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schopenhaueriana
Emoções e valores
DAX MORAES1
(UFRN, Brasil)
RESUMO
“Pessimismo moral” é uma expressão pela qual se pode compreender a tese schopenhaueriana sobre a
imutabilidade do caráter, na medida em que declara impossível qualquer espécie de aprimoramento moral,
restando apenas a possibilidade de se adaptar o comportamento considerados os limites do egoísmo natural.
Por sua vez, trata-se de uma consequência de problemas epistemológicos levantados pela crítica kantiana da
razão, a qual foi radicalizada por Schopenhauer. Todavia, o “pessimismo moral” deve ser considerado como
um problema metafísico, não como um problema “prático”, podendo ter suas consequências empíricas mais
bem analisadas segundo o que se pode denominar “pessimismo antropológico”. Por meio desta última
expressão, não entendemos apenas um juízo acerca na natureza humana, mas acerca dos sofrimentos
individuais no conflito com um mundo que ameaça os interesses particulares.
Palavras-chave: Pessimismo; Valor; Moralidade; Egoísmo; Caráter
ABSTRACT
“Moral pessimism” is an expression by which one may understand Schopenhauer’s thesis about immutability
of character so far as it declares impossible each and every kind of moral enhancement, remaining only
attainable some behavior adaptation based on natural egoism. This is otherwise a kind of result of
epistemological problems raised by Kantian critique of reason that Schopenhauer carried to its limits. On the
other hand, “moral pessimism” is to be faced not as a “practical” problem, but as a metaphysical one and its
empirical consequences can be better considered as one may call “anthropological pessimism” once by this
expression we mean not only a judgment about human nature alone but individual sufferings facing a world
that menaces individual interests.
Keywords: Pessimism; Value; Moraliy; Egoism; Character
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pressuposições acerca do que se encontra além de toda experiência possível, mas investigar
os fenômenos naquilo que eles mostram de seu ser para nós e que não pode ser apreendido
seguindo-se meramente o fio das conexões causais. Ou seja, em vez de supor algum ser
em si independente do mundo como uma causa-primeira ou fundamento, ater-se ao seu
modo de faticamente dar-se na tentativa de assim superar o erro decisivo das metafísicas
dogmáticas, a saber, a extensão do princípio de causalidade para além do mundo físico (ao
qual deve ser aplicado com exclusividade) e a pretensa validação de hipóteses
transcendentes à luz do princípio de não contradição. Isso implica uma revisão do que
devemos entender por “essência”.
Diz Schopenhauer (2005, §63, p. 449), de modo curto e claro: “Tal qual a Vontade
é, é o mundo”. Essa compreensão da essência do mundo e do que nele há traz implicações
decisivas para um caso particular do que denomino neste artigo “pessimismo moral”, qual
seja, que não temos escolha quanto ao fato de já sermos sempre uma vontade determinada
a ser este indivíduo que cada um de nós é, ou melhor, que não temos acesso ao porquê
dessa decisão e, portanto, não nos reconhecemos imputáveis, responsáveis, “culpados”
pela nossa existência, mas o somos, tal como Schopenhauer afirma na sequência. Trata-se
da defesa de que toda liberdade da vontade se encerra na liberdade de querer ou não querer
a vida, querer ou não querer existir, decisão que, uma vez tomada, não por uma
inteligência, mas pelo querer ele mesmo, é irrevogável. 2 Esse caso particular é agora
antecipado por seu caráter crucial no que concerne aos limites do poder e do conhecer
sobre o querer, limites que podem ser considerados o ponto central do referido pessimismo.
