MUSEU NACIONAL
DE ARTE ANTIGA
30 NOV 2023
— 31 MAR 2024
DIREÇÃO CIENTÍFICA E EDIÇÃO
Joaquim Oliveira Caetano e Benito Navarrete Prieto
Pintura espanhola
em Portugal
12
ENTRE ELOS E REJEIÇÕES
Relações históricas
entre Portugal e Espanha
(séculos XV-XIX)
Fernando Bouza
24
IDENTIDADES PARTILHADAS
Século de Ouro e cânone ibérico
Benito Navarrete Prieto
40
CRUZAR A FRONTEIRA
O contributo espanhol para
a pintura portuguesa
Joaquim Oliveira Caetano
54
ENTRE PERMANÊNCIAS
E AUSÊNCIAS
Algumas notas sobre a presença
de pintura espanhola em
coleções privadas Lisboetas
entre os séculos XVIII e XX
Ramiro A. Gonçalves
CATÁLOGO
70
Núcleo 1
DO GÓTICO AO PRIMEIRO
RENASCIMENTO
(Cats. 1 a 16)
104
Núcleo 2
O MANEIRISMO
(Cats. 17 a 25)
124
Núcleo 3
O RETRATO DE CORTE
(Cats. 26 a 34)
144
Núcleo 4
O PRIMEIRO NATURALISMO
(Cats. 35 a 50)
184
Núcleo 5
O BARROCO
(Cats. 51 a 69)
224
Núcleo 6
DA ACADEMIA
AO ROMANTISMO
(Cats. 70 a 82)
256
Bibliografia
34
Juan Pantoja de la Cruz (Valladolid,
c. 1553 – Madrid, 1608), atrib.
Retrato de Jovem Nobre,
Cavaleiro da Ordem de Calatrava.
Diego Gómez de Sandoval,
comendador-mor da Ordem
de Calatrava e conde de Saldaña
ou Juan Velázquez Dávila,
comendador de Malagón na Ordem
de Calatrava e conde de Uceda
No canto inferior esquerdo da pintura:
«ÆTATIS SVÆ •18•» e, por cima
dessa inscrição, o número «456»
1605-1608 [Diego Gómez de Sandoval]
ou c. 1592 [Juan Velázquez Dávila]
Óleo sobre tela
191 × 113 cm
Palácio Nacional de Sintra,
inv. PNS 3647
Proveniência: Col. de Diego Messía
Felípez de Guzmán (†1655), 1.º marquês de
Leganés. Integração anterior a 1637; col. do
marquesado de Leganés até à morte de Diego
Messía Felípez de Guzmán y Dávila (†1711),
3.º marquês de Leganés. Inventários de
1637, 1642 e 1655 (Palácio de São Bernardo,
Madrid); Antonio Gaspar Osorio de Moscoso
y Aragón (†1725), 8.º conde de Altamira,
herdeiro do marquesado de Leganés.
Inventário de 1726 (São Bernardo); vendas dos
bens da Casa de Altamira (entre 1821 e 1833);
José de Madrazo ou Valentín de Carderera (?);
galeria de pinturas de José de Salamanca y
Mayol, marquês de Salamanca; venda no hôtel
particulier do marquês de Salamanca, Paris,
6 de junho de 1867, lote 197 («Retrato de
homem jovem», Pantoja de la Cruz, atrib.),
adquirido por Étienne Le Roy; galeria de
retratos históricos de tamanho natural e corpo
inteiro de J. Aragon; leilão da col. Aragon,
Paris, Drouot, 30 de março de 1885, lote 13
(«Retrato de D. Sebastião, rei de Portugal»,
escola flamenga, séc. XVI), adquirido por
Eugène Féral-Cussac; Jean Baptiste Lannoy
vende à rainha D. Maria Pia, abril de 1885
(«Retrato de D. Sebastião, rei de Portugal»,
escola flamenga); Palácio Real da Ajuda,
Lisboa, desde 30 de abril de 1885; Palácio
Real de Sintra, desde cerca de 1895.
Bibliografia: López Navío, 1962 pp. 259-330;
Kusche, 2007, pp. 171-176; Pérez Preciado,
2010, pp. 336-337, 347; Flor, 2011, pp. 213-223;
Montesinos, 2017.
