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iii encontro de internacionalização do conpedi – madrid A tutelA penAl Como instrumento De DiGniDADe AmBientAl nA perspeCtiVA Do Direito iBeroAmeriCAno luiz Gustavo Gonçalves RibeiRo Doutor e Mestre em Ciências Penais pela UFMG. Professor de Direito Penal Ambiental no Curso de Pós-Graduação em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável da ESDHC. Promotor de Justiça em Belo Horizonte/MG. beatRiz souza Costa Doutora e Mestre em Direito Constitucional pela UFMG. Pró-reitora de Pesquisa na Escola Superior Dom Helder Câmara. Professora no Curso de Pós-Graduação em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável da ESDHC. resumo Ainda que se reconheça que o celeiro de produção das normas penais tenha levado em conta, em face da dogmática secular, o paradigma dos conflitos interindividuais, as demandas por tutela de bens jurídicos difusos crescem e reclamam efetividade. À pergunta se, por isso, o meio ambiente pode e deve encontrar-se no campo de atuação do direito penal, a hipótese vestibular é a de que aquele, dotado que é de importância para a vida dos seres, de presentes e futuras gerações, é bem jurídico merecedor de dignidade que não deriva de bens jurídicos individuais, mas que possui autonomia de verdadeiro bem universal e transpessoal. Por uma questão até mesmo de sobrevivência do direito penal, este deverá, a serviço da sociedade, imiscuir-se na tutela do bem difuso, ainda que, com isso, tenha que sofrer modificações dogmáticas em face de uma nova política criminal reclamada pela sociedade pós-moderna do risco. O que, no entanto, se tem feito para a efetividade da tutela do ambiente será tratada no trabalho sob a perspectiva de países iberoamericanos, mais precisamente Brasil, México, Argentina, Chile, Colômbia e Equador, principalmente em face do reconhecimento, diante de grandes e graves questões ambientais recentes, da necessidade da tutela penal como instrumento em prol da dignidade ambiental. O tema reveste-se de importância para a construção de uma dogmática penal internacional para a mais adequada tutela do ambiente e será tratada na perspectiva metodológica dedutiva. Sem prejuízo da análise bibliográfica contida em livros e artigos, o texto também contém dados de natureza primária, em razão de pesquisa em jornais e revistas eletrônicas que trazem 52 volume │ 10 iii encontro de internacionalização do conpedi – madrid exemplos de aplicação prática do direito penal em prol do ambiente na iberoamérica. Os resultados demonstram que o direito penal tem aplicabilidade na tutela ambiental. palavras-chave Direito penal; Meio ambiente; Dignidade; Direito iberoamericano. Abstract Although it is recognized that the standards of criminal production barn has taken into account, in face of secular dogma, the paradigm of inter-conflicts, demands for protection of diffuse legal interests grow and complain effectiveness. Asked whether, therefore, the environment can and should be in the criminal law field of action, vestibular hypothesis is that that, provided it is of importance to the lives of beings, present and future generations, it is quite legal worthy of dignity that does not derive from individual legal interests, but it has real autonomy and universal and transpersonal. As a matter even survival of criminal law, it should, in the service of society, to interfere in the protection of diffuse legal interest, even with that, have to suffer dogmatic changes in the face of a new criminal policy, as requested by the postmodern society risk. What, however, has been done to the effectiveness of environmental protection will be treated in the work from the perspective of Ibero-American countries, specifically Brazil, Mexico, Argentina, Chile, Colombia and Ecuador, especially in face recognition, before large and recent serious environmental issues, the protection of penal law as a tool for environmental dignity. The issue is of importance for the construction of an international criminal dogmatic for more adequate protection of the environment and will be treated in the deductive methodological perspective. Without prejudice to the literature review contained in books and articles, the text also contains primary data, in due research in newspapers and electronic journals that bring examples of practical application of criminal law for the environment in Ibero-America. The results show that criminal law is applicable to environmental protection. Key words Criminal law; Environment; Dignity; Ibero-American law. 1. introdução Os avanços tecnológicos e as modificações climáticas hoje vistas demonstram a completa ruptura com uma sociedade de comportamentos previsíveis e de consequências limitadas a pequenas doses de álea. A exploração humana sobre a natureza e a avidez pela transformação da tecnologia e dos recursos naturais em dinheiro e poder são marcas de volume │ 10 53 iii encontro de internacionalização do conpedi – madrid uma sociedade menos solidária e mais egoísta, que, se por um lado, convive com as imprevisíveis consequências das ações humanas, por outro reclama mecanismos de segurança capazes de minimamente preservar a vida em sociedade, ou de, pelo menos, proporcionar uma maior, e talvez aparente, sensação de tranquilidade. Essa realidade proporciona, no campo do direito como um todo, e mais especificamente no campo do direito penal, terreno fértil para que a dogmática seja posta à prova e para que uma nova política criminal oriente a produção legislativa num campo que, tradicionalmente, encontra-se preso a raízes garantistas muito fortes, apropriadas, todavia, ao trato das relações interpessoais e não difusas. À pergunta sobre se o direito penal tem vez e voz para a lida com atitudes humanas que levam à escassez de água e a tragédias naturais de grandes dimensões como aquela ocorrida no Golfo do México em 2011, parece ser mais apropriada a resposta afirmativa, isso não só por uma questão de dignidade ambiental, mas também se considerado for que o direito como um todo, e, por óbvio, também o direito penal, deve servir à sociedade e não ficar mergulhado num processo de isolamento capaz de conduzi-lo à autofagia. Contudo, muito menos tranquila é a reposta à pergunta sobre o que poderá ser feito para consagrar a tutela penal e sua utilidade quando o bem jurídico ofendido for difuso e quando boa parte dos