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Que o problema da relação essência-existência se reflete na incompreensão geral do que
está em jogo na Metafísica da Ética de Schopenhauer, ele mesmo o reconhece no capítulo
37 dos complementos a O mundo como vontade e representação (MVR II), dizendo que
Ou seja, essência e existência são, para Schopenhauer, dois lados da mesma moeda,
a Vontade e suas configurações fenomenais segundo o princípio de razão, e isso não pode
ser negligenciado ainda que a exposição exija que se faça abstração dessa unidade de ser e
agir mediado por circunstâncias. Pode-se abordar a questão a partir da ação no sentido de
reconduzi-la ao ser, reconhecendo-a como manifestação no tempo e espaço de um caráter
atemporal, ou a partir do ser, como aquilo que em verdade é livre e se manifesta como atos
da vontade livre, aparecendo como determinado por motivos que são o princípio de razão
de todo agir humano. Essa tentativa de conciliação entre liberdade da vontade e
determinismo das ações, empreendida pela recusa do dualismo que abstratamente separa
essência e existência como podendo ser independentes um do outro traz consigo sérios
problemas de interpretação a que deveremos retornar adiante. Nessas considerações
introdutórias, contudo, o que vale destacar é que aí se trata de uma consequência da crítica
da razão, pela qual é epistemologicamente inválido supor, para o mundo e tudo o que há
nele, um criador ou uma causa-primeira qualquer, restando apenas a consideração de que
cada ente no mundo não seja senão o modo de aparição (Erscheinung) do que é em si
mesmo sua própria obra, por livre vontade. Que isso não consiste em uma tese arbitrária e
desprovida de evidência é aquilo que Schopenhauer busca defender. Para tanto, o ponto de
partida de Schopenhauer é o estabelecimento de sua própria teoria do conhecimento,
inspirada na de Kant, mas não como mera repetição desta, e sim como revisão profunda,
como que pretendendo superar o mestre. Com isso, a noção mesma de “coisa-em-si” deve
ser reconsiderada.
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o sentido e a coisa-em-si nenhuma espécie de relação ou critério de justificação para a sua
possibilidade de ser, nem mesmo o princípio de não contradição.
Não há razão suficiente última sequer para que sejamos. A passagem citada pode
induzir a imprecisão de se tentar falar do que se encontra aquém do princípio de razão
como se de fato falássemos disso por meio desse “quê”. A coisa-em-si, a vontade de viver,
exigiriam ser escritas por Schopenhauer entre aspas – pena não lhe ter ocorrido fazê-lo.
Algo aqui deve ser bem entendido: a causalidade eficiente natural, a determinação interna
agindo na constituição de organismos, tudo é válido apenas para o mundo fenomenal,
relativo a nós, o mundo das relações, o mundo da pluralidade submetida ao princípio de
individuação, manifesto no intelecto segundo as formas da representação. “Coisa alguma
no mundo possui uma causa absoluta e geral de sua existência, mas apenas uma causa a
partir da qual existe exatamente aqui, exatamente agora. [...] Portanto, toda causa é causa
ocasional.” (SCHOPENHAUER, 2005, §26, p. 201) Mas o que daí resulta, deixado de lado
um conhecedor absoluto, é que o mundo e tudo que há nele, bem como o próprio sujeito
para o qual há mundo, em seu ser possível, permanecem sem fundamento. Eis o que
também significa dizer “tudo é Vontade”: tudo é manifestação de uma livre
autodeterminação, sem causa eficiente e sem causa final, pura espontaneidade.
Tendo eliminado o dualismo, Schopenhauer afirma ser o fenômeno a aparência da
coisa-em-si e, enquanto tal, a coisa-mesma tal como é para nós, não nos cabendo procurá-
la em uma transcendência. A crítica da razão, em sua luta contra o realismo dogmático,
especialmente para evitar a queda no ingênuo ceticismo que pretende jogar fora a
transcendência agarrando-se à matéria, nutre em si o germe da definitiva crise dos
fundamentos e do niilismo. Ainda que assuma a realidade empírica, coloca um limite
insuperável para sua completa inteligibilidade. Diante disso, Kant quis dar um passo atrás:
“Para, no entanto, dar a esse conceito [de coisa-em-si] validade objetiva (possibilidade
real, já que a primeira era meramente lógica), algo mais é requerido. Este mais, porém, não
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precisa ser buscado em fontes cognitivas teóricas; ele pode localizar-se em fontes práticas”
(KANT, 2013, p. 35, B XXVI, n. 9). Schopenhauer discorda...
