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Piovesan - DUDH - Desafios e Perspectivas-31-56

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31

Declaração Universal de Direitos Humanos:


desafios e perspectivas

FLÁVIA PIOVESAN1
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

1
Professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, Professora de Direitos Humanos dos Programas de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e da Universidade Pablo de Olavide
(Sevilha, Espanha); visitingfellow do Human Rights Program da Harvard Law School (1995 e 2000),
visitingfellow do Centre for Brazilian Studies da University of Oxford (2005), visitingfellow do Max Planck
Institute for Comparative Public Law and International Law (Heidelberg - 2007 e 2008), sendo atualmente
Humboldt Foundation Georg Forster Research Fellow no Max Planck Insititute (2009-2011); Procuradora
do Estado de São Paulo, membro do CLADEM (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos
Direitos da Mulher), membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e membro
da SUR – Human Rights University Network.
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1 INTRODUÇÃO

Como compreender o processo de construção histórica dos direitos humanos? Qual é o


legado da Declaração Universal de 1948? Em que medida introduz uma nova concepção
a respeito dos direitos humanos? Quais são os principais desafios e perspectivas para a
afirmação de uma cultura de direitos na ordem contemporânea?

São estas as questões centrais a inspirar o presente estudo que tem por objetivo maior
propor uma reflexão a respeito dos direitos humanos e seus desafios na ordem contem-
porânea, tendo como referência o legado da Declaração Universal de 1948.

2 A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS E A


DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE 1948

Os direitos humanos refletem um construído axiológico a partir de um espaço simbólico


de luta e ação social. No dizer de Flores (S.n.t, p. 7), compõem uma racionalidade de
resistência, na medida em que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de
luta pela dignidade humana. Invocam uma plataforma emancipatória voltada à proteção
da dignidade humana. No mesmo sentido, Lafer (2006, p. XXII), lembrando Danièle
Lochak, realça que os direitos humanos não traduzem uma história linear, não compõem
a história de uma marcha triunfal, nem a história de uma causa perdida de antemão, mas
a história de um combate.

Enquanto reivindicações morais, os direitos humanos nascem quando devem e podem


nascer. Como realça Bobbio (1988), os direitos humanos não nascem todos de uma vez e
nem de uma vez por todas. Para Arendt (1979), os direitos humanos não são um dado,
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mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e re-


construção (LAFER, 1988, p. 134). No mesmo sentido,

Não se insistirá nunca o bastante sobre o fato de que a ascensão dos


direitos é fruto de lutas, que os direitos são conquistados, às vezes, com
barricadas, em um processo histórico cheio de vicissitudes, por meio do
qual as necessidades e as aspirações se articulam em reivindicações e em
estandartes de luta antes de serem reconhecidos como direitos (SACHS,
1998, p. 156).

Para Rosas “O conceito de direitos humanos é sempre progressivo. […] O debate a


respeito do que são os direitos humanos e como devem ser definidos é parte e parcela de
nossa história, de nosso passado e de nosso presente.” (ROSAS, 1995, p. 243).

A partir de uma perspectiva histórica, observa-se que o discurso jurídico da cidadania


sempre enfrentou a tensa dicotomia entre os valores da liberdade e da igualdade. No fim
do século XVIII, as modernas Declarações de Direitos refletiam um discurso liberal da
cidadania. Tanto a Declaração francesa de 1789, como a Declaração americana de 1776
consagravam a óptica contratualista liberal, pela qual os direitos humanos se reduziam
aos direitos à liberdade, segurança e propriedade, complementados pela resistência à
opressão. Daí o primado do valor da liberdade com a supremacia dos direitos civis e
políticos e a ausência de previsão de qualquer direito social, econômico e cultural que
dependesse da intervenção do Estado.

Caminhando na história, verifica-se, por sua vez, que, especialmente após a Primeira
Guerra Mundial, ao lado do discurso liberal da cidadania, fortalece-se o discurso social da
cidadania e, sob as influências da concepção marxista-leninista, é elaborada a Declara-
ção dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado da então República Soviética Russa,
em 1918. Do primado da liberdade transita-se ao primado do valor da igualdade,
objetivando-se eliminar a exploração econômica. O Estado passa a ser visto como agen-
te de processos transformadores e o direito à abstenção do Estado. Nesse sentido, con-
verte-se em direito à atuação estatal, com a emergência dos direitos a prestações sociais.
A Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado de 1918, bem como as
Constituições sociais do início do século XX (ex.: Constituição de Weimar de 1919, Cons-
tituição Mexicana de 1917, etc.) primaram por conter um discurso social da cidadania,
em que a igualdade era o direito basilar e um extenso elenco de direitos econômicos,
sociais e culturais era previsto. Essa breve digressão histórica tem o sentido de demonstrar
o quão dicotômica se apresentava a linguagem dos direitos: de um lado, direitos civis e
políticos; e do outro, direitos sociais, econômicos e culturais.
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Considerando esse contexto, a Declaração Universal de direitos humanos de 1948 intro-


duz extraordinária inovação ao conter uma linguagem de direitos até então inédita.
Combinando o discurso liberal da cidadania com o discurso social, a Declaração passa a
elencar tanto direitos civis e políticos (arts. 3.º a 21), como direitos sociais, econômicos e
culturais (arts. 22 a 28), afirmando a concepção contemporânea de Direitos Humanos.
De um lado, parifica, em grau de relevância, os direitos civis e políticos e os direitos
econômicos, sociais e culturais; por outro, endossa a interdependência e inter-relação
destas duas categorias de direitos, inspirada na visão integral dos direitos humanos.

Esta concepção é fruto do movimento de internacionalização dos direitos humanos que


surge, no pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o
nazismo. Apresentando o Estado como o grande violador de direitos humanos, a era
Hitler foi marcada pela lógica da destruição e descartabilidade da pessoa humana, que
resultou no envio de dezoito milhões de pessoas a campos de concentração, com a morte
de onze milhões, sendo seis milhões de judeus, além de comunistas, homossexuais, ciga-
nos, e outros. O legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a
condição de sujeito de direitos, a pertinência de determinada raça – a raça pura ariana.
No dizer de Sachs (1988, p. 149), o século XX foi marcado por duas guerras mundiais e
pelo horror absoluto do genocídio concebido como projeto político e industrial. A barbárie
do totalitarismo significou a ruptura do paradigma dos direitos humanos por meio da
negação do valor da pessoa humana como valor fonte do direito. Se a Segunda Guerra
significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a sua re-
construção. Nas palavras de Buergenthal:

O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do


pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas
violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte destas
violações poderia ser prevenida se um efetivo sistema de proteção
internacional de direitos humanos existisse (2009, p. 17).2

2
Para Henkin: “Por mais de meio século, o sistema internacional tem demonstrado comprometimento com
valores que transcendem os valores puramente “estatais”, notadamente os direitos humanos, e tem
desenvolvido um impressionante sistema normativo de proteção desses direitos”. (1993, p. 2). Ainda sobre
o processo de internacionalização dos direitos humanos, observa Celso Lafer: “Configurou-se como a
primeira resposta jurídica da comunidade internacional ao fato de que o direito ex partepopuli de todo ser
humano à hospitabilidade universal só começaria a viabilizar-se se o ‘direito a ter direitos’, para falar com
Hannah Arendt, tivesse uma tutela internacional, homologadora do ponto de vista da humanidade. Foi assim
que começou efetivamente a ser delimitada a ‘razão de estado’ e corroída a competência reservada da
soberania dos governantes, em matéria de direitos humanos, encetando-se a sua vinculação aos temas da
democracia e da paz”. (Prefácio. In: ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema
global. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. XXVI).
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É nesse cenário que se vislumbra o esforço de reconstrução dos direitos humanos como
paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional.

