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CANDIDO - Introdução Formação

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Antonio CANDIDO. Formação da literatura brasileira

INTRODUÇÃO

1.

LITERATURA COMO SISTEMA

Este livro procura estudar a formação da literatura brasileira como síntese de tendências
universalistas e particularistas. Embora elas não ocorram isoladas, mas se combinem de modo
vário a cada passo desde as primeiras manifestações, aquelas parecem dominar nas
concepções neoclássicas, estas nas românticas, - o que convida, além de motivos expostos
abaixo, a dar realce aos respectivos períodos.

Muitos leitores acharão que o processo formativo, assim considerado, acaba tarde demais, em
desacordo com o que ensinam os livros de história literária. Sem querer contestá-los, - pois
nessa matéria, tudo depende do ponto de vista, - espero mostrar a viabilidade do meu.

Para compreender em que sentido é tomada a palavra formação, e porque se qualificam de


decisivos os momentos estudados, convém principiar distinguindo manifestações literárias,de
literatura propriamente dita, considerada aqui um sistema de obras ligadas por denominadores
comuns, que permitem rconhecer as notas dominantes duma fase. Estes denominadores são,
além das características internas, (língua, temas, imagens), certos elementos de natureza
social e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e
fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Entre eles se distinguem: a existência de
um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto
de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um
mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a
outros. O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo de comunicação inter-humana, a
literatura, que aparece, sob este ângulo como sistema simbólico, por meio do qual as
veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de contacto entre os
homens, e de interpretação das diferentes esferas da realidade.

Quando a atividade dos escritores de um dado período se integra em tal sistema, ocorre outro
elemento decisivo: a formação da continuidade literária, - espécie de transmissão da tocha
entre corredores, que assegura no tempo o movimento conjunto, definindo os lineamentos de
um todo. É uma tradição, no sentido completo do termo, isto é, transmissão de algo entre os
homens, e o conjunto de elementos transmitidos, formando padrões que se impõem ao
pensamento ou ao comportamento, e aos quais somos obrigados a nos referir, para aceitar ou
rejeitar. Sem esta tradição não há literatura, como fenômeno de civilização.

Em um livro de crítica, mas escrito do ponto de vista histórico, como este, as obras não podem
aparecer em si, na autonomia que manifestam, quando abstraímos as circunstâncias
enumeradas; aparecem, por força da perspectiva escolhida, integrando em dado momento um
sistema articulado e, ao influir sobre a elaboração de outras, formando, no tempo, uma
tradição.

Em fases iniciais, é freqüente não encontrarmos esta organização, dada a imaturidade do


meio, que dificulta a formação dos grupos, a elaboração de uma linguagem própria e o
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interesse pelas obras. Isto não impede que surjam obras de valor, - seja por força da
inspiração individual, seja pela influência de outras literaturas. Mas elas não são
representativas de um sistema, significando quando muito o seu esboço. São manifestações
literárias, como as que encontramos, no Brasil, em graus variáveis de isolamento e articulação,
no período formativo inicial que vai das origens, no século XVI, com os autos e cantos de
Anchieta, às Academias do século XVIII. Período importante e do maior interesse, onde se
prendem as raízes da nossa vida literária e surgem, sem falar dos cronistas, homens do porte
de Antônio Vieira e Gregório de Matos, - que poderá, aliás, servir de exemplo do que pretendo
dizer. Com efeito, embora tenha permanecido na tradição local da Bahia, ele não existiu
literariamente (em perspectiva histórica) até o Romantismo, quando foi redescoberto,
sobretudo graças a Varnhagen; e só depois de 1882 e da edição Vale Cabral pôde ser
devidamente avaliado. Antes disso, não influiu, não contribuiu para formar o nosso sistema
literário, e tão obscuro permaneceu sob os seus manuscritos, que Barbosa Machado, o
minucioso erudito da Biblioteca Lusitana (1741-1758), ignora-o completamente, embora
registre quanto João de Brito e Lima pôde alcançar.

Se desejarmos focalizar os momentos em que se discerne a formação de um sistema, é


preferível nos limitarmos aos seus artífices imediatos, mais os que se vão enquadrando como
herdeiros nas suas diretrizes, ou simplesmente no seu exemplo. Trata-se, então, (para dar
realce às linhas), de averiguar quando e como se definiu uma continuidade ininterrupta de
obras e autores, cientes quase sempre de integrarem um processo de formação literária. Salvo
melhor juízo, sempre provável em tais casos, isto ocorre a partir dos meados do século XVIII,
adquirindo plena nitidez na primeira metade do século XIX. Sem desconhecer grupos ou linhas
temáticas anteriores, nem influências como as de Rocha Pita e Itaparica, é com os chamados
árcades mineiros, as últimas academias e certos intelectuais ilustrados, que surgem homens
de letras formando conjuntos orgânicos e manifestando em graus variáveis a vontade de fazer
literatura brasileira. Tais homens foram considerados fundadores pelos que os sucederam,
estabelecendo-se deste modo uma tradição contínua de estilos, temas, formas ou
preocupações. Já que é preciso um começo, tomei como ponto de partida as Academias dos
Seletos e dos Renascidos e os primeiros trabalhos de Cláudio Manuel da Costa, arredondando,
para facilitar, a data de 1750, na verdade puramente convencional.