Pessimismo moral
O que Schopenhauer diz na citada carta a Becker tem seu teor expresso também no
capítulo 22 dos complementos ao MVR, “Visão objetiva do intelecto”. O intelecto não é
de modo algum disposto para o conhecimento da “essência em si das coisas e do mundo,
que existe independentemente de quem conhece”, de maneira que a “percepção permanece
um mero ter ciência [Innewerden] das suas relações com as outras coisas, e de modo algum
está destinada [bestimmt] a expor uma vez sequer na consciência [Bewußtseyn] de que
conhece a essência própria e absolutamente real [das eigentliche, schlechthin reale Wesen]
dessas coisas” (SCHOPENHAUER, 2015, p. 343-344). A oportunidade de insistirmos
nisso é que Schopenhauer imediatamente passa às implicações morais do obstáculo
epistemológico, sem que isso signifique “oferecer validade objetiva para o conceito de
coisa-em-si por meio de fontes práticas” ‒ conforme as palavras de Kant citadas há pouco
‒, como se a filosofia moral pudesse oferecer maior positividade do que teoria do
conhecimento. Isso não é possível, pois o conhecimento é o limite e a constatação da coisa-
em-si como vontade emerge, precisamente, de um saber sobre si na relação com outrem,
não do em-si como tal, uma vez que não há conhecido sem conhecedor: o conhecer conhece
a si já sempre em meio a... como conhece objetos em relação entre si, sem, portanto,
infringir a regra geral de que todo conhecimento é relativo.
Deve-se observar, ademais, que a negligência com relação ao problema
epistemológico lançado por Schopenhauer como ponto de partida de sua obra, como os
acostamentos da estrada a seguir, tem por efeito privar o restante de seu pensamento das
premissas necessárias de que são mera conclusão, conclusão essa comumente evitada a fim
de se preservar o “erro inato” de sua exigível correção. Não é correto concluir que o
pessimismo moral parta da mera postulação do caráter incorrigível do ser humano, pois a
tese da imutabilidade do caráter é uma consequência metafísica necessária dos limites
impostos pela crítica da razão, na medida em que o caráter não pode receber uma
explicação de natureza causal ou receber um fundamento. Assim sendo, o fundamento da
moral e a “possibilidade real da coisa-em-si” não advêm de fontes prático-racionais, mas,
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segundo Schopenhauer, a última é, pelo contrário, consequência da invalidade das
categorias do entendimento quando aplicadas ao em-si, enquanto o primeiro tem sua
concretude no sentimento de compaixão, compreendida (também) metafisicamente como
conhecimento da unidade da Vontade que é em mim e no outro. Para que fique mais claro,
que há uma coisa-em-si, que na medida de nosso conhecimento podemos denominar pela
palavra “vontade” ‒ não significando uma mera “faculdade da alma”, mas um ser-livre
incondicionado ‒, é demonstrado pela imanência em nós e precedência do querer em
relação ao intelecto, pelo que se exclui a possibilidade de aquilo que somos ter sido criado,
produzido por outro. Justamente por não se poder pensá-lo nem explicar a existência à luz
da causalidade e demais leis da razão é que se trata de uma metafísica.
Por sua vez, sem risco de se incorrer em uma petição de princípio, a admissão de
uma metafísica é também uma aposta necessária, igualmente feita por Kant a seu modo,
ao tomar partido na antinomia entre liberdade e necessidade em vista de uma
fundamentação da filosofia moral. Para Schopenhauer, como para Kant, o materialismo ou
a restrição à consideração do mundo a partir da Física “teria de ser destrutiva para a ética”,
sendo o teísmo um meio pelo qual a tradição tentou satisfazer tal necessidade
(SCHOPENHAUER, 2015, cap. 17, p. 214).5 Não seria de modo algum válido chegar a
uma doutrina do caráter inteligível por via meramente psicológica (como faz o próprio
Kant) ou por qualquer outra fonte empírica, que não vêm senão como confirmação a
posteriori daquela consequência metafísica. Eis a sequência, de volta ao capítulo 22 do
MVR II, na qual Schopenhauer discorre sobre o uso prático do intelecto enquanto
instrumento da vontade “e, portanto, para a consideração dos motivos”:
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consciência sempre em atraso com relação aos atos de vontade imediatamente expressos
no indivíduo que sou, como corpo, objeto real, portanto, como uma multiplicidade de atos
isolados relacionados entre si em minha representação. Sim, sei de mim mesmo apenas
indiretamente, por meio de fatos da minha consciência ‒ enquanto fatos, são simplesmente
dados a mim, irreparáveis e ineludíveis.