Identidades Partilhadas 140
141
O Retrato de Corte
Em abril de 1885, a rainha D. Maria Pia
de Saboia comprou esta pintura ao
negociante de arte Jean Baptiste Lannoy,
sediado em Paris. A obra foi incorporada
nas coleções reais como retrato de
D. Sebastião, rei de Portugal, da escola
flamenga do século XVI. As dúvidas sobre
a autoria da tela e a identidade do jovem
representado estiveram presentes nas
análises de estudiosos e especialistas
durante décadas, consequência do
desconhecimento da sua origem e
posterior circulação até à sua entrada no
mercado de arte parisiense, na segunda
metade do século XIX (Montesinos,
2017, pp. 114-158). Em 2013, o retrato
pertencente ao Palácio Nacional de Sintra
(PNS) é vinculado ao retrato propriedade
do Norton Simon Museum (NSM) de
Pasadena (Califórnia), quer ao nível da
autoria (Pantoja de la Cruz, obra assinada,
c. 1603), quer ao nível da proposta de
identificação da personagem: Diego
Gómez de Sandoval, secundogénito do
duque de Lerma, valido de Filipe III de
Espanha. As últimas investigações indicam
que o retrato de Sintra seja uma réplica
ou uma cópia de oficina – não assinada –
do original ad vivum do museu norte-americano. Um destes dois é,
provavelmente, o retrato referido no
testamento («el que esta por acabar»,
7 de outubro de 1608) e no inventário
post mortem da casa e oficina do pintor
(«Mas un retrato entero del conde de
Saldaña», 3 de novembro de 1608)
(Kusche, 2007, pp. 488-497). Partindo
destes dados e do ano de nascimento de
Diego (1587), é legítimo considerar que o
retrato sem assinatura seja o que aparece
mencionado na documentação de 1608 e,
consequentemente, a inscrição presente
na tela («ÆTATIS SVÆ •18•») situaria a
encomenda por volta de 1605.
A ligação do retrato do NSM com
o do PNS é bem patente, tanto nas
proporções e na fisionomia do retratado
como no esquema de representação
adotado, cortesão e principesco,
repetindo de forma minuciosa a pose e
todos os elementos da indumentária e da
cenografia. Foi o historiador da arte Martín
S. Soria, em 1954, quem apresentou uma
fundamentada proposta de identificação,
a pedido da firma Duveen Brothers. Em
1965, o colecionador americano Norton
Simon adquire a esta firma a obra de
Pantoja, cuja identidade atribuída é aceite
como válida até hoje: Diego Gómez de
Sandoval (1587-1632), comendador-mor da
Ordem de Calatrava (1599), gentil-homem
da real câmara e conde de Saldaña pelo
seu casamento com Luisa de Mendoza,
em 1603, herdeira da Casa Ducal do
Infantado e sucessora de uma ilustre e
antiga linhagem castelhana com Grandeza
de primeira criação1. A genealogia deste
«príncipe» da nobreza revela os seus
laços familiares com a nobreza e a realeza
portuguesa e espanhola, bem como o
percurso cortesão e militar dos Sandoval
ao serviço de vários monarcas
(Montesinos, 2017, pp. 53-57).
Ambos seguem o protótipo fixado
por Pantoja, por volta de 1590, nos retratos
com armadura do príncipe Filipe (III)
adolescente: corpo inteiro, a três quartos,
de tamanho natural, mão esquerda apoiada
no punho da espada, descansando a
direita sobre o elmo, com meia armadura
de parada e insígnia da Ordem do Tosão
de Ouro pendente de um colar de dupla
corrente em ouro, com fita de seda
vermelha entrelaçada. Esta fórmula remete
para os últimos retratos armados de Filipe II
com o Tosão, continuadores de uma
linguagem visual de afirmação pessoal
e dinástica através da presença de certos
atributos, cedo imitada pela elite
aristocrática próxima dos Áustrias,
a dinastia Habsburgo reinante na
monarquia hispânica. No caso da pintura
de Sintra, para além dos elementos que
aludem à elevada categoria nobiliárquica
e militar do retratado (meia armadura
equestre de gala, de aço e ouro, com
cotoveleiras adornadas com a cruz da
Ordem de Calatrava, em dourado; espada,
adaga e esporas douradas; elmo com
penacho de plumas disposto na mesa
vestida de veludo de seda carmesim,
guarnecido a ouro…), o que chama a
atenção não é a fórmula «imagem-espelho», prolongada por colaboradores
de Pantoja como Bartolomé González ou
Rodrigo de Villandrando, mas sim o colar
que ostenta, cujo particular design, de
onde pende a insígnia da ordem militar
cristã a que pertence, apenas surge
nos retratos com armadura do rei e do
príncipe herdeiro, de figuras destacadas
da família real, como o arquiduque
Alberto de Áustria – príncipe soberano
dos Países Baixos espanhóis (Flandres) –,
e de alguns cavaleiros das Grandes Casas
nobres de Castela. São disso exemplo
o retrato quinhentista de Rodrigo de
Mendoza (coleção particular), conde de
Saldaña, comendador dos bastimentos
de León e trece na Ordem de Santiago,
sogro de Diego Gómez de Sandoval, e o
retrato do duque de Lerma em exposição
na sacristia da Colegiada de São Pedro
(Lerma, Burgos), fazendo gala da sua
dignidade de comendador-mor de Castela
na Ordem de Santiago. Esta ostentação de
joias-insígnias suspensas de tão exclusiva
tipologia de colar (geralmente associada
à Ordem do Tosão de Ouro) evidencia a
posição altamente privilegiada dos seus
portadores. Será o colar que Diego exibe
no seu retrato a «cadena» que a rainha
Margarita lhe oferecera como presente a
28 de maio de 1599?2 Uma evocação do
retrato do anterior conde de Saldaña, seu
sogro? Uma alusão específica à condição
de gentil-homem da câmara de Filipe III
(1603)? Ou ainda uma manifestação da
sua proximidade e acesso ao rei? Uma
joia masculina de luxo a ter também em
consideração na análise de um dado
inédito ignorado até hoje: a incorporação
do retrato de Sintra numa coleção
seiscentista de notáveis proporções,
com o n.º 456.