O leitor perceberá que me coloquei deliberadamente no ângulo dos nossos primeiros


românticos e dos críticos estrangeiros, que, antes deles, localizaram na fase arcádica o início
da nossa verdadeira literatura, graças à manifestação de temas, notadamente o Indianismo,
que dominarão a produção oitocentista. Esses críticos conceberam a literatura do Brasil como
expressão da realidade local e, ao mesmo tempo, elemento positivo na construção nacional.
Achei interessante estudar o sentido e a validade histórica dessa velha concepção cheia de
equívocos, que forma o ponto de partida de toda a nossa crítica, revendo-a na perspectiva
atual. Sob este aspecto, poder-se-ia dizer que o presente livro constitui (adaptando o título do
conhecido estudo de Benda) uma "história dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura".
É um critério válido para quem adota orientação histórica, sensível às articulações e à dinâmica
das obras no tempo, mas de modo algum importa no exclusivismo de afirmar que só assim é
possível estudá-las.
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2.

UMA LITERATURA EMPENHADA

Este ponto de vista, aliás, é quase imposto pelo caráter da nossa literatura, sobretudo nos
momentos estudados; se atentarmos bem, veremos que poucas têm sido tão conscientes da
sua função histórica, em sentido amplo. Os escritores neoclássicos são quase todos animados
do desejo de construir uma literatura como prova de que os brasileiros eram tão capazes
quanto os europeus; mesmo quando procuram exprimir uma realidade puramente individual,
segundo os moldes universalistas do momento, estão visando este aspecto. É expressivo o
fato de que mesmo os residentes em Portugal, incorporados à sua vida, timbravam em
qualificar-se como brasileiros, sendo que os mais voltados para temas e sentimentos nossos
foram, justamente, os que mais viveram lá, como Durão, Basílio ou Caldas Barbosa.

Depois da Independência o pendor se acentuou, levando a considerar a atividade literária


como parte do esforço de construção do país livre, em cumprimento a um programa, bem cedo
estabelecido, que visava a diferenciação e particularização dos temas e modos de exprimi-los.
Isto explica a importância atribuída, neste livro, à "tomada de consciência" dos autores quanto
ao seu papel, e à intenção mais ou menos declarada de escrever para a sua terra, mesmo
quando não a descreviam. É este um dos fios condutores escolhidos, no pressuposto que, sob
tal aspecto, os refinados madrigais de Silva Alvarenga, ou os sonetos camonianos de Cláudio,
eram tão nativistas quanto o Caramuru.

Esta disposição de espírito, historicamente do maior proveito, exprime certa encarnação


literária do espírito nacional, redundando muitas vezes nos escritores em prejuízo e
desnorteio, sob o aspecto estético. Ela continha realmente um elemento ambíguo de
pragmatismo, que se foi acentuando até alcançar o máximo em certos momentos, como a fase
joanina e os primeiros tempos da Independência, a ponto de sermos por vezes obrigados, para
acompanhar até o limite as suas manifestações, a abandonar o terreno específico das belas-
letras.

Como não há literatura sem fuga ao real, e tentativas de transcendê-lo pela imaginação, os
escritores se sentiram freqüentemente tolhidos no vôo, prejudicados no exercício da fantasia
pelo peso do sentimento de missão, que acarretava a obrigação tácita de descrever a realidade
imediata, ou exprimir determinados sentimentos de alcance geral. Este nacionalismo infuso
contribuiu para certa renúncia à imaginação ou certa incapacidade de aplicá-la devidamente à
representação do real, resolvendo-se por vezes na coexistência de realismo e fantasia,
documento e devaneio, na obra de um mesmo autor, como José de Alencar. Por outro lado
favoreceu a expressão de um conteúdo humano, bem significativo dos estados de espírito
duma sociedade que se estruturava em bases modernas.