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me surpreendendo ao testemunhar atos meus inesperados em meio a circunstâncias
aparentemente análogas que, outrora, me faziam agir diferentemente. Para explicá-lo,
Schopenhauer chega a fazer referência às palavras de Suárez, dizendo que a causa final
não move segundo seu ser real, mas secundo seu ser conhecido, de maneira que não é a
ocasião bruta que determina nosso agir como uma lei natural, mas a ocasião mediada pelo
intelecto, ou seja: o comportamento pode se alterar de acordo com a experiência sem que
isso implique modificação no caráter. As assim chamadas leis naturais são universalmente
coercitivas pelo simples fato de que sua ação se dá sobre a matéria privada de
conhecimento. No caso do ser humano, a coisa se dá de modo inteiramente diverso: a
premeditação e a capacidade de dissimulação obscurecem a expressão do caráter, mas não
o alteram, sendo por isso que o mesmo se revela privilegiadamente nas pequenas coisas,
não nas grandes. Afinal, “nas coisas mais importantes se está alerta, nas ínfimas, por sua
vez, segue, sem demasiada reflexão, a própria natureza” (SCHOPENHAUER, 2003, §118,
p. 304). Não é à toa que a negação da Vontade implique uma superação do caráter, i.e. a
ausência de uma subjetividade volitiva, desejante, pois ele desaparece para si mesmo
quando motivos exteriores deixam de mover a vontade, razão pela qual o corpo pode se
tornar insensível e indiferente ao que de outro modo o afetaria.
Antes de prosseguir, é necessário esclarecer em que medida se pode falar de um
pessimismo moral aqui. Ele não deve ser considerado minimizado pela possibilidade da
sabedoria de vida pela “aquisição de um caráter”, ou seja, de a ação se tornar regular
mediante o acordo entre os motivos e o ser do agente ‒ a ação já sempre é uma expressão
sua consideradas as circunstâncias ‒, tanto menos pela possibilidade de conformação das
ações a leis e convenções externas. Em nenhum dos casos há mudança de caráter e,
portanto, não há aprimoramento moral mediante a correção do intelecto. 7 É sabido que
Schopenhauer recusa veementemente a deontologia kantiana, mas ainda assim é possível
estabelecer o seguinte paralelo no que tange às perturbadoras limitações que a ética
schopenhaueriana impõe às pretensões pedagógicas. Segundo Kant, a ação conforme ao
dever não é necessariamente uma ação moral, por dever. Em Schopenhauer, teríamos o
seguinte: é possível conformar as ações ao interesse comum, seja pela educação, seja pelas
leis, seja pelos costumes, ou mesmo pela força, mas isso não significa poder formar o
caráter, sendo, todavia, nisso que consiste a pretensão moralista. O que se pode obter,
pragmaticamente, como alternativa, é a conformação do comportamento mediante o
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lugar, a oportunidade de se mostrar. Aqui, o intelecto não é necessariamente deliberativo,
mas o instrumento (em si mesmo indiferente) pelo qual motivos são apresentados ao sujeito
do desejar (Subjekt des Willens). É notável, portanto, que Schopenhauer oferece um
fundamento para a moralidade, mas não para a ação tomada em si mesma, como expressão
imediata do caráter, de maneira que a lei da motivação “de nada serve” senão para o
conhecimento teórico das aparências e, nessa via, como oponente do “otimismo moral” em
geral e, em particular, do racionalismo na Ética.
