
Dentro de mais um minuto
Estaremos no Galeão
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro
Aperte o cinto, vamos chegar
Água brilhando, olha a pista chegando
E vamos nós
Pousar”
(Samba do avião)
Nesta canção de 1962, Tom Jobim deixou claro a inspiração da natureza carioca na Bossa
Nova. Ele anuncia explicitamente seu amor à cidade. É a alma do compositor - alegre, inspirada e
emocionada -, quem a canta e a retrata especificamente em seus elementos naturais sobrepostos
num plano aberto, acessíveis ao olhar do viajante que retorna com saudade ao seu lugar de
origem.
Esta canção veio a público no show Encontro, produzido em 1962 por Aloysio de Oliveira
no bar Bom Gourmet, reunindo Tom Jobim, Vinícius de Moraes, João Gilberto e Os Cariocas.
Numa temporada de 45 dias, com casa sempre cheia, foram lançadas canções que se tornaram
clássicos da Bossa Nova como Garota de Ipanema e Samba do Avião que só foi gravada no ano
seguinte. No exterior, foi interpretada por Charlie Byrd e no Brasil, por orquestras ou grupos
instrumentais que proliferavam na época como o Tamba Trio e o Bossa Três, todos de inspiração
jazzística. Em 1964, foi gravada pelo grupo Os Cariocas. A gravação por grupos pode ser
justificada em função de sua harmonia altamente elaborada e complexa, propícia à utilização de
variados instrumentos, bem como a arranjos vocais que sabiam explorar esta riqueza de acordes.
Já em 1964 e 65, começou a ser gravada por cantores solo, como Wilson Simonal em 1964,
Sylvia Telles e também Leny Andrade em 1965.
Uma das gravações mais conhecidas de Samba do Avião é a do próprio Tom Jobim, ainda
na década de 60, com uma orquestra fazendo o acompanhamento, o que era comum nos anos 50.
A inspiração de Jobim parecia vir dos tempos em que era arranjador das rádios e gravadoras do
Rio de Janeiro, quando foi influenciado pela música americana ligada à Glenn Miller, Frank
Sinatra, George Gershwin, entre outros, em detrimento das vertentes mais profundas do jazz.
242
Uma música americana conjugada aos avanços tecnológicos produzidos no campo musical (hi-fi),
produzindo um mundo ideal, acima dos conflitos, voltado para a fantasia, deleite, romance,
aventura e sonho, como se pode verificar nos musicais dos anos 50. Um mundo posto pela cultura
de massas, em que a felicidade, a realização, o final feliz, o amor e a aventura assumem papéis
preponderantes, mas que, no entanto, colocam-se de maneira complexa no meio social,
assumindo, ao mesmo tempo, papéis de projeção e identificação que têm como base o indivíduo
privado, para quem interessa a felicidade pessoal e as emoções eufóricas75. Uma paisagem sonora
que sugere felicidade e realização, reforçando a poesia que narra a volta à bela cidade e sua
paisagem visual.
Em Samba do Avião, a harmonia vai sendo entrecortada por uma melodia que começa
com a já conhecida característica da Bossa Nova de possuir temas reiterativos, com notas
próximas e de pouca duração. No entanto, aqui, já vai se produzindo uma ascenção na freqüência
até chegar no momento de maior expressão sentimental, exatamente no meio do verso “estou
morrendo de saudade”, em que a palavra “morrendo” tem na sua segunda sílaba a nota mais alta
que, porém, não dura muito, logo sendo sucedida pela frase “Rio teu mar praias sem fim, Rio
você foi feito prá mim”, entoado numa mesma nota, mais grave, em uma dicção que se aproxima
da tematização e não da passionalização76. Após um interlúdio instrumental reiterador da melodia
já cantada, no final da canção, o desenho melódico mais uma vez corre em ascendência “dentro
de mais um minuto estaremos no Galeão”, quando esta última palavra é cantada com um acorde
bastante dissonante, sugerindo a tensividade da euforia da chegada.
O campo sonoro mostra-se como sendo um meio propício para a realização das
necessidades de materialização ou corporificação das idéias, um meio para a manifestação de
sentimentos e idéias. Tem-se em Samba do avião uma poética que, construindo personagens e
objetos valorativos, no caso, a cidade do Rio de Janeiro e suas paisagens, ajuda a reiterar sujeitos
ou lugares que ganham valor sentimental. Os lugares por onde passeiam os olhos do compositor
são alusivos às belezas naturais da cidade, com o mar, as praias, a Baía da Guanabara, o morro do
Corcovado com a estátua do Cristo Redentor. Atrelado à estas imagens da cidade, lança-se a
projeção – e não mais o olhar do avião – sobre personagens da cidade, como a morena que
samba, as praias, ou seja, aspectos da vida urbana carioca.
75
76
Edgar MORIN, Felicidade. In: ____ Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo I - Neurose.
Luiz TATIT, O Cancionista: composição de canções no Brasil.
243
Mas, importante perceber que a função de falar sobre estes pontos marcantes da cidade
parece ser tarefa do narrador poeta, do artista, pois em grande parte das memórias dos ouvintes
analisadas, não aparecem explicitamente as referências aos locais da cidade, como aparecem com
tanta freqüência nas músicas. Os ouvintes, quando falam da cidade, lembram das experiências ali
vividas, dos lugares frequentados, dos hábitos de lazer, permitindo que se encontre nas
entrelinhas os pontos marcantes, as imagens da cidade, as formas de apropriação do espaço
muitas vezes desviantes e a relação com a paisagem natural em meio à metrópole. No entanto,
não parece que estes pontos marcantes não lhes fossem importantes e referenciais, mas este nãodito das memórias dá pistas para que se compreenda como estão introjetados na paisagem afetiva,
mental ou imaginária da cidade, de tal modo que tornam-se desnecessárias as referências
explícitas. Para quem vive ali, estes marcos fazem parte da paisagem cotidiana tal qual um
prédio, uma praça, causando impacto muito mais ao que vem de fora, ao estrangeiro – algo que o
narrador da canção parecia estar se tornando.
Esta canção, narrando com tanta emoção a cidade, com toda sua atmosfera de sonho e
fantasia, a representação do Rio de Janeiro como um local idílico e acima das questões terrenas
não se efetivava da mesma maneira entre os ouvintes. Um silêncio imensamente revelador
presente nestas memórias, apontando para o fato de que, embora a memória histórica sobre a
cidade tenha escolhido estes seus marcos como elementos do “cartão-postal”, para seus
habitantes eles se mostram fundantes mas numa outra ordem, como paisagem interiorizada
dispensando referências.
“Vim pro Rio em 61 trabalhar, aí em 62 casei, morava aqui no subúrbio, aí depois em 66 fui morar na Ilha
do governador e estou até hoje lá. (...) Chegar no Rio em 61...Olha, pra mim foi difícil porque, onde eu
morava, era um lugarzinho assim, interior mesmo, sabe, aquela coisa, todo mundo era uma família, sabe,
os vizinhos, a gente vinha com as portas abertas, chegava um e já chamava na porta. Eu cheguei aqui e
achei diferente porque, apesar que assim, tinha amizade, mas não era como lá, aí então eu fiquei assim
meio desorientada, porque aqui era completamente diferente, era mais fechado, cada um no seu canto,
então foi muito difícil me adaptar a esse meio.(...) Eu não andava muito pela cidade, não. Ficava mais no
meu bairro, ficava mais ali, entendeu? Não saía muito assim por fora, não. Mas eu sempre fui assim, muito
ali, sabe? Eu acho que é aquela coisa de interior, que deixa a gente só ali naquele cantinho. Ali sempre, é
sempre ali. Nunca saí muito pra passear, não. Ir assim à cidade, essas coisas. Então, você vê, eu to esse
tempo todo aqui no Rio e nunca fui ao Cristo Redentor, ao Pão de Açúcar. Nunca fui! Os lugares que eu
fui é só a Quinta da Boa Vista, que eu ia quando era nova, solteira; e depois de casada ia com os filhos, ta?
Maracanã já fui também, mas assim, umas duas ou três vezes. Já são 42 anos de Rio mas, só assim... E
praia, praia também. Mas a praia era mais lá na Ilha, porque era muito sossegado, entendeu? Agora,
também ta muito poluída, mas, na época que eu fui, era limpinha, uma delícia, calmo, sabe? Agora,
Copacabana nunca gostei muito, não. Já fui à Copacabana e tudo, mas assim, só de passagem, sabe? Mas
pra ir em praia mesmo, não. Eu não gosto. Uma, que eu não gosto de praia. Eu ia mesmo pra levar meus
filhos. Mar, eu olho assim o mar, tenho medo. Tenho medo. Tenho muito medo... E mesmo ir lá pra Zona
244
Sul, sem ser pra ir na praia , eu não ia... Às vezes eu ia só quando tinha um passeio, entendeu? Mas
freqüentar mesmo, não.” (Dinah)
Neste depoimento, há uma escuta da Bossa Nova diferente, fixada de maneira também
diversa na memória construída hoje. Dinah nasceu no interior do estado do Rio de Janeiro, tendo
mudado para um subúrbio da capital em 1960, onde trabalhava e morava. Após casar-se, em
1962, deixou de trabalhar para se dedicar à vida doméstica, indo morar na Ilha do Governador,
onde está até hoje. Quando perguntada sobre as músicas que ouvia na juventude, ela se recorda
de famosos “cantores do rádio” como Emilinha, e Cauby Peixoto, mas também da Bossa Nova.
No entanto, tem dificuldade em lembrar do nome ou da letra de uma canção, recordando-se mais
facilmente da melodia. Após algum esforço, lembra-se de que a neta de 13 anos comprou-lhe um
CD de Bossa Nova, ouvindo-o sempre com ela, e então recorda-se das músicas que mais gosta e
que mais lhe fazem sentido, como Copacabana, Samba do Avião, Valsa de uma cidade e outras
que possuem imagens explícitas da zona sul.
Interessante notar que Dinah não viveu a zona sul, tendo ido até lá, segundo ela, umas
poucas vezes, apenas para ir à praia, pois não gosta dali, acha que “tem muita gente”, “não se
sente à vontade”. Ela conta que jamais foi ao Cristo Redentor ou ao Pão de Açúcar. Esta sua
experiência, evocada por suas memórias, permite interpretar o motivo de falar e lembrar apenas
das canções que contêm marcos da cidade. Para ela, a zona sul não é o local de suas experiências
concretas, lhe pertence apenas em seu imaginário. Ela se recorda ainda que sabia da zona sul
muito mais pelas revistas e pelo rádio do que pessoalmente. No entanto, o desconhecimento da
região não a impede de gostar ou ter gostado da Bossa Nova. Aquela imagem evocada, trazida
com a escuta, adquiria sentido na sua vida doméstica, circunscrita ao ambiente privado.
O Corcovado e o Cristo Redentor podem ser notados em outras canções da Bossa Nova,
assumindo definitivamente um papel de distinção dentro da cidade.
“Um cantinho, um violão
Este amor, uma canção
Pra fazer feliz a quem se ama
Muita calma pra pensar
E ter tempo pra sonhar
Da janela vê-se o Corcovado
O Redentor, que lindo
Quero a vida sempre assim
Com você perto de mim
Até o apagar da velha chama
E eu que era triste
245
Descrente desse mundo
Ao encontrar você eu conheci
O que é felicidade , meu amor...”
(Corcovado)
Escutando esta canção famosa pela interpretação de João Gilberto, no LP de 1960, O
amor, o sorriso e a flor, editado pela Odeon, é importante atentar para a forma de sua gravação
assim como de outras gravações da Bossa Nova que tinham à frente Tom Jobim e a interpretação
de João Gilberto. Em uma época em que as tecnologias que permitiam uma maior fidelidade
sonora ainda chegavam ao Brasil, e ainda eram insuficientes para a reprodução de sonoridades
mais complexas, a gravação dirigida pela dupla tinha o cuidado de valer-se de acordes
dissonantes e complexos, mas sem tanta densidade, ou seja sem tantas notas, o que, num sistema
de baixa fidelidade, poderia soar como um borrão de notas, pelo excessivo batimento de
freqüências juntas, impossibilitando uma escuta global. A simplificação da sonoridade com uma
voz sem efeitos, quase numa entoação da fala acompanhada por um violão acústico também em
baixo volume constituindo entre si uma mesma fonte sonora captada pelos microfones e
amplificada na medida certa, sem concorrerem entre si, favorecia esta intenção.
Algumas questões apontadas por Luiz Tatit77 na análise de Corcovado são úteis para
pensar a idêntica conformação melódica das duas primeiras frases que, no entanto, constróem
sentidos diferentes dados pela harmonia. Melodias como notas próximas vão descrevendo o local
perfeito onde se desenrola a felicidade cantada, com o “cantinho”, “violão”, “canção” o “tempo
prá sonhar”, enfim os elementos essenciais para uma vida recolhida da agitação das ruas e do
turbilhão de acontecimentos. Fica aí a própria característica de muitos músicos bossanovistas de
comporem melodias pouco alteradas, com motivos recorrentes, mas onde a harmonia bastante
modificada vai modulando a condução da melodia, sugerindo, mesmo em frases idênticas, um
outro rumo, uma outra direção ou sentido, rompendo sua previsibilidade.78 Uma economia de
notas que se entoa e que reitera uma idéia de simplicidade e economia numa sociedade já estava
bastante complexa. A idéia de mudança de direção da melodia, mesmo que colocada de forma
implícita, sugere sutilmente um outro percurso. Essas mesmas canções, na sua escuta, indicam
também outros caminhos e direções nas experiências cotidianas na cidade.
77
78
Luiz TATIT, O Cancionista: composição de canções no Brasil.
José Estevam GAVA, A linguagem harmônica da Bossa Nova.
246
“Eu morava na Tijuca, mas meus programas todos eram na Zona Sul, entendeu? (...) Na época das festas,
dos shows e tudo, eu passei a vir mais pra Zona Sul, né? É porque eu fui fazer Belas Artes e minha turma
mais lá era mais da Zona Sul, entendeu? Quer dizer, até eu ir pra Belas Artes, eu fui com 17 anos. Antes
disso, já tava, já existia a Bossa Nova e tudo, eu morava na Tijuca e meus amigos eram da Tijuca. Mas
quando eu fui pra Belas Artes, que era no centro da cidade, a maioria das festas, das reuniões, vernissages,
show era tudo...Vamos dizer, a parte cultural e artística era mais puxada pra cá. Então, aí a gente vinha,
né? Então, por exemplo, as embaixadas eram aqui,[no centro da cidade] presidente de República vinha
aqui visitar, todas as grandes personalidades vinham. E a Escola de Belas Artes foi a coisa mais
apaixonante que teve. Todo mundo que viveu aquilo...Porque era na cidade, ali onde é hoje o museu de
Belas Artes, aquele prédio foi construído pra ser a Escola, pela Missão Artista Francesa.(..) Todo mundo ia
pra lá, entendeu? E ali o Carlos Drummond de Andrade todo dia passava ali, porque ele trabalhava ali;
Manuel Bandeira. Aqueles barzinhos...Tinha o Vermelhinho que era do lado da Escola, a gente, a Escola
fechava a porta às cinco e ia todo mundo pro Vermelhinho. Depois a gente ia ver todos os ensaios de peça,
ensaio geral. Íamos ver todas as vernissages que tinham, entendeu? Tudo quanto era show que existia a
gente ia, quer dizer, naquela época o movimento cultural aqui no Rio era fervilhante, era fervilhante. Era
um negócio assim que não parava, entendeu? E, tanto que a gente não era tão negócio de praia, dessas
coisas, não. Tinha até o pessoal que dizia que o intelectual não vai à praia, né? Eles diziam, mas não é. É
que era uma coisa tão cheia, entendeu? Depois dos anos 70 e tudo, aí começou o negócio de Ipanema....”
(Débora)
Débora recorda que a praia, local de lazer, convívio e experiências tão comum aos jovens
da sua geração não lhe fazia tanto sentido, pois seu andar pela cidade incorporava muito mais
trechos do centro, nas circunvizinhanças da Faculdade de Belas Artes onde estudava, ou dos
locais dos saraus literários e vernissages nas Embaixadas, ou então na Copacabana do ambiente
noturno dos bares. Mesmo sendo ouvinte da Bossa Nova, reiterando em suas memórias de hoje a
importância desta música para a sua formação intelectual e subjetiva de ver o mundo, lembrando
em vários momentos do depoimento de muitas canções, entre elas Corcovado, Débora permite
perceber outros trajetos, outros locais de convivência frequentados pelos jovens ouvintes da
Bossa Nova.
Valendo-se ainda de Tatit, em Corcovado já se tem uma frase em que a melodia se
modifica um pouco, com um intervalo de cinco semitons, numa nota mais aguda e prolongando a
duração da vogal da palavra “ama”, indicando uma pequena sensação mais passional, que pode
também ser identificada no final da frase “da janela vê-se o Corcovado e Redentor, que lindo”,
num pequeno extravasamento da enunciação, com uma figura exclamativa em tom de suspiro. O
final, no entanto, apresenta um outro esquema melódico, em que mesmo com acordes
semelhantes aos da primeira parte, a melodia, reveste-se de tensão passional, descrevendo amplas
progressões de notas descendentes que se articulam à própria descrição de tristeza, de um
narrador “era triste, descrente deste mundo”. No final, porém, volta para o esquema de melodia
em que começara, em conjunção com o texto que também narra o re-encontro com a felicidade.
247
O Corcovado passa a ser um lugar de percursos de sentimentos. Para alguns depoentes,
moradores da zona sul, ter como paisagem, diante da janela o Cristo, por exemplo, ou o Pão de
Açúcar ou a Lagoa é algo que permite uma relação diferenciada com a cidade, e a garantia de que
não vão “perder esta imagem” por conta da proibição de novas construções na região, lhes traz
uma felicidade e uma sensação de paz que é alimentada diariamente pela possibilidade de “olhar
para eles ao tomar café da manhã” ou poder “despedir-se à noite”. Essa paisagem, que lhes traz
sensações do passado representadas permanentemente no imaginário nacional e até internacional,
coloca-se como uma forma de compensar os males da modernidade.
A monumentalidade79 da cidade não é vista apenas nos lugares onde há imponência
arquitetônica ou por onde circulam turistas (embora, no caso dos símbolos da cidade do Rio de
Janeiro, também ocorram estes fenômenos), mas também nos lugares de referência comum,
locais impregnados das memórias dos citadinos e que se atrelam à vida cotidiana da cidade.
Dentre os aspectos da vida urbana, de uma experiência carioca representada pela Bossa Nova, é
possível identificar elementos físicos perceptíveis como parte dos imaginários sociais dos sujeitos
que os contextualizam e conferem-lhes historicidade. Esses pontos são um tipo de referência, tal
qual uma rua, um bairro ou um cruzamento, tornando-se elementos estruturantes de identidade e
de memória. No momento em que este marco se liga ao cotidiano e às experiências individuais e
coletivas, o seu valor como elemento marcante aumenta.80
No Rio de Janeiro, a partir de uma certa perspectiva monumental da própria paisagem
urbana, constituindo “imagens da vaidade”81 que impõem a admiração pela escala grandiosa da
geografia urbana. ocorre uma tendência de ver a cidade de um modo globalizante, sem suas
particularidades. Simbolicamente, por meio da vaidade, a sociedade surge unificada e sem
diferenciações, reunida pela integração homogeneizante e ordenada de base afetiva em torno da
admiração de sua beleza. O morro do Corcovado, mesmo antes de ter ali construído a estátua do
Cristo Redentor nos anos 20 e inaugurada em 1931, já era um local de referência nas imagens da
cidade desde o século XIX, referências encontradas em contos e crônicas. Lá também era um
local de passeios, caminhadas e piqueniques. Do alto do Corcovado, e do Pão de Açúcar, operase uma inversão e o que passa a ser observado com admiração e orgulho é a própria cidade,
contemplada como um monumento.
79
Contardo CALLIGARIS, Elogio da cidade. In: Robert Moses PECHMAN (Org.), Olhares sobre a cidade.
Kevin LYNCH, A imagem da cidade.
81
Paulo KNAUSS (Org.), Cidade vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro.
80
248
Essas referências urbanas ajudam a conformar uma certa imagem da cidade para os que
não a conhecem ou não a conheciam. Entre os ouvintes que na época analisada não viviam no
Rio de Janeiro, mas em outros locais do país e até do mundo, a escuta da Bossa Nova e suas
referências à cidade ajudavam a conformar uma idéia urbana que se perpetuava, marcava e ainda
marca as experiências cotidianas na construção de suas memórias. Márcia nasceu e viveu até os
23 anos em Natal/RN, onde se casou e teve seus dois filhos, tendo mudado para o Rio após sua
separação, no final da década de 60. Segundo narra, a Bossa Nova era muito ouvida em Natal por
ela e por seus amigos que compravam discos e ajudavam a difundir a música nas rádios, pois
aquela cidade e aquele “mundo” trazidos pelas canções expressavam, segundo ela, uma “nova
vida”.
Também Massimo, que é italiano, conta que ouviu Bossa Nova pela primeira vez em
1965, num colégio onde estudava na Suíça, tendo ficado encantado com aquela musicalidade que
para ele representava algo de novo, a paz, alegria e descontração que queria para sua vida. Apesar
de não saber português, o que impossibilitava o entendimento da poesia, Massimo atribuía
sentidos à música apenas pelos sons. A partir daí, todo o seu imaginário sobre a cidade e o país
foram se forjando, sendo, segundo ele, um dos motivos que o trouxe, na década de 80, a vir morar
no Brasil.
É possível perceber também a efetivação de alguns limites da cidade, configurados de
forma diferente para os diversos grupos que vivem nela. Estes limites constróem certas fronteiras,
delimitando espaços e territórios que podem se tornar lugares carregados de memória e sentidos
como elementos organizadores da imagem da cidade e do vivenciar urbano.
“O que acontece é que tinham duas coisas que eram muito distintas no Rio: você tinha zona norte e zona
sul separadas pela cadeia de montanhas. Hoje você tem o túnel, mas pra eu ir pra Rio Comprido, que hoje
você vai, dependendo do trânsito, em dez minutos, você levava uma hora e meia... então era duro você ter
que sair, demorar uma hora e meia pra chegar aqui. Então, ou você vinha por causa da praia ou não vinha,
mas as diferenças eram muito grandes. Quando a gente não podia se reunir na casa de ninguém, a gente
atravessava a rua e ia prá praia .... e ficava no Arpoador tocando violão (...) então a música passou a ter
muito essa cara de céu, mar, sol, sul ... porque a nossa fronteira era ali, e era ali porque a gente olhava, e
82
não olhava para o morro.”(Roberto Menescal )
A cadeia montanhosa que separa o Rio de Janeiro entre zona sul e zona norte configura-se
como um limite natural entre as partes da cidade. A zona sul está comprimida entre o mar e as
montanhas, num espaço que permite um intenso contato com a natureza, conformando uma idéia
82
Depoimento concedido em 25/01/96, no Rio de Janeiro.
249
de cidade norteada pelos limites que o meio urbano possui, sejam eles naturais – embora esta
cadeia de montanhas realmente “separe” os variados espaços – ou não. Nisso articula-se uma
questão já apontada que se refere a uma construção histórica de cidade fragmentada, com locais
isolados e polarizados, onde a zona sul, a zona norte e o subúrbio constituem mundos diferentes e
sem pontos de contato.83
“Eu ouvia muita Bossa Nova na Tijuca...claro. (...)Interessante, é, Tom Jobim, que é um monstro sagrado,
naquele nosso momento Tom Jobim não era o tchan, não. O tchan era o Carlos Lira, Baden Powell, eram
mais atuais. (...) Então nós só não tínhamos a paisagem. A paisagem do mar, né. Mas tínhamos a música,
os encontros musicais e no colégio onde nós estudávamos, os grupos que faziam os showzinhos, e shows
dramatizados, sempre de poemas e canções e sempre estruturado na Bossa Nova. Na música daquele
momento que era nossa paixão. ..... Sem dúvida alguma, embora sem a paisagem, tudo aquilo fazia sentido
pra nós lá. Eu diria até que ..... é.....a legitimidade do nosso sentimento com a música, ela era acentuada na
medida que só a música nos motivava. Nós não tínhamos nada mais. Porque se tivesse a paisagem, quer
dizer, de repente a música entrava como um fundo, como uma moldura pra paisagem bonita, pro pôr do sol
no mar e etc. Não, não. A música era a essência, ela mesma era a moldura, a música era a obra completa
(...) Zona sul era Copacabana e, o grande tchan, eu com 12, 13 anos, a minha sedução. Ipanema era
inexpressiva na época, a minha sedução era o Arpoador....O Arpoador era....Caramba, fulano hoje foi a
praia no Arpoador! Onde é que ele fica? Lá no Castelinho! Essas eram as palavras mágicas, né.” (Carlos
Alberto)
Carlos Alberto fala da juventude vivida no bairro da Tijuca, localizado na zona norte,
construindo sua memória em torno do fato de que lá se ouvia Bossa Nova. O bairro tinha
também uma tradição de movimentos juvenis musicais, tendo sido o local onde foi organizado o
primeiro fã-clube brasileiro de Frank Sinatra. Eles estavam ligados a música “moderna”, e não à
seresta, como muitas vezes foi dito, relata Carlos Alberto, construindo no presente uma
identidade do “jovem tijucano muito afeito” à poesia, e inspirado na música de qualidade que
ouviam e gostavam. Ele lembra que Tom Jobim não era tão admirado por ele e por seus amigos
quanto os mais jovens e modernos, como Carlinhos Lyra e Baden Powell. Ao fazer essa
afirmação, ele busca ressaltar a vinculação que tinham com tudo o que era lançado do lado de lá
das montanhas, na zona sul. No entanto, é possível interpretar que este cantores citados eram
muito apreciados, e ficaram fixados na memória por terem sido os parceiros de Vinícius de
Moraes, com o qual realmente tinham mais identificação.
Fica claro que para Carlos Alberto o que ficou presente em sua memória foram as letras e
as poesias, algo com o qual se identificava naquela época e que ainda lhe atravessa. Resta
lembrar sua formação em Letras e Literatura, tendo sido professor por algum tempo e hoje ser
83
CF. Patrícia FARIAS, Pegando uma cor na praia: brancos, morenos e negros no espaço público carioca.
250
proprietário de uma loja de livros e CDs, a Toca do Vinícius, especializada em música popular
brasileira, mais precisamente Bossa Nova.
Sua lembrança de Vinícius de Moraes aparece associada à idéia de que a única coisa que o
diferenciava do ouvinte da zona sul era o fato de os primeiros não possuírem as paisagens citadas
o que, na sua construção memorial, não era um problema, ao contrário, tornava a sua escuta
ainda mais legítima, uma vez que fazia da música não apenas uma moldura para uma atmosfera
em que já vivia, mas sim um todo, uma obra completa por si só.
É possível identificar nesta construção memorialística, a imagem de uma cidade cindida
que se reunia por meio das canções que vinham da zona sul. Mas é por meio da memória
involuntária que é possível perceber a idéia existente até hoje de que a zona norte é uma outra
cidade. As “palavras mágicas” da Bossa Nova acionavam a imaginação, a narração alegórica de
lugares especiais. Eles ficavam encantados com um colega que tivesse ido à praia e assim iam
compondo um mapa imaginário com pontos marcantes como o Arpoador e o Castelinho,
identificados não por uma experiência concreta, mas pela imaginação de que aqueles eram os
locais da modernidade, da bela paisagem visual e da Bossa Nova. É possível perceber – por meio
de fontes diversas – que a Bossa Nova era ouvida e gerava escutas, adquirindo sentido também
para os que não eram da zona sul. Essa construção feita por quem viveu esta experiência dessa
maneira específica levanta pistas das ambiguidades reveladas nestas memórias. De um lado, há
uma lembrança daquilo que se escutava e do que se apreciava, de outro se justifica as diferenças
entre as áreas da cidade, como também a própria legitimidade de uma escuta distante da
paisagem e ambiência evocada e vivida pelos autores da Bossa Nova. O que se coloca aqui é que
a escuta também gera sentidos, muitas vezes diversos aos propostos na composição, produzindo
em seus ouvintes, por exemplo, outras noções de cidade, paisagem e beleza natural.
A questão da “paisagem” evocada por Carlos Alberto é significativa: ele estaria se
referindo a paisagem visual, mas é possível pensar também na paisagem sonora do lugar onde
estes ouvintes da Tijuca viviam, como menos ruidosa sem os sons da modernidade, mas
preenchida pelos sons da natureza, o que poderia levar uma espécie de identificação com aquelas
canções que tanto falavam da natureza. A montagem deste mosaico como um jogo de espelhos ou
um quebra-cabeças da trama memorial, em que a memória voluntária, os esquecimentos e
memória involuntária permitem associações inesperadas que vão compondo os traços de uma
imagem de cidade construída entre a juventude da zona norte no início da década de 60.
251
Débora, também moradora da Tijuca à época, coloca outras questões. Em seu depoimento,
as diferenças em relação à zona sul são mais suaves do que as levantadas por Carlos Alberto.
Para ela, a Tijuca era cosmopolita e abastada, com cinemas, restaurantes e clubes além de
montanhas e a mata da floresta. No entanto, Débora deixa entrever, em outras passagens de seu
depoimento o quanto vivia muito pouco na Tijuca e muito mais na zona sul, onde moravam seus
amigos, e também no centro da cidade. Hoje ela é artista plástica e mora na Lagoa. No início dos
anos 60, estudava Artes Plásticas na Faculdade de Belas Artes, na Cinelândia, convivendo com
artistas, intelectuais, músicos, estruturando sua experiência na cidade pelos trajetos que fazia nas
ruas, pelas vernissages e sessões de cinema europeu, além dos encontros nos bares de
Copacabana, o que lhe permitia uma experiência urbana mais cosmopolita. O fato de sua vida não
ficar circunscrita a Tijuca e a zona norte pode ser visto como uma explicação para a dissonância
entre seu discurso e o de Carlos Alberto.
As montanhas referendadas pela Bossa Nova assumem múltiplas imagens, muitas vezes
ambíguas e contraditórias, variando de acordo com o autor e com a época em que a canção foi
composta. Em várias das canções, fala-se da montanha como inabitada, mera paisagem e limite
natural dos sujeitos da Bossa Nova, habitantes da zona sul carioca – as “serras de veludo” – em
outras, embora ainda sua beleza seja enaltecida, surgem como um território específico, um morro
idílico, lugar que guarda a cultura, o samba, a alegria, o “povo”, em tom de homenagem, louvor,
pondo em relevo as glórias do passado, e a qualidade do samba. Aqui esta presente a idéia da
“cultura pura”, o “samba puro” sendo valorizado pelos bossanovistas como genuinamente
brasileiro e livre de influências. Nestas canções, a melodia é mais lírica, como em Feio não é
bonito, de Carlinhos Lyra em que o autor relata a pobreza do morro e sua vontade de ter “outra
história”.
Trabalhando ainda com as considerações de Maria Alice Carvalho84, a construção
imaginária da cidade dividida em zonas isoladas, com pontos, ruas e trechos com uma cultura
própria, resistente à cultura hegemônica, tem suas origens nas primeiras décadas do século XX. A
forma como a intelectualidade foi construindo a idéia da cidade – desde cronistas como Machado
de Assis, João do Rio, Lima Barreto – era sempre a de uma crítica ou recusa da ordem
estabelecida, onde o novo ou o moderno articulava-se ao ideário de “civilização urbana”
dissonante das reais condições de debilidade institucional, política, social, cultural real. Era
84
Maria Alice Rezende de CARVALHO, Quatro vezes cidade.
252
comum na ambiência intelectual carioca em relação à cidade um posicionamento à margem da
institucionalização.
Esses intelectuais falavam de um lugar social, a rua, tomado como posto de observação,
posicionando-se como uma intelligentzia que se caracterizava por um discurso que fugia do
mundo da cultura e da política estabelecida, objetivando produzir uma tradição e imprimir novos
rumos à cidade ideal futura. Vem daí um certo fascínio e uma certa reverência a estes intelectuais
que, de alguma forma, permanecem no ideário carioca, legitimados por uma suposta rebeldia,
autenticidade, originalidade, espontaneidade e fuga às institucionalizações que vêm das camadas
populares resistentes. Mesmo nos anos 30, quando o Estado Novo promoveu a incorporação de
parcelas da intelectualidade às agências culturais do Estado – institucionalizando sua produção e
estabelecendo uma racionalidade governista, guiando as massas até a modernização – alguns
setores continuaram entrincheirados, colocando-se à margem da vida institucional, essa postura
tomada como missão.
Essa missão traduzia-se por uma aproximação da cultura popular, notadamente das
manifestações mais estigmatizadas pela cultura branca e cristã como os cultos afro-brasileiros e
as rodas de samba, considerados em sua pureza mas também com alta carga de inconformismo e
rebeldia, características que eram consideradas como espontâneas, não cooptadas pelo Estado ou
por suas instituições. Ao fazer isso, essa parcela de intelectuais acabou por transformar a cultura
popular em mito, tentando guiar seus representantes em direção à revolução, assumindo o papel
de vanguarda do povo, a intelligentzia que conduziria as camadas populares até a revolução, idéia
que esteve na base dos CPCs e da ideologia nacional-popular que se manifestou com força nos
anos 60.
Nas músicas de alguns bossanovistas, o que se percebe, no entanto, é um distanciamento
em relação a este morro. Elogia-se a sua beleza, o seu samba, o seu aspecto idílico, como um
“morro bem distante do pó da cidade”, mas o que se afirma, no final, é o estar fora. O compositor
fala de baixo, ele está na cidade, olhando para o morro, argumentando que aquele canta seu mal e
“nos” oferece seu Carnaval. Essa construção, na sua exterioridade, concebe o morro como
independente, resistente e resistente às perversões do mercado.
O mar é outra presença constante na Bossa Nova. O loteamento, a partir do final do
século XIX, das antigas fazendas e chácaras da orla litorânea (onde hoje localizam-se
Copacabana, Ipanema, Leblon),
fez com que estes locais, principalmente Copacabana,
253
começassem a ser ocupados por casas de finais de semana e de veraneio, onde organizavam
piqueniques e podiam desfrutar de outras formas de lazer85. A praia de Copacabana, desde o final
do século XIX e início do XX, era um lugar privilegiado para os cariocas que freqüentavam a
praia crentes nos benefícios das águas salgadas para a saúde. Nessa época, este banho não era
hábito social.86
Muitos ouvintes recordam-se do cotidiano vivido tantas vezes na praia, com a família
primeiro, depois com os amigos. O local era ponto de encontro para namoros, conversas ou palco
de discussões políticas e ideológicas. Paulatinamente, a ida à praia transformou-se em um
“sucesso crescentemente popular”. A partir dos anos 40 e 50, a ida à praia tornou-se uma prática
comum entre os cariocas. O local tornou-se propício para a prática esportiva, para atividades de
lazer e de convívio pessoal, passando a ser ocupado por jovens que caminhavam, tomavam sol,
nadavam, ou jogavam vôlei, futebol, peteca ou frescobol. Isso, no entanto, não ocorria de
maneira tranqüila, havia já ali um estado de tensão – mesmo que não declarado e colocado de
forma tão veemente como se vê hoje em dia (onde em algumas praias cariocas, procura-se inibir
ou rechaçar a permanência e freqüência dos “suburbanos”), entre determinados grupos, revelando
uma certa apreensão em relação ao uso do espaço. 87
A partir deste momento, o hábito de ir às praias surge não só como um privilégio único
para quem mora em seus arredores, mas passa a atrair – por meio das inúmeras linhas de ônibus e
bondes que passam a ligar Copacabana com o centro e o subúrbio – pessoas dos bairros mais
distantes que vinham tomar banho de mar e de sol nas praias da zona sul. Um livro sobre a
história de Copacabana, editado em 1959, contava,
“hoje as linhas de ônibus ligando os bairros mais distantes permitem que, principalmente aos domingos,
desçam dos subúrbios mais longínquos pessoas que vêm tomar banho de mar e de sol em Copacabana. Eles
chegam felizes, com um ar de piqueniqueiros, cheios de embrulhos, maletas, sacolas, trazendo por baixo de
saias ou calças compridas maiôs e calções, biquínis ou estranhas roupas feitas em casa. (...) [A praia de
Copacabana é] um local para onde correm encalorados moradores da Penha ou de Cascadura, que mais
tarde voltarão aos seus lares queimados de sol e felizes pelo contato que tiveram com o
88
mar.(...)Democratizaram Copacabana.”
Ir à praia deixa de ser uma indicação médica e começa a se tornar um programa prazeroso.
Jovens das camadas médias da zona sul e também de outras áreas, frequentavam-na
85
Eneida BERGER e Paulo BERGER, Copacabana: história dos subúrbios, s.n., p.9-10.
Cf. Madel Terezinha LUZ, O corpo da cidade. In: Robert PECHMAN (Org.), Olhares sobre a Cidade.
87
Patrícia FARIAS, Op. cit.
88
Eneida BERGER e Paulo BERGER, Copacabana: história dos subúrbios. s.n, p. 10-11.
86
254
intensamente, o que a levou a assumir um papel importante em suas memórias. Letras de canções
também referendam este local, como a garota de Ipanema e a Teresa disputada no Leblon,89
constituídas no ambiente praieiro, destacadas por seu charme, beleza, mas também por seu corpo
dourado, bronzeado pelo sol das praias cariocas. A praia, enfim, constitui-se como um local que
guarda parte das referências urbanas dos ouvintes da Bossa Nova, um local que faz parte de suas
experiências e memórias comuns, lembrada também como território da zona sul e de quem nela
habita. O Rio de Janeiro possui espaços característicos que têm em comum uma certa vibração
social pela beleza e pelo prazer lúdico, estético, político e sensual. Dentre estes espaços, está a
praia caracterizando a cidade, nacional e internacionalmente, como um espaço de representação
da beleza sensual.90
Os relacionamentos amorosos são, em algumas canções, representados e construídos em
meio ao mar, não propriamente as praias urbanas, mas as isoladas e vazias, ligadas à tristeza, à
introspeção da “dor-de-cotovelo”, do pensar no amor que se foi.91 A construção e invenção da
praia, este “território do vazio” 92, entre as dunas e água, datam do século XVIII no ocidente. Para
além dos aspectos mitológicos, com sua duração dentro das culturas, esta construção da praia não
faz parte de estruturas imanentes, sendo algo construído historicamente. Elementos de busca pela
natureza e da pausa em meio à agitação da cidade que faz perder, devem ser articulados ao
fascínio que exerce, o que faz com que não seja apenas um dado imanente. Assim, a praia e suas
representações estão presentes não só nas letras das canções, mas também na paisagem sonora
que a Bossa Nova ajuda a construir com ritmos cadenciados, melodias e harmonias dissonantes.
Mais ainda, está nos acordes em resolução ao final da canção, desfazendo as tensões dadas pelas
notas alteradas, pelas vocalidades e performances mais intimistas e em baixo volume, evocando
imagens mentais auditivas e visuais que configuram este local da paisagem natural.
Em grande parte das canções da Bossa Nova, bem como na memória histórica oficial, a
região da cidade que se encontra mais referendada é a zona sul, numa clara alusão à
transformação dos espaços boêmios e musicais cariocas. Nesse movimento, vai compondo-se
uma noção de que a Bossa Nova era circunscrita à esta parte da cidade, com sentido apenas
89
Faz-se aqui, respectivamente, referência às canções Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes,
1962 e Teresa da praia, de Tom Jobim e Billy Blanco, 1954.
90
Cf. Madel Terezinha LUZ, Op. cit.
91
Algumas canções destacam este aspecto, como Praia branca, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, 1957; Praias
desertas, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, 1957; Vagamente, de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, 1963,
dentre outras.
92
Alain CORBIN, O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental.
255
àqueles que nela habitavam, que experimentavam aquela “modernidade” nos valores,
subjetividades e experiências urbanas ali narradas. Esta pesquisa contrapõe-se a esta idéia,
evitando supor que os hábitos, formas de conduta e a cultura dos sujeitos são delimitadores da sua
apreciação da vida, das expressões artísticas ou musicais. Dito de outro modo, a recusa aqui está
em pensar, como afirma Bourdieu93, em um repertório formulado pelo habitus tido como um
elemento de imobilidade das escutas. Argumenta-se, que as apropriações dos sujeitos podem se
dar por múltiplas mediações que escapam às formulações pré-fixadas de “gosto”, “estilo de vida”,
ou competência de interpretação. Ouvintes de outras partes da cidade, do país e até do mundo
possuem a capacidade de escutar, em seu cotidiano, formas musicais que narram (em suas letras e
na sua estruturação musical) sentimentos e experiências diversas daquelas a que estão
acostumados, podendo dialogar com elas de variadas maneiras, perfazendo sua “lógica dos
usos”.94
Convém olhar para as particularidades desta área da cidade. Os bairros, estas regiões
urbanas que podem ter tamanho médio, grande, pequeno, com dimensões estreitas, sendo faixas
de terra entre o mar e a lagoa – como Ipanema e Leblon - ou entre o mar e a montanha – como
Copacabana –, costumam ser o elemento estruturante mais comum e freqüente de
reconhecimento e de memória das cidades para os indivíduos que nela vivem. Estes lugares
podem apresentar aspectos comuns, características físicas ou não que, em seu conjunto,
constituem uma certa continuidade temática composta de elementos diversos: espaço, forma,
atividades, topografia, costumes, habitantes.95
Para além de várias das canções trazerem em seu discurso referências aos lugares da zona
sul carioca, falando deles em tom de exaltação, elogio, ou na forma coloquial de citar os lugares
vivenciados, muitos dos ouvintes, em suas memórias, referem-se à esta parte da cidade.
Copacabana, Ipanema, Leblon, Lagoa, Botafogo, bairros e praias lembradas como lugares que
fazem parte do cotidiano diário dos sujeitos, lugar onde viviam, ou freqüentavam, conversavam e
namoravam. Espaços de experiência trazidos à tona pelas memórias, territórios vivenciados
carregados de sentidos, significações, afetividades e identificações dos ouvintes.
O bairro de Copacabana, mesmo constituído em muitas canções e nos depoimentos dos
integrantes da Bossa Nova – muitos deles seus moradores – como um local idealizado e belo,
93
94
Pierre BOURDIEU, In Renato Ortiz (Org.) Pierre Bourdieu, passim.
Michel de CERTEAU, Op. cit.
95
Kevin LYNCH, Op. cit., p.78-9.
256
caracterizava-se também por ambigüidades e tensões sociais trazidas pela expansão da violência
e de um processo incipiente de invasão por classes baixas que passaram a morar nas primeiras
quitinetes (ou conjugados). Copacabana cresceu e se desenvolveu de modo intenso durante os
anos 40 e 50, quando parcelas das camadas médias em expansão naquele momento, acabaram por
ocupar a faixa litorânea da cidade. A zona sul, que até o início do século XX não passava de um
imenso areal inabitado, começa a ter, nos anos 50, seu momento de apogeu, transformando-se em
lugar da moda e da vanguarda comportamental.
A vida noturna do bairro começou a se constituir, em parte, desde os anos 20, em
decorrência do Hotel Copacabana Palace, que possuía cassino, bar, e era um badaladíssimo local
de shows. A partir do Copa, muitas boates, restaurantes e bares passaram a se instalar no local. A
noite de Copacabana, a partir do final dos anos 40, passa a ser o lugar de encontro de quem tinha
dinheiro e queria se divertir, pois a Lapa, lugar da boêmia musical até então, encontrava-se em
decadência. Nos anos 40, a atmosfera da Lapa mudara, estando mais policiada – o que por um
lado trazia segurança contra os elementos perigosos, por outro instituía um estado de tensão
criado pelos próprios agentes da ordem96. Por outro lado, pode-se perceber que, com o
fechamento dos cassinos pelo governo Dutra, em 1946, o ambiente artístico e musical carioca se
transformou muito por conta das demissões de cantores, músicos e dançarinas. Aos poucos,
porém, esse quadro vai se revertendo. É quando começam a despontar boates na zona sul e, a
noite de Copacabana – com o Copacabana Palace, reunindo turistas e boêmios – expande-se e se
torna cosmopolita.
O ambiente musical e boêmio do Rio de Janeiro começa a se formatar exatamente nesse
momento, quando estes espaços, antes restritos à boêmia do samba e da malandragem da Lapa e
do Estácio, transferem-se para a zona sul – primeiramente em Copacabana e mais tarde em
Ipanema, Arpoador, Leblon, Lagoa, Gávea. Em meio a isso, Copacabana passa a atrair também a
classe média. Em 1937, um decreto municipal faz o zoneamento da cidade, estipula as áreas
industriais e as residências, categoria na qual está a zona sul.97 Essas normas do zoneamento
ajudam a construir fronteiras na cidade, atendendo tanto a critérios técnicos como empresariais. A
partir deste momento, passa a ocorrer ali uma série de transformações. A construção civil cresce
de modo vertiginoso amparado na idéia de que viver junto ao mar é um privilégio. Desse modo,
96
97
Alcir LENHARO, Cantores do Rádio: trajetórias de Nora Ney, Jorge Goulart e o meio artístico de seu tempo.
Ciro Flamarion CARDOSO y Paulo Henrique Araújo, Río de Janeiro.
257
casas e palacetes foram derrubados, sendo substituídos por inúmeros prédios, dando vazão ao
desejo das camadas médias à procura do status de morar em Copacabana. Favelas existentes na
zona sul, como a Catacumba (entre a Lagoa e Copacabana) e o Morro do Pinto (entre Leblon e a
Lagoa) foram transferidas para outras áreas da cidade, abrindo espaço para a especulação
imobiliária. No entanto, a partir dos anos 40 e 50, como já vimos, o crescimento desordenado do
bairro gerou os problemas próprios às grandes cidades, verificados ainda nos dias de hoje.
A modernidade modifica as cidades, introduz formas diferenciadas de vida, de moradia e
de relacionamento com os outros, estabelecendo novos estilos. Dentre estas outras formas de se
viver no meio urbano, podem ser observadas novas relações entre o público e o privado no que se
refere às suas configurações e articulações. Não existe uma vida privada com limites fixos, mas
uma vida privada que só pode ser compreendida no fluir dos sujeitos entre esferas que se
articulam em mútuas interferências e formas de distinção com a vida pública.98
Considerando a própria forma como nasceu a Bossa Nova, em ambientes específicos,
pequenos e muitas vezes fechados em residências ou bares, é possível perceber outras formas de
viver urbano. Nesse sentido, a Bossa Nova parecia mesmo expressar uma “música de
apartamento”. No entanto, torna-se necessário compreender as experiências urbanas das camadas
médias no Rio de Janeiro dos anos 50 e 60, como articuladas ao meio social/cultural/econômico
desta época, a partir dos lugares e dos ambientes em que esta experiência musical era vivenciada
e escutada. Isto possibilita que se vislumbre aspectos de um novo viver urbano: um jeito de ser e
de se viver no Rio, evidenciando diferenças na maneira de se morar e nas formas de relação entre
público e privado.
A partir dos anos 40, Copacabana sofre um processo de verticalização com a construção
de prédios, resultando em um crescimento desordenado do bairro. A partir da década de 50,
surgem os conjugados e o conseqüente aceleramento do crescimento demográfico, como já foi
descrito anteriormente. A indústria da construção civil fazia campanhas publicitárias, ressaltando
os benefícios de se morar perto do mar e tudo o que isto significava em torno de uma melhor
qualidade de vida. Num outro viés, a verticalização é uma saída para a falta de espaço da zona
sul, comprimida entre o mar e as montanhas 99. Aos poucos, a valorização imobiliária do bairro e
os projetos dos prédios acabaram por suprimir os jardins e áreas de lazer, juntando os edifícios
98
Antoine PROST, Fronteiras e espaços do privado. In: Antoine PROST e Gérard VINCENT (Org.). História da
vida privada: da Primeira Guerra aos nossos dias, p.15.
99
Ciro Flamarion CARDOSO y Paulo Henrique ARAÚJO, Río de Janeiro.
258
ainda mais. Com o surto industrial pelo qual o país e a cidade passaram nas primeiras décadas do
século XX, a indústria da construção civil ganhou cada vez mais impulso, passando por um
processo de expansão, desenvolvendo projetos arquitetônicos e estruturais de casas e prédios
residenciais, onde com concreto armado – econômico, funcional e “moderno” – o que vai
formatando as varandas e os beirais das fachadas dos prédios, só para citar um exemplo.100
No início da década de 60 – já não mais Distrito Federal, mas pertencendo ao estado da
Guanabara – a cidade viveria, sob a administração de Carlos Lacerda, um outro ciclo de debates
visando a um novo planejamento urbano, que tinha como um de seus pressupostos, um estudo
detalhado de duas comunidades ou bairros: o Mangue e Copacabana. Apesar do plano Doxíades,
como ficou conhecido, não ter sido completamente efetivado, esta ação era indicativa da
preocupação que Copacabana gerava no que tange aos seus problemas urbanísticos.
Esse processo de intervenção que neste momento priorizou a ampliação da rede de
esgotos, a construção do aterro do Flamengo e a urbanização do seu parque, além da construção
de viadutos e inúmeros túneis ligando as diversas áreas da cidade, como o Rebouças, Santa
Bárbara, Major Vaz, executou um programa inédito de remoção de favelas localizadas em
pontos nobres da cidade, (que segundo os discursos oficiais deveriam servir para a venda e
captação de dinheiro para a melhoria das condições da cidade), levando a população dali para
locais distantes como Jacarepaguá, Bangu, Vigário Geral, fundando novos bairros com conjuntos
habitacionais planejados como Cidade de Deus, Vila Kennedy entre outros.101
Esta nova configuração urbana traz também algumas pistas a respeito da organização dos
âmbitos público e privado. O hábito de morar em apartamentos parecia revelar um viver urbano
característico das camadas médias e mais propriamente, da zona sul.
“as diferenças eram muito grandes : lá [fora da zona sul] era casa, aqui era apartamento. Copacabana ....
era o auge de Copacabana, e nós todos morando em apartamento, a música teve de ser cantada mais baixo,
porque a gente se reunia muito de noite, as pessoas, os pais já iam dormir, então a gente ficava num
cantinho e tocava, não podia acordar os pais, não podia acordar os vizinhos, tinha sempre um cara
batendo com um cabo de vassoura... Então a música se acostumou a essa coisa baixinha nossa... Lá no
subúrbio, você tinha quintal e as pessoas iam fazer serestas, era sempre aquela coisa... Então ela [a Bossa
102
Nova] tem essa diferença de condições mesmo.” (Roberto Menescal
)
100
Miran de Barros LATIF, Uma cidade nos trópicos: São Sebastião do Rio de Janeiro.
Ciro Flamarion CARDOSO y Paulo Henrique ARAÚJO, Río de Janeiro.
102
Depoimento concedido em 25/01/96, no Rio de Janeiro.
101
259
Nas memórias de Menescal, percebe-se a construção da idéia de que haviam diferenças
entre os lugares do Rio: se por um lado havia uma zona sul no “auge de Copacabana” com ares
de metrópole, grandemente povoada, repleta de “arranha-céus”, bares, restaurantes, boates,
configurando um ambiente de lazer, diversão e modernidade, havia também a zona norte,
caracterizada como lugar de casas e quintais, onde “as pessoas faziam serestas”, um território
mais antigo e conservador; um lugar, enfim, ainda não inserido na modernidade. Sem dúvida,
esta região da cidade, nos planos urbanísticos das décadas de 20 e 30, era o lugar da classe média
e da classe operária. A estratificação social do Rio fica clara nestes planos urbanísticos, onde na
zona sul ficavam as casas das classes médias e altas e a zona norte e subúrbio deviam manter sua
heterogeneidade em termos de zoneamento: seus bairros mais “nobres” (Vila Isabel, Tijuca,
Andaraí e Rio Comprido) pertenceriam à classe média. São Cristóvão, Cidade Nova e os
subúrbios se destinariam às indústrias e à classe operária103. No entanto, convém examinar
melhor esta idéia de que a “modernidade” concentrava-se apenas na zona sul.
“A Zona sul ela teve a, a, a propriedade, e isso é compreensível, de apresentar os primeiros grandes
nomes. E por que que isso é tão compreensível? Porque os jovens que residiam na zona sul eram jovens
mais privilegiados, do ponto de vista sócio-econômico. Então, eles tinham mais disponibilidade, tinham
lugares maiores pra morar, embora nós morássemos em casas na Tijuca. Mas, enfim, instrumentos
musicais....e tinham disponibilidade. Você vê as histórias que eles contam, né, tem sempre uma aula que tá
se matando, quer dizer, nós vivíamos a mercê de uma educação mais...de valores mais conservadores e
tudo, né. Quer dizer, a hora do colégio era hora do colégio mesmo e tudo, então não tinha... E, claro, né, as
moralidades eram mais.... A Tijuca, mal comparando, era uma cidade de interior, se comparada com....
né.” (Carlos Alberto)
Mais uma vez Carlos Alberto vai delineando em suas memórias a construção de um
imaginário de diferença dentro da cidade. Claro que as diferenças existiam, não se nega isso.
Contudo, ele procura explicá-las por meio da busca da origem da Bossa Nova e de isto ter
acontecido na zona sul. Primeiramente, busca explicações sócio-econômicas, considerando que
aqueles jovens eram privilegiados e
abastados, com condições de adquirir seus próprios
instrumentos e podendo morar em espaços maiores. Porém, neste momento, sem querer, ele se
lembra que na Tijuca também se morava em casas, em geral, espaçosas. A partir desta
constatação surgida no momento em que construía a memória, busca dar sentido ao caráter “zona
sul” da Bossa Nova pelo viés das “moralidades” que fazia da Tijuca uma província em relação à
outra região. Mesmo tendo narrado a sua experiência juvenil na Tijuca como estando em contato
103
Ciro Flamarion CARDOSO y Paulo Henrique ARAÚJO, Op.cit. p.202.
260
com a música, poesia, estudos, seu discurso é atravessado pela noção de que a zona sul seria um
espaço mais apropriado para tudo isso.
As formas de moradia, o espaço privado vivenciado e lembrado pelos ouvintes analisados
mostrava-se inserido numa gama de transformações que marcavam o meio urbano do Rio de
Janeiro, alterando as formas de relação entre o público e o privado. A aglomeração de muitas
pessoas num ambiente limitado, fenômeno possibilitado com o advento dos apartamentos de
vários pavimentos, sugere a idéia de que foi isto o que provocou alterações nas formas de
sociabilidade.
“Então, se eu tirasse nota vermelha, o castigo era não ir às festinhas, que sempre tinha lá os ‘arrasta pés’;
porque, naquela época a gente fazia muito, o pessoal da minha idade, a gente fazia muito o que a gente
chamava de ‘água e palito’. Chegava pra mamãe, aqui neste apartamento deste tamanho - Mamãe deixa eu
dar uma festa, deixa eu dar uma festa de ‘arrasta pé água e palito?’ - E ela falava – Pode, se é ‘água e
palito’ pode. - Por que? Porque se é ‘água e palito’ ninguém comia nada, só água... dançar e beber água;
aí podia, não gastava nada; porque todo mundo era mais ou menos classe média e não tinha dinheiro pra
gastar em festa.” (Eliane)
Vários depoentes lembram das “festinhas” em casa nos finais de semana, onde os jovens
reuniam-se nas casas e se visitavam de maneira intensa. Eliane, moradora de Copacabana, no
mesmo apartamento em que vive ainda hoje, lembra que essa troca de visitas era comum entre
seus pares, entre outros motivos, por ser mais econômico. Mas este hábito pode também revelar
outras formas de convívio, já não apenas em casa e também não totalmente no espaço público.