Aliás, o nacionalismo artístico não pode ser condenado ou louvado em abstrato, pois é fruto de
condições históricas, - quase imposição nos momentos em que o Estado se forma e adquire
fisionomia nos povos antes desprovidos de autonomia ou unidade. Aparece no mundo
contemporâneo como elemento de autoconsciência, nos povos velhos ou novos que adquirem
ambas, ou nos que penetram de repente no ciclo da civilização ocidental, esposando as suas
formas de organização política. Este processo leva a requerer em todos os setores da vida
mental e artística um esforço de glorificação dos valores locais, que revitaliza a expressão,
dando lastro e significado a formas polidas, mas incaracterísticas. Ao mesmo tempo,
compromete a universalidade da obra, fixando-a no pitoresco e no material bruto da
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experiência, além de querê-la, como vimos, empenhada, capaz de servir aos padrões do
grupo. Para nós, foi auspicioso que o processo de sistematização literária se acentuasse na
fase neoclássica, beneficiando da concepção universal, rigor de forma, contensão emocional
que a caracterizam. Graças a isto, persistiu mais consciência estética do que seria de esperar
do atraso do meio e da indisciplina romântica. Doutro lado, a fase neoclássica está
indissoluvelmente ligada à Ilustração, ao filosofismo do século XVIII; e isto contribuiu para
incutir a acentuar a vocação aplicada dos nossos escritores, por vezes verdadeiros delegados
da realidade junto à literatura. Se não decorreu daí realismo no alto sentido, decorreu certo
imediatismo, que não raro confunde as letras com o padrão jornalístico; uma bateria de fogo
rasante, cortando baixo as flores mais espigadas da imaginação. Não espanta que os autores
brasileiros tenham pouco da gratuidade que dá asas à obra de arte; e, ao contrário, muito da
fidelidade documentária ou sentimental, que vincula à experiência bruta. Aliás, a coragem ou
espontaneidade do gratuito é prova de amadurecimento, no indivíduo e na civilização; aos
povos jovens e aos moços, parece traição e fraqueza.

Ao mesmo tempo, esta imaturidade, por vezes provinciana, deu à literatura sentido histórico e
excepcional poder comunicativo, tornando-a língua geral duma sociedade à busca de
autoconhecimento. Sempre que se particularizou, como manifestação afetiva e descrição local,
adquiriu, para nós, a expressividade que estabelece comunicação entre autores e leitores, sem
a qual a arte não passa de experimentação dos recursos técnicos. Neste livro, tentar-se-á
mostrar o jogo dessas forças, universal e nacional, técnica e emocional, que a plasmaram
como permanente mistura da tradição européia e das descobertas do Brasil. Mistura do
artesão neoclássico ao bardo romântico; duma arte de clareza e discernimento a uma
"metafísica da confusão", para dizer como um filósofo francês.

A idéia de que a literatura brasileira deve ser interessada (no sentido exposto) foi expressa por
toda a nossa crítica tradicional, desde Ferdinand Denis e Almeida Garrett, a partir dos quais
tomou-se a brasilidade, isto é, a presença de elementos descritivos locais, como traço
diferencial e critério de valor. Para os românticos, a literatura brasileira começava
propriamente, em virtude do tema indianista, com Durão e Basílio, reputados, por este motivo,
superiores a Cláudio e Gonzaga.

O problema da autonomia, a definição do momento e motivos que a distinguem da portuguesa,


é algo superado, que não interessou especialmente aqui. Justificava-se no século passado,
quando se tratou de reforçar por todos os modos o perfil da jovem pátria e, portanto, nós
agíamos, em relação a Portugal, como esses adolescentes mal seguros, que negam a dívida
aos pais e chegam a mudar de sobrenome. A nossa literatura é ramo da portuguesa; pode-se
considerá-la independente desde Gregório de Matos ou só após Gonçalves Dias e José de
Alencar, segundo a perspectiva adotada. No presente livro, a atenção se volta para o início de
uma literatura propriamente dita, como fenômeno de civilização, não algo necessariamente
diverso da portuguesa. Elas se unem tão intimamente, em todo o caso, até meados do século
XIX, que utilizo em mais de um passo, para indicar este fato, a expressão "literatura comum"
(brasileira e portuguesa). Acho por isso legítimo que os historiadores e críticos da mãe-pátria
incorporem Cláudio ou Sousa Caldas, e acho legítimo incluí-los aqui; acho que o portuense
Gonzaga é de ambos os lados, porém mais daqui do que de lá; e acho que o paulista Matias
Aires é só de lá. Tudo depende do papel dos escritores na formação do sistema.

Mas o nacionalismo crítico, herdado dos românticos, pressupunha também, como ficou dito,
que o valor da obra dependia do seu caráter representativo. Dum ponto de vista histórico, é
evidente que o conteúdo brasileiro foi algo positivo, mesmo como fator de eficácia estética,
dando pontos de apoio à imaginação e músculos à forma. Deve-se, pois, considerá-lo subsídio
de avaliação, nos momentos estudados, lembrando que, após ter sido recurso ideológico,
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numa fase de construção e autodefinição, é atualmente inviável como critério, constituindo


neste sentido um calamitoso erro de visão.