Para cada exteriorização da Vontade, para cada ato isolado seu neste
tempo, neste lugar, é possível demonstrar um motivo do qual este ato,
sob a pressuposição do caráter do homem, tinha de se seguir
necessariamente. Mas que ele tenha tal caráter, que ele queira em geral,
que dentre tantos motivos exatamente este e não outro, sim, que algum
tipo de motivo movimente a Vontade, eis aí algo ao qual não se pode
fornecer fundamento algum. [...] exteriorizações são ocasionadas por
ação vinda de fora, enquanto a qualidade essencial mesma, ao contrário,
não é determinada por coisa alguma externa a si, portanto é inexplanável.
(SCHOPENHAUER, 2005, §24, p. 185)10
Assim, quando digo ‒ podendo causar espanto ‒ que não há fundamento para a
ação, refiro-me não à dimensão “física”, exterior, cujo fio causal se pode percorrer até a
imputabilidade jurídica ou psicológica, mas à metafísica-moral, íntima e insondável pelo
próprio agente na maioria das vezes. Eis o que costuma desconcertar os estudiosos, a saber,
que não apenas possamos ser, mas que somos responsáveis sem qualquer justificativa. Não
pelos atos propriamente, vistos de fora, mas pelo querer que se deixa mover pelos motivos
que determinam as ações e aparece nesses atos. Somos os únicos autores de nós mesmos,
como que injustificadamente autolançados no mundo, sendo isso que significa a liberdade
de ser, não de agir. Esse “ser” não é a Vontade universal como algo que não nos concerne,
mas a vontade que cada um de nós é. O que também parece desconcertar os estudiosos é
que ainda não seja ninguém “aquele” que determina o caráter, sequer um sujeito (no que
só pode se converter por esse ato originário), mas que a livre determinação do caráter seja
precisamente o que se manifesta no tempo e no espaço como alguém. Significa dizer:
somos manifestação de uma livre vontade que se afirma e, desse modo, embora
responsáveis, não temos o menor poder sobre aquilo que já sempre somos, nem temos
como saber o porquê de nos termos feito tal como nos fizemos, esta vontade individual
cujas determinidades essenciais se desdobram no tempo e no espaço segundo as causas
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(motivos) que se lhe apresentam como objeto para o sujeito que cada um de nós é. Poder
escolher o querer é justamente a hipótese do livre arbítrio, veementemente refutada por
Schopenhauer. Podemos alterar nossa aparência no tempo, mas não nosso ser atemporal.
Exceto por ter levado o princípio de razão suficiente para além de sua jurisdição,
Leibniz (2004, §32, p. 137) permanece correto ao notar que a admissão de que para todo
fato há uma razão suficiente não implica que tal razão seja conhecida. Para Schopenhauer,
o próprio princípio de razão exige do intelecto o preenchimento de tais lacunas entre querer
e agir. Certamente essa expressão do caráter pode ser e ordinariamente é mascarada, seja
quando se engana os outros, seja quando se engana a si mesmo. Schopenhauer oferece
fartos exemplos de como motivos abstratos produzem ações terríveis e mesmo corrompem
os indivíduos, mas isso se dá também na medida em que o indivíduo ignora seu próprio
caráter, tornando-se na mesma medida suscetível a se deixar levar por ideias absurdas.11
Para o bem como para o mal, a sociedade se torna possível apelando-se ao egoísmo
direcionado ao interesse comum, tática de que o Direito parece ser a forma mais acabada.
Como foi dito há pouco, a aquisição de um caráter não é o mesmo que a formação
de um caráter. Aquele que adquire um caráter tampouco formou a si mesmo, antes
descobriu quem é e o que pode fazer, utilizando-se de seu intelecto de maneira a satisfazer
o interesse pessoal e assim promover o próprio bem-estar. 12 Como também devo ter
deixado claro, isso não pode significar uma resposta ao pessimismo moral, pois envolve o
interesse particular e ainda assim de modo problemático, pois são raros aqueles capazes de
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ter suficiente lucidez sobre seu próprio caráter a fim de reconhecer e formular as máximas
que lhe sejam conformes. Nesse sentido, pode-se opor limitações insuperáveis à sugestão
de que a sabedoria de vida encerre em si um “otimismo prático”, do mesmo modo que a
possibilidade de superação do caráter pela negação da Vontade ou sua mortificação não
parecem ser, nelas mesmas, morais em sentido estrito, ainda que constituam objeto de
interesse para a Ética.13 As dificuldades e o curto alcance próprios à doutrina do caráter
adquirido parecem justificar, por ser mais “realista”, a sugestão de que se trate aí de um
“pessimismo pragmático”, tal como defende Debona (2016b)14.