Fortalece-se a ideia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao
domínio reservado do Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional.
Prenuncia-se, desse modo, o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus
nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, decorrência de sua
soberania. Para Hurrell (1999, p. 277):

O aumento significativo das ambições normativas da sociedade internacio-


nal é particularmente visível no campo dos direitos humanos e da democra-
cia, com base na ideia de que as relações entre governantes e governados,
Estados e cidadãos, passam a ser suscetíveis de legítima preocupação da
comunidade internacional; de que os maus-tratos a cidadãos e a inexistência
de regimes democráticos devem demandar ação internacional; e que a legiti-
midade internacional de um Estado passa crescentemente a depender do
modo pelo qual as sociedades domésticas são politicamente ordenadas.

Nesse contexto, a Declaração de 1948 vem a inovar a gramática dos direitos humanos ao
introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela uni-
versalidade e indivisibilidade destes direitos. Universalidade porque clama pela extensão
universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito
único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencial-
mente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à
condição humana. Isto porque todo ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente,
sendo incondicionada, não dependendo de qualquer outro critério, senão ser humano. O
valor da dignidade humana, incorporado pela Declaração Universal de 1948, constitui o
norte e o lastro ético dos demais instrumentos internacionais de proteção dos direitos
humanos.

Além de afirmar a universalidade dos direitos humanos, a Declaração Universal acolhe a


ideia da indivisibilidade dos direitos humanos a partir de uma visão integral de direitos. A
garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais,
econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o
são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e
inter-relacionada, capazes de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o catá-
logo de direitos sociais, econômicos e culturais.

A partir da Declaração de 1948, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos


Direitos Humanos mediante a adoção de diversos instrumentos internacionais de prote-
ção. O sistema internacional de proteção dos direitos humanos constitui o legado maior
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da chamada “Era dos Direitos”, que tem permitido a internacionalização dos direitos
humanos e a humanização do Direito Internacional contemporâneo, como atenta
Buergenthal (1991, p. XXXI). No mesmo sentido, afirma Henkin: “O Direito Internacio-
nal pode ser classificado como o Direito anterior à Segunda Guerra Mundial e o Direito
posterior a ela. Em 1945, a vitória dos aliados introduziu uma nova ordem com importan-
tes transformações no Direito Internacional.” (HENKIN, 1993, p. 3).

Este sistema é integrado por tratados internacionais de proteção que refletem, sobretudo, a
consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam
o consenso internacional acerca de temas centrais aos direitos humanos, na busca da salva-
guarda de parâmetros protetivos mínimos – do “mínimo ético irredutível”. Nesse sentido,
cabe destacar que, até agosto de 2007, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
contava com 160 Estados-partes; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais contava com 157 Estados-partes; a Convenção contra a Tortura contava com 145
Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial contava com
173 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher
contava com 185 Estados-partes e a Convenção sobre os Direitos da Criança apresentava
a mais ampla adesão, com 193 Estados-partes (UNDP, 2007).

Ao lado do sistema normativo global, surgem os sistemas regionais de proteção, que


buscam internacionalizar os direitos humanos nos planos regionais, particularmente na
Europa, América e África. Adicionalmente, há um incipiente sistema árabe e a proposta
de criação de um sistema regional asiático. Consolida-se, assim, a convivência do siste-
ma global da Organização das Nações Unidas (ONU) com instrumentos do sistema
regional, por sua vez, integrado pelos sistemas americano, europeu e africano de prote-
ção aos direitos humanos.

Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares. Inspirados


pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de
proteção dos direitos humanos, no plano internacional. Nessa óptica, os diversos sistemas
de proteção de direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos. O
propósito da coexistência de distintos instrumentos jurídicos – garantindo os mesmos
direitos – é, pois, no sentido de ampliar e fortalecer a proteção dos direitos humanos. O
que importa é o grau de eficácia da proteção, e, por isso, deve ser aplicada a norma que,
no caso concreto, melhor proteja a vítima. Ao adotar o valor da primazia da pessoa
humana, estes sistemas se complementam, interagindo com o sistema nacional de prote-
ção, a fim de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos
fundamentais. Esta é, inclusive, a lógica e a principiologia próprias do Direito Internacio-
nal dos Direitos Humanos, todo ele fundado no princípio maior da dignidade humana.
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Ressalte-se que a Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, reitera a concepção


da Declaração de 1948, quando, em seu parágrafo 5.º, afirma: “Todos os direitos humanos
são universais, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve
tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e equitativa, em pé de igualdade e
com a mesma ênfase.”.

Logo, a Declaração de Viena de 1993, subscrita por 171 Estados, endossa a universalida-
de e a indivisibilidade dos direitos humanos, revigorando o lastro de legitimidade da cha-
mada concepção contemporânea de direitos humanos, introduzida pela Declaração de
1948. Note-se que, enquanto consenso do “pós-Guerra”, a Declaração de 1948 foi ado-
tada por 48 Estados, com oito abstenções. Assim, a Declaração de Viena de 1993 esten-
de, renova e amplia o consenso sobre a universalidade e indivisibilidade dos direitos hu-
manos. A Declaração de Viena afirma ainda a interdependência entre os valores dos
direitos humanos, democracia e desenvolvimento.

Não há direitos humanos sem democracia e, tampouco, democracia sem direitos humanos.
Vale dizer: o regime mais compatível com a proteção dos direitos humanos é o regime
democrático. Atualmente, 140 Estados, dos quase 200 Estados que integram a ordem inter-
nacional, realizam eleições periódicas. Contudo, apenas 82 Estados (o que representa 57%
da população mundial) são considerados plenamente democráticos. Em 1985, este percentual
era de 38%, compreendendo 44 Estados (UNDP, 2007). O pleno exercício dos direitos
políticos pode implicar o “empoderamento” das populações mais vulneráveis, o aumento de
sua capacidade de pressão, articulação e mobilização políticas. Para Sen (2003), os direitos
políticos (incluindo a liberdade de expressão e de discussão) são não apenas fundamentais
para demandar respostas políticas às necessidades econômicas, mas são centrais para a
própria formulação destas necessidades econômicas.