O presente livro tentou evitá-lo, evitando, ao mesmo tempo, estudar nas obras apenas o
aspecto empenhado. Elas só podem ser compreendidas e explicadas na sua integridade
artística, em função da qual é permitido ressaltar este ou aquele aspecto.

3.

PRESSUPOSTOS

O fato de ser este um livro de história literária implica a convicção de que o ponto de vista
histórico é um dos modos legítimos de estudar literatura, pressupondo que as obras se
articulam no tempo, de modo a se poder discernir uma certa determinação na maneira por que
são produzidas e incorporadas ao patrimônio de uma civilização.

Um esteticismo mal compreendido procurou, nos últimos decênios, negar validade a esta
proposição, - o que em parte se explica como réplica aos exageros do velho método histórico,
que reduziu a literatura a episódio da investigação sobre a sociedade, ao tomar indevidamente
as obras como meros documentos, sintomas da realidade social. Por outro lado, deve-se à
confusão entre formalismo e estética; enquanto aquele se fecha na visão dos elementos de
fatura como universo autônomo e suficiente, esta não prescinde o conhecimento da realidade
humana, psíquica e social, que anima as obras e recebe do escritor a forma adequada. Nem
um ponto de vista histórico desejaria, em nossos dias, reduzir a obra aos fatores elementares.

Deste modo, sendo um livro de história, mas sobretudo de literatura, este procura apreender o
fenômeno literário da maneira mais significativa e completa possível, não só averiguando o
sentido de um contexto cultural, mas procurando estudar cada autor na sua integridade
estética. É o que fazem, aliás, os críticos mais conscientes, num tempo, como o nosso, em
que a coexistência e rápida emergência dos mais variados critérios de valor e experimentos
técnicos; em que o desejo de compreender todos os produtos do espírito, em todos os tempos
e lugares, leva, fatalmente, a considerar o papel da obra no contexto histórico, utilizando este
conhecimento como elemento de interpretação e, em certos casos, avaliação.

A tentativa de focalizar simultaneamente a obra como realidade própria, e o contexto como


sistema de obras, parecerá ambiciosa a alguns, dada a força com que se arraigou o
preconceito do divórcio entre história e estética, forma e conteúdo, erudição e gosto,
objetividade e apreciação. Uma crítica equilibrada não pode, todavia, aceitar estas falsas
incompatibilidades, procurando, ao contrário, mostrar que são partes de uma explicação tanto
quanto possível total, que é o ideal do crítico, embora nunca atingido em virtude das limitações
individuais e metodológicas.

Para chegar o mais perto possível do desígnio exposto, é necessário um movimento amplo e
constante entre o geral e o particular, a síntese e a análise, a erudição e o gosto. É necessário
um pendor para integrar contradições, inevitáveis quando se atenta, ao mesmo tempo, para o
significado histórico do conjunto e o caráter singular dos autores. É preciso sentir, por vezes,
que um autor e uma obra podem ser e não ser alguma coisa, sendo duas coisas opostas
simultaneamente, - porque as obras vivas constituem uma tensão incessante entre os
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contrastes do espírito e da sensibilidade. A forma, através da qual se manifesta o conteúdo,


perfazendo com ele a expressão, é uma tentativa mais ou menos feliz e duradoura de equilíbrio
entre estes contrastes. Mas, mesmo quando relativamente perfeita, deixa vislumbrar a
contradição e revela a fragilidade do equilíbrio. Por isso, quem quiser ver em profundidade,
tem de aceitar o contraditório, nos períodos e nos autores, porque, segundo uma frase justa,
ele "é o próprio nervo da vida".

Por outro lado, se aceitarmos a realidade na minúcia completa das suas discordâncias e
singularidades, sem querer mutilar a impressão vigorosa que deixa, temos de renunciar à
ordem, indispensável em toda investigação intelectual. Esta só se efetua por meio de
simplificações, reduções ao elementar, à dominante, em prejuízo da riqueza infinita dos
pormenores. É preciso, então, ver simples onde é complexo, tentando demonstrar que o
contraditório é harmônico. O espírito de esquema intervém, como forma, para traduzir a
multiplicidade do real; seja a forma da arte aplicada às inspirações da vida, seja a da ciência,
aos dados da realidade, seja a da crítica, à diversidade das obras. E se quisermos reter o
máximo de vida com o máximo de ordem mental, só resta a visão acima referida, vendo na
realidade um universo de fatos que se propõem e logo se contradizem, resolvendo-se na
coerência transitória de uma unidade, que sublima as duas etapas, em equilíbrio instável.

