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A Morte Do Pintor Adolfo Greno (1902)

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Assassinato do Pintor Adolfo Greno

ou O Crime da Travessa de São Mamede


(https://expresso.pt/sociedade/2015-10-19-Esperou-que-o-marido-adormecesse-e-deu-lhe-quatro-tirosI)
SOCIEDADE

Esperou que o marido adormecesse e deu-


lhe quatro tiros
19 OUTUBRO 2015 8:16

Anabela Natário
Texto
Jornalista

João Roberto
Ilustrações
Motion designer

Retrato-robô da pintora Josefa Greno concebido através de uma velha foto e descrições
da época
João Roberto

Era um bruto na cama, um gastador, dirá reforçando o


argumento: “Era ele ou eu”. Nascida espanhola, portuguesa
por casamento, a pintora Josefa Greno pôs fim ao
matrimónio a tiro de pistola. O seu processo será “o triunfo
dos alienistas”. Este é o nono caso da série “Crime à
Segunda”, que o Expresso está a publicar sobre criminosas
portuguesas

Josefa anuiu, mas ditou a condição: "Acompanho-o onde quiser, senhor


polícia, mas primeiro tem que me deixar almoçar". Chegou mais um
polícia, tentaram demovê-la. "Vossa excelência tem de nos acompanhar".
Ela não arredou pé, enquanto não comeu uma fatia de pão com manteiga e
bebeu uma chávena de café com leite. Nessa madrugada de 26 de junho de
1901, Maria Josefa Garcia Seone Greno, de 50 anos, pintora afamada,
assassinara o marido a tiro. Encarcerada no manicómio, morrerá sete
meses depois.

“Pronto”, exclamou Josefa Greno declarando findo o almoço, nesta época


ainda nome da refeição matinal. A casa estava cheia de vizinhos e de outros
curiosos. Quem assistiu contou que ela se mostrava serena, indiferente, ao
pôr o chapéu cinzento e a capa negra, de rendas, por cima do vestido de
ramagens, e encaminhando-se para o patamar das escadas. Desceu-as à
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ou O Crime da Travessa de São Mamede
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frente dos dois polícias; na rua, entraram todos para um trem de aluguer
que já os aguardava com ordem de seguir para o juízo de instrução.

Ainda lá em cima, dissera à sobrinha Beatriz Amélia, residente lá em casa


desde que perdera os pais, e à criada Libânia: “Não se apoquentem que eu
não demoro”. Tinham sido estas que, ao acordarem com os tiros, pelas
4h20, entraram em pânico e puseram-se a gritar à janela, levando um
vizinho estremunhado a sair para chamar a polícia e a moradora do rés do
chão a perceber que as quatro marteladas, seguidas do baque no chão,
significavam algo diferente das habituais discussões dos Grenos.

Na planta de Lisboa, alguns dos locais de que se fala neste texto sobre o crime da pintora
Josefa Greno
João Roberto

Na véspera desse sábado, Adolfo, de 46 anos, chegara ao seu primeiro andar


da travessa de São Mamede, em Lisboa, pelas onze horas da noite. Pediu um
chá e Josefa satisfez-lhe o pedido, mas não o desejo de com ela se deitar. Há
cerca de dois meses que dormiam separados, todavia, segundo dirá, muitas
noites ele a forçava a partilhar a cama, o que para si representava um
suplício, razão pela qual uma vez tentara estrangulá-lo com uma toalha e
noutra alvejá-lo com uma pistola.

Josefa contará ao juiz de instrução que, no dia 17 de abril, atentara contra a


vida do marido usando o revólver do próprio. Encontravam-se em casa,
discutiam ou já o teriam feito, ela irritou-se, empunhou a arma e fez fogo.
A bala alojou-se na ombreira da porta. Adolfo tirou-lhe o perigo das mãos,
dando-lhe ao mesmo tempo uma reprimenda. Só o vizinho de cima, do
segundo andar, deu conta do sucedido; bateu à porta e prometeu guardar
segredo. A partir daqui, cada um tinha o seu quarto.

“Não sinto a cabeça e no meu peito há uma enorme tempestade. Isto é


horrível”, disse Josefa, dias depois do assassínio, ao jornal “A Tarde”,
explicando que muitas vezes avisara o marido para dela fugir, que não
podiam viver assim, que se deviam separar para acabar com o martírio.
“Trabalhei toda a vida como um homem, mas os últimos anos foram
superiores às minhas forças”, afirmou, dizendo-se perante uma
fatalidade: “Tinha de ser assim”.
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Na noite de sexta-feira, deitara-se ela, primeiro, depois aparecera Adolfo,
de chá tragado e jornal lido. Não é claro que tivessem tido relações, contudo,
é bem provável que tenha sido tentado. O marido adormeceu de barriga para
cima, Josefa manteve-se acordada. Durante horas, à luz da lamparina,
pensou se dispararia ou não o pequeno revólver americano, comprado cinco
dias antes, numa loja da baixa. Custou-lhe nove mil réis, o preço de dois
retratos grandes “a crayon com moldura”, uma novidade à venda no
Chiado, na casa de fotografia Júlio Novais, onde por vezes os acusados de
crimes eram fotografados para os registos policiais.