O direito ao desenvolvimento, por sua vez, demanda uma globalização ética e solidária.
No entender de Bedjaqui (1991, p. 1.182):

Na realidade, a dimensão internacional do direito ao desenvolvimento é nada


mais que o direito a uma repartição equitativa concernente ao bem-estar
social e econômico mundial. Reflete uma demanda crucial de nosso tempo,
na medida em que os quatro quintos da população mundial não mais aceitam
o fato de um quinto da população mundial continuar a construir sua riqueza
com base em sua pobreza.

As assimetrias globais revelam que a renda dos um por cento dos mais ricos supera a
renda dos 57% mais pobres na esfera mundial (UNDP, 2007, p. 19).

Como atenta Stiglitz: “The actual number of people living in poverty has actually increased
by almost 100 million. This occurred at the same time that total world income increased by
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an average of 2.5 percent annually.” (2003, p. 6). Acrescenta o autor: “Development is


about transforming societies, improving the lives of the poor, enabling everyone to have a
chance at success and access to health care and education.” (STIGLITZ, 2003, p. 252).

Para a World Health Organization “poverty is the world’s greatest killer. Poverty wields
its destructive influence at every stage of human life, from the moment of conception to
the grave. It conspires with the most deadly and painful diseases to bring a wretched
existence to all those who suffer from it.” (FARMER, 2003, p. 50)3.

O desenvolvimento há de ser concebido como um processo de expansão das liberdades


reais que as pessoas podem usufruir, para adotar a concepção de Sen4. Acrescente-se
ainda que a Declaração de Viena de 1993 enfatiza ser o direito ao desenvolvimento um
direito universal e inalienável, parte integral dos direitos humanos fundamentais. A Decla-
ração de Viena reconhece a relação de interdependência entre a democracia, o desen-
volvimento e os direitos humanos.

Feitas essas considerações a respeito da concepção contemporânea de direitos huma-


nos, transita-se à reflexão final, que tem por objetivo destacar os desafios centrais à
afirmação dos direitos humanos na ordem internacional contemporânea.

3 DECLARAÇÃO UNIVERSAL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS

Serão destacados sete desafios centrais à implementação dos direitos humanos na ordem
contemporânea, tendo como referência o legado introduzido pela Declaração Universal.

3
De acordo com dados do relatório “Sinais Vitais”, do WorldwatchInstitute (2003), a desigualdade de renda
se reflete nos indicadores de saúde: a mortalidade infantil nos países pobres é 13 vezes maior do que nos
países ricos; a mortalidade materna é 150 vezes maior nos países de menor desenvolvimento com relação aos
países industrializados. A falta de água limpa e saneamento básico mata 1,7 milhão de pessoas por ano (90%
crianças), ao passo que 1,6 milhão de pessoas morrem de doenças decorrentes da utilização de combustíveis
fósseis para aquecimento e preparo de alimentos. O relatório ainda atenta para o fato de que a quase
totalidade dos conflitos armados se concentrar no mundo em desenvolvimento, que produziu 86% de
refugiados na última década.
4
Ao conceber o desenvolvimento como liberdade, sustenta Amartya Sen: “Neste sentido, a expansão das
liberdades é vista concomitantemente como 1) uma finalidade em si mesma e 2) o principal significado do
desenvolvimento. Tais finalidades podem ser chamadas, respectivamente, como a função constitutiva e a
função instrumental da liberdade em relação ao desenvolvimento. A função constitutiva da liberdade relaciona-
se com a importância da liberdade substantiva para o engrandecimento da vida humana. As liberdades substan-
tivas incluem as capacidades elementares, como a de evitar privações como a fome, a subnutrição, a mortalida-
de evitável, a mortalidade prematura, bem como as liberdades associadas com a educação, a participação
política, a proibição da censura. Nesta perspectiva constitutiva, o desenvolvimento envolve a expansão destas
e de outras liberdades fundamentais. Desenvolvimento, nesta visão, é o processo de expansão das liberdades
humanas.” (SEN, 1999, p. 35-36 e p. 297). Sobre o direito ao desenvolvimento, ver também Vasak, 1979.
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3.1 Universalismo versus Relativismo Cultural

O primeiro desafio se refere a um dos temas mais complexos e instigantes da teoria geral
dos direitos humanos, concernente à própria fundamentação dos direitos humanos. O
debate entre os universalistas e os relativistas culturais retoma o dilema a respeito dos
fundamentos dos direitos humanos: por que se tem direitos? As normas de direitos huma-
nos podem ter um sentido universal ou são culturalmente relativas?

Para os universalistas, os direitos humanos decorrem da dignidade humana, enquanto


valor intrínseco à condição humana. Defende-se, nesta perspectiva, o mínimo ético
irredutível – ainda que se possa discutir o alcance deste “mínimo ético” e dos direitos nele
compreendidos.

Para os relativistas, a noção de direitos está estritamente relacionada ao sistema político,


econômico, cultural, social e moral vigente em determinada sociedade. Cada cultura
possui seu próprio discurso acerca dos direitos fundamentais, que está relacionado às
específicas circunstâncias culturais e históricas de cada sociedade. Não há moral univer-
sal, já que a história do mundo é a história de uma pluralidade de culturas. Há uma
pluralidade de culturas no mundo e estas culturas produzem seus próprios valores
(VINCENT, 1976, p. 37-38). Na crítica dos relativistas, os universalistas invocam a visão
hegemônica da cultura eurocêntrica ocidental, na prática de um canibalismo cultural. Já
para os universalistas, os relativistas, em nome da cultura, buscam acobertar graves
violações a direitos humanos. Ademais, complementam, as culturas não são homogêneas,
nem tampouco compõem uma unidade coerente; mas, são complexas, variáveis, múltiplas,
fluídas e não estáticas. São criações humanas e não destino (DONNELLY, 2003, p. 86).
Para o autor, “um dos elementos que nos fazem humanos é a capacidade de criar e
transformar a cultura.” (idem, p. 123).

Para Donnelly (2003, p. 89-90), há diversas correntes relativistas:

No extremo, há o que nós denominamos de relativismo cultural radical, que


concebe a cultura como a única fonte de validade de um direito ou regra
moral. [...] Um forte relativismo cultural acredita que a cultura é a principal
fonte de validade de um direito ou regra moral. [...] Um relativismo cultural
fraco, por sua vez, sustenta que a cultura pode ser uma importante fonte de
validade de um direito ou regra moral.