Procurando sobretudo interpretar, este não é um livro de erudição, e o aspecto informativo


apenas serve de plataforma às operações do gosto. Acho valiosos e necessários os trabalhos
de pura investigação, sem qualquer propósito estético; a eles se abre no Brasil um campo
vasto. Acho igualmente valiosas as elucubrações gratuitas, de base intuitiva, que manifestam
essa paixão de leitor, sem a qual não vive uma literatura. Aqui, todavia, não se visa um pólo
nem outro, mas um lugar eqüidistante e, a meu ver, mais favorável, no presente momento, à
interpretação do nosso passado literário.

4.

O TERRENO E AS ATITUDES CRÍTICAS

Toda crítica viva - isto é, que empenha a personalidade do crítico e intervém na sensibilidade
do leitor - parte de uma impressão para chegar a um juízo, e a história não foge a esta
contingência. Isto não significa, porém, impressionismo nem dogmatismo, pois entre as duas
pontas se interpõe algo que constitui a seara própria do crítico, dando validade ao seu esforço
e seriedade ao seu propósito: o trabalho construtivo de pesquisa, informação, exegese.

Em face do texto, surgem no nosso espírito certos estados de prazer, tristeza, constatação,
serenidade, reprovação, simples interesse. Estas impressões são preliminares importantes; o
crítico tem de experimentá-las e deve manifestá-las, pois elas representam a dose necessária
de arbítrio, que define a sua visão pessoal. O leitor será tanto mais crítico, sob este aspecto,
quanto mais for capaz de ver, num escritor, o seu escritor, que vê como ninguém mais e opõe,
com mais ou menos discrepância, ao que os outros vêem. Por isso, a crítica viva usa
largamente a intuição, aceitando e procurando exprimir as sugestões trazidas pela leitura.
Delas sairá afinal o juízo, que não é julgamento puro e simples, mas avaliação, -
reconhecimento e definição de valor.
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Entre impressão e juízo, o trabalho paciente da elaboração, como uma espécie de moinho,
tritura a impressão, subdividindo, filiando, analisando, comparando, a fim de que o arbítrio se
reduza em benefício da objetividade, e o juízo resulte aceitável pelos leitores. A impressão,
como timbre individual, permanece essencialmente, transferindo-se ao leitor pela elaboração
que lhe deu generalidade; e o orgulho inicial do crítico, como leitor insubstituível, termina pela
humildade de uma verificação objetiva, a que outros poderiam ter chegado, e o irmana aos
lugares-comuns do seu tempo.

A crítica propriamente dita consiste nesse trabalho analítico intermediário, pois os dois outros
momentos são de natureza estética e ocorrem necessariamente, embora nem sempre
conscientemente, em qualquer leitura. O crítico é feito pelo esforço de compreender, para
interpretar e explicar; mas aquelas etapas se integram no seu roteiro, que pressupõe, quando
completo, um elemento perceptivo inicial, um elemento intelectual médio, um elemento
voluntário final. Perceber, compreender, julgar. Nesse livro, o aparelho analítico da
investigação é posto em movimento a serviço da receptividade individual, que busca na obra
uma fonte de emoção e termina avaliando o seu significado.

As teorias e atitudes críticas se distinguem segundo a natureza deste trabalho analítico; dos
recursos e pontos de vista utilizados. Não há, porém, uma crítica única, mas vários caminhos,
conforme o objeto em foco; ora com maior recurso à análise formal, ora com atenção mais
aturada aos fatores. Querer reduzi-la ao estudo de uma destas componentes, ou qualquer
outra, é erro que compromete a sua autonomia e tende, no limite, a destruí-la em benefício de
disciplinas afins.

Nos nossos dias, parece transposto o perigo de submissão ao estudo dos fatores básicos,
sociais e psíquicos. Houve tempo, com efeito, em que o crítico cedeu lugar ao sociólogo, o
político, o médico, o psicanalista. Hoje, o perigo vem do lado oposto; das pretensões
excessivas do formalismo, que importam, nos casos extremos, em reduzir a obra a problemas
de linguagem, seja no sentido amplo da comunicação simbólica, seja no estrito sentido da
língua.

As orientações formalistas não passam, todavia, do ponto de vista duma crítica compreensiva,
de técnicas parciais de investigação; constituí-las em método explicativo é perigoso e desvirtua
os serviços que prestam, quando limitadas ao seu âmbito. Nada melhor que o
aprofundamento, que presenciamos, do estudo da metáfora, das constantes estilísticas, do
significado profundo da forma. Mas erigi-lo em critério básico é sintoma da incapacidade de
ver o homem e as suas obras de maneira una e total.