agentes, além de possuir grande poderio econômico, não forem pessoas naturais, mas jurídicas. A tais perguntas, formula-se uma hipótese de que o direito penal tem foro de legitimidade na seara difusa e, particularmente, no trato das questões ambientais mais relevantes para a subsistência da vida humana, como um seu instrumento de tutela. Para que, no entanto, seja possível existir estofo dogmático que lhe traga legitimidade, o direito penal deve curvar-se à nova realidade, ser capaz de tutelar bens jurídicos difusos e punir, sem qualquer ordem de preconceitos, as pessoas, naturais ou jurídicas, deflagradoras de condutas tipificadas em leis penais. No caso ambiental, todavia, a intervenção mínima do direito penal, princípio basilar para a própria existência desse ramo do direito1, deve ser buscada quando a conduta, tipificada, representar alteração no equilíbrio ecológico, o que, aliás, é consagrado pelo caput do artigo 225 da Constituição Federal de 1988. 1 54 Discorre Paulo Queiroz que “a questão decisiva consiste em saber, portanto, quando a intervenção penal é legítima e conveniente, isto é, saber se, quando e como deve ter lugar semelhante estratégia, sempre condicionada pelos valores e princípios constitucionais que, expressa ou tacitamente, imediata ou mediatamente, regem o direito de punir. Desnecessário dizer que o juízo de conveniência ou utilidade constitui critério necessário, mas insuficiente para justificar a intervenção jurídico-penal, pois a pena deve ser a um tempo justa e necessária (útil) [...] Uma tal perspectiva conduz assim a um modelo de política criminal radicalmente descriminalizador; conduz a um modelo de direito penal mínimo, que nos parece o mais condizente com a Constituição, sobretudo em virtude de sua declarada vocação libertária” (2008, p. 115-116). volume │ 10 iii encontro de internacionalização do conpedi – madrid Para a sustentação da hipótese, serão analisados casos concretos de intervenção humana em episódios que redundaram em consequências danosas ao ambiente e ao próprio homem, como o já referido desastre ambiental no Golfo do México, com o derramamento de centenas de milhares de litros de petróleo, o que proporcionou evidente desequilíbrio ecológico pela mortandade de peixes e da flora aquática. Todavia, a análise não se limita apenas ao referido episódio, já que aborda o desenvolvimento do direito penal ambiental na iberoamérica, mais especificamente no Brasil, México, Argentina, Chile, Colômbia e Equador, com vistas à maior e melhor tutela do ambiente e, em consequência, à maior qualidade e dignidade da vida animal e vegetal. A justificativa do trabalho recai na importância da análise da transformação do direito penal na iberoamérica para fins de proteção à dignidade ambiental, e, consequentemente, demonstrar, como objetivo geral, que o direito penal tem sido instrumento eleito para servir à tutela ambiental, cada vez mais reclamada. A proposta metodológica é, sem prejuízo da análise de casos concretos que reclamam a intervenção penal, dedutiva, de forma a fazer com que, a partir da importância da manutenção do equilíbrio ambiental, a testagem da hipótese de que o ambiente requer a intervenção penal esteja dotada de estofo argumentativo capaz de justificar tal intervenção, ainda que modificações dogmáticas sejam necessárias. Sem prejuízo da análise bibliográfica contida em livros e artigos, o texto também contém dados de natureza primária, em razão de pesquisa em jornais e revistas eletrônicas que trazem exemplos de aplicação prática do direito penal em prol do ambiente na iberoamérica. A análise da sociedade do risco como propulsora de uma nova realidade do direito penal será o ponto de partida para que, em seguida, a abordagem recaia sobre a serventia do referido ramo do direito para a tutela de bens jurídicos difusos como o ambiente, sobre o direito penal como instrumento de dignidade ambiental e, por fim, sobre a proteção criminal do ambiente na iberoamérica. 2. Da sociedade do risco como propulsora de nova política Criminal Difícil seria, em outros tempos, ante a pouca importância dada ao fato de que os recursos naturais eram e são finitos ou mesmo por ignorar as mazelas do grande desenvolvimento tecnológico e científico, sustentar que o direito penal deveria ter um papel, mesmo que subsidiário e fragmentário como é de sua natureza, na proteção de bens jurídicos de natureza difusa. Hoje, todavia, a alusão “à deterioração de realidades tradicionalmente abundantes que em nossos dias começam a manifestar-se como ‘bens escassos’, aos quais se atribui agora um valor que anteriormente não lhes correspondia” (SÁNCHEZ, 2011, p. 33), faz com que, também pela presença de realidades mais valoradas como o patrimônio histórico-artístico, vozes se levantem em torno da necessária expansão do campo de tutela do direito penal. volume │ 10 55 iii encontro de internacionalização do conpedi – madrid As grandes catástrofes naturais, que atingiram o homem de forma a que ele pudesse e devesse atentar para o perigo da exploração inadequada dos recursos naturais, a produção de poluição, em qualquer de seus níveis, e mesmo a escassez de água que, a exemplo do Brasil, tem fomentado programas de racionamento capazes de fazer com que a população perceba, em seu dia a dia, a importância do assunto, deve, ou pelo menos deveria, despertar a atenção de políticos para a confecção de normas penais concernentes à punição de comportamentos que atentem contra a dignidade de bens jurídicos difusos, muito caros à vida humana e dos espécimes animal e vegetal. Afinal, a confecção da norma, e aqui especificamente da norma penal, compreende uma opção política que, em determinado Estado, se entende por conveniente para a tutela dos bens jurídicos de maior magnitude.2 É nesse aspecto que a política criminal - aquela que, nos moldes de Zafaroni (2013), pode ser compreendida como a arte de governo no âmbito criminal, ou seja, as opções governamentais que dizem respeito ao fenômeno criminal e que orientam a confecção das normas penais - é afetada pelas novas demandas oriundas da sociedade hodierna. A mesma sociedade que, a um tempo, presencia a desenfreada busca pelo capital, a pujança tecnológica e exploração do ambiente, e, a outro, vivencia a escassez dos recursos naturais, os bolsões de miséria e a insegurança produzida pela ausência de referência espacial de danos, com frequência