Para dialogar com Donnelly, poder-se-ia sustentar a existência de diversos graus de


universalismos, a depender do alcance do “mínimo ético irredutível”. No entanto, a defe-
sa, por si só, deste mínimo ético, independentemente de seu alcance, apontará à corrente
universalista – seja a um universalismo radical, forte ou fraco.
40 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 9, n. 2, jul./dez. 2014

Neste debate, destaca-se a visão de Santos, em defesa de uma concepção multicultural


de direitos humanos, inspirada no diálogo entre as culturas, a compor um multiculturalismo
emancipatório. Para Santos (1997, p. 112), “os direitos humanos têm que ser
reconceitualizados como multiculturais. O multiculturalismo, tal como entendido, é pré-
-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência
global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contra-hegemônica
de direitos humanos no nosso tempo.”. Prossegue o autor defendendo a necessidade de
superar o debate sobre universalismo e relativismo cultural a partir da transformação cosmo-
polita dos direitos humanos. Na medida em que todas culturas possuem concepções distintas
de dignidade humana, mas são incompletas, haveria que se aumentar a consciência destas
incompletudes culturais mútuas, como pressuposto para um diálogo intercultural. A constru-
ção de uma concepção multicultural dos direitos humanos decorreria deste diálogo intercultural
(SANTOS, 1997, p. 114). Adiciona o autor:

Neste contexto é útil distinguir entre globalização de-cima-para-baixo e


globalização de-baixo-para-cima, ou entre globalização hegemônica e
globalização contra-hegemônica. O que eu denomino de localismo globalizado
e globalismo localizado são globalizações de-cima-para-baixo;
cosmopolitanismo e patrimônio comum da humanidade são globalizações
de-baixo-para cima. (idem, ibidem, p. 111).

No mesmo sentido, Flores sustenta um universalismo de confluência, ou seja, um


universalismo de ponto de chegada e não de ponto de partida. Em seus dizeres:

[...] nossa visão complexa dos direitos baseia-se em uma racionalidade de


resistência. Uma racionalidade que não nega que é possível chegar a uma
síntese universal das diferentes opções relativas a direitos. [...] O que nega-
mos é considerar o universal como um ponto de partida ou um campo de
desencontros. Ao universal há que se chegar – universalismo de chegada
ou de confluência – depois (não antes de) um processo conflitivo, discursivo
de diálogo [...]. Falamos de entrecruzamento e não de uma mera superposição
de propostas (FLORES, [S.n.t.], p. 7).

Em direção similar, Parekh defende um universalismo pluralista, não etnocêntrico, baseado


no diálogo intercultural. Afirma o autor:

O objetivo de um diálogo inter-cultural é alcançar um catálogo de valores


que tenha a concordância de todos os participantes. A preocupação não
deve ser descobrir valores, eis que os mesmos não têm fundamento objeti-
vo, mas sim buscar um consenso em torno deles. [...] Valores dependem de
decisão coletiva. Como não podem ser racionalmente demonstrados, devem
ser objeto de um consenso racionalmente defensável. [...] É possível e ne-
cessário desenvolver um catálogo de valores universais não-etnocêntricos,
por meio de uma diálogo inter-cultural aberto, no qual dos participantes
PIOVESAN, F. Declaração Universal de Direitos Humanos 41

decidam quais os valores a serem respeitados. [...] Esta posição poderia ser
classificada como um universalismo pluralista (PAREKH, 1999, p. 139-140).

A respeito do diálogo entre as culturas, merece menção as reflexões de Sen sobre direi-
tos humanos e valores asiáticos, particularmente pela crítica feita às interpretações auto-
ritárias destes valores e pela defesa de que as culturas asiáticas (com destaque ao budis-
mo) enfatizam a importância da liberdade e da tolerância (SEN. Human rights and asian
values. The New Republic, july 14, p. 33-40, 1997, apud HENKIN et al, 1999, p. 113-
116)5. Menção também há que ser feita às reflexões de Abdullah Ahmed An-Na’im, ao
tratar dos direitos humanos no mundo islâmico a partir de uma nova interpretação do
islamismo e da Sharia (AN-NA’IM, Abdullah Ahmed. Human rights in the muslim world.
3 Harvard Human Rights Journal, 13, 1990, apud STEINER; ALSTON, 2000, p. 389-
398) e AN-NA’IM, 1992).

Acredita-se, de igual modo, que a abertura do diálogo entre as culturas, com respeito à
diversidade e com base no reconhecimento do outro, como ser pleno de dignidade e direitos,
é condição para a celebração de uma cultura dos direitos humanos, inspirada pela obser-
vância do “mínimo ético irredutível”, alcançado por um universalismo de confluência. Para
a construção desta cultura de direitos humanos, há que se transitar da ideia de
“clashofcivilizations” para a ideia do “dialogue amongcivilizations” (SEN, 2006, p. 12)6.

O universalismo de confluência, fomentado pelo ativo protagonismo da sociedade civil


internacional7, a partir de suas demandas e reivindicações morais, é que assegurará a
legitimidade do processo de construção de parâmetros internacionais mínimos voltados à
proteção dos direitos humanos.

5
A respeito da perspectiva multicultural dos direitos humanos e das diversas tradições religiosas, ver:
BALDI, César Augusto (Org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar,
2004. Em especial os artigos de Chandra Muzaffar (Islã e direitos humanos); Damien Keown (Budismo e
direitos humanos); Tu Weiming (Os direitos humanos como um discurso moral confuciano); e Ashis Nandy
(A política do secularismo e o resgate da tolerância religiosa). Ver também: CHAN, Joseph. Confucionism
and human rights; e CHAN, Stephen. Buddhism and human rights. In: SMITH, Rhona K. M. VAN DEN
ANKER, Christien (Ed.). The essentials of Human Rights. London: Hodder Arnold, 2005, p. 55-57 e p.
25-27, respectivamente.
6
Sobre a ideia de “clash of civilization”, ver: HUNGTINGTON, Samuel. The clash of civilizations and the
remaking of the world order. New York: Simon & Schuster, 1996.
7
Se em 1948 apenas 41 organizações não-governamentais tinham status consultivo junto ao Conselho
Econômico e Social, em 2004 este número alcança aproximadamente 2.350 organizações não-governamen-
tais com status consultivo. Sobre o tema, consultar: McDOUGALL, 2004, p. 13.
42 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 9, n. 2, jul./dez. 2014

3.2 Laicidade Estatal versus Fundamentalismos religiosos

Um segundo desafio central à implementação dos direitos humanos é o da laicidade


estatal. Isto porque o Estado laico é garantia essencial para o exercício dos direitos
humanos, especialmente nos campos da sexualidade e reprodução (VENTURA et al,
2003).

Confundir Estado com religião implica a adoção oficial de dogmas incontestáveis que, ao
impor uma moral única, inviabiliza qualquer projeto de sociedade aberta, pluralista e de-
mocrática. A ordem jurídica em um Estado Democrático de Direito não pode se conver-
ter na voz exclusiva da moral de qualquer religião. Os grupos religiosos têm o direito de
constituir suas identidades em torno de seus princípios e valores, pois são parte de uma
sociedade democrática. Mas, não têm o direito a pretender hegemonizar a cultura de um
Estado constitucionalmente laico.