A crítica dos séculos XIX e XX constitui uma grande aventura do espírito, e isto foi possível
graças à intervenção da filosofia e da história, que a libertaram dos gramáticos e retores. Se
esta operação de salvamento teve aspectos excessivos e acabou por lhe comprometer a
autonomia, foi ela que a erigiu em disciplina viva. O imperialismo formalista significaria, em
perspectiva ampla, perigo de regresso acorrentando-a de novo a preocupações superadas, que
a tornariam especialidade restrita, desligada dos interesses fundamentais do homem.
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5.

OS ELEMENTOS DE COMPREENSÃO

Quando nos colocamos ante uma obra, ou uma sucessão de obras, temos vários níveis
possíveis de compreensão, segundo o ângulo em que nos situamos. Em primeiro lugar, os
fatores externos, que a vinculam ao tempo e se podem resumir na designação de sociais; em
segundo lugar o fator individual, isto é, o autor, o homem que a intentou e realizou, e está
presente no resultado; finalmente, este resultado, o texto, contendo os elementos anteriores e
outros, específicos, que os transcendem e não se deixam reduzir a eles.

Se resistirmos ao fascínio da moda e adotarmos uma posição de bom senso, veremos que,
num livro de história literária que não quiser ser parcial nem fragmentário, o crítico precisa
referir-se a estas três ordens de realidade, ao mesmo tempo. É lícito estudar apenas as
condições sociais, ou as biografias, ou a estrutura interna, separadamente; nestes casos,
porém, arriscamos fazer tarefa menos de crítico, do que de sociólogo, psicólogo, biógrafo,
esteta, lingüista.

A crítica se interessa atualmente pela carga extra-literária, ou pelo idioma, na medida em que
contribuem para o seu escopo, que é o estudo da formação, desenvolvimento e atuação dos
processos literários. Uma obra é uma realidade autônoma, cujo valor está na fórmula que
obteve para plasmar elementos não-literários: impressões, paixões, idéias, fatos,
acontecimentos, que são a matéria-prima do ato criador. A sua importância quase nunca é
devida à circunstância de exprimir um aspecto da realidade, social ou individual, mas à maneira
por que o faz. No limite, o elemento decisivo é o que permite compreendê-la e apreciá-la,
mesmo que não soubéssemos onde, quando, por quem foi escrita. Esta autonomia depende,
antes de tudo, da eloqüência do sentimento, penetração analítica, força de observação,
disposição das palavras, seleção e invenção das imagens; do jogo de elementos expressivos,
cuja síntese constitui a sua fisionomia, deixando longe os pontos de partida não-literários.

Tomemos o exemplo de três pais que, lacerados pela morte dum filho pequeno, recorrem ao
verso para exprimir a sua dor: Borges de Barros, Vicente de Carvalho, Fagundes Varela. Pelo
que sabemos, o sofrimento do primeiro foi o mais duradouro; admitamos que fossem iguais os
três. Se lermos todavia os poemas resultantes, ficaremos insensíveis e mesmo aborrecidos
com "Os Túmulos", medianamente comovidos com o "Pequenino morto", enquanto o "Cântico
do Calvário" nos faz estremecer a cada leitura, arrastados pela sua força mágica. É que,
sendo obras literárias, não documentos biográficos, a emoção, neles, é elemento essencial
apenas como ponto de partida; o ponto de chegada é a reação do leitor, e esta, tratando-se de
leitor culto, só é movida pela eficácia da expressão. Os três pais são igualmente dignos de
piedade, do ponto de vista afetivo; literariamente, o poema do primeiro é nulo; o do segundo,
mediano no seu patético algo declamatório; o do terceiro, admirável pela solução formal.

Este exemplo serve para esclarecer o critério adotado no presente livro, isto é: a literatura é um
conjunto de obras, não de fatores nem de autores. Como, porém, o texto é integração de
elementos sociais e psíquicos, estes devem ser levados em conta para interpretá-lo, o que
apenas na aparência contesta o que acaba de ser dito.

Com efeito, ao contrário do que pressupõem os formalistas, a compreensão da obra não


prescinde a consideração dos elementos inicialmente não-literários. O texto não os anula, ao
transfigurá-los, e sendo um resultado, só pode ganhar pelo conhecimento da realidade que
serviu de base à sua realidade própria. Por isso, se o entendimento dos fatores é
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desnecessário para a emoção estética, sem o seu estudo não há crítica, operação, segundo
vimos, essencialmente de análise, sempre que pretendemos superar o impressionismo.