irreparáveis, oriundos de decisões humanas, e que contribuem para o que Beck (2010) difundiu como “sociedade de risco” ou como “sociedade de riscos”. Nas palavras de Bauman, hoje o terreno sobre o qual se presume que nossas perspectivas de vida se assentem é reconhecidamente instável - tal como são os nossos empregos e as empresas que os oferecem, nossos parceiros e nossas redes de amizade, a posição que desfrutamos na sociedade mais ampla e a autoestima e a autoconfiança que acompanham. O ‘progresso’ que já foi a manifestação mais extrema do otimismo radical e uma promessa de felicidade universalmente compartilhada e permanente, se afastou totalmente em direção do polo oposto, distópico e fatalista da antecipação: ele agora representa a ameaça de uma mudança inexorável e inescapável que, em vez de augurar 2 56 Utiliza-se aqui a compreensão, que embora se reconheça esteja longe de encontrar porto seguro na doutrina, de que a função do direito penal é a efetiva tutela de bens jurídicos. Se autores como Bettiol (1976, p. 179) sustentam que o direito penal deve orientar-se pela ideia de retribuição justa, o que acentua o caráter ético de suas considerações, aproximando-o de Welzel, para quem, a partir da distinção entre valor do resultado e valor da ação, a função do direito penal é proteger os mais elementares valores éticossociais da ação (WELZEL, 1993, p. 5), outros, como Roxin, sustentam que o bem jurídico serve como parâmetro político-criminal à crítica legislativa, decorrendo, disso, “que o legislador só pode sancionar penalmente a violação ou a exposição a perigo de bens jurídicos” (ROXIN, 2013, p. 290). volume │ 10 iii encontro de internacionalização do conpedi – madrid a paz e o sossego, pressagia somente a crise e a tensão e impede que haja um momento de descanso.(BAUMAN, 2007, p.16) Destaca-se que a incerteza e a volatilidade não apenas do capital, mas das próprias relações entre os seres, é uma característica hoje marcante da sociedade. Não se quer aqui dizer que a vida, no passado, produzisse, por si, a seguridade dos seres quanto a álea do destino; o que se vê hoje, todavia, é um grande encurtamento, um maior estreitamento do contato do homem com os riscos impostos pelo novo modo de vida globalizado, o que coloca a própria vida humana à prova. Assim, as nuances da vida moderna, ou pós-moderna, são demandas que se impõem aos Estados como aptas a ser regulamentadas em vista da própria manutenção da pacificação social, o que não pode fugir ao campo de ação de novas políticas criminais, ainda que se reconheça que o celeiro de produção de normas penais tenha levado tradicionalmente em conta o paradigma antropocentrista, eminentemente individualista. Trata-se de um novo modelo de sociedade, que deflagra novos paradigmas de política criminal, principalmente em matéria ambiental, bem jurídico difuso e alvo das mais exponenciais investidas do homem. Afinal, el Derecho Penal no puede anquilosarse en un mundo en permanente cambio, por el contrario, debe responder a sus necesidades, como de hecho, lo ha venido haciendo en otros dominios. En la adopción de medidas diferentes cuyos efectos recaigan sobre el objeto del daño y no sobre el causante del daño, está el futuro del Derecho del Ambiente, pues la simple transposición de las soluciones del daño general al daño ecológico se reveló insuficiente. A un nuevo daño corresponden nuevas soluciones. Es necesario respetar la especificidad del problema ambiental creando las normas adecuadas y que se correspondan con la evolución del Derecho Ambiental (POZO, 2014, online). 3. Da serventia do Direito penal para a tutela de Bens Jurídicos Difusos O direito penal, como ramo do direito que é, possui a função de permitir pacificação social e, consequentemente, a própria vida em sociedade. Todavia, se tal função é comum aos ramos do direito em geral, o que o diferencia das demais disciplinas? Qual a razão de ser do direito penal se os demais ramos do direito possuem funções comuns a ele? Para formular resposta às perguntas acima destacadas, cumpre dizer que o direito penal, por ser mais aflitivo, principalmente em razão das penas privativas de liberdade que o diferenciam das demais disciplinas, é menos indulgente e, por isso, carrega consigo uma vasta gama de princípios de garantia ao cidadão, inclusive contra a própria onipotência do Estado. volume │ 10 57 iii encontro de internacionalização do conpedi – madrid A tutela dos bens jurídicos mais caros à sociedade, base sobre a qual se defende a mínima intervenção do direito penal3, é, por excelência, o ponto de partida para a compreensão daquilo que deve ou não ser objeto de tutela desse ramo do direito. E é nesse contexto de importância do bem a ser tutelado que não pode ser ignorado um papel qualquer ao direito penal em questões que dizem respeito à própria subsistência da vida planetária, o que também justifica o fato de que os bens, por excelência indispensáveis à subsistência do próprio homem, fiquem fora do campo de ação do direito penal. Destaca-se, no entanto, que a dificuldade de se aceitar que o bem jurídico difuso possa ser objeto de tutela penal não diz respeito à sua assunção como objeto material da conduta humana. Quanto a isso, aliás, boa parte dos códigos penais mundiais do século passado já traziam, a título de exemplo, os crimes de incêndio e de epidemia como infrações penais de proteção à sociedade e dos interesses transindividuais4. A ideia de que uma autorregulação possa vir a resolver as questões afetas à pós-modernidade é tema superado, mesmo porque significaria pedir “ao mercado – na verdade, o mais autêntico produtor das dificuldades e desesperanças da sociedade técnica industrial – o remédio para a doença que ele próprio inoculou” (DIAS, 2015, online), o que levaria à renúncia de um “modelo de vida que fez do consumo o seu próprio motor e do aumento da produção o orientador de quase todo o conhecimento” (DIAS, 2015, online). A grande questão diz respeito ao fato de que a magnitude do bem jurídico difuso reclama ações prognósticas e não retrospectivas, o que significa dizer que o direito penal deve renunciar a ideia de lesividade como um princípio basilar que reclama dano efetivo – e, assim, pretérito - ao bem jurídico tutelado. Este o desafio a ser superado, uma vez que, por tradição, o direito penal remonta ao passado, o que levou Cornelius Prittwitz a sustentar, em Congresso sobre globalização, risco e meio ambiente realizado em Granada, Espanha, que “o Direito Penal é o único ramo do Direito que não conhece sentenças direcionadas explicitamente ao futuro” (2013, p. 63). Contudo, como sustenta Figueiredo Dias, compete à dogmática penal ajustar-se ao novo da vida, e não o contrário. Afinal, não haverá mais lugar para um pensamento que, como o mocho, levanta voo só ao anoitecer, que deixa as coisas acontecer para depois tentar remediá-las e cuja intervenção é por isso por essência retrospectiva e não prospectiva, conservadora e não propulsora, aniquiladora e não protectora das vítimas do sistema, que somos todos nós (DIAS, 2015, online). 