No Estado laico, marcado pela separação entre Estado e religião, todas as religiões me-
recem igual consideração e profundo respeito, inexistindo, contudo, qualquer religião ofi-
cial, que se transforme na única concepção estatal, a abolir a dinâmica de uma sociedade
aberta, livre, diversa e plural. Há o dever do Estado em garantir as condições de igual
liberdade religiosa e moral, em um contexto desafiador em que, se de um lado o Estado
contemporâneo busca se separar da religião, esta, por sua vez, busca adentrar nos domí-
nios do Estado (ex.: bancadas religiosas no Legislativo).

Destacam-se, aqui, duas estratégias: a) reforçar o princípio da laicidade estatal, com


ênfase à Declaração sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação com base
em Intolerância Religiosa; b) fortalecer leituras e interpretações progressistas no campo
religioso, de modo a respeitar os direitos humanos.

4 DIREITO AO DESENVOLVIMENTO VERSUS ASSIMETRIAS GLOBAIS

O terceiro desafio traduz a tensão entre o direito ao desenvolvimento e as assimetrias


globais.

Em 1986, foi adotada pela ONU a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, por
146 Estados, com um voto contrário (EUA) e oito abstenções. Para Rosas:

A respeito do conteúdo do direito ao desenvolvimento, três aspectos


devem ser mencionados. Em primeiro lugar, a Declaração de 1986 endos-
PIOVESAN, F. Declaração Universal de Direitos Humanos 43

sa a importância da participação. […] Em segundo lugar, a Declaração


deve ser concebida no contexto das necessidades básicas de justiça
social. […] Em terceiro lugar, a Declaração enfatiza tanto a necessidade
de adoção de programas e políticas nacionais, como da cooperação inter-
nacional. […].

Deste modo, o direito ao desenvolvimento compreende três dimensões:

a) a proteção às necessidades básicas de justiça social, enunciando a Declaração sobre


o Direito ao Desenvolvimento que “A pessoa humana é o sujeito central do desenvol-
vimento e deve ser ativa participante e beneficiária do direito ao desenvolvimento”;

b) a importância da participação, com realce ao componente democrático a orientar a


formulação de políticas públicas. A sociedade civil clama por maior transparência,
democratização e accountability na gestão do orçamento público e na construção e
implementação de políticas públicas; e

c) a necessidade de adoção de programas e políticas nacionais, como de cooperação


internacional – já que a efetiva cooperação internacional é essencial para prover aos
países em desenvolvimento meios que encorajem o direito ao desenvolvimento. A res-
peito, adiciona o artigo 4.º da Declaração que os Estados têm o dever de adotar medi-
das, individual ou coletivamente, voltadas a formular políticas de desenvolvimento in-
ternacional, com vistas a facilitar a plena realização de direitos, acrescentando que a
efetiva cooperação internacional é essencial para prover aos países em desenvolvi-
mento meios que encorajem o direito ao desenvolvimento.

Em uma arena global não mais marcada pela bipolaridade Leste/Oeste, mas sim pela
bipolaridade Norte/Sul, abrangendo os países desenvolvidos e em desenvolvimento (so-
bretudo as regiões da América Latina, Ásia e África), há que se demandar uma globalização
mais ética e solidária. Note-se que, em face das assimetrias globais, os 15% mais ricos
concentram 85% da renda mundial, enquanto que os 85% mais pobres concentram 15%
da renda mundial.

Se, tradicionalmente, a agenda de direitos humanos se centrou na tutela de direitos civis


e políticos, sob o forte impacto da “voz do Norte”, testemunha-se, atualmente, a amplia-
ção desta agenda tradicional, que passa a incorporar novos direitos, com ênfase nos
direitos econômicos, sociais e culturais, no direito ao desenvolvimento, no direito à inclu-
são social e na pobreza como violação de direitos. Este processo permite ecoar a “voz
própria do Sul”, capaz de revelar as preocupações, demandas e prioridades desta região.
44 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 9, n. 2, jul./dez. 2014

Nesse contexto, é fundamental consolidar e fortalecer o processo de afirmação dos direi-


tos humanos, sob essa perspectiva integral, indivisível e interdependente.

5 PROTEÇÃO DOS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS


VERSUS DILEMAS DA GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA

O quarto desafio se relaciona com o terceiro na medida em que aponta aos dilemas
decorrentes do processo de globalização econômica, com destaque à temerária
flexibilização dos direitos sociais.

Nos anos noventas, as políticas neoliberais, fundadas no livre mercado, nos programas de
privatização e na austeridade econômica, permitiram que, hoje, sejam antes os Estados
que se achem incorporados aos mercados e não a economia política às fronteiras esta-
tais, como salienta Habermas (1999).

A globalização econômica tem agravado ainda mais as desigualdades sociais, aprofundando-


-se as marcas da pobreza absoluta e da exclusão social. Lembre-se que o próprio então
Diretor-Gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Michel Camdessus (2000),
em seu último discurso oficial, afirmou que “desmantelar sistematicamente o Estado não
é o caminho para responder aos problemas das economias modernas. […] A pobreza é a
ameaça sistêmica fundamental à estabilidade em um mundo que se globaliza.”.

Considerando os graves riscos do processo de desmantelamento das políticas públicas


sociais, há que se redefinir o papel do Estado sob o impacto da globalização econômica.
Há que se reforçar a responsabilidade do Estado no tocante à implementação dos direitos
econômicos, sociais e culturais.

Como adverte Eide (1995, p. 383):

Caminhos podem e devem ser encontrados para que o Estado assegure o


respeito e a proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais, de forma
a preservar condições para uma economia de mercado relativamente livre. A
ação governamental deve promover a igualdade social, enfrentar as desi-
gualdades sociais, compensar os desequilíbrios criados pelos mercados e
assegurar um desenvolvimento humano sustentável. A relação entre gover-
nos e mercados deve ser complementar.

No mesmo sentido, pontua Donnelly (1998, p. 160):

Mercados livres são economicamente análogos ao sistema político baseado


na regra da maioria, sem, contudo, a observância aos direitos das minorias.
PIOVESAN, F. Declaração Universal de Direitos Humanos 45

As políticas sociais, sob esta perspectiva, são essenciais para assegurar


que as minorias, em desvantagem ou privadas pelo mercado, sejam conside-
radas com o mínimo respeito na esfera econômica. [...] Os mercados buscam
eficiência e não justiça social ou direitos humanos para todos.

Continua o mesmo autor:

Aliviar o sofrimento da pobreza e adotar políticas compensatórias são fun-


ções do Estado e não do mercado. Estas são demandas relacionadas à justi-
ça, a direitos e a obrigações e não à eficiência. [...] Os mercados simplesmen-
te não podem tratá-las – porque não são vocacionados para isto (DONNELLY,
2001, p. 153).