Entende-se agora porque, embora concentrando o trabalho na leitura do texto, e utilizando tudo
mais como auxílio de interpretação, não penso que esta se limite a indicar a ordenação das
partes, o ritmo da composição, as constantes do estilo, as imagens, fontes, influências.
Consiste nisso e mais em analisar a visão que a obra exprime do homem, a posição em face
dos temas, através dos quais se manifestam o espírito ou a sociedade. Um poema revela
sentimentos, idéias, experiências; um romance revela isto mesmo, com mais amplitude e
menos concentração. Um e outro valem, todavia, não por copiar a vida, como pensaria, no
limite, um crítico não-literário; nem por criar uma expressão sem conteúdo, como pensaria,
também no limite, um formalista radical. Valem porque inventam uma vida nova, segundo a
organização formal, tanto quanto possível nova, que a imaginação imprime ao seu objeto.

Se quisermos ver na obra o reflexo dos fatores iniciais, achando que ela vale na medida em
que os representa, estaremos errados. O que interessa é averiguar até que ponto interferiram
na elaboração do conteúdo humano da obra, dotado da realidade própria que acabamos de
apontar. Na tarefa crítica há, portanto, uma delicada operação, consistente em distinguir o
elemento humano anterior à obra e o que, transfigurado pela técnica, representa nela o
conteúdo, propriamente dito.

Dada esta complexidade de tipo especial, é ridículo despojar o vocabulário crítico das
expressões indicativas da vida emocional ou social, contanto que, ao utilizá-las, não pensemos
na matéria-prima, mas em sentimentos, idéias, objetos de natureza diferente, que podem ser
mais ou menos parecidos com os da vida, mas em todo caso foram redefinidos a partir deles,
ao se integrarem na atmosfera própria do texto. Quando falamos na ternura de Casimiro de
Abreu, ou no naturismo de Bernardo Guimarães, não queremos, em princípio, dizer que o
homem Casimiro foi terno, ou amante da natureza o homem Bernardo, pois isso importa
secundariamente. Queremos dizer que na obra deles há uma ternura e um naturismo
construídos a partir da experiência e da imaginação, comunicados pelos meios expressivos, e
que poderão ou não corresponder a sentimentos individuais. Para o crítico, desde que existam
literariamente, são forjados, ao mesmo título que a coragem de Peri ou as astúcias do
Sargento de Milícias.

Interessando definir, na obra, os elementos humanos formalmente elaborados, não importam a


veracidade e a sinceridade, no sentido comum, ao contrário do que pensa o leitor
desprevenido, que se desilude muitas vezes ao descobrir que um escritor avarento celebrou a
caridade, que certo poema exaltadamente erótico provém dum homem casto, que determinado
poeta, delicado e suave, espancava a mãe. Como disse Proust, o problema ético se coloca
melhor nas naturezas depravadas, que avaliam no drama da sua consciência a terrível
realidade do bem e do mal.

Em suma, importa no estudo da literatura o que o texto exprime. A pesquisa da vida e do


momento vale menos para estabelecer uma verdade documentária, freqüentemente inútil, do
que para ver se nas condições do meio e na biografia há elementos que esclareçam a
realidade superior do texto, por vezes uma gloriosa mentira, segundo os padrões usuais.

Já se vê que, ao lado das considerações formais, são usadas aqui livremente as técnicas de
interpretação social e psicológica, quando julgadas necessárias ao entendimento da obra; este
é o alvo, e todos os caminhos são bons para alcançá-lo, revelando-se a capacidade do crítico
na maneira por que os utiliza, no momento exato e na medida suficiente. Há casos, por
exemplo, em que a informação biográfica ajuda a compreender o texto; por que rejeitá-la,
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estribado em preconceito metodológico ou falsa pudicícia formalista? Há casos em que ela


nada auxilia; por que recorrer obrigatoriamente a ela?

6.

CONCEITOS

No arsenal da história literária, dispomos, para o nosso caso, de conceitos como: período, fase,
momento; geração, grupo, corrente; escola, teoria, tema; fonte, influência.

Embora reconheça a importância da noção de período, utilizei-a aqui incidentemente e


atendendo à evidência estética e histórica, sem preocupar-me com distinções rigorosas. Isso,
porque o intuito foi sugerir, tanto quanto possível, a idéia de movimento, passagem,
comunicação, - entre fases, grupos e obras; sugerir uma certa labilidade que permitisse ao
leitor sentir, por exemplo, que a separação evidente, do ponto de vista estético, entre as fases
neoclássicas e romântica, é contrabalançada, do ponto de vista histórico, pela sua unidade
profunda. À diferença entre estas fases, procuro somar a idéia da sua continuidade, no sentido
da tomada de consciência literária e tentativa de construir uma literatura.