Um espaço autorizado pelos pais, por oferecer alguma liberdade aos jovens, mas mantê-los ainda
sob controle. Também Débora, moradora de uma casa na Tijuca, lembra-se das inúmeras
reuniões que participava tanto em sua casa como na de amigos em seu próprio bairro de origem e
na zona sul, o que aponta para o fato de que este hábito não era uma necessidade ou uma
prerrogativa da vida em apartamentos. Reuniões em que participavam não apenas amigos
próximos, mas outros colegas, “amigos de amigos”, “conhecidos”, como lembram eles,
conformando o espaço de uma sala de visitas que além de foro privado também se abria ao
público.
Diante do argumento de que, na metrópole, a aglomeração de pessoas, a multidão
proporciona que os contatos físicos sejam estreitos, comuns e rotineiros, os contatos interpessoais
tendem a ser mais raros, superficiais, transitórios, segmentários, mais distantes e com maior
reserva. Uma espécie de anonimato e individualidade seria a tônica das relações sociais no meio
urbano, articulada à idéia de emancipação, liberdade de controles morais ou sociais, como uma
261
das prerrogativas da vida metropolitana.104 Neste sentido, uma das formas que o sujeito urbano
encontra de manter relações pessoais ou sociais de interesse é a partir da formação de grupos,
cujos objetivos podem ser políticos, religiosos, culturais ou de lazer. As identidades dos sujeitos
na metrópole vão sendo construídas pelas vinculações a esses grupos, em que valores, hábitos,
visões de mundo são compartilhados, mas acham-se em permanente troca, permuta, redefinição,
uma vez que a circulação e nomadismo entre os diversos agrupamentos é intensa e incessante,
dando origem às formações, como elucidou Raymond Williams.
Os comportamentos, valores, subjetividades são elaborados também nestas sociabilidades,
em que os limites entre público e privado mostram-se em permanente reformulação. Os espaços
da cidade onde conviviam muitos dos ouvintes da Bossa Nova analisados mostrava-se nesta vida
metropolitana que alcançava o Rio dos anos 50 e 60, como o lugar da aglomeração urbana, em
que os contatos interpessoais pareciam ficar mais difíceis, mas onde o conhecimento mútuo e a
proximidade espacial propiciavam os contatos sociais. O Rio de Janeiro possui esta característica
própria às cidades, do “mundanismo”, ou seja, uma forma de vida social fundada no ambiente
público, dando aos indivíduos a possibilidade de provarem a cidade, retirando-os do convívio
meramente privado, e familiar, projetando-os na complexidade da vida urbana em “passeios pela
cidade”105. Aqui, esta característica vai gerando uma cidade com “vocação para o prazer”106,
como aponta Rosa Araújo, onde o espaço público é intensamente vivenciado.
Neste sentido, vai também se criando um idéia da vida carioca e seus habitantes, como
indivíduos espontâneos e com facilidade para fazer contatos, que muitas vezes não ultrapassam a
superficialidade. Os encontros nas ruas ou em espaços públicos, como os bares ou os pontos da
praia, por exemplo, parecem permanecer do lado de fora dos ambientes e sentimentos mais
íntimos e privados.
Nas práticas cotidianas dos ouvintes analisados, os processos de sociabilidades estariam
se redefinindo, sugerindo exemplos que se davam tanto no âmbito público quanto no privado e
em locais que faziam a ponte entre estas esferas, como as salas das casas e os apartamentos
abertos a amigos, não necessariamente íntimos, os que se conhecia na praia ou os amigos dos
amigos, trazendo para dentro da sala este convívio que se faz de maneira rápida e fácil, mas que
segue com sua característica de mundanismo, tendo as ruas como seu
aspecto mais
104
Georg SIMMEL, A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio G., Op.cit. p.13.
PECHMAN, Robert Moses. C idades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista.
106
Rosa Maria B. ARAÚJO, A vocação do prazer: a cidade e a família no Rio de Janeiro republicano.
105
262
preponderante. No sentido contrário, a vida privada também acabava por escapar ao cerco
doméstico e invadir esses espaços públicos de vida social: a praia, os bares, as salas das casas e
apartamentos em suas “reuniões”, dentre outros. Estas novas formas sociabilidade, aliadas às
mudanças nos costumes que também se verificava à época, com uma promoção dos valores
femininos e juvenis, acabavam por constituir outros modelos de relacionamento. Vários
depoimentos dos ouvintes informam-nos sobre uma experiência urbana vivida na ruas. Alguns,
lembram-se de estarem sempre nas ruas com os amigos ou em casas com varandas e portas
abertas, uma vez que moravam em bairros como Ipanema, Gávea, que nos anos 50 e início dos 60
ainda tinham poucos prédios, ao contrário da vida turbulenta que se observava em Copacabana.
Outros, recordam-se de caminhar por Copacabana, por seus bares e por “habitarem” as ruas até
de noite com os amigos, traçando caminhos, criando turmas de ruas ou de trechos de praia. Estes
ambientes vão se tornando um híbrido entre o público e o privado, a casa e a rua. Locais de
acomodação entre formas de se viver a metrópole que se modificava.107
Caminhar pela cidade permite que os indivíduos se apropriem do espaço urbano,
conferindo-lhe identidade. Esta apropriação suscita encontros, constrói memórias, faz com que
as referências pessoais se entrecruzem com a memória social.108 Essa espécie de apreensão do
espaço urbano expressa-se na lembrança dos nomes de ruas, vias e praças, que passam a ser
tratadas com propriedades particulares. Ao citar o nome de todas as ruas onde morou, como faz
Glória, ou referir-se à turma de amigos da “Siqueira Campos”, da “Miguel Lemos”, do “posto
4”, “posto9” os depoentes cconstituem um mapa afetivo que se sobrepõe ao mapa oficial da
cidade.
O bar é um outro ambiente de convivência e de encontro para os sujeitos da Bossa Nova.
Em diferentes situações, expressas por meio das canções ou das vivências musicais, este lugar é
assinalado como espaço ideal para beber e compor. Rita lembra que ouvia Bossa Nova nos shows
que aconteciam nos bares de Copacabana, vendo Nara Leão, Vinícius de Moraes, entre outros.
João, morador de Vila Isabel, bairro onde ainda vive, trabalhava na redação de um jornal e
também freqüentava, no final da década de 50, junto com seus amigos da zona sul, o Beco das
Garrafas, o que lhe permitia um maior contato com a Bossa Nova. O Beco das Garrafas era uma
estreita travessa sem saída em Copacabana (rua Duviver), batizada com este nome por Sérgio
107
108
Walter BENJAMIN, Paris capital do século XIX. In: Flávio KHOTE (Org.), Walter Benjamin.
Antônio ARANTES, A guerra dos lugares: sobre fronteiras simbólicas e liminaridades no
espaço urbano. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, s.n., p.191-203.
263
Porto, devido ao hábito que os seus moradores tinham de alvejar com garrafas vazias os
frequentadores das boates Little Club, Baccara, Bottle’s Bar e Ma. Griffe109. Nestes bares, entre
outros tantos, além dos encontros, ouvia-se pianistas como Tom Jobim, João Donato ou Johnny
Alf.
Cafés, bares, galerias e outros espaços de convivência vão surgindo na modernidade,
como locais de passagem entre os ambientes público e privado. No bar, além do contato com
outras pessoas, é possível se ver a rua de modo a estabelecer uma aproximação sem
necessariamente haver confronto ou um contato direto. No bar, o homem vai tomando contato
com a metrópole; é nesse espaço que ele, de certa forma, prepara-se para os choques com que se
defrontará. Da mesma forma também é possível o caminho inverso, em que as ruas é que são
ocupadas como um espaço que antecede o ambiente privado. Nesse lugares, assim como na praia,
as pessoas fogem da formalidade de seus papéis sociais, o que os transforma em ambientes
privilegiados para a construção de um universo, ou um estado de “espírito de descontração”, onde
a vida pública vai estabelecendo-se diferentemente110.
Os agrupamentos dos indivíduos na cidade são construídos em torno de “regiões morais”,
que não são necessariamente um lugar de domicílio, mas pode ser “um ponto de encontro, um
local de reunião”. Estes agrupamentos se dão através de interesses, gostos ou comportamentos
comuns. Essa “região moral”, não é um lugar ou área da cidade criminal, patológica ou anormal,
mas ambientes onde os sujeitos se associam “por uma paixão, ou por algum interesse [podendo
ser] a música, ou um esporte”.
111
Esses locais de transição tanto traz o público para dentro do
privado, quanto o privado para o público. A praia, por exemplo, passava a ser o local de
encontros entre amigos, mas também de encontros amorosos ou do sujeito consigo próprio,
revelando estados de ânimo que tanto poderia ser de tristeza quanto de excitação, numa espécie
de organização subjetiva da vida privada dos sujeitos.
No ambiente privado, para além das transformações nos hábitos, valores, ocorrem
também transformações físicas, como indicam as memórias dos ouvintes. Alguns moravam ou
frequentavam apartamentos grandes, divididos entre uma ala social com sala de estar e de jantar,
e uma ala privada com quartos, banheiros e cozinha. Lembranças que salientam a idéia de
109
Ruy CASTRO, Chega de saudade, p.285.
Antoine PROST, Fronteiras e espaços do privado, p.136-137.
111
Robert Ezra PARK, A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano. In:
Otávio Guilherme VELHO(Org.), O fenômeno urbano.
110
264
“modernidade” destas habitações, permitem identificar ambientes abertos aos de fora, aqueles
considerados como “apresentáveis”, e os que eram escondidos e reservados como os mais
proeminentemente íntimos. Essa divisão já era comum no século XIX, mas aqui há uma
valorização dos locais das casas e dos apartamentos destinados às visitas como lugares para um
convívio público, justapondo-se às ruas, aos bares e à praia. A sala de recepção surge como locus
de transição entre a vida privada e a existência pública112. No mesmo clima de “modernidade” do
período já comentado, consolidou-se, na arquitetura, um estilo mais simples e funcional, em que
o design dos objetos e móveis seguia os parâmetros de praticidade, adequados à vida moderna.
Como lembra Benjamin113, a decoração, a ornamentação dos interiores com objetos e
obras de arte era uma das atividades da burguesia, preocupada em propiciar a este ambiente
conforto, calor e a segurança, elementos que as ruas deixavam de oferecer. Ao considerar o
colecionador como um personagem da modernidade que busca, ao guardar objetos e ter com eles
uma relação de afetividade, um certo alívio para o caráter de mercadoria que a obra de arte
ganhou, guardando-a em casa para ser admirada, é possível encontrar pistas sobre o recolhimento
das camadas médias ao ambiente privado e indícios de como se configurariam as formas atuais de
vida cada vez mais enclausuradas e trancadas no ambiente doméstico.
Nesse sentido, é possível perceber um processo dinâmico de transformação da experiência
urbana privada na mesma medida em que a cidade também se modificava. A metrópole
transformava-se juntamente com as formas de encará-la, senti-la e vivenciá-la. O aumento da
densidade da população, a aglomeração, os problemas urbanos começam a se fazer sentir ao
mesmo tempo que as formas de moradia colocam-se também diferentemente.
Ao mesmo tempo que a urbanização e o cosmopolitismo se estabelecem, os indivíduos da
cidade passam a procurar cada vez mais uma ligação com a natureza, como atestava Miran Latif
de Barros ainda na década de 50.114 Os sentimentos, a introspecção e o lirismo, voltando-se para
si mesmo, manifestam-se principalmente nas canções, como um dos meios mais propícios para a
evasão destes preceitos. Por meio delas é possível vislumbrar uma certa tentativa de reação ao
crescimento da cidade e à configuração da metrópole moderna. Essa reação se dá por meio da
natureza como uma saída ou da possibilidade de um reencontrar-se dentro deste meio urbano que
faz perder-se.
112
Antoine PROST, Fronteiras e espaços do privado.
Walter BENJAMIN, Paris capital do século XIX. In: Flávio KHOTE (Org.), Walter Benjamin.
114
Miran de Barros LATIF, Uma cidade nos trópicos, p.110.
113
265
A sensação que fica, após a análise das memórias da cidade e do viver urbano nos dias de
hoje, é a permanente e insistente noção de um tempo que se foi, um tempo passado, perdido em
uma certa dose de nostalgia diante do que não pode ser recuperado, uma cidade que já não é, e
que só pode ser recuperada por meio das lembranças. A Bossa Nova e sua prosa coloquial,
linguagem cristalina e econômica, guarda ressonâncias com o concretismo nas artes plásticas,
baseando-se na clareza formal, economia de elementos e rigor geométrico de suas linhas, como
também com a poesia concreta, em que a palavra – com sua semântica, forma e fonemas – era
pinçada e programada no papel em meio a variadas associações de significados, sons e sentidos
visuais, atuando na raiz da linguagem poética115. Também sua estruturação rítmica teria
consonância com o ritmo das palavras cantadas, ajudando a construir, por vezes, uma idéia de
tempo moderno, de síncopes com acentuações inusitadas de ritmo, sugerindo outras
temporalidades na escuta.
Todos estes elementos, característicos das artes em geral nos anos 50, deixam conhecer
um certo espírito do tempo em que a modernidade e a vida urbana tomavam feições peculiares. É
possível reconhecer uma cidade e um meio urbano moderno já nos anos 50. Mas, contrapondo-se
a tudo o que isso poderia significar de negativo e problemático, a memória insiste em resguardar
daquele tempo apenas o que se quer que ele tenha: tranquilidade, ingenuidade e alegria dourada.
As condições da vida moderna provocaram uma certa perda da identidade presente/passado que
caracterizava o cotidiano das sociedades pré-modernas, e uma nova experiência de tempo não foi
necessariamente acompanhada por uma nova percepção desse tempo.
A cidade moderna tem como característica uma vida marcada pelo acontecimento,
supondo o imprevisto, o efêmero e a rapidez com que os sentimentos, as sociabilidades e as
experiências duram enquanto se realizam no meio urbano. Experimentar o tempo, na perspectiva
da modernidade, significa experimentar os choques que constituem a vida nas grandes cidades.
Canções com um ritmo cadenciado e acentuações muito próprias iniciando-se com o padrão
característico da Bossa Nova e que, em seu meio, tornavam-se melodias mais líricas com acentos
rítmicos que sugeriam maior introspeção, ao retomarem a mesma “batida” característica ao final,
pareciam ter a capacidade de compensar o tempo perdido, trazendo-o de volta, estancando sua
passagem no momento da escuta. Um tempo evocado pela escuta, reversível, pela via da
memória, fazendo voltar a cidade que se quer.
115
Júlio MEDAGLIA, Da Bossa Nova ao Tropicalismo. In: ____ Música impopular.
266
Cap. 3.3. – Juventude
“Minha juventude não passou de um furioso temporal,
Entrecortada aqui e ali por sóis brilhantes como espelhos;
Os raios e a chuva devastaram quase todo material,
Que só restam em meu jardim muito poucos frutos vermelhos.
Eis que eu cheguei ao outono do pensamento,
Em que é preciso utilizar a pá num acúmulo
Para dar ‘as terras inundadas um novo alento,
A água abre fendas grandes como um túmulo.
Quem sabe se as novas flores em que se creia
Encontrarão neste solo lavado como a areia,
O místico alimento do vigor e da renovação?
- Ó dor! Ó dor! O tempo engole a vida,
O obscuro inimigo que nos rói o coração
Do sangue que perdemos tira sua comida.”
Flores do mal, Charles Baudelaire
Ser jovem, passar pela juventude, perdê-la, conservá-la. Fase da vida, estado de espírito,
tempo que não volta, momento que se prolonga. São várias as maneiras pelas quais a juventude
vem sendo conceituada ao longo do tempo. É possível afirmar que o mundo contemporâneo teria
nesse conceito um ideal, uma busca, um jeito de ser, sentir e viver. De outro lado, há todo um
discurso sobre a juventude que a declara como alienada, inculta, sem projetos, desinteressada,
consumista, hedonista, individualista, massacrada, enfim, pelo mundo do consumo capitalista e
tecnológico. Esse duplo sentido do conceito pode ser explicado a partir de uma espécie de
associação entre ser jovem como sinônimo de atitude participativa, letrada, unida e engajada nas
lutas sociais e políticas – imagem reforçada por rebeliões juvenis acontecidas no passado – e ser
jovem – como sinônimo de desinteresse, falta de experiência e de tradição – aqui, relativo ao
jovem de hoje - o que os levaria a serem considerados como “novos bárbaros”1que seguem em
frente sem olhar para trás, vivendo de modo fragmentado numa espécie de presente constante
onde todos os acontecimentos se bastam e se esgotam em si mesmos, de um modo em que nada
se fixa ou se conserva nas experiências sociais.
Como, impregnados desta idéia atual de juventude, olhar para as experiências de jovens
de outros tempos? De que maneira – em meio ao horizonte de expectativas que se tem de
manutenção da juventude na aparência e no espírito – ainda é possível incorporar valores,
experiências, cultura e repertórios que pertencem à denominada “vida madura”?
Como é
possível escutar vozes, sons e memórias que chegam de tempos outros, sendo construídas no
1
Walter BENJAMIN, Experiência e pobreza. In: ___ Obras escolhidas Vol. I, passim.
267
presente por adultos que viveram e foram impregnados pelo ideal de juventude idealizada na
memória histórica? Este é o desafio que se impõe neste sub-capítulo.
A preocupação com a juventude coloca-se, em primeiro lugar, a partir do trabalho de
pesquisa. Em muitos depoimentos analisados, é possível perceber nas tramas da memória, um
falar da juventude, articulado, na maioria das vezes, a um tempo especial, feliz, de realizações,
mas também de proibições e lutas que traduzem uma época da vida marcada pela conquista,
aventura, vitalidade. Também nas memórias dos participantes da Bossa Nova, de seus músicos,
letristas e cantores prevalece a idéia de se valorizar esta fase e de afirmar o caráter jovem daquele
movimento e gênero musical. Entretanto, o que está por trás destas colocações é um ideal de
modernidade como algo articulado à juventude. Roberto Menescal, Chico Feitosa, dentre outros,
recordam o quanto eram “informais” ao se recusarem a tocar de terno, preferindo roupas
esportivas e sem “padrões”. A mudança no vestuário, com a substituição do convencional
simbolizado pelo “terno azul” e gravata, pela “bermuda e tênis” num show2, demonstra uma
busca por se firmarem como inovadores, partícipes de novos padrões juvenis que surgiam. Às
músicas com temáticas jovens e uma musicalidade também inovadora que se queria moderna,
correspondia também uma performance diferente, gestualidades corporais e vocais que tivessem
ressonância na escuta dos jovens ouvintes.
Isto está presente tanto nos aspectos comportamentais quanto nos musicais. Além disso, a
Bossa Nova, feita em sua maioria por jovens, também se proclamava como dirigida a jovens,
questão que assume destaque aqui e que está muito presente no material de imprensa analisado
sobre o movimento nos anos 50 e 60, assim como nas memórias de seus produtores. O trabalho
com a imprensa da época permite entrever também o quanto a questão da juventude está presente
na sociedade, circulando socialmente em matérias diversas, em artigos e conselhos
comportamentais, além de estar também na publicidade, numa franca valorização dos preceitos
juvenis, mesmo que isto também signifique tentativas de regrá-los. Essa valorização se dá
concomitante a uma preocupação que o mundo dos adultos passa a ter em relação ao mundo dos
jovens, passando a encará-lo como à parte, com valores próprios e pleno de potencialidades, que
poderiam ser desenvolvidas de maneira a corroborar normas morais, comportamentais e sociais
vigentes ou, de outro modo, contrapor-se a todas elas. Daí, talvez, as inúmeras referências na
imprensa e nos meios de comunicação aos jovens. Ao mesmo tempo, as canções ressaltam a
2
Conforme depoimento a mim concedido por Roberto Menescal, em janeiro de 1996.
268
modernidade própria da Bossa Nova como uma tentativa de se diferenciar da música brasileira
que a antecede e de se mostrar como algo jovem. Esta parcela da sociedade passa a ganhar cada
vez maior importância na modernidade, em particular nos anos 50 no Brasil.
Percurso teórico
Como uma construção social e cultural, a juventude caracteriza-se, como apontam
Giovanni Levi e Jean-Claude Schmitt3, por seu marcado caráter limítrofe, situando-se no interior
de margens que são sempre móveis histórica e culturalmente, postas entre a dependência infantil
e a autonomia da idade adulta. Neste sentido, para além dos limites fisiológicos insuficientes para
explicitar o fenômeno, é necessário uma compreensão da juventude em seu caráter ambíguo,
fugidio e sem contornos fixos ou nítidos, o que a torna irredutível a uma definição estável e
concreta, mas que se configura de maneiras diferentes em cada especificidade social, cultural e
histórica. Exatamente por seu caráter ambíguo é que a juventude, como construção social, é
repleta de significados simbólicos, promessas e ameaças, potencialidades e fragilidades,
tornando-se em todas as sociedades objeto de uma atenção ambivalente, ao mesmo tempo
cautelosa e desconfiada mas também plena de expectativas.
Como aponta Helena Abramo4, pode-se perceber que até a modernidade européia, a
juventude e mesmo a infância não eram preocupações sociais. É no início da era moderna, com a
transformação da família e a crescente valorização do espaço e da vida privada, que se passa a
dar maior atenção à infância. A instituição escolar também contribuiu para esta mudança, quando
a criança passou a conviver com outras, começando a instituir um mundo diferente do mundo dos
adultos. Com o prolongamento da vida escolar, a adolescência também começa a ganhar este
caráter. Mas seria somente no século XX que a juventude ganharia um olhar mais atento dos
adultos e das ciências, configurando-se como um tema social, isto porque eles já vinham se
colocando e mostrando-se publicamente em momentos como o do Movimento Juvenil Alemão na
última década do século XIX, ou mesmo protagonizando uma crise de valores expressa por um
certo ressentimento contra a vida adulta, posições que marcaram os chamados “loucos anos 20”,
quando o trauma da Primeira Grande Guerra se fez presente.
3
4
Giovanni LEVI e Jean-Claude SCHMITT (Orgs.), Introdução, passim. In: História dos jovens.
Cf. Helena Wendel ABRAMO, Cenas juvenis: punks e darks no espetáculo urbano.
269
Os primeiros estudos sobre o tema no campo das Ciências Sociais surgiram na década de
20. Porém, no início do século, psicólogos já buscavam estudar a adolescência tendo como
parâmetro a idéia de um estado de instabilidade emocional caracterizada como tempestade e
estímulo. A antropóloga Margaret Mead, estudando a cultura da Samoa, buscou refutar tal idéia,
argumentando que o que se generalizava na América não era regra para todas as sociedades ou
culturas. Em Samoa, vivia-se um período de desenvolvimento harmônico e de amadurecimento
progressivo. Embora outros autores tenham refutado os estudos de Mead, de qualquer forma, o
que fica é a noção de que a reflexão sobre juventude na Antropologia baseou-se prioritariamente
numa perspectiva de debate entre natureza e cultura.5
Ainda nos anos 20, uma outra tendência delineava-se nas Ciências Sociais frente ao
estudo da juventude. A área da Sociologia, que se dedicava ao estudo dos fenômenos urbanos,
reunidos em torno da Escola de Chicago, começou a debruçar-se sobre as gangues urbanas
juvenis. Frederik Thrasher, em 1927, publicou sua obra sobre os territórios da cidade dominados
por jovens de diferentes etnias – italianos, judeus, irlandeses, negros – falando em “zonas
ecológicas”, onde a tônica era a idéia de “desorganização social” presente nas grandes cidades,
como resultado de um processo de imigração para as regiões marcadas pela pobreza e
decadência, onde costumes tradicionais deixariam de existir e abririam espaço para a crise das
moralidades, dos laços familiares e de amizade, associando assim, a pobreza destas “áreas
intersticiais” à violência urbana, e esta à delinqüência dos grupos juvenis. Surge, aqui, segundo
Alba Zaluar, uma idéia de “teoria da frustração”, em que esta seria provocada pela desigualdade
no acesso às oportunidades de ascensão social A grande crítica a esta argumentação sobre a crise
e a desorganização social é o seu caráter funcionalista, que se utiliza de uma idéia consensual de
ordem e formas homogêneas de organização.6
Helena Abramo apresenta um quadro geral das principais idéias que norteiam os estudos
sobre juventude, apontando para o fato de que o termo aparece normalmente associado a um
estado de rebeldia, revolta, transitoriedade, turbulência, crise, possibilidade de ruptura e conflito.
Juventude é um estado de mudança, mas uma mudança que sugere uma revolta que abalaria a
ordem social.
5
Carles PAMPOLS, La ciudad invisible: territórios de las culturas juveniles. In: Humberto CUBIDES (Org.),
Viviendo a toda: jóvenes, territorios culturales y nuevas sensibilidades.
6
Alba ZALUAR, Gangues, galeras e quadrilhas: globalização, juventude e violência, passim. In: Hermano
VIANNA, (Org.) Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais.
270
Ainda nos anos 20, os pesquisadores da Escola de Chicago, Robert e Helen Lynd,
analisaram um pequena cidade do meio oeste americano, dedicando-se ao estudo das culturas
formais e informais das high schools. Ao debruçarem-se sobre outro habitat e outro grupo social,
assinalaram a crescente relevância das divisões geracionais na cultura americana, em que as
escolas convertiam-se num centro da vida social dos jovens, um espaço de sociabilidade
composto por esportes, amizades, festas, compondo um mundo com uma lógica própria no qual
atitudes, valores e desejos juvenis eram valorizados como pertencendo a um mundo próprio, o
que levava a um atraso na inserção profissional, a uma crescente importância da instituição
escolar e a emergência do lazer, ampliando a brecha geracional. Este estudo abriu caminho para
uma concepção sobre a juventude em que a faixa etária seria mais importante para explicá-la do
que variáveis como classe, cultura ou gênero7.
Na década de 40, Talcott Parsons reafirmava as teorias funcionalistas, analisando não
mais os jovens desviantes, mas a juventude “normal”, afirmando os grupos etários como fatores
de coesão social expressivos de uma nova consciência geracional que cristalizava uma cultura
interclassista centrada num consumo hedonista. Este desenvolvimento de uma “cultura juvenil”,
segundo o autor, seria decorrente do próprio desenvolvimento do sistema educativo americano,
como um sistema que pretende preencher um duplo papel de socialização, em que os grupos
intermediários – como as subculturas e os movimentos juvenis – teriam como papel favorecer a
transição entre as esferas sociais, resolvendo os problemas de integração. Embora discuta o
caráter progressivo ou regressivo que esta cultura juvenil pode desempenhar, é uma abordagem
que afirma a idéia de geração, sem atentar para a heterogeneidade do que chama de juvenil.8
Mas foi com Karl Mannheim9 que a chamada “sociologia da geração” se estabeleceria.
Discutindo a questão da geração desde a sociologia positivista na formulação históricoromântica alemã, entre outras correntes de pensamento, ele ressaltava a importância do conceito
para a compreensão da estrutura dos movimentos sociais e intelectuais, interessado que estava na
gênese das gerações, em seus fatores de socialização e seus princípios estruturantes. Segundo
Mannheim, geração não se distingue apenas pela contemporaneidade cronológica, mas pelo fato
de viver os mesmos acontecimentos e experiências, o que cria e reforça os laços de amizade,
solidariedade e dependência entre seus membros, gerando formas comuns de consciência,
7
Carles PAMPOLS, Op. cit.
Talcott PARSONS, A classe como sistema social. In: Sulamita BRITO (Org.), Sociologia da Juventude.
9
Karl MANNHEIM, O problema da juventude na sociedade moderna. In: Sulamita BRITO (Org.), Op.cit.
8
271
reconhecendo-se dentro dos mesmos códigos, das mesmas práticas políticas, sociais e
intelectuais. Não seria a idade que definiria a geração, mas as experiências comuns dos seus
membros. As gerações ainda se definiriam por um acontecimento ou por uma série deles que
estruturam uma época, fornecendo aos que o viveram uma determinada representação mental da
mesma, favorecendo sentimentos coletivos. Mannheim conceituava o problema sociológico das
gerações a partir da intersecção entre o processo histórico e o ciclo vital individual, centrando-se
na questão da transmissão e atualização da herança cultural de uma geração para outra e
estabelecendo a descontinuidade das gerações como um fato social básico.
Segundo ele, haveria uma relação direta entre o ritmo das mudanças sociais e a difusão de
novas atitudes e proliferação de estilos jovens. Já na década de 50, quando produziu esta reflexão,
lidou com o problema da fragmentação e da unidade, afirmando que, diante de diversas questões
sociais, os jovens elaborariam o material de suas experiências comuns num progresso de
expansão que uniria e ligaria indivíduos socialmente distantes, configurando unidades de geração
diferenciadas, mas unidas por um elo geracional. Ele assumia que o potencial de mudança parecia
ser inerente à juventude, dada a originalidade que caracteriza a posição de cada nova geração em
relação à tradição, no momento em que ingressa no sistema social.
Assim, embora os estudos de Mannheim – e de outros que lhe seguiram – valorizem a
abordagem histórica e social, sustentando a dinâmica das gerações como fato social básico e
contestem uma perspectiva que procurava explicar a juventude por uma abordagem geracional
ligada estritamente à questão biológica, a juventude ainda mantinha-se como uma categoria
genérica, pois apesar de reconhecerem seu caráter fragmentário, era a unidade geracional e seu
potencial de mudança que se buscava.
O que se pode perceber em grande parte destes estudos sobre a juventude é uma
compreensão genérica da mesma, verificada principalmente em momentos marcados por
acontecimentos de ampla repercussão, quando a ela se atribui o papel de propulsora real ou
imaginária dos processos de transformação. Essa posição é facilmente verificada nestes estudos
sobre geração, embora existam diferentes matizes e diferenças nestas abordagens. Por outro lado,
há uma outra perspectiva que valoriza a especificidade das experiências juvenis, chamando
atenção para seu caráter fragmentário e diverso, em que a experiência juvenil é vista não como
um fenômeno meramente geracional, mas como um fenômeno que implica em fazer parte de
grupos sociais e culturais específicos, matizado por múltiplas identidades. Nesta perspectiva,
272
estão os estudos da Escola de Chicago, analisando grupos específicos como as gangues, os jovens
das classes baixas, a delinqüência juvenil, bem como os jovens schollars.
Nos anos 60, pode-se perceber uma tendência em se conceber o jovem de maneira
genérica, devido à eclosão de movimentos estudantis, juvenis, de contra-cultura, inventando uma
identidade marcadamente juvenil e contestadora, da qual a indústria cultural apropriou-se e
ajudou a formular. Criou-se um imaginário sobre a juventude daquela época que serviu de
parâmetro para se pensar em comportamentos alternativos, engajados, contestadores e
conscientes, que coloca à margem outras gerações e mesmo outros jovens daquele momento que
não se inseriam neste ideal. Já nos anos 70, esboçava-se uma tendência de reação a isso, numa
tentativa de evitar que se operasse com a categoria “juventude” como uma faixa etária
objetivamente definida e encarcerada em conceitos pré-estabelecidos, identificada como um
grupo naturalmente constituído por problemas ou interesses comuns, numa idéia de “fase da
vida” que poderia encobrir as diferenças culturais, de classe, gênero e etc. É nesse momento que
surgem as pesquisas do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, em Birmingham10,
apontando para o potencial de resistência cultural nos comportamentos dos jovens das classes
trabalhadoras, contestando a idéia de passividade frente à cultura de massas e a passividade da
geração pós-68, argumentando sobre a recepção como negociação e elaboração ativa,
constituindo identidades específicas.
As principais críticas feitas a estes estudos específicos da década de 70 recaiam em seu
enfoque na classe social, o que resultava, de certa maneira, no esvaziamento da importância do
fator etário e também da questão de gênero, dando ênfase a grupos masculinos, além de não
considerar as relações destes jovens com o mundo dos adultos. Porém, a crítica mais contundente,
recai na perspectiva explicitamente contestatória, contra-hegemônica e resistente que estes
estudos atribuíram às subculturas juvenis.11
É preciso dizer que os estudos sobre a juventude devem pautar-se numa reflexão que leve
em conta o caráter fluido e permeável dos grupos sociais – geracionais ou não, juvenis ou não. O
ideal seria falar em juventudes no plural e não em juventude, buscando exatamente a diversidade
e a pluralidade das experiências sociais, evitando, assim, a uniformidade. Um dos caminhos
esboçados nos estudos atuais sobre a questão a toma por um objeto nômade e de contornos
10
Trata-se aqui de uma obra específica: Stuart HALL e Tony JEFFERSON, Resistence through rituals: youth
subcultures in post-war Britain.
11
Hermano VIANNA (Org.) Introdução. In: __ Galeras cariocas.
273
difusos, como a descreve Jesús Martín-Barbero12. Uma das perspectivas de análise em que é
possível identificar esta visão é na relação dos jovens com o território, onde eles se colocam
sempre em fluxos e diante de fluxos. Ser nômade, neste sentido, significaria o transitar dos jovens
pelas cidades, inseridos que estão numa realidade e num cotidiano complexo, sem localizações
fixas, o que permite que circulem em vários ambientes seja de modo concreto, seja de modo
virtual, promovendo o que Martín-Barbero chama de “desordenamento cultural”, algo que tem a
ver com o desenvolvimento de novas sensibilidades para o tempo, o espaço e para as tecnologias.
Tudo isso desdobra-se naquilo que o autor chama de “tecnicidade”, um conceito que pressupõe os
receptores, as formas de apropriação das técnicas e o modo como são interiorizadas.
Estudos como este – e tantos outros13 – ocupam-se em perceber como os jovens habitam,
circulam e se apropriam do meio urbano a partir de seus próprios “fluxos” na cidade, nas
atividades de lazer, no trabalho, nos finais de semana, nos deslocamentos para a escola, evitando
enclausurá-los em locais e categorias como a família, a escola, a igreja, as festas, entre outros. No
entanto, há ainda que se considerar estas instituições e suas conexões com os jovens que, apesar
de diferenciadas, são ainda fundantes. Por um lado, há uma dimensão concreta desta ocupação
dos jovens pelas cidades, independentemente da classe social, idade, gênero, etnia, embora estas
variáveis dêem configurações diferentes para as experiências juvenis e se misturem em todas as
partes da cidade. Por outro lado, o nomadismo pode ser atestado não somente pela circulação
propriamente, mas também pela configuração de uma percepção nômade que acaba por constituir
uma sensibilidade ou um sensorium diferente dos jovens de épocas anteriores, estando estes
jovens atuais preparados para os choques da modernidade – lembrando mais uma vez Walter
Benjamin –, e para enfrentar as novas tecnologias, a aceleração da história, as compressões do
tempo e do espaço, a efemeridade, enfim, características que são incessantemente renovadas na
vida moderna das metrópoles.
Os fluxos visuais, auditivos, táteis, olfativos, multisensoriais que os jovens têm que filtrar,
acabam por elaborar esta percepção nômade, compondo novas narrativas do mundo, novas
formas de sentir, olhar escutar a vida, muitas vezes mais fragmentárias, delineando uma idéia de
zapping, que não se refere apenas às tecnologias, mas “zapear” pela cidade, entre as diversas
12
Cf. Jesús MARTIN-BARBERO, Os exercícios do ver.
Cf: Humberto CUBIDES (Org.), Viviendo a toda: jóvenes, territorios culturales y nuevas sensibilidades; e também
NOMADAS – La singularidad de lo juvenil. Bogotá: Departamento de Investigaciones Fundación Universidad
Central/Siglo del Hombre Editores, n.13, Octubre/2000. 275 p.
13
274
mídias e as diversas formas de informação.14 No entanto, ainda que o nomadismo seja uma
característica universalizante, existem diferenças que dependem da classe social, gênero, idade e
etnia a qual pertençam. Por esta razão é que este nomadismo deve ser visto como uma percepção,
no qual a tecnologia é a mediação.
Martin-Barbero critica ainda as tradicionais pesquisas sobre juventude que, segundo ele,
são análises míopes. Primeiramente, porque a juventude é vista como a fase da vida que
potencialmente seria uma ameaça social, por ser violenta, emocionalmente fraca, rebelde. Em
segundo lugar, porque as pesquisas não vêem os jovens na sua dimensão cultural, somente nas
dimensões políticas, sociais e econômicas, valorizando apenas trabalho, família e escola. Para o
autor, estudar o jovem significa principalmente lançar um olhar aguçado para a profundidade
dessa dimensão desprezada, buscando suas formas de oralidade, suas relações com as
tecnologias, com a cultura imagética, com a cultura letrada e com as idéias de experiência e
memória15. O autor propõe avançar nesta direção, trazendo para o centro da análise o lazer, o
consumo cultural, os desejos, os afetos e as violências, ou seja, tudo aquilo que sempre havia
estado à margem na análise da juventude. Para romper tais reflexões, segundo o autor, é preciso ir
na contramão dos violentólogos, discutindo a densidade cultural dessa violência, por exemplo. E
também, assumir o consumo, tão associado aos jovens, não apenas como algo concreto, mas
também imaginário. É preciso assumir que se vive hoje numa cultura hegemônica das imagens –
o que se insere no que já foi conceituado como a segunda oralidade das culturas latinoamericanas – e isso não pode ser definido por exclusão, tendo como referencial ideal o adulto
letrado.
A Bossa Nova foi um movimento musical produzido por jovens. Raymond Williams16
atentava para a importância de se perceber nos fluxos, no nomadismo cultural e nas formas de
produção, como as práticas cotidianas acabam por produzir práticas culturais e artísticas
significativas, saindo da informalidade do cotidiano e chegando até as mídias. Para ele, é
necessário entender os grupos jovens como “formações” – como já explicitado – e não como
instituições, isto por apresentarem características mais fluidas, abertas, moventes e nômades.
Compreender assim, os processos de formação dos grupos, buscando captar as modalidades de
14
DOSSIÊ UNIVERSO JOVEM II - O Jovem e a Mídia. Realizado por Carlini Pesquisa de Mercado - Marcos
CARLINI. Data do campo - Junho de 2002. Realização MTV Brasil - outubro de 2002.
15
Jesús MARTIN-BARBERO, Jóvenes: des-orden cultural y palimpsestos de identidad. In: Humberto CUBIDES
(Org.). Viviendo a toda.
16
Cf. Raymond WILLIAMS, Cultura. E também _______ Marxismo e Literatura.
275
auto-organização, quais as suas matrizes culturais, seu consumo cultural, pois sempre há na
origem uma tradição – sempre seletiva –, elementos residuais, emergentes e dominantes. Uma
vez que a tradição já se encontra diluída, é preciso buscar aquilo que ganha sentido na atualidade,
pois não há como encontrar a tradição original, mas somente aquela seletiva e residual.
Ora, este aspecto das formações é de fundamental importância para a compreensão da
juventude. Perceber estas dimensões subjetivas dos membros das formações é tornar evidente
atuações não apenas nos propostos inscritos, mas também nos significados difusos do contexto da
época, uma vez que não se pode esquecer que os membros de uma formação participam de várias
delas ao mesmo tempo. No caso da Bossa Nova, essas formações podem ser identificada nas
reuniões musicais nos apartamentos, nos bares de Copacabana, nas reuniões dos CPCs da UNE,
etc.
No entanto, há que se atentar para o fato de que o que se verifica a partir da segunda
metade do século XX é uma certa idéia da juventude como referência de sociedade, em que a
modernidade engendra tradições que vão se construindo como projeto cultural. A juventude faz
parte deste processo, transformando-se num elemento constitutivo de identidade que se buscava.
Edgar Morin17 chama a atenção para este processo ainda nos anos 50, como parte do
estabelecimento da cultura de massas nas sociedades modernas, ligado também ao tempo livre e
ao lazer, definindo-o como promoção dos valores juvenis ou juvenilização da sociedade, em que
os heróis imaginários difundidos pela cultura de massas tomam lugar dos ancestrais e da família
na dinâmica de identificações. Articulado a isso está o ideal de auto-realização, supondo o
desfrutar de um eterno presente em que há amor, aventura, beleza, vigor, felicidade e não se
envelhece. Uma mudança vai se operando na sociedade, a infância é encurtada e a juventude
prolongada, aumentando esta fase de “moratória social”, convertendo a juventude num território
de experimentações e mobilizações. A juvenilização se liberta da idade, convertendo-se em um
imaginário moderno de força, saúde, beleza e ventura em busca de amor e paixão, completando
um imaginário de felicidade e plenitude que extrapola a faixa etária, transformando-se num
modelo buscado pelos adultos. Se até aqui, como aponta Martin-Barbero18, falar sobre a
juventude era sempre dizer o que ela não era, considerando-a imatura, instável, irresponsável,
improdutiva, assinalando uma negatividade na condição juvenil, a partir desse momento ser
17
18
Cf. Edgar MORIN, Juventude. In: ___ Cultura de massas no século XX : o espírito do tempo I - Neurose.
Cf. Jesús MARTIN-BARBERO, Jóvenes: des-orden cultural y palimpsestos de identidad.
276
jovem adquire um valor positivo, significando a matriz de um novo ator social e de um novo
imaginário buscado.
No entanto, é sempre necessário historicizar esta idéia de juventude. Se por um lado, é
importante atentar para o que há de universalidade na categoria juventude, que seria a
contestação, rebeldia, etc., por outro lado, estes conteúdos universais não bastam para
compreendê-la, senão por uma análise das particularidades históricas e específicas de um grupo
de jovens. Faz-se necessária uma interpretação da juventude e de suas experiências, considerando
ambos os lados, tecendo em conjunto o que é próprio e constitutivo do ser humano jovem – como
a distância da idéia de morte, o vigor físico, a disponibilidade maior para mudanças – com o
significado disso nesta sociedade e grupo analisado, compreendendo suas especificidades. 19
O que se busca na análise das questões ligadas à juventude, reiteradas nas memórias dos
ouvintes da Bossa Nova, é uma compreensão do cotidiano destes jovens naquela cidade,
integrando aquilo que é universal e preponderante nas concepções e no imaginário sobre o jovem
da época, com as especificidades das vidas vividas e lembradas. Procurar interpretar este
cotidiano, esta experiência nos fluxos dos ouvintes pela cidade, na percepção nômade que já ia se
delineando e que compunha sua leitura e escuta do mundo, andando pelas ruas, praias, estudando,
trabalhando, convivendo com a expansão da cultura de massas e com as novas tecnologias que a
modernização trazia, assistindo nos cinemas aos ideais da vida norte-americano, sendo cerceados
pelos discursos normativos das várias instituições que buscavam regrar suas práticas. Enfim,
interpretar o que era ser jovem naquele momento e experimentar esta condição, compreender o
jogo da memória sobre esta questão, por meio do modo como a memória do adulto constrói
sentidos, idéias, silêncios, narrativas sobre aquela experiência juvenil.
Imaginários sobre a juventude
Ronaldo Bôscoli – letrista da Bossa Nova – conta em suas memórias que quando tinha por
volta dos 20 anos, não trabalhava, vivia na praia praticando esportes, namorando, “pegando
jacaré”, jogando futebol. Tendo os pais se desquitado quando ainda criança, foi educado em
colégios internos até o quarto ano ginasial decidindo, depois, abandonar os estudos e “tentar”
trabalhar. Por esta época, no entanto, mostrava-se muito inclinado à prática de esportes, nadando
e competindo por seu clube do coração, o Fluminense Futebol Clube.
19
Cf. Humberto CUBIDES et alli. (Orgs.), Op.cit.
277
“Bem, por esta época eu era a materialização viva daquele mocinho bonito do samba do Billy Blanco, que
não trabalha e se sustenta com o dinheiro que a irmã lhe dá toda semana. Achava que ia resolver minha
vida de maneira muito simples, dando o golpe do baú e ficando muito rico.”
20
No espaço da memória construído por Bôscoli, a música de Billy Blanco mostra-se como
referência juvenil, funcionando como uma espécie de ilustração da memória. Definindo-se por
“mocinho bonito”21, Bôscoli tentava ressaltar no presente uma experiência jovem dos anos 50,
algo que ele mesmo nomeou como um “carioca way of life”, traduzido por um viver urbano na
zona sul, freqüentando festas, cinemas, barzinhos, indo a praia. Todas essas atividades regadas à
muita música “moderna” (Dick Farney e Lúcio Alves), jazz e Frank Sinatra, compõem um padrão
de juventude ligado às camadas médias cariocas. No entanto, é necessário questionar os limites
do que significava ser um “mocinho bonito” nos anos 50.
“E a Bossa Nova, na minha cabeça - eu que era muito ligado à Bossa Velha, eu gostava de música antiga era assim de um mundo que eu não tinha acesso à ele, eu costumava, quando eu comecei a trabalhar em
jornal, já faz muito tempo, eu comecei em agosto de 60, eu costumava às sextas-feiras, eu saía com amigos
solteiros como eu, e ia para as boates de Copacabana. Aquilo pra mim era um mundo... imagina eu em Vila
Izabel, e o túnel, o túnel não era assim... primeiro não existia o Rebouças. Copacabana era uma boa
viagem, a não ser que eu viesse de táxi, mas eu sempre muito duro, não andava de táxi. (...) As famílias de
classe média do bairro, o que a gente entende hoje como classe média, eram muito diferentes, elas não
eram exatamente pobres, mas tinham um limite muito baixo de aquisição, você não tinha geladeira, você
não tinha televisão, você não tinha esses bens de consumo todos, então essas coisas não faziam tanta falta
para as famílias de classe média; todas elas preparavam os filhos ou pra ser médico, doutor, porque aquilo
que se chamava de colocação, ter uma colocação numa entidade burocrática qualquer... e muito
principalmente militar, porque você com dezessete anos entrava na academia, já ganhava um dinheirinho
na academia e estava encaminhado pro resto da vida; era uma boca a menos em casa e mais uma carreira
encaminhada. (...) em 1960 eu era dentista, tinha me formado em Odontologia. Eu tava já no meu segundo
ano de formado; não tinha consultório, não tinha condição de montar um consultório, que era coisa muito
cara pro poder aquisitivo meu e do meu pai. Ainda era sustentado pelo papai, não dava pra comprar (...)
então, fiz isso: fui na Tribuna e pedi lá um lugar de estagiário, que eu gostava muito de futebol; trabalhava
na área de esportes. Só que no ano seguinte eu larguei, dois anos depois, eu larguei a odontologia e fiquei
com o jornalismo.” (João Maximo)
João Máximo, hoje renomado jornalista e escritor, relembra sua juventude em Vila Izabel,
bairro em que mora até hoje, apontando elementos que se diferenciam da vida da zona sul
presente de modo hegemônico nas memórias. Ele mesmo a constrói no presente como um local
badalado e liberal, mas ao qual não pertencia e não tinha fácil acesso. Este ideal de “mocinho
bonito”, evocado por Bôscoli, não parecia ser tão hegemônico. João Máximo deixa entrever o
20
Ronaldo BÔSCOLI, Eles e eu: memórias de Ronaldo Bôscoli (depoimento a Luiz Carlos Maciel e Angela
Chaves), p.17.
21
Música de Billy Blanco composta em 1952 e gravada no mesmo ano por Doris Monteiro.
278
cotidiano de jovens das camadas médias baixas, em que o consumo de bens materiais e
eletrodomésticos ainda não era tão generalizado, isto porque o próprio poder aquisitivo era
menor. A preocupação das famílias e dos próprios jovens destes meios era com uma colocação
profissional que lhes garantisse estabilidade social e financeira por meio de empregos públicos ou
de uma formação universitária que lhes outorgasse a distinção de “doutor”, como médico,
dentista, advogado ou engenheiro. Esse era um ideal que a sociedade buscava para os jovens
rapazes, um ideal de estabilidade, tanto econômica quanto social e moral, que lhe prepararia para
ser um adulto regrado tal qual seus pais. Porém, ao mesmo tempo, este padrão normativo nem
sempre se efetivava de maneira tão unívoca. Após ter se formado em odontologia, Máximo não
conseguiria exercer a profissão, tendo se tornado jornalista, ofício que desempenha até hoje. Essa
escolha não era vista com bons olhos pelas famílias, isto porque fugia ao padrão burguês de
estabilidade econômica e até comportamental que se queira, pois a vida nas redações do jornal
era considerada instável, afeita ao mundo da boêmia.
O encaminhamento de uma profissão e de emprego se aliava ao preparo para um
casamento ainda bem jovem, como lembra Máximo. Ele também fala de como os jovens nos anos
50 eram preparados para casar, era isso o que se esperava deles, a constituição de uma família
que mantivesse a ordem social, algo que – pode-se interpretar – não parecia combinar com o
trabalho numa redação de jornal, que lhe propiciava suas idas até a vida “liberalizada” e
permissiva das boates de Copacabana. Não reitera-se que os jovens vivessem realmente
encarcerados naquilo que o discurso normativo lhes outorgava. No entanto, o ideal de juventude
rebelde que ia contra os padrões exigidos ou esperados pelo mundo dos adultos – como relata
enfaticamente Bôscoli – é muito mais uma construção da memória do artista, escrita em1994, do
que algo que unifique de modo hegemônicoas lembranças atuais sobre a juventude. As
recordações de Máximo não são nostálgicas ou saudosas de um tempo belo, leve, vivido e
perdido, mas sim uma espécie de constatação de que foi necessário romper com muitas das
limitações que lhe eram impostas, traçando sua trajetória como vitoriosa, num certo sentido, ao
superar aquilo que era ruim, a partir de seu ponto de vista.
“Trabalhei na minha cidade numa fábrica de tecidos e quando cheguei aqui no Rio trabalhava na fábrica
da Souza Cruz. Depois, não, nunca mais. Trabalhei cuidando de filhos, só filhos, ai eu optei pra isso, parei
de estudar, parei com tudo. Estudei até o segundo grau incompleto, porque eu também parei. No meu
tempo, as mulheres eram educadas pra casar e aquela coisa, casar, ter filhos, família, mais nada. Mas... eu
tinha vontade de estudar, mas aí eu entrei em acordo com o meu marido e eu disse ‘não, eu vou parar,
parar porque eu vou cuidar dos meus filhos’. Aí eu parei. Eu fui mãe de seis. Cinco homens e uma mulher
279
(...) Mas o meu plano era ficar por lá mesmo [na cidade onde foi criada]. Eu tinha o meu...O sonho
é...Aquela coisa de criança, né? Meu sonho, às vezes eu conto pros meus filhos, meu sonho tinha uma
casinha branca assim no alto lá, bem no alto pra você ver que é criança mesmo, aí olhava assim ‘quando
eu casar...’. Porque é aquela coisa, a gente foi educado pra casar, não interessa; não precisava nem
estudar, nem nada, era casar. Então, eu olhava a casinha e dizia: ‘quando eu casar eu vou morar lá
naquela casinha’. Porque eu achava bonitinha, que tinha uma varandinha, sabe? Tinha umas plantinhas
penduradas. Mas aí eu não tinha outro sonho não, sabe, de vir pro Rio. Não tinha esse sonho de vir pro
Rio. Eu vim porque aconteceu, entendeu? E outra coisa, eu não tinha interesse de vir pro Rio, mas só
namorava rapazes de fora. Eu não namorava, quase, rapazes de lá da minha terra. Eu queria sair de lá um
dia.... Não percebia, eu acho que eu queria sair de lá mesmo! Porque eu só namorava rapazes de fora,
entendeu? É que eu não gostava de namorar os garotos de lá. Que eu achava que eles eram muito imaturos,
sabe, muito...(..) Por isso que eu só namorava rapazes de fora. E tinha que ser ... bem mais velhos, entendeu
Mas acho que o meu interesse era mesmo vir pro Rio, sair de lá. Pro Rio ou pra outro lugar.(...) Mas a
gente era criada pra casar, era educada mesmo pra isso. A gente não tinha muita...Uma, a gente não tinha
muita liberdade. Nem pra conversar com mãe, conversar com ninguém. Os mais velhos não conversavam
com a gente. A gente não tinha orientação nenhuma, tá. Nem sobre sexo, nem sobre nada! So diziam que a
gente tinha que ter cuidado. Também não disse, assim, claramente o que era...A gente procurava saber
também das outras, também não sabia. Era todo mundo desinformado. A gente teve uma vida muito...A
nossa vida foi muito difícil. Foi...A vida assim de pessoas da minha idade, muito difícil. E a gente não tinha
acesso a nada. (...) Então era uma coisa que, às vezes, a gente ia prum casamento abobalhada, mas ia
mesmo. Porque não sabia, não entendia nada.” (Dinah)
Dinah revela, por meio de suas lembranças, que entre as camadas mais baixas da
sociedade, as moças também acabavam entrando para o mercado de trabalho cedo. Dinah nasceu
e viveu até a adolescência numa cidade no interior fluminense, onde já trabalhava numa fábrica.
Ao chegar no Rio, continuou trabalhando até casar, quando passou a se dedicar exclusivamente à
vida doméstica, cuidando do lar e dos filhos. Ela chama a atenção para o tipo de educação das
moças de sua época, que eram criadas para o casamento “e mais nada” e lembra-se da falta de
diálogo com o mundo dos adultos, no que se refere a educação sexual, questão posta em vários
momentos do depoimento como sendo um problema de sua geração: falta de informação
associada à falta de liberdade. Voluntariamente, Dinah se descreve como alguém que se
conformava com este ideal de casamento, relatando seu desejo, desde criança em viver na sua
cidade natal, numa “casinha no alto da montanha” e seu desejo de não querer sair dali. No
entanto, ao longo do ato memorioso, surge um sentimento destoante quando ela conta que só
namorava rapazes de fora da cidade, chegando a afirmar – espantada consigo mesma, no meio do
depoimento – que, não percebia, mas no fundo, queria sair dali, como acabou fazendo. Mais uma
vez, memória voluntária e involuntária cruzando-se e trazendo outras leituras da vida que se
viveu. Cruzamentos permitindo interpretar um cotidiano de jovens que, ao mesmo tempo, em que
pareciam seguir o discurso e a tradição, aquilo que era esperado deles, também a isso se
opunham, mesmo que de modo fragmentado e bifurcado.
280
Um ponto ressaltado explicitamente por João Máximo é o fato de lembrar-se de como
sentia a Bossa Nova naquele momento. Segundo nos conta, esta música era “todo um mundo”
que ele queria alcançar, um mundo de modernidade e leveza nas relações amorosas, sem o peso
dos preconceitos e das moralidades excessivas. Dinah não se refere da mesma maneira às
músicas, mas isto não impede que se possa interpretar fragmentos de sua escuta e as formas de
elaborar imagens daquele mundo diferente do que vivia evocado por essas músicas. Há canções
que remetem a este imaginário, seja tematizando belas jovens mulheres na praia, como aquela de
Ipanema, que passa, encanta e se vai, ou ainda aquela do Leblon, que também não pertence a
ninguém22, seja ainda as inúmeras canções que se referem a um otimismo em relação ao
sentimento amoroso, ligadas à luz do dia, a alegria do mar ou ainda aquelas que descrevem um
amor passageiro, de uma noite só e que termina quando o dia nasce.