No contexto da globalização econômica, faz-se também premente a incorporação da


agenda de direitos humanos por atores não estatais. Neste sentido, surgem três atores
fundamentais: a) agências financeiras internacionais; b) blocos regionais econômicos; e
c) setor privado.

Com relação às agências financeiras internacionais, há o desafio de que os direitos hu-


manos possam permear a política macroeconômica, de forma a envolver a política fiscal,
a política monetária e a política cambial. As instituições econômicas internacionais de-
vem levar em grande consideração a dimensão humana de suas atividades e o forte
impacto que as políticas econômicas podem ter nas economias locais, especialmente em
um mundo cada vez mais globalizado (ROBINSON, 1999).

Adiciona a autora em questão:

A título de exemplo, um economista já advertiu que o comércio e a política


cambial podem ter maior impacto no desenvolvimento dos direitos das crian-
ças que propriamente o alcance do orçamento dedicado à saúde e educação.
Um incompetente diretor do Banco Central pode ser mais prejudicial aos
direitos das crianças que um incompetente Ministro da Educação
(ROBINSON, 1999).

Embora as agências financeiras internacionais estejam vinculadas ao sistema das Nações


Unidas, na qualidade de agências especializadas, o Banco Mundial e o Fundo Monetário
Internacional, por exemplo, carecem da formulação de uma política vocacionada aos direi-
tos humanos. Tal política é medida imperativa para o alcance dos propósitos da ONU e,
sobretudo, para a coerência ética e principiológica que há de pautar sua atuação. A agenda
de direitos humanos deve ser, assim, incorporada no mandato de atuação destas agências.

Há que se romper com os paradoxos que decorrem das tensões entre a tônica includente
voltada para a promoção dos direitos humanos, consagrada nos relevantes tratados de
46 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 9, n. 2, jul./dez. 2014

proteção dos direitos humanos da ONU (com destaque ao Pacto Internacional dos Direi-
tos Econômicos, Sociais e Culturais) e, por outro lado, a tônica excludente ditada pela
atuação especialmente do Fundo Monetário Internacional, na medida em que a sua polí-
tica, orientada pela chamada “condicionalidade”, submete países em desenvolvimento a
modelos de ajuste estrutural incompatíveis com os direitos humanos. Além disso, há que
se fortalecer a democratização, a transparência e a accountability destas instituições
(STIGLITZ, 2003)8. Note-se que 48% do poder de voto no FMI se concentra nas mãos
de sete Estados (Estados Unidos, Japão, França, Inglaterra, Arábia Saudita, China e
Rússia), enquanto que no Banco Mundial 46% do poder de voto se concentra nas mãos
também destes mesmos Estados (UNDP, 2007). Na percepção crítica de Stiglitz:

[...] we have a system that might be called global governance without global
government, one in which a few institutions – the World Bank, the IMF, the
WTO – and a few players – the finance, commerce, and trade ministries,
closely linked to certain financial and commercial interests – dominate the
scene, but in which many of those affected by their decisions are left almost
voiceless. It’s time to change some of the rules governing the international
economic order [...] (STIGLITZ, 2003, p. 21-22).

Quanto aos blocos regionais econômicos, vislumbram-se, do mesmo modo, os paradoxos


que decorrem das tensões entre a tônica excludente do processo de globalização econô-
mica e os movimentos que intentam reforçar a democracia e os direitos humanos como
parâmetros a conferir lastro ético e moral à criação de uma nova ordem internacional.
De um lado, portanto, lança-se a tônica excludente do processo de globalização econômi-
ca e, de outro lado, emerge a tônica includente do processo de internacionalização dos
direitos humanos, somado ao processo de incorporação das cláusulas democráticas e
direitos humanos pelos blocos econômicos regionais. Embora a formação de blocos eco-
nômicos de alcance regional, tanto na União Europeia como no Mercosul, tenha buscado
não apenas a integração e cooperação de natureza econômica, mas posterior e paulatina-
mente a consolidação da democracia e a implementação dos direitos humanos nas res-
pectivas regiões (o que se constata com maior evidência na União Europeia e de forma
ainda bastante incipiente no Mercosul), observa-se que as cláusulas democráticas e de

8
Para o autor: “When crises hit, the IMF prescribed outmoded, inappropriate, if standard solutions, without
considering the effects they would have on the people in the countries told to follow these policies. Rarely
did I see forecasts about what the policies would do to poverty. Rarely did I see thoughtful discussions and
analyses of the consequences of alternative policies. There was a single prescription. Alternative opinions
were not sought. Open, frank discussion was discouraged – there is no room for it. Ideology guided policy
prescription and countries were expected to follow the IMF guidelines without debate. These attitudes
made me cringe. It was not that they often produced poor results; they were antidemocratic.” (STIGLITZ,
2003, p. XIV).
PIOVESAN, F. Declaração Universal de Direitos Humanos 47

direitos humanos não foram incorporadas na agenda do processo de globalização econô-


mica.

No que se refere ao setor privado, há também a necessidade de acentuar sua responsa-


bilidade social, especialmente das empresas multinacionais, na medida em que constitu-
em as grandes beneficiárias do processo de globalização, bastando citar que das cem
maiores economias mundiais, 51 são empresas multinacionais e 49 são Estados nacio-
nais. Por exemplo, importa encorajar empresas a adotarem códigos de direitos humanos
relativos à atividade de comércio; demandar sanções comerciais a empresas violadoras
dos direitos sociais; adotar a “taxa Tobin” sobre os investimentos financeiros internacio-
nais, dentre outras medidas.

O atual contexto de profundo colapso financeiro internacional está a demandar a reinvenção


do papel do Estado, a maior responsabilidade dos mercados e uma nova arquitetura fi-
nanceira internacional.

6 RESPEITO À DIVERSIDADE VERSUS INTOLERÂNCIAS

Em razão da indivisibilidade dos direitos humanos, a violação aos direitos econômicos,


sociais e culturais propicia a violação aos direitos civis e políticos, eis que a vulnerabilidade
econômico-social leva à vulnerabilidade dos direitos civis e políticos. No dizer de Sen
(1999, p. 8), “A negação da liberdade econômica, sob a forma da pobreza extrema, torna
a pessoa vulnerável a violações de outras formas de liberdade. […] A negação da liber-
dade econômica implica na negação da liberdade social e política.”.

O processo de violação dos direitos humanos alcança prioritariamente os grupos sociais


vulneráveis, como as mulheres e a população afrodescendentes (daí os fenômenos da
“feminização” e “etnicização” da pobreza). Se no mundo hoje há um bilhão de analfabe-
tos adultos, dois terços são de mulheres.