3 4 58 A função de tutela dos bens jurídicos, compreensão que serve de base ao trabalho, foi destacada na nota de n. 4. Todavia, não se trata de uma mera e simples tutela de bens jurídicos, mas da tutela de bens jurídicos mais importantes à sociedade (daí o caráter fragmentário do direito penal), em casos de ofensa significativa a eles (razão pela qual não existe sequer tipicidade material no chamado “crime bagatelar”). No caso brasileiro, desde a década de 40 do século passado, o Código Penal já trazia as figuras do incêndio (artigo 250) e epidemia (artigo 267) como exemplo dos chamados crimes contra a incolumidade pública. volume │ 10 iii encontro de internacionalização do conpedi – madrid Não se trata, no entanto, de tarefa simples, já que a tradição individualista de tutela do bem jurídico engessa a dogmática penal de tal forma a contemplar a responsabilidade penal subjetiva como aquela que, sem exceções, deve ser a adotada pelo direito penal. É preciso, todavia, não ignorar que o homem é um ser social e que a viabilidade, tanto quanto mais possível, dos sistemas de proteção coletiva ante as exigências pós-modernas de vida em uma sociedade globalizada orientam, como já falado em tópico anterior, a necessidade de uma nova política criminal. A tutela penal de bens jurídicos de natureza difusa diz, pois, respeito à própria vida do direito penal, que tem, como ramo do direito que é, uma função precípua de pacificação social em uma sociedade que vê, cada dia mais, a existência de conflitos envolvendo bens jurídicos coletivos e difusos, como aqueles que envolvem a agressão ao ambiente. Assim, não é dado ao direito penal o privilégio de ignorar a existência de novos bens jurídicos que, de forma fragmentária e subsidiária, devem ser objeto de tutela penal. Daí poder-se até mesmo sustentar que novos interesses, assim considerados por Silva Sánchez (2011), conduzem a uma nova política criminal que deve ensejar a tutela de bens jurídicos coletivos. Afinal, el derecho penal es un instrumento cualificado de protección de bienes jurídicos especialmente importantes. Sentado esto, parece obligado tener en cuenta la posibilidad de que su expansión obedezca, al menos en parte, ya la aparición de nuevos bienes jurídicos – de nuevos intereses o de nuevas valoraciones de intereses preexistentes -, ya al aumento de valor experimentado por algunos de los que existian con anterioridad, que podria legitimar su protección a través del Derecho penal. Las causas de la probable existencia de nuevos bienes jurídico-penales son, seguramente, distintas. Por un lado, cabe considerar la conformación o generalización de nuevas realidades que antes no existian – o no con la misma incidencia -, y en cuyo contexto ha de vivir la persona, que se ve influida por una alteración de aquéllas (SÁNCHEZ, 2011, p. 11). Se, a título de exemplo, o meio ambiente, como bem jurídico difuso cujo equilíbrio é hoje reclamado como condição da própria sobrevivência humana, de presentes e futuras gerações, não pudesse ser tutelado pelo direito penal, como seria possível sustentar que este, como ramo do direito que é, fosse instrumento de pacificação social e, mais especialmente, de defesa dos bens jurídicos mais importantes para a sociedade? Se, portanto, a transformação dogmático-penal se fizer necessária por meio da chamada tutela de perigo abstrato5, da consagração dos chamados delitos de 5 “Esta categoria de delitos é cada vez mais utilizada pelo legislador, como técnica de tipificação de condutas, para fazer frente aos novos contextos de riscos, em que se quer evitar a ocorrência de resultados volume │ 10 59 iii encontro de internacionalização do conpedi – madrid acumulação6 ou da administrativização do direito penal7, fato é que, se preenchidos estiverem conceitos mínimos de taxatividade e determinabilidade da lei penal, tais transformações devem ser aceitas sem tergiversações, por se tratar de questão afeta não apenas à sobrevivência humana, mas também, e principalmente, no tocante aos objetivos do trabalho, como condição para a própria existência do direito penal, ou, pelo menos, de sua legitimidade social. 4. Da tutela penal Difusa como instrumento de Dignidade Ambiental A aptidão do direito penal para a efetiva proteção de bens jurídicos difusos imprescindíveis à própria vida não pode ser concebida sem qualquer prejuízo à visão antropocêntrica do objeto de tutela penal. Afinal, como se poderia sustentar, sem que hipocrisia houvesse, que fauna e flora marinhos não fossem dignos de tutela em caso, por exemplo, de uma grande catástrofe ambiental proporcionada pelo vazamento de grande quantidade de petróleo no mar? Em muito acertadas, nesse sentido, são as considerações de Jorge de Figueiredo Dias: Prejudicada fica igualmente uma concepção exasperadamente antropocêntrica dos bens jurídicos colectivos, ligada a um entendimento ‘monista-pessoal’ do bem jurídico, hoje doutrinalmente muito preconizado (com particular insistência por Hassemer e a chamada ‘Escola de Frankfurt’). Uma concepção, esta, que de bem jurídico só permite em rigor falar quando estejam em causa interesses reais, tangíveis e, por consequência, também actuais do indivíduo. Como prejudicada fica igualmente uma concepção antropocêntrica moderada do bem jurídico colectivo, que conduziria a afirmar a sua existência apenas se e na medida em que a 6 7 60 danosos, por meio da antecipação da incidência da atuação estatal. A intensificação da utilização dos crimes de perigo abstrato e sua aplicação em novos âmbitos de atividades passam a ser o instrumento nuclear da política criminal e, por isso, devem ser analisadas diante dos fins de um direito penal de um Estado Democrático de Direito”(BOTTINI, 2010, p. 