Neste sentido, é que as lembranças de Máximo se apoiam numa idéia de que a Bossa
Nova preconizava uma modernidade, uma sociedade livre de preceitos morais rígidos e mesmo
de uma positividade na forma de olhar o amor, não mais como tragédia fadada à solidão, ao
desamor, mas com um amor correspondido, ou pelo menos, com a certeza de que uma possível
desilusão passaria e logo viria um outro amor. Dinah, em suas memórias, também constrói um
ideário de uma juventude difícil e cheia de restrições, mas deixa entrever que supunha a
existência de jovens que vivessem em outras circunstâncias.
Importante destacar como todo este ideário de modernidade que a Bossa Nova
preconizava se aliava à idéia de juventude. Estes novos comportamentos referiam-se aos jovens,
um jovem moderno que parecia estar superando todas as limitações e discursos normativos,
sanções que o mundo dos adultos e a sociedade lhe impingiam. Desta forma, para os jovens da
zona norte da cidade – que já construíam a zona sul como um mundo diferente, distante do seu –
as imagens de uma juventude moderna e liberal que parecia ser específica daquele lado da cidade,
sustentavam fortes nuances de um mundo a ser alcançado.
Roland Barthes23 lembra que a escuta se dá em três formas distintas, sendo a primeira
indicial, muito ligada à nossa natureza animal, aquela que nos situa no tempo e no espaço,
captando graus de distanciamento e proximidade da estimulação sonora. A apropriação dos
espaços, assim, seria sonora, reconhecendo o que é familiar e distante, permitindo, inclusive,
22
23
Refiro-me, aqui, respectivamente, às canções Garota de Ipanema e Teresa da praia.
Cf. Roland BARTHES, A escuta. In: ____ O óbvio e o obtuso: ensaios críticos.
281
reconhecer-se na escuta. Por esta noção de território, espaço apropriado e familiar, compreendese esta escuta indicial como aquela que busca o espaço da segurança. Ora, se esta noção for
ampliada e se for considerado que a escuta de ouvintes que viviam em bairros da cidade distantes
da agitação da zona sul e de Copacabana nos anos 50, lugares onde a paisagem sonora
predominante eram sons de crianças brincando nas ruas, sons das conversas nas calçadas e nas
casas e ainda os sons que vinham do rádio, é possível compreender o sentimento de
estranhamento que a Bossa Nova, seus ruídos, evocações, temáticas e performances podem ter
causado em Máximo e Dinah. Não supondo uma falta de “capital cultural” destes em
compreenderem e apreciarem a nova música, mas reconhecendo que a diferença aí trazida pela
escuta evocava, em seus imaginários, um mundo novo e diferente. Uma escuta possibilitadora das
formas de contato entre o indivíduo e o mundo opera a metamorfose do perigo e do indistinto
escutados indicialmente em algo distinto, pertinente, mais próximo.
Não só as letras das canções referendavam este imaginário do jovem da zona sul, como
também a própria música corroborava para a mesma sensação, com seu ritmo cadenciado,
melodias reiterativas e harmonias diferentes do que se ouvia até então hegemonicamente nas
rádios, lembradas por Máximo e Dinah como sendo a “Bossa Velha” ou as “cantoras do rádio”.
Uma memória de um tempo em que esta diferenciação da musicalidade e das formas de sentir as
canções é marcada, outro tempo evocado, a modernidade que traziam no ar com uma juventude
que ganhava espaço, formas de expressão de novos modelos comportamentais postas na forma de
escutar e nos registros da memória do adultos hoje.
“Tuén tuén
Ocupado pela décima vez
Telefono e não consigo falar
Tô ouvindo há muito mais de um mês
Já começa quando eu penso em discar
Eu já estou desconfiado
Que ela deu meu telefone pra mim
E dizer que a vida inteira esperei
Que dei duro e me matei pra encontrar
Toda lista quase que eu decorei
Dia e noite não parei de discar
E só vendo com que jeito pedia pra eu ligar
Não entendo mais nada
Pra que fui topar
Não me diga que agora atendeu
Será que eu, eu consegui
A moça encontrar
A moça atendeu: alô !”
(Telefone, 1963)
282
Uma canção como Telefone, de Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal, apenas um exemplo
entre tantos outros possíveis, estas características descritas ficam mais percebidas. Na sua
primeira gravação, em 1964, interpretada por Lúcio Alves, Sylvia Telles e o conjunto de Roberto
Menescal – num LP da Elenco chamado Bossasession – é forte a inspiração jazzística que
naquele momento era sinônimo de moderno. Para além da melodia reiterada e repetitiva, o uso
de uma onomatopéia que dá a conotação do sinal ocupado de um telefone e do ritmo sincopado –
tão característico de outras canções da Bossa Nova –, tem-se aqui também um elemento a mais
que seria uma forma de narrar a situação e de conduzir a letra da canção voltando-se aos detalhes,
num tom coloquial, de conversa cotidiana, letras sintéticas, enxutas, com humor, em “tom de
blague”24, gozação e, por vezes, até de malícia. Em várias composições de Ronaldo Bôscoli
verifica-se estas elaborações sintéticas, claras, em tom coloquial, valorizando a sonoridade das
sílabas, ajudando a marcar o ritmo da música sem apelar para o dramático ou para o
derramamento passional.
Esta questão da linguagem simples e coloquial, em que o humor é ressaltado, pode ser
associada a um algo mais amplo que é posto por Lipovetsky25, quando ele se refere aos discursos
da sedução masculina nos tempos atuais. Segundo o autor, se o discurso do amor romântico
sempre havia sido o da exaltação lírica da mulher amada, em tom sério, numa retórica do
sentimento, lisonjeador e até exagerado, a partir dos anos 50, formas mais prosaicas e leves de
discurso galante e sedutor se tornaram correntes e valorizadas – em que as novas funções sociais
que a juventude assumia têm papel fundante – em que o humor toma um novo lugar da sedução
contemporânea, relacionando-se inclusive, com uma idéia de maior proximidade e igualdade
entre os sexos. Uma linguagem, que se adequava aos anseios juvenis de rompimento com a
seriedade, rigidez e valores antiquados do mundo adulto. Se é possível argumentar que esta
igualdade ainda não existia naquele momento ou que ainda não existe até hoje, pelo menos a
linguagem poética das canções já apontava algumas pistas sobre o devir de novas formas de
relacionamentos homem/mulher.
No entanto, como se pode perceber na imprensa da época, em matérias de conselhos
comportamentais, regras sobre onde frequentar, como agir, mesmo os jovens da zona sul não
24
25
Cf. Júlio MEDAGLIA, Música Impopular.
Gilles LIPOVETSKY, A terceira mulher: permanência e revolução do feminino.
283
estavam livres dos padrões normativos, que Dinah e João Máximo pareciam acreditar,
pertencentes somente à sua esfera urbana cultural ou social.
“Não conheço todos os ‘brotinhos’ de Copacabana. Mas a turma que eu conheço - de rapazolas e
mocinhas - pincela fortemente o quadro bizarro dessa estuante mocidade do chamado bairro mais grã-fino
da cidade. Copacabana mudou muito (...) Antigamente era simples, como uma boa dona-de-casa burguesa
que recebe seus convidados com trajes asseados e caseiros (...) por volta de 1926-27(...) o posto 6, o
‘esportivo’, reunia a rapaziada atleta - a própria Copacabana jovem, rústica, alegre e sadia física e
26
mentalmente.”
Surge aqui, ainda na década de 50, uma valorização dos tempos passados, tidos como
ideais, com esta juventude “sadia”, “alegre”, “rústica”, tanto física como mentalmente. O artigo
continua, ressaltando agora o atual estado do bairro e os comportamentos da juventude:
“essas recordações me tomam frequentemente o espírito sempre que entro em contato com a juventude
moderna de Copacabana. Porque para essa juventude, apesar das belas aparências em contrário, seria
interessante tirar das velharias do tempo, limpar o pó e cultivar certos hábitos da antiga Copacabana. Por
exemplo: fundar um clube (...) [Nestes lugares] conversava-se, dançava-se e , sobretudo, havia um
intercâmbio de idéias, faziam-se relações agradáveis - uma recreação útil, um lugar certo e acolhedor (...).
Porque atualmente, o que Copacabana oferece aos seus ‘brotinhos’? Praia, cinema, alguns esportes e mais
o que? Especialmente à noite? Mais nada, a não ser buates, teatrinhos-de-bolso. Esses lugares podem ser
maravilhosos para gente adulta, mas, positivamente, nada recomendáveis para gente miúda.”
Este artigo faz conhecer as atitudes tidas como erradas e desaprovadas dos jovens da
época, mostrando que deveriam – apesar da modernidade de “belas aparências” ser valorizada –
olhar para experiências passadas. O discurso está criando um ideal de juventude para o momento:
deve-se reunir em lugares para conversar, dançar, trocar idéias, enfim realizar uma recreação
“útil”. Mas o que significaria esta “utilidade” ? Refere-se a uma ocupação do tempo dos jovens
com aquilo que “deveria ser”, dentro de um padrão normativo para os comportamentos juvenis,
que seria o de não frequentar as “buates” e outros lugares que começavam a proliferar em
Copacabana e sua agitada vida noturna e que não eram vistos como lugares para jovens,
desestabilizando a ordem social. Este artigo não só cria um ideal de juventude como aponta
também para o que não “devia ser”, mas que parecia, cada vez mais, ser. Um reconhecimento,
portanto, das mudanças que se operavam nos comportamentos juvenis, que escapavam àqueles
lugares determinados pelos adultos. Aspectos que ressaltam o uso do tempo livre e as diversões
dos jovens das camadas médias.
26
“Mocidade de Copacabana”. Revista O Cruzeiro, 14/06/52, p. 3.
284
“Não, Beco das Garrafas realmente na minha época era uma coisa, assim, bastante fora de linha pra mim,
pro tipo de vida que eu tinha. Eu tinha duas amigas, que uma era namorada do Vitor Manga, que foi
baterista lá, né? E a outra que casou com Sérgio Mendes, a Marci, que...Mas elas eram assim meio
marginais, entendeu? A gente morria de inveja, mas ninguém ia com elas, porque era assim o máximo da
aventura alguém...Eu não consigo me ver indo ao Beco das Garrafas. Elas iam escondidas. A que casou
com o Sérgio Mendes até tinha uma vida assim mais liberal e tal. A mãe era separada, a mãe trabalhava.
Ela e a irmã viviam meio que assim soltas pra nossa época. Agora a outra, que era namorada do Vitor
Manga, ela era assim, fazia o diabo pra poder ir pra lá de noite. Saía escondido, armava milhões de coisas
pra poder...E contava pra gente; a gente ficava maravilhada, morrendo de inveja porque... (...) Na verdade,
ir ao Beco das Garrafas era coisa pro pessoal mais velho, não era pra garoto... eu tinha 17, 18 anos, 19.
(...) Não podia nada. Não podia nada. A gente ficava mal, era feio, não ficava bem, né? Uma garota de
família saindo sozinha. Principalmente se fosse namorado aí já era complicado. Em geral, namorava em
casa, não sei o que. Era meio por aí.” (Marta)
Marta vivia na zona sul, como até hoje, e se recorda de uma juventude repleta de festas,
namoros, praia, uma cultura “muito na rua”, mas afirma que frequentar as boates de Copacabana,
como o Beco das Garrafas, por exemplo – onde preferencialmente se apresentavam os músicos da
Bossa Nova no final dos anos 50 e início dos 60 – era algo ainda tido como desviante para as
moças de sua idade. Considerando que Marta tinha 15 anos em 1965, pode-se compreender que
para adolescentes, mesmo já na década de 60, o Beco era visto como local não apropriado. Ao
ressaltar que tinha amigas mais velhas que freqüentavam o lugar, ela permite conhecer que isso
era realmente um ato “marginal”, de meninas criadas mais “soltas”, não sendo algo comum, na
medida em que ela também lembra que haviam muitas ressalvas ao comportamentos das garotas,
com proibição de saírem sozinhas, de irem a certos locais ou saírem com o namorado, etc. O
próprio ambiente da Bossa Nova, tantas vezes ressaltada como algo tão leve, despojado, música
para a juventude, não era local que se pudesse frequentar sem ressalvas.
No entanto, este momento transcrito das memórias de Marta parece ter sido mais
involuntário; são lembranças que atravessaram sua narrativa de maneira inesperada, pois até ali,
suas lembranças iam formando um passado vivido quando jovem, em que ela dizia que não
achava as moralidades excessivas para a juventude de sua época, diferente de algumas amigas
suas da época do colégio de freiras em que estudava, que “fazem psicanálise até hoje pra ver no
que as freiras mais prejudicaram”.
“Como tinha uma amiga minha que: ’Ai, mas você não lembra que a gente tinha que ajoelhar pra ver o
comprimento da saia’. Eu não me lembro nada disso. Nada disso. Tem mais de uma amiga que tem assim,
acha que o colégio... Mas tem outras tantas que...O colégio, pra época, era um colégio liberal. Era até pra
ser misto... Mas não tinha nada desse negócio de pecado, de religião assim, nada. Eu não me lembro de
peso nenhum, sinceramente. Era uma coisa que, pra mim, não... pra mim, minha adolescência sempre foi
mais arejada. Eu acho... Eu acho uma coisa, sinceramente, privilegiada. Eu fui a muita festa, eu tinha
muita coisa em casa pra fazer. (...)A minha vida foi de ir a reunião, a festa. E nisso conhecia muita gente,
tive um monte de namorados. E outros que achavam que tavam me namorando porque a gente já dava um
285
beijo e eles me ligavam: “Mas e agora?” Agora? Até qualquer dia, sei lá, né, entendeu? Até surgiram uns
namoros daí e outros não, porque não tinha nada a ver, né? Ah, mas eu ficava mesmo... não podia, mas eu
ficava... não sei como é que é o ficar hoje, até onde vai o ficar, entendeu? Mas eu curtia uma festa; pintar
com o cara que dançasse mais vezes, não sei o que lá. Rolava um beijo, uma coisa? Deve ser isso (...) Hoje
em dia, quando eu vejo pra trás, eu digo: “caramba, eu era moderna e não sabia”. Mas não me deixava
passar dos limites. Mas sabe por que isso? Porque eu tinha muita liberdade. Eu tinha que me cuidar,
porque senão, eu que teria quebrado a cara. Porque mamãe ficava em Teresópolis, eu, meus irmãos,
namorávamos, não sei o que. E tinha um namorado, nessa época, que eu gostava muito. Mas ele não
gostava de ir a festas. Então ele ficava meio no banho-maria, entendeu? Quando eu não tinha nada pra
fazer, eu ficava com ele, mas eu não deixava de ir a festas, nada disso. Acho que eu não tinha necessidade
de transgredir. Não tinha necessidade, não sentia necessidade de fazer nada escondido, não tinha”.
(Marta)
Ao mesmo tempo em que ia destacando sua juventude nos anos 60 como sendo “sem
tanto peso”, algo arejado que não lhe deixou marcas ou traumas – como nas amigas – tendo
vivido a experiência de muitas festas, de muitos namorados ou “ficantes”, construindo – mesmo
que diga que “não precisava transgredir” – uma experiência desafiadora, desviante, em que “era
moderna e não sabia”, cheia de liberdades, mas também de responsabilidades ao saber
administrar a confiança depositada nela pelos pais, Marta foi invadida pelas lembranças das
proibições que lhe eram sancionadas, dizendo “que não podia nada”. A partir dos anos 60, vê-se
uma preocupação cada vez maior das famílias das camadas médias em substituir a educação dos
filhos pautada no poder e disciplina, por uma educação mais liberal, baseada na confiança, onde a
psicologia se fazia presente. Um investimento familiar cada vez maior no cuidado com os filhos,
tanto economicamente como emocionalmente, vai permitindo reconhecer a existência das
peculiaridades, das necessidades individuais dos jovens e da tentativa de compreendê-los. No
entanto, os interesses familiares continuavam determinantes nas escolhas de vida dos filhos, nas
formas de comportamento e nos valores, exercendo pressões e limites. Este conflito de
lembranças do passado, longe de desmerecerem a memória ou a própria memorialista, ressalta
aspectos do complexo jogo do esquecimento e da lembrança, de como ora se joga luzes sobre
determinados aspectos, ora em outros. Não é o caso aqui de buscar elucidar qual das lembranças
seria a “verdadeira” ou “falsa”, mas compreende-se uma vida juvenil que se encontrava em
modificação, com avanços e recuos, modificações e permanências, num cotidiano que era
tramado por estes jovens na vida diária de improvisações e criatividades dispersas.
Evidencia-se um imaginário do passado, da juventude dos anos 60 como livre, sem tantas
regras, em que a memória do presente busca dar sentidos unívocos às experiências, tentando
construir um ideal do passado que vai de encontro às aspirações do presente. Comparando-se as
286
memórias de Marta e Dinah, por exemplo, fica claro que as diferenças não são apenas de
condições sociais ou culturais postas pelos locais da cidade em que moravam, onde a zona sul
parecia ser mais liberal, mesmo percebendo que ambas tinham as suas limitações. O que fica
ainda mais visível é a diferença de geração, mesmo que seja de apenas 10 anos, mas que naquele
momento significava formas diferentes de vida dos jovens, em que a aceleração das mudanças
começou a se intensificar.
Um padrão de comportamento “útil” dos jovens é ressaltado em muitos momentos na
imprensa dos anos 50, tanto em artigos e crônicas como este acima, como também nas colunas e
seções dos periódicos voltados para conselhos aos jovens ou conselhos femininos.
“Dentro do quinhão de vida que lhe coube, ela deverá procurar se realizar: sem alarde , sem sonho de
glória, mas procurando fazer de sua vida uma vida útil, não somente a si mesma como à comunidade.
Poderá e deverá estudar sim, se isto lhe apraz. (...) estudar pelo prazer de saber, sim, mas sem esquecer
que deve ser útil. (...) [Deverá] ocupar suas horas de maneira proveitosa, útil, construtiva para não mais se
27
sentir inferior”.
Este conselho é dado a uma moça que envia uma carta para a coluna “Da mulher para a
mulher”, dizendo-se com complexo de “não ser inteligente”, pois tendo estudado somente até o
curso ginasial, sente-se inferiorizada. O conselho é dado no sentido de que não se sinta desta
maneira, pois ela pode ser muito útil à sociedade, ocupando o seu tempo com aquilo que
representaria o ideal para as jovens: estudando – “o tempo em hipótese alguma, será empecilho
para que ela prossiga nos seus estudos” – mas sem esquecer de sua “utilidade”: casando-se. Este
ideal de “utilidade” também pode ser articulado à uma noção de produtividade, lembrando que os
anos 50 é o momento em que uma sociedade de consumo – pós-guerra – se estabelecia.
Esta promoção da juventude se ancora numa sociedade que entrava cada vez mais no
mundo do consumo. Segundo Helena Abramo28, um novo ciclo de desenvolvimento industrial,
com a diversificação da produção, acabou por produzir um período de incremento crescente do
consumo, que teve possibilidade e alcance ampliado pela criação de novos bens e pelo
crescimento da importância dos meios de comunicação. Aliado a isso está também, como já
apontado por Morin, uma maior valorização social do tempo livre. Por outro lado, passa a haver
um aumento da oferta de empregos para os jovens recém-saídos da escola, o que, provocando um
aumento da renda familiar, permitia aos jovens um emprego de seu dinheiro no consumo de bens
27
28
“Ser inteligente”, na coluna “Da mulher para a mulher”. Revista O Cruzeiro, 10/04/54, p.81.
Helena Wendel ABRAMO, Op.cit..
287
para uso próprio, como a motocicleta ou automóvel, o violão, os discos, as roupas, etc. Isso,
paulatinamente, foi gerando uma certa autonomia dos jovens em relação à família e provocando a
distância entre as gerações, elementos que culminariam nos anos 60.
A valorização da juventude que desponta neste momento não pode ser desvinculada de
outros fatores, como o fato de a juventude mostrar-se um importante segmento de mercado a ser
explorado na cultura de massas. Na publicidade, isso pode ser notado, quando produtos
destinados a esta faixa etária são amplamente destacados. Como exemplo, pode-se citar a moda,
com peças de vestuário exclusivas para jovens. Uma cultura jovem passa a ser enaltecida, com a
valorização do corpo, com o “esticamento” da fase entre a infância e a vida adulta – motivada
também pela extensão da escolaridade até o fim do que se chama hoje ensino fundamental – bens
específicos e produtos de consumo destinados aos jovens como roupas, música, cinema,
aumentando a expansão dos novos hábitos, gerando conflito geracional, sinalizada por esta
cultura juvenil ampla e internacional, ligada ao tempo livre e ao lazer que abarcava novas
atividades e espaços de diversão além de outros padrões de comportamento.
No Brasil, neste momento, já se podia perceber nas grandes cidades, expressivas camadas
médias formadas por funcionários públicos, profissionais liberais e comerciantes somados
também a levas de executivos que surgiam com o desenvolvimento industrial dos anos JK (19561960). A partir da imprensa da época, percebe-se a inserção e desenvolvimento cada vez maior da
publicidade, impulsionando e dinamizando o consumo, estimulando a competição, a constante
renovação dos hábitos e bens de consumo assim como uma maior visualidade e valorização da
tecnologia e da vida urbana. Embora não se restrinja a um fator puramente econômico, não se
pode compreender a idéia de “modernidade” nos anos 50, sem uma reflexão sobre esta questão da
instauração de uma sociedade de consumo que se pautava, como destaca Anna Cristina
Figueiredo, numa “cultura de consumo”, que articulava novas relações entre público e privado,
baseadas na aquisição de bens que continham valor simbólico e redefiniam categorias
sociopolíticas, como liberdade, lazer, democracia, modernização.29
Desta forma, a promoção da juventude ou de valores juvenis nos anos 50 fazem parte de
um processo de formação não só das camadas médias, mas de um padrão médio de consumo e de
estilo de vida, em que a aquisição de bens não demarca apenas um fator econômico mas também,
29
Anna Cristina FIGUEIREDO, Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada: publicidade, cultura de consumo e
comportamento político no Brasil (1954-1964). São Paulo, 1996. Dissertação (Mestrado em História). FFLCH USP.
288
como sugere Pierre Bourdieu, a estruturação de uma diferenciação social, distinção ou estilo de
vida, demarcando um gosto próprio ao capital cultural formado pelo habitus dos sujeitos,
mapeando a posição de cada indivíduo na sociedade30. Isso teve como contrapartida uma
setorização também da produção de bens de consumo, especificando roupas, eletrodomésticos,
cosméticos e também músicas para estes novos setores sociais que entravam para o mercado de
trabalho no pós-guerra, e que também poderiam consumir, como as mulheres e os jovens. Um
consumo, assim, real e simbólico.
O jovem das camadas médias, assim, surgia como ator social emergente neste processo,
configurando-se na representação dominante que se faria a partir daí de uma “cultura juvenil”, no
jogo de forças e de disputas que se caracteriza o campo social31. Se até aí, os estudos sobre
juventude pautavam-se principalmente na delinqüência, no desvio de grupos marginais de jovens
das camadas baixas ou então nas subculturas do mundo escolar, agora as luzes seriam lançadas
sobre os jovens das camadas médias como modelo privilegiado e sua propalada “cultura juvenil”
que parecia ser extra-classes e generalizada, afirmando o papel das camadas médias neste
momento histórico32.
Ainda na matéria referida acima, é aconselhado à moça que escreve à coluna, que ela não
deveria sentir-se inferiorizada pois “o maior ou menor grau de inteligência da mulher se
manifesta muito, também, pela sua sensatez”. Ora, aqui revela-se um outro componente do
“dever ser” destas jovens – a sensatez. A moça deve estudar, mas deve ser útil, sendo o “ser
sensata” representativo de uma idéia de moderação, ponderação e de comedimento. É preciso
refletir sobre as jovens moças que estudando, sendo “úteis” à sociedade, ainda assim
frequentavam os cinemas, os “teatrinhos de bolso”, a noite do Rio de Janeiro, em companhia (ou
não) de seus namorados ou amigos e familiares.
“Mas na época das festas, dos shows e tudo, eu passei a vir mais pra Zona Sul, né? É porque eu fui fazer
Belas Artes e minha turma mais lá era mais da Zona Sul, entendeu? Quer dizer, até eu ir pra Belas Artes,
eu fui com 17 anos. Antes disso, já tava, já existia a Bossa Nova e tudo, eu morava na Tijuca e meus amigos
eram da Tijuca. Mas quando eu fui pra Belas Artes, que era no centro da cidade, a maioria das festas, das
reuniões, vernissage, show era tudo...Vamos dizer, a parte cultural e artística era mais puxada pra cá.
Então, aí a gente vinha, né? (...) Aqueles barzinhos...Tinha o Vermelhinho que era do lado da Escola, a
gente, a Escola fechava a porta às cinco e ia todo mundo pro Vermelhinho. Depois a gente ia ver todos os
30
Cf. Renato ORTIZ (Org.), Pierre Bourdieu.
José Manuel VALENZUELA, Identidades juveniles. In: Humberto CUBIDES et alli. (Orgs.), Viviendo a toda.
32
Atenta-se, conforme Abramo, que no Brasil, nos anos 50, 60 e 70, o tema da juventude não tinha conhecido
importância nas Ciências Sociais no que tange ao lazer, a cultura, aos movimentos culturais, sendo que o interesse
recaía sempre sobre o papel da juventude como agente político e transformador da ordem social vigente.
31
289
ensaios de peça, ensaio geral. Íamos ver todas as vernissages que tinha, entendeu? Tudo quanto era show
que existia a gente ia, quer dizer, naquela época o movimento cultural aqui no Rio era fervilhante, era
fervilhante. Era um negócio assim que não parava, entendeu? E, tanto que a gente não era tão negócio de
praia, dessas coisas, não. Tinha até o pessoal que dizia que o intelectual não vai à praia, né? Eles diziam,
mas não é. É que era uma coisa tão cheia, entendeu? Depois dos anos 70 e tudo aí começou o negócio de
Ipanema e tudo.” (Débora)
Débora, ao lembrar de seu cotidiano de estudos e dos programas que fazia com os colegas
da faculdade, vai ressaltando uma experiência na cidade que não pode ser enquadrada nem no
ideal normativo para as moças do período, como também não podia ser considerada desviante.
Mesmo vindo de um bairro mais tradicional como a Tijuca, ela se lembra que não estava
circunscrita a ele, mas que circulava pela cidade, nos diversos ambientes, nas vernissages, festas
nos Consulados e Embaixadas, inaugurações, peças de teatro, cinema, reuniões em casas de
amigos, até as boates de Copacabana, onde ocorriam os shows de Bossa Nova. Conta até que seu
pai ia até a Faculdade e aos arredores verificar se ela estava mesmo lá, pois por ali ficava muito
tempo. Em sua experiência juvenil, convivia num meio de artistas, o que aponta para uma vida
que fugia ao que tantas vezes se coloca como hegemônico no cotidiano dos jovens da época, que
é uma vida diurna nas praias.
Ela vai falando de uma vivência na noite, articulando em seu cotidiano tanto aquilo que
pertencia ao universo das regras para as moças de sua idade, regras preconizadas pelos discursos
das revistas femininas como os estudos, a dedicação às artes e também a frequência em “buates”
para ouvir os cantores e artistas de que gostava, algo que não era visto com bons olhos por estes
mesmos discursos. Uma experiência jovem que não se encerrava nos extremos dos discursos, mas
costurava no cotidiano, aspectos desviantes, inovadores, permanentes. Mesmo escapando a
alguns preceitos normativos, a ligação que ainda mantinha com alguns preceitos pertinentes a
faculdade de artes, as discussões filosóficas e as “boas companhias” lhe garantiam ainda a
identificação de “moça de família”, noção que já parecia estar se alargando.
Um olhar sobre a difusão de aspectos normativos no que tange à juventude pode levantar
mais questões quanto aos papéis femininos – normatizados e informais – da década de 50. Na
seção “Eles e elas” do Jornal Última Hora de 04/09/56, uma moça do interior contava que “morre
de ciúmes de seu noivo que trabalha na capital”, ao que recebe o conselho:
“Saiba dosar o seu ciúme, pois em demasia destrói a vida de uma pessoa. Você deve confiar em seu noivo,
pois ele está tratando de construir o lar de vocês (...) Se não tiver confiança nele, o caso é outro, pois o
290
homem que não é digno de confiança, não é digno de amor (...) Mas se ele é um homem íntegro, um homem
33
com H maiúsculo, não tolerará desconfianças, não admitirá ser levado em conta de leviano.”
Percebe-se aqui, uma tentativa de regrar e padronizar comportamentos de moças e
rapazes, no sentido de fazer com que se adeqüem ao discurso do ideal de jovens do período.
Deixa entrever aspectos de um “dever ser” sobre a mulher que se apresenta aqui como o da razão
e do equilíbrio, onde deve-se saber “dosar o ciúme”, tomando o cuidado para não desconfiar do
noivo sem motivos, o que mostraria uma moça inconseqüente, instável e levada por emoções.
Quanto ao masculino, o discurso se refere ao homem provedor, preocupado em “construir um
lar” para sua futura esposa; o perfil do homem “íntegro” como um “homem de confiança”,
merecedor do amor da jovem (ao sinal de uma desconfiança com fundamentos, deve ser
esquecido). Nesse sentido, constrói-se o modelo de masculinidade pautado na integridade, no
qual, sendo um “homem com H maiúsculo”, não tolerará desconfianças.
Perfaz-se aqui um discurso de que é necessário balancear elementos distintos, aspectos
antigos e mais modernos, que salientam elementos permanentes e modificados no tempo atual. A
jovem deve equilibrar confiança e ciúme, ou casamento e estudos. Neste caso, a moça enciumada
de seu noivo é repreendida porque trabalha, pois uma candidata a futura esposa deveria saber que
com o marido trabalhador e provedor, talvez não deva preocupar-se com o sustento da casa. Ela
não deveria criar esse tipo de problema, evitando, dessa forma, atrapalhá-lo no seu trabalho com
ciúmes excessivos que abalariam a estabilidade social.
Um discurso normativo para os jovens desse tipo sublinha aspectos de uma sociedade que
estava em franca transformação, em que aspectos novos do mundo moderno do consumo, da
modernização, industrialização e do crescimento da vida urbana deveriam ser assimilados, ainda
que devessem estar em conformidade e justapostos aos aspectos mais tradicionais da sociedade e
dos costumes, para assim, adequar-se às novidades mais condizentes com a modernidade e com o
desenvolvimentismo que o país e a época pediam.
A participação da mulher no mercado de trabalho nesta época é um fator no conjunto de
transformações por que passavam as relações homem-mulher.34 O discurso do equilíbrio
incorpora sutilmente outros valores em conformidade com as novas necessidades, pois os novos
padrões de consumo solicitam uma mulher que também trabalhasse. Desta forma, se a
33
“Eles e elas”, Jornal Última Hora, 04/09/56.
Cf. Carla BASSANEZI, Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações homem-mulher
(1945-1964).
34
291
necessidade econômica faz com que a mulher entre no mercado de trabalho, diz-se também que
ela dever ser ainda a “rainha do lar”, numa situação ideal em que estas necessidades econômicas
são escondidas sob a alegação de que a mulher dos anos 50 é “moderna”, trabalha e não é só
dona-de-casa. Várias das memorialistas se recordam de já trabalharem quando solteiras, como
professoras, recreadoras ou mesmo operárias, mas a carreira profissional não parecia ser algo que
tomasse a frente nas preocupações das jovens. Se nem todas encaravam realmente assim, é de se
questionar, e até de se afirmar que, para algumas delas, a carreira era fator preponderante no
encaminhamento do futuro. No entanto, pela educação familiar ou escolar ou mesmo por meio de
revistas femininas não era assim que o discurso se constituía, sendo ainda o casamento colocado
como fim primordial e a carreira um adendo, um elemento a mais na educação das moças. Para
Rita, adolescente na segunda metade da década de 60, tendo ingressado na faculdade em 1970 e
saído da casa dos pais mais cedo, a carreira profissional adquiria um outro peso, sendo tanto fonte
de renda para se manter sozinha, como também de realização pessoal.
Apresenta-se assim, no conselho dado à jovem do interior, uma tensão entre um equilíbrio
racional estável (que deveria ser) – de confiar no noivo que está construindo um lar – e a falta de
equilíbrio, que foge deste padrão – o desconfiar do noivo infundadamente, por ciúme excessivo.
Não se busca, no entanto, apenas levantar oposições entre uma falta de equilíbrio e um equilíbrio
racional, como categorias em binarismos que se excluem, mas apontar para as tensões que se dão
neste diálogo com as mediações possíveis entre eles, interpretando os aspectos que estão nas
intermediações, onde este “equilíbrio” idealizado pode, nas improvisações do dia-a-dia, surgir de
formas variadas, reelaboradas e modificadas, como formas de burlar ou reelaborar este equilíbrio
desejado.
“Naquela época, Simone, nós éramos assim muito...como é que eu vou dizer a você...não é submissas, não.
Eu não quero usar esse...Mesmo por que eu não era, era mal-criadinha. Nós éramos muito ligadas ao pai e
à mãe, muito, sabe, afetuosas, muito...A gente não cogitava de fazer alguma coisa contra a vontade deles,
entendeu? A gente tinha assim um temperamento, nós éramos dóceis. Acho que é esse, acho que é esse o
adjetivo. Nós éramos dóceis. A gente era mal-criada, éramos mal-criadas, éramos levadas, tudo isso. Mas
na hora de você afrontar, entendeu, a gente não afrontava (...) a gente não podia ter namorado de carro.
Quer dizer, só pé-rapado, né? [risos] Porque quem não tinha carro...e apesar de que não havia tanto carro
quanto hoje em dia, não. (...) Então, realmente, um namorado sem carro era fácil arrumar [risos],
entendeu? Era mais fácil arrumar um namorado sem carro, do que com carro. Mas quando aparecia um
com carro, eu ficava apavorada porque eu não podia sair. Quer dizer, essa é a moralidade excessiva à que
eu me referi. É um absurdo porque eu não podia sair, como é que eu ia sair com namorado? E houve
alguns interessantes que eu ficava driblando. Uma vez eu me lembro que um me apanhou aqui na esquina
da rua, mas eu nem sentia malícia porque eu não tava fazendo nada de mais. Ele era sócio do Iate, nós
fomos até o Iate, ficamos lá batendo papo, conversando um pouco. Ivan. Me lembro até o nome dele. Não
foi namorado não, foi o início de uma paquera. Eu acho que o cara desistiu, entendeu? Porque ele me
292
deixou na esquina (...) se sentiu um criminoso...e eu outra. Então, quer dizer, tudo isso um absurdo. Não
pode andar de carro.” (Maria Amélia)
Maria Amélia fala de seu presente sobre o fato de se sentir uma mulher feliz, que realizou
muitas aspirações como saber dirigir, formar-se no curso de Direito aos 60 anos de idade (algo
que lhe havia sido proibido pelo pai, quando jovem), ter tido sucesso apesar das adversidades
financeiras ou das imposições morais a que era submetida na juventude. Ao falar disso,
involuntariamente, ela se lança a detalhar episódios, aspectos da “moralidade excessiva” que lhe
era imposta e a muitos de sua geração, entre as quais a proibição dos namoros, os regramentos
relativos aos horários de sair e de chegar entre outros. É possível interpretar que ela traça uma
trajetória vitoriosa na medida em que driblou as imposições. Ela própria chega a essa conclusão,
fazendo espontaneamente esta associação. Esse relato se dá de maneira subliminar, ao se
descrever como uma pessoa que não era rebelde, nem desafiadora das ordens familiares, mas sim
como alguém “dócil” e “afetuosa”.
Essa postura dócil, no entanto, deixa transparecer fugas e as táticas elaboradas para
recriar situações e driblar
acontecimentos, uma vez que isto acabava por ocorrer no seu
cotidiano. Memória involuntária, cacos de lembranças, de palavras e expressões que vão dando
conta de uma experiência juvenil feminina que não pode ser enquadrada nem numa submissão de
uma juventude obediente e equilibrada como aparece nos discursos normativos da imprensa, e
nem numa juventude desafiadora e sem regras. Jovens que viviam na cidade apontando para um
lugar e tempo onde as contestações juvenis teriam espaço e poderiam se firmar, não só nas
práticas, mas também nos discursos, - somente no final da década de 60.
“Pois é, eu vivi uma situação muito especial. Eu era muito solta mesmo, eu era bastante solta. E eu lembro
que as minhas irmãs mais velhas, eu me lembro do controle do meu pai, não deixar usar biquíni, picar o
biquíni da Lurdinha, minha irmã, entendeu? E eu já não tinha nem isso, porque eu já assumia, eu já
namorava, eu já matava aula pra ir ao cinema. E eu garota, com 16 pra 17, conheci um cara mais velho,
comecei a namorar, foi um escândalo; e ali, na história daquela rua ali, que a gente vivia ali dançando,
brincando, nãnãnãnã! Na coisa de namorar eu acabei conhecendo essa pessoa que era um cara dez anos
mais velho e acabei ficando com ele seis anos. Quando o conheci ainda tava em casa. Era um cara casado,
então era um homem...era um tabu, não podia contar. Aquilo foi mais uma coisa na minha vida que eu
enfrentei e...entendeu? E nem disse, nunca disse e sumi e...Logo que pude fui morar com uma amiga e
depois fui morar com ele. Morei um tempo com ele depois. E foi uma relação muito forte também, muito
sensual, muito em cima de sexo mesmo e eu me diverti muito, sabe! Viajávamos, nos divertíamos! E ele
separou-se da mulher, foi uma coisa, um escândalo. E a minha irmã tentou interferir, e a Lurdinha tentou ir
procurar, mandou que ele sumisse da minha vida, que eu era uma menina, que ele iria estragar a minha
vida, que não sei que. (...) Mas fechei questão e nunca mais se comentou no assunto até eu sair de casa,
entendeu? Fiquei com ele esse tempo todo... Então, era uma coisa muito assim de...Pra mim foi assim...sei
lá...fui assim rebelde naquela história toda. Outras irmãs casaram direitinho, enfim... (..) Leila Diniz era
293
aquela coisa... quer dizer, ela era o ícone da liberdade sexual, ela achava assim... mulher, liberada, era o
auge, né? Ela era o ícone disso mesmo... eu achava isso tudo o máximo, desde a Brigitte Bardot, né? Eram
os meus ícones assim, era uma coisa muito sensual, pra mim era tudo muito sensual (...) Então, essa
relação também foi muito assim e eu não me arrependo, adorei e fiz tudo, experimentamos de tudo, enfim,
foi assim. Anos depois, depois que eu casei com o Roberto é que eu voltei, comecei a ligar mais pro meu
pai, então meu pai tinha até medo de mim, não chegava muito perto, não queria nem saber, entendeu? (...)
E eu logo comecei a fazer estágio, no segundo ano da escola, logo arrumei meu dinheirinho e logo fui
trabalhar num escritório grande de desenho industrial e armação visual, e logo eu comprei meu carrinho, é
engraçado a diferença de época... meu próprio carrinho, não dividia apartamento e... eu fui me virando e
eu nunca parei de trabalhar... eu comecei a trabalhar e nunca mais parei... hoje em dia eu sou funcionária
pública, há 17 anos (...) e este foi o meu regramento, horário, tudo direitinho [risos].” (Rita)
Aqui as formas de fuga aos padrões impostos socialmente ficam mais explícitos. Rita
lembra de sua juventude “solta”, nos anos 60, saindo de casa cedo, indo morar com um namorado
dez anos mais velho e casado, num relacionamento em que experimentou liberdades sexuais, fuga
aos padrões que via em sua própria família, com as irmãs mais velhas. Por ter tido uma história
“especial”, como narra, associa espontaneamente, em sua narrativa, estas liberdades que
experimentou os ícones comportamentais de sua época, como Leila Diniz, lembrando que isto
vinha de Brigitte Bardot no início da década. Ficam patentes as diferenças nas memórias de
Maria Amélia e Rita – que têm 10 anos de diferença de idade – em que assumir o desvio, a fuga
aos padrões impostos é muito mais corrente e valorizado nas memórias de Rita. Um ideário em se
firmar como pertencendo a uma geração contestadora e liberal, que só mudou com o emprego
público, fixo e estável, conta com bom humor. No entanto, é preciso ressaltar que as experiências
lembradas por ela não aconteciam sem conflitos, como seu depoimento pode revelar à primeira
escuta, mas esse seu comportamento lhe rendeu o afastamento da família e do pai com quem
voltou a se encontrar somente quando casou. Pistas que apontam para os limites das liberalidades
dos anos 60.
Nas memórias de Ronaldo Bôscoli, faz-se presente uma tentativa de salientar um “carioca
way of life”, um “jeito carioca” que, em sua construção, surge como essencial, natural ou único.
Aqui aparece também e de modo bem destacado a idéia de “malandragem” e “esperteza”, quando
conta que junto com amigos pirateava linhas telefônicas para conversar com as namoradas ou
quando o grupo entrava em festas sem serem convidados e praticavam o que chamavam “trotes”
em personalidades da alta sociedade carioca. Esse relato tenta dar conta de um cotidiano carioca
leve e ingênuo dos “anos dourados”, em que as regras eram desafiadas por jovens que assumiam
uma atitude irreverente diante do estabelecido.
294
Vão surgindo, mesmo que indiretamente, indícios do que naquela década foi conceituado
como “juventude transviada”, um denominação que se propagou nos meios de comunicação, nos
discursos jurídicos, sociológicos e psicológicos. Essa nova categoria, surgida nos Estados
Unidos, disseminou-se por aqui também, como se percebe na imprensa da época, por exemplo.
Luisa Passerini35 analisa a sociedade americana da década de 50 e o estabelecimento de uma
cultura adolescente como um mundo à parte, o qual gerou debates e discursos normativos,
exatamente por corporificarem as angústias da própria sociedade americana. Nesse momento,
começa um debate sobre a delinqüência juvenil, com a criação de comitês de justiça e pesquisa
social sobre a juventude e seu comportamento. A preocupação voltava-se para os grupos juvenis
que fugiam àqueles formados e administrados por adultos, como o dos escoteiros. A eles foi dada
a denominação de gangues, um termo bastante elástico que definia tanto grupos violentos que
cometiam furtos, vandalismos, rachas, crimes até grupos mais parecidos com associações e
clubes. O problema dessas gangues, segundo o discurso constituído, eram os valores que
buscavam diferir daqueles vigentes no padrão médio burguês, com o uso de gírias próprias, o
gosto pelo rock and roll, o apelo erótico de Elvis Presley, os cabelos compridos dos rapazes, as
roupas deferentes, os carros “envenenados”, etc.
Estes grupos desenvolveram-se exatamente em torno do tempo livre e na procura por
atividades de diversão, criando estilos próprios no modo de se vestir carregado de simbolismos,
com elementos de consumo também emblemáticos, buscando marcar uma identidade distintiva.
A expansão desse modo de vida rompe as fronteiras dos jovens dos setores marginalizados,
incluindo também aqueles das camadas médias que passaram a ser considerados “anormais” ou
delinqüentes. Entre suas práticas estavam as brigas entre gangues, os rachas, duelos e a histeria
nos shows e na exibição de filmes como Rock around the clock. Esse comportamento deixa de ser
exceção e torna-se quase uma regra. É assim que surge a idéia de juventude transviada, dos
rebeldes sem causa, interpretados à época como sintoma de patologia, de recusa à entrada no
mundo adulto, atitude percebida com perplexidade pela sociedade exatamente por sua falta de
justificativa.
O cinema americano logo tratou de representar estes grupos, ajudando a formular um
discurso sobre a juventude, produzindo filmes que não só tinham adolescentes e jovens e seus
35
Luisa PASSERINI, A juventude, metáfora da mudança social – Os Estados Unidos da década de 1950. In:
Giovanni LEVIe Jean-Claude SCHMITT (Orgs.), História dos jovens.
295
problemas como protagonistas, como também dirigia-se a um público jovem. Em geral, os filmes
tratavam de construir a figura juvenil de modo autônomo em relação ao mundo dos adultos.
Segundo Passerini, Sindicato de ladrões, dirigido por Elia Kazan em 1954, é uma desses
produções. Nela, o protagonista Terry Malloy vivido por Marlon Brando é apresentado no início
da narrativa como um rapaz selvagem que no fim da história revela sua bondade ao ser salvo pelo
amor de uma bela e loura jovem, donzela e religiosa que o traz para o mundo convencional da
sinceridade, coragem e individualismo, próprios à cultura americana. Também em Rebel without
a cause (ou Juventude Transviada) dirigido por Nicholas Ray em 1955, com James Dean, estão
representados jovens delinqüentes com um comportamento irregular, conseqüência da
indiferença dos pais sempre distantes e ausentes. A reação a esse estado de coisas, a exigência em
aceitarem as regras e os rituais de uma sociedade com a qual não se identificavam, era a reunião
em torno de seus pares constituindo um mundo à parte. Em todos, o que prevalece é a função
regeneradora dos personagens de fora dos grupos revoltosos, trazendo os protagonistas de volta à
vida social da ordem estabelecida.
Após a Segunda Guerra Mundial, passa a ocorrer uma internacionalização da cultura e do
modo de vida norte-americanos, quando a circulação de bens culturais, como ressalta Renato
Ortiz, ganha maior consistência ao ser pensada em termos de mundialização e não de difusão36.
No Brasil, padrões culturais europeus vão sendo substituídos por padrões representados em
grande parte pelo cinema hollywoodiano. Assim, este imaginário do desvio, de uma juventude
que desafiava as regras sociais perpassou os jovens das camadas médias cariocas, mas também de
outras camadas sociais.
Nas memórias de Bôscoli, esse jovem rebelde estava presente. Convém questionar os
limites destes comportamentos como desvios aos padrões normativos, considerando que a
memória não é apenas um depósito passivo de fatos, mas um processo ativo de criação de
significados. É preciso estar atento para as inúmeras modificações do passado forjadas pela
memória, colocando a narrativa em seu contexto histórico, tendo-se sempre em mente que o
depoimento é uma construção filtrada do presente a partir de um distanciamento do fato
ocorrido37. A memória procura construir sentidos unívocos, ocultando diferenças e tensões,
enaltecendo fatos e passagens, atribuindo-lhes sentidos de exaltação e valorização, com uma
36
Cf: Renato ORTIZ, Mundialização e cultura. E também _______ A moderna tradição brasileira: cultura brasileira
e indústria cultural.
37
Alessandro PORTELLI, O que faz a História Oral Diferente, Projeto História, n.14.
296
perspectiva que vem do tempo presente de quem lembra e da imagem que se quer formular. Em
Bôscoli nota-se uma tentativa de construir sua experiência de juventude como “transviada”,
desviante, que fugia, enfim, aos padrões. No entanto, este falar de seus feitos, como o “piratear
linhas telefônicas para conversar com as namoradas”, por exemplo, mais oculta do que revela as
maneiras pelas quais os sujeitos constróem, no seu cotidiano, as táticas de reelaboração dos
padrões lançados no social.
Em outros depoimentos de participantes da Bossa Nova, é possível perceber também, um
dos aspectos da memória, que é o de trabalhar como encobridora das experiências passadas, em
que se vê nesse tipo de narrativa, uma tentativa de linearizar e dar uma única voz às experiências
do passado, compondo sentido de coerência.
“Eu gostava dos Mamonas [Assassinas] não como músicos, eu acho que eles eram uns moleques da música
... uma coisa que eu e o Ronaldo fazíamos muito, nós fazíamos muita molecagem ... Molecagem,
sacanagem, passar trotes, brincadeira, essas coisas .... É aquilo que o Bôscoli falava no livro dele, um
“carioca way of life”. Os Mamonas, a gente não pode encarar, quer dizer, os músicos não podem encarar
38
os Mamonas como música, tem que encarar como uma sátira, o que é bem diferente.”(Chico Feitosa )
Chico Feitosa, ao dar sentido à sua trajetória em companhia de amigos, assume que eram
“moleques”, buscando construir uma imagem de experiência que se mostrava ingênua, leve e
harmoniosa, destacando cores de uma valorização da juventude naquele período. A exaltação de
um discurso satírico, nas músicas, quando argumenta que eram uns “moleques da música”
corrobora ainda mais para a formação de um imaginário jovem que parecia ter um de seus pilares
na idéia de uma juventude “alegre”, “descontraída”. Ele formula, então, uma noção de
descompromisso, a construção de uma idéia de fuga aos padrões do jovem sério e regrado, em
que este descompromisso revela um aspecto desta “juventude transviada” que ele toma para si.
No entanto, nas memórias de Bôscoli ou de Feitosa, eles não usam em nenhum momento esta
expressão “juventude transviada” como auto-nomeação. Embora não se qualifiquem assim e,
embora na década de 50, o jovem “transviado” não seja confundido com o “descontraído”39, é
possível perceber uma construção do presente na qual a memória apropriou-se deste imaginário
de desvio, em que o lembrar mostra-se como desvelador de atitudes e sentimentos que pareciam
encobertos.
38
Depoimento concedido em 22/04/96, no Rio de Janeiro.
A reportagem fala sobre a juventude paulista estar despontando no colunismo social, lugar onde, antes, somente
apareciam os adultos. É ressaltada uma juventude alegre, em que são “despreocupados mas não transviados”. “A
jovem guarda paulista”. Revista Manchete, 04/59.
39
297
A memória da trajetória de alguns jovens se situam nesta tensão entre o ideal normativo –
o discurso do equilíbrio – e a idéia de “juventude transviada”, em que se auto-proclamavam
desviante destas regras. Neste meio que desloca-se e se rearticula a cada situação, variando em
aproximações de um lado e de outro, é possível encontrar a interpretação de um cotidiano tenso
que se elabora nas múltiplas formas de experimentar historicamente as práticas do cotidiano,
extraindo
“de seus ruídos as maneiras de fazer que, majoritárias na vida social, não aparecem muitas vezes senão a
título de resistência ou de inércia em relação ao desenvolvimento da produção sócio-cultural (...) Uma
criatividade oculta num emaranhado de astúcias silenciosas e sutis, eficazes, pelas quais cada um inventa
40
para si mesmo uma ‘maneira própria’ de caminhar pela floresta dos produtos impostos.”
Neste meio caminho, nesta zona do interdito e do indeterminado, é que surge o lugar da
interpretação histórica a respeito das experiências juvenis, que incorporam tanto aspectos
normativos quanto da “juventude transviada”, visíveis em rearranjos e rearticulações constantes,
tornando-se necessário relativizar, mostrando as diferenças deste imaginário de desvio. Mesmo
falando de uma juventude que, em suas “arruaças”, pode até sugerir um ideal construído de
ingenuidade e de desvio é preciso lembrar que este ideal de “juventude transviada” articulava-se
e se rearticulava diferentemente, incorporando ora certo grau de transgressão, ora certo grau de
adaptação. Será que esta juventude realmente transgredia os padrões impostos trazendo para si
um estatuto de desviantes? Será que mesmo em suas formas de diferirem do ideal juvenil
proposto eles não estavam também reafirmando as normas, uma vez que também namoravam,
noivavam, casavam, ajustavam-se às regras de família burguesa e buscavam padrões de
elegância, numa prática que pode ser traduzida por uma aceitação dos padrões propostos ?
É necessário repensar a noção de “juventude transviada”, que tanto se propagava nos anos
50 e que, de alguma forma, permanece na memória de muitos que vivenciaram este período,
como também na memória histórica. Na imprensa da época, é possível perceber o quanto se fala
desta “juventude transviada”. Em debates jurídicos, educacionais, assistenciais, este assunto
também é percebido. Inúmeras são as notícias, notas, matérias, reportagens que dão conta de
“arruaças” e “pegas” nas ruas de Ipanema e Copacabana, ou nos subúrbios de Nilópolis;
assassinatos e estupros de moças, só para citar alguns exemplos. Dentre estes, o mais
emblemático e que causou maior repercussão foi o assassinato da jovem Aída Curi, tendo gerado
40
Michel de CERTEAU, A invenção do cotidiano - 1. Artes de fazer.
298
muitos debates, inclusive, em torno da possibilidade de ser aprovada uma lei que estendesse até
os menores de 18 anos a responsabilidade penal, uma vez que um dos acusados por este crime
tinha 16 anos de idade.
“Tudo evolui, menos a forma de punir os culpados. (...) É a teoria x prática. Demonstra [o Ministro do
STF] Nelson Hungria, em seu invejável saber, que é inteiramente inadequada a expressão “Delinqüência
juvenil”. Ora, os polemistas não apresentam um roteiro para corrigir o mal estar social em que vivemos.
Assim pouco interesse tem o acerto ou desacerto da expressão. O que interessa é uma solução imediata
para os problemas dos crimes praticados pelos maiores de 14 anos, e muitos dos quais de uma brutalidade
sem par (...) O que queremos é um remédio de efeito imediato que possa devolver à sociedade a necessária
tranquilidade de vida (...) A violência dos crimes praticados por bandos de menores desajustados exige
41
pronta e rigorosa aplicação penal.”
Tem-se aqui a cobrança por medidas mais severas por parte da Justiça contra estes
“delinqüentes” e “desajustados” que tiram a “tranquilidade” necessárias ao social. Constrói-se
assim, um discurso que, dizendo o que um jovem não deve ser, indica pistas para que se
compreenda alguns significados do que se queria dizer com “jovens desajustados”, num desajuste
que aponta mais uma vez para o ideal normatizado do equilíbrio juvenil. No entanto, este
equilíbrio é construído de maneira que pareça harmonioso e sem conflitos, em que aspectos
diferentes devem conviver bem equilibrados.
“Como já noticiamos, Nilópolis foi palco na madrugada de sábado de uma curra praticada por
componentes da chamada “juventude transviada”. Três jovens (...) foram violentamente arrastadas e
espancadas por cinco jovens (...) onde submeteram [-nas] a toda sorte de vexames.(...) Assinale-se que esta
não é a primeira vez que acontecem curras em Nilópolis, nas proximidades do local que, ao que informam
42
os moradores da redondeza, parece ser o QG da juventude transviada do local.”
Vê-se que a nomeação “juventude transviada” já se faz presente, como designando todos
os jovens “delinqüentes”, pois mesmo usando-a entre aspas e referindo-se à “chamada juventude
transviada”, tem-se a construção de um grupo específico, nomeado e espalhado por vários
recantos da cidade, sem diferença entre a zona sul (aparecendo em outras notas policiais crimes
em Copacabana, Leblon) e os subúrbios de Nilópolis. No entanto, se o discurso até aqui
desqualifica (e assim normatiza) apenas os rapazes “delinqüentes”, em outras ocasiões, a
normatização alcança também a vítima.
“cheguei à conclusão, diante da realidade, de que a morte de Aída tem sido muito útil. (...) compreendo que
a morte da minha amada Aída está servindo como uma severa advertência a todas as moças que desejam
conservar sua pureza, como foi pura a minha família. (...) Não chega que uma jovem seja cândida e
sincera. É preciso que saiba defender-se das coisas ruins que a cercam. (...) Se Aída não fosse tão cândida,
41
42
“Conversa prá ‘dotô’”. Na seção “Coluna Aberta”, Jornal Última Hora, 01/09/58, p. 18.
“Polícia de Nilópolis caça autores da curra”. Na seção “Ronda das ruas”, Jornal Última Hora, 01/09/58, p.10.
299
talvez tivesse voltado para casa, sem a bolsa e os óculos, mas com vida. (...) uma jovem pode ser pura sem
ser totalmente desprevenida. (...) Criaturinha meiga, simples e sossegada, era inteligente como poucas
criaturas e estudiosa. (...) seu diretor espiritual e confessor reconhecia em Aída uma verdadeira santa. (...)