A efetiva proteção dos direitos humanos demanda não apenas políticas universalistas, mas
específicas, endereçadas a grupos socialmente vulneráveis, enquanto vítimas preferenciais
da exclusão. Isto é, a implementação dos direitos humanos requer a universalidade e a
indivisibilidade destes direitos, acrescidas do valor da diversidade. Nas lições de Farmer:

The concept of human rights may at times be brandished as an all-purpose and


universal tonic, but it was developed to protect the vulnerable. The true value
of human rights movement’s central documents is revealed only when they
serve to protect the rights of those who are most likely to have their rights
48 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 9, n. 2, jul./dez. 2014

violated. The proper beneficiaries of the Universal Declaration of Human Rights


[...] are the poor and otherwise disempowered (FARMER, 2003, p. 212).

A primeira fase de proteção dos direitos humanos foi marcada pela tônica da proteção
geral, que expressava o temor da diferença (que no nazismo havia sido orientada para o
extermínio), com base na igualdade formal.

Torna-se, contudo, insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral e abstrata.


Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto em sua
peculiaridade e particularidade. Nessa óptica, determinados sujeitos de direitos, ou
determinadas violações de direitos, exigem uma resposta específica e diferenciada. Nesse
cenário, as mulheres, as crianças, a população afrodescendentes, os migrantes, as pessoas
portadoras de deficiência, dentre outras categorias vulneráveis, devem ser vistas nas
especificidades e peculiaridades de sua condição social. Ao lado do direito, a igualdade
surge, também, como direito fundamental, o direito à diferença. Importa o respeito à
diferença e à diversidade, o que lhes assegura um tratamento especial.

Destacam-se, assim, três vertentes no que tange à concepção da igualdade: a) a igualdade


formal, reduzida à fórmula “todos são iguais perante a lei” (que, ao seu tempo, foi crucial para
abolição de privilégios); b) a igualdade material, correspondente ao ideal de justiça social e
distributiva (igualdade orientada pelo critério socioeconômico); e c) a igualdade material, cor-
respondente ao ideal de justiça enquanto reconhecimento de identidades (igualdade orientada
pelos critérios gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia e demais critérios).

Para Fraser, a justiça exige, simultaneamente, redistribuição e reconhecimento de identi-


dades. Como atenta a autora: “O reconhecimento não pode se reduzir à distribuição,
porque o status na sociedade não decorre simplesmente em função da classe. [...] Reci-
procamente, a distribuição não pode se reduzir ao reconhecimento, porque o acesso aos
recursos não decorre simplesmente em função de status.” (FRASER, 2001, p. 55-56).
Há, assim, o caráter bidimensional da justiça: redistribuição somada ao reconhecimento.
No mesmo sentido, Santos (1997) afirma que apenas a exigência do reconhecimento e da
redistribuição permite a realização da igualdade (SANTOS, 2003, p. 56 e p. 429-461).

Ainda: “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o
direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade
de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza,
alimente ou reproduza as desigualdades.” (SANTOS, 1997, p. 56).

Considerando os processos de “feminização” e “etnicização” da pobreza, há a necessi-


dade de adoção, ao lado das políticas universalistas, de políticas específicas, capazes de
PIOVESAN, F. Declaração Universal de Direitos Humanos 49

dar visibilidade a sujeitos de direito com maior grau de vulnerabilidade, visando ao pleno
exercício do direito à inclusão social. Se o padrão de violação de direitos tem um efeito
desproporcionalmente lesivo às mulheres e às populações afrodescendentes, adotar polí-
ticas “neutras” no tocante ao gênero, à raça/etnia, significa perpetuar este padrão de
desigualdade e exclusão.

Daí a urgência no combate de toda e qualquer forma de racismo, sexismo, homofobia,


xenofobia e outras formas de intolerância correlatas, tanto mediante a vertente repressi-
va (que proíbe e pune a discriminação e a intolerância), como mediante a vertente
promocional (que promove a igualdade).

7 COMBATE AO TERROR VERSUS PRESERVAÇÃO DE DIREITOS E LI-


BERDADES PÚBLICAS

O desafio de combater todas as formas de intolerância se soma ao sexto desafio, que


realça o dilema de preservação dos direitos e das liberdades públicas no enfrentamento
ao terror. No cenário do pós-11 de setembro, o risco é que a luta contra o terror compro-
meta o aparato civilizatório de direitos, liberdades e garantias, sob o clamor de segurança
máxima (HEYMANN, 2002, p. 441-456; COMMITTEE, 2002). Basta atentar à doutri-
na de segurança adotada nos EUA na era Bush pautada: a) no unilateralismo; b) nos
ataques preventivos, e c) na hegemonia do poderia militar norte-americano. Atente-se às
nefastas consequências para a ordem internacional se cada um dos duzentos Estados
que a integram invocasse para si o direito de cometer “ataques preventivos”, com base
no unilateralismo. Seria lançar o próprio atestado de óbito do Direito Internacional, cele-
brando o mais puro hobbesiano “Estado da Natureza”, em que a guerra é o termo forte e
a paz se limita a ser a ausência da guerra.

Estudos demonstram o perverso impacto do pós-11 de setembro, na composição de uma


agenda global tendencialmente restritiva de direitos e liberdades. A título de exemplo, há
pesquisas acerca da legislação aprovada, nos mais diversos países, ampliando a aplica-
ção da pena de morte e demais penas, tecendo discriminações insustentáveis, afrontando
o devido processo legal e o direito a um julgamento público e justo, admitindo a extradição
sem a garantia de direitos, restringindo direitos, como a liberdade de reunião e de expres-
são; dentre outras medidas9.

9
Ver, dentre outras, a pesquisa apontada no artigo: FOR whom the Liberty Bell tolls. The Economist, 31
ago. 2002, p. 18-20.
50 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 9, n. 2, jul./dez. 2014

No contexto do pós-11 de setembro, emerge o desafio de prosseguir no esforço de cons-


trução de um Estado de Direito Internacional, em uma arena que está por privilegiar o
Estado-Polícia no campo internacional, fundamentalmente guiado pelo lema da força e
segurança internacional. Só haverá um efetivo Estado de Direito Internacional sob o
primado da legalidade, com o império do Direito, com o poder da palavra e a legitimidade
do consenso. Como conclui o UN Working Groupon Terrorism, “a proteção e a promo-
ção dos direitos humanos sob o primado do Estado de Direito é essencial para a preven-
ção do terrorismo” (UNITED NATIONS, 2005; GEARTY, 2005, p. 331).

Ao simbolizar a ruptura de paradigmas e tradições, a posse do Presidente Obama, em 20


de janeiro de 2009, tem irradiado um impacto transformador na agenda contemporânea,
sobretudo no que se refere à erosão da política Bush – no campo da segurança pública,
da proteção ambiental, dos direitos das mulheres, dos direitos reprodutivos, da biotecnologia,
do comércio armamentista, dentre outros.

O compromisso de fechamento de Guantánamo, a proibição absoluta da tortura, o prima-


do da legalidade, a prevalência do Estado de Direito e o resgate da Constituição e de seus
valores foram as primeiras sinalizações da erosão da doutrina Bush. No campo
armamentista, a política de Obama se inclina a encorajar o desarmamento, o que com-
preende, por exemplo, a proposta feita à Rússia de reduzir em 80% os respectivos arse-
nais nucleares10. Note-se que a venda de armas foi o maior legado da era Bush, que
permitiu que fossem triplicadas as exportações da indústria bélica, refletindo a política
externa da Casa Branca (VENDA, 2008).