23). Em tais delitos a relação entre a ação e o bem jurídico tutelado é particularmente longínqua. Segundo os quais a esfera de punibilidade estaria preenchida somente com a provável acumulação dos comportamentos capazes de gerar, como na poluição, um resultado danoso. Isso, para os críticos, gera uma culpabilidade por fato de outrem, não compatível com o direito penal da culpa. Conforme Figueiredo Dias, a decisão de se permitir e punir tal ou qual delito de acumulação é “verdadeiramente difícil e que tem de ser cuidadosamente ponderada, nomeadamente em função das aquisições parcelares definitivas que vão sendo feitas pela Ciência”. (DIAS, 2015, online). Pela observância, cada vez mais presente, de preceitos administrativos no corpo do tipo penal e, ainda, pela punibilidade da desobediência administrativa quando o direito administrativo não se mostrar forte o bastante para coibir a conduta comissiva ou omissiva. Diante dessa realidade e nos dizeres de Renato de Mello Jorge Silveira, ao se confundirem as instâncias, o direito penal assume a função de reforço na gestão ordinária da Administração, formatando-se verdadeira acessoriedade administrativa junto ao âmbito penal (2006, p. 143). volume │ 10 iii encontro de internacionalização do conpedi – madrid razão da tutela pudesse ainda ser reconduzida à protecção de bens jurídicos individuais; nesta acepção se exigindo que os bens jurídicos colectivos a tutelar se encontrassem de qualquer modo dotados de um ‘referente pessoal’, possuíssem um ‘núcleo personalizável’, fossem unicamente ‘dedutíveis’ a partir de bens jurídicos individuais (DIAS, 2015, online). E para ponderar que a concepção antropocêntrica é capaz de gerar prejuízo à tutela dos bens jurídicos coletivos enquanto tais, o autor continua a discorrer: O que parece haver de injustificável nesta limitação (e pode vir a afectar a efectividade de uma tutela penal das gerações futuras) é que, com ela, continuam a considerar-se os bens jurídicos colectivos como puros ‘derivados’ de bens jurídicos individuais; e, deste modo, a perspectivar a protecção penal colectiva como tutela antecipada de bens jurídicos individuais, em particular os da vida, da saúde e do património de pessoas singulares e concretas. Com esta formulação uma tal tese parece incompatível com o reconhecimento de verdadeiros bens jurídicos colectivos. Estes devem ser antes aceites, sem tergiversações, como autênticos bens jurídicos universais, transpessoais ou supra-individuais. Que também esta categoria de bens jurídicos possa reconduzir-se, em último termo, a interesses legítimos da pessoa, eis o que não será lícito contestar. O carácter supra-individual do bem jurídico não exclui decerto a existência de interesses individuais que com ele convergem: se todos os membros da comunidade se vêem prejudicados por condutas potencialmente destruidoras da vida, cada um deles não deixa individualmente de sê-lo também e de ter um interesse legítimo na preservação das condições vitais. Mas se, por exemplo, uma descarga de petróleo no mar provoca a morte de milhares de aves marinhas e leva inclusivamente à extinção de alguma espécie rara, também aí pode verificar-se a lesão de um bem jurídico colectivo merecedor e carente de tutela penal, ainda que tais aves sejam absolutamente insusceptíveis de utilização por parte do homem. Não parece possível descortinar aqui, ao menos em via de princípio, ofensa de um qualquer bem jurídico individual, possibilidade de referência a ele ou cadeia dedutiva que a ele conduza. E todavia, as aves referidas, se bem que não «utilizáveis» por quem quer que seja, já nascido ou ainda não nascido, constituem um património de todos. Se as não protegermos as gerações futuras não terão a possibilidade de as apreciar, apesar de que nós tenhamos podido fazê-lo (DIAS, 2015, online). O prejuízo da concepção antropocêntrica do bem jurídico difuso não significa, todavia, que este, como é o ambiente, não possa ser dotado de um suporte em legítimos interesses individuais, mesmo porque hoje, cada vez mais conscientes da importância da preservação do ambiente para a própria vida humana, as pessoas, “longe de se limitarem a chorar na exclusão, cada vez mais reclamam, individual e colectivamente, serem ouvidos volume │ 10 61 iii encontro de internacionalização do conpedi – madrid e organizam-se para resistir contra a impunidade” (SANTOS, 2007, p. 10). O que se advoga, contudo, é que a dignidade, assim considerada como o respeito à existência e à singularidade, seja também observada quanto ao ambiente8 e, portanto, em relação aos seres vivos em geral, com envergadura tal que sejam estes valorados de per si. Advoga-se, pois, que a tutela penal do ambiente sob o ponto de vista ecológico contribui para a “conservação das propriedades e das funções naturais desse meio, de forma a permitir a existência, a evolução e o desenvolvimento dos seres vivos” (MACHADO, 2010, p. 57-58). Se a atuação penal, como até então se disse, deve ser selecionada apenas para a tutela de bens jurídicos importantes e para as agressões mais significativas a esses bens, a intervenção penal em prol do ambiente consagra uma maior dignidade a ele enquanto bem jurídico difuso. O tópico seguinte abordará, nessa perspectiva de intervenção penal ambiental, a realidade do tema na iberoamérica, com destaque para Brasil, México, Argentina, Chile, Colômbia e Equador, sem, todavia, em face da própria limitação textual, qualquer pretensão de esgotar o assunto. 5. Da tutela penal Ambiental na iberoamérica Se os desafios da tutela penal de bens jurídicos difusos, dentre os quais o ambiente, se impõe a todos os países, mesmo porque a dogmática penal clássica é universal, no Brasil e na América espanhola esses desafios não são menores ou menos tortuosos. Nota-se, no entanto, que, de forma geral, os problemas relacionados às modificações climáticas, às grandes catástrofes ambientais e à escassez de recursos que, como a água, eram tidos outrora como abundantes e hoje são motivo de políticas públicas de racionamento, deflagraram uma maior preocupação dos governantes na atribuição ao direito penal de um papel de relevo na tutela do ambiente. No Brasil, o que se viu, a partir da Constituição Federal de 1988, especificamente em relação à regulamentação legislativa do disposto em seu artigo 225, § 3º por meio da Lei 9605/98, foi o incremento significativo de condutas penalmente tipificadas em defesa da fauna, da flora, do ordenamento urbano, do patrimônio cultural e da administração ambiental, o que tem balizado a interpretação dos Tribunais Superiores quanto à admissibilidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica, mesmo que de forma independente da pessoa natural. 