Trata-se da coleção de pinturas
do 1.º marquês de Leganés, Diego
Messía Felípez de Guzmán. O tamanho,
a grafia, a cor e a posição destes números
são similares. Localizam-se nos cantos
inferiores, pintados na própria tela,
amarelados. Os números patentes nos
retratos do NSM (472) e do PNS (456)
coincidem com os números referidos
nos inventários de 1637 (750 obras),
1642 (1147 obras) e 1655 (1333 obras),
sendo que a identidade mencionada nos
três documentos difere da atual proposta
de identificação. O inventário e avaliação
post mortem de 1655, documento assinado
pelo pintor Giovanni Andrea Podestà,
diz o seguinte: «Don Velazquez de auila
marques de loriana armado de medio
cuerpo de mano de juan pantoja de la
cruz [indicação de autoria, obra assinada]
del nº quatroçientos y setenta y dos
[472] la taso en ciente Reales ∂100» e
«Don Velazquez de auila conde de uceda
y primer marques de loriana [identidade
coincidente com a do retrato nº 472]
del n.º quatroçientos y cinquenta y seis
[456] y la taso en treçientos y treinta Reales
∂330» (López Navio, 1962, pp. 289-290;
Pérez Preciado, 2010, pp. 336-337, 347).
Identidades Partilhadas 142
Juan Velázquez Dávila (1574-1604),
2.º conde de Uceda (1587-1599) e
1.º marquês de Loriana (1599-1604), era
o primogénito de Diego Velázquez Dávila
Messía de Ovando, 1.º conde de Uceda,
e de Leonor de Guzmán, tia do futuro
conde-duque de Olivares. Era, portanto,
irmão mais velho do futuro marquês
de Leganés e primo do futuro valido de
Filipe IV de Espanha. Cavaleiro da Ordem
de Calatrava (1590), recebeu a dignidade
de comendador de Malagón e a licença
para «vestir de colores» – necessária para
poder usar joias e indumentária luxuosas –
em 15933. Em 1599 é designado gentil-homem da câmara do rei4 e casa com
María de Bazán, filha do marquês de Santa
Cruz, almirante de Filipe II. Morreu sem
deixar descendência. Sobre estes e outros
dados inéditos, convém considerar o que
se segue.
A sua genealogia ascendente
enquadra-se num patamar secundário da
nobreza do século XVI. Por linha materna,
a sua linhagem destaca-se pelo vínculo
com o 3.º duque de Medina Sidónia,
seu bisavô, e por ser neto do 1.º conde
de Olivares, detentor de importantes
ofícios cortesãos e de várias dignidades
na Ordem de Calatrava. Por linha paterna
é descendente de um ramo da família
Dávila, herdeiro do senhorio de Loriana,
mercê da união com a família Ovando.
O pai de Juan Velázquez Dávila acede à
nobreza titulada castelhana, à rede familiar
dos Guzmán e a uma boa posição na corte
de Filipe II graças ao enlace com Leonor
de Guzmán, em 1574, dama da rainha Ana
de Áustria, na corte espanhola e dama
da infanta Isabel Clara Eugénia, na corte
flamenga. Mordomo de Ana de Áustria
(1578), recebeu o título de conde de Uceda
em 1581. Porém, esta nova linhagem está
longe de integrar o grupo das principais
famílias cortesãs, o que não deixa de
suscitar algumas dúvidas. Poderia Juan
Velázquez Dávila ter sido retratado com
um tipo de colar daquela importância?