Observa Pogge (2002):

Em 2000, os países ricos gastaram em média US$4,650 bilhões em assistência


ao desenvolvimento aos países pobres; contudo, venderam aos países em
desenvolvimento, em média US$25,438 bilhões em armamentos – o que re-
presenta 69% do total do comércio internacional de armas. Os maiores ven-
dedores de armas são: EUA (com mais de 50% das vendas); Rússia, França,
Alemanha e Reino Unido.

No mesmo sentido, afirma Sen (2006, p. 97):

Os principais vendedores de armamentos no mercado global são os países do


G8, responsáveis por 84% da venda de armas no período de 1998 a 2003. [...] Os
EUA sozinhos foram responsáveis pela venda de metade das armas

10
De acordo com um funcionário do Governo, “o objetivo de Obama é fazer do desarmamento uma priorida-
de.” (EUA planejam cortar armas. Folha de São Paulo, São Paulo, 5 fev. 2009).
PIOVESAN, F. Declaração Universal de Direitos Humanos 51

comercializadas no mercado global, sendo que dois terços destas exportações


foram direcionados aos países em desenvolvimento, incluindo a África.

A bandeira do desarmamento é um desafio central à política Obama, cuja efetiva realiza-


ção apontará à coerência de seu discurso.

8 UNILATERALISMO VERSUS MULTILATERALISMO: FORTALECER O


ESTADO DE DIREITO E A CONSTRUÇÃO DA PAZ NAS ESFERAS GLO-
BAL, REGIONAL E LOCAL, MEDIANTE UMA CULTURA DE DIREI-
TOS HUMANOS

Por fim, cabe enfatizar que, no contexto pós-11 de setembro, emerge o desafio de pros-
seguir no esforço de construção de um “Estado de Direito Internacional”, em uma arena
que está por privilegiar o “Estado Polícia” no campo internacional, fundamentalmente
guiado pelo lema da força e segurança internacional.

Contra o risco do terrorismo de Estado e do enfrentamento do terror, com instrumentos


do próprio terror, só resta uma via – a via construtiva de consolidação dos delineamentos
de um “Estado de Direito” no plano internacional. Só haverá um efetivo Estado de Direi-
to Internacional sob o primado da legalidade com o “império do Direito”, com o poder da
palavra e a legitimidade do consenso.

À luz desse cenário, marcado pelo poderio de uma única superpotência mundial, o equi-
líbrio da ordem internacional exigirá o avivamento do multilateralismo e o fortalecimento
da sociedade civil internacional, a partir de um solidarismo cosmopolita.

Se a era Bush adotou como vértice uma política internacional guiada pelo unilateralismo
extremo, pautado no direito da força e no “hard power”, a era Obama aponta a uma
política internacional guiada pelo “clever power”, a propiciar o multilateralismo e o diálo-
go intercultural. Joseph Nye já alertava ao “paradox of american power and why the
world’s only superpower can’t go alone”. Isto é, a manutenção da hegemonia norte-
americana não poderia mais se sustentar apenas no “hard power”, na óptica unilateralista
da força, orientada pela visão “westandtherest” (o ocidente e o “resto”), mas teria que
cultuar o “soft power”, a lógica multilateralista do diálogo, a legitimidade das negociações
e dos consensos internacionais. Há que se transitar da ideia do choque civilizatório
(“clashofcivilizations”) para a ideia do diálogo civilizatório (“dialogue amongcivilizations”).

Quanto ao multilateralismo, ressalte-se o processo e justicialização do Direito Internacional.


Para Bobbio (1988, p. 25-47, passin), a garantia dos direitos humanos no plano internacional
52 Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 9, n. 2, jul./dez. 2014

só será implementada quando uma “jurisdição internacional se impuser concretamente


sobre as jurisdições nacionais, deixando de operar dentro dos Estados, mas contra os
Estados e em defesa dos cidadãos.”.

É necessário que se avance no processo de justicialização dos direitos humanos interna-


cionalmente enunciados. Associa-se a ideia de Estado de Direito com a existência de
Cortes independentes, capazes de proferir decisões obrigatórias e vinculantes.

Nesse quadro, emerge ainda o fortalecimento da sociedade civil internacional, com imen-
so repertório imaginativo e inventivo, mediante networks/redes que aliam e fomentam a
interlocução entre entidades locais, regionais e globais, a partir de um solidarismo cosmo-
polita. Se em 1948 apenas 41 ONG’s tinham status consultivo junto ao Conselho Econô-
mico e Social da ONU, em 2004 este número aponta a aproximadamente 2.350 ONG’s
(McDOUGALL, 2004, p. 13). Para Kaldor (1999, p. 211), “As vantagens na atuação da
sociedade civil são precisamente seu conteúdo político e suas implicações no campo da
participação e da cidadania. A sociedade civil adiciona ao discurso de direitos humanos a
noção de responsabilidade individual pelo respeito a estes direitos mediante ação públi-
ca.”.

Multilateralismo e sociedade civil internacional: são estas as únicas forças capazes de


deter o amplo grau de discricionariedade do poder do Império, civilizar este temerário
“Estado da Natureza” e permitir que, de alguma forma, o império do direito possa domar
a força do império.

9 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se, no início, este artigo acentuava que os direitos humanos não são um dado, mas um
construído, enfatiza-se agora que a violação a estes direitos também o são. Isto é, as
violações, as exclusões, as discriminações, as intolerâncias são um construído histórico, a
ser urgentemente desconstruído. Há que se assumir o risco de romper com a cultura da
“naturalização” da desigualdade e da exclusão social que, enquanto construídos históri-
cos, não compõem de forma inexorável o destino de nossa humanidade. Há que se en-
frentar essas amarras mutiladoras do protagonismo, da cidadania e da dignidade de seres
humanos. A ética dos direitos humanos é a ética que vê no outro um ser merecedor de
igual consideração e profundo respeito, dotado do direito de desenvolver as potencialidades
humanas, de forma livre, autônoma e plena. É a ética orientada pela afirmação da digni-
dade e pela prevenção ao sofrimento humano.
PIOVESAN, F. Declaração Universal de Direitos Humanos 53

Vislumbra Arendt a vida como um milagre, o ser humano como, ao mesmo tempo, um
início e um iniciador, acenando que é possível modificar pacientemente o deserto com as
faculdades da paixão e do agir. Afinal, se “all human must die; each is born to begin.”
(ARENDT, 1998).

Resta concluir pela crença na implementação dos direitos humanos, como a racionalidade
de resistência é única plataforma emancipatória de nosso tempo, inspirada no princípio da
esperança e da capacidade criativa e transformadora de realidades.

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