8 62 Assim como os animais, dispõe Jürg Stöcklin, professor de botânica da Universidade da Basiléia, Suíca, que as plantas possuem um valor moral, são dotadas de “uma capacidade perceptiva ultrassensível e interagem de maneira complexa com sinais exteriores”. (2015, online). volume │ 10 iii encontro de internacionalização do conpedi – madrid Nesse sentido, ressalta-se a importância da mudança de paradigma que até então vicejava no Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que a responsabilidade penal da pessoa jurídica pressupunha a persecução simultânea em face da pessoa natural dotada de capacidade de culpabilidade. Isso porque a Suprema Corte brasileira entendeu pela possibilidade da responsabilidade penal isolada da pessoa jurídica ao argumento de que a Constituição Federal não impôs qualquer restrição à responsabilidade unitária dela em prol de uma tutela mais consistente do ambiente. O caso submetido à apreciação do Supremo Tribunal Federal decorreu de derramamento de aproximadamente quatro milhões de óleo cru nos rios Barigui e Iguaçu, bem como em suas áreas ribeirinhas, oriundo de exploração por pessoa jurídica, no caso a Petrobrás S/A, de empreendimento de refino de petróleo no Estado do Paraná. A decisão, publicada em 30 de outubro de 2014, foi assim ementada: EMENTA RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PENAL. CRIME AMBIENTAL. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. CONDICIONAMENTO DA AÇÃO PENAL À IDENTIFICAÇÃO E À PERSECUÇÃO CONCOMITANTE DA PESSOA FÍSICA QUE NÃO ENCONTRA AMPARO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. 1. O art. 225, § 3º, da Constituição Federal não condiciona a responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais à simultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A norma constitucional não impõe a necessária dupla imputação. 2. As organizações corporativas complexas da atualidade se caracterizam pela descentralização e distribuição de atribuições e responsabilidades, sendo inerentes, a esta realidade, as dificuldades para imputar o fato ilícito a uma pessoa concreta. 3. Condicionar a aplicação do art. 225, §3º, da Carta Política a uma concreta imputação também a pessoa física implica indevida restrição da norma constitucional, expressa a intenção do constituinte originário não apenas de ampliar o alcance das sanções penais, mas também de evitar a impunidade pelos crimes ambientais frente às imensas dificuldades de individualização dos responsáveis internamente às corporações, além de reforçar a tutela do bem jurídico ambiental. 4. A identificação dos setores e agentes internos da empresa determinantes da produção do fato ilícito tem relevância e deve ser buscada no caso concreto como forma de esclarecer se esses indivíduos ou órgãos atuaram ou deliberaram no exercício regular de suas atribuições internas à sociedade, e ainda para verificar se a atuação se deu no interesse ou em benefício da entidade coletiva. Tal esclarecimento, relevante para fins de imputar determinado delito à pessoa jurídica, não se confunde, todavia, com subordinar a responsabilização da pessoa jurídica à responsabilização conjunta e cumulativa das pessoas físicas envolvidas. Em não raras oportunidades, as responsabilidades internas pelo fato estarão diluídas ou parcializadas de tal modo que não permitirão a imputação volume │ 10 63 iii encontro de internacionalização do conpedi – madrid de responsabilidade penal individual. 5. Recurso Extraordinário parcialmente conhecido e, na parte conhecida, provido. (BRASIL, 2013). No México, a destacada proteção ambiental tomou corpo a partir da reforma penal de 1996 que reuniu os delitos ambientais, antes encontrados em leis esparsas, em título próprio no Código Penal, o que mereceu destaque de Vite Angeles (2000) para quem, diante da sistematização dos crimes e da maior clareza dos tipos penais, proporcionou mais efetividade para a tutela do ambiente. Em abril de 2010, aliás, o Golfo do México foi assolado por vazamento de 4,9 milhões de barris de petróleo ao longo de três meses, fruto de acidente com a plataforma Deepwater Horizon, da British Petroleum (BP), o que proporcionou um desequilíbrio ambiental sem precedentes na região e que culminou com a morte de 11 trabalhadores, de milhares de aves marinhas, lontras e focas, águias e orcas, sem prejuízo do grande estrago provocado na flora aquática9 e que proporcionou uma mancha sobre o Oceano Atlântico do tamanho correspondente a onze vezes o da cidade do Rio de Janeiro. É certo que as leis norte-americanas foram aquelas aplicadas ao caso, porquanto ocorrido o fato no mar territorial americano, com grandes repercussões no México. Todavia, a discussão criminal tem produzido consequências, também no México, sobre a legitimidade, no sentido afirmativo, da precaução como princípio a ser aplicado também no direito penal para justificar a construção de tipos penais de perigo abstrato que já se fazem presentes na legislação mexicana. Nesse sentido, dispõe o artigo 416 do Código Penal mexicano que se impondrá pena de uno a nueve años de prisión y de trescientos a tres mil días multa, al que ilícitamente descargue, deposite, o infiltre, lo autorice u ordene, aguas residuales, líquidos químicos o bioquímicos, desechos o contaminantes en los suelos, subsuelos, aguas marinas, ríos, cuencas, vasos o demás depósitos o corrientes de agua de competencia federal, que cause un riesgo de daño o dañe a los recursos naturales, a la flora, a la fauna, a la calidad del agua, a los ecosistemas o al ambiente. Aliás, em janeiro de 2011, em vista da catástrofe ocorrida no Golfo do México, já sustentava Uhlmann, da Universidade de Michigan, que a questão do processo penal referente ao vazamento de petróleo seria capaz de deflagrar questões afetas à própria responsabilidade penal por fato meramente culposo em situações dessa envergadura: But criminal prosecution of the Gulf oil spill may raise questions about the role of criminal enforcement under the environmental laws, including whether ordinary negligence should result in criminal liability