Do mesmo modo, embora os escritores se disponham quase naturalmente por gerações, não
interessou aqui utilizar este conceito com rigor nem exclusividade. Apesar de fecundo, pode
facilmente levar a uma visão mecânica, impondo cortes transversais numa realidade que se
quer apreender em sentido sobretudo longitudinal. Por isso, sobrepus ao conceito de geração
o de tema, procurando apontar não apenas a sua ocorrência, num dado momento, mas a sua
retomada pelas gerações sucessivas, através do tempo.

Isso conduz ao problema das influências, que vinculam os escritores uns dos outros,
contribuindo para formar a continuidade no tempo e definir a fisionomia própria de cada
momento. Embora a tenha utilizado largamente e sem dogmatismo, como técnica auxiliar, é
preciso reconhecer que talvez seja o instrumento mais delicado, falível e perigoso de toda a
crítica, pela dificuldade em distinguir coincidência, influência e plágio, bem como a
impossibilidade de averiguar a parte da deliberação e do inconsciente. Além disso, nunca se
sabe se as influências apontadas são significativas ou principais, pois há sempre as que não se
manifestam visivelmente, sem contar as possíveis fontes ignoradas (autores desconhecidos,
sugestões fugazes), que por vezes sobrelevam as mais evidentes.

Ainda mais sério é o caso da influência poder assumir sentidos variáveis, requerendo
tratamento igualmente diverso. Pode, por exemplo, aparecer como transposição direta mal
assimilada, permanecendo na obra ao modo de um corpo estranho de interesse crítico
secundário. Pode, doutro lado, ser de tal modo incorporada à estrutura, que adquire um
significado orgânico e perde o caráter de empréstimo; tomá-la, então, como influência, importa
em prejuízo do seu caráter atual, e mais verdadeiro, de elemento próprio de um conjunto
orgânico.

Estas considerações exprimem um escrúpulo e uma atitude, conduzindo a um dos conceitos


básicos do presente livro: que o eixo do trabalho interpretativo é descobrir a coerência das
produções literárias, seja a interna, das obras, seja a externa, de uma fase, corrente ou grupo.
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Por coerência, entende-se aqui a integração orgânica dos diferentes elementos e fatores,
(meio, vida, idéias, temas, imagens, etc.), formando uma diretriz, um tom, um conjunto, cuja
descoberta explica a obra como fórmula, obtida pela elaboração do escritor. É a adesão
recíproca dos elementos e fatores, dando lugar a uma unidade superior; mas não se confunde
com a simplicidade, pois uma obra pode ser contraditória sem ser incoerente, se as suas
condições forem superadas pela organização formal.

No nível do autor, ela se manifesta através da personalidade literária, que não é


necessariamente o perfil psicológico, mas o sistema de traços afetivos, intelectuais e morais
que decorrem da análise da obra, e correspondem ou não à vida, - como se viu há pouco ao
mencionar a ternura de Casimiro. No nível do momento, ou fase, ela se manifesta pela
afinidade, ou caráter complementar entre as obras, conseqüência da relativa articulação entre
elas, originando o estilo do tempo, que permite as generalizações críticas. Por isso, não
interessou aqui determinar rigorosamente as condições históricas, - sociais, econômicas,
políticas, - mas apenas sugerir o que poderíamos chamar de situação temporal ou seja, a
síntese das condições de interdependência, que estabelecem a fisionomia comum das obras, e
são realidades de ordem literária, nas quais se absorvem e sublimam os fatores do meio.

A coerência é em parte descoberta pelos processos analíticos, mas em parte inventada pelo
crítico, ao lograr, com base na intuição e na investigação, um traçado explicativo. Um, não o
traçado, pois pode haver vários, se a obra é rica. Todos sabem que cada geração descobre e
inventa o seu Gongora, o seu Stendhal, o seu Dostoievski.

Por isso, há forçosamente na busca da coerência um elemento de escolha e risco, quando o


crítico decide adotar os traços que isolou, embora sabendo que pode haver outros. Num
período, começa por escolher os autores que lhe parecem representativos; nos autores, as
obras que melhor se ajustam ao seu modo de ver; nas obras, os temas, imagens, traços
fugidios que o justificam. Neste processo vai muito da sua coerência, a despeito do esforço de
objetividade.

Sob este aspecto, a crítica é um ato arbitrário, se deseja ser criadora, não apenas
registradora. Interpretar é, em grande parte, usar a capacidade de arbítrio; sendo o texto uma
pluralidade de significados virtuais, é definir o que se escolheu, entre outros. A este arbítrio o
crítico junta a sua linguagem própria, as idéias e imagens que exprimem a sua visão,
recobrindo com elas o esqueleto do conhecimento objetivamente estabelecido.

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"Introdução" in: Formação da literatura brasileira (momentos decisivos). 2 vols. São Paulo,
Martins, 1959.

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