Começara o sábado a surgir “cheio de sol, quente e abafadiço”, como


referiu “O Século”, quando Josefa retirou o revólver do esconderijo, entre
colchão e enxergão, levantou-se, aproximou o cano da axila esquerda do
marido e disparou. Quando o chefe da terceira secção judiciária, que
descobrirá a arma de novo escondida entre os colchões, lhe perguntou se
sentia remorsos, a pintora respondeu: "Ninguno".

Adolfo tentou levantar-se, perdeu a força, rolou para o chão, enquanto isso
Josefa voltou a disparar, por três vezes. Feriu-lhe o dedo indicador,
acertou-lhe no pescoço… A quarta bala perdeu-se. O chefe Aguiar
constatara no local que a pistola era de cinco balas e só uma restava no
tambor. Na cama, ficaram duas, no chão outra. Na autópsia, serão
observados três ferimentos, ao primeiro os médicos atribuíram a causa da
morte.

UM QUADRO DE HORROR NA MORGUE


Na mesma manhã, a sobrinha Beatriz pagou 200 réis pelo serviço de maca
para levar o corpo de Adolfo até à morgue, no Campo Santana, junto ao
hospital de São José, onde ainda hoje se encontra chamando-se Instituto de
Medicina Legal. O jornalista de “O Século” observou o cadáver: “Vestia uma
camisola de flanela, desabotoada no peito, horrivelmente tinta de sangue,
descobrindo-se-lhe ao centro do músculo peitoral, do lado direito, entre o
mamilo e o sovaco, um horroroso ferimento, cujos bordos estavam negros
da pólvora do revólver”.

Omita-se uma parte da descrição que mete sangue, apreciações dentárias e


considerações do autor, mas não esta: “O infeliz tinha o olho direito aberto
e o esquerdo semicerrado, o olhar fixo de cadáver, os lábios num último
repelão da morte, a cabeleira e as barbas em desalinho, remolhadas no
sangue, e as mãos enclavinhadas sobre o peito forte e musculoso”.
Assassinato do Pintor Adolfo Greno
ou O Crime da Travessa de São Mamede
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O jornalista, provavelmente o mesmo que testemunhou na morgue "um
horror", assistiu à autópsia de Adolfo Greno, três dias depois, e escreveu
não causar o corpo repugnância, mas estar o ambiente “detestável", devido
às "exalações fétidas do cadáver do infeliz Carapinha, o operário morto no
desastre da Junqueira, que se estendia na mesa próxima, coberto de vermes
e em estado lastimoso”. Reproduzir a crueza das descrições é, agora, dar
notícia de como se noticiava em quase todos os jornais e folhetos; com mais
ou menos adjetivos, raro era o ‘media’ que não detalhava… pormenores.

Para dar ainda outra ideia da época, diga-se que, na mesma sala, além do
“infeliz operário”, aguardavam a autópsia mais três cadáveres: “o de um
velhote que se enforcara na rua dos Anjos, com o retrato de um neto
pregado com um alfinete no peito, o rosto nos paroxismos da asfixia; o do
desgraçado que foi trucidado pelo comboio em Alcântara, pavorosamente
desfeito e ensanguentado; e ainda o de uma pretinha de 16 meses, que tinha
de manhã falecido subitamente nos braços da mãe”. O jornalista de “O
Século” viu-os assim, no sábado.

“ELE FAZIA-ME SOFRER MUITO. E EU NÃO MERECIA”

Wikipédia
As exéquias do pintor Adolfo Greno realizaram-se na segunda-feira, dia 29
de junho. “O Século” dizia que “nos convites para o enterro, incertos nos
jornais, o primeiro nome a aparecer era o de Josefa Greno, seguindo-se os
de um irmão do infeliz pintor, de sua cunhada, de seu tio, de sua sobrinha e
de seus primos”. O funeral foi pago pelos amigos do casal Joaquim e
Madalena Sotto Mayor, em casa de quem a pintora jantara sexta-feira,
enquanto Adolfo visitava uma cliente em Sintra.

No dia do funeral, já Josefa aguentara dois interrogatórios e desmaiara ao


dar entrada na cadeia. A sobrinha, filha de um irmão de Adolfo e pouco dada
à tia, para desgosto desta, fez-lhe chegar ao Aljube o colchão e as roupas
por ela pedidas, mas não a visitará; quem irá vê-la, frequentemente, será o
escultor e pintor Artur Prat, o professor Pinto de Almeida e Madalena Sotto
Mayor, que pagava as refeições confecionadas no hotel Europa para Josefa
comer na prisão. A pintora nunca perderá o apetite, pelo contrário, em sua
defesa dirá que é a única distração do seu espírito.

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