as 9 64 Destaque, no caso, aos Times Topics do jornal The New York Times. volume │ 10 iii encontro de internacionalização do conpedi – madrid well as what the proper normative relationship should be between culpable conduct and environmental harm10. (UHLMANN, 2011, p. 1413). Tal fato, inclusive, serviu de paradigma para que, no Brasil, em razão do vazamento, em novembro de 2011, no Campo do Frade, Bacia de Campos, de cerca de 3,7 mil barris de petróleo, houvesse processo-crime, que ainda tramita na 10ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, no qual se encontram denunciadas as empresas Chevron, Transocean e outras 17 pessoas por crimes de poluição e extração de recursos minerais em desacordo com a autorização obtida. A influência do derramamento de petróleo no Golfo do México foi tamanha no caso que, segundo a Forbes, em edição eletrônica de 20 de março de 2012, a “Chevron Becomes The BP Of Brazil” (2012, online). No caso argentino, embora não exista uma legislação penal ambiental específica e autônoma, a Lei 24051, de 1991, chamada de ley de residuos peligrosos, dedica o capítulo IX ao regime penal e, nessa perspectiva, “parte de la doctrina suele, genéricamente, considerarlo como el ámbito por antonomasia que tipificaría los delitos ‘ambientales’. De hecho, la jursiprudencia tiene a acudir a ellas cuando aborda cuestiones penales ambientales” (GABANILLAS, 2009, p. 26). Situação curiosa, todavia, é que a Argentina, malgrado não possua corpo legislativo próprio no tocante ao direito penal ambiental, assistiu a um alvissareiro entendimento jurisprudencial no tocante à dignidade animal. Assim é que, recentemente, em dezembro de 2014, a Câmara de Cassação Penal de Buenos Aires decidiu que, embora um orangotango, conhecido por Sandra, não se tratasse de ser humano, é dotada de sentimentos e, por isso, fez jus à concessão de ordem de habeas corpus proposta, em seu favor, pela Associação de Funcionários e Defensores dos Direitos dos Animais (AFADA) para que fosse libertada da vida em cativeiro há mais de 20 no zoológico de Buenos Aires (DOMTOTAL, 2014). Observa-se, assim, que, senão por leis, mas práticas judiciárias, a Argentina demonstra zelo pela dignidade animal e vislumbra sede, no campo penal, para discussões referentes à fauna como medida de dignidade animal. A preocupação em relação à tutela ambiental pelo direito penal também é observada no Chile. Isso porque, embora não se tenha ainda um delito que puna conduta atentatória ao bem jurídico meio ambiente - este entendido num sentido integral que compreende água, ar, terra e sistemas biológicos -, o que se tem visto nos últimos anos, mormente em face de ser um país vítima de grandes catástrofes naturais11, é a pujante onda de projetos 10 “Mas o processo criminal sobre o derramamento de óleo do Golfo pode levantar questões sobre o papel da execução penal nos termos da aplicação da legislação ambiental, incluindo-se a negligência que deve resultar em responsabilidade criminal, bem como a legislação normativa adequada entre o comportamento culposo e os danos causados.” Tradução nossa. 11 Lembra-se aqui, apenas a título de exemplo, a erupção do vulcão Puyehue, em 4 de junho de 2011, que proporcionou o lançamento de fumaça de gases vulcânicos para além de 10 quilômetros de altura, e, volume │ 10 65 iii encontro de internacionalização do conpedi – madrid de lei tendentes a sancionar delitos contra o meio ambiente, sejam eles cometidos por pessoas naturais ou jurídicas. Consoante Mario Maturana Claro (2009), o projeto tendente à responsabilidade penal da pessoa jurídica, já vigente no Chile desde 2009 quanto aos delitos econômicos, tem fundamento en la convicción del derecho comparado, en cuanto la legislación penal es un instrumento necesario para preservar el medio ambiente, revisa alguna legislación comparada y la doctrina nacional en la materia, no sólo en materia de penalización de los atentados al médio ambientes, sino que también respecto de posibilidad de sancionar a personas jurídicas como a personas naturales por dichos ilícitos. En los fundamentos de este proyecto se señala que, para evitar confusiones normativas, las expresiones utilizadas en el texto corresponden lo más fielmente posible con los conceptos definidos en la Ley 19.300 sobre Bases del Medio Ambiente “para todos los efectos legales” que reseñamos con anterioridad. En lo relativo al medio ambiente, este proyecto agrega seis artículos al Código Penal, mediante los cuales se sanciona a las personas naturales y a las personas jurídicas responsables de una actividad que en su operación produzcan un grave daño ambiental. Sanciona también, al máximun de las penas, si el grave daño ambiental pone en serio peligro la vida o la salud de personas determinadas. Como en el proyecto anterior, si el grave daño ambiental produce lesiones o la muerte de una o más personas. Sanciona en forma separada el delito culposo de grave daño ambiental, a las personas naturales o jurídicas responsables (CLARO, 2009, p. 211). Destaca Claro, todavia, que, em relação à saúde animal e vegetal, já existem tipos penais em vigor que têm por propósito tutelá-los. Nesse sentido, el párrafo 9 del Título VI del Libro II del Código Penal, denominado Delitos relativos a la salud animal y vegetal, sanciona a los que sin permiso de la autoridad competente propagaren una enfermedad animal o una plaga; la propagación de enfermedades que afecten la salud animal o vegetal con motivo de la introducción ilícita a país de animales o especies vegetales, etc. (2009, p. 209). A responsabilidade penal por crimes ambientais na Colômbia encontra-se prevista nos artigos 328 e 329 do Código Penal colombiano, Ley 599 de 2000, em vigor desde 24 de julho de 2001. Externa Macías Gómez que Los principales tipos penales establecidos en el código son: principalmente, o terremoto, de magnitude 8,8, que atingiu a região central do Chile na madrugada de 27 de fevereiro de 2010. 