Tornando-o suporte privilegiado de
um pendente – tipo «hábito» – que, em
princípio, poderia aludir ao seu ingresso
na Ordem de Calatrava (c. 16 anos) ou
à concessão da comenda de Malagón
(c. 18 anos)? Uma comenda, de facto,
pouco relevante e de parco rendimento
(renda anual de 980 ducados).
A datação estimada para o retrato
de Sintra (c. 1592 / «ÆTATIS SVÆ •18•»)
está em sintonia com a data a partir
da qual Juan Velázquez Dávila, nascido
em setembro de 1574, se poderia fazer
retratar «de colores» (9 de fevereiro
de 1593). Todavia, esta associação
resulta incongruente com a datação
estimada para o retrato do NSM (c. 1590).
Chama a atenção a diferença
aparentemente sem sentido entre os
valores de avaliação atribuídos a estes
dois retratos (inventário de 1655). O retrato
não assinado (Sintra) recebe o valor
mais elevado, 330 reales, face ao retrato
assinado (100 reales) do NSM.
É muito provável que o marquês
de Leganés tenha tido algum tipo de
contacto com Diego Gómez de Sandoval,
na Flandres e na corte espanhola, em
datas desconhecidas. Convém lembrar
que é o conde-duque de Olivares quem
expulsa da corte de Madrid o filho do
valido anterior, em 1621, e quem o aceita
de volta cinco anos depois, restituindo-lhe a comenda-mor de Calatrava,
com 10 000 ducados de renda anual,
e o cargo de gentil-homem da câmara
do rei (com intermediação do marquês
de Leganés?).
Refira-se que a coleção do marquês
é constituída também através de compras
efetuadas durante as vendas públicas
de coleções de outros membros da
nobreza espanhola, designadamente as
realizadas em Madrid.
Os inventários conhecidos5
apresentam alguns erros ou descuidos
na descrição das peças, perpetuados
ao longo do tempo, incluindo alguns
lapsos na identificação ou caracterização
de personagens. Por exemplo, o retrato
do pai dos marqueses de Leganés e
de Loriana é mencionado no inventário
de 1655 do seguinte modo: «El conde
de uçeda don diego mesia de obando y
marques de loriana del n.º quatroçientos
y quarenta y siete la taso en quatroçientos
reales». O primeiro conde de Uceda
morre em 1587 e o marquesado é criado
em 1599, a favor do seu primogénito.
Estes equívocos, inclusive nos retratos
familiares, eram comuns.
Estamos perante duas hipóteses
de identidade plausíveis, com impacto
nas datações atribuídas. Contudo,
desconhece-se a existência de retratos
e de documentos que demonstrem a
eventual relação de Juan Velázquez Dávila
com Pantoja de la Cruz.
Fernando Montesinos
143 O Retrato de Corte
1
A Grandeza de Primeira Classe é a
dignidade máxima na hierarquia da alta
nobreza espanhola, imediatamente
a seguir à de infante ou infanta, que
corresponde aos filhos do rei e do
príncipe herdeiro. Embora de origem
anterior, é em 1520 que Carlos V outorga
essa categoria diferenciadora, dando
lugar a um reduzido e seleto grupo
de Casas nobres que são consideradas,
a partir de então, como as linhagens
mais influentes e antigas. Estas Casas
eram, em parte, de ascendência real
ou entroncavam em Casas Reais.
O imperador chega a reservar o
tratamento de «primo» aos primogénitos
destas Grandes Casas. A Casa de
Sandoval foi uma das primeiras a ostentar
tal dignidade.
2
Archivo General de Palacio (AGP), Palacio
Real de Madrid, Sección Histórica, legajo
190.
3
Agradeço a Francisco Fernández
Izquierdo, investigador científico do
CSIC, as informações prestadas sobre
a figura de Juan Velázquez Dávila na
Ordem de Calatrava.
4
AGP, Reinados. Felipe II y Felipe III,
legajo 1. Agradeço a Francisco Fernández
Izquierdo a consulta e transcrição destes
dados.
5
O último inventário conhecido da coleção
Leganés-Altamira que regista ambos
os retratos é o inventário dos bens do
Palácio de São Bernardo, de 15 de junho
de 1726: «Un Rettratto de Dn Belazquez
Dauila, marques de Loriana, n.º 456» e
«Otro rettratto de Dn Belazquez Davila
Marques de Loriana n.º 472». AHPM,
14676.