A proposta de Debona segundo a qual se deve compreender a eudemonologia como
movida por um pessimismo pragmático parece, de fato, uma muito apropriada alternativa,
que, no entanto, pode consistir não em uma complementação ao assim chamado
“pessimismo metafísico”, de que parece derivar, mas sim em uma resposta ao pessimismo
antropológico, isto é, como um “modo de lidar” com a realidade humana. O pessimismo
pragmático diz respeito ao uso do intelecto e das próprias forças em uma direção
determinada, como a adequação de meios a fins, sem, no entanto, perder de vista os males
insuperáveis inerentes à vida e ao convívio social. Pelo contrário, admite-se o mal como
uma realidade objetiva perante a qual o indivíduo deve se posicionar pragmaticamente,
evitando sofrimentos desnecessários. Sua fonte é completamente empírica e prescinde de
especulações metafísicas. Por exemplo, a morte é tida como um mal, mas se tratando de
um mal inevitável, é necessário conviver com ele e aceitá-lo na medida em que se encontra
fora de nosso poder impedi-lo, não sendo de modo algum necessário ou mesmo pertinente
questionar-se acerca do que seja a morte ou a própria vida. 15 Nesse sentido, além de
Schopenhauer aconselhar, do ponto de vista da sabedoria de vida, a não perturbação com
a morte, também demonstra, do ponto de vista estritamente racional, a irracionalidade do
temor à morte, fato que não atinge nosso ser em si, mas tão somente o fenômeno, nossa
aparência para outrem e para nós mesmos.
Vale notar que a ausência de fundamento para o ser em si, que se torna um problema
epistemológico, linguístico e moral, encontra aqui a sua consequência positiva, o que, por
sua vez, insisto, não significa por si só uma brecha para o otimismo. Do ponto de vista do
em-si, nascimento e morte não têm realidade e a razão pode descobri-lo independente dos
sentimentos que se tenha a respeito. Ou seja, em última análise, a morte não é um mal
verdadeiro, podendo haver um encontro entre experiência pessoal e especulação.
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Acontece, todavia, que esse sentimento a respeito da morte, por exemplo, dá o tom do
pessimismo, mas estimar a morte como um mal se revela como uma irracionalidade.
Enquanto estimativa, o pessimismo não é uma doutrina, mas um sentimento, portanto, uma
espécie de não-saber, algo irredutível às atividades intelectuais. Se o mal no mundo, em
sua objetividade, é um mal para o sujeito que assim o julga, o pessimismo ele mesmo deve
ser relativizado, não sendo à toa que a sabedoria de vida possa parecer “otimista”
relativamente àquilo que objetivamente aflige a humanidade, uma vez que possa estar ao
alcance de alguém não se deixar abater por isso e, por esse meio, tornar sua vida algo
melhor. Assim, o problema reside no fato de que a necessidade de adequação das ações à
vida supõe a recusa daquilo que está implicado no fato de viver e devemos aprender a
tolerar, para o nosso próprio bem. Dito de outro modo, uma má avaliação da vida, oriunda
de um sentimento de desagrado, é inerente à tentativa ou ao mero desejo de viver o melhor
possível,16 sendo necessário demonstrar se a vida é mesmo má e, em caso positivo, para
quem e sob que aspecto. Aqui, a meu ver, se detém o escopo do sugerido pessimismo
pragmático, restando ainda considerar se, de fato, ele responde ou pode prescindir do
pessimismo antropológico, em prol do metafísico, ponto no qual me concentrarei adiante
a título de complemento necessário, já que o problema moral diz respeito, antes de tudo,
ao mundo humano.