66 volume │ 10 iii encontro de internacionalização do conpedi – madrid • Ilícito aprovechamiento de recursos naturales renovables • Violación de fronteras para la explotación de recursos naturales • Manejo ilícito de microorganismos nocivos • Daño a los recursos naturales • Contaminación ambiental • Experimentación ilegal en especies animales o vegetales • Pesca ilegal • Caza ilegal • Invasión de áreas de especial importancia ecológica • Explotación ilícita de yacimiento minero y otros materiales (2009, p. 226). Referido advogado sustenta que diversas foram as condenações aplicadas aos infratores do corpo normativo penal ambiental. Salienta, contudo, que os condenados são “personas de sectores de la pequeña industria o incluso sectores populares, no ha habido un fallo penal por una contaminación considerable producida por una gran empresa” (GÓMEZ, 2009, p. 226). Por fim, a experiência equatoriana também revela a preocupação com a tutela ambiental. Essa preocupação teve como marco as reformas constitucionais deflagradas em 1996 e que, dentre outros aspectos, requeriam a tipificação das infrações penais de tutela ambiental. De se destacar que, em 1998, o festejado penalista equatoriano Ramiro Aguilar já sustentava, em artigo sobre tendências do direito penal contemporâneo: En relación con el medio ambiente, es necesario que el legislador ecuatoriano modernice viejas infracciones como la destrucción de bosques y se plantee la conservación del hábitat como un interés nacional. Hay necesidad de tipificar ciertas conductas como delictivas: El vertimiento de desechos tóxicos en ríos, la contaminación atmosférica, la deforestación en áreas protegidas o restringidas, la caza de especies en vías de extinción; etc (AGUILAR, 1998, p. 155). Essa consciência deflagrou uma nova realidade estampada na própria Carta Constitucional equatoriana consoante destacam Bormman Peñaherrera e Hugo Echeverría: Esta necesidad normativa fue respaldada, como se ha mencionado, por las reformas constitucionales ecuatorianas de 1996 y 1998 que reconocieron y garantizaron a la sociedad los derechos ambientales que la Constitución de la República vigente ratifica y complementa. En efecto, el 20 de Octubre del año 2008 entró en vigencia la nueva Constitución de la República del Ecuador, cuyo contenido favorece la protección ambiental, volume │ 10 67 iii encontro de internacionalização do conpedi – madrid sustentada en disposiciones de reparación, remediación e inclusive de procedimientos legales (2009, p. 243). E, no âmbito normativo penal, destacam os autores equatorianos que la Ley 99-49 tipificó las infracciones ambientales como delitos contra la seguridad pública. Si se analizan las corrientes normativas vigentes, puede concluirse que, en efecto, los delitos ambientales son infracciones que atentan contra la seguridad pública. Esto obedece, en principio, a la naturaleza del bien jurídico protegido que, en materia ambiental, es colectiva; pero también al sujeto pasivo de la infracción que, también en principio, es indeterminado. La tipificación de los delitos ambientales se fundamenta en la infracción del derecho constitucional a vivir en un ambiente sano, libre de contaminación y ecológicamente equilibrado, que la Constitución del Ecuador garantiza a las personas desde 1983 y a la población desde 1996. La Constitución vigente ratifica el carácter constitucional de estos derechos en los artículos 1423 y 66(27). (2009, p. 250). Observa-se, portanto, que, no Equador, assim como nos países iberoamericanos acima referidos, o ambiente tornou-se uma preocupação estampada não apenas em leis esparsas como também no próprio Código Penal, quando não em capítulos específicos, em dispositivos capazes de tutelar a vida e a saúde dos seres em geral. Se muito há o que ser feito ainda quanto à proteção legislativo-penal da dignidade do ambiente, vê-se, todavia, que a iberoamérica, mormente diante de situações concretas vivenciadas por alguns países, não faz ouvidos moucos à tutela penal ambiental e tem evoluído nesse sentido. 6. Conclusões O direito penal, enquanto ramo do direito legitimado a tutelar bens jurídicos de grande magnitude e ante as mais ponderáveis ofensas a ele, encontra, cada vez mais, campo fértil de atuação na defesa do ambiente e, por conta disso, contribui, sobremaneira, para a dignidade ambiental, enquanto bem a ser tutelado e valorado de per si. Se a dogmática penal secular consagra uma já tradicional esfera interpessoal de atuação, bens jurídicos como o meio ambiente, exatamente por reclamar efetiva defesa em prol da proteção das presentes e futuras gerações, ensejam uma nova política criminal e, em consequência, transformações dogmáticas capazes de proporcionar a defesa do bem jurídico difuso, inclusive contra ações de pessoas jurídicas. É certo que toda transformação, principalmente de ordem dogmática, pressupõe a legitimidade social, sem a qual o direito, e particularmente o direito penal, não encontraria 68 volume │ 10 iii encontro de internacionalização do conpedi – madrid celeiro adequado para proporcionar pacificação social e tutelar bens jurídicos difusos. Todavia, diante das grandes catástrofes naturais e da deterioração das realidades que, aos olhos da sociedade, eram outrora abundantes e hoje são consideradas como escassas embora imprescindíveis para a vida humana, animal e vegetal, a questão é relevante para todo e qualquer país, conquanto diferentes sejam as medidas adotadas e diferentes sejam os estágios de desenvolvimento quanto à adoção do direito penal como ramo próprio de tutela ambiental. Ao objetivo de demonstrar que o direito penal pode e deve tutelar o ambiente, firmou-se a hipótese de que ele deve servir a vida e não o contrário, ainda que modificações dogmáticas como, por exemplo, a capacidade de culpabilidade da pessoa jurídica seja um norte importante para a tutela do ambiente já que, sem sombra de dúvidas, é ela que detém a maior capacidade econômica e operacional de proporcionar danos de maior magnitude ao ambiente. Da análise do enfrentamento da questão na iberoamérica, as referências feitas ao Brasil, México, Argentina, Colômbia e Equador demonstram que a preocupação quanto à tutela do ambiente é também uma realidade neles presente, o que reflete um prognóstico de maior aplicabilidade do direito penal para a tutela ambiental, mormente por se tratar de área geográfica afetada por grandes catástrofes naturais e humanas. 7. referências AGUILAR, Ramiro T. Las nuevas tendencias del derecho penal contemporáneo. Revista Ruptura. Quito. Asociación Escuela de Derecho (PUCE), n. 41, 1998. BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 2010. BETTIOL, Giuseppe. Diritto penalle. 9. ed. Padova: CEDAM, 1976. BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. BRASIL. 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