43
acredito que a Justiça fará Justiça, proporcionando aos moços a mesma lição que Aída deu às moças.”
O depoimento é da mãe de Aída Curi – moça que foi morta no ano anterior, ao cair (ou ser
jogada) do alto da varanda de um edifício em Copacabana, provavelmente para fugir de um
estupro. A fala de sua mãe permite que se compreenda alguns padrões para os jovens da época ao
reafirmar e dar ênfase às virtudes morais da filha, como sendo santa, pura, cândida, estudiosa e
inteligente. Sua fala quer confirmar e comprovar que a filha era mesmo inocente, numa tentativa
de desmentir as acusações que começaram a se espalhar na época, de que era uma moça
“leviana’, por estar à sós com dois rapazes. Por outro lado, ressalta-se o discurso do equilíbrio
neste papel de “utilidade” dado ao crime, em que as jovens podiam ser puras mas não ingênuas,
devendo ser prevenidas, em que aspectos novos no que tange ao feminino, convivem tensamente
com aspectos mais antigos e permanentes.
Apesar de não se pretender banalizar estes fatos, e torná-los, pela distância temporal, algo
sem importância para aquela sociedade naquele momento, eles não podem ser encarados como
desvios, pois acabam por penetrar sutilmente no campo do discurso normativo. A moça morta é
acusada de fácil ou leviana por concordar em ir com dois rapazes, sozinha, ao apartamento de um
deles. O que aparentemente seria um desvio, uma atitude que desafiaria os padrões
comportamentais da época, acaba sendo utilizado pelas regras morais para desqualificar as
atitudes das jovens. Nestes fatos, que não se enquadram no ideal do dever ser juvenil da época e
que acabam na coluna policial numa visível polarização, não se encontram as improvisações
cotidianas, as mediações entre estes pólos opostos, os seus diálogos, que se dão de maneira tensa,
conflituosa, indeterminadas, mas que merecem o olhar interpretativo do presente.
Tem-se ainda mais indícios memoriais sobre a idéia de desvio da juventude dos anos 50 e
60 para as moças. Uma idéia de “ser prá frente”.
“A Danuza [Leão]que conheci era a própria personificação da Radical Chic. Ela era uma sensação - e um
escândalo também. Desfilava pela praia com a sainha acima do joelho... Era muito prá frente.(...) Era uma
garota bem nascida, rica, chique e muito prá frente. (...) Já naquele tempo, Mônica Silveira ia à praia, de
mãos dadas com o namorado, tomar banho de mar. À noite, é claro. Muito prá frente.(...) Mônica foi um
44
grande espanto da nossa época”.
43
44
“Minha filha Aída”, Revista Manchete, 04/59, p. 18-21.
Ronaldo BÔSCOLI, Eles e eu: memórias de Ronaldo Bôscoli, p.230 e 266.
300
O ser “prá frente” significa uma tentativa de “ser moderna” no que tange aos
comportamentos. Vê-se aqui, o modo como o desafiar regras e o escandalizar são ressaltados
tanto quanto o refinamento, o “ser chique” e elegante segundo o padrão dos anos 50. Um “ser
chique” que insinua saias curtas, corpos bronzeados à mostra, maiôs duas peças na praia – um
ideário que repousa sobre a ousadia, mas ainda sobre a elegância e o refinamento. Suas memórias
querem construir uma valorização da sensualidade feminina, em que esta mulher não seria vista
como vulgar, mas como “moderna”. Porém, estas moças constituíam-se, como Bôscoli próprio
destaca, em “espanto de nossa época”. Eram moças que fugiam ao padrão e que acabavam por
atrair ações restritivas em busca de uma espécie de reapropriação. Os namoros à noite na praia
eram proibidos e o padrão de elegância das revistas femininas recaía sobre as saias e vestidos que
cobrissem os joelhos. No entanto, importa assinalar que os variados tipos e graus de rebeldia
juvenil tiveram seu valor histórico, como sinalização de mudanças e fortalecimentos de
identidades jovens que viriam a se consolidar, com fortes conseqüências sociais, anos depois.
Nas canções da Bossa Nova está presente uma tematização do ambiente diurno, da praia,
e das moças que por ali circulavam de corpos à mostra.
“Você viu só que amor
Nunca vi coisa assim
E passou, nem parou
Mas olhou só pra mim
Se voltar vou atrás
Vou pedir vou falar
Vou dizer que o amor
Foi feitinho pra dar
Olha, é como o verão
Quente o coração
Salta de repente
Só pra ver a menina que vem
Ela vem, sempre tem
Esse mar no olhar
E vai ter, tem que ser
Nunca tem quem amar
Hoje sim, diz que sim
Já cansei de esperar
Não parei, nem dormi
Só pensando em me dar
Peço, mas você não vem
Deixo então, falo só
Digo ao céu
Mas você vem”
(Samba de verão)
301
A autoria desta canção é da dupla de irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, uma geração
mais jovem que começou a compor e tocar já influenciados pela Bossa Nova. Embora gravada
em 1966, nos EUA, em versão instrumental, pelo organista e arranjador Walter Wanderley, tendo
sido chamada de Summer samba e tendo vendido 1 milhão de cópias, por aqui o disco não
alcançou popularidade, muito em função de que o intérprete era conhecido por seu repertório de
boleros e seus arranjos para Isaurinha Garcia45. Assim, mesmo tendo sido gravada (com letra e
música) em português só dois anos depois, esta canção tornou-se um marco nas memórias de
muitos ouvintes, que se referem a ela como um dos símbolos de uma época passada de leveza e
felicidade. Provavelmente, muitos deles a escutaram nas reuniões (“festinhas”), com a presença
de jovens músicos e onde eram lançadas novas canções. Vem daí o fato de alguns ouvintes,
mesmo não pertencendo ao campo e nem mesmo ao ambiente musical, terem assistido a estas
performances intimistas. Por outro lado, esta foi uma canção regravada algumas vezes, daquela
época até hoje, tendo a última sido feita por Caetano Veloso, versão utilizada como tema de
personagens sorridentes e leves moradores do Leblon de uma telenovela global de grande
popularidade em 2000. Foi regravada também por Bebel Gilberto, com versão em inglês que,
adequadamente recebeu o título So nice, além de um arranjo com elementos da música eletrônica.
Toda esta permanência da canção, com sua tradição movente e nômade46 renovada, modificada e
rearranjada em cada contexto de gravação e época histórica e cultural, colabora para que a
memória, uma construção sempre do presente, guarde, retenha e ilumine mais alguns aspectos do
que outros.
Uma letra em tom de comentário sobre uma moça bonita que passa, olha, flerta, e se vai.
Uma paixão ou atração imediata que foi provocada pelo clima, o verão, o calor, o mar que está
espelhado em seu olhar. Realmente uma leveza nas formas de encarar o amor, os flertes, as
paixões que se acham em consonância com o desenho melódico reiterado em quase toda a canção
e no ritmo com acentuações sincopadas que sugerem o balanço dos caminhantes à beira da praia
e das próprias ondas do mar. Um tom de lirismo ainda se completa com exclamações “Olha! É
como o verão!”, em que o prolongamento das vogais e a maior distância entre as notas da
melodia sugerem esta expressão dos sentimentos de contemplação e de alegria.
45
46
Ruy CASTRO, Chega de Saudade: a história e as histórias da Bossa Nova.
Paul ZUMTHOR, Tradição e esquecimento. E também ______ Introdução à poesia oral.
302
“A Bossa nova era uma coisa assim de libertação de costumes. Estava começando, começando, não um
negócio libertário, assim de hippie ainda não, mas era uma coisa assim de sair daquele peso. O que eu
acho que a Bossa Nova representou nesse tempo foi a coisa da leveza, entendeu? As coisas ficarem mais
leves, as roupas não ter mais aqueles fru-frus e aqueles negócios; e aí veio a mini-saia, entendeu? Os
costumes todos mais leves. Tudo combinava, né? Combinava com a música a saia. Eu, por exemplo, tinha
umas mini-saias que eu fazia calcinha igual. É, porque a calcinha aparecia mesmo. Então, eram uns
vestidos tão curtinhos! Não só eu, várias faziam a calcinha igual também. Então era uma coisa assim...E aí
o cabelo! Cortei o meu cabelo assim [curto], usei meu cabelo muito tempo. Que agora eu to usando de
novo, mas até Elis Regina uma época usou também, depois. Depois veio da Inglaterra aquele negócio de
mini-saia.... Então, foi tempo assim muito de leveza. Eu acho que a Bossa Nova, ela canta essa leveza, essa
delicadeza, essa sutileza, né? A coisa do não sofrimento, da não dor, entendeu? Uma coisa mais assim da
felicidade, entendeu? Que tinha também, naquela época, os filmes de realismo italiano, de....os realismo,
todos os realismos, de Bergman, de não sei que e não sei o que lá. E o pessoal intelectual era muito...meio
pesado, entendeu, meio sofrido, meio coisa. Mas a Bossa Nova, quer dizer, essa onda, esse clima, esse
vento, essa brisa da Bossa Nova era uma coisa assim que arejava, entendeu?” (Débora)
Débora, ao lembrar-se da leveza das músicas ou do ideário trazido com a Bossa Nova,
associa a um tempo em que o espírito predominante passava a ser o da leveza também nas formas
de encarar a vida e o mundo por meio de modos delicados e sutis de pensar o amor e a existência.
Ela associa este despojamento às maneiras de se vestir, sem tantas elaborações e requintes, com
cabelos curtos, vestidos também curtos, que permitiam até aparecer a “calcinha da mesma cor”.
Ela vai falando de uma juventude que buscava a diferenciação do mundo dos adultos, inclusive
nas maneiras de se vestir, atitude que não era uma tentativa de transgressão, mas um jeito de
valorizar este corpo jovem deixando-o à mostra sem as características de femme fatale que nos
anos 50 ainda era o padrão de beleza feminina moderna. Não se pode esquecer, é claro, que
Débora está se referindo à época da faculdade, em meados dos anos 60, quando muitos dos
preceitos dos anos 50 já encontravam-se modificados, em que as revistas femininas já
valorizavam o biquíni duas peças, as saias acima dos joelhos, publicando moldes e modelos.47
Esta valorização de um jeito clean de se vestir e de ver o mundo, ressaltados por Débora,
encontra ressonâncias também com o meio das artes plásticas no qual vivia.
“Mas a minha vida então era, nessa época, estudar piano, dar conta do colégio, aos sábados sempre tinha
uma festinha pra ir, sem poder me maquiar porque maquiagem só aos 18 e sem usar salto, só saltinho deste
tamanhinho assim. E isso me fazia um pouco diferente das minhas amigas, porque naquela época as mães
já começaram, quando o pessoal tinha 16, 15 anos, as mães já deixavam colocar um rougezinho, um
tracinho no olho, mas mamãe não deixava não. E eu me lembro que nesse aspecto eu me revoltava muito...
eu sou a única que sou diferente!! E mamãe não deixava usar preto, ta? Dentro do meu grupo, eu me
destoava um pouco, eu me destoava também porque eu fui interna dois anos (...) Aí esse negócio do
[vestido] preto tinha um lance engraçado... tinha um costureiro, que trabalhava no Jornal do Brasil, um
costureiro famoso que se chamava Gil Brandão, e ele todo domingo dava uns moldes de umas roupas, e
minha mãe não saiba costurar nada, mas ela de vez em quando se metia a costurar... e ela fez um vestido
que era moda chamado JK, e ela fez um vestido que era do Gil Brandão, que era um tubinho azul rei, aqui
47
Carla BASSANEZI, Virando as páginas, revendo as mulheres.
303
ele fazia como se fosse um “v” branco, azul rei aqui sem manga, o vestido era lindo... mas, todas as minhas
amigas vestiam o que? Preto. E aí, tinha uma festa na casa da Silvia Helena onde Fraguinha ia Fraguinha foi o homem mais bonito que eu já vi na minha vida (..) e todas as meninas de preto, com
cabelos lisos, eu nunca tive cabelos lisos. Aí, eu era a única que não estava de preto. Quando Fraguinha
entrou, parecia assim, um bando de urubu na carniça... e eu, sentadinha no sofá estava, sentadinha no sofá
fiquei, sempre muito falante, muito alegre, muito risonha, que esse sempre foi o meu jeito... daqui a pouco,
quem é que me tira pra dançar? Fraguinha! Eu quase desmaiei...” (Eliane)
Eliane ressalta que era diferente das outras garotas, tendo padrões morais e
comportamentais mais rígidos, segundo os quais não podia usar maquiagem ou roupas pretas até
os 18 anos. Nas suas memórias, isso era uma desvantagem, pois se achava inferior às outras
moças, mas o que lhe era permitido vestir e usar trazem pistas para compreender este certo
padrão corporal e comportamental mais ingênuo, em que usar roupas azuis, vestidos acima dos
joelhos, rosto sem maquiagem reforçariam uma idéia de prolongamento da adolescência, com
roupas próprias, atitudes próprias, sem chegar a alcançar ainda o modelo adulto.
Nas memórias de Débora e Eliane – que têm uma diferença de idade de alguns anos –, as
lembranças sobre as roupas que usavam são construídas nas memórias de hoje como algo mais
próximo de um visual despojado, adolescente e ingênuo ao que associam com um tempo que
também pedia leveza. No depoimento dos jovens autores da Bossa Nova, também é possível
identificar esta tentativa de construção da memória em que se vêem como jovens que se vestiam
de maneira diferente, usando bermuda e tênis nos shows, numa atitude mais despojada. Assim, a
escuta de uma música que falava de amores leves, passageiros ou correspondidos, com uma
linguagem poética que parecia narrar o cotidiano das moças nas praia, as garotas a caminho do
mar vestidas de saias curtas e andando num ritmo cadenciado parecia lhes fazer muito sentido.
Timbres de intérpretes mais jovens, que cantavam sem empostação vocal, novas sonoridades,
melodias e harmonias, pronunciando frases e não articulando palavras, como sugere Barthes48,
em que as vozes cantantes chamavam a atenção para o corpo, para as gestualidades por trás de
cada entonação, em tematizações mais sugeridas que marcadas, o corpo e suas formas de
significação, como o vestuário, corte do cabelo, adereços, maquiagem, pareciam também engajarse naquilo que a escuta evocava. Uma escuta que fala apoderando-se do que lhe é dito para
transformar e lançar incessantemente no jogo das transferências dos significados sociais.
48
Cf. Roland BARTHES, O grão da voz ; A música, a voz, a língua. In: ____ O óbvio e o obtuso: ensaios críticos
III.
304
Estas questões com relação ao vestuário trazem a idéia de valorização da elegância. Ora,
este discurso da elegância ainda se fazia muito presente na época, dizendo respeito também aos
valores normativos. Numa matéria entitulada “... mas bonitas mesmo são as grã-finas...”,
valoriza-se a elegância das mulheres e não só a beleza.
“A questão realmente difícil em sociedade é saber quem é a mais bonita, e sobretudo, não confundir a
elegante, a que tem charme, com a beleza pura.(...) Elas brotam de seus vestidos Dior, elas saem do mar de
Copacabana, elas invadem os negócios e dominam a noite. (...) Elas são exóticas e inteligentes como a
49
senhora Danuza Wainer. (...) E têm uma classe, uma maneira, um encanto inigualáveis.”
Ora, o ideal de elegância perpassa também o discurso do “dever ser” para a mulher dos
anos 50. Ressalta-se que não adianta só a “beleza pura”, mas tem de ter elegância e charme. O
equilíbrio, nesta matéria, versa sobre as mulheres, que devem “vestir Dior” mas ainda ir à praia,
invadir os negócios (trabalhar), serem inteligentes, mas ainda sorridentes e manterem seu
“encanto”. O discurso do equilíbrio perpassa diferentes momentos desta época, apontando em
diversas direções em que este “equilibrismo” deveria imperar, embora ele não fosse, como podese perceber, tão preponderante.
A questão do corpo torna-se específica nesta época, passando a ser considerado como
território de inscrição das diferenças, depositário de signos, em que cultura e natureza não se
separam, mas onde o biológico e o social integram-se, de acordo com as contingências históricas.
Corpos que neste momento começam a ficar mais à mostra, nas praias, com a valorização da pele
bronzeada como sinônimo de beleza. Associado a isso, está um padrão de beleza ligado à saúde,
em que estar bronzeado é ser saudável, o que já lançava pistas sobre o culto ao corpo que se
verificaria em décadas posteriores. Mas, para além disto, na década de 60, o que entra em
evidência é um corpo jovem como portador de liberdade, saúde, potência, agilidade e coragem. A
idéia de juvenilização da sociedade, já apontada, remete também a um padrão de corpo jovem
que passava a partir daí a ser perseguido por diferentes faixas etárias, um imaginário das
sociedades modernas que têm nos padrões juvenis um de seus alicerces, em que a moratória
social se estica, tentando também perpetuar os signos, valores e atitudes.
Continuando a falar sobre o jovem ideal construído na imprensa,
“Quem não aprecia uma moça alegre, dessas que sabem conversar com todo mundo, que são amáveis,
desportistas, que irradiam juventude ? Impossível não gostar de uma pessoa assim. Até mesmo os homens
mais sisudos, certos “esquisitões” apreciam uma mulher vivaz e aprova está em que frequentemente se
49
“...Mas bonitas mesmo são as grã-finas...”. Revista Manchete, 07/60.
305
vêem casamentos dessa natureza - um homem caladão e uma mulher jovial. (...) A mulher pode ser
carinhosa sem ser fria, desde que não confunda carinho com licenciosidade (...) e nenhum rapaz realmente
bem intencionado protestará contra a “frieza” da sua namorada uma vez que ela o ame com devotamento e
50
sinceridade, mas sabendo se impor ao seu respeito e à sua admiração”.
No que tange ao comportamento nos namoros, o discurso do equilíbrio também faz-se
presente; discurso no qual a jovialidade e o entusiasmo da jovem são valorizados e
recomendados, não devendo, porém, ser confundidos com a permissão de procedimentos
“indecorosos”. A mulher deve expressar seus sentimentos, (sendo que em muitas outras colunas,
o amor recíproco é valorizado, em que aconselha-se não namorar com um rapaz de quem não se
gosta), não deve ser fria, mas equilibrar seu carinho e devotamento com respeito e retidão. Desta
moça dos anos 50, cobra-se a “personalidade”, não mais uma passividade absoluta, mas que, no
entanto, deve ser regrada por alguns preceitos: ela deve ser “alegre sem ser dispersiva” ou ainda
“suave ditadora”. As novas prescrições lançadas às moças dos anos 50 – em consonância às
mudanças por que passavam a sociedade do período pós-guerra, momento de incipiente formação
de uma sociedade de consumo – procuravam ser normatizadas e, incorporando inovações,
reelaborava-se o discurso de estabilidade social desejada.
Neste mesmo conselho (na mesma coluna), surge a figura do rapaz. Aqui a referência é a
um rapaz sisudo qualificado pejorativamente como “esquisitão”, sempre à procura de uma moça
jovial e alegre para se casar. Mas esse rapaz sério e com “boas intenções” deveria ser também
alegre e jovial, o que aponta também para um discurso em que o equilíbrio deve imperar.
“Então, eu tinha assim essa diferença de outras moças, mas tinha os bailes de formatura, aqui no Rio. Bom,
aí eu... dançava, adorava dançar, nunca dancei bem junto, nunca, nunca... mas separado eu parava a festa,
parava mesmo... e, contava mentira para mamãe; as vezes porque, as vezes não tinha mãe pra levar e aí
vinha aquela mentirinha... não, a mãe da fulana vai levar e a mãe da fulana vai pegar... não sei o que... a aí
mamãe deixava, mas não ia mãe nenhuma e a gente, enfim... a única droga que existia e que ainda hoje
persiste foi o cigarro. Com 14, 15 anos eu já fumava. (...) A minha vida eu diria que era uma vida normal,
ta? Agora, namorar, eu não namorava em casa, tinha que namorar lá embaixo na portaria, o namorado
não entrava em casa; mas aqui neste prédio, se você notou, mas tem um cantinho... e nesse cantinho a
sacanagem corria solta, solta, mas solta... com a graça de Deus que tinha esse cantinho [risos]. Aos 17
anos eu conheci o meu futuro marido, pra você ver que eu não namorei muito, né?” (Eliane)
Eliane, embora ressalte que tinha diferenças no seu comportamento em relação às outras
moças, lembra-se de freqüentar vários bailes e festas, burlando, muitas vezes, a vigilância da
mãe. O papel dos pais e principalmente das mães, neste momento, é do vigiar de perto o
comportamento das moças quanto aos namoros, garantindo sua boa reputação. Os namoros
50
“Licenciosidade e carinho”, na coluna “Da mulher para a mulher”, Revista O Cruzeiro, 17/04/54. p. 81.
306
sérios, aqueles que se levava o namorado em casa para apresentar aos pais também não
escapavam dos olhares vigilantes. Daí o fato de Eliane recordar que não levava os namorados em
casa, mas namorava escondido, no hall do prédio, longe dos olhares familiares, o que
proporcionava maior permissividade e intimidade física. No entanto, mesmo narrando, em seu
presente, que burlava as ordens, leis maternas, ela conta que se casou com o namorado que
conheceu aos 17 anos, tendo permanecido com ele por sete anos, mantendo-se virgem até o
casamento, por sentir-se insegura e com medo de ser deixada. Na segunda metade dos anos 60 –
época da adolescência de Eliane – aspectos mais liberais na sociedade conviviam com preceitos
morais rígidos seguidos e respeitados.
“Pra você ver, eu comecei a namorar cedo, com 13 anos. Aí com...um namorinho assim, sem importância.
Aí com 14, aí eu...14 anos, pra 15, quase fazendo 15, eu conheci um rapaz, bem mais velho porque o meu
negócio era homem mais velho, aí...Ele...Então com 15 anos, eu ia fazer 15 anos, aí ele quis logo ficar
noivo, né? Fiquei noiva, fiquei toda assanhada, fiquei noiva. Porque tinha umas colegas minha, mais
velhas, que ficavam noiva, tavam casando e eu tava achando aquilo lindo. Eu fui na casa de uma amiga
minha que tinha casado. A casa tão bonitinha; parecia uma casa de boneca. Ah, adorei. Então eu vou casar
também. Mas aí eu fiquei noiva. Ta, tudo bem. Passou uns 3 meses de noivado, aí eu achei que ele tava
querendo se aproximar muito, ter muita...Querendo se aproximar muito, sabe? Querendo ser mais íntimo.
Aí eu disse “não, mas isso não está certo”. Aí pensei “eu, mas que intimidade são essas? Minha avó
sempre fala pra mim que não deve ter intimidade, aquela coisa”. Então eu fiquei preocupada, menina. Aí
fui cortando a dele até que desmanchei. Com 5 meses de noivado eu acabei com noivado. Arranjei outro
namoradinho. Só de terminar o noivado, quase que a minha mãe me bateu na rua. Porque eu tava noiva e
tava namorando outrozinho escondido, né? Aí terminei o noivado, entendeu? Então, é por que?
Desinformação. Porque se eu tivesse mais informação, né, não teria nem acabado. Talvez tivesse acabado,
eu teria, porque não gostava dele o suficiente, né? Eu já não gostava mesmo. Então, era uma coisa muito
difícil mesmo. E os rapazes também eram tão metidos, que não sabiam também coisa nenhuma. Eu acho
que não sabiam também nada, não sabiam. Porque ninguém falava nada, entendeu? Então como que se ia
aprender as coisas, não é mesmo? Foi assim uma juventude muito difícil a nossa, sabe? Muito difícil...Hoje
eu olho assim e meu Deus, como mudou! Não sei se pra melhor, não sei. Não sei. Mas mudou muito, mudou
muito. Hoje eu fico até triste, sabe, quando eu vejo. Então, era muito difícil. A coisa pra gente era muito
difícil, em todos os sentidos, tudo muito difícil. Aí hoje eu olho pra essas garotas eu digo: vocês estão com
uma vida... Assim, tinha muita proibição, mas podia namorar, podia, podia. Tinha que namorar dentro de
casa, mas eu namorava! Que namorar dentro de casa, levava tudo quanto é namorado pra dentro de casa?
Que nada, eu namorava escondidinho porque pensa bem: a gente não tava afim de casar, então pra
namorar tinha...Pra você arranjar um namorado pra levar dentro de casa, ele tinha que ser pra casar.
Então o que eu fazia? Eu ia ao cinema; gostava de cinema. Ia pra bailes. Aquela coisa: arranjava os meus
namoradinhos e saía, né? A gente...Mas não chegava perto de casa, porque se a minha avó e minha mãe
vissem, eu teria que levar em casa. Então, eu namorei muito assim, entendeu? Namorei muito mesmo assim.
Mais escondido.” (Dinah)
Dinah, dez anos mais velha que Eliane, e tendo morado no interior durante grande parte
da adolescência, dá ainda mais pistas sobre as moralidades que se impunham as jovens nos anos
50, com as proibições de namorar, a obrigatoriedade de, ao levar o namorado em casa,
estabelecer um compromisso mais sério, noivar. Em sua vida marcada pela desinformação sobre
307
sexualidade, rompeu o noivado por considerar o rapaz muito “abusado”. Ela frisa e rememora
repetidamente que essa decisão foi muito difícil, assumindo que os tempos de hoje são melhores
porque tudo é mais aberto, informado e declarado, embora tenha se tornado permissivo em
demasia. Dinah deixa entrever também, o modo como fugia aos padrões, burlando a ordem ao
namorar escondido, sem precisar casar. Involuntariamente, ao narrar o término do noivado com
sua explicação sobre a falta de informação, acaba por revelar também uma idéia de que talvez
aquele não fosse o “homem ideal” , talvez não gostasse dele o suficiente para casar. É possível
perceber a partir do que está sendo dito um ideal de amor que perpassava aquela época.
Nos discursos dos anos 50, é fácil identificar que o padrão de jovem responsável, que se
ocupa em trabalhar, estudar, “construir um futuro”, apresenta-se em concomitância com um ideal
de amor romântico, propagado pelos meios culturais, em que nem os artistas fugiam a esta
construção.
“Na Bahia, o menino João Gilberto juntou-se a uns amigos e formou um conjunto vocal. Seu sonho era
tornar-se cantor. Ingressou no conjunto “Garotos da Lua” e permaneceu na Rádio Tupi durante cinco
anos. Abandonou o grupo e preocupou-se em buscar um estilo diferente . Queria algo novo (...) Seu LP
“Chega de Saudade” foi um “estouro”. Sua maior felicidade, entretanto, foi encontrar o amor de sua vida,
51
hoje a Sra. João Gilberto.”
A reportagem versa sobre os novos cantores presentes na cena musical brasileira, traçando
um pequeno perfil de cada um. Destaca sua carreira, seus feitos, mas enfatiza que o mais
importante evento ou fato de sua trajetória foi “encontrar o amor de sua vida”. Ora, pode-se
perceber que este discurso abrangia até os artistas, sujeitos que naquele momento não figuravam
como ideais para o casamento ou para uma vida estável. O artista é tido como modelo de
aparência, com seus padrões estéticos e o que eles representam, mas não um padrão de vida
cotidiana. Por isso, há tanta preocupação em revelar a vida destes artistas como regrada,
proliferando-se matérias sobres cantores, compositores, ao encontrarem “o amor de sua vida”,
casando-se, ocupando-se com o lar, as tarefas domésticas.
“A carreira de Vicente Celestino e Gilda de Abreu está marcada por toda uma ininterrupta série de
sucessos artísticos. Os assuntos dramáticos que Celestino interpreta em suas canções têm conspirado,
muitas vezes, contra a sua vida conjugal. Mas a verdade é que nada até hoje toldou a felicidade doméstica
dos populares cantores. Em algumas ocasiões, por força dos compromissos profissionais, Gilda e Celestino
se separam, mas isso nunca teve relação com a realidade cotidiana deles, embora concorresse para o
fortalecimento dos boatos espalhados a respeito da vida íntima do casal. (...) O casal percorre os recantos
51
“Bossa Nova na canção popular”. Revista Manchete, 12/09/59.
308
poéticos que serviram de cenário para seu romance de amor. A paisagem não mudou e a felicidade dêles é
52
a mesma.”
Ressalta-se que mesmo com uma vida de muitos compromissos que os dois artistas
possam ter, nada os afasta e nem colabora para a sua infelicidade, afirmação comprovada na
reportagem por fotos que mostram o casal passeando por lugares onde se conheceram e
começaram a namorar, numa idéia de romantismo, em que nem as letras dramáticas das canções
que o cantor de “O Ébrio” possa interpretar, atrapalha o casal “mais feliz que nunca”. Aqui estão
novamente os discursos do equilíbrio sobre os sentimentos – como o amor, o ciúme e o encontro
do “verdadeiro sentimento” – elementos que conduzem à percepção da normatização de práticas
sociais. Estes sentimentos recebem balizas sociais para garantirem o casamento certo, com a
“pessoa certa”, mantendo assim, uma estabilidade social.
O que fica claro a partir destas considerações acima é um ideal de amor-romântico que era
hegemônico, com o encontro da “alma gêmea”, o par ideal, a pessoa certa, o amor verdadeiro,
para que se efetivasse um casamento, colaborando para a manutenção da ordem social. Nas
canções da Bossa Nova, este ideário não está ausente, ao contrário, é a grande tônica da maioria
das canções, a idéia do encontro do amor verdadeiro, da felicidade resultante daí. Embora numa
linguagem poética mais coloquial, sem tantos arroubos sentimentais ou passionais, o que se
evidencia ainda é o ideal de amor. Em algumas canções, é o amor eterno, que já aparecia nos
variados estilos de canções populares, nos ideais do amor romântico que aqui surge, articulado à
dor, à tristeza e à desilusão.
“Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida
Eu vou te amar
E em cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente
Eu sei que vou te amar
E cada verso meu será
Pra te dizer que eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida
Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua, vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que essa tua ausência me causou
Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
A espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida”
52
“O trovador e a grã-fina”, Revista O Cruzeiro, 10/05/52.
309
(Eu sei que vou te amar)
Canção composta por Tom Jobim e Vinícius de Moraes, em 1959, foi gravada pela
primeira vez no mesmo ano por Norma Bengell, pela Odeon, que a interpretou no primeiro show
da Bossa Nova, realizado nas faculdades cariocas, em 1959. Até meados dos anos 60, vários
outros intérpretes, inclusive Nelson Gonçalves e diferentes representantes da chamada Velha
Guarda, a gravaram. A música trata do desamor e do sofrimento, temas comuns nos sambascanções e boleros, mas o que é interessante de se perceber é como, no presente, a memória de
compositores da Bossa Nova, bem como dos ouvintes, associa esta canção a um exemplo de
leveza, um estilo coloquial e alegre de se cantar o amor. Essas são formas residuais e emergentes
que se misturam, em conflito, dentro da Bossa Nova e nas lembranças que dela se tem.
A estruturação musical não se diferencia tanto do que Tom Jobim compunha na época, em
canções como Corcovado, Amor em paz, Meditação e tantas outras. A interpretação de todo o
disco de Norma, com canções da Bossa Nova bem como canções francesas e americanas tinham
apelo sensual para a voz da cantora – atriz do teatro de revista que já despontava no cinema –
com arranjos sofisticados que buscavam realçar sua voz de pouco alcance. Mas é a temática da
canção, bem como o encaminhamento melódico em seus fraseados, que merecem ser olhados.
A vontade do amor eterno e absoluto faz-se presente numa construção de “espelhos”53,
como sugere Guattari. Primeiramente, se existe um amor que, sabe-se de antemão, nunca acabará;
a falta do outro traz desconforto mas também a inspiração para um novo verso. No entanto, esta
sensação de destruição evocada pela ausência contém também fios de esperança de restauração
do ser e do relacionamento. Por um lado, sempre se reitera que se amará eternamente e, por outro
lado, a volta sempre apaga as feridas que a ausência causou. O “jogo de espelhos” se dá nesta
necessidade que a ausência e a volta alternadas sempre trazem, em que cada um desempenha o
seu papel – um sempre à espera, amando eternamente e necessitando das sucessivas ausências e
voltas do outro e, este outro, sempre tendo nesta espera a sua auto-realização, numa dependência
mútua.
Anthony Giddens nomeia de “relacionamento co-dependente”54 esta relação em que um
indivíduo encontra-se ligado a um parceiro cujas atividades são dirigidas por algum tipo de
compulsividade. No entanto, segundo o autor, esta co-dependência não sugere apenas amores e
53
Félix GUATTARI e Suely ROLNIK, Micropolítica: cartografias do desejo, passim.
Cf. Anthony GIDDENS, A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas,
passim.
54
310
relações de alguma forma encarados como patológicos, mas mostra-se como uma das bases da
existência do amor romântico nas sociedades ocidentais. Sem querer avançar sobre esta questão
neste momento, cumpre destacar que o amor romântico marca sua presença a partir do final do
século XVIII, introduzindo uma idéia de “narrativa para a vida individual”, inserindo o eu no
outro, sem estabelecer ligações particulares com os processos sociais mais amplos, pois os ideais
do amor romântico inserem-se nos laços que naquele momento emergiam entre liberdade e autorealização. É preciso notar que a idéia de amor romântico está vinculada aos vários conjuntos de
influências que afetaram as mulheres a partir do início da Modernidade, entre os quais, a criação
do lar, as modificações nas relações entre pais e filhos e a invenção da maternidade, todos estes,
elementos que cumpriram o papel de preservar a mulher no âmbito privado.
Estabeleceram-se, assim, papéis de gênero que persistiram (persistem ?) por todo o século
XX, baseados no próprio ideal desse amor, que tem no outro a completude do vazio do ser, em
que a totalidade ocorre na união entre masculinidade e feminilidade, colocadas como antíteses. A
identificação projetiva entre diferentes é o que proporciona esta união calcada na idéia de amor
eterno, durável, em que se encontra uma “pessoa especial”.
Várias mulheres ouvintes rememoram sua adolescência e juventude como sendo “muito
românticas”, o que, de certa forma, justificava o fato de elas gostarem tanto da Bossa Nova. Algo
que embalava os sentimentos, os primeiros namoros, as paixões. Pode-se pensar no quanto as
vozes de cantores por elas relembrados como seus preferidos estão exprimindo este sentimento.
Timbres de voz mais aveludados, sutis, cools, como Dick Farney ou Lúcio Alves, inspirados em
Frank Sinatra, traduziam mais do que as palavras românticas das canções, mas a vivência pessoal,
os sentimentos, marcando a cumplicidade entre cantor e ouvinte. Como atenta Heloísa Valente55,
com o advento do microfone e a sua manipulação adequada, o cantor criava modos mais
intimistas, interiorizados de cantar, em que o espectador também assume uma outra postura: de
observador passivo, passa também a ser observado pelo intérprete. Isso acontecia não apenas na
performance ao vivo, mas também nas gravações, possibilitadas pela alta fidelidade sonora, “a
voz brilha, pois o ouvinte nela se introjeta”, estabelecendo vínculos comunicativos.
Um romantismo de ter na auto-realização pessoal, no encontro da pessoa “especial”,
“certa” ou “eterna”, o seu fundamento, expressava este intimismo que a nova paisagem sonora
55
Heloisa de Araújo Duarte VALENTE, As vozes da canção na mídia. São Paulo, 2000. Tese (Doutorado em
Comunicação e Semiótica). PUC/SP.
311
parecia também sublinhar, em que a voz é sentida como aproximação tátil, envolvente. Um corpo
que nos fala a partir da voz e sua dicção e materialidade, em que língua e voz se encontram nas
pronúncias, nos jeitos de expressar palavras, consoantes, vogais; mais do que a poesia e suas
palavras significantes, existe uma “volúpia dos sons”, do “grão da voz”56, em que a percepção do
corpo que canta traz uma escuta daquele que fala, em que escutar significa escutar-se,
apoderando-se dos sons e transferindo-os de volta ao emissor, numa transferência que estabelece
a simbiose intérprete-ouvinte.
Muitos ouvintes lembram-se ainda de assistirem a muitos filmes musicais e românticos
norte-americanos. Nestes, uma difusão da cultura do happy-end e da felicidade que se projeta no
futuro, como sinaliza Morin57, contrapõe-se ao amor trágico que caracterizava a literatura e a
dramaturgia até àquele momento. O ideal de amor romântico, do encontro da felicidade a partir
das relações amorosas dissemina-se no cotidiano, em que a cultura de massas tem papel
importante, sendo o tema principal da felicidade moderna. Mesmo que em outros momentos ele
já tivesse aparecido – como no romance cortês medieval ou no teatro burguês do início do século
XX – na modernidade assume ares universalizantes e obsessivos, desembocando no “mar livre da
realização pessoal” a despeito das leis e regras sociais, sendo integrador, harmonizador de todas
as diferenças e pulsões contraditórias, centralizando no casal de enamorados a totalidade dos
laços afetivos que antes eram repartidos entre outras relações interpessoais. Um ideal de amor em
que se projeta a felicidade no ser amado e este, enfim, resume tudo.
Retomando Giddens, o que se percebe aqui, é uma ressonância entre o amor romântico,
este fenômeno cultural e histórico e o “amour passion”58 que expressa uma conexão entre o amor
e a ligação sexual, marcado pela urgência. O amour passion coloca-se acima da rotina e da
estabilidade da vida amorosa do amor romântico, pois perturba as relações pessoais, arrancando o
indivíduo das atividades mundanas e da ordem social, mostrando-se muitas vezes como refratário
ao casamento e às relações duradouras. Não por acaso, muitos dos conselhos femininos dados aos
jovens nos anos 50, ressaltavam o perigo das paixões irracionais, enfatizando a importância de
relacionamentos amorosos pautados na estabilidade que os ideais de amor romântico traziam,
assegurando os papéis prescritos aos rapazes e moças.
56
Cf. Roland BARTHES, O grão da voz. In: ____ O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III.
Edgar MORIN, A felicidade; O amor. In: ___ Cultura de massas no século XX : o espírito do tempo I - Neurose.
58
Anthony GIDDENS, A transformação da intimidade, passim.
57
312
Além do mais, os ouvintes recordam-se de terem no seu rol de leituras na juventude, as
revistas de variedades, como O Cruzeiro e Manchete, ou ainda Revista do Rádio ou Radiolândia.
No que tange à literatura, liam, para além de clássicos como Jorge Amado, Machado de Assis,
José de Alencar, entre outros, romances de M. Delly, muito comuns à época e muito açucarados,
além de revistas de fotonovelas, como Capricho e Ilusão, nas quais o amor sempre vence.
Chamada de “imprensa do coração”, segundo Maria Celeste Mira59, a fotonovela vem do cinema,
tendo surgido na Itália do pós-guerra como resumo de filmes, contendo fotografias das principais
cenas. A autora ainda nos diz que as narrativas amorosas ali trabalhadas com forte matriz
melodramática difundiram-se em toda a América Latina, onde predominava uma visão
maniqueísta, moralista e um desfecho ditado pelo destino.
No entanto, pode-se supor que este ideal de amor romântico restringia-se às moças,
devido às leituras que faziam. Mas as memórias dos homens indicam que este imaginário era
mais amplo.
“O que eu quero dizer, é que a minha geração de jovens, eu tinha em 1958 quando a Bossa Nova surgiu, 23
anos, ela era uma geração que vinha de uma ... todos os amores fora daquilo que a gente entendia como o
amor, que era o casamento, que era para o que as mocinhas eram preparadas e o rapazes também .... de
certa maneira, ele podia até ter suas ambições à ser um grande Dom Juan, mas todos queriam casar, ter
filhos... essa idéia de família que a nossa cultura sempre.... e quando as coisas não davam certo isso era
uma pequena tragédia para a minha geração, principalmente, eu sou de um bairro da zona norte, nos
bairros da zona sul, eles se libertaram primeiro, eles romperam seus preconceitos primeiro; talvez, eu não
sei se isso tem a ver com o poder aquisitivo, ou se na zona sul do Rio de Janeiro havia mais famílias
estrangeiras, com outras cabeças, pessoas com uma certa intimidade com o divórcio, que era uma coisa
que não existia no Brasil naquela época.... e a minha geração foi muito reprimida... (...) esses romances
sofridos que as pessoas tinham naquela época, por achar que era impossível, eu costumo dizer que o único
amor impossível é o não correspondido, esse aí não dá jeito, quando o outro não quer, não quer mesmo,
agora, todos os outros são possíveis de alguma forma, sendo difícil de realizar ou não.
E eu acho que a Bossa Nova na minha cabeça, ela surge exatamente quando eu estava num romance
extremamente complicado, que acabou no meu casamento, era de uma outra geração que vinha com uma
cabeça mais aberta pra vida, entendendo... com uma outra visão do romance, ela percebe um pouco a
pílula, a libertação sexual, ela é anterior a isso. Eu vivia um romance impossível, aparentemente impossível
porque a minha namorada de infância tinha se casado com um senhor e quando eu reencontrei-a, cinco
anos depois, ela estava casada, pra se separar e isso foi... filha única, esse negócio todo... Nós tínhamos
sido namoradinhos e aí houve uma posição, né? Ela era filha única e eu era um vagabundo. Como
qualquer menino de 16 e 17 anos é. O que que você acha que um menino de 16 e 17 nos faz? (risadas) Vai
deixar tua filha namorar um vagabundo ? Não pode! Eu tinha 16, 17 anos. Não queria casar, só isso. E a
minha sogra achava um horror isso! (..) Nós casamos, foi uma luta desesperada contra o mundo, contra os
pais dela, os amigos, amigos romperam relação comigo. (...) Os obstáculos, o mundo era difícil, injusto
com aqueles que se amavam... porque eles não sabiam o que eles podiam... simplesmente isso custa um
preço, a gente sofre, mas não é impossível... e muitos sofreram horrores naquela época. A Bossa Nova é o
oposto disso, a Bossa Nova é, nesse lado romântico, ela é esse mundo que eu acho que se abriu com a
geração... com a minha e tal.”(João Máximo)
59
Maria Celeste MIRA, O leitor e a banca de revistas: a segmentação da cultura no século XX.
313
João Máximo permite conhecer que os rapazes também eram criados para o casamento,
para a escolha da moça ideal, que fosse companheira e com a qual viesse a constituir uma família.
Ele ressalta que ao ter este ideal desfeito, isso representava uma “tragédia” para sua geração, em
que o amor toma cores fortes de sentimento essencial da vida. Ao se apaixonar pela antiga
namorada que já estava casada, teve que enfrentar a sociedade “injusta com os que se amavam”,
que “reprimia os amores” por considerá-los impossíveis, ao que ele argumenta que só o amor não
correspondido é impossível. Ao nomear “amor”, pode-se compreender que ele está referindo-se
ao “amor apaixonado”. O memorialista constrói a Bossa Nova como algo que representava o
oposto de tudo isso, uma sociedade mais liberta dos preconceitos, em que os “amores” podiam
ser vividos. Uma idealização, assim, de um passado melhor, de uma musicalidade que, em seu
ideário e sonoridade, representaria este mundo harmônico com espaço para o amor romântico
articulado ao apaixonado. Uma paisagem sonora retomada que, em suas nuances e sons, em
primeiro plano e em planos secundários, ressaltavam e davam a impressão de um mundo onde o
foro íntimo e os sentimentos deveriam ter a primazia: o desfecho feliz, a realização dos anseios
individuais de auto-realização e de liberdade.
Em tantas outras músicas, há a construção de um relacionamento ou pelo menos de um
sentimento amoroso que busca resoluções mais otimistas e uma linguagem em que poesia e
musicalidade também soavam mais leves. No mesmo sentido, nas memórias dos ouvintes,
surgem outras representações sobre os jovens da época, como a idéia de uma juventude saudável
– no sentido sentimental e moral – descontraída e “não consumista”, como lembra Glória. Ou
ainda, nas palavras de Débora, uma juventude que vivia “a sentimento”.
“Vai minha tristeza
E diz a ela que sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece
Que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer
Chega de Saudade
A realidade é que sem ela
Não há paz não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim, não sai de mim
Não sai
Mas se ela voltar
Se ela voltar que coisa linda
Que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei na sua boca
Dentro dos meus braços, os abraços
314
Hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calada assim
Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim
Que é pra acabar com esse negócio
De viver longe de mim
Não quero mais esse negócio
De você viver assim
Vamos deixar esse negócio
De você viver sem mim”
(Chega de saudade)
Nesta canção, que se transformou em marco da Bossa Nova por ter sido a primeira
gravação de João Gilberto, em compacto feito em julho de 1958, já com seu estilo inovador,
temos destacada uma construção de diferenciação – em perspectiva otimista – entre passado e
presente. No início, as alterações entre tonalidades maiores e menores alternadas em cada verso,
utilizando na melodia notas que voltam sempre às mais graves, sugere um sentimento de mágoa e
melancolia, em que manda-se a própria tristeza ir dizer à amada para que volte, em forma de
“prece”. Em seguida, o próprio autor se cansa de seu sofrimento, dizendo para si próprio e para
quem o escuta “chega de saudade”, tendo consciência, no entanto, que sem a mulher amada “não
há paz, não há beleza”, ficando-lhe apenas a desilusão que não lhe sai do coração. Na segunda
parte, no entanto, a tonalidade muda, e a expressividade da canção, também; vislumbra-se um
futuro à volta “dela”, projetando as ações e os sentimentos que se desenrolarão. A melodia, neste
momento, torna-se mais lírica, com uma tessitura maior, revelando a expressividade dos
sentimentos otimistas do autor. Ao final, a aparência coloquial, tão comum às letras da Bossa
Nova, aparece, com a rima em diminutivos como “peixinhos” e “beijinhos”, na qual se diz “prá
acabar com esse negócio de você viver sem mim”.
Nos arranjos, pode-se perceber algumas inovações – se comparada à gravação feita meses
antes por Elizete Cardoso – que, segundo Walter Garcia60, convergem para o despojamento e
para a busca da essencialidade. A percussão mais leve, sem a chamada de tambor, que
denunciariam a ocorrência do breque entre a primeira e a segunda parte da canção, tão comum ao
samba, é uma das características da gravação de João. A isso, segue-se a substituição do coro
masculino que acompanhava Elizete por um arranjo de cordas tocadas mais suavemente,
deixando em primeiro plano a voz e o violão sincopados do baiano. Além disso, sua forma de
cantar é peculiar, com um canto quase falado que rejeita efeitos e empostações vocais, buscando
a maior simplicidade e essencialidade possíveis, trazendo uma voz que se faz música, valorizando
60
Cf. Walter GARCIA, Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto.
315
a própria percussividade e sonoridades da língua, com suas consoantes e ritmos. Em outras
canções de sua autoria como Bim bom e Ho-ba-la-lá, em que a poesia é reduzida, e até
considerada nonsense, ressaltando apenas o ritmo das palavras-títulos das canções, isso fica ainda
mais claro.
No primeiro show da Bossa Nova, João Gilberto cantou Chega de Saudade; importante,
assim, perceber lembranças acerca da participação e escuta nestes eventos.
“Aqueles shows da PUC eram maravilhosos e era uma coisa assim de uma emoção. Porque tanto os que
estavam se apresentando quanto a platéia, era um negócio assim completamente jovem e era uma coisa de
uma esperança. Aquele tempo foi um tempo muito bom, que a gente acreditava num mundo que vinha. Nós
nos achávamos os donos do mundo, né? Tanto que lá na Escola de Belas Artes, a gente foi do diretório e
tudo. E a gente dizia que nós éramos as crianças no poder, entendeu? E a gente acreditava no futuro, na
política do Brasil, na política do mundo. Enfim, tava tudo por construir, por se fazer, né? Tinha saído
daquele negócio de sonho americano, de não sei que (...) E era uma vida assim muito farta. O dinheiro era
mais...Quer dizer, a gente, não era rico.... Mas o dinheiro, o dinheiro... As coisas eram mais fáceis,
entendeu? Não era aquela coisa difícil, quer dizer, o trabalho, a gente era jovem...A coisa era por causa do
jovem, mas ali na porta da Escola surgia tudo. As pessoas, às vezes, precisava de alguma coisa de arte, ia
pra porta da Escola perguntar se tinha alguém que quisesse fazer. Muito trabalho da gente, a gente
conseguiu ali.(...) Eu acho que a Bossa Nova captou toda essa alegria, essa leveza, numa ingenuidade
assim. Ninguém tinha aquela coisa da sacanagem ...Porque não tinha muito negócio de competição, né?
Tava tudo por se fazer. O Brasil tava por se fazer. A gente tava aí, né? Era um vir a ser. O Brasil era o país
jovem que ia crescer, que ia construir, que não sei o que. Depois vieram os movimentos políticos, mas que
se acreditava, né? Todo mundo acreditava no futuro da Terra, do planeta, do Brasil, da gente, do Rio,
entendeu? Não havia nenhuma assim ansiedade nem tensão, nessa época. Sabe, é um negócio assim que
parece que a gente viveu em outra galáxia nesse tempo. Porque lá na Escola de Belas Artes era todo mundo
amigo, era uma grande família. (...) Pois é, a gente foi criado a sentimento. Que tem uma perspectiva que é
uma perspectiva geométrica, que não sei o que, dos pontos, você vai assim...E tem a perspectiva a
sentimento, você olha e vai botando a sentimento. E a gente, nessa época, foi muito criado assim,
assentimento, entendeu? É lindo isso, né? Lindo, solto, aquele negócio assim assentimento, entendeu?
Então, não tinha esse negócio daquela competição. Eu me lembro que quando ganhava alguma coisa, os
outros ficavam contentes. (...) e essa coisa da competição, do dinheiro e do ter que...Era um negócio mais a
sentimento mesmo, entendeu? Quer dizer, o cara, às vezes, ele vinha pra fazer teatro, acabava indo pra
escrever, ou pra cinema ou pra artes, entendeu? Ou vinha pra artes, artes plásticas e acabava enveredando
pra uma outra área afim, porque era tudo muito ligado. (...) Ah, e tinha uma coisa também curiosa, nessa
época, no meio artístico e intelectual. Roubar livro não era considerado roubo! [risos] A pessoa roubava de
livrarias, sabe? Você entrava...Porque as pessoas não eram ricas e tudo. Então, mas, às vezes, queria um
livro de artes. Livro de arte sempre foram caros, importados. Então as pessoas roubavam, sabe? E isso não
era mal visto, não era, não era. Era uma coisa assim de você ir numa feira de livros e roubar, “roubei
esse”, “eu também roubei aquele”, “eu roubei esse”. Era assim, entendeu?” (Débora)
Débora constrói um passado visto como ideal, aquele da sua geração, em que
predominariam a ingenuidade, a falta de competitividade e até uma certa ausência de
pragmatismo – o que não é dito explicitamente – mas que permite reconhecer ao nomear as
atitudes de sua geração como “a sentimento”, em que os rumos da vida, da carreira não eram
planejados estrategicamente, mas deixados ao sabor dos caminhos que a vida ia delineando.
Lembranças de um meio intelectual que valorizava a cultura letrada, as artes, a psicanálise e em
316
que o “roubo” de livros não era visto como algo errado, numa construção memorial que ressalta
aspectos idealizados de um passado. Memórias que são sustentadas pela própria trajetória da vida
de Débora e de seu presente como artista plástica e alguém interessada em questões místicas e
espiritualistas. Mas, de qualquer forma, suas lembranças não fogem às memórias que
predominam em seus pares, apoiando-se em seu grupo: de que era um tempo de maior leveza,
ingenuidade, descontração e sem tantas preocupações.
Débora recorda-se de ter frequentado os shows da Bossa Nova nas universidades cariocas,
lembrando ainda que – diferentemente de outros depoentes já descritos – gostava muito de João
Gilberto e de seu jeito de tocar e cantar. Ora, esta memória de Débora sobre o canto de João
Gilberto traz questões sobre a própria ingenuidade daqueles tempos, tema que ela tanto ressalta.
Um canto que flui como fala normal, em que o sentido das palavras e a melodia integradas não
têm prioridade sobre o som, a voz e as formas de vocalidade, em que muitas vezes existem jogos
de palavras que não buscam expressar tantas idéias ou sentimentos, mas em que o grão da voz e a
expressão de sua presença corporal ganham mais atenção do que a elaboração de rimas
sofisticadas, preferindo utilizar, por exemplo, “beijinhos” com “peixinhos”.
Na performance intimista da Bossa Nova, o corpo também assumia esta característica, na
qual o estilo “banquinho e violão” tornou-se emblemático, com um cantor que tem gestos
reduzidos, mas não deixa de ter comunicação com seu ouvinte, pelos movimentos das pernas,
braços e tronco acompanhando o ritmo, além das expressões faciais e do modo complexo de
movimentar mãos e dedos no violão. Um canto que, à primeira vista é ingênuo e “bobo”, tinha
por trás de si a materialidade de uma voz encantatória que suscitava, na escuta, a “atenção a um
continuum dos matizes sonoros da voz”61 e do corpo vivo que a emanava, em que a escuta segue
por caminhos incertos, descontínuos, labirínticos. Um canto que parecia captar esta paisagem
sonora da redução dos ruídos, do supérfluo, buscando a essencialidade nas notas melódicas,
harmônicas, nos arranjos e na poesia, tentando suscitar na escuta, a idéia de uma essencialidade
também na vida, com maneiras simples e não programadas de encarar a existência, como lembra
Débora.
Uma juventude, assim, com uma escuta característica, que – como nossa memorialista
associa quase sem querer – era uma juventude com esperança no mundo, no país e na cultura, que
acreditavam ser os donos do mundo que viria. O jogo da memória composto por Débora permite
61
Janete EL HAOULI, Demetrio Stratos: em busca da voz-música, p.40.
317
interpretar que às aspirações daqueles jovens correspondia uma escuta não apenas da Bossa
Nova, mas de um espírito do tempo que parecia emanar e circular, em que dicções inovadoras
buscavam romper com as formas rebuscadas do mundo estabelecido dos adultos – nas formas de
cantar, de ver a vida, de fazer arranjos, etc. – e com os preceitos que a geração que lhes precedia
pareciam impor.
O que este trecho de memória permite dizer é que o devir de uma cultura, de uma atitude e
de uma experiência jovem como contestadora da ordem estabelecida, transgressora de regras –
como viria a se efetivar no final dos anos 60 – já estavam se anunciando ali, naquela paisagem
sonora intimista, nas letras aparentemente ingênuas, no jeito de escutar que oferecia novo sentido,
novas formas de dar corpo à voz, em que a escuta teria interiorizado um jeito de ser jovem
descontraído, “a sentimento”, algo que se perpetua na memória destes adultos de hoje. Um corpo
que começava a se libertar da rigidez normativa naquele momento, reforçado por uma escuta que
captava o ritmo e a vocalidade própria ao tempo, onde a memória, ao ser acionada, voluntária ou
involuntariamente, traz à tona as sensações62. Percepções corporais guardadas na vida vivida
interior e exteriormente que são acionadas no momento da lembrança, suscitando este passado
experimentado.
Porém, em meio a estas experiências da juventude nos anos 50 e 60 até agora narradas e
mediadas por memórias e outros discursos, algo não pode ser esquecido: se muitas das memórias
nos dão indícios de resistências, táticas, subversões às regras estabelecidas de forma dispersa no
cotidiano, na escuta das canções, nas maneiras aparentemente superficiais ou banais da vida de
todo dia, outras lembranças, bem como outras canções, ressaltam uma juventude que se queria
participativa, engajada, ativa nas discussões e ações políticas e sociais da época. Memórias de
uma juventude que àquele momento já buscava ser resistente, contestadora, com isso, também,
nomeando-se.
No início dos anos 60, após o término do governo de Juscelino Kubitschek e a
transferência da presidência para Jânio Quadros, pela via democrática – algo inédito até ali na
história republicana brasileira: um presidente eleito pelo voto direto, cumprindo integralmente
seu mandato e transferindo o governo para outro governante eleito também de forma democrática
–, as conquistas alcançadas pela era JK se faziam presentes como um legado, tanto em seus
aspectos positivos quanto por seus aspectos negativos. Entre os positivos, os êxitos de seu Plano
62
Cf. Henri BERGSON, Matéria e memória.
318
de Metas que previa um crescimento do país de “50 anos em 5” inserindo o Brasil na etapa do
capitalismo monopolista, desenvolvimento industrial e de infra-estrutura, com a implementação
dos setores de transportes, energia, indústrias de base e a substituição das importações. No plano
político e social, estavam a consolidação (pelo menos para aquele momento) da democracia
liberal, permitindo alto grau de liberdade política e de expressão, com uma tolerância às ações
dos comunistas e de seus órgãos de imprensa – mesmo com a proibição legal do Partido
Comunista – , à formação de organizações sindicais proibidas por lei e a permissividade e não
repressão sistemática ao movimento operário que se reorganizava desde inícios dos anos 50.
No entanto, estes mesmos aspectos positivos tinham seu reverso na alta taxa de inflação,
no agravamento das disparidades regionais com setores industrializados convivendo com bolsões
de atraso e baixa produtividade, a manutenção da miséria no campo e as próprias vicissitudes que
o capitalismo monopolista iria impor, as quais seriam incompatíveis com o jogo político do
regime liberal-democrático. As próprias conquistas dos setores populares da era JK, com o
movimento operário e as Ligas Camponesas – com seu crescente avanço que começaria a
alcançar repercussão, exigindo um debate e uma urgência pela Reforma Agrária – tendiam a
colocar problemas para a dominação do capital.63
De qualquer forma, a década de 60 iniciava-se com um clima de efervescência, euforia e
otimismo, visto como um momento em que o país atingira um grau avançado de democracia,
maturidade política e participação no jogo político dos diversos segmentos da sociedade,
marcando um intenso período de movimentação na vida brasileira. As camadas médias urbanas,
mesmo divididas pelo temor da subversão e da instabilidade econômica, estavam presentes nos
debates e movimentos sociais, na figura dos intelectuais e dos estudantes que assumiam posições
favoráveis às reformas estruturais da sociedade, desenvolvendo uma intensa atividade de
militância política e cultural.
A União Nacional dos Estudantes (UNE), gozando de plena legalidade, transitava entre as
instâncias de poder, discutindo calorosamente as questões nacionais e trazendo os jovens para as
mobilizações que assolavam o país. Em 1961, nascia o primeiro Centro Popular de Cultura
(CPC), ligado à UNE, arregimentando jovens artistas, intelectuais e estudantes para a definição
de estratégias rumo à construção e difusão de uma cultura popular e nacional. Uma cultura e uma
63
Cf. Maria V. de Mesquita BENEVIDES, O governo Kubitschek: desenvolvimento econômico e estabilidade
política.
319
arte vistas, assim (conforme já abordado no primeiro capítulo), como instrumento revolucionário
de conscientização popular, denunciador das desigualdades sociais e desprendido de abstrações
de ilusórias liberdades elitistas sem conteúdo, passando a assumir um caráter didático, traduzido
para as massas e constituindo uma arte engajada. Contando ainda com ampla influência do
Partido Comunista, que teve papel importante no jogo político de alianças de Jango, difundia-se
entre estes jovens cepecistas um ideário de revolução democrática, afirmando o nacionalismopopular anti-imperialista.64
Pensando a Bossa Nova não como um movimento fechado, coeso, mas com uma
formação65, em que sujeitos de trajetórias, vivências, interesses variados agrupam-se com
tendências que apontam para caminhos e inclinações variadas, é possível compreender que, em se
tratando de algo feito por jovens dos setores urbanos, muitos deles universitários ou com
inserções variadas nos meios intelectuais e artísticos, não foi difícil a penetração deste ideário
participativo entre seus membros. Como argumenta Júlio Medaglia66, o próprio sentido musical
da Bossa Nova colaborou para isso, pois tratava-se de uma música alheia ao sentimentalismo
rebuscado, chavões poéticos, virtuosismos vocais, sendo uma manifestação musical mais
concreta e direta. Alguns músicos e compositores, como Carlos Lyra, Nelson Lins e Barros,
Sérgio Ricardo, Geraldo Vandré e outros, jovens à época, universitários ou não, começaram a
entrar não somente em contato com os CPCs, mas passaram a participar de suas ações, buscando
produzir
uma
música
de
cunho
político-ideológico,
abordando
os
problemas
do
subdesenvolvimento, reforma agrária, influências imperialistas, condições subumanas da vida dos
pobres dos morros ou do nordeste. Nesta época, eles também produziram algumas trilhas sonoras
para filmes brasileiros da fase pré-Cinema Novo como Cinco vezes favela, O padre e a moça, A
hora e a vez de Augusto Matraga, entre outros. Constituía-se uma espécie de dissidência que
parecia ser uma tentativa de marcar uma fronteira entre a Bossa Nova dos primeiros tempos, vista
já naquele momento como alienada, vazia, elitista e jazzificada, e uma outra, nacionalista, que
buscava ligar-se ao samba tradicional autêntico, mas que neste momento ainda conservava muito
da musicalidade e intimismo dos primeiros tempos.67
64
Heloísa B HOLLANDA, Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde – 1960/70.
Raymond WILLIAMS, Cultura.
66
Júlio MEDAGLIA, Balanço da Bossa Nova. In: Augusto de CAMPOS, Balanço da Bossa e outras bossas:
antologia crítica da moderna música popular brasileira.
67
Marcos NAPOLITANO, Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959/1969).
65
320
Sem retomar as análises já realizadas no primeiro capítulo deste trabalho, sobre o ideário
cepecista, seu conceito de nacional e popular, a aliança entre intelectuais e povo, sua filiação
teórica e até as críticas a tudo isso, trata-se de compreender, neste momento, a questão da
promoção da figura da juventude ligada à política. Política aqui compreendida num sentido
amplo, não apenas de pertencimento e da prática político-partidária ou institucional efetivas, mas
num ideário de mobilização, conscientização, sentimento de tomada de responsabilidade pelos
contornos futuros do país. As próprias noções já discutidas no início deste sub-capítulo – as
conceituações sobre a juventude – recusam considerá-la como possuidora de tendências à
mobilização e mudança, não sendo necessariamente progressista, mas tendo isto como um
potencial. Na discussão brasileira sobre a juventude, na década de 60, assume destaque o papel
do jovem estudante das camadas médias como a figura central das mobilizações sociais que
marcaram o período posto como revolucionário.68
Se a década de 50 começou a apontar a promoção dos valores e da existência juvenil na
sociedade e nos imaginários, é neste momento que a juventude iria firmar-se como categoria
histórica, radicalizando-se até o fim da década de 60, embora de maneiras diversas (jovem
“engajado” nas ações políticas, ou jovem “alienado”, dos movimentos hippies e de Contracultura
ou ligados ao “ieieiê” ). O que se busca destacar aqui é a força que este imaginário do jovem
participativo, politizado, engajado, contestador e revolucionário tomou, perpetuando-se, com
continuidades e rupturas, na memória histórica e pessoal sobre aquele período, estando presente
nas lembranças dos ouvintes da Bossa Nova.
“Mas eu tive uma felicidade...que foi a minha geração, né? Dos anos 60. Realmente eu vejo. É Roberto
Carlos, é Pelé, é Cacá Diegues. E eu estudei na PUC depois, com um certo sacrifício, né, mas eu estudei na
PUC que era paga. Eu fiz primeiro Letras Anglo-germânicas. Me formei na PUC em 1961. Aí eu já tinha
21 anos.(...) Eu... realmente, na PUC era uma efervescência. Olha, lá, por exemplo, eu comecei a fazer
teatro com o Roberto Pontual, que era o diretor do teatro. Cacá Diegues freqüentava a PUC. A gente batia
papo com ele, aquilo tudo e assim, vário outros (...) houve uma certa... vamos dizer assim, um certo hiato,
no meu conhecimento que veio a PUC. A PUC era o celeiro. Realmente era uma coisa espetacular a
convivência que a gente tinha e foi lá que eu conheci.... (...)Quer dizer, quando eu fui para a faculdade, eu
acho que assim, foi uma libertação pra mim, porque aí, eu fui pra faculdade com 18 anos, aí eu conhecia
gente nova, eu lancei um livro na faculdade também, ficou assim de gente e nós pegamos a faculdade nos
anos pré-revolução, a gente já sentia aquela efervescência toda... tudo aquilo... Eu fiz parte já do diretório
uma época, mas eu não podia também me enfronhar muito porque o meu pai era militar e trabalhava no
governo, então eu não podia me enfronhar demais. Então, dentro dos meus limites de coerência e de
equilíbrio eu participei de algumas, vamos dizer assim, tarefas, de conscientização do pessoal, de
conversar, de bater papo, tudo isso, o pessoal de letras era muito chamado; pelo menos eu ia às palestras
ouvia muita coisa e participava doa debates, eu sempre gostei de participar dos debates, mesas redondas,
tudo isso, de algumas atividades, melhor dizendo.(...) a minha posição contrária em 1964 não foi de uma
68
Helena Wendel ABRAMO, Cenas juvenis.
321
mera espectadora, eu conhecia o Jango, eu sei que ele tinha realmente alguns problemas assim como
administrador, etc, etc, diziam que ele era apenas um fazendeiro e não sei o que, mas eu conhecia as boas
intenções, eu conversava muito com o tio Tancredo, conversei muito lá em Brasília e muitas vezes aqui no
Rio, tudo isso, então quer dizer, a gente entrou nessa conscientização contra a revolução de 64 porque a
gente sabia que não seria uma coisa fácil, rápida, sem sofrimento e sem conseqüências.” (Maria
Amélia) (grifos meus)
Maria Amélia, bem como outros memorialistas, recorda-se da vida universitária na
juventude como um período de efervescência, celeiro cultural e artístico de onde saíram grandes e
famosos nomes de sua geração, segundo ela, privilegiada. Na sua trajetória relatada, é possível
verificar que o ingresso na universidade lhe proporcionou o conhecimento e a entrada num certo
“mundo novo”, tomando contato com colegas de valores e trajetórias diferentes da sua. Embora
conte que seu pai era militar e que era afilhada de Tancredo Neves, o que a teria posto em contato
com a política e com a “realidade do país”, Maria Amélia deixa perceber, mesmo sem falar disso
explicitamente, que foi na PUC que travou contato mais direto com os debates e ações políticas,
participando do diretório acadêmico, das reuniões, desenvolvendo “tarefas” e “atividades”
ligadas ao CPC, entre estas a conscientização popular. Maria Amélia fala da “libertação” que foi
a PUC em sua vida, pois ao que parece, não podia no ambiente doméstico participar, discutir,
tomar posturas, ter atitudes ou opiniões próprias sobre a vida, a política, os comportamentos e os
valores. Assim, mesmo rememorando sua postura consciente e contrária ao Golpe de 1964 – por
ela chamado de “Revolução” –, na construção memorial sobre uma juventude não alienada,
lembra também que participou destas “atividades” estudantis com reserva, pelo temor devido ao
fato de seu pai ser militar e provavelmente rechaçar – conforme pode ser lido nas entrelinhas de
suas lembranças e esquecimentos – este seu envolvimento. Ao falar dos seus “limites de
coerência e equilíbrio”, Maria Amélia permite que se interprete uma experiência jovem que vivia
conflitos entre o engajamento clamado pela vida universitária e as regras e os valores da família,
aos quais parecia ter muito respeito e temor. Equilíbrio, comedimento, mais uma vez, é o que se
encontra no cotidiano juvenil.
Outros depoentes também afirmam a sua consciência e revolta quando jovens frente aos
acontecimentos políticos que se iniciaram em 1964, e mesmo antes.
“Nós estamos em 61... antes disso, o Jânio renuncia, e meu pai era desses milicos assim, que milico só tem
uma função, manter a ordem e obedecer, obedecer a ordem e manter a ordem; e meu pai estava em casa
sem função, porque nós voltamos depois que o Jânio ganhou a eleição... o pai foi se apresentar, aí a mamãe
virou assim pra ele e disse: - Não vá se apresentar. E aí ele disse: - Vou porque reza a constituição que
todo oficial sem função se apresente para o presidente da República. Ele foi e foi preso, foi preso num
322
navio chamado Custódio de Mello e aí os homens da aeronáutica... (...) Mas aí vem 64, e em 64 meu pai é o
primeiro oficial da aeronáutica a ser preso. E já naqueles movimentos, ele aí é preso e é preso logo de cara
63 dias; primeiro ele vai pro Campos Afonso, depois vai para o Leopoldino, com um detalhe que ele nunca
respondeu nenhum inquérito policial militar; ele sempre foi incluso na Lei de Segurança Nacional. Então
era muito difícil, mamãe sem receber um centavo aqui dentro deste apartamento... (...) Enfim... mas essa
prisão do papai fez com que, principalmente não tendo uma razão concreta, fez com que a gente começasse
a prestar, pelo menos eu, a prestar mais a atenção em outras coisas... Então, mais uma vez Carlinhos Lyra
entra na minha vida, com o João da Silva ‘Cidadão sem compromisso não manja disso que o francês chama
l’argent, pega dinheiro disfarçado e é tapeado desde às cinco da manhã’ [canta]. Mais uma vez ele me
surpreende com ‘O Brasil é uma terra de amores, de flores, onde a brisa fala de amores nas lindas tarde de
abril’, depois é , ‘mas um dia o gigante levantou, deixou de ser um gigante adormecido, e dele um anão se
levantou, era um país subdesenvolvido, subdesenvolvido’ [canta]. Enfim, Carlinhos Lyra entra de novo e aí
começa um período das músicas, dos festivais”. (Eliane)
Eliane, que já é mais nova que Maria Amélia, tendo hoje 54 anos, vivenciou o momento
de tanta efervescência política do país por outra via, a familiar, uma vez que seu pai foi preso
mais de uma vez em 1961, e também em 1964, ano do golpe militar. Esse acontecimentos foram
muito marcantes em sua vida, o que a faz citar estas passagens com riqueza de detalhes e por
diversas vezes: as dificuldades da família na ausência do pai, a saudade, o medo, por ser tão
nova. Mas, segundo suas memórias relatam, estes fatos foram responsáveis por despertarem-na
“para outras coisas”: para a realidade política do país, tirando-a da simples contemplação das
músicas líricas e românticas de Carlinhos Lyra, como tanto citava, até então, em sua narrativa.
Lyra entra em sua vida, a partir daí, como aquele que cantava as mazelas sociais, criticando entre
outras questões, o subdesenvolvimento e as condições de vida dos pobres.
Nesta fase, pré-64, como aponta Marcos Napolitano69, as canções participantes são
marcadas muito mais pela pedagogia dos sentidos do que pela pedagogia político-partidária, em
que era preciso configurar a nação e poeticamente senti-la e expressá-la, o que produziu canções
ao mesmo tempo nacionalistas e cosmopolitas, politizadas e intimistas, lançando as bases
musicais e ideológicas para o tipo de música que se desenvolveria na era dos festivais. Nas
músicas compostas por Lyra e Vinícius de Moraes para o musical Pobre Menina Rica,
interpretado em 1963 por Nara Leão, algumas destas observações ficam mais claras. São letras
que falam das diferenças sociais, do mendigo lírico, da pobreza da “Maria do Maranhão” e com
uma musicalidade que buscava soluções do samba antigo, com uma divisão rítmica mais
definida, não tanto sincopada, timbres do samba mais quadrado, uso de trombone no arranjo, mas
ainda muito ligado à Bossa Nova, mostrando-se bastante intimista, sem exageros vocais, com
69
Marcos NAPOLITANO, Seguindo a canção.
323
arranjos que não reforçavam o papel dos instrumentos de percussão. A rememoração da escuta
destas canções por Eliane sublinha esta característica ainda bastante lírica que ela tanto admirava
na Bossa Nova, quando o presente formulando as memórias atuais, é que atribui uma maior
diferenciação entre as canções. Mas a escuta da época parecia compreendê-las como
continuidade.
Ainda nas memórias de Eliane,
“Eu aí comecei a curtir na música, aí eu curtia a música brasileira, eu acho que como nunca... porque aí,
essa fase da música popular, ela é muito rica e mexia muito comigo, mexia demais...a rebeldia.... A vontade
de... sabe? Dava gana na gente, mexia com os brios e era através da música, por isso é que eu digo que a
história pode ser contada através da música; é que eu não tenho noção de uma ordem cronológica, eu não
sei de cor, mas ‘Acender as velas já é profissão, quando não tem samba tem desilusão’ [canta]. Era
Nara....gostava demais da Nara; mas também eu achava que ela tinha uma voz muito pequenininha... eu
gostava mesmo era dos cantores.”
Segundo suas lembranças, a música expressava a “gana” sentida pela juventude contra a
ditadura, que “mexia com os brios”, fazendo muitas vezes confusões com as datas, épocas e
músicas. De qualquer forma, o que o movimento de sua memória traz - com lembranças e
esquecimentos, em saltos –, é a vontade de fixar a sua juventude como rebelde, consciente do que
acontecia no país, mesmo que no fundo, como involuntariamente recorda e verbaliza, não
gostasse da voz pequena de Nara Leão, e seu grito de guerra cantado e tão lembrado no show e
LP Opinião, e nem mesmo de Elis Regina. Ela preferia os cantores.
Em outros momentos do depoimento, Eliane recorda-se de que, em sua adolescência,
escutava e gostava muito das canções italianas, o que mostra que seu repertório de canções não se
restringia às músicas engajadas e de protesto, muitas das quais rejeitava. Isso de maneira
nenhuma invalida a sua escuta e a trama memorialística forjada sobre ela, mas levanta alguns
aspectos daquilo que o presente busca construir como hegemônico. Ela se refere às músicas do
show e depois LP Opinião de Nara Leão, que contaram com a participação de músicos de origem
humilde como o sambista Zé Keti e o maranhense João do Valle. Esta fase corresponde a um
momento em que, já sob o regime militar, a música popular se viu em busca de novas referências
estéticas e novas perspectivas de afirmação ideológica, dirigida cada vez mais à propagação da
consciência social e não apenas de uma conscientização pessoal do artista como ser social; uma
valorização do popular puro como resistência ao golpe e à dominação capitalista elitista que ele
representava. Esse processo resultou em músicas de cunho e de performances mais agressivas,
combativas, verdadeiros “gritos de guerra”. Daí, talvez, venham as lembranças da escuta de
324
Eliane sobre a voz pequenina de Nara que parecia não combinar com a força e amplitude que
aqueles cantos queriam exprimir para aquela juventude.
Interessante notar que outros ouvintes, principalmente os mais velhos, não vêem esta fase
da música popular como diferente ou como algo que rompia com a Bossa Nova, mas como uma
integração, um momento em que o movimento, que já expressava a juventude da época e sua
capacidade criativa, lírica, sensível, completou-se com um olhar atento a outras questões, mais
sociais. Um movimento da memória deflagra a sensação, guardada até hoje, de que se tratava de
algo feito por e para jovens, expressão de suas sensibilidades e visões de mundo, um momento
em que esta parcela da sociedade tomava a frente no cenário social, fosse de maneira romântica e
intimista, ou ainda de maneira mais combativa, ampla e engajada. Em ambos os casos, parece que
o que se fixou na memória daqueles que viveram a juventude nos anos 50 e, já mais velhos, nos
anos 60, foi o fato de se tratar de algo feito por uma juventude que era, em si, contestadora
simplesmente por existir e se fazer presente.
Por já terem sido discutidas – no primeiro capítulo –, as questões que envolvem esta fase
da efetivação de uma MPB e suas relações com o mercado fonográfico cumprem apenas apontar
aqui para a questão do consumo cultural, que nesta época (meados da década de 60) efetiva-se
com uma ampliação e massificação do público consumidor da música popular brasileira ligado à
juventude. Após o golpe de 64, o campo musical popular e as esquerdas encontravam-se num
impasse entre a ampliação e a adesão ao mercado e o engajamento ao ideal nacional-popular, da
“arte pela arte”, cuja arena principal eram os festivais de música transmitidos pela TV.70
Como já foi dito, a promoção da juventude desde os anos 50 foi acompanhada de um
processo de ampliação e segmentação do mercado em geral, que passava a ver o jovem como
uma faixa de mercado a ser explorada. A indústria fonográfica e o campo musical não ficaram de
fora deste processo, percebendo nesta “cultura jovem” nascente um amplo leque de
possibilidades, no qual a segmentação da música popular em diversos estilos, buscava atender as
demandas desta juventude que ganhava a cena. Como bem aponta Zan71, não se pode encarar as
70
Não adentra-se aqui numa análise mais aprofundada sobre os festivais da canção e os estilos musicais ali
desenvolvidos, como a “Música de Protesto” ou o Tropicalismo, pois fogem às preocupações mais centrais deste
trabalho. Para referências a este assunto, conferir: Marcos NAPOLITANO, Seguindo a canção; José Roberto ZAN,
Do fundo de quintal a vanguarda: contribuição para uma História Social da Música Popular Brasileira. Campinas,
1997. Tese (Doutorado em Sociologia)- IFCH/ UNICAMP. E ainda Zuza Homem de MELLO, A era dos festivais –
uma parábola. São Paulo: Editora 34, 2003.
71
José Roberto ZAN, Do fundo de quintal a vanguarda.
325
relações entre as músicas participantes dos primeiros tempos dos CPCs ou as canções de protesto
da era dos festivais como tendo uma ligação direta e mecânica com o contexto político do Brasil.
Estas manifestações culturais encontravam-se fortemente vinculadas à indústria cultural
nascente e ao mercado. Inseridos neste mercado, os agentes musicais relacionavam-se com o
contexto político por meio da mediação do campo da música popular, em que os
direcionamentos, tomadas de posição políticas davam-se em função, também, da própria lógica
interna do campo, na busca de diferenciação dos outros estilos musicais, de distinção, na luta por
hegemonia e, ao mesmo tempo, aprofundando suas relações com o mercado voltado para o
consumo jovem. O autor lembra ainda que a canção de protesto não rompeu completamente com
os padrões musicais – e, por vezes, até com os poéticos – da Bossa Nova, sendo este, aliás o
grande dilema por que passou a MPB então nascente, entre sentir-se no dever de valorizar o
samba tradicional e a musicalidade autêntica, de acordo com o ideário nacionalista e,
concomitantemente, não querer abrir mão das conquistas formais alcançadas pela Bossa Nova,
em termos poéticos e musicais.
Interessante atentar para o fato de a Bossa Nova e suas dissidências terem sido encaradas
e afirmadas, à época, como música jovem, e hoje existir uma quase indiferença dos jovens em
relação a estas músicas. Por vezes, percebe-se até um desconhecimento das mesmas, do que
representaram naquele contexto ou então uma noção de que são músicas ultrapassadas, não
percebendo nelas qualquer ressonância com suas experiências, sendo muitas vezes nomeada
como “música de velhos”. Esta implicação do presente, é claro, afeta as memórias dos ouvintes
analisados e a construção que fazem do seu passado e de sua juventude, buscando afirmar ainda
mais a sua época e “seu tempo” como privilegiados, uma vez que tiveram a oportunidade de
tomar contato, participar e pertencer a uma geração artística/musical muito rica. Eles tentam
ainda construir a sua geração nos anos 50 e 60 como mais informada e consciente, diferentemente
da juventude atual que se mostra desinteressada, dispersa e alheia à “verdadeira” cultura. Mais
uma vez, o presente jogando seus apelos ao passado, trazendo dele aquilo que se quer firmar
como essencial, pelas próprias vicissitudes lançadas pela atualidade.
Porém, em alguns depoimentos, é possível perceber outras lembranças da juventude.
“É, eu não fui muito ligada no movimento estudantil, não. Eu tava mais ligada em namorar e não era muito
politizada, não. Mas era muito ligada mesmo nessa coisa de música e ver show de samba e aquelas...Íamos
muito pra Mangueira e aí a gente tinha uma turma ali em Botafogo, e íamos pra festas, pra carnaval e
íamos pra escola de samba e tinha...E aí tinha...começou a aparecer Nara Leão, Bethânia, né, ainda era
326
bem garota, depois Nara Leão que eu era apaixonada. Logo me apaixonei por Nara Leão e foi assim uma
gracinha assim da história, né? E então a gente dançava o fim de semana inteiro... e nós dançávamos,
dançávamos, sempre sabíamos todas, todas as músicas, todas as danças; era aquela dançação, aquele
negócio de namorar, rua, sabe aquela fofoca de rua. Então era todo mundo muito animado com isso. A
gente dançava... Ah, todas aquelas músicas, todas aquelas coisas. Hooly Gooly, sabíamos todos os passos,
todas aquelas danças que vinham, né, trazendo, novas, e nós sempre treinávamos e dançávamos muito.
Aquilo era levado a seríssimo, éramos muito festeiros. Foi uma época muito festeira assim. Me lembro que
era uma coisa muito festeira. E de ensaio em escola de samba e tinha aquelas coisas da....aqueles shows do
Arena ali da Copacabana e Opinião. (...) E eu gostava de tudo, é...de tudo. Não era assim uma coisa muito,
aficionada, né. Os festivais eu achava esquisito aquela novidade toda, né, aquela coisa dos festivais já era
uma coisa, sei lá, talvez mais politizada, mais assim enraizada. Eu não era assim de tomar partido, não. Eu
gostava era de namorar mesmo e de ouvir, dançar e...a gente tinha isso.” (Rita)
Rita explicita em sua narrativa que não era ligada em política, não entendia, não se
interessava, pensava só em namorar, dançar e se divertir. Ela escutava Bossa Nova, tendo como
forte referência a figura de Nara Leão, os shows e espetáculos no teatro de Arena, e ainda
freqüentava as escolas de samba, compondo um quadro de convivência no universo da juventude
chamada engajada. Porém, ao mesmo tempo lembra-se de dançar todas as músicas da época,
dando ênfase ao rock e ao ie-ie-iê, e de preferir dançar a ouvir, sempre associando as canções à
diversão, festas e namoros. Mesmo suas recordações dos festivais são bastante esparsas,
fragmentárias, repletas de esquecimentos, expressando apenas que achava estranho, algo muito
enraizado e politizado. Mesmo quando fala da Tropicália, referindo-se “aos baianos”, diz que pra
ela já era outra coisa, não mais Bossa Nova nem protesto. Interessante esta memória de suas
escutas, pois o Tropicalismo surgia com algo que trazia os elementos pop internacionais, uma
renovação da estética da MPB dos festivais, com letras que também falavam daquele universo
com o qual Rita parecia identificar-se. Mas, no jogo da memória, as lembranças significativas,
que lhe ficaram, e que são acionadas hoje, negam o gosto pelo Tropicalismo, preferindo intitularse como “apolítica”, alguém que não se enquadrou naquele ideal de juventude politizada
referendada na memória histórica.
“ naquela época pra mim foi, pra mim foi...eu iniciei com rock. Na Bossa Nova eu ainda era muito menino,
pra mim Beatles era a coisa forte. O que me levou a tocar violão foi os Beatles. Como ela [sua mulher,
Rita] tem irmão mais velho, ela começou a ouvir coisas antes. Eu como era o irmão mais velho na minha
casa, então foi diferente. No começo da Bossa Nova, o principal era Beatles, era o principal, eu era um
beatlemaníaco de primeiro disco ao último, quando foi mais ou menos 1970. Eu tocava todos os discos dos
Beatles e tocava na ordem, lado A e lado B, virava o disco, eu era um beatlemaníaco. Mas é claro que a
Bossa Nova... o baixista que tocava comigo era um cara mais ligado em Bossa Nova, então, a gente como
tava ali naquele esforço, tentando aprender, a gente era muito autodidata, porque naquela época na tinha
essa oportunidade que tem hoje de formação. Então cada um, era um aprendizado bem difícil; quando eu
fui estudar música, o que eu aprendi de música em 6 meses, foi mais do que tudo o que eu tinha aprendido
como autodidata em 10 anos. Essa coisa do autodidata naquela época que era o negócio da Contracultura,
327
que negava uma formação, e também negava porque naquele tempo não tinha muita opção... mas nesse
bolo, tinha uma coisa ou outra de Bossa Nova que a gente procurava aprender, mas aí tinha a televisão, né,
que tocava e se curtia também.... tinha um programa com a Elis Regina semanal, na TV, aparecia todo
mundo, era um nível de programação musical incrível... Quando apareceu o Tropicalismo, pra mim foi
muito maior que a Bossa Nova. Que essa época eu já tocava, tocava há muitos anos e foi uma hora que se
produziu uma coisa no Brasil que tinha a ver com aquilo que a gente ouvia fora daqui. Pra mim foi muito
marcante. Eu tocava guitarra, eu era guitarrista. Era aquela linguagem musical com ar brasileiro. Até
então não tinha, né. O que se fazia no Brasil era os covers. O Tropicalismo foi um impacto forte. Porque a
Bossa Nova...É claro que hoje, hoje eu ouço Bossa Nova. Logo depois quando eu, minha formação musical,
passei a valorizar muito mais a Bossa Nova, ouço. Até hoje a gente ouve Tom Jobim com raro prazer. Não
que seja uma coisa freqüente, né, mas quando ouve você vê que aquilo é o que melhor se produziu da
música do século XX, junto com jazz, você pode colocar o Tom Jobim tranqüilamente. O Tropicalismo foi
uma mistura, uma outra força, que era a música pop, que era outra força mesmo, aquela outra, aqueles
instrumentos que tinham condições de produzir um outro clima, eram outros recursos que entravam com
um outro clima e então era uma leitura.” (Roberto)
Roberto constrói sua trajetória juvenil como tendo sido ligada ao rock, aos Beatles, seus
ídolos na juventude, colocando-se muito em contato com as músicas e a cultura estrangeira.
Conta que foi ouvir Bossa Nova muito tempo depois, num disco, na casa de uma prima.
Importante perceber como ele tenta, na construção memorial do presente, justificar que era muito
jovem quando a Bossa Nova surgiu, mas que hoje em dia é o que mais gosta e reverencia. Fica
claro, no entanto, que sua inserção e gosto musical passavam pela escuta das músicas e da cultura
Pop internacional. Embora ele não se declare nem se assuma como “alienado” ou “apolítico” – o
que também este trabalho de maneira alguma pretende refutar – sua trajetória passou mais ao
largo da ambiência da juventude “engajada” do que a de Rita. Diferentemente dela, Roberto vê a
Tropicália como o grande momento da música popular – até mais impactante do que a Bossa
Nova – pois era algo completamente diferente do que se ouvia, algo em sintonia com o que lhe
fazia sentido, uma “tradução” da sonoridade, da força do “clima” que a música Pop estrangeira
lhe suscitava. Este clima aludido por Roberto oferece pistas para imaginar o cotidiano das
experiências da juventude já na segunda metade da década de 60, em que se convivia com a TV,
com a agitação e fermentação cultural buscando romper com as regras morais e comportamentais
que existiam até então. Um clima que remete também a algo que tanto Rita como Roberto não
disseram explicitamente em seus depoimentos, mas que naquele momento de suas trajetórias, a
partir das entrelinhas de suas narrativas, devia também chamar-lhes a atenção.
A idéia de juventude “alienada” circulou socialmente a partir de meados da década de 60,
definindo os que aparentemente não se importavam ou se interessavam por política, preferindo
consumir produtos culturais cuja principal matriz eram as músicas estrangeiras como o rock, que
328
por aqui foi chamado de ie-ie-iê. Com uma musicalidade e poética bem diferentes da Bossa Nova
e das músicas dos festivais, o movimento musical/cultural que surgia – a Jovem Guarda –
assumia sua faceta comercial, explorando muito mais padrões comportamentais que se queriam
transgressores, com uma visualidade mais ousada composta por minissaias, botinhas e decotes
das garotas e calças justas e cabelos compridos dos rapazes, que afirmavam e referendavam o
consumo, o carro, as roupas, enfim, os elementos da cultura de massas. Vai se ordenando aí uma
divisão do campo musical popular entre a MPB, uma música engajada, nacionalista, séria, de
bom gosto, universitária e o ie-ie-iê, com letras ingênuas, românticas ou com referências ao
consumo e padrões “imperialistas”, despretensiosa, vista como inferior e de baixa qualidade,
destinada a uma juventude desinformada e alienada. Aqui, é possível identificar uma espécie de
divisão e busca por distinção na luta por hegemonia no campo musical, tendo como principal
aliada a TV.72
Esta luta no campo guardava intensas ligações com a segmentação das culturas jovens, o
que teria permanecido nos imaginários, na memória histórica até hoje, em que os depoentes
muitas vezes buscam enquadrar-se entre “alienados” ou “engajados”. Isto em relação à música
que gostavam de escutar e até com o grau de envolvimento nos movimentos estudantis. Uma
dicotomia cristalizada em termos absolutos, não permitindo muitas vezes, que se perceba as
mediações entre elas, os limites de tamanha divisão. As memórias, ao tentarem dar um sentido ao
passado e às vidas vividas, construindo uma narrativa coerente, muitas vezes reafirmam esta
dicotomia, mas é preciso reconhecer que ela é uma construção histórica pois a partir desta época,
em que o jovem foi afirmado como contestador e a juventude desta época vista, aos olhos de
hoje, como símbolo máximo de engajamento, conscientização, mobilização e inconformismo, a
noção de participação política encontra-se restrita a uma idéia de prática político-partidária
efetiva, onde o que lhe escapa é visto como indiferença e alienação. A década de 60, não só no
Brasil, mas em todo o mundo, ficou na memória histórica e na História oficial como marco, um
monumento, considerada como “pórtico às profundas transformações políticas e sóciocomportamentais do mundo depois da Segunda Guerra”.73 Um momento-chave, enfim, de
encadeamento das manifestações e dos rumos históricos que se delineariam depois.
72
Patrícia FARIAS, Jovem Guarda ou respostas que não foram perguntadas. In: Angela Maria DIAS (Org.), A
missão e o grande show: políticas culturais no Brasil dos anos 60 e depois.
73
Angela Maria DIAS (Org.), A missão e o grande show.
329
O que se vê ocorrer, desta forma, é uma construção do ideal de participação política
baseado nos anos 60, os anos rebeldes, “anos de chumbo”, em que o passado é visto como ideal,
não percebendo nos dias atuais, configurações históricas, sociais, culturais diversas daquele
tempo, quando a própria noção de participação política se transformou, não estando muitas vezes
caracterizada por um discurso político articulado ou mesmo efetivo a longo prazo, como nas
gerações passadas74. Assim, nas memórias, apenas uma participação política mais efetiva é
lembrada como legítima, sendo que os que não a tiveram buscam construir seu passado juvenil
pelo menos como consciente, ouvinte e apreciador das músicas engajadas dos festivais. Ou ainda,
aqueles que gostavam, escutavam e se identificavam mais com outras formas musicais, como o
rock ou ie-ie-iê, referem-se ao seu passado como apolíticos, não percebendo que a noção de
política que têm é fruto de uma cristalização histórica que exclui outras formas diferenciadas de
se inserir no mundo da “coisa pública”.
O que se tentou perceber na trajetória deste sub-capítulo sobre a juventude foram as
noções, que se encontravam em jogo naquele momento, sobre o significado deste termo, tanto no
campo das Ciências Sociais como entre os discursos normativos mais presentes no cotidiano,
ditados pela família, escola, religião e mesmo pelos meios de comunicação, que guardavam ainda
permanências de modelos mais tradicionais e inovações nos comportamentos e na identificação
juvenil mais adequada aos novos tempos do pós-guerra, perfazendo um certo discurso do
equilíbrio. Aliado a isso, foi intenção também notar como a Bossa Nova – movimento musical
que se assumiu como inovador, moderno e jovem, fazendo disso a sua marca de distinção –
captava e expressava estas formas de ser jovem, tanto em suas letras como em sua sonoridade.
Buscou-se perceber ainda os elementos que permearam a noção de juventude naquela
especificidade histórica – a idéia de participação política –, que articulada ainda a outras questões
mais gerais, ajudou a construir um campo musical popular no Brasil e suas relações com o
mercado e a indústria cultural, colaborando para compor um imaginário sobre a época que vê a
juventude numa dualidade entre “engajados” e “alienados”.
Compreender como as memórias dos ouvintes, hoje adultos, constróem – nos jogos de
lembrança e esquecimento – as experiências de escuta que se formulavam então, ressaltando
sensibilidades, percepções e formas de inserção no mundo, permitindo interpretar fragmentos das
74
Regina NOVAES, Juventude e participação social: apontamentos sobre a reinvenção da política. In: Helena
ABRAMO et alli. (Orgs), Juventude em debate.
330
experiências juvenis de então, não encarceradas em modelos, nem sempre completamente
contestadoras e revolucionárias, mas mudanças fragmentárias e táticas improvisadas no próprio
cotidiano, que apontaram para o devir de muitas questões, conquistas, dilemas, contradições que
se tem nos dias de hoje.
Jovens dos anos 50 e 60, convivendo, em diferentes graus, com a presença da
modernidade, do mundo do consumo, de novos valores e da existência das mídias em suas vidas
como presença cada vez maior, constante e colaboradora para as definições de suas identidades.
Revistas, rádio, cinema, fonogramas, TV adquirindo peso, força e contigüidade no cotidiano,
ajudando a elaborar modos de sentir, de se relacionar com o mundo objetivo e imaginário, formas
de escuta do mundo, em que a Bossa Nova, como tipo de canção e sonoridade mais fortemente
presente em suas memórias, exerceu papel importante em suas experiências.
Escutando músicas com poesia e melodia que sinalizavam um tom coloquial, de fala
cotidiana, volumes mais baixos, ritmo sincopado, mas que parecia suscitar uma idéia de cadência
harmoniosa, performances mais sutis, enfim, que buscavam caracterizar-se como algo moderno,
estes jovens pareciam estar experimentando – o que aflora em suas memórias de hoje em algumas
lembranças explícitas e em alguns não-ditos – aquilo que a juvenilização acentuada da sociedade
começava a delinear: maneiras de elaborar o seu sensorium, as formas de lidar com as
tecnologias em suas subjetividades, em que olhar, escuta, sentidos variados vão se transformando
e se preparando gradualmente para uma sociedade em que o contato com as mídias assumiria um
papel de muito destaque. Falar em juventude, assim, é sublinhar suas capacidades de perceber,
lidar e relacionar-se com o seu presente.
331
Cap. 3.4. – Homens e mulheres
“Ao invés de querer definir o outro (‘O que é que ele é?’), me volto para mim
mesmo: ‘O que é que eu quero, eu que quero te conhecer?’. O que
aconteceria se eu quisesse te definir como uma força, e não como
uma pessoa? E se eu me situasse como uma outra força diante da tua
força? Aconteceria o seguinte: meu outro se definiria apenas
pelo sofrimento ou pelo prazer que ele me dá.”
Fragmentos de um discurso amoroso, Roland Barthes
Este capítulo tem como proposta pensar sobre homens e mulheres. Após dezenas de
séculos, quando as diferenciações sociais de gênero fixavam papéis rigidamente definidos para
homens e mulheres, com prevalência de uma hierarquização dos homens em detrimento do
feminino – o patriarcalismo – tem-se hoje, no mundo ocidental, sociedades em que os preceitos
femininos são valorizados, e a mulher surge como um sujeito socialmente reconhecido, em um
processo de “ruptura histórica na maneira pela qual é construída a identidade feminina, bem
como as relações entre os sexos”, como argumenta Gilles Lipovetsky1.
Se até há alguns séculos as mulheres eram sujeitas à procriação e a uma moral severa,
hoje podem escolher entre ser ou não mãe, ou ainda adiar essa decisão, tendo conquistado a
liberdade sexual e o direito de exercer uma carreira profissional. Esta “evolução” do feminino na
modernidade, especialmente no século XX, pode ser vista como uma das principais mudanças
sociais desta época. São mudanças profundas, mas relativamente rápidas, ricas em possibilidades
para o futuro, tendo alterado as relações entre os gêneros, reposicionando papéis e identidades,
tanto dos homens quanto das mulheres.
Num mundo em que o individualismo, a afirmação do eu, da busca de realização pessoal,
os valores privados, e a intimidade são tão valorizados na sociedade2, as relações entre homens e
mulheres - ao se inserirem com maior predominância neste âmbito da vida social - são essenciais
e devem ser analisadas. Para isso, será utilizada a categoria de análise gênero, que cada vez mais
se afirma nos estudos de áreas diversas, como História, Antropologia, Sociologia, Psicologia,
entre outros. Aqui, esta categoria é entendida como um elemento constitutivo das relações sociais
fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, colocando-se como a organização social
da diferença sexual, mostrando-se como um saber que estabelece significados para as diferenças
1
Gilles LIPOVETSKY, A terceira mulher: permanência e revolução do feminino, p.231.
Cf. Gilles LIPOVETSKY, Op.cit.. E também Anthony GIDDENS, A transformação da intimidade: sexualidade,
amor e erotismo nas sociedades modernas.
2
332
corporais, em que estes significados variam de acordo com as culturas, os grupos sociais e o
momento histórico.3
Segundo Elisabeth Badinter4, em grande parte da história ocidental, as relações
homem/mulher têm se inscrito num sistema mais amplo de poder que norteia as relações entre os
indivíduos, sendo o patriarcado não apenas uma expressão desta hierarquia de opressão sexual de
gênero, mas também de um sistema político, apoiado numa teologia. No ocidente, entre os
séculos XVI e XVII, os teóricos do Absolutismo procuraram justificar a autoridade do rei,
ligando-a a Deus e ao Pai. No entanto, as revoluções burguesas e os ideais democráticos dos
séculos XVIII e XIX, buscaram livrar-se do patriarcado político, desfazendo a figura do soberano
o que, de alguma forma, também contribuiu para solapar o poder paterno. Estava aí colocada a
primeira grande causa do desmoronamento desse sistema. Os ideais de liberdade, igualdade e
fraternidade não apenas esmoreceram a figura do pai soberano masculino, como também abriram
espaço para se repensar as especificidades de cada sexo, os papéis atribuídos a homens e
mulheres numa nova distribuição, mais fluida e não tão hierarquizada.
Em uma república democrática, a fraternidade entre irmãos iguais e livres deveria
substituir os ideais de submissão, hierarquia e paternalismo do Antigo Regime. Estava
começando a se abrir o espaço para a entrada das mulheres como sujeitos, mudança que não se
deu de maneira tranqüila ou rápida, mas num campo de lutas em busca de conquistas cívicas,
educativas e políticas. Não que, em outros momentos, as mulheres não possam ser interpretadas
ou compreendidas como sujeitos e agentes da história, assumindo papéis não prescritos,
driblando as ordens, exercendo um outro poder nas fímbrias e bordas dos discursos oficiais5, mas
o que se estabeleceu neste momento foi a possibilidade de afirmação social, ocorrendo nos
próprios discursos da mulher como sujeito histórico.
Entre os séculos XVIII e XIX – momento em que se instaura a Modernidade –,
solidificam-se os papéis rigidamente prescritos aos homens e mulheres, após as modificações que
se verificavam desde a Idade Média na condição da mulher. A partir do século XII, a mulher –
até aí vista e representada hegemonicamente de forma depreciativa, como alguém perigoso,
misterioso, maléfico e diabólico – passa a ser objeto de veneração masculina, com o código do
3
Joan Wallach SCOTT, Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Eliane M. T. LOPES e Guacira LOURO,
(Org.), Mulher e Educação. Educação e Realidade, v. 16, n.2, p.5-22, 1990.
4
Elisabeth BADINTER, Um é o outro.
5
Cf. Maria Odila Leite DIAS, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX.
333
amor cortês que exaltava a mulher como o “belo sexo”, em uma idealização da mulher-musa que
se aliava ao culto mariano e a elevava como ser especial por possuir a função materna6. No
século XIX, instaura-se uma modificação e não uma abolição da hierarquização dos gêneros, pois
se começa a designar com maior evidência as funções sociais de cada sexo, sendo o homem
ligado à esfera pública do trabalho, da política, das decisões, da autoridade e da racionalidade; e a
mulher, dentro do lar, atuando na esfera privada, definida como ser frágil, dependente, sensível,
emotivo, ligado à natureza e aos instintos. No século XIX, com a industrialização, este modelo
se solidificou, colocando os homens no mercado de trabalho e a mulher como “rainha” do lar,
responsável por sua organização e pela educação dos filhos, desempenhando a função de esposa e
mãe, como algo naturalizado e próprio de uma suposta “natureza feminina”.
Entretanto, estas mudanças são ambíguas, explicitando um século que pode ser
considerado como contraditório, pois eram colocadas num pedestal, enaltecidas, idolatradas,
idealizadas, ao mesmo tempo que enfrentavam forte opressão masculina, sendo confinadas e
tuteladas como nunca antes havia acontecido, processo que resultou em um aprofundamento da
divisão das esferas próprias a cada um dos sexos, como argumenta Michelle Perrot7. Mas foi
também neste mesmo momento histórico que se deu, de modo tenso e difícil, seu acesso a
liberdade, criando as condições para a conquista do status de sujeito, pondo em pauta uma certa
consciência de gênero. O que se delineou, assim, foi uma nítida e profunda oposição e afirmação
das diferenças entre homens e mulheres, designando o que é próprio, específico, essencial e até
“natural” de cada sexo, o que acabou por conduzir a uma oposição binária.
Com os avanços das conquistas femininas durante todo o século XX, desde o trabalho
fora do lar até o controle da fecundidade e a liberação sexual, entre tantas outras coisas, o que
vem dando contorno aos tempos atuais é um apagamento ou borramento de fronteiras nítidas e
rigidamente estabelecidas entre o que é específico dos homens e das mulheres, quadro que se
verifica ao se perceber a quantidade de mulheres sozinhas ou que lideram as famílias ou ainda no
fato de os homens estarem mantendo cada vez mais uma relação com a paternidade, o que não se
verificava em outros momentos. Tal fato, traz à tona os ideais de um homem sensível, ou
“homem feminino”, valorizado socialmente, em detrimento da figura do “machão”, como atesta
Sócrates Nolasco8. O paulatino esvaecimento dos referenciais sociais e culturais rígidos e o
6
Cf. Gilles LIPOVETSKY, A terceira mulher: permanência e revolução do feminino.
Cf. Georges DUBY e Michelle PERROT (Dir), Histoire des femmes en Ocident, vol. 4.
8
Sócrates NOLASCO, O mito da masculinidade.; Sócrates NOLASCO (Org.), A desconstrução do masculino.
7
334
surgimento de uma plasticidade dos papéis sexuais, faz com que seja cada vez mais difícil
determinar a diferença entre ser homem e ser mulher no plano social e cultural. Conduz-se aí um
estabelecimento de “mínimas diferenças”, como observa Maria Rita Kehl9, em que a
interpenetração dos territórios – antes bem apartados e diferenciados – e a percepção de
características masculinas e femininas presentes em todos os indivíduos causam mal estar,
angústias e perda de referências, sem que se esteja certo dos novos pontos referenciais.
Um problema ainda muito distante de ser superado, diante de um estado de indefinição
nas relações homem/mulher, em que não se sabe o que se quer e muito menos o que não se quer
ou de que maneira, tudo isso pondo em xeque as funções que caberiam a cada gênero, se é que
ainda existem essas funções específicas. Neste sentido, surge a questão: deve-se considerar as
diferenças sexuais e de gênero, numa tentativa de obter “portos seguros” para as experiências na
vida social, ou tentar esvanecê-las por completo, argumentando sobre a semelhança e a não
distinção das especificidades masculinas e femininas? Este foi, e ainda é, um dos grandes debates
dos movimentos feministas iniciados no final da década de 60.
Na discussão sobre a Bossa Nova, a questão do gênero assume destaque quando durante
os depoimentos se revelaram diferenças nos sentidos dados por homens e mulheres a este mesmo
estilo musical, ressaltando que esta atribuição de sentidos, estas leituras das músicas têm a ver
com o lugar social de cada receptor e seu papel na sociedade10. As relações sociais de gênero são
importantes nesta reflexão, como uma questão presente naquela época, adquirindo importância
para se poder pensar hoje num momento do passado que apontou para tantos elementos que
adviriam mais tarde. Não se supõe aqui uma perspectiva de história linear e evolutiva, mas um
movimento histórico que em suas rupturas e fissuras, em suas muitas e diversas temporalidades
parecia já apontar para os movimentos feministas dos anos 70 e para os papéis que as mulheres
assumiriam a partir dali.
Estes ouvintes eram homens e mulheres, com particularidades e identidades de gênero,
algo que não pode ser descolado da análise de suas memórias. Memórias de um tempo de
mudanças significativas experimentadas em meio a suas vidas cotidianas na cidade do Rio de
Janeiro, como jovens que eram e como ouvintes das sonoridades e das canções daquele momento,
em contato também com outras formas midiáticas que discursavam e falavam sobre os papéis de
9
Maria Rita KEHL, A mínima diferença: masculino e feminino na cultura, passim.
Elizabeth FLYNN e Patrocinio SCHWEICKART, Gender and Reading: essays on readers, texts and contexts.
10
335
gênero. O estudo dos ouvintes da Bossa Nova não pode ignorar estas questões, das quais a
própria Bossa Nova também não se distanciou. Considerando esse olhar para o passado,
interpretando os limites das conquistas femininas e as modificações das relações entre homens e
mulheres é possível perceber até que ponto existem permanências, invariâncias, rupturas ou
emergências no que tange aos papéis de gênero.
Partindo dessas particularidades de gênero, é possível chegar à questão da memória
construída por homens e mulheres. Marina Maluf discute sobre a existência ou não de uma
memória especificamente feminina, indagando se existiriam mecanismos de funcionamentos da
memória próprios às mulheres e outros próprios aos homens. Para além da memória ser uma
forma de recapturar o passado segundo uma seleção significativa dos eventos vividos e revelados
a partir do ato pessoal de lembrar, esse processo está posto dentro da trama coletiva da existência,
em que “o indivíduo encontra-se impregnado de elementos que ultrapassam os limites de seu
próprio corpo e que dizem respeito aos conteúdos comuns dos grupos aos quais pertence ou
pertenceu”11 As lembranças estão ligadas intimamente à vida social e à historicidade de quem
rememora, marcada por práticas, valores, formas de representação. Os pertencimentos sociais dos
indivíduos dão cores diferenciadas tanto às significações quanto à própria maneira de
reconstrução desse passado.
Não causa espanto perceber que as mulheres se atêm muito aos detalhes da casa, da
família, dos objetos e do vestuário destacando elementos que se constituíram ao longo de suas
trajetórias como próprios ao feminino. Os homens desenvolvem explicações de um modo mais
distanciado e mais geral, presos a uma racionalidade que funciona como um freio as emoções.
Acompanhar o movimento da memória de homens e mulheres é um modo de conhecer o lugar
social e cultural de onde falam e como falam e a importância que atribuem aos seus papéis na
sociedade e aos fatos que narram. As análises aqui desenvolvidas afastam-se das especificidades
memoriais dos gêneros que partiriam de características biológicas ou de natureza – embora
possam haver questões relevantes nesse âmbito –; em vez disso, considera que as singularidades
estão, como argumenta Michelle Perrot, “nas práticas sócio-culturais presentes na tripla operação
que constitui a memória – acumulação primitiva, rememoração, ordenamento da narrativa – [que]
11
Marina MALUF, Ruídos da memória: a presença da mulher fazendeira na expansão da cafeicultura paulista. São
Paulo, 1994. Tese (Doutorado em História Social) FFLCH-USP. p. 96.
336
estão imbricadas nas relações masculinas-femininas reais e, como elas, é produto de uma
história”12.
É impossível esquecer, no entanto, que as mulheres e os homens cujas memórias estão
sendo analisadas foram educados majoritariamente dentro dos padrões tradicionais dados pela
família, Igreja, imprensa, discursos variados. Muitos tiveram que demolir, ou pelo menos
relativizar, vários destes padrões e construir novos parâmetros e valores. Tendo como referência
os padrões de seus pais, mães, avós e tios, eles tiveram que enfrentar mudanças radicais na
sociedade, que envolviam desde a entrada da mulher no mercado de trabalho até conflitos com
instituições como família, casamento, sociedade, religião, democracia, reconhecimento da
sexualidade e dos direitos igualitários dos gêneros que começavam a ser difundidos socialmente,
além de serem exigidos a assumir posições políticas.
Todas estas novas demandas sociais vivenciadas por estes sujeitos a partir das décadas
analisadas, exigiram-lhes novas posturas, tornando-os mais inquiridores, revolucionários e
dialógicos, num momento em que ainda não possuíam um “espelho onde se mirar, mas apenas
imagens fragmentadas, estilhaçadas, geradora de angústias, provocando sensação de
desenraizamento”13, entre outras conseqüências. Compreender a memória destes homens e
mulheres hoje, é refletir também sobre este mosaico de mudanças que afetaram as identidades e
as relações de gêneros pelas quais estes sujeitos passaram e que, de alguma forma, estão
presentes – de diferentes maneiras e intensidades – nos modos de rememorar o vivido.
Alguns aspectos teóricos
A publicação de O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, em 1949, pode ser considerada
o grande marco na propagação dos preceitos feministas dentro e fora da academia. Mesmo sendo
tão criticada por não tratar de mulheres específicas, e sim da mulher como fenômeno universal,
desconsiderando particularidades sociais, culturais e históricas de cada grupo de mulheres –
influenciada pelas idéias existencialistas acerca do “ser em si”, “ser para si” e “situação” –
Beauvoir chegou a afirmar que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Essa foi a primeira
12
13
Michelle PERROT, Práticas da memória feminina. Revista Brasileira de História, v.9, n.18. p. 18.
Maria José Motta VIANA, Do sótão à vitrine: memórias de mulheres, p. 42.
337
manifestação do conceito de gênero, como argumenta Heleieth Saffioti14. Segundo esse prisma, o
feminino não é dado pela biologia ou pela anatomia, mas construído cultural e socialmente, ser
mulher é uma aprendizagem. Esta idéia é essencial para se repensar toda a visão das mulheres
sobre a vida em sociedade, como também suas condutas e, por conseqüência, a dos homens.
Daí em diante, debates, estudos e movimentos sociais foram realizados em busca de
tematizar a mulher e seu papel na sociedade. Primeiramente, desenvolveu-se uma reflexão que
tinha como base a suposição das mulheres como uma categoria homogênea dada pela biologia,
que se movia em papéis e contextos diferentes, mas que possuíam uma certa “essência” feminina.
Este discurso foi muito utilizado pelos movimentos feministas nos anos 70, firmando o
antagonismo com os homens e a idéia de uma identidade coletiva entre as mulheres o que
possibilitaria uma mobilização política e social. Já no final da mesma década, começou-se a
questionar a viabilidade de uma categoria tão genérica como “mulheres” para se discutir a
questão, introduzindo-se, assim, a noção de “diferença” como um problema a ser analisado.
Passou-se a pensar na existência de múltiplas identidades, articulando a noção de gênero às
noções de classe, etnia, geração, procurando as especificidades e negando a idéia de um sujeito
universal feminino.
Segundo Heloísa Buarque de Hollanda15, a crítica da cultura feminista adquiriu
importância num contexto particular, quando a questão da alteridade começou a se evidenciar nos
debates a partir da década de 70. No que diz respeito ao plano político e social, esse debate
ganhou espaço a partir dos movimentos anticoloniais, étnicos e raciais, de mulheres, de
homossexuais e movimentos ecológicos que se consolidavam como novas forças políticas. No
plano acadêmico, filósofos franceses pós-estruturalistas (Foucault, Deleuze, Barthes, Derrida e
Kristeva, entre outros) intensificaram a discussão sobre a crise do conceito e da noção de
“sujeito”, introduzindo temas que tinham como foco a diferença, a alteridade, a marginalidade.
Isso acabou gerando, em parte da reflexão feita nas ciências humanas, uma certa recusa em
relação aos discursos totalizantes, hegemônicos.
14
Heleieth SAFFIOTI, Primórdios do conceito de gênero, Cadernos Pagu – Simone de Beauvoir & os feminismos
do século XX, n.12, 1999.
15
Heloísa B. HOLLANDA, Feminismo em tempos pós-modernos. In: Heloísa B. HOLLANDA, (Org.), Tendências
e impasses: o feminismo como crítica da cultura.
338
Ainda segundo Buarque de Holanda, é possível perceber na atualidade, dois pólos
conceituais que dividem o campo teórico/epistemológico na crítica feminista: o feminismo angloamericano e o feminismo francês.
“A corrente anglo-saxônica, muito prestigiada na área da teoria literária, vem há quase vinte anos,
procurando denunciar os aspectos arbitrários e mesmo manipuladores das representações da imagem
feminina na tradição literária e particularizar a escrita das mulheres como o lugar potencialmente
privilegiado para a experiência social feminina. (...) Por outro lado, o feminismo francês, mais vinculado à
psicanálise, vai trabalhar no sentido da identificação de uma possível ‘subjetividade feminina’. Enquanto
as feministas americanas dos anos 60 declararam guerra ao falocentrismo freudiano, as francesas atentam
para a psicanálise entendida como teoria capaz de promover a exploração do inconsciente e a
emancipação do pessoal, caminho que se mostrava especialmente atraente para a análise e identificação da
16
opressão da mulher”.
Numa vertente um pouco diferente, estão os estudos de gênero vinculados ou apoiados
mais propriamente nos métodos da história social. Estudos que enfatizam o trabalho feminino e
suas condições, entre outros temas, são bastante significativos desta perspectiva, sendo criticados
exatamente por sua característica fortemente descritiva, residindo aí a sua limitação. Conforme
atenta Louise Tilly17, a contribuição principal dessa abordagem descritiva foi a de evidenciar a
experiência das mulheres, indo além da interpretação de discursos, textos e linguagem (como
defende Joan Scott), trazendo a prática concreta das mulheres. Scott critica esta tamanha
preocupação da história social com a visibilidade, levando em consideração que a experiência
também contém certa invisibilidade e que certas práticas não estão explicitadas, merecendo e
necessitando de um esforço interpretativo18.
Em diálogo com ambas as abordagens historiográficas apontadas acima, pode-se ver, no
Brasil, um debate que passa por estas questões. Maria Odila Dias argumenta que é preciso, para
se trabalhar com mulheres na sociedade, libertar-se de categorias abstratas, de idealidades
universais, como “condição feminina”, por exemplo,
“mas sim buscar instrumentos metodológicos e teóricos que dêem conta da própria instabilidade e não
fixidez do tema. Não procurar certezas, verdades absolutas no que tange à vida das mulheres, pois isso
estaria reproduzindo, como espelho distorcido, as próprias categorias do sistema de dominação que
pretendem criticar, mas buscar fazer da teoria feminista uma forma outra de construção do conhecimento,
onde serviria como um instrumento de crítica aos modelos científicos deterministas, cientificistas, racionais
explicativos e universais. Buscar sim, o contingencial, o efêmero, o movediço, os papéis informais, as
16
Idem. p. 11-12.
Louise TILLY, Gênero, história das mulheres e história social. Cadernos Pagu - desacordos, desamores e
diferenças, 1994, p.29-62.
18
Joan Wallach SCOTT, A invisibilidade da experiência. Projeto História, n.16, p. 297-325.
17
339
situações inéditas e atípicas das mulheres permitem justamente a reconstituição de processos sociais fora
19
de seu enquadramento puramente normativo.”
A autora propõe um método de abordagem feminista que procure interpretar tanto os
discursos quanto as práticas, valendo-se de fontes em que estão explicitadas as ideologias e os
papéis prescritos às mulheres, interpretando nelas próprias, nos ocos do discurso, nas fímbrias e
no não-dito sua atuação. Com isso, pode-se reconhecer papéis não previstos no normativo,
saindo-se, assim, da esfera estritamente do poder, ainda que o tome como ponto de partida, mas
incorporando modos de subversão.
Neste sentido – nestas maneiras de subverter o normativo – abre-se a possibilidade para se
pensar a recepção de obras literárias como algo que propicia esta subversão; como um dos locais
privilegiados para que se possa compreender essas práticas desviantes. Em busca de uma “teoria
feminista da leitura”, Elizabeth Flynn e Patrocinio Schweickart20 argumentam que a maioria dos
estudos sobre leitura e leitores realizados atualmente deixam escapar questões como raça, classe,
sexo, não dando valor aos sentimentos e impasses que acompanham estas realidades, o que acaba
por atomizar leitor e texto, formando hiatos entre estes, sem dar conta da interação que há entre
ambos nem considerar o mundo fora do texto, fator de suma importância para se compreender o
leitor. Elas propõem a necessidade de pensar a leitura em termos específicos, afirmando que há
uma leitura própria as mulheres, uma leitura feminina. Para a crítica feminista mais recente, a
idéia de autoria ressalta e associa esta noção a funções falocêntricas da visão do autor como
autoridade. A crítica feminista destaca três momentos para uma leitura das mulheres: o primeiro
seria uma leitura ou interpretação da experiência das mulheres; o segundo seria o ler como uma
mulher e, num terceiro momento, haveria uma releitura da experiência. 21
Esta teoria, ao propor a idéia de uma leitura feminista de textos, não trabalha com as
especificidades históricas, o que a precipita para aquilo que tanto critica: a essencialização do
feminino e uma descontextualização desta leitura, o que provoca uma noção de um modo
feminino de ler como condição feminina imanente. Para evitar esse tipo de postura é preciso
estudar e analisar a leitura feminina dentro de uma especificidade histórico-social, o que evitaria
19
Maria Odila Leite DIAS, Teoria e método dos estudos feministas: perspectiva histórica e hermenêutica do
cotidiano. In: Albertina COSTA e Cristina BRUSCHINI (Org.), Uma questão de Gênero, 1993, p.39-53.
20
Elizabeth FLYNN e Patrocinio SCHWEICKART, Gender and Reading: essays on readers, texts and contexts.
21
Cf.: Jonathan CULLER, Lendo como mulher. In: _____ Sobre a desconstrução: teoria e crítica do pósestruturalismos.
340
a armadilha de se pensar uma leitura ou escuta das mulheres como algo pertencente a uma certa
“natureza” ou “condição” feminina.
Estes estudos centram suas reflexões numa suposta e natural especificidade da linguagem
e/ou escrita femininas ou ainda na afirmação de sua identidade. Nos inícios do movimento
feminista, as questões da identidade e diferença foram importantes, tendo conseguido abrir
espaços e canais de expressão institucionais como imprensa feminista, cinema de mulher e
estudos feministas, todos afirmados enquanto área de conhecimento. A introdução do conceito de
gênero como categoria analítica representou o aprofundamento e a expansão das teorias críticas
feministas. O estudo das relações de gênero, agora substituindo a noção de identidade, passa a
privilegiar o exame dos processos de construção destas relações e das formas como o poder as
articula em momentos datados social e historicamente, variando dentro e através do tempo, e
inviabilizando o tratamento da diferença sexual como "natural".
Este tipo de perspectiva epistemológica permite o surgimento de um conceito relativizado
de gênero como um saber histórica e culturalmente específico sobre as diferenças entre homens e
mulheres, levando um estudo como este, sobre os ouvintes homens e mulheres da Bossa Nova, a
deixar de ser apenas uma tentativa de corrigir ou suplementar um registro incompleto do passado
(onde não aparecem as mulheres), para ser um modo de compreender criticamente como a
história e o tempo operam enquanto lugar da produção do saber de gênero. A opção por construir
um conhecimento não absoluto, que não busca certezas, mas que se dá no campo movediço da
história e do cotidiano é o que faz com que a categoria gênero seja um instrumento útil para a
compreensão da historicidade das relações entre os sexos (e suas interconexões), que são também
movediças, mutantes e sem limites pré-estabelecidos, em que se usa da própria instabilidade das
categorias como um recurso de análise22.
Esta análise considera as questões relativas aos homens e mulheres ouvintes da Bossa
Nova levando em conta a categoria gênero onde o aspecto relacional é fundamental, o que faz
com que a compreensão das mulheres se dê a partir da compreensão dos homens. A reflexão
sobre a categoria gênero possibilita um repensar sobre outras categorias23. Destaca-se a sua
influência para se pensar a abertura ao entendimento do âmbito pessoal como sendo algo político,
levando a uma expansão da noção de poder que deixa de ser trabalhada apenas no espaço da
22
Sandra HARDING, The instability of the analytical categories of feminist theory. In : Signs, Chicago: s/n., 1986.
Ana Carolina ESCOSTEGUY, A Contribuição do Olhar Feminista. In: Revista Famecos (Prog. de Pós-Graduação
em Comuincação da PUC/RS). n.09.
23
341
esfera pública, passando a estar presente também no campo da subjetividade e do sujeito; o que
coloca as questões de gênero e sexualidade como centrais para a compreensão da própria
categoria 'poder'. A política, como bem lembra Joan Scott, “é, antes, o processo pelo qual jogos
de poder e saber constituem a identidade e a experiência. Identidades e experiências são, nessa
visão, fenômenos variáveis, organizados discursivamente em contextos ou configurações
particulares”24. Segundo Escosteguy,
“desta forma, política e poder ganham uma dimensão maior nos estudos de gênero. Muito apoiados nos
estudos dos críticos literários como Jacques Derrida e outros associados ao pós-estruturalismo, eles
sublinham a importância tanto da intertextualidade, a maneira como os argumentos são estruturados e
apresentados, quanto do que é literalmente dito, chamando a atenção para as forças de significação em
guerra no interior do próprio texto. As disputas em torno do significado textual dos discursos, sempre
pensados enquanto dualidades, polarismos opostos, oposições fixas que escondem a heterogeneidade de
cada categoria, são formas de manutenção do poder. No entanto, estas mesmas disputas em torno da
significação textual introduzem novas oposições, revertendo hierarquias, expondo termos reprimidos,
contestando o estatuto natural dos pares aparentemente dicotômicos e expondo sua interdependência e
instabilidade interna. Este tipo de análise, que Derrida chama de ‘desconstrução’ permite uma reflexão
sobre os processos conflitivos que produzem os significados. Tal teoria é profundamente política, uma vez
que, colocando o conflito no centro de sua análise, evidencia o quanto a hierarquia e o poder são inerentes
aos processos lingüísticos e textuais analisados. Isso para os estudos de gênero é de grande valia, pois
possibilita um pensar sobre os discursos feitos sobre as mulheres, encarando-os de maneira crítica,
buscando salientar as suas ambigüidades, suas sutilezas de sentido, procurando interpretá-lo em sua
25
textualidade, neutralizando os determinismos essencialistas e a-históricos.”
Nesta discussão, procura-se desenvolver uma análise que se afaste de uma postura
dicotômica sobre as relações entre os gêneros, postura esta que leva muitas vezes à “vitimização”
ou “heroicização” da mulher, além de não contemplar o relacional, mas o “papel das mulheres na
História”, considerado – ainda que este argumento seja tantas vezes verdadeiro – oprimido,
esquecido e ocultado. Busca-se investigar a respeito das diferenças entre homens e mulheres
como gêneros e as relações entre ambos, recuperando as experiências narradas dos ouvintes da
Bossa Nova em sua complexidade, e entendendo os mecanismos das relações sociais entre os
sexos. Surge, assim, a percepção de que as noções de homem e mulher não são identidades
únicas, a-históricas e essencialistas, mas constituídas historicamente e culturalmente, fazendo-se
imprescindível, a análise da historicidade destas noções.
Promoção do feminino
24
Joan Wallach SCOTT, Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Eliane M. T. LOPES e Guacira LOURO
(Org.), Mulher e Educação, Educação e Realidade, v. 16, n.2, p.5-22.
25
Ana Carolina ESCOSTEGUY, Op.cit.
342
Edgar Morin aborda a promoção dos valores femininos nas culturas modernas, ocorrida
entre os anos 50 e 60 – período analisado por esta pesquisa –, destacando aqueles divulgados pelo
cinema norte-americano e pela imprensa, que têm como alvo o público feminino26. Segundo ele,
a cultura de massas dirige-se facilmente para os valores femininos, partindo de uma certa
identificação com uma sociedade que está atingindo níveis de bem-estar e riqueza, em que são
atenuados os aspectos mais brutais da condição humana (como luta pela vida, violência física),
acentuando-se uma “feminização” no seio da cultura das sociedades ocidentais modernas.
Nessa sociedades, a práxis cultural dominante concerne aos valores associados ao
feminino, como amor, conforto, bem-estar, felicidade, saber viver cotidiano e afirmação da
individualidade privada. Neste processo, ainda segundo Morin, o homem incorpora esse valores,
assumindo um lado mais sentimental, uma paternidade compartilhada com a maternidade nos
cuidados com os filhos, um companheirismo que busca ser mais igualitário nas relações
amorosas. O que se observa já na década de 50 é o início de um processo de “desvirilização”
masculina, com a perda daquilo que por séculos foi associado como pertencente à identidade dos
homens, que teria, e tem, implicações importantes nos nossos dias.27
“pra mim o Chico Buarque é o maior letrista. E quando encontro ele é uma coisa impressionante, porque
pra mim é como ver o (...), ‘é uma coisa que me dá até arrepio porque eu acho as letras do Chico uma
coisa... no papel de mulher, por exemplo, melhor ainda, porque ele escreveu monte de canção no papel de
mulher. Eu gosto muito quando o Chico faz canção no papel de mulher porque ele desenvolve uma
sensibilidade feminina que é um desafio, não é? (...)tem uma canção do Chico ‘Com açúcar e com afeto’ é
uma mulher que fica em casa, espera o marido, mas já se vê o sofrimento dela; uma outra, ‘quando você me
deixou, meu bem’, é já outro tipo de mulher... A mulher que deu a volta por cima...Já deu a volta por cima,
‘muitos homens me amaram bem mais e melhor que você’, já há um reconhecimento da sexualidade dela,
que tem outros homens que podem me mar melhor que você, é um papel diferente de desenvolvimento, são
duas mulheres diferentes. Isso você pode seguir o desenvolvimento, dentro da música, dessas mulheres.”
(Massimo)
Massimo lembra de Chico Buarque em vários momentos de seu depoimento, mesmo
asseverando que ele não pertence à Bossa Nova. Mas remete-se muito ao compositor por julgá-lo
26
Edgar MORIN, A promoção dos valores femininos. In : ____ Cultura de massas no século XX: o espírito do
tempo I - Neurose.
27
Vários estudos no campo da Psicologia e da Psicanálise vêm, nos último anos, buscando compreender este novo
lugar social e cultural do homem e do masculino. A este respeito, conferir: Elisabeth BADINTER, Um é o outro;
_______ XY: sobre a identidade masculina. E também: Sócrates NOLASCO, O mito da masculinidade; ________
(Org.), A desconstrução do masculino. Já no campo das Ciências Socias também alguns estudos vêm focalizando o
mundo masculino nas sociedades contemporâneas, destacando-se os trabalhos: Maria Isabel Mendes de ALMEIDA,
Masculino/Feminino - tensão insolúvel: sociedade brasileira e organização da subjetividade; Mirian
GOLDENBERG, Ser homem, ser mulher: dentro e fora do casamento, entre outros.
343
um “especialista da sensibilidade feminina”, algo valorizado também por outros depoentes
homens e mulheres. A música, para Massimo, ajuda a expressar esta sensibilidade que a maioria
dos homens não conseguia verbalizar ou até demostrar, mas que o artista tinha a capacidade de
fazer. Memórias de um homem pertencente a uma geração que vive num mundo atual em que os
homens já experimentam – não sem dificuldade – a plasticidade dos papéis de gênero. Memórias
que expressam os tempos atuais em que se olha para trás e se percebe nascendo nos anos 50/60,
com aquele ritmo diferente, aquelas letras mais coloquiais e até com o timbre de Chico mais
anasalado e de baixa potência – tão diferente do padrão vocal hegemônico que se tinha até então
– cores de um tempo em que esta desvirilização começava a se fazer presente, se não
explicitamente, pelo menos intuitivamente.
“Eu acho que a época da Bossa Nova foi uma época muito rica da música brasileira, porque em primeiro
lugar surgiram pessoas, compositores fantásticos onde a letra, o conteúdo tinha um valor muito grande
prás pessoas e aquilo foi uma mudança realmente... mudança de ritmo... aquele ritmo.... porque o ritmo que
nós conhecíamos, da musica americana e o ritmo americano e do Caribe, que aquela época tava muito na
moda... aquilo era uma coisa fantástica... musica dançante era tudo aquilo que a gente queria... E ai surgiu
a Bossa Nova, que não era uma musica dançante... era uma musica onde o instrumental era muito forte...
onde os quartetos, os trios eram muito importantes... a música, o som que você tirava....e ai nos final dos
anos 50 e inicio dos 60 surgiram uma infinidade de novas pessoas, aproveitando aquele ritmo. (...) Mas este
movimento foi um movimento que surgiu e começava ali uma nova época... um novo tipo de música....(...)
Eu tenho um carinho enorme de lembrar dessa época... eu tinha terminado o ginásio e tinha passado para o
científico e eu era do Pedro II, um colégio com tradição, cento e tantos anos e a gente tinha um orgulho
enorme de vestir aquele camisa... E eu ia de bonde para o Pedro II, que era no centro da cidade e nós
íamos discutindo dentro do bonde aquela nova letra, nova música da Bossa Nova, época em que o Jorge
Bem entrou no meio e foi uma febre.... aquela ‘Chove chuva, chove sem parar’ e aquela ‘Ô ô ô ô a ria a
aiô, oba, oba, oba’... quer dizer o cara também ele criou um tipo totalmente... era Bossa Nova, mas um tipo
totalmente diferente... inclusive em conteúdo, que fala do cotidiano, o linguajar bem... bem... bem do dia a
dia... Então eu lembro com carinho porque eu lembro de uma época de juventude que a gente procurava
tudo.. o jovem quando descobre a música... ele entra numa .... num.... num ramo de atividade, ele entra com
fervor.. então isso transformou aquela época.. eu era jovem, graças à Deus naquela época...” (Armando)
Armando rememora sua juventude com forte carga de emoção, feliz em poder narrá-las,
em ser chamado a contá-las nos dias de hoje. Ele demostra o carinho que tem por aquela época e
pela oportunidade de falar, trazendo-a de volta. No seu depoimento, põe em destaque uma visão
masculina do mundo que atravessa mudanças operadas por esta promoção do feminino desde os
anos 50, valorizando a sensibilidade e o fato de as mulheres estarem assumindo posições cada
vez mais altas e importantes na sociedade, deixando os homens para trás. Essa postura é assumida
explicitamente em sua memória voluntária. Mas é nos traços involuntários de suas rememorações
que isto é mais facilmente identificado. Quando começa a falar da Bossa Nova
descontraidamente num bar, numa manhã de sábado ensolarada, ele vai a princípio explicando o
344
que foi a época e o que foi o movimento musical com suas inovações rítmicas e melódicas. Sem
querer, ou perceber, ele vai se deixando tomar por uma memória afetiva, passando a se lembrar
de quando ouvia e cantava com os amigos no bonde, indo para o colégio, as músicas que
pareciam representar um tempo que se mostra como o da sensibilidade, que ele não consegue
expressar verbalmente, mas que é possível extrair dos não ditos de seu discurso.
Quando fala que aquela época expressou uma música cujo conteúdo fazia muito sentido
na vida das pessoas, dá a conhecer que aquilo que era cantado lhe afetava, propunha um outro
espírito do tempo que se anunciava. Em seguida, fala de uma mudança de ritmo, que pode ser
interpretada tanto como a de um ritmo musical – que é o que sua memória voluntária busca dizer
– quanto de um novo ritmo afetivo, do tempo interno das sensações, em que as músicas
dançantes, que era o que mais os jovens gostavam, segundo ele, deu lugar à Bossa Nova, uma
música que não era para se dançar, mas para se criar uma outra relação com a escuta. Ele valoriza
o instrumental mesmo sem ter tido qualquer formação musical. O fato de dar mais importância à
parte sonora do que às letras, revela uma escuta atenta que se fixou na memória de maneira
afetiva, mesmo quando fala que “aquele ritmo era...” algo que não consegue colocar em palavras.
Suas memórias, cheias de hesitações e reticências, expressam uma certa dificuldade de
transformar o que lhe vem à mente em linguagem, revelando uma memória do homem que
conviveu e participou deste processo de recrudescimento dos valores tradicionalmente associados
ao masculino para assumir valores mais femininos.
Vejamos uma canção que apresenta aspectos interessantes sobre esta sensibilidade,
romantismo tão propagado pelos memorialistas.
“Se você quer ser minha namorada
Ah! que linda namorada
Você poderia ser
Se quiser ser somente minha
Exatamente esta coisinha
Essa coisa toda minha
Que ninguém mais pode ser
Você tem que me fazer um juramento
De só ter um pensamento
E ser só minha até morrer
E também de não perder este jeitinho
De falar devagarinho
Essas histórias de você
E de repente me fazer muito carinho
E chorar bem de mansinho
Sem ninguém saber por quê
345
E se mais do que minha namorada
Você quer ser minha amada
Minha amada, mas amada pra valer
Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada
Sem a qual se quer morrer
Você tem que vir comigo em meu caminho
E talvez o meu caminho
Seja triste pra você
Os teus olhos tem quer ser só dos meus olhos
Os teus braços o meu ninho no silêncio de depois
E você tem que ser a estrela derradeira
Minha amiga e companheira
No infinito de nós dois”
(Minha namorada 28)
No discurso poético, há uma distinção entre a namorada e a amada, isto é, entre um amor
que pode ser passageiro e momentâneo e o amor eterno, “predestinado”. O discurso é produzido
sobre o desejo que este “eu lírico” masculino tem sobre a mulher, ajudando a caracterizar
também um “dever ser” para ela, construído pelo homem. Enquanto namorada, a mulher deve ser
bela, fiel, mantendo sempre um jeito delicado, frágil e carinhoso. Já como “amada prá valer”, ela
deve ser companheira, amiga, e ainda exclusiva de seu amado e, mais do que isso, tem de ser
forte, para ajudá-lo. De qualquer forma, percebe-se a construção de um relacionamento em que a
mulher deve ser submissa, mas também a “estrela verdadeira”, a “amiga e companheira” do
homem.
Embora circunscreva as funções, os papéis e os espaços delimitados para as mulheres e os
homens, a canção permite vislumbrar cores de uma relação mais igualitária entre homem e
mulher, em que esta última teria suas funções enaltecidas por aquele. Não que a mulher
companheira, “rainha do lar”, já não estivesse presente nos papéis sociais atribuídos aos gêneros
(como também atestam canções mais antigas como Amélia e Emília), mas aqui é uma construção
de uma mulher que é bela, com prevalência para o romantismo, com uma melodia em que estão
presentes notas em ascendência, compondo uma tessitura maior entre elas, ajudando a dar este
cunho lírico à canção. A gravação desta música mais recorrente na memória dos ouvintes
analisados é a de Carlinhos Lyra, um dos autores que é sempre lembrado pelos memorialistas
como alguém “muito lírico”, com um timbre de voz que lembra a de um trovador. Estas
características românticas das canções assumiram um tal grau de evidência que ficaram
registradas na memória da escuta de tantos depoentes.
28
Carlos Lyra e Vinícius de Moraes, 1963.
346
Nesta canção, entre outras coisas, utiliza-se termos diminutivos como “coisinha”,
“jeitinho”, “devagarinho”, “mansinho”, sugerindo uma forma de tratamento carinhosa,
caracterizando a construção da mulher-namorada, a mulher-garota como frágil e necessitada de
proteção. Estas expressões também denotam um aspecto da linguagem musical/poética da Bossa
Nova, com traços cariocas, em que são usadas muitas expressões no diminutivo29. Em outras
canções também tem-se esta “mulher-garota”, a namorada, a menina, a “pequena”, evidenciada
como “garota de Ipanema” uma mulher sensual e bela; um “amor de pequena” que é a “Teresa da
praia”; como a “pequena” que vê o mar com o namorado de mãos dadas; como um “chapeuzinho
de maiô” que ignora o “lobo bobo”.
“Essa mulher por exemplo, a ‘Garota de Ipanema’ é uma garota já... não é uma garota nesse sentido
social, de repente até chamaria ela de mulher objeto. E a outra mulher, você falou, era aquela da ‘minha
namorada’. ‘Minha namorada’ acho que é uma das melhores canções do Vinícius, uma canção
maravilhosa.... E o importante nessa canção é que a mulher... claro que era uma visão ainda épica da
mulher, uma idealização de mulher, uma idealização de que é boa, o que infelizmente não existe, existe só
no começo, no começo, depois a relação vira mais complicada entre homem e mulher, depois de alguns
anos... No começo o que os homens esperam da mulher é isso. Então essa é uma canção do começo de
namoro, é uma canção de começo de namoro, como todos começos de namoro são idealizados. Mas tem
que ser, você tem que acreditar, se não acredita como é que se apaixona ? Não se apaixona nunca. Aquelas
mulheres daquela época... elas já não eram mais assim talvez...Eram... Alguém é aquilo que você imagina
que ele pode ser, entendeu? A idéia é sempre algo com relação ao outro. Na imaginação eu posso ser muito
gentil com uma pessoa que gosto e ser muito chato pra uma pessoa que... mas não é a realidade.”
(Massimo)
Massimo, ao rememorar as canções que tratam das mulheres – mulheres ideais como ele
diz – mostra uma operação de reflexão e de crítica sobre aquelas construções masculinas sobre o
feminino. Ele procura ressaltar que era uma visão “ainda épica”, algo que ainda estava presente
naqueles tempos mas que hoje não existe mais. Ele identifica uma mudança entre os tempos em
que se acreditava na inocência e na visão idealizada da mulher e um tempo em que se reconhece
as dificuldades dos relacionamentos homem/mulher, em que a visão da “minha namorada” é
apenas fruto do encantamento do início do namoro, da relação, necessária inclusive para que a
paixão aconteça. Mostra, assim, uma memória que tenta fazer uma crítica àquela forma como as
construções femininas na Bossa Nova eram feitas, asseverando porém, que era uma visão da
época e que, de alguma forma, se relativizada, mantém-se atual, assegurando a crença no amor,
na paixão e no encontro. Memórias fruto de uma experiência marcada pelas dificuldades
29
Augusto de CAMPOS, Balanço da Bossa e outras bossas: antologia crítica da moderna música popular brasileira.
347
encontradas nas relações entre os gêneros, em que os papéis modificam-se, perdem-se e se
transformam.
“dizem que a Bossa Nova falava muito da mulher, uma mulher muito muda, que vai ser minha namorada,
quietinha no seu lugar. Mas pra mim não. Não tinha essa crítica assim, não. Achava tudo lindo, adorava.
Era uma coisa muito romântica. Não tinha essa crítica assim sobre o fato de falar da mulher. Quer dizer, a
não ser agora, você olhando pra trás, né? Eu sou fã do Vinícius até hoje.” (Rita)
Rita também procura relativizar aquela visão da mulher existente na Bossa Nova, tentando
achar, no movimento de olhar para trás, uma crítica que, segundo ela, naquela época não havia ou
estava esmaecida pelo tom romântico, belo, inocente, utópico que a canção possuía ao olhar para
os relacionamentos homem/mulher. Lembranças de escutas, que ambos os narradores nos contam
e que apontam para o fato de que as mudanças ainda eram apenas pressentidas no início dos anos
60 no que tange aos relacionamentos homem/mulher. Mas que, hoje, ao serem relembradas em
trama com as canções que falavam sobre o assunto, apontam para uma série de estratégias e
táticas que foram ou que tiveram de ser moldadas na longa trajetória destes sujeitos na suas
construções como homens e mulheres ao longo destas décadas de transformação. O fato de
destacar que ainda hoje é fã de Vinícius de Moraes, longe de demonstrar sua escuta acrítica da
música, desvenda o fato de Rita olhar para o passado, com olhos presentes, percebendo os
movimentos do tempo, mas fazendo uma apreciação que reconhece naquela escuta e na de hoje o
tom ainda necessário de romantismo ou de credulidade que parece ter se perdido ou se
modificado a tal ponto que se pensa que não existe mais.
Giddens lembra que um dos grandes elementos que passaram a fazer parte da vida privada
nas culturas ocidentais, regendo aspectos do mundo doméstico e da subjetividade, foi o ideal de
“amor romântico”. Este amor romântico era essencialmente um amor feminilizado, uma tarefa,
um aspecto do mundo feminino, o que serviu tanto para subordiná-las no lar, no espaço privado,
isoladas do exterior, como também para, de alguma forma, dar-lhes um poder, uma “asserção
contraditória da autonomia diante da privação” 30. Se entre os homens o amor romântico era algo
mais distante, pertencente a um domínio que não lhes dizia respeito, referindo-se ao mundo
doméstico, à família, sendo um amor respeitável à mãe de seus filhos – em que a paixão
expressava-se majoritariamente fora deste âmbito –, entre as mulheres a associação entre os
ideais do amor romântico e da maternidade permitiu-lhes o desenvolvimento de novos domínios
30
Idem, op cit., p. 54.
348
da intimidade. Dito de outro modo, entre os homens foi-se esvaindo a qualidade e a profundidade
das relações de camaradagem entre pares, no sentido de trocas e de fortalecimento de
subjetividades, sobrando apenas as relações que se dão nas disputas, esportes, ou na guerra. Já
entre as mulheres ocorreu o inverso, pois, majoritariamente voltadas para as questões subjetivas,
ou domésticas, estabeleceram entre si ligações de profundidade nas confidências, nos trabalhos
manuais em conjunto, ajudando a elaborar frustrações, perdas, desapontamentos, paixões,
amores, dores, enfim, ajudando a elaborarem uma narrativa de suas subjetividades e adentrarem
com mais facilidade no reino da intimidade.
Entre os muitos depoimentos coletados para esta pesquisa, algo foi revelador das
diferenças homem/mulher: as diferenças nas maneiras de rememorar e falar sobre si. Desde as
primeiras abordagens, por telefone ou não, antes das gravações dos depoimentos, as mulheres se
mostraram muito mais acessíveis, dispostas a falar, a lembrar, a falar de questões estritamente
pessoais e privadas, entregando-se tantas vezes ao ato da memória, emocionando-se, chorando,
rindo. Elas deixaram de lado com mais facilidade que os homens a questão da Bossa Nova e de
ter que falar racionalmente sobre o assunto, para falarem de suas experiências vividas, sentidas,
lembradas ou esquecidas.
Entre os homens isto deu-se de maneira diferente. Eles muitas vezes ficaram reticentes em
aceitar falar por acharem que não são especialistas em música (embora fosse exaustivamente
explicado que não era este o objetivo da tese), o que, segundo eles, impediria qualquer tipo de
contribuição. Outros, mais prontamente aceitaram o desafio, mas na maioria das vezes, não
conseguiram deixar a posição mais distanciada da análise racional sobre a Bossa Nova e a época
em que ocorreu, contando elementos da história oficial, dos “50 anos em 5” de JK, a
efervescência cultural da época, os aspectos musicais, as curiosidades sobre o movimento e seus
artistas, leitores que foram – quase todos – do livro Chega de saudade, de Ruy Castro. Mesmo
quando conseguiam falar de si, o que se percebia era muita hesitação, não por má vontade ou
falta de confiança, mas por notória dificuldade em elaborar questões relativas às suas
subjetividades. Um deles, em tom muito irônico e despojado, comentou, ao final da gravação, que
“achou que iria falar de Bossa Nova”, mas que a pesquisadora, “de maneira subliminar conseguiu
arrancar” questões de sua vida. Claro que aqui deve-se considerar que a pesquisadora era uma
mulher e desconhecida de todos os depoentes. Porém, não se pode deixar de reconhecer este traço
349
característico do mundo masculino, da racionalidade, da explicação dos fatos e da postura que
busca uma distância segura do contato com o mundo interior.
As falas de Armando e de Massimo vistas acima, com suas pausas e reticências, revelam
uma característica do masculino em nossa sociedade que, embora valorize a sensibilidade, os
valores femininos e se esforcem para uma relação mais igualitária entre os sexos, tem dificuldade
em elaborar narrativas sobre seu mundo interior, falando muito bem e com desenvoltura dos
aspectos da vida pública. Suas memórias, ainda mais, deixam perceber que há, sim, uma
valorização das sensibilidades, expressas nas formas como se lembram das canções e da época da
Bossa Nova como um tempo em que estas coisas estavam sendo germinadas, pelo menos para
eles e sua geração. É possível inferir que as mulheres têm maior habilidade em falar de si, não
por serem mais sensíveis, mas por terem ensaiado isso por toda a vida como resultado das muitas
horas de conversas, confidências, trocas de anseios, dificuldades, sentimentos que as meninas
travam desde cedo entre si – algo que, entre os homens, não constituiu-se como prática comum.
Interessante indicar um estudo realizado por Maria Isabel Mendes de Almeida sobre a
subjetividade masculina.31 Trata-se de um trabalho no campo das Ciências Sociais, em que a
autora buscou entrevistar homens de meia idade das camadas médias cariocas a fim de identificar
traços dos tempos coloniais permanentes na subjetividade destes homens modernos. Uma de suas
considerações, diz respeito à falta de titubeio, hesitações, sentimentos de dúvida, gagueiras ou
silêncios que estes homens demonstravam ao falar de suas questões mais íntimas e pessoais. A
fluência nas palavras e opiniões sobre variados assuntos, num “livre fluxo” da narrativa sem
qualquer traço de constrangimento ou mal-estar, foi considerado pela pesquisadora como uma
estratégia reveladora da fragilidade ou quase ausência de linhas divisórias entre o público e o
privado como uma falta de comedimento e discrição que pudessem protegê-los de expor sua
subjetividade.
O que a pesquisadora pôde concluir é que esta aparente falta de hesitação e de resguardo
da subjetividade e intimidade funcionava muito mais como uma máscara de proteção e disfarce,
do que era mais profundo associado a uma falta de habilidade ou familiaridade em conviver
consigo mesmo, onde o “estardalhaço” verbal a que recorriam funcionava como um tampão. A
ausência de hesitação se relacionaria com uma “referência de externalidade ou exo-referência” na
31
Maria Isabel Mendes de ALMEIDA, Masculino/Feminino - tensão insolúvel: sociedade brasileira e organização da
subjetividade.
350
construção do processo de subjetividade masculina, no qual o que era falado sem travas eram
elementos periféricos e superficiais da intimidade e do mundo interior. O uso da ironia, do
sarcasmo e do fluxo incontrolável da fala sobre a intimidade mostram-se como estratégias para
mascarar e não expor a densidade desta mesma intimidade.
A fala destes homens analisados por Maria Isabel Almeida não se encontra tão distante da
dos entrevistados desta pesquisa. Embora os primeiros demonstrem facilidade em falar de si
mesmos, ao contrário dos aqui entrevistados, que mostraram-se mais resguardados e distantes, o
mecanismo de contato, de elaboração e de externalização da intimidade e da subjetividade são os
mesmos: em ambos existe uma pouca familiaridade em constituir o mundo interior da mesma
maneira que as mulheres. A isso não se atribui uma negatividade em si, mas a deflagração de uma
diferença crucial em termos da construção de gênero. A maioria dos meus entrevistados
concordava que a questão da sensibilidade seria mais afeita ao feminino, mas também esboçavam
a necessidade em tomar contato com esta forma de ser, em assumir posturas antes imaginadas
como essenciais e restritas apenas ao mundo das mulheres. Nas suas memórias, de modo mais
forte, ficou presente a noção de que estas mudanças começaram a se desenhar nos anos 50 e 60,
pressentidas por eles hoje ou ainda naquela época, de maneira racional ou não.
Verifica-se naquele momento a emergência ou a promoção dos valores e da presença
feminina no social, estando nos discursos da imprensa, na publicidade, nas canções. Não que em
outros momentos esta presença já não se tenha dado, como descreve Denise Sant’anna32.
Segundo ela, desde o início do século XX já existia uma intensa publicidade voltada para a
mulher e para o embelezamento feminino. Esta permanência tem-se modificado, o que leva a se
concluir que a presença feminina na imprensa e como público receptor de produtos – simbólicos
ou não – possui uma história. Desta forma, há que se pensar nas especificidades dos anos 50 e 60.
A década de 50 é o momento em que uma cultura norte-americana começa a penetrar no
país cada vez mais fortemente, influenciando a publicidade, a imprensa e os discursos
normativos. São inúmeras as revistas femininas que passam a circular neste período, entre elas
Querida e Capricho, e mais adiante Cláudia e outras. Mesmo nas revistas de variedades, como
Cruzeiro e Manchete, e em jornais como o Última Hora, há cada vez maior espaço para matérias
de interesse feminino, como conselhos de beleza, culinária e mesmo conselhos sentimentais, tudo
32
Cf. Denise Bernuzzi SANT’ANNA, Propaganda e história: antigos problemas, novas questões. Projeto História,
n.14, 1997, pp.89-112. E também ____ Cuidados de si e embelezamento feminino: fragmentos para uma história do
corpo no Brasil. In: ____ (Org.), Políticas do corpo: elementos para uma história das práticas corporais, s.d.
351
isso compondo um mundo feminino. Se por um lado há um ideal de modernidade buscado nos
anos 50 e início dos 60 pela imprensa e pelos discursos mais gerais da sociedade (inclusive na
política, economia, nas artes), por outro lado há realmente uma intensificação de recursos
modernos usados pelos meios de comunicação, com o emprego das imagens, da fotografia e da
cor, mudanças advindas principalmente da escola americana de publicidade. Da mesma forma,
estava ocorrendo também uma remodelação no discurso que falava à mulher, em que os
conselhos de beleza, por exemplo, já não tratavam o assunto como acessório à saúde, discutindo a
sua falta com longos discursos médicos. Passa a surgir uma noção de glamour e de
“modernidade” que permeiam este novo discurso, destacando um falar direto “de mulher para
mulher”, num tom mais informal e descontraído, não mais como a mediação médica. O discurso
modifica-se e sua preponderância e abrangência também. Os conselhos são dados por belas
mulheres ligadas ao mundo artístico, como as estrelas de cinema.
O que se busca aqui é pensar na escuta de canções, algo difundido pelos agentes culturais
e as estruturações de seus campos num momento que se relaciona com a posterior consolidação
de um “mercado de bens simbólicos”33 no Brasil. É importante considerar estas modificações que
se travam na publicidade, na imprensa, no campo da cultura e, de uma maneira mais geral, no
cotidiano, traduzida por esta promoção de valores femininos com uma paulatina constituição de
uma mulher-sujeito.
Convém refletir um pouco mais sobre esta questão da beleza associada ao feminino.
Segundo Lipovetsky34, a beleza não tem os mesmos sentidos no masculino e no feminino. Nos
discursos, na cultura de massas, nas variadas linguagens artísticas, a mulher é identificada como
sendo o “belo sexo”. Esta articulação é uma construção histórica. Nem sempre as mulheres foram
vistas assim, sendo este culto à sua beleza algo que remonta ao alvorecer dos tempos modernos
no ocidente. Antes disso, ela era assimilada como ser perigoso, pérfido, diabólico; não era
exaltada em sua beleza, mas tinha nela seu elemento de sedução, armadilha. É a partir da
Renascença, que se começa a perceber a invenção do “belo sexo”, com a exaltação da mulher
em função dessa sua qualidade que a tornaria um ser adorado e venerado por seus atributos
físicos e espirituais.
33
34
Renato ORTIZ, A moderna tradição brasileira, passim.
Gilles LIPOVETSKY, A terceira mulher: permanência e revolução do feminino.
352
A mulher foi assumindo uma nova posição, ainda que simbólica, exprimindo uma nova
diferenciação entre os sexos, apesar dessa diferenciação ocorrer dentro de uma hierarquia, com a
mulher assumindo direito às homenagens e à notoriedade social, mesmo que para apenas afirmar
seu lugar social. Vai-se operando, assim, por meio da veneração da beleza feminina, uma certa
aproximação entre os gêneros, quando a mulher passa a ser vista como mais próxima, amiga,
companheira, e não mais como maligna e diabólica, o que é próprio à dinâmica da modernidade
que começou a postular para ela a possibilidade de se firmar como sujeito.
Com a expansão do capitalismo e da cultura de massas, a promoção do ideário do belo
sexo foi acompanhado de uma lógica normativa e prescritiva, em que a imprensa feminina teve
papel importante ao difundir modelos estéticos que se inseririam no cotidiano das mulheres. O
discurso sobre a beleza nas revistas dos anos 50 não parte mais dos poetas ou dos médicos,
assume um tom direto, dinâmico, aberto a quem quiser ler, deixando de ser algo propagado em
segredo entre as mulheres, como uma certa mágica passada de mãe para filha, mas algo a serviço
e à disposição de todas, ligado, é claro ao consumismo dos cosméticos e produtos de beleza, aos
prazeres narcísicos da sedução, da busca pela juventude. A maquiagem, por exemplo, deixa de
ser encarada como restrita às coquetes e às mulheres de reputação duvidosa para estar a serviço
de moças e senhoras que queiram permanecer belas, jovens, mantendo o casamento com seus
encantos, evidenciando a legitimação do consumo feminino em busca da beleza. Segundo
Lipovetsky, a cultura da beleza feminina enveredou, a partir daí, pelo caminho do voluntarismo
moderno, cuja característica é a recusa da acomodação às realidades recebidas da natureza, pois a
beleza é algo a ser conquistado e mantido.35
Merli Leal Silva, ao analisar a publicidade e os papéis de gênero, mostrando a construção
de mulheres e homens nas campanhas publicitárias e na imprensa especializada, ressalta a
desigualdade entre gêneros que aí se expressa, argumentando que isto pode ser melhor
compreendido por meio da análise dos papéis socialmente confiados a mulheres e homens. A
publicidade ajuda a refletir a forma como os padrões estabelecidos socialmente estão instaurados,
uma vez que não é sua função criar conflitos sociais, mas vender produtos a um número cada vez
maior de pessoas. Segundo a autora, aparece na imprensa dirigida às mulheres a recorrência de
temas ligados à culinária, decoração, embelezamento, cuidado com os filhos, agrados ao marido,
enfim, temas relacionados a formas de proporcionar prazer aos outros, sendo o “sucesso feminino
35
Idem.
353
algo vicário”36, vivido em função dos outros. Surgem, desta forma, os comportamentos
“naturalmente” masculinos (força, decisão, racionalidade, liberdade) e os comportamentos
femininos (submissão, fragilidade, indecisão, dependência, emocionalidade, instinto). Também
Dulcilia Buitoni37, ao estudar as construções do gênero feminino nos meios de comunicação,
atenta para as “distorções” da mídia e dos seus discursos, agudizando o papel formador da
imprensa sobre as mulheres e seu poder de convencimento, destacando padrões e papéis
prescritos e seu fraco potencial informativo, geralmente tratando do papel tradicional legado à
mulher: esposa, mãe, dona de casa ou jovem à procura do amor.
Porém, é necessário relativizar este tipo de abordagem. Por volta dos anos 40 e 50, surge,
na imprensa feminina, um discurso sobre a mulher e sua beleza com sentidos um pouco
diferentes do que se tinha até então. Se as revistas destinadas às mulheres reforçavam um papel
prescrito, normatizando massivamente estes padrões, elas também têm outra face de ação, quando
promoviam a individualidade e personalidade do eu feminino, elevando-as à categoria de sujeito,
numa apropriação estética de si. Ao mesmo tempo, por esta época, é possível identificar um novo
jeito de representar esta beleza feminina, em que seu ser maléfico, anjo ou demônio, é substituído
por um ideal de mulher bela e sedutora sem ser perversa, numa construção que começa a
reconciliar a aparência erótica e a generosidade, o sex-appeal e alma pura, elementos antes
polarizados. Esta representação foi feita pela figura das pin-ups, cuja imagem inunda as páginas
das revistas, as fotografias de publicidade e o cinema, difundindo este imaginário de uma nova
mulher, em que a sedução conjuga-se com a jovialidade, o bom humor, a leveza, a vitalidade. Um
“erotismo cotidiano”38 que se instaura em que a mulher dita moderna é sexualizada e sedutora,
mas busca o amor, o companheiro ideal, a felicidade. A sedução feminina passa a incorporar
assim, uma beleza sexy direta, des-sublimada, desinibida, natural, evidenciada por saias curtas,
corpos esbeltos, jovens, dinâmicos e esportivos, articulando sensualidade e inocência, erotismo e
alegria.
Nas canções da Bossa Nova, isso é evidenciado, apontando para um falar das mulheres e
seus atributos físicos, seu jeito, sua feminilidade. Isso não era novo, pois o samba, o sambacanção, e a própria tradição da canção – desde os trovadores medievais - que precedeu a Bossa
36
Merli Leal SILVA, Publicidade e papéis de gênero. In: Revista Famecos (Prog. de Pós-Graduação em
Comunicação da PUC/RS), n.10.
37
Dulcilia S. BUITONI, Mulher de Papel.
38
Edgar MORIN, A promoção dos valores femininos. In : _____ Cultura de massas no século XX: o espírito do
tempo I - Neurose.
354
Nova também tinham o tema da mulher como um dos seus principais centros narrativo. Mas, na
Bossa Nova, particularmente, este tema reclama para si uma “modernidade”, um jeito novo de
olhar a mulher, um jeito moderno e não arcaico, como está tão presente na memória de seus
autores fundadores. Porém, deve-se que compreender que muito desta “modernidade” desejada,
foi construída na tentativa de diferenciar-se dos seus precedentes que, em parte, estava apenas
transformando o discurso em algo mais em consonância com uma emergência e valorização do
feminino na sociedade.
“Eu não sei se naquela época era uma nova visão da mulher, ou se foi uma visão nossa da mulher, porque
como os compositores eram mais velhos naquela época, se você pegar Caymmi, Fernando Lobo, Ary
Barroso, os antigos, que já tinham passado, eles tinham o olho diferente. Então nós tínhamos uma visão
mais romântica da coisa; nós víamos a namorada de um jeito mais romântico, não era a pecadora, a
ingrata, a perfídia. Sabe, era diferente .... era otimista ... era otimista. Nós queríamos cantar a nossa
39
namorada ... antes que os outros cantassem.” (Lula Freire ) (grifos meus)
A lembrança do compositor registra que a mulher construída na Bossa Nova era a
namorada, a garota posta dentro de uma visão romântica sobre a mulher que era “nossa”, isto é,
dos bossanovistas. Essas canções constróem a imagem de que nos compositores dos sambas e
sambas-canções mais antigos a mulher e sua sensualidade estavam vinculadas à perdição, à
perfidez e à ingratidão, o que não aconteceria na Bossa Nova, com seu discurso romântico, em
que falar a namorada, a amada, assume a conotação de um ideal de amor romântico que se
espalhava nos anos 50, valorizado pelos meios de comunicação pelas revistas e pelo cinema.40
Lula Freire identifica-se como sendo, à época da Bossa Nova, um rapaz pertencente a um grupo
de jovens “sem engajamento nenhum”, cuja única preocupação era o “amor, o sorriso e a flor”,
em que o jovem “tinha que estar na praia e tinha que ter aquela vida leve que é do Rio de Janeiro,
aquela leveza do Rio de Janeiro, que é a cara da Bossa Nova”, numa alusão ao cotidiano que quer
assumir como seu e de sua geração.
A sensualidade da mulher mostra-se na Bossa Nova como não-vulgar, mas ligada a uma
certa ousadia comportamental, a uma modernidade nas formas de ser e agir. Por outro lado, nos
discursos masculinos feitos sobre as mulheres no samba-canção, a sensualidade é articulada à
perdição, à busca da liberdade e satisfação para seus desejos mais ocultos, em que a mulher opta
39
Depoimento concedido no dia 26/02/96, em São Paulo.
Carla BASSANEZI, Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações homem-mulher,
1945-1964, p.63.
40
355
por um mundo de prazeres com outros homens, em detrimento do par amoroso-familiar. Nessas
composições, entende-se a essência feminina como infiel, não confiável, traidora e pecadora. Na
Bossa Nova, embora as mulheres sejam mais valorizadas – ao tê-las como inspiração para as
canções, em que seriam construídas de maneira “moderna” e não como “os antigos, que
passaram” – o resultado é uma construção de um modelo ideal, uma musa que inspira mas não
participa do movimento e da vida pública. Isto revela tanto quanto encobre visões inovadoras
sobre as mulheres, especificando o lugar que deveriam ocupar no social, não devendo pertencer
ao ambiente musical/artístico, mas ser apenas a musa que inspira, contempla e não participa.
A estética perfeita era muitas vezes o mote para as canções, numa valorização da beleza,
ideário no qual repousava várias músicas da Bossa Nova. Essa exaltação à beleza da mulher,
acontecia em um momento em que vários meios culturais confirmavam e ajudavam a construir
este imaginário, com as revistas de variedades Cruzeiro ou Fatos & Fotos, que traziam inúmeras
reportagens sobre os concursos de Miss Brasil e Miss Universo, destacando o sucesso das
brasileiras, afirmando sempre uma imagem positiva do Brasil no exterior, priorizando o estigma
do “país das mulheres bonitas”, num primeiro momento, e mais adiante, o “país da Garota de
Ipanema”.
A valorização do corpo, para além do rosto bonito, presente na Bossa Nova, se relaciona
com o hábito que se instaurava naquela época, de freqüentar praias e expor o corpo ao sol. O falar
da beleza concentra-se não apenas na mulher-musa, mas também na construção de outra musa,
exaltada como bela: a cidade do Rio de Janeiro, cuja referência é feita muitas vezes em função da
mulher e de seu corpo, como quando diz-se que o “Rio é lua amiga, branca e nua”, ou quando se
fala que a cidade é o “Rio da mulher-beleza”. Fica claro, quando isso acontece, que a musa pode
ser tanto a mulher quanto a cidade, compondo um imaginário que se difunde – não apenas com a
Bossa Nova –, associando a geografia da cidade ao corpo feminino e a sua sensualidade.
A beleza da mulher é destacada por meio do seu “balanço”, da sua capacidade de sedução,
do seu charme. Presente de diversas formas nas canções, vê-se em muitos momentos esta
sensualidade valorizada, admirada e positivada. Este balanço é visto no seu modo de dançar de
acordo com o balanço do mar, o que a faz persuadir os homens, estabelecendo uma relação entre
a música e o meio urbano, mulher e mar. Em Garota de Ipanema, o homem tem consciência de
que toda esta beleza não tem um único dono, não pertence a ninguém, mas ao “mundo”. Percebe-
356
se nessa canção a ausência de uma intenção de domínio, uma vez que a beleza “passa sozinha”,
independente numa atitude que insinua um elemento de liberalização da mulher.
Na sua acepção mais freqüente, que insinua uma fascinação, um deslumbramento, a
capacidade de sedução da mulher representada nesta canção, surge em seu sentido estético e
sensual, contrário a um procedimento pérfido de dominação da mulher sobre o homem. Este
aspecto estético, diz respeito “ao despertar ou refinar de uma sensibilidade”41, articulando-se
sedução à sexualidade fora do contexto moral. Na Bossa Nova, a sedução possibilita o encontro,
o relacionamento e o amor bilateral, tornando-se algo positivo.
Em Garota de Ipanema estão presentes aspectos desta construção que faz da canção um
veículo eficaz na expressão de uma genialidade sedutora. Renato Mezan chama esta capacidade
de sedução de “genialidade erótica”, mostrando que a forma artística mais adequada para
exprimi-la é a música, sendo ela, das artes, a “que mais se afasta da reflexão da linguagem e a
única que se desdobra na sucessão, tornando-se assim, apta a expressar o movimento e a
imediatez próprias à genialidade sensual.”
42
Sob outro aspecto, a capacidade de sedução faz
ainda os homens entenderem que a beleza não pertence a ninguém. Esta mesma construção de
liberalização da mulher é feita em Teresa da praia, em que a disputa pela bela garota termina
quando se conclui que ela “não é de ninguém”. Ela pertence a praia (como a garota de Ipanema,
que não é só do seu autor, mas do “mundo”). Em Teresa da praia, está presente um componente
tradicional do imaginário masculino, que é o da camaradagem, do companheirismo, da amizade e
da solidariedade entre os homens, elementos que devem ser preservados, uma vez que a mulher
se mostra como alguém volúvel e instável, que passou o verão com um, e o inverno com outro.
Ao se falar sobre a mulher-musa, com seu charme, beleza, sensualidade, o homem colocase numa posição de admirador, alguém que espera identificar o sentimento de sua amada. Em
Este seu olhar, está presente um desejo de saber decifrar a mensagem emitida através dos olhos
da mulher, uma vez que estes trazem a ilusão do amor que se quer correspondido. Esse olhar
“fala de umas coisas que não posso acreditar”, diz o compositor. O homem, nessa canção, é o
sujeito da ação, o sujeito amoroso, aquele que sente e por isso age; mas que no entanto, aguarda
a atuação da mulher, posto que ela é quem tem o controle da situação. O homem aguarda uma
definição de sua amada, colocando-se em posição inferior.
41
42
Cf. Renato MEZAN, A sombra de Don Juan e outros ensaios, p.26.
Idem, Op. cit., p.15.
357
Este amor construído nas canções, muitas vezes impossível, difícil ou até platônico,
possui como uma de suas características uma alternância rítmica entre o ter e o não-ter. Segundo
Georg Simmel, isto está na base das relações em que o objeto é uma mulher e o sujeito um
homem, e o valor da aquisição advém não só da dificuldade em alcançá-la, mas dos movimentos
ondulatórios do coquetismo, caracterizado pelo “despertar do prazer por uma antítese/síntese
original, por meio da alternância ou concomitância de atenções ou ausência de atenções, entrega
e recusa”43. Este olhar que fala de coisas indecifráveis, bem como o requebrar e o andar
balanceado – uma exposição do corpo mantendo ao mesmo tempo a reserva, simbolizando o
gesto de se voltar para se desviar em seguida, ritmando uma alternância contínua – estão na base
deste comportamento coquete feminino, em que há um esquivar-se pelo olhar e maneiras furtivas
de se dar, sem lançar mão do segredo, do disfarce, do uso de subterfúgios, da indefinição. Uma
decisão definitiva põe fim à arte do coquetismo, em que sim e não estão intimamente ligados,
compondo táticas e formas de manipular sedutoras, numa demonstração de poder. A recusa,
mesmo que mascarada, não completamente verdadeira ou assumida, é vista na cultura patriarcal
como um atributo e até uma prerrogativa feminina, constituindo-se como um de seus poderes. Já
entre os homens, a recusa de uma mulher que vai ao seu encontro é mais difícil, penosa, contendo
algo de não-cavalheiresco, sendo censurável e até objeto de questionamento de sua
masculinidade.
O mundo masculino, tantas vezes retratado como o da audácia, da conquista, da coragem,
da honra na construção da identidade social masculina e dentro da canção popular brasileira,
aparece na Bossa Nova como indefeso, fraco e angustiado, em que o espaço poético e musical
coloca-se como uma das poucas instâncias nas quais os homens permitem-se falar e expor sobre
seus sentimentos em relação ao sexo oposto.44 Coloca-se em pauta, neste discurso poéticomusical da Bossa Nova, um homem que não tem vergonha de se mostrar frágil.
Esta nova construção social da beleza e do feminino acabaram por contribuir para um
imaginário mais igualitário de relações entre os gêneros, em que a mulher deixava de ser vista
como o demônio que levava à perdição, a metade perigosa do mundo em essência, numa espécie
de ontologia do ser feminino, passando a ser cada vez mais encarada como o outro que é
próximo, a companheira, a amiga, num paulatino recuo da alteridade anuladora do feminino,
43
44
Georg SIMMEL, Psicologia do coquetismo. In: _____ Filosofia do amor. p. 95.
Ruben George OLIVEN, A mulher faz e desfaz o homem. Ciência Hoje, v.7, n.37, p.54-62,1987.
358
permitindo relações entre homens e mulheres que buscam a igualdade e a não hierarquização. Um
processo ao qual não só se assiste como se participa até os dias de hoje.
Claro que as relações entre homens e mulheres não se estabeleceram assim pura e
simplesmente nas práticas cotidianas ainda nos anos 50 e 60. Nem mesmo hoje é possível afirmar
essa igualdade de forma tão decisiva, mas, de qualquer forma, ali já se apontava um imaginário
que construía desta maneira os papéis de gênero e as relações entre eles, o que leva a uma
reflexão sobre os discursos que eram construídos na época e que tinham a ver com mudanças
efetivas na sociedade no que tange às relações homem-mulher.
A promoção dos valores femininos e a intensa movimentação dos movimentos feministas
dos últimos 30 anos transformou aspectos da dinâmica de encontro e desencontro entre os sexos.
Segundo Maria Rita Kehl, “os significantes do masculino e do feminino” deslocaram-se a tal
ponto que vê-se muitas vezes hoje caber aos homens o papel de “narcisos frígidos e às mulheres o
de desejantes sempre insatisfeitas”45. Muitas vezes eles se colocam aterrados, frágeis diante da
audácia do desejo feminino que até poucas gerações atrás faziam das investidas do desejo
masculino o mote para o coquetismo, que hoje, freqüente e ironicamente, parece estar invertido.
A questão da masculinidade vem gerando debates, pesquisas, reflexões em algumas áreas
do conhecimento, mais notadamente na Psicologia e Psicanálise. Segundo Sócrates Nolasco, os
discursos da mídia e outros corroboram para a visão de que o homem está mudando, o que
significa, para o autor, a idéia de uma “autorização social” para que ele possa sentir, comportar-se
ou participar de atividades até então consideradas estritamente femininas, entrando em contato
com situações e sensações que até décadas atrás lhes eram interditas. Analisando Grupos de
Homens que se reúnem para trocar experiências e angústias em relação ao novo papel das
mulheres, como também deles próprios na atualidade e o esgotamento do modelo masculino
construído culturalmente, o autor atenta para o fato de que eles têm procurado compreender como
fazem suas escolhas profissionais e amorosas e questionar preceitos como a agressividade, o
poder, a força, a competitividade e a racionalidade que se constituíram como características
essenciais do masculino. Esse indivíduos se mostram “à procura da humanização do seu papel
social e da aquisição de uma linguagem afetiva para suas vidas”.46
45
46
Maria Rita KEHL, A mínima diferença: masculino e feminino na cultura, p.19.
Sócrates NOLASCO, O mito da masculinidade, p.25.
359
Mesmo sem querer reduzir esta busca dos homens a uma mera contrapartida ao
movimento das mulheres, não se pode negar que este processo de emancipação feminina gerou e
gera crises no mundo masculino, fazendo-os repensar os modelos, as “verdades” e as essências
do que se tornou corrente afirmar como sendo masculinas. O momento atual revela uma crise de
todos os modelos, tanto masculinos quanto femininos.
Bossa Nova entre homens e mulheres
As letras das canções da Bossa Nova destacaram um aspecto importante e recorrente na
música popular brasileira: a questão da musa-mulher. A possibilidade de ser cantada da música
popular – diferentemente da música erudita – bem como a possibilidade de várias interpretações
desse cantar, remete-se a um sentido metafórico que seria o cortejar e seduzir, usando-se assim, a
linguagem do canto sobre o amor.47
A freqüente aparição da mulher nas letras e no ideário da música popular brasileira
contrasta muitas vezes com a pouca participação e com as restrições impostas àquelas que
participavam do ambiente musical como autoras ou intérpretes. No próprio movimento da Bossa
Nova, a vantagem numérica é dos homens. Nas inúmeras reuniões que aconteciam nos
apartamentos dos jovens músicos, a grande maioria dos participantes era de rapazes, entre eles
Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, Carlinhos Lyra, Oscar Castro Neves, Luiz Carlos Vinhas,
Chico Feitosa, e tantos outros. Dentre as canções compostas ali, ou ali apresentadas, não se
encontra nenhuma composta por mulheres. Entre as poucas que cantavam, muitas ainda não o
faziam profissionalmente, enfrentando para isso adversidades e restrições de ordem familiar.
Ausentes na composição e em parte na perfomance musical, elas estavam fortemente presentes
no conteúdo da grande maioria das canções.
Os homens, ao fazerem das mulheres o mote de suas canções, constróem um discurso
masculino sobre o feminino, por meio do qual o sujeito que fala constrói e representa a sua
realidade social e organiza suas relações consigo mesmo e com os outros. Na Bossa Nova, esse
discurso se mostra como uma construção que acentua uma certa internalização de regras,
preceitos e subjetividades que circulam no meio social, e que no momento em que transformam
em canção passam a difundir formas de ser e de agir e, neste caso em particular, olhar para a
47
Eliane Robert MORAES, A musa popular brasileira. In: BARROSO, Carmem e COSTA, Albertina O. Mulher,
mulheres. São Paulo : Cortez, Fund. Carlos Chagas, 1983. p.56.
360
mulher. A investigação sobre estes discursos não representa apenas o homem/autor individual,
mas permite pensar também sobre suas relações com os outros/outras. 48
Mas como este falar sobre a mulher – de uma maneira que se queria inovadora – era
recebido, percebido e escutado pelos ouvintes, homens e mulheres, da Bossa Nova? Refere-se
aqui aos ouvintes anônimos, às muitas moças e rapazes que freqüentavam os shows nas
universidades cariocas, ouviam-na no rádio e nos discos. A busca, portanto, é pela construção
memorial destes homens e mulheres num esforço para interpretar a escuta que elaboravam desta
“nova” música, deste “novo” movimento musical que se propunha moderno, diferente, falando de
formas de relacionamento homem/mulher que pareciam mais liberais, mais otimistas, com o
“amor, o sorriso e a flor”, falando de “um chapeuzinho de maiô” que “traz um lobo na coleira que
não janta nunca mais”, ou ainda de uma garota de Ipanema dona de uma beleza que não é de
ninguém e que “passa sozinha”.
Nas memórias de outro autor da Bossa Nova, Ronaldo Bôscoli, estão presentes as
lembranças de quando conheceu Nara Leão (que foi sua namorada e noiva), em seu famoso
apartamento na Avenida Atlântica. Segundo ele, ali se deu o “encontro do poeta com sua musa”.
“Hoje, lembrando da cena, percebo nitidamente o fascínio e o encantamento que Nara me causou na
segunda vez em que a vi. Um impacto. Me senti o próprio Adão diante do pecado original. (...) Mas já era
tarde, Nara tomou meu coração. Tremendo lobo bobo, com anos de estrada, já trazendo desencantos de
amores tantos (como disse na música que fiz para ela, Se é tarde, me perdoa), me apaixonei inteiramente
por aquela menininha. (...) Para Nara, fiz a canção que melhor retrata a situação que vivi com ela : ‘Lobo
49
bobo’”.
Nara, musa desta canção composta em parceria com Carlinhos Lyra em 1957, inspiradora
dos versos de Bôscoli, é o modelo de uma mulher ideal, este “chapeuzinho de maiô” que vai à
praia, é sensual e domina sutilmente o homem.
“Era uma vez um Lobo Mau
Que resolveu jantar alguém
Estava sem vintém
Mas arriscou
E logo se estrepou
Um Chapeuzinho de maiô
Ouviu buzina e não parou
Mas Lobo Mau insiste
E faz cara de triste
48
Reinaldo ORTIZ, Discursos masculinos. In: Sócrates NOLASCO (Org.), A desconstrução do masculino, p.148155.
49
Ronaldo BÔSCOLI, Eles e eu: memórias de Ronaldo Bôscoli (depoimento a Luiz Carlos Maciel e Angela
Chaves), p.164.
361
Mas Chapeuzinho ouviu os conselhos da vovó
Dizer que “não” pra lobo, que com Lobo não sai só
Lobo canta, pede, promete tudo, até amor
E diz que fraco de Lobo
É ver um Chapeuzinho de maiô
Mas Chapeuzinho percebeu
Que o Lobo Mau se derreteu
Pra ver vocês que Lobo
Também faz papel de bobo
Só posso lhes dizer,
Chapeuzinho agora traz
O Lobo na coleira que não janta nunca mais”
(Lobo bobo)
A própria conotação maliciosa e bem humorada (“Era uma vez um lobo mau/Que
resolveu jantar alguém”) que permeia toda a canção, já apresenta diferenças da musicalidade
estabelecida antes da Bossa Nova, tantas vezes chorosa, pessimista e trágica. Há aqui uma
construção simples, direta, numa fala coloquial, alegre, que em nenhum momento traz cores
patológicas; uma linguagem sintética, jornalística. O aspecto da “cantada” e da sedução surge
mostrando um lobo, ou seja, o homem experiente, cortejando a chapeuzinho, a garota – um
chapeuzinho de maiô que está na praia, espaço de convivência, de namoros e de encontros.
No início, o “lobo” retratado usa de artifícios para conquistar seu “chapeuzinho”, que o
ignora por “ouvir os conselhos da vovó”, isto é, os avisos de uma moral ainda conservadora, em
que não se permitia às moças de família sair à sós com os homens. O “lobo canta” a moça,
prometendo-lhe sinceridade e “até amor”, numa conotação que sugere que o homem corteja a
mulher e, quando a conquista, a abandona. Porém, no final da canção, surge a transformação do
lobo experiente, em “lobo bobo”, uma vez que ele “se derreteu”, apaixonou-se, e ainda deixou a
moça perceber. Daí em diante, chapeuzinho, por sua capacidade de sedução, traz “um lobo na
coleira que não janta nunca mais”. É a mulher que, de alguma forma, detém o controle do homem
e do relacionamento.
A canção Lobo bobo, ao mesmo tempo que traz a idéia de sensualidade e de valorização
de uma mulher liberal em contraposição ao retrógrado, aponta ambigüidades ao falar que, nesta
praia onde está “o chapeuzinho”, ainda existem controles morais e comportamentais que não
permitem a uma moça entrar no carro de um rapaz. Esta canção possui uma melodia que lembra
canções infantis ou até cômicas, isto por ter como mote uma fábula infantil e se estruturar com
uma melodia de notas próximas que se repetem numa reiteração entre os versos.
362
A interpretação desta canção mais citada pelos ouvintes é a de João Gilberto, gravada em
1959, no seu primeiro LP, o Chega de saudade, em que a tradicional orquestração que
acompanhava as gravações da época foi dispensada, deixando apenas o acompanhamento rítmico,
alguns sopros e o violão de João Gilberto. Seu timbre de voz, como já comentado, por muitas
vezes não agradava os ouvintes, que o consideravam como diferente e inovador demais, sinônimo
de falta de talento vocal, ou ainda como algo que se mostrava muito hermético e elitista. De
qualquer forma, é importante registrar que era uma voz masculina, uma voz que parecia não
corresponder ao padrão vocal comum na época, o que era considerado de bom gosto, distinto e
romântico, como Frank Sinatra, Dick Farney e Lúcio Alves, por exemplo. Lobo bobo, que no
final citava brincadeiras infantis e se referia à conquista de “um chapeuzinho de maiô” por um
lobo que se mostra ao final bobo diante de uma mulher que de objeto de conquista passa a ser a
que domina e “laça” o conquistador, parecia combinar com o que a voz, o timbre, a performance
moderna de João Gilberto começava a evocar.
O discurso normativo em circulação na imprensa para as moças do final da década de 50,
era o do equilíbrio numa linha tênue entre uma valorização da ingenuidade e da mansidão como
algo inerente ao feminino e uma certa tentativa de colocá-las como participantes de um mundo
que se queria moderno, a década de 50.
“A rua onde se localiza o Instituto de Educação irradia poesia, música profunda da vida. É ali que estuda o
ser humano mais frágil, cheio de graça (...). As futuras professoras, no frêmito de uma juventude
50
incomparável.”
Valoriza-se a figura jovem, sua feminilidade e fragilidade como naturais, essenciais,
próprias às mulheres, aliado a um ideário de uma mulher que trabalha, que deve ter sua profissão,
que naquele momento tem um de seus modelos no magistério, algo que parecia perfeito para a
natural habilidade feminina de cuidar de crianças e ser mãe, num prolongamento dos padrões do
âmbito privado para o público. No entanto, outros aspectos também são sentidos neste discurso
normativo:
“P: Uma moça de personalidade e energia deve fazer-se de frágil para atrair o homem que gosta ?
R: Não. Seja natural, pois assim agradará mais. Hoje em dia os homens preferem as moças de espírito
prático e iniciativa (...) Foi-se o tempo em que os homens preferiam estes tipos [as frágeis]. A vida moderna
requer de todos muita fibra e disposição.”51
50
“Luzes da cidade”. Ultima Hora, 01/09/56. 2º Caderno, p.2.
“Eles e elas”. Última Hora, 03/09/56. 2º Caderno, p.3. Esta era uma sessão fixa do jornal, na qual mulheres faziam
perguntas e pediam conselhos de ordem sentimental e recebiam respostas da colunista.
51
363
Tem-se, aqui, a construção de uma mulher que vive no “mundo moderno”, o qual requer
praticidade, iniciativa, fibra, disposição. Estes elementos apontam para um dever ser da mulher
que, se por um lado, corrobora muitas questões já um tanto permanentes quanto à normatização
dos papéis femininos – como o desejo de agradar os homens e ajudá-los – por outro, ressalta
aspectos tão em voga naquele momento histórico que é do ser uma mulher “moderna” que não
sucumbe apenas às tarefas do lar e de seus corolários, mas busca um equilíbrio, apontando para
um papel feminino que é de “fibra” e “espírito prático” mas também de esposa e dona-de-casa.
Lobo bobo mostra-se em articulação com este discurso de equilíbrio que trazia tanto questões
mais permanentes ligadas aos papéis femininos e masculinos, como também inovações
comportamentais para a época.
Esta “liberalização” da mulher enfatizada na canção acima, com uma valorização de sua
sensualidade, não pode ser entendida em termos absolutos. A mulher que tocava violão e cantava
informalmente era razoavelmente aceita pela sociedade e pela sua família, mas quando esse
cantar se transferia para boates e shows não era bem aceito pelas camadas médias.
Os pais de Nara Leão, por exemplo, aceitavam e estimulavam as reuniões de jovens em
seu apartamento, mas quando de sua primeira experiência profissional – cantando na boate Bon
gourmet, no musical Pobre menina rica – as reações foram de preocupação e até indignação.
Num momento posterior, quando Nara rompeu com Bôscoli e com a Bossa Nova, assumindo sua
carreira de artista, demonstra de modo incisivo aspectos que dizem respeito à sua relação com o
ideário já explicitado52.
“Na Bossa Nova o tema é sempre na mesma base : amor-flor-mar-amor-flor-mar, e assim se repete. É tudo
complicado. Precisa-se ouvir sessenta vezes o que se diz para se entender. Não quero passar o resto da
vida cantando ‘Garota de Ipanema’ e, muito menos, em inglês. Quero ser compreendida, quero ser uma
cantora do povo. Chega de Bossa Nova. Chega de cantar para dois ou três intelectuais uma musiquinha de
apartamento. Quero o samba puro, que tem muito mais a dizer, que é a expressão do povo, e não uma coisa
feita de um grupinho para outro grupinho.(...) Eu não tenho nada, mas nada mesmo, com um gênero
musical que não é o meu e nem é verdadeiro. A Bossa Nova me dá sono, não me empolga. Pode ser que no
passado, eu tenha sido uma tola, aceitando aquela coisa quadrada, que ainda tentam me impingir. Eu não
sou isso que querem fazer parecer que eu sou : uma menininha rica, que mora na Av. Atlântica, de frente
53
para o mar.”
52
Segundo depoimento a mim concedido em 30/05/96, em São Paulo, a cantora e violonista Wanda Sá também
ressalta que até a gravação de seu primeiro disco, em 1964, seus pais encaravam tudo como “uma brincadeira”, não
aceitando a profissão de músico como algo ideal e digno, sendo “coisa de vagabundo”.
53
Fatos e Fotos, 17/10/64.
364
Apesar de não ser objetivo desta discussão analisar a trajetória e a apreciação musical
apenas das cantoras que participavam da Bossa Nova, o caso Nara revela alguns aspectos
interessantes quanto à questão da mulher como participante dos movimentos musicais e mais do
que isso, dos movimentos sócio-culturais na história.
Tomando o cuidado de pensar que sua fala está inserida num momento de discussão e até
de briga e rompimento pessoal com o movimento e muitos de seus integrantes (inclusive
Bôscoli), a entrevista de Nara Leão coloca aspectos de sua recepção daquele ideário proposto
pela Bossa Nova do qual participava ativamente e não apenas como espectadora. Ao falar que na
Bossa Nova era “tudo muito complicado”, sendo necessário “ouvir sessenta vezes” para poder
entender, revela não só que considerava esse estilo musical elitista como sua vontade de sair
deste meio e “ser uma cantora do povo”. O que Nara diz permite compreender que estas
participantes/ouvintes da Bossa Nova não se restringiam apenas a “zona sul”, trancadas nos seus
apartamentos. Elas estavam também preocupadas em reconhecer outros territórios da cidade.
Estas considerações não deixam de ter ligação com o fato de Nara, neste momento, estar tomando
contato com a militância estudantil na UNE e nos CPCs, juntamente com seus amigos Carlinhos
Lyra, Geraldo Vandré, Nelson Lins e Barros, na qual as discussões sobre cultura popular,
imperialismo e engajamento se inflamavam e sugeriam alguns outros caminhos para estas jovens
cariocas dos anos 50.
Ao se referir a Bossa Nova como a “coisa quadrada” que “tentavam [lhe] impingir”, Nara
afirma a necessidade de querer se livrar do estigma da musa inferido não só por seu noivo
Bôscoli, mas por outros integrantes do movimento que muitas vezes a rechaçavam em seu intuito
de seguir carreira como cantora. Ela deveria permanecer como a musa das saias curtas, que
tocava violão nos shows universitários com os joelhos de fora. Essa postura se coloca como uma
idealização das mulheres, uma tentativa em resguardar a “musa”, perpassada por toda uma carga
discursiva sobre o que seria essa mulher ideal elaborada pelos discursos normativos.
A trajetória de Nara mostra-se rica para essa interpretação, uma vez que, ouvinte que era
da Bossa Nova, mesmo que também participante deste movimento como cantora (ainda que
como amadora num primeiro momento), ressalta aspectos de uma mulher que queria ser muito
mais do que musa ideal. Relendo seu rompimento com a Bossa Nova, sua entrada para os CPCs
e as discussões esquerdistas do momento, ali está muito mais do que um posicionamento político,
partidário e militante, mas um posicionamento de uma mulher que não conseguia ter visibilidade
365
dentro do movimento. Ao dizer que era “muito mais que uma menina rica que mora de frente
para o mar”, ela busca sublinhar posições das mulheres que, se não lhes foram negadas, pelo
menos não puderam aparecer na história da Bossa Nova.
É preciso atentar também para ouvintes que não participaram destas reuniões musicais da
Bossa Nova, refletindo sobre como, em seu cotidiano no Rio de Janeiro – uma cidade que
convivia com aspectos de metrópole complexa e acelerada, mas que tentava manter e ver na
natureza uma possibilidade de resistência a esse processo, como muitas vezes a imprensa
ressaltou – entre matinês, cursos de datilografia ou de violão, estudos, leituras de revistas que
procuravam regrar seu papel na sociedade, reservando-lhes o papel de namoradas puras, noivas
compreensivas, esposas dedicadas ao marido e aos filhos, sendo ainda modernas e práticas,
escutaram esta formulação de uma “musa” ideal, falada em Lobo bobo. São os sentidos que estas
ouvintes deram às canções o que se procura recuperar.
“Eu escuto muito Bossa Nova hoje. Gosto. Agora mesmo no Natal eu ganhei MPB 4 e Quarteto em Cy que
eu gosto. Os Cariocas. Minha filha de 20 anos adora. Bossa Nova, Vinícius, ela adora. Adoro as letras,
adoro tudo. Essa coisa de falarem da mulher. Letra de Bossa Nova é muito falando da mulher ideal, a
Garota de Ipanema, a Chapeuzinho de Maiô e tal, tal, tal. Isso na época, a mim não incomodava nada.
Sinceramente, não. Eu achava engraçado aquele negócio do Lobo Mau, não sei o que. Todos eles
adorariam ser Lobo Mau e arranjar um Chapeuzinho mesmo [risos]! Sabe, o negócio era você não se
deixar ser Chapeuzinho, entendeu? Acho que era por aí. Tinha milhões que adoravam ser Chapeuzinho, ser
engolidas pelo Lobo ou sei lá o que. Então eu acho que, eu acho que era uma coisa muito mais de dentro
pra fora, sabe? Eu não sentia nada assim.” (Marta)
Marta afirma que adora as letras até hoje e que gostava delas na sua juventude. Segundo
conta, o fato de falarem de uma mulher musa, não a incomodava. Ela não percebe nisso um
cerceamento ou uma definição de lugares sociais estipulados a elas. As palavras de Marta
permitem compreender que a escuta desta canção, independentemente do que a autoria quisesse
expressar, fazia uma leitura diferenciada da canção, considerando-a engraçada e não como algo
em si provocativo. O movimento de sua memória faz conhecer que o que era cantado, por um
intérprete cujo timbre, naquele momento, era considerado moderno, inovador e até irônico, trazia
uma musicalidade que poderia provocar uma escuta com outros sentidos para esta canção.
Quando diz que os homens queriam mesmo ser lobos e arranjar um chapeuzinho, assim
como muitas moças adorariam ser engolidas por esses lobos, permite conhecer que estes eram os
papéis de gênero que circulavam na época, mas que sua escuta interpretou de outra forma. Ao
falar que era “uma coisa de dentro pra fora”, que o “negócio era não se deixar ser o
chapeuzinho”, ela mostra que, para além de uma construção ideal da memória – que tende a ver
366
no passado questões que hoje são pensadas mas que na época vivida talvez não fossem correntes,
como perceber a intencionalidade masculina de cercear a mulher, mas não ligar para isso –,
realmente sua escuta da canção revela formas táticas de experiência cotidiana feminina, em que
ao se utilizar dos discursos hegemônicos masculinos, faz uso diferenciado dos mesmos,
subvertendo seus significados e comportamentos.
Esta fala, no entanto, é fruto do presente, do momento atual em que as mulheres já
assumiram outras posições dentro da sociedade, assim como os homens. Um tempo que assiste a
muitas conquistas feministas já consolidadas, em que mulheres como Marta conquistaram seu
espaço no âmbito público, no trabalho, como também no âmbito privado, nas relações familiares,
pessoais e amorosas. Ela mesma lembra que em sua juventude era muito mais liberal do que
muitas de suas colegas, brincando que já “era muito moderna prá época, quase uma Leila Diniz”.
Assim, quando Marta se refere à percepção já na época de que havia um discurso masculino mas
que este poderia ser suplantado por astúcias sub-reptícias, presente está em sua construção
memorialística aquilo que foi incorporado por uma geração que assistiu ou participou dos
movimentos feministas e dos debates e conquistas por ele gerados, sendo que Marta é um pouco
mais jovem que outras ouvintes entrevistadas que não assumem em suas memórias tanta
liberdade de costumes.
Nos anos 70, a mídia começava a expressar os anseios e os novos papéis sociais que
caberiam às mulheres. Buscando compreender representações da mulher na TV, Cláudio Cardoso
Paiva, ao analisar a série de TV Malu mulher, enfatiza elementos que mobilizavam as formas do
masculino e do feminino na sociedade que tomava novos rumos.
“na pele de ‘Malu’, a ‘namoradinha do Brasil’, Regina Duarte, o arquétipo televisual para milhões de
jovens brasileiras, irá se tornar uma mulher livre. O retrato da mulher média brasileira, no desempenho de
Regina Duarte, irá ganhar novos contornos. Diva, lésbica, mãe, namorada, heroína, vilã, as personagens,
como mulheres imaginárias irão povoar a imaginação popular além dos limites da ficção. Uma vez que os
cantores, astros e estrelas do cinema, teatro e televisão estruturam no imaginário social, mostram-se como
receptáculos dos desejos, das projeções, da economia libidinal do público, a sua conduta na ficção e na
vida ‘real’, apresentada cotidianamente através das ‘revistas do coração’, produzem um tipo de emanação
54
que faz sonhar o público; eles encarnam aquilo que o público gostaria de ser ou ter por perto.”
Entre as ouvintes entrevistadas, muitas lembram-se freqüentemente das canções,
articuladas sempre à intérprete da mesma, seus jeitos de se vestir, de se portar, sua performance,
54
Claudio Cardoso PAIVA, Quem ama não mata ou mata? Identidades da mulher na mídia: Família, Trabalho e
Sexualidade (Texto disponível na Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação).
367
numa memória que registrava uma escuta musical bastante articulada ao que representavam estas
cantoras que começavam a ter maior espaço naquele campo artístico e naquela sociedade. Entre
elas, destacam-se nas lembranças Nara Leão, a famosa cantora das “saias curtas e dos joelhos de
fora”, com seu jeito meigo, sutil, mas ao mesmo tempo forte, que bradava o protesto e sua própria
opinião. Ou ainda Elis Regina, lembrada sempre pela força de sua voz e de sua interpretação, sua
performance expansiva e contagiante nos palcos. Estas lembranças permitem reconhecer as
identificações que estas mulheres constróem hoje e que lhes surgem na memória apontando para
padrões femininos fortes, presentes e atuantes, que foram uma das bases para muitas de suas
experiências vividas na juventude como mulheres.
A construção feminina na Bossa Nova é feita sobre a mulher carioca (“E além do mais/Ela
é carioca”), lembrando-se de seu balançado, seu “jeitinho” de andar, sua pele morena queimada
do sol das praias. Destaca-se a mulher e seus atributos físicos, numa referência clara ao hábito
que se expandia de freqüentar as praias da zona sul do Rio de Janeiro. Nesta construção sobre a
mulher carioca, estes padrões estéticos e comportamentais lançados na sociedade, contribuíram
para a consolidação de um ideário que valorizava esta sensualidade não-vulgar (que freqüentava a
praia), esta liberdade, alegria, irreverência, este prazer pelo sol, mar e praia55, tão presentes na
vida carioca. A circulação social da música mostra-se inteiramente neste sentido. A Bossa Nova
captou elementos de uma mudança comportamental, colocando e representando nas canções
formas mais liberalizadas das mulheres, uma certa ousadia nos hábitos sociais. Por outro lado, a
sociedade absorveu muitos destes elementos, produzindo novas formas de relações entre os
gêneros, intervindo nas relações interpessoais cotidianas, e provocando um maior aparecimento e
inserção da mulher em lugares muitas vezes exclusivos dos homens, como a música.
A Bossa Nova expressava alguns desses preceitos e valores culturais que já se
encontravam em formação e circulação na sociedade, apreendendo-os, e também propondo ao
meio social formas de ser e agir, em que sobressaia este aspecto de valorização de uma certa
vanguarda comportamental: a sensualidade da mulher, associada a sua ousadia comportamental,
numa atitude moderna mas não-vulgar. O aspecto sensual da mulher mostra-se como um
elemento novo na produção musical bossanovista enquanto em outros estilos, a mulher é
55
A praia se mostra como espaço de liberdade, território neutro, aberto, com “clima descontraído, conversa frouxa, a
luminosidade tropical, o calor relaxante, o riso solto, a brisa suave cheirando a maresia [que] forma um todo
harmoniosamente integrado.” (Cf. Eli DINIZ, Retorno às origens. In: Estudos Feministas, v.2, n.2, 1994. p.461).
368
representada como submissa, passiva, centrada no lar e a serviço do homem, destituída de
qualquer traço de sensualidade. O parâmetro de mulher é a “Emília” ou a “Amélia”. No sambacanção, há um componente de sensualidade mas como algo negativo, uma vez que fica restrito à
mulher de cabaré.
Muitos destes elementos explicitaram-se mais fortemente no momento posterior ao da
Bossa Nova, personificados em Leila Diniz, figura que se tornou de alguma forma um mito56.
Carioca das camadas médias urbanas do Rio de Janeiro, Leila era intelectualizada e politizada,
dona da própria sensualidade e de uma ousadia sem par naquele momento. Estas características,
embora sejam mais comuns no final dos anos 60, juntamente com os movimentos de contracultura, feministas, tropicalistas, foram gestadas algum tempo antes, na época da Bossa Nova,
quando o movimento musical ajudou a construir este imaginário social, no qual muitas destas
premissas já circulavam socialmente.57 O “feminismo” assumido por ela – embora nunca tenha se
afirmado sob este rótulo – era traduzido pela busca da liberdade de expressão e por seu aspecto
comportamental na vida privada, nos seus relacionamentos, muito mais do que na esfera das lutas
políticas institucionalizadas. Afirmando a feminilidade, Leila Diniz assumia posturas que
valorizavam novas relações entre os gêneros e novas formas de encarar a vida. A ousadia de sua
postura se chocava freqüentemente com os movimentos feministas.
“Nos anos 60 ser jovem ... a gente passou por todos os períodos, vamos dizer, de desenvolvimento, porque
antes de 68, na verdade a gente fala que foi em 68, na verdade a minha geração tinha 20 anos, eu nasci em
48, em 68 a juventude fez a revolução em Paris, era revolução no mundo inteiro. Pra mim, ele fala que foi
em 68, mas foi a descoberta da pílula que mudou a relação entre homem e mulher. A Revolução de Maio
foi importante, eu não quero diminuir o fato da Revolução de Maio, foi uma época boa porque a gente tinha
e esperança que o mundo pudesse mudar e mudar agora. (...) Mas na realidade, o que eu queria falar da
relação homem/mulher, tinha uma relação homem/mulher antes da pílula... Então era uma situação muito
complicada, porque ser adolescente na nossa época, antes da pílula, antes de 68 era muito sério, porque...
era uma conquista complicadíssima, o que ajudava a criar um clima de mistério. Depois chegou 68, depois
de 68 as mulheres mudaram, as mulheres falaram também ‘vamos fazer uma revolução’! E a gente ficava,
‘vamos fazer amor, vamos pra cama direto, não vamos complicar a história.’ Então ficou mais simples, mas
depois virou logo complicado, logo depois, porque chegavam as feministas, e logo depois, eu não lembro
mais... em 72, 73 chegaram as feministas com razão. Mas elas eram um pouco fanáticas, meio exageradas,
então chegaram e complicaram as coisas mais ainda... os homens eram babacas... se ela não tinha três
orgasmos numa noite, você não era ninguém, então se não tinha três orgasmos era melhor não ter
nenhum... se você não bater os três orgasmos... era uma competição. Depois sossegaram as feministas... no
56
Mirian GOLDEMBERG, Toda mulher é meio Leila Diniz.
Maria Alice Carvalho ressalta que Leila Diniz teria, no Rio, a sua tradução, sendo ela um discurso sobre a
identidade da cidade e um instrumento que liga os cariocas aos seus espelhos, pois cada carioca é um pouco do que
todos gostavam nela, e a isso chamam de Rio de Janeiro, personificando assim, este jeito carioca de ser, esta “cor
local” (que a Bossa Nova ajudou a construir), como alguém que desafiava o tradicional, o imposto e mostrava em si
este “moderno”, ligado às formas comportamentais, à ousadia. (Cf. Maria Alice Rezende de CARVALHO, Quatro
vezes cidade. Op.cit., p.95-6).
57
369
resultado de 68, o homem foi pra cozinha cozinhar ele mesmo, porque... mas ta certo, aprender a
cozinhar... depois deu um sossego assim e pum, veio a Aids logo... Então, na minha geração, eu sempre
falo, passamos a época pré 68 pra frente, 68 durou até setenta e tantos, depois chegaram as feministas, aí
ponto, depois elas se acalmaram também. Mas conquistaram direitos também, o papel da mulher mudou
com o resultado de 68, não foi o homem que mudou, foram as mulheres que mudaram, felizmente pra mim,
porque tinha homens que se queixavam. De todas as passagens que mudou o mundo, foi o direito de
reconhecer a sexualidade da mulher...” (Massimo)
Lembranças de experiências diversas da vida na juventude: a de antes e depois de 1968,
ano considerado um marco pelas revoltas juvenis e estudantis. Para o memorialista, porém, mais
do que estas revoltas, foi fundante a invenção da pílula anticoncepcional, que trouxe maior
liberdade à vida sexual das mulheres e também modificações, segundo permite compreender, nas
relações entre homem e mulher, pois se as conquistas eram mais difíceis antes, agora teriam se
tornado mais fáceis e perdido muito do “clima de mistério”. Segundo conta, não só os homens
fizeram a revolução – aquela partidária, nas ruas, etc – mas as mulheres também a fizeram, no
âmbito privado, na vida afetiva e sexual. Embora afirme que tudo ficou mais fácil, também
permite notar que logo depois não foi assim, pois com o feminismo, as mulheres passaram a
exigir seus direitos, entre eles o de “três orgasmos por noite ou não ter nenhum”, o que permite
perceber que os homens, como nos lembra Massimo, se sentiram acuados, inferiorizados,
pressionados, em competição.
Embora voluntariamente tente construir uma trajetória de sua vida como alguém que
viveu estes movimentos de modernização dos costumes “porta a dentro”, no ambiente privado, e
valorize tudo isso, dizendo que achou ótimo as conquistas das mulheres – pois haviam homens
que não gostaram –, ele, ainda assim, deixa entrever uma certa posição de incômodo, ou pelo
menos, de falta de familiaridade com estas novas posições sociais assumidas pelas mulheres, e a
troca dos lugares sociais, em que os homens “foram para a cozinha”, segundo ele.
Lembrando mais uma vez das considerações de Maria Isabel Almeida e seu trabalho sobre
a subjetividade masculina, ressalte-se que é comum entre os homens de meia idade a narrativa
sem hesitações, reticências, reservas ou constrangimentos sobre sua vida íntima. Massimo
assume conscientemente o discurso de que a mulher mudou, que isso foi bom, que os homens são
“uns babacas”, colocando-se como inferior nas relações. Depara-se com uma narrativa em fluxo
que acaba por tentar resguardar traços mais profundos da subjetividade, mas que podem ser
observados na situação da pesquisa e do depoimento ocorrido numa tarde ensolarada de sextafeira, num bar do Leblon.
370
“na época, você tinha por exemplo a esquerda existencialista, a esquerda sartriana, ela absorveu muito
bem esse lado da pílula, essa exaltação à liberdade, porque o Marcini - que era muito forte do ponto de
vista revolucionário junto aos jovens e juntos aos movimentos de esquerda - era muito triste com relação a
isso, a sexualidade. O Marcini não tinha nada disso, o sujeito era revolucionário, era revolucionário, era
um sujeito formidável que abandonava tudo, inclusive os seus amores, os seus afetos pra enfrentar luta
armada e vanguarda, não sei que. Quer dizer, eu acho que até o movimento político, revolucionário ganhou
um colorido todo, tanto que mesmo aqui no Brasil muita moça já participou na época em 64, 68, etc, já
tinha muita mulher na faculdade de Filosofia, então já era um pouco essa liberdade trazida talvez pela
pílula, como você já falou, trazida por uma maior liberdade, quer dizer, ganhou um lado sentimental, como
era também com o Che Guevara que falava de um novo homem na América, misturou um pouco de amor
com política, isso eu acho que também foi importante... (...) no caso da ‘Garota de Ipanema’, eu acho que
entra assim um pouco desse lado político também, aquela idéia de ‘vamos ser revolucionários, mas também
vamos viver a vida’, eu acho que tinha um pouquinho de influência do existencialismo, do anarquismo, uma
coisa assim, no sentido mais lúdico também, não ficar só... isso existia muito nessa época. Incorporar esse
valor da estética da beleza e coisas que antes era muito fechado, pensava só em fazer as mudanças sociais,
revoluções, etc. ‘hay que endurecer sem perder a ternura jamais’, não tinha uma coisa assim? Eu acho que
o Chico, o Vinícius, o Tom Jobim, sempre eles deram muito esse toque de Ipanema nesse sentido, Ipanema
como Paris.” (Joubert)
Joubert narrou suas memórias junto com Massimo, uma situação que foi inusitada e
inesperada, mas que se revelou bastante profícua para compreender elementos da subjetividade
masculina, das memórias afetivas, das lembrança apoiadas no grupo, nos pares. Ambos
ressaltaram o aspecto de que a Bossa Nova representava este clima novo que circulava nos anos
50 e 60, como uma música que para eles expressava tudo isso na sua forma de ser cantada, no
ritmo mais cool. Uma escuta atenta desta musicalidade que se fixou na memória e hoje pode ser
elaborada nestes termos. Joubert fala de uma atuação política existente nos movimentos
estudantis aparentemente dissonante com o que majoritariamente é dito sobre este assunto.
Segundo ele, a política extravasava as questões públicas e institucionais e era influenciada por
idéias existencialistas que previam uma libertação também no âmbito privado de viver o amor,
viver a vida, um lado mais lúdico de misturar revolução, política e sensibilidade amorosa. O que
permite conhecer por suas lembranças é que isso se devia também à presença de mulheres na
Faculdade de Filosofia já em 1964, fato que, segundo ele, parecia ajudar a trazer este clima de
maior “delicadeza”.
Para o adulto que rememora esses tempos, a Bossa Nova - e o que ela reverberava na
escuta, por já se ter assistido ao movimento organizado das mulheres, a várias conquistas e até a
uma crítica ao feminismo mais exacerbado - também ajudava a conformar esse clima, esse
espírito, em que a delicadeza e a sensibilidade saíam das fronteiras do feminino, instituindo-se
entre os homens.
371
“Tanto os homens quanto as mulheres tentavam... a coisa era difícil... mas naquela época [longa pausa] o
lado feminino, a parte feminina era mais recatada, entendeu ? Ela não se expunha tanto porque ela tinha
medo de ser falada.... então quando a gente chegava nas festas e via uma menina mais saidinha e que você
podia dançar um pouco mais colado, um pouco mais de carinho... enfim... então, a moça era logo tachada
como ‘essa ai é garota fácil’. E isso naquela época era uma coisa muito importante, as mulheres se
preocupavam com isso... depois não, ficou de igual pra igual. Então o homem tenta e a mulher tenta
também, os dois tentam.... na sua liberdade... mas naquela época aos homens tudo era permitido e às
meninas não... só era permitido o recato... esperar arranjar um namorado.... pra poder... elas tavam
sempre esperando... aparecer um príncipe encantado... hoje o príncipe encantado pode ser de um lado ou
de outro.. pode ser o príncipe ou a princesa....Agora isso trazia prá gente... a gente ia prás festas... e ficava
alucinado pra gente dançar uma música e dar um beijinho no rosto de uma menina... aquilo era o supra
sumo... pra uma menina era uma permissividade, naquela época....conseguir... ás vezes era até roubado,
né? (...) A Leila tava algumas décadas à frente... ela foi uma pessoa que... muito prá frente da época dela,
mas ela não conseguia que muita gente... levasse a vida que ela levasse, pois ela era uma artista... à uma
artista era permitido ter uma vida permissiva, não à uma garota normal, a que era professora, etc. A
liberação não era assim, não... A liberação pode ter sido decretada, mas ela só aconteceu após muitas
conquistas das mulheres... principalmente das mulheres, porque ao homem tudo era permitido.... a cultura
da época falava que... dizia que... a mulher... a mulher pro casamento era a mulher recatada.., como nas
músicas... uma visão totalmente de hoje, porque hoje a mulher recatada talvez ela esteja totalmente fora
dos padrões... porque não conhece a vida como deveria... a chance de conseguir uma vida certinha é muito
mais difícil pra uma pessoa... do que pra uma menina que tenha experiência de vida como mulher, como...
como... trabalhadora.. como tudo... a experiência hoje conta... e a experiência pode trazer vantagens e não
desvantagens. Antes uma mulher liberada era uma desvantagem pra ela, hoje em dia uma mulher que é
liberada de cabeça... no lado profissional, no lado pessoal, ela é uma mulher muito mais completa... eu
acho que essa liberdade facilitou a vida das mulheres. (...) Mas o lado masculino tá assustado também
porque hoje em dia... hoje em dia... inclusive até as estatísticas tão falando.... as mulheres estão tomando
conta de varias áreas ... do nosso mundo atual.. elas tão dominando, elas são maioria... quer dizer isso ai
ao longo do tempo vai fazer com que os homens fiquem mais medrosos em relação... em relação... à
mulher.... Hoje em dia tem muito homem que tem medo da mulher, porque elas são tão independentes que
eles têm medo, querem voltar àquela cultura do passado onde eles dominavam.... porque hoje em dia as
mulheres subliminarmente as mulheres... elas está comandando.. isso pra um homem é um negócio terrível,
complicado... a mulher..... ela toma atitude... e quando ela toma uma atitude... porque geralmente a mulher
amadurece mais cedo que o homem. Então quando uma mulher toma uma atitude, o garoto ainda não esta
maduro o suficiente fica amedrontado... vocês ainda vão dominar o mundo um dia (..) O que vai acontecer
é uma mistura dessas duas forças.. e ai a gente vai tocar pra frente... não é a mulher excluída do poder....
ela tem que ser incluída no pode cada vez com mais força... (...) Os homens talvez ate entendam mas.... não
sei se ... profissionalmente sim, mas eu não sei se no interior deles.. como eles se sentem.. a grande duvida
de hoje é como se sente um homem que é inclusive gerenciado por uma mulher... na empresa... como é que..
ele faz o trabalho dele direitinho.... mas não sei se... (...) porque agora provou-se que a mulher tem tanta
capacidade quanto os homens, ela também pode ser o poder... e isso mexe... ainda mais com a nossa cabeça
de... latino, né ? O latino é complicado... ele é meio machista por natureza.” (Armando)
Como se pode ver na fala de Armando, existem aspectos dissonantes nesse discurso mais
hegemônico. Ele, mesmo valorizando as conquistas femininas como importantes e
imprescindíveis que ajudaram a sua geração a viver melhor e mais livremente, argumenta, no
entanto, que isto não era privilégio de todas as moças de sua geração. Podia-se, portanto, ser bem
visto e aceito como ousadia e vanguarda comportamental em meios mais intelectualizados entre
os artistas da zona sul. Mas entre os pares que viviam no bairro de Piedade, na zona norte da
cidade, que embora freqüentassem sempre a zona sul, as praias, os shows, gostassem da nova
372
música que surgia, participassem de grupos musicais vocais (como nos conta Armando sobre
uma namorada que também participava do grupo), isso não se dava, não era prática comum.
Segundo suas memórias, Leila Diniz “fazia tudo isso porque era artista”, mas para as meninas
com uma “vida comum” não havia estas liberalidades.
Outro aspecto que revela suas ressalvas quanto às mudanças na posição das mulheres na
sociedade é sua fala sobre como os homens lidam com isso hoje, sublinhando a dificuldade em
conviver com a liderança das mulheres que, segundo ele, no fundo não aceitam. Apesar de uma
postura mais tranqüila em relação ao trabalho, ocorrem resistências em relação às questões
domésticas e íntimas. Esses são indícios que permitem compreender que o convívio com a
emancipação feminina não foi ou é harmoniosa. Aparentemente se permite a presença da mulher
em âmbito público, domínio que antes era exclusivo a eles, mas há uma negativa em estabelecer
modificações, eles mesmos, no âmbito privado, com novas formas de relações amorosas e modos
de educar e criar os filhos.
Considerando-se que o mundo privado e seus elementos foram historicamente postos sob
o comando feminino, em que sentimentos e relações amorosas, de alguma forma, já eram
manipuladas por elas, como um jogo de sedução, parece que agora é dado ao mundo masculino o
reconhecimento e a consciência deste processo no qual eles ainda não se permitem participar
completamente, de modo a ser possível novas regras, estruturas e permanências, em que as
mulheres não fossem mais obrigadas a assumir a chamada “dupla jornada”, que supõe esta
inserção tanto no público como no privado.
Na medida em que esta interpenetração de territórios masculinos e femininos encontra-se
cada vez mais aguçada nos nossos dias, é possível notar que os mais afetados por ela são os
homens, não apenas porque ela significa uma perda de poder, mas porque coloca a própria
identidade masculina em xeque. Segundo Badinter58, a constituição da masculinidade, do tornarse homem é um processo muito complexo, talvez maior até do que o que ocorre entre as
mulheres. Sem adentrar demais nas discussões psicanalíticas, cumpre dizer que a identidade
masculina elabora-se na negação do sexo oposto, no caso da mãe, com quem mantém uma
relação de simbiose até os primeiros anos de vida. Para identificar-se como homem, é preciso que
o menino negue as características femininas que possui, o que pode ser observado em variadas
culturas pelos rituais de iniciação, no qual são os outros homens que engendram o homem. Se
58
Elisabeth BADINTER, XY: sobre a identidade masculina.
373
muitas vezes pode-se argumentar que as mulheres estariam perdendo sua feminilidade hoje em
dia, caminhando para uma interpenetração de territórios sexuais, raramente duvida-se da
identidade delas.
A conquista de atributos masculinos é, para a mulher, considerado um direito seu, um
algo a mais, pois a feminilidade não lhe pode ser roubada. Sendo uma “máscara sobre um vazio”,
todo atributo masculino-fálico virá sempre incrementar a feminilidade59. Já entre os homens, é
exigido sempre que ele prove, mostre, ateste sua identidade masculina, pois todo e qualquer traço
de feminização é sentido como perda de si mesmo, “como ameaça que afinal se cumpre”, uma
vez que sua subjetividade foi elaborada pela negação do feminino. Acrescente-se a tudo isso o
fato de as referências seguras de identificação dos sexos estarem cada vez mais se esmaecendo, o
que torna o debate ainda mais complexo, pois não é possível aceitar apenas as explicações
essencialistas que prevêem um masculino universal e único, devendo-se refletir sobre a
plasticidade e a multiplicidade da masculinidade atada a um tempo e um lugar.
Nos discursos dos homens acima citados, há índices de questões que pertencem ao ser
masculino, mas também elementos da cultura e da sociedade em que viveram e vivem, onde
elementos de uma cultura com marcas de uma “latitude latina”60 deve ser levada em
consideração. Traços de uma constituição masculina dos tempos coloniais que valorizavam o
poder, o prestígio e um desejo de reconhecimento social que é acompanhado de um apelo em ser
carismático, sedutor e galanteador – características que se definem pelo que os homens imaginam
que se espera deles. Outra característica desta cultura masculina latina é o distanciamento do
homem em relação à dinâmica do mundo privado e o envolvimento afetivo com a opção por ter
filhos. Isso vem sofrendo modificações, em que as funções de pai, a afetividade e o cuidado com
os filhos, a “paternagem”61, sugerem que elementos novos estão sendo incorporados pelos
homens, mesmo que estes traços culturais da homem latino ainda estejam longe de ser sanados
completamente. Assumir estes novos papéis, estas novas sensações, comportamentos e afetos
implica para os homens defrontar-se com a instabilidade e a indeterminação, o que para muitos
significa pôr em dúvida a própria escolha e identificação sexual.
Compreender os mitos de uma sociedade permite que algumas de suas questões sejam
melhor apreendidas, o que justifica retomar o debate sobre Leila Diniz que, de alguma forma,
59
Maria Rita KEHL, A mínima diferença: masculino e feminino na cultura, passim.
Sócrater NOLASCO, O mito da masculinidade.
61
Elisabeth BADINTER, Op cit.
60
374
tornou-se um mito para as mulheres que viveram os anos 60. É comum entre as memorialistas
mais jovens, que tinham por volta de 20 anos no final desta década, a lembrança da atriz como
símbolo de sua geração, ícone das conquistas realizadas por elas próprias – como lembra Rita e
também Marta – numa narrativa memorial que sugere uma proximidade, uma identificação com
Leila, e não uma distância como aquela que Armando nos falava, como se fosse algo restrito à
vida de uma artista. Isso tem relação com a própria experiência de vida destas mulheres, que
viveram e experimentaram conquistas e novidades exatamente no momento em que Leila estava
viva e propagando estas idéias. Sua morte prematura, sem dúvida, ajudou a alavancar e valorizar
sua imagem.
Outras mulheres, embora considerem a importância da figura de Leila, sugerem leituras
diferentes.
“Eu conhecia a Bossa Nova de ler e ouvir... porque também pelas músicas a gente conhece muito o lugar,
conhecia muitos fatos, as histórias que eu ouvia... inclusive, você veja bem, a história da Leila Diniz,
aquela coisa toda, tudo a gente ouvia mais pelo rádio do que pela televisão (...) Aí eu ouvi falar de Leila
Diniz e ... Olha, você sabe que quando eu vim pra aqui pro Rio... Mas, olha, eu era criada assim [com uma
moral conservadora], mas eu tinha...Eu era meio rebelde, entendeu? Então entendia a situação dela.
Porque ela era mais rebelde. Aquilo era rebeldia dela, né? Então, eu era também assim um pouquinho
rebelde. Sabe por que que eu era rebelde? Olha, eu não...Na minha época de menina... Não, moça, moça!
Não andava de calça comprida, não andava de bicicleta...E eu fazia tudo isso. Minha avó quando me via de
bicicleta, faltava me bater. Sabe, não podia andar de bicicleta, não podia usar calça comprida. Eu usava,
né? Não podia beijar na boca, eu beijava. Então, quando...Esse lance da Leila Diniz, eu não estranhei! Até
me identifiquei um pouco! Claro, eu falei assim ‘Puxa, ela tá mais que certa. Ela tem que viver a vida dela
de acordo...Como ela quer viver!’ E acho que todo mundo tem o direito de viver a vida, viver bem,
entendeu? Sente bem, tem que fazer aquilo mesmo. (...) Então, eu era meio rebeldezinha, sabe? Coisa
assim: ‘Ah, não faz isso’, aí que eu ficava mais danada da vida e ia fazer. Aí quando eu cheguei ao Rio, já
tinha filhos quando a Leila Diniz...A Leila Diniz eu já tinha filhos. Então, eu achei aquilo normal, eu achei
normal. A pessoa ter um pouco... Eu acho que ninguém deve invadir muito a privacidade do outro. Eu acho
que aquilo era dela. E outra, melhorou muito, sabe, aquela coisa de...Muita coisa que mulher não podia
fazer, as mulheres já passaram a fazer, não é mesmo? Foi diferente. Ela mudou muito. Mudou muito pra
cabeça das mulheres daquela época, sabe. A minha, não, porque já tava já casada, muitos filhos, não
mudou muito, não...” (Dinah)
Em primeiro lugar, o que chama atenção nas memórias de Dinah é a sua livre associação
entre a Bossa Nova e Leila Diniz. Ao contar que conhecia a Bossa Nova e outras coisas que
ocorriam “do lado de lá das montanhas” pelo rádio e pelas revistas, uma vez que morava na Ilha
do Governador na zona norte do Rio e quase nunca ia até a zona sul, fornece elementos
interessantes para pensar a difusão dos padrões comportamentais que se difundiam até em locais
mais distantes, ultrapassando o ambiente mais progressista da zona sul. Sua identificação com
Leila não é de proximidade como acontece com Marta ou Rita, mas algo distante, visto e
escutado de longe, como coisa de artistas, algo que só poderia ocorrer naquele universo. Por mais
375
que diga que também era muito rebelde e que desafiava as regras familiares, Dinah não se coloca
como herdeira ou mesmo participante das mudanças que estavam ocorrendo na sociedade. Suas
memórias até negam, voluntariamente, que aquilo que ouvia no rádio e lia nas revistas tenha
mudado qualquer coisa na sua vida.
Segundo ela, por estar casada e com filhos, não poderia mais mudar. Essas mudanças não
eram mais possíveis de ser vivenciadas por ela. No entanto, em algumas dobras de sua narrativa,
o que se encontra é uma mulher que hoje é viúva, está com 62 anos e dedica-se quase
exclusivamente a cuidar da família, dos filhos, netos e bisnetos, e que tem os tempos atuais como
melhores que os do passado, o que a diferencia de grande parte dos memorialistas que expressam
uma tendência ao saudosismo.
Dinah descreve uma trajetória que, burlando sutilmente – mesmo que hoje suas memórias
até neguem isso – as restrições, encontrando brechas nos sistemas comportamentais
hegemônicos, produz uma forma de rememorar que é fruto da trajetória de quem vê o presente
como mais ameno, mais fácil de se viver, denotando sua inserção e participação nas mudanças
ocorridas no tempo pelas fímbrias, pelas lacunas. Por mais longe que ache que estava do mito
feminino que desafiou regras, de alguma maneira sua trajetória permite compreender uma
proximidade com tudo isso – se não na aparência mais imediata, pelo menos no valor que isto
gerou na sua vida e que se registra de alguma forma em sua memória afetiva.
“eu que gostava da Emilinha Borba; quando criança, eu gostava muito da Emilinha Borba. (...) Então... e a
moralidade excessiva, que não é só da classe média. Até entre os artistas havia isso. E os artistas eram
considerados, vamos dizer assim, uma classe mais livre, mais independente, de quem não se cobrava tanto.
Mas você repara, quando havia uma separação e eles tinham um caso, era tudo escondido. Quer dizer, a
moralidade também existia entre eles. E eu falei na Emilinha por que? A Emilinha tinha uma música,
gravava uma música... eu também não gostava de tudo que ela gravava não, mas havia umas coisas boas. E
eu me lembro dessa música, eu era ainda muito garota, eu tava por volta de uns dez anos. Essa música
chamava ‘Aconteceu’ e eu não entendia... Porque a música era ‘aconteceu, porque você não sabe nem eu,
talvez seja o tempo que é nesse mundo quem faz e desfaz e amor que nasceu entre nós cada vez cresce
mais’, depois veio uma frase assim ‘eu sei que não tenho o direito de amar a mais ninguém neste mundo,
mas o que fazer se eu te quero e você me quer’, e era um negócio assim, eu tinha uns 10 ou 12 anos e ainda
não captava bem essa história, eu falava: - Meu Deus, por que que a pessoa não tem mais direito de amar a
ninguém nesse mundo? Aí fui me consultar com as minhas irmãs mais velhas, eu lembro que eu era muito
garota, quer dizer, era em 1950, eu tinha por volta de 10 anos e as minhas irmãs falaram: - Sua boba, é
porque ela já deu pro cara. Aliás eu acho que antigamente não usava a palavra já ‘deu’, isso é de hoje em
dia, ela deu pro cara, não pode mais amar ninguém, casar com ninguém, e eu fiquei impressionada. (...)
Mas ao mesmo tempo, Emilinha Borba, que era uma mulher assim que cantava na noite, artista, tudo isso,
cantava uma música e dizia que não tinha mais direito de amar ninguém nesse mundo. Então eu acho que
durante muito tempo houve assim uma rigidez de costumes, houve uma coisa até assim bem falsa, hipócrita,
que hoje, graças à Deus acabou, mas eu tenho medo que tenha também escorregado demais pro outro
extremo... então agora pra mim você vê liberdade demais, a minha cabeça ainda não aceita você conhecer
o cara hoje e já dormir com ele à noite... dormir não, ficar acordada ! então são coisas assim que a minha
376
cabeça não aceita, então eu acho que tudo passou... é lógico que pode haver uma paixão arrebatadora e
tal, mas eu não vejo assim que isso seja muito lógico, muito normal, mas o que havia era terrível.”(Maria
Amélia)
Maria Amélia também valoriza os tempos atuais no que tange às moralidades que eram,
segundo ela, excessivas. Tempos “terríveis” em que tudo era proibido, mesmo para as mulheres
que vivam no meio artístico. Embora considere que as mudanças foram para melhor, lembrando
que a vida dos artistas também era complicada e difícil, permeada por restrições, ela deixa
perceber que teme pela liberalidade assumida na atualidade, quando julga que a sexualidade pode
ser vivida sem limites. Mesmo que aparente conservadorismo, como uma mulher que sempre
trabalhou, construiu sua trajetória aliando família, marido e filhos e também uma carreira na vida
pública (chegou até a ser candidata a deputada), Maria Amélia descreve, em vários momentos de
sua narrativa, sua experiência como “vencedora”. O que se apreende, assim, é alguém que
aliando o ideal normativo às moças e mulheres casadas e as possibilidades de ação em meio a
isso, constitui seu passado e seu presente de forma instigante. Maria Amélia, como Dinah,
pertence a uma geração que não teve no mito de Leila Diniz algo tão próximo, elemento de
identificação ou de referência mais imediata. Entretanto, o movimento da memória de ambas
demonstra a busca por construir uma trajetória na qual sua geração foi vencedora, tendo driblado
as dificuldades e aberto espaço para uma experiência feminina, hoje, mais fácil. Mesmo dizendo
que eram “tempos difíceis”, elas colocam-se num lugar de valor, ainda que para mostrar como
sofreram.
Além do depoimento de mulheres ouvintes, tem-se nas memórias de um compositor da
Bossa Nova, a presença delas, referindo-se a um momento anterior àquele movimento musical.
“Minha mãe bebia e jogava muito. Depois que se separou abriu asas e voou. Se aproximou mais do pessoal
de teatro, da música, que ela adorava. Minha irmã Lila e eu ficávamos mais ou menos ao Deus dará. Mas
havia também um lado bom e importante. Ela trazia para casa uma porrada de artistas. Vinham beber e
conversar. Convivi nessa época com Ciro Monteiro, Orlando Silva e muitos outros, inclusive Lúcio Alves.
Minha casa era um centro musical e artístico. (...)hoje eu entendo e sei que ela era da turma da boêmia.
Inteligentíssima, cativante, safa, todo mundo gostava dela (...) foi uma pessoa maravilhosa, pródiga,
liberal. Mas não podia ter sido nunca mãe de ninguém, não nasceu prá isso, devia ter sido só irmã ou
amiga. Minha tendência para a música definiu-se por volta de 1949,50 - muito certamente graças à minha
62
convivência com músicos.”
62
Ronaldo BÔSCOLI, Op. cit., p.16-7.
377
Sua mãe, Angela Luiza Esquerdo, casou-se com um médico de poucas posses, enfrentado
a desaprovação da família. Após alguns anos do nascimento dos filhos, o casal mudou-se para
mais longe da família de Angela. Segundo o memorialista, seu pai não aceitava e nem convivia
bem com as “diferenças” da esposa que passou a freqüentar teatros de revista e a boêmia do Rio
de Janeiro, entregando-se ao jogo e, principalmente ao alcoolismo, que lhe acompanharia até o
fim de sua vida. Neste acerto de contas com o passado, em que a memória é o fio condutor para
esta busca e este encontro, Bôscoli compreende, a partir de seu distanciamento presente, o papel
da mãe em sua vida. Foi por meio dela que ele teve acesso ao ambiente musical e à boêmia.
Essa associação, no entanto, faz-se de maneira unívoca, em que, mesmo destacando os
aspectos negativos do comportamento da mãe (ressaltados também em outras passagens de sua
memória), Bôscoli lhe reserva um caráter positivo, como alguém que lhe proporcionou entrar na
vida artística. Ele ressalta a mãe como “pródiga”, “liberal”, “cativante”, “safa”, o que permite
enxergá-la como alguém especial e diferente, uma mulher que fugia ao padrão da época, numa
construção de imaginário de modernidade. Convém indagar se ela, ao promover reuniões
musicais em sua casa e ao se inserir na boêmia artística, estaria ressaltando aspectos do cotidiano
de mulheres dos anos 50.
“Elsa Martinelli é uma artista que (...) despontou assim para o sucesso como um dos elementos mais
brilhantes do cinema italiano. O seu extraordinário fascínio e sua espetacular beleza (...) também na sua
vida privada [ajudou-a] a conhecer o sucesso, contraindo matrimônio. Tem hoje um filho que, para ela, é a
sua maior felicidade (...) Acima das glórias da carreira, coloca o seu amor de mãe ! Deixou de ser
63
manequim de modas para ser ‘estrela’ e não terá dúvidas de deixar o cinema pelo filho”.
Como enfatiza esta reportagem, a mãe ideal deveria largar tudo pelo filho. Esse discurso
procura construir a mulher como alguém que tem a sua realização no lar, no ambiente doméstico
privado, na maternidade, em que a carreira profissional (e ainda mais a artística) deveria ser
deixada de lado. É possível perceber nas memórias de Bôscoli, ao falar da mãe, uma certa mágoa
encoberta por ter tido uma mãe que não era dedicada exclusivamente aos filhos, e à família.
Embora monte a imagem de Angela Bôscoli univocamente, falando de sua “modernidade”,
buscando consciente e voluntariamente encará-la de maneira positiva, involuntariamente ele
próprio salienta que ela “não nasceu prá ser mãe” de ninguém: a mulher que vivia na boêmia era
mal vista e fugia ao padrão de boa mãe. É possível entrever nestas memórias que a mãe ideal
63
“O filho é sua maior felicidade”. Jornal Última Hora. Tablóide Feminino. 01/09/58, p.7.
378
para ele não poderia ser esta mulher atenta e inserida no ambiente musical. Sua transgressão
menos constituía-se num desvio e mais a acabava por enquadrá-la no discurso normativo,
determinante do que uma mulher “não deveria ser”.
“O macacão da operária, longe de desfeminizá-la, simboliza um novo sentido de vida, acrescentando-lhe
características novas, sem abjurar o gosto de servir, como companheira do homem na sociedade conjugal.
O casamento é o sonho das horas de repouso, a maternidade um fim, o trabalho competitivo um recurso
que se vê obrigada a aceitar, quando não a disputar, premida pela necessidade que não reconhece
64
nenhuma discriminação.”
Esta outra reportagem versa sobre dois projetos de lei que deveriam ser aprovados no
Senado Federal naquela semana de abril de 1959 a respeito dos estatutos da sociedade conjugal:
um visava “eliminar as restrições à capacidade jurídica da mulher” e o outro reclamava “plena
igualdade de direitos para os cônjuges, libertando a mulher de toda submissão injusta do marido”.
O discurso buscava mostrar-se de acordo com estes projetos, os quais só viriam a confirmar uma
realidade que já se apresentava: o número cada vez maior de mulheres que trabalhavam fora de
casa.
No entanto, ao incorporar estas modificações da sociedade, “concordando” com elas, este
discurso permite interpretar que mesmo as reformulações e atualizações têm como objetivo regrar
a mulher, ressaltando que é a necessidade que a faz trabalhar competitivamente. Reafirmando o
modelo tradicional, o texto deixa claro que seu lugar é o lar, que esta operária trabalha por falta
de opção mas que seu fim maior é casar e ter filhos. Esse discurso traz inovações nos papéis
destinados às mulheres, mas comporta elementos que visam a direcionar a mulher para a
estabilidade social que se queria. A moral mais conservadora que buscava sustentar a dominação
masculina não via com bons olhos o trabalho feminino fora do âmbito doméstico, considerando-o
como uma ameaça à estabilidade. Segundo Carla Bassanezi65, no período pós-guerra, a
participação crescente da mulher no mercado de trabalho foi um dos fatores de maior importância
no conjunto das mudanças nas relações homem-mulher e nos papéis de gênero que se travavam
no período. Com as novas possibilidades surgidas a partir do desenvolvimento dos setores
terciários, as mulheres foram ganhando o estatuto de assalariadas, apresentando um potencial
maior de mudança no status social e econômico.
64
“Carta de alforria para a mulher casada”. Revista Manchete, 04/59.
Carla BASSANEZI, Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações homem-mulher,
1945-1964.
65
379
Neste momento, se o papel reservado à mulher é preferencialmente o de estar centrada no
lar, estando a serviço do bem-estar do marido e dos filhos, circunscrita ao mundo privado, vê-se
em outras matérias femininas que também é dito que ela deve interessar-se por questões públicas
como “assuntos internacionais”, para assim agradar o marido, fazer-lhe companhia, tornando-se,
dessa forma, uma esposa ideal. Ela deve ainda saber receber amigos e animar as reuniões. Este é
um discurso que, incorporando algumas questões consideradas mais liberais em relação ao papel
da esposa, visa a manter o padrão destinado às mulheres de ser esposa e mãe.
Algumas das mulheres ouvintes analisadas contam que trabalhavam quando solteiras, mas
que, com o casamento e a maternidade, acabaram deixando a carreira, passando a se dedicar
exclusivamente ao mundo doméstico, como Dinah, por exemplo. O trabalho e a carreira, em sua
trajetória, não é algo que tenha algum componente de realização pessoal ou um valor central.
Carla Bassanenezi66 chama a atenção para o fato de que no pós-guerra e nos anos 50, embora as
mulheres tenham entrado no mundo do trabalho de uma maneira sem precedentes, era comum
entre as moças das camadas médias que trabalhavam ou estudavam, interromper estas atividades
com o casamento. O ideário circulante era o de que o casamento deveria estar em primeiro plano
e não a vida profissional, reconhecidos até como irreconciliáveis. Muitas entravam no mercado
de trabalho para ajudar na renda familiar ou, de outro modo, isto assumia certa importância e
aceitação para as moças que não se casavam, as “solteironas”, o que reforça esta idéia de
incompatibilidade entre o mundo público do trabalho e o privado da vida doméstica.
Entre outras memorialistas, é possível perceber o trabalho como algo valorizado em suas
memórias de hoje, ressaltado como algo que nunca deixaram de realizar, mas não se pode afirmar
que a carreira tenha assumido uma posição central em suas vidas, concorrendo com o casamento
ou com a maternidade. Embora muitas tenham trabalhado desde solteiras, após o casamento, em
quase todas as épocas, este trabalho parecia apenas uma complementação da renda familiar ou
ainda como fonte para os próprios gastos. Os discursos mudavam nos anos 50 – quando algumas
revistas femininas e artigos voltados às mulheres já argumentavam a favor do trabalho feminino –
e a memória conserva alguns de seus traços, mantendo inalterados alguns aspectos principais.
Entre os homens, esta questão não é sequer discutida. Para o universo masculino, o
trabalho, a provisão, o sustento da família e a honradez provenientes disso mostram-se como
66
Idem, Op. cit.
380
permanências para a constituição de suas identidades há vários séculos. Para as mulheres destas
gerações, as mudanças têm a ver com suas trajetória e mesmo suas idades.
“eu perguntava pra minha mãe como é que fazia pra poder ter irmãos... ela falava que eu tinha que
aprender a escrever, escrever uma carta, não me lembro se era pra Jesus, Nossa Senhora, ou Papai Noel,
mas que eu tinha que escrever uma carta pedindo um irmão ou uma irmã e deixar no carrinho de chá do
corredor lá em cima... e eu com esse negócio de ser analfabeta, de não saber escrever e não saber ler e
querer irmão, quer dizer, era o meu estímulo pra escrever e pra ler... meu avô Leôncio Correa, poeta
paranaense morava com a gente, meu avô e minha avó, moravam... a casa era grande, com a gente e eu
vivia cercada de livros... e meu irmão, metido a inteligente, muito inteligente, hoje ele é PhD em literatura
latinoamericana, porque lá em casa ele é o inteligente da família e eu era a moleca burra... Então isso foi
muito bom pois fez eu ser bastante estudiosa, que eu não queria ser tão retardada; família tão inteligente,
minha mãe fez três faculdades, meu pai era super inteligente, trabalhava no Banco do Brasil e era campeão
de xadrez, foi campeão internacional de bridge. (...) Uma vez, eu roubei uma cartilha e, eu me lembro que
eu sempre tive chave na porta, eu trancava a chave, eu botava um pano assim pra não ver que tinha luz,
pra não ver que tinha abajur... e ficava lá com a perninha firme, com aquela cartilha, então tinha um
barco, letra ‘B’ tinha uma bola e eu aprendi a ler... só que tem que aquilo era um crime... eu não podia
estar no primeiro ano, eu não podia ter roubado a cartilha, eu não podia aprender a ler... nem podia
escrever a tal carta...(...) Então pra mim a cultura foi uma coisa que eu adquiri por iniciativa própria, uma
coisa proibida... a gente aprende na psicanálise que o proibido é o desejado, mas eu não podia contar pra
ninguém, só as professoras lá que não sabiam o que fazer comigo de tanto que eu fugia pro primeiro ano
sem poder. (...)Eu entrei pra faculdade obrigada pelo meu irmão, eu não queria não; eu queria fazer,
depois de muito pensar, desde os 15 anos eu comecei a pensar na profissão que eu queria seguir, que eu
queria uma coisa que eu pudesse ser boa, que eu gostasse, que eu tivesse independência financeira e que eu
pudesse ter filhos sem precisar casar, ou se eu fosse casar e tivesse filhos e o marido fosse embora, que eu
pudesse, porque minha paixão era ter filhos; então eu ficava quebrando a cabeça... pra que que eu servia?
do que que eu gostava ? eu servia pra que?” (Gloria)
Nas memórias de Gloria, o trabalho, a carreira e os estudos têm papel central e sua
trajetória é estimulada por tudo isso, já dentro do núcleo familiar, gerando, muitas vezes, até um
certo desconforto, que a memorialista deixa transparecer em alguns momentos, mas que, sem
dúvida foi fundante para a sua experiência e sua constituição como mulher-sujeito. Lembranças
que fazem refletir sobre o fato de ela pertencer a uma geração de mulheres em que a
independência financeira e também profissional é valorizada, sendo que os atributos intelectuais e
racionais deixavam de ser prerrogativa exclusivamente masculina. Memórias que informam
também sobre a importância que todo este processo assume hoje para ela, que trabalha, vive só e
tem intensa atividade profissional, intelectual e artística.
Entre as mulheres de uma geração mais jovens isto é ainda mais valorizado. Isto porque
elas trabalhavam antes de se casar, moravam fora da casa dos pais e se sustentavam sozinhas.
Com o casamento, assumiam posições de maior equilíbrio com seus pares, no que tange à
carreira, à vida financeira e à divisão das tarefas domésticas. Isso é muito valorizado em suas
memórias, sublinhando o pioneirismo de suas ações, colocadas como protagonistas destas séries
381
de mudanças ocorridas nos papéis de cada gênero. Outras ainda fazem perceber que, embora
realmente pioneiras em muitos aspectos, só enfrentaram a vida profissional, dedicando-se de fato,
após se separarem ou se divorciarem, quando o trabalho passou a ser uma forma de suprir as
necessidades financeiras, como também de promover suas descobertas como sujeitos, seres
independentes que têm na carreira um valor.
Segundo Lipovetsky67, os anos 50 são o último momento em que a sociedade sustentou
um discurso da sagração da mulher no lar, no ambiente privado e doméstico, que seria seu
universo “natural”. Se, por um lado, isso confinou desde o início da modernidade as mulheres a
este espaço, compondo uma diferenciação máxima entre os sexos na contracorrente dos ideais
modernos ocidentais de igualdade, por outro lado também enobreceu as funções destinadas à
mulher, consagrando-a como “rainha do lar”, senhora absoluta deste espaço, e resultou na
celebração das funções femininas que possuem reconhecimento social por serem realizadas no
local em que a vida familiar era organizada: a criação dos filhos e o cuidado com o marido. Desse
modo, estava se esboçando nesta época uma nova imagem da mulher do lar como uma mulher
moderna, como se percebe por meio da publicidade de várias revistas femininas e de variedades,
ao recomendar que esta rainha do lar moderna deveria ter aparelhos domésticos que a auxiliassem
no trabalho, sobrando-lhe tempo para cuidar da aparência, elemento cada vez mais valorizado
como produto a ser conquistado individualmente. Entra em cena uma outra mulher, a que
consome e que se rende aos milagres possibilitados pelo conforto da vida moderna.
Além do desenvolvimento das atividades econômicas que levaram as mulheres a saír do
lar e irem para o mercado de trabalho, aconteceram também mudanças na maneira como a
sociedade passou a encarar o assalariamento feminino, até aí, visto como algo errado. O impulso
e desenvolvimento de uma sociedade de consumo estão intimamente relacionados a esta nova
imagem do trabalho feminino, quando para se ter acesso ao mundo das necessidades e novidades
fabricadas torna-se necessário rendimentos familiares suplementares. Esta mesma sociedade de
consumo, lançando socialmente valores como felicidade, amor, sexualidade e lazer contrapunhase à própria idéia da mulher, que tem na família sua fonte única de realização, levando a uma
paulatina valorização do individualismo, como um desejo de viver para si mesma, ter “sua
67
Gilles LIPOVETSKY, A terceira mulher: permanência e revolução do feminino.
382
própria vida”, celebrando a liberdade e o bem-estar individual.68 Estas foram mudanças que
aconteceram gradativamente.
Por mais que este ideário do trabalho feminino já começasse a circular socialmente,
vociferando a favor de uma independência ou autonomia da mulher, as tais reuniões
boêmias/musicais promovidas por Angela Bôscoli, de fato, não se encontravam entre as normas
reservadas às que eram casadas e mães. Ela é apresentada nas memórias do filho como uma
mulher desquitada que freqüentava a noite e a boêmia, entregando-se ao jogo e ao álcool. Tudo
isso a colocava como alguém que fugia aos padrões que, naquele momento, eram reservados às
senhoras casadas. Se Ângela não pode ser um exemplo ideal em busca de um entendimento sobre
um conjunto maior de ouvintes daquele momento, ela não pode também ser ignorada. Sua
trajetória ressalta aspectos relacionados a mulheres que começam a fazer parte do ambiente
musical – mesmo que a primeira vista esta participação seja apenas contemplativa –, onde, anos
mais tarde, começariam a despontar como cantoras. No entanto, esta participação de Ângela não
pode ser encarada como apenas de assistência. O fato de promover estas reuniões em sua casa,
por um lado, revela sua inserção neste meio e seu conhecimento das pessoas ligadas a ele,
enquanto que, por outro lado, ressalta aspectos de sua experiência como ouvinte musical daquele
momento, uma experiência em diálogo, (re)elaborando questões ali propostas.
Talvez seja necessário compreender como estavam vivendo as mulheres da década de 50
entre os ideais de senhora casada e esta transgressão tão declarada de Angela Bôscoli. Como
estavam as ouvintes anônimas – que não estavam totalmente alheias aos assuntos musicais e
artísticos do momento, mas que também não transgrediam da mesma forma que Angela Bôscoli –
escutando, apreciando, enfim, dando sentido à produção musical deste período pré-Bossa Nova.
“E eu me lembro, do que eu me lembro na minha vida em relação à Bossa Nova, é que eu me casei em 58,
né? Então eu tava grávida do primeiro filho e havia a Copa do Mundo ao mesmo tempo, a da Suécia. E nos
viemos aos domingos pra casa do meu sogro, as irmãs do meu marido. E um dos irmãos do meu marido,
esse que hoje em dia me acompanha, toca piano nos meus shows de música francesa, já era pianista,
estudava piano, era ligadíssimo na música, tava encantado com a descoberta da Bossa Nova, João
Gilberto, da modificação do acompanhamento do violão. E botava os discos pra gente ouvir. E eu dizia:
“Pô, bacana”, gostava. Já comecei a comprar discos, aprender as letras das músicas ao ouvir,
principalmente, Tom e Vinícius, Elis Regina, Edu Lobo, Carlinhos Lira. Assistimos a ‘Pobre Menina Rica’,
enfim, sempre fomos muito ligados a essa coisa de ir a show e ver e tal. Porque eu curtia muito e Cícero
também gosta muito de música.” (Laura)
68
Idem.
383
Laura e o marido, Cícero, dizem que freqüentaram muitos shows da Bossa Nova, no Beco
das Garrafas, e em algumas boates de São Paulo. Laura conta que sempre gostou de música –
tanto que hoje, aos 69 anos canta, faz shows, grava CDs – e que estava sempre presente no
ambiente musical. No entanto, isto era feito junto com o marido, o que a distancia da trajetória de
Angela Bôscoli. Laura conta ainda que gostava de ouvir as canções da época de ouro do rádio,
gostando de cantores como Emilinha, Marlene e Dalva de Oliveira.
Esta época é marcada como sendo a “era de ouro” do rádio no Brasil. Dentro de um
contexto mais amplo da radiofonia comercial do período, apareceram e se consolidaram revistas
especializadas em música, programas de auditório e os fãs-clubes que davam destaque para
ídolos como Dalva de Oliveira, Cauby Peixoto e Marlene – só para citar alguns –, além de
fabricar outros. Neste processo de veiculação de signos lançados no social – com os cantores,
suas vidas pessoais, o que implicava em padrões de comportamentos, de formas de agir, pensar, e
ainda num modelo de desenvolvimento e “modernidade” que se queria no momento – estavam
presentes elementos e normas sociais que circulavam socialmente.
Para longe de querer estabelecer aqui uma idéia de que estas fãs constituíam uma massa
amorfa e passiva, receptáculo dos símbolos impostos pela indústria cultural, pode-se, em vez
disso, pensar que elas estavam dialogando com os padrões generalizados por este meio social,
uma vez que, no contato com estes ídolos ou na tentativa de conseguir chegar perto deles por
meio dos fãs-clubes e das conversas cotidianas sobre sua vida e carreira, ou ainda via leitura de
revistas sobre o assunto, estas ouvintes estavam interagindo com valores, símbolos, normas e
subjetividades lançadas no social. Esta veiculação de imaginários sociais está dentro de um
contexto social, integrando o próprio meio em que foi produzido, cujos padrões não são pura e
simplesmente impostos, existindo sempre a possibilidade de articulação de formas alternativas de
vida no contato com os símbolos. São as “maneiras de fazer”, os “estilos de ação”, as “táticas”69
dos consumidores, que aqui procuramos considerar para uma compreensão e interpretação das
experiências destas ouvintes da “era do rádio” e também da Bossa Nova.
“As garotas adoram rádio. Com um apurado espírito crítico, amantes que são da música, do teatro, do
samba e de outras artes, elas têm as suas preferências que a gente pode discutir, mas que tem que respeitar.
Porque essas preferências são ditadas quase sempre pela maior sinceridade. Se há sinceridade nisso ! ...
(...) “Cantor que a gente idolatra é esse Frank Sinatra que chega a fazer chorar (...) Sou louca por um
69
Michel de CERTEAU, A invenção do cotidiano - 1. Artes de fazer, passim.
384
sambinha, também adoro uma valsinha” (...) Os gostos vários diferem, mas no fim o que elas querem é
70
despertar atenções, pois se o rádio elas adoram inda muito mais namoram os artistas bonitões.”
Esta era uma coluna fixa da revista O Cruzeiro, na década de 50, em que o autor – A.
Ladino – escrevia em forma de verso, satirizando a respeito das “Garotas”, que era o título da
seção. Aqui, ele fala que apesar de elas gostarem de rádio, gostam mesmo é dos “artistas
bonitões”, com os quais querem namorar; elas até gostam de música, teatro e outras artes, mas no
fundo só querem despertar atenções. Pode-se compreender que este texto busca construir a
ouvinte musical como alguém fútil, cujas preferências artísticas são um mero passatempo de
moças jovens. O autor duvida: “se é que pode [-se encontrar] sinceridade nisso”. O quadro aqui
montado coloca o espaço musical dos programas de auditório como um lugar de encontro de fãclubes formados, principalmente, por mulheres. Às jovens, ainda era dado um certo direito de ser
tiete ou fã, mas isso não valia para as mulheres mais velhas, casadas, mães de família, que eram
desqualificadas quando vistas nestes ambientes71. As mulheres eram consideradas fãs
incontroláveis, que gritavam por seus ídolos, numa alusão a idéia de “macaca de auditório”. Um
olhar masculino construindo o feminino como sentimental, instintivo, mais propício para o lúdico
e o lazer, sem que se levasse a música ou a arte a sério.
Um dos homens indicados para ser entrevistado por esta pesquisa recusou o convite. O
motivo alegado foi o fato de que não saberia contribuir em nada para a pesquisa, não tinha boa
memória, não guardava muito bem os nomes, datas, canções que deveriam, a seu ver, interessar à
pesquisadora. Ele se dispôs a indicar uma prima, esta sim, segundo ele, uma tiete que tinha mais
domínio sobre o assunto. Com essa postura, ele revelava um olhar para o feminino como
depositário das características de fã, como alguém que se interessava muito pela Bossa Nova,
tendo guardado todos os acontecimentos na memória. Argumentar que as mulheres são
naturalmente mais fãs e “mais ligadas nisso tudo”; é como acreditar que aos homens não é dada a
característica da escuta atenta, da escuta de uma musicalidade que gerava significados e emoções
capazes de serem registradas na memória afetiva.
70
“As garotas gostam de rádio”, Revista O Cruzeiro, 09/08/52, p. 84-5.
“As meninas ardentes e sua vontade de ver seu ídolo (...) [traziam] gritaria e desordem [o que provocou] a
expulsão de uma senhora (de seus 40 anos) de um programa de auditório por que estava fazendo muita
bagunça”.Revista do Rádio, 09/06/53, nº 196. Citado em Marta AVANCINI, Marlene e Emilinha nas ondas do rádio:
padrões de vida e formas de sensibilidade no Brasil. História e Perspectiva, n.3. p.113-135, 1990.
71
385
Porém, em outro trecho das memórias de Bôscoli, pode-se perceber diferenças frente à
estas construções femininas da época.
“As mocinhas dos anos 50 não eram tão chegadas aos atletas e garotões fortes como as de hoje; preferiam
os intelectuais. Era meio moda. Freqüentavam o Amarelinho, o Vermelhinho e o restaurante no terraço da
ABI no centro do Rio e, em Copacabana, o Maxim’s, na beira da praia. Minha irmã Lila era uma delas. Ela
72
foi casada com Vinícius de Moraes.”
Se este trecho de suas memórias não pode ser tomado em termos absolutos, uma vez que
aqui está uma tentativa de construção de um ideal dos anos 50 como melhores do que os tempos
atuais, onde se preservaria entre algumas moças um possível gosto mais refinado e intelectual na
escolha dos namorados, por outro lado, a partir de suas lembranças, são ressaltados elementos
que possibilitam indícios do cotidiano destas jovens, como sua irmã Lila, garota da zona sul
carioca. No movimento da memória de Bôscoli, a tentativa por descrevê-la e a algumas de suas
amigas como diferentes do padrão das garotas da sua época, por gostarem dos intelectuais,
artistas e boêmios, acaba por, involuntariamente, levantar aspectos das normas prescritas às
moças da década de 50.
“o preço de uma mulher virtuosa é muito mais alto do que de muitos rubis (...) ajuda economicamente seu
marido, dá-lhe conselhos firmes nos seus negócios, dá à família o exemplo do trabalho e ajuda de tal forma
73
o marido (...) não se pretende que a mulher não tenha outra atividade fora do lar.”
Pode-se ver que a questão da inserção das mulheres no chamado “mundo masculino” do
conhecimento e do estudo já ocorria naquele momento, o que sugere que Lila não constituía-se
completamente numa fuga aos padrões que valorizava uma mulher sábia e culta, que sabia dar
conselhos ao marido. Essa parecia ser uma carga a mais entre os deveres das boas esposas. No
entanto, pode-se perceber que mesmo esta conquista feminina, mostrava-se também relativizada
nos jornais e revistas, em que os discursos da época, procurando articular às mudanças advindas
com uma maior emancipação das mulheres, difundiam os padrões femininos.
“Aí é que vai o maior engano dos “emancipadores”, porque não se pretende que a mulher não tenha outra
atividade fora da família, mas que faça desta o objeto primordial de sua vida (....) cientificamente está
provado que uma mulher só atinge a sua plena capacidade emotiva e espiritual como esposa e como mãe.
(...) Virá então a pergunta: ‘Deve uma mulher sacrificar uma carreira e casar-se com um homem às vezes
72
73
Ronaldo BÔSCOLI, Op. cit., p. 95.
“O rei Salomão e as mulheres”, na seção “Da mulher para a mulher”, Revista O Cruzeiro, 01/05/54. p.47.
386
menos talentoso do que ela ?’ (...) A resposta é sim. Quando não é possível conciliar a carreira e a vida
74
conjugal, é sempre preferível esta àquela.”
O conselho é claro: entre carreira e casamento, deve-se preferir o último, pois é aí que a
mulher realiza-se verdadeiramente. Da mesma forma, em muitas colunas femininas, percebe-se
que se procura limitar o estudo e uma possível emancipação da mulher, afirmando que ela pode e,
até deve estudar, ser culta, mas estes elementos devem servir como um atrativo a mais na
realização do ideal da moça da época que seria o de se casar com o homem certo. Não só para
este fim, mas também para a vida de casada, a cultura deveria servir à mulher como um auxílio
para a manutenção do lar e a educação dos filhos, elementos que ressaltam o papel destinado a
elas. Assim, se Lila Bôscoli apresenta em sua trajetória aspectos que a enquadram dentro do
padrão para as moças da época, procurando se relacionar ou namorar com os homens
equilibrados, mais velhos, responsáveis, vê-se também que a isto articulam-se relacionamentos
com intelectuais que são boêmios, o que já se mostra como uma reinvenção dos padrões exigidos.
Na forma como Bôscoli revê sua irmã Lila em suas memórias, é possível perceber uma tentativa
de construção de uma moça que, para ele, seria o ideal dos anos 50. Em algumas canções da
Bossa Nova, faz-se presente a construção do ouvinte ideal para estas canções que se propunham
novas.
“Se você disser
Que eu desafino, amor
Saiba que isso em mim
Provoca imensa dor
Só privilegiados têm ouvido
Igual ao seu
Eu possuo apenas o que Deus me deu
Se você insiste em classificar
Meu comportamento de anti-musical
Eu mesmo mentindo devo argumentar
Que isso é Bossa Nova
Isso é muito natural
O que você não sabe
Nem sequer pressente
É que os desafinados
Também têm um coração
Fotografei você na minha Rolleyflex
Revelou-se a sua enorme ingratidão
Só não poderá
Falar assim do meu amor
Pois ele é o maior
Que você pode encontrar, viu
74
Idem.
387
Você com a sua música
Esqueceu o principal
Que no peito dos desafinados
Também bate um coração”
(Desafinado)
Segundo Brasil Brito, esta canção, composta em 1959 por Newton Mendonça e Tom
Jobim, contém elementos que apontam para uma afinidade entre as letras da Bossa Nova e a
poesia concreta, em que se valoriza vocábulos, numa busca por essencializar os textos. Esta
canção, de acordo com Brito, teve sua letra concebida em relação a sua composição musical, mas
identificada com ela, “num processo semelhante àquele que os ‘poetas concretos’ definiram como
‘isomorfismo’ (conflito fundo-forma em busca de identificação)”75. Letra e música, assim,
caminham juntas, autodefinindo-se, criticando-se e se referendando reciprocamente.
A mulher construída, tratada apenas como “amor”, é identificada como alguém sensível,
pois entende de música; como severa em suas críticas, o que a torna ingrata, no momento em que
não reconhece e recusa o amor demonstrado pelo autor. Esta mulher é também – característica
que os compositores criticam – excessivamente racional (“você com sua música esqueceu o
principal”). Vê-se aqui uma imagem da mulher construída como alguém com maior igualdade
frente aos homens, na medida em que é colocada como sujeito cujas opiniões e impressões são
levadas em consideração (“se você disser que eu desafino, amor, saiba que isso em mim provoca
imensa dor”). Com intervalos melódicos complicados, elaborados e cheios de saltos, a música
soava estranha, como muitos ouvintes rememoram, mas mesmo assim, a escuta registrou e deulhe significação, soando como representante desta nova sociedade em que as notas dissonantes e
difíceis de se acostumar, aliavam-se a um falar lírico, próximo, direto e sem rodeios, a uma
mulher que não queria ouvir a novidade e que não se deixava tomar pelos sons, sendo vista como
ingrata, e presa à tradição.
Algumas das moças que viviam no ambiente das reuniões musicais nos apartamentos dos
jovens, possuíam alguma formação musical, mesmo que incipiente, uma vez que essa formação
era importante na educação dos filhos. Muitas aprendiam ballet clássico ou piano ou ainda
acordeão. Wanda Sá e Nara Leão, por exemplo faziam aulas de violão, com ênfase sobre os
acordes dissonantes, as harmonias elaboradas e a nova “batida” do violão. A Bossa Nova
contribuiu para a constituição do hábito de se aprender este outro instrumento musical, exigindo
75
Brasil Rocha BRITO, Bossa Nova. In: Augusto de CAMPOS, Balanço da Bossa e outras bossas: antologia crítica
da moderna música popular brasileira, p. 38.
388
uma ouvinte intelectualizada, com bom gosto e conhecimento musical, como se vê na canção
Desafinado. Uma canção com uma estruturação harmônica muito elaborada, com acordes
dissonantes, e mudanças de tom, melodia que alterna notas graves e agudas, enfim, uma canção
difícil de ser cantada e escutada. A letra, por sua vez, sugere uma mulher que tem ouvido
apurado, julgando-o “desafinado” e “anti-musical”. Há uma ouvinte visada pelos compositores,
nas senhas postas pela canção, que aponta para uma ouvinte ideal, o que nem sempre efetiva-se
na escuta pela própria característica polissêmica das obras.
A canção aponta para ambigüidades, uma vez que a arte e seu discurso, não tendo um
compromisso de aderência ao real, como um retrato fiel apontando para um real que “poderia
ser”, um vir a ser, um devir. No entanto, estão também presentes aspectos do normativo daquele
momento, fazendo-o de maneira a diluir-se com aspectos que apontam para uma superação
destes. Ao construir uma mulher “ingrata” que rejeita o amor do “desafinado”, ressaltando
características destas moças “fúteis” que ouviam rádio, só interessando-se por cantores famosos e
com grande voz, esta canção articula nesta mesma personagem a mulher inteligente, que no
entanto é desqualificada (“você com sua música esqueceu o principal”).
Nesse sentido, é que vai-se tentando compreender a escuta de uma canção como
Desafinado, por exemplo, por mulheres que conviviam com os padrões que se queria para as
moças jovens ou para as casadas, que deveriam estudar e trabalhar, mas colocar o casamento e o
papel de esposa-mãe acima de tudo, sendo “rainhas do lar modernas”, “suaves ditadoras”,
mulheres de personalidade, mas que sabiam agradar o marido.
Se, como vimos, há uma certa construção da ouvinte da era do rádio como “macaca de
auditório”, o que é uma construção ideal, aqui na Bossa Nova surge a “musa inspiradora” que,
também sendo ideal, encobre e mascara a experiência das mulheres que ouviam estas músicas.
Neste meio caminho entre a “musa” e a “macaca de auditório”, estão alguns elementos para a
interpretação do cotidiano destas ouvintes. Mulheres que nos anos 50 e 60 já estudavam e
penetravam cada vez mais no mercado de trabalho, compondo o seu cotidiano entre o que era
lançado pelos discursos que regravam o papel das mulheres e suas múltiplas formas de
improvisações, elaborando um dia-a-dia marcado por reelaborações e rearticulações dos papéis
para elas prescritos.
Na escuta destas canções e nos sentidos dados a estas é que se pode encontrar este meio
caminho, esta zona de interdito, essas “maneiras de fazer [que] constituem as mil práticas pelas
389
quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas de produção sócio-cultural.
(...) [Pois] se trata de distinguir as operações quase microbianas que proliferam no seio das
estruturas tecnocráticas e alteram o seu funcionamento por uma multiplicidade de táticas
articuladas sobre os detalhes do cotidiano (...) não se trata mais de precisar como a violência da
ordem transforma-se em tecnologia disciplinar, mas de exumar as formas sub-reptícias que são
assumidas pela criatividade dispersa, tática e bricoladora dos grupos ou dos indivíduos”.76
Os sentidos da Bossa Nova foram tecidos na escuta das músicas, no cotidiano de homens
e mulheres que, múltiplo e ambíguo, permite compreender e interpretar aspectos da experiência
destes sujeitos, seus feitos e emoções, reconstruindo suas experiências de ouvintes musicais de
ontem e de hoje.
::: ::: :::
Gilles Lipovetsky enfatiza que, num mundo comandado pela mobilidade permanente e
pela orientação para o futuro, tornou-se paradoxalmente essencial refletir sobre as invariâncias do
feminino e do masculino considerando-o como o que confere sentido aos novos papéis atribuídos
a cada gênero. No caso das mulheres, segundo o autor, enquanto várias atribuições do feminino
são cada vez mais questionadas, todo um conjunto de funções tradicionais perduram por sua
própria capacidade de se harmonizar ou conviver em tensão com os novos referenciais da
autonomia individual – tônica de nosso tempo. O que se mantém do passado não é inexpressivo,
pelo contrário, traduzido para outras formas que, dinâmicas e com novos sentidos, colaboram
para a autonomia subjetiva de ambos os sexos. Não por acaso, a despeito de tantas mudanças
ocorridas nos papéis sociais femininos, as mulheres continuam tendo relações privilegiadas com
o que se refere ao doméstico, privado, sentimental e estético.
Segundo o filósofo, isso não se deve apenas a um peso social ou a uma ordem normativa,
mas também porque estas características femininas não entram em conflito com os princípios de
autonomia e livre posse de si, funcionando como vetores de identidade.77 Estas
mudanças
promoveram também, na busca pela realização do eu individual, formas de relacionamento
homem/mulher que já não se querem pautar pelas regras e convenções sociais. Não há mais a
lógica do amor romântico, em que se conservam as funções atribuídas aos homens e mulheres.
76
77
Michel de CERTEAU, A invenção do cotidiano - 1. Artes de fazer, p. 41.
Gilles LIPOVETSKY, Op.cit..
390
Vai-se estabelecendo uma situação descrita por Giddens como “relacionamento puro”, no qual
entra-se numa relação
“apenas pela própria relação, pelo que pode ser derivado por cada pessoa da manutenção de uma
associação com outra, e que só continua enquanto ambas as partes considerarem que extraem dela
satisfações suficientes, para cada uma individualmente, para nela permanecerem(...)O relacionamento puro
é parte de uma reestruturação genérica da intimidade. (...) A abertura de um em relação ao outro, condição
para o que chamaremos de ‘amor confluente’, é de algum modo o oposto da identificação projetiva
[existente no amor romântico]. O amor confluente presume igualdade na doação e no recebimento
emocionais (...) introduz a ‘ars erotica’ no cerne do relacionamento conjugal e transforma a realização do
prazer recíproco em um elemento-chave na manutenção ou dissolução do relacionamento (...) O amor
confluente desenvolve-se como um ideal em uma sociedade onde quase todos têm a oportunidade de
tornarem-se sexualmente realizados, e o que o mantém é a aceitação por parte de cada um dos parceiros de
78
que cada um obtenha da relação benefício suficiente que justifique a continuidade.”
Isso, é claro, não impede – mesmo nos que experimentam este tipo de relação – a
existência de resquícios ou resíduos de elementos do amor romântico. Ainda persiste a busca da
“pessoa especial” ou do “relacionamento especial”, bem como uma vontade em “amar o amor” –,
como coloca Barthes nos seus Fragmentos de um discurso amoroso –, a procurar o amor ideal em
grande parte da existência.
O que se percebe são os papéis antigos combinando-se de maneira inédita e dinâmica com
os papéis modernos, reconciliando o antigo com o novo. Os homens ainda permanecem
prioritariamente associados aos papéis públicos e instrumentais e a mulher aos papéis privados,
estéticos, afetivos. Embora diferenças e mudanças mais radicais estejam se delineando, o que se
percebe na atualidade é ainda a prevalência desta divisão de esferas. As identidades sexuais e de
gênero não parecem se desfazer, ao contrário, elas se recompõem de um modo em que a
alteridade masculino/feminino não se acha arruinada pela marcha da igualdade, ainda que as
distâncias diferenciais e referenciais tornem-se apenas tênues, pelo menos na aparência.
Retomando Maria Rita Kehl, as formas mais amenas ou mais extravagantes de feminismo,
com suas quebras de barreiras promovendo novas identificações entre homens e mulheres, vêm
reduzindo a distância entre os dois sexos ao limite de uma mínima diferença.79 Tudo aquilo que a
promoção dos valores femininos apontava já nos anos 50 era o devir dos movimentos feministas
do fim da década de 60 e da década de 70, momento em que, da feminilidade valorizada, partiu-
78
79
Anthony GIDDENS, A transformação da intimidade, p.68-69 e 72-74.
Maria Rita KEHL, Op.cit..
391
se para um feminismo que tentava combater estes mesmos preceitos femininos, encarando-os
como alienantes e rebaixadores.
A ideologia feminista passou a ignorar ou recusar a feminilidade – que se dedicava mais à
vida privada – valorizando exclusivamente a vida pública. Um movimento de emancipação que
muitas vezes vinha confirmar, de acordo com Morin, o “esquema androidiano”80, como se os
valores masculinos fossem a plenitude dos valores humanos. Tudo isso, ao aliar o movimento das
mulheres com o movimento das etnias colonizadas, das classes exploradas, acabou por esquecer
ou deixar de lado a especificidade de uma originalidade “biossocial”81 que caracteriza os gêneros.
Dito de outro modo, o autor argumenta que o problema estaria em uma “zona de sombra
bioantropossociológica” onde se situa o marco entre o humano e o biológico, as diferenças entre
homens e mulheres; maior até que as diferenças entre as raças ou as classes. Uma diferença,
porém, que não pode ser encarada como pertencendo à mesma ordem daquela existente entre
patrões e proletários, senhores e escravos, pois há uma relação absolutamente original e
irredutível que se estabelece entre homem e mulher, proporcionada pelo desejo, pelo sexo, pela
coabitação e pela intimidade, muito em função do desenvolvimento histórico do amor romântico.
Assim, é que Morin propõe, para pensar as mulheres, uma nova noção: a de “classe biossocial”,
que une os fatores biológicos, socioculturais e os traços históricos novos e emergentes.82
Entendidos desta forma, homens e mulheres poderiam caminhar pela trajetória do desdobramento
da totalidade abrangente, refletindo uma sociedade configurada por uma nova coreografia para a
eterna dança das polaridades.83
A brecha possível parece ser, assim, a osmose entre o feminismo e a feminilidade, entre a
busca de igualdade e a preservação das identidades, o estabelecimento de uma igualdade na
diferença. Esta nova forma de atividade feminina contém os grãos que germinariam relações de
complementareidade entre feminino e masculino, em que ambos se insuflariam e se irrigariam de
seu
oposto.
80
Edgar MORIN, Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo II – Necrose, p. 156.
Idem, passim.
82
Ibidem.
83
Monika von KOSS, Feminino + Masculino: uma nova coreografia para a eterna dança das polaridades.
81
392
Considerações Finais
“Nenhuma época transmite à outra
a sua sensibilidade; transmite-lhe apenas a inteligência
que teve dessa sensibilidade. Pela emoção somos nós; pela
inteligência somos alheios. A inteligência dispersa-nos;
por isso é através do que nos dispersa
que nós sobrevivemos. Cada época entrega às
seguintes apenas aquilo que não foi.”
Fernando Pessoa
Após este percurso de reflexões, chega o momento de elaborar algumas considerações
finais com o intuito de apontar algumas conclusões, ainda que parciais, alinhavando os fios de
interpretação que teceram este trabalho.
Em primeiro lugar, é importante dizer que esta tese teve como objetivo captar e interpretar
a escuta da Bossa Nova a partir das memórias de ouvintes de um tempo e de um espaço
específico: o Rio de Janeiro nos anos 50 e 60. Esta proposta, no entanto, foi apenas a porta de
entrada para a compreensão de algo mais amplo e mais profundo: as experiências de escuta e seus
significados construídos a partir de uma articulação que considera a música inserida no cotidiano,
parte das experiências de jovens, homens e mulheres habitantes desta cidade. Nesse sentido,
espero que este trabalho tenha servido como uma contribuição, mesmo que pequena, para uma
história da escuta.
A memória, matéria-prima principal desta reflexão, permitiu compreender o tempo e o
modo como ele é percebido. Memórias que muitas vezes cristalizavam fatos, acontecimentos e
sentimentos daquele momento passado, mas que num jogo entre aspectos voluntários e
involuntários – com seus silêncios, omissões e esquecimentos – trouxe à tona também elementos
do presente e do passado da sociedade daqueles que recordam, tornando complexos os fatos
narrados. Memória que se mostrou viva e rica, vinculando diferentes temporalidades, repleta de
nuances das sensibilidades de uma época aberta à interpretação e explicitando um tempo denso
de significações.
Memórias – assim como as canções – evocadoras de imagens e sonoridades, de olhares e
de escutas, maneiras de perceber o mundo, enfim, possibilitando conhecer um pouco de uma
sociedade que passava por profundas transformações das formas de sensibilidade. Uma escuta – e
o que dela foi guardado na memória – perfazendo-se entre diferentes estímulos articulados de
maneira complexa pelos cinco sentidos que misturam em nosso corpo e na nossa percepção, a
393
vida que transcorre entre todos1. Lembranças de escutas que estão permeadas pelas maneiras
como se experimentam as formas de sentir o mundo hoje, onde a imagem parece tomar dianteira,
mas onde a oralidade se faz também muito presente.
A Bossa Nova captava estas sensibilidades e as traduzia para suas canções registrando a
modernidade que se vivia, redimensionando a escuta numa sociedade que apontava cada vez mais
para a visualidade. Essas canções captavam também um tempo e uma vida acelerada,
experimentada no turbilhão de uma metrópole que já não era tão calma e harmoniosa como tantas
vezes a memória construída sobre aquela época insiste em afirmar. Falar das belezas naturais da
cidade articuladas ao ritmo cadenciado da música e das formas mais sutis de cantar e tocar, pode
ser visto como uma tentativa de chamar a atenção para os elementos que se esvaíam numa cidade
em rápida transformação. Uma tentativa de estancar a aceleração do tempo, convidando a parar
diante do mar, das montanhas e da garota que vai à praia, convidando ao encontro numa cidade
que estava prestes a deixar de existir.
Foi instigante perceber como as visões mais unívocas sobre a Bossa Nova - e os anos 50 e
60 - persistem ainda hoje, colocando-a como sinônimo de um tempo ideal. Perceber o passado
como uma época melhor não é exclusividade daqueles que se recordam da Bossa Nova e da
cidade do Rio de Janeiro da década de 50 e 60, mas chama a atenção a pungência, entre os
cariocas, de uma visão nostálgica do mundo. Isto se torna ainda mais digno de atenção e reflexão
ao se considerar a proximidade e a presença da natureza na vida cotidiana das pessoas de um
modo muito mais forte do que em outras cidades. Deve-se considerar, do mesmo modo, um
passado que se conserva fisicamente em prédios e bairros e também no próprio hábito de cultuálo.
Mas também o sentimento de perda está presente na Bossa Nova: a perda de um tempo
mais lento, da escuta como o sentido mais cultivado, a perda de uma cidade que já não existe. Um
tempo em que o novo passa a ser valorizado cada vez mais em detrimento do antigo, tendo como
meios de expressão a imprensa e as canções, em que valores jovens tomam a frente nos discursos
e nos imaginários. Tempo também de perda de referenciais fixos, determinados e seguros das
1
Michel SERRES, Os cinco sentidos: filosofia dos corpos misturados 1.
394
identidades de gênero, aquilo que pertencia ao universo masculino e feminino, diluindo as
fronteiras entre os papéis de homens e mulheres na sociedade.
Compreender a Bossa Nova desta maneira, como esta espécie de chave que permite entrar
e entrever, pela sua escuta, questões mais amplas sobre aquela sociedade – e não apenas como a
música representante dos “anos dourados” hegemonicamente guardados na memória histórica –,
permite reconhecê-la como uma expressão das sensibilidades de um tempo, uma espécie de
antena das mudanças em processo naquele momento, apontando para o devir de uma série de
elementos que se efetivariam mais tarde.
Mas este é o momento também de reconhecer os limites desta pesquisa. A necessidade de
recortar e pôr fim a um trabalho que ia se abrindo e se desdobrando a cada nova leitura e a cada
nova descoberta, fez com que questões também importantes fossem deixadas em segundo plano –
sem ser relegadas como menores –, sendo apenas apontadas sem um desenvolvimento mais
profundo. Entre elas, está a questão da linguagem musical. Embora tenha sido pensada e levada
em consideração nas reflexões, o reconhecimento de limites em relação ao domínio do assunto
fez com que estas análises se apoiassem em outros autores, impossibilitando maiores vôos na
análise de melodias, harmonias, ritmos e como estes elementos eram operados na escuta das
canções. Um tema que surgiu nas leituras, na pesquisa e na própria reflexão sobre as memórias
foi a necessidade de compreender a escuta em termos mais biológicos ou neurológicos,
considerando suas interfaces com o olhar e com o tato. Essa postura exigiu uma aproximação das
Ciências Cognitivas, decisão que se mostrou fecunda, apesar da impossibilidade de uma
discussão mais aprofundada, o que desviaria os caminhos desta tese.
Uma outra questão que mereceria maior destaque e aprofundamento é a própria noção de
sonoridade e seus aspectos técnicos. Uma reflexão mais detida na questão das tecnologias e sua
utilização nas músicas permitiria uma melhor compreensão de como a noção de fidelidade sonora
possui também um cunho social e cultural, tendo implicações tanto na produção musical quanto
nas maneiras de escutar. Na década de 50 e, no caso do Brasil, mais precisamente na de 60, é
quando se inicia a era da alta-fidelidade (hi-fi) nas gravações, quando se busca por um som limpo
de chiados e de ruídos de fundo. Um som mais realista passa a ser a meta da indústria
fonográfica. Como argumenta Iazzetta2, refletir sobre a fidelidade sonora leva a pensar na própria
historicidade do termo “fidelidade”, pois em cada época o padrão de escuta teria como sinônimo
2
Fernando IAZZETTA, Os sons do silício: corpos e máquinas fazendo música.
395
de qualidade uma reprodução sonora diferente. Com isso, o centro de referência deslocou-se da
performance ao vivo – vista como mais fidedigna - para o significado desta performance,
conferindo importância para a compreensão do modo como as formas de gravação das canções se
utilizam da incorporação e ampliação da tecnologia no processo de produção do som, marcando
diferenças também no padrão de escuta e no que passa a ser considerado ou não de qualidade.
Estes mesmos limites do trabalho colocam-se como possibilidades abertas para reflexões
futuras, questões a serem exploradas em outras oportunidades. Pensando no som e em sua
“fabricação”, pode-se refletir sobre a incorporação das tecnologias na música atual até o limite de
quase todas as canções gravadas hoje possuírem pelo menos alguns trechos de música eletrônica,
denotando uma paisagem sonora que incorpora os sons, os ruídos da modernidade, da aceleração
do tempo e do efêmero, fazendo com que a linguagem musical se ache articulada aos sons da
cidade, das máquinas e do mundo. Uma presença cada vez maior, dentro da música, das
tecnologias afetando os hábitos perceptivos, as formas de escuta, o que se entende por som de
qualidade e o próprio fazer musical. Isso configura um tempo em que a Bossa Nova parece ser
apreciada por muitos somente se puder ser relida, reelaborada, mixada com outros sons, ritmos,
vozes, intensidades e timbres. Muitas vezes esta é a impressão que fica: para se fazer escutar na
atualidade – que não consegue mais conviver com a calma evocada por barquinhos, tardinhas,
lobos bobos, garotas de Ipanema – a Bossa Nova precisa expressar este outro espírito do tempo,
incorporar esta outra paisagem sonora da atualidade. Uma reflexão mais aprofundada sobre este
assunto ficará para os próximos vôos.
Por fim, é importante ressaltar que o passado chega pelo presente, numa relação de
diálogo estreito. Lembrando Walter Benjamin, o historiador/narrador encontra este passado em
ruínas e o restaura, atualizando-o no presente3. Trabalhando com outros tempos, faz-se necessário
interpretar o outro - o passado - numa perspectiva relativista. Nisto, o ofício historiográfico muito
se relaciona com o antropológico, estabelecendo um diálogo com o outro numa espécie de
alteridade. Esta foi também uma das tentativas deste trabalho: a de entabular uma reflexão
interdisciplinar entre História e a Antropologia. Se os historiadores se valem da narrativa para
interpretar um tempo, uma sociedade, compreendendo seus contextos, gramáticas e linguagens,
assim também o faz o antropólogo em sua interpretação das culturas. Ambos intérpretes,
historiadores e antropólogos, transformam suas culturas analisadas em uma narrativa.
3
Walter BENJAMIN, Teses sobre a filosofia da História. In: Flávio KHOTE (Org.), Walter Benjamin, p.156.
396
O que a Antropologia parece colocar cada vez mais para os historiadores é a perspectiva
de evocar possibilidades múltiplas, rejeitando explicações causais, tentativas de análises objetivas
e cientificistas. Ler a experiência como um texto permite sempre uma re-invenção daquele
vivido, sendo os textos antropológicos, eles próprios, interpretações4. Assim é que os
historiadores também têm se apegado à narrativa, à interpretação da experiência passada como
um texto da vida, uma trama de significados que necessita ser captada no cotidiano tenso,
fragmentário, plural e múltiplo de temporalidades.
Os historiadores podem aprender com os antropólogos a ler um texto “não para descobrir
todos os quens, quês, ondes e quandos de um acontecimento, mas para ver o que o acontecimento
significou para as pessoas que dele participaram”5. Fazer história em diálogo com o ofício
antropológico parece contribuir para o captar de pistas e fragmentos de vestígios do passado,
partindo da idéia de o passado ser um texto, uma trama, uma teia de significados múltiplos em
suas
4
5
tessituras,
para
assim
perscrutar
fios
da
experiência
vivida.
Clifford GEERTZ, A interpretação das culturas.
Robert DARNTON, O beijo de Lamourette, p. 295.
397
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