Vale, por fim, insistir que a sabedoria de vida não mitiga o pessimismo moral,
muito embora a bondade de coração seja possível, o que, aliás, independe da aquisição de
um caráter, pois se trata de uma bondade inata. Bons seres humanos parecem ser a minoria,
mas existem. Não é, portanto, esse o problema, mas sim a impossibilidade de uma
formação do caráter, restando apenas uma adequação de si mesmo ao mundo, na medida
em que isso se encontrar de acordo com as forças do agente, com seu caráter. Interessante,
todavia, é que Schopenhauer faça uma aposta na moralidade e mesmo na consciência do
sofrimento como inerente à vida. À luz do conhecimento, é possível encontrar nas dores
do mundo o sentido moral da existência, o que não se obteria na ausência de sofrimento.
Aquele que impõe o sofrimento a outrem e não é capaz de senti-lo em si não tem como
vislumbrar que, com sua maldade, faz mal a si mesmo, uma vez que se encontra cego pelo
princípio de individuação e obstinadamente apegado à própria pessoa. A insuperabilidade
do pessimismo moral se deve ao caráter incorrigível do coração. Eis o que torna o
pessimismo moral um problema metafísico, mas relativo à natureza do mundo ou apenas
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à natureza do humano? De todo modo, enquanto problema metafísico, parece irredutível
ao pessimismo epistemológico, muito embora sua demonstração, como vimos de início,
dependa dele. Isso porque, apesar de o intelecto ser limitado, é dotado de imensa
plasticidade, ao contrário do “coração”, sede do caráter e da vontade. Dizer que a natureza
do mundo ou do homem seja má deriva teoricamente do que se pode dizer da relação entre
a coisa-em-si e o fenômeno, mas isso não é o mesmo que dizer que o mundo é mau ou a
humanidade é perversa porque seu ser-em-si é, como tal, incognoscível. Ainda que o
caráter fosse conhecido suficientemente, como o é supostamente pelo sábio, é por razões
de ordem metafísica que não pode ser alterado: a determinação do caráter não se dá no
tempo, sendo antes a entrada do indivíduo, como tal, na temporalidade, conforme fica claro
no MVR I, §55. A possibilidade de autoconhecimento da Vontade não resolve nem
minimiza o problema da reforma do caráter que já sempre se tem transcendentalmente
determinado como condição da existência. No que concerne ao fato de ser, na maioria dos
casos, perverso, o caráter só pode sê-lo na medida do egoísmo natural, presente em
inúmeros graus na Natureza.
Assim, o dilema moral se vê estreitamente vinculado ao fato de que só conhecemos
nosso próprio caráter mediante sua faticidade, não importando o quão ele nos agrada ou
desagrada, mas não se reduz a isso. A faticidade não se aplica apenas ao essencial, mas
também ao elemento inessencial do caráter, relativo ao tempo e ao lugar em que se
manifesta, pois o caráter empírico “tem de expor exatamente o caráter inteligível, na
medida em que este se adapta faticamente em sua objetivação ao estofo previamente dado
das circunstâncias” (SCHOPENHAUER, 2005, §28, p. 225). O fato de já sempre sermos
aquele que somos, de modo ineludível e irreparável, é o ponto de encontro entre a doutrina
schopenhaueriana e as ditas filosofias existencialistas, também consideradas “pessimistas”
por muitos. Contudo, ao existencialista permanece muito claro que a faticidade não está
legitimamente sujeita a juízos de valor com relação a seu caráter ótimo ou péssimo ‒ o
fático é o que é, sempre significado segundo uma conjuntura que, no entanto, em nada
afeta o seu já-ser.
Deixamos com isso, por enquanto, o elemento transcendental e suas interdições
rumo ao empírico. A fim de abordar o problema da má natureza, cabe iniciar pelo caso da
natureza humana antes de ampliar o escopo para a natureza em geral, o que, no entanto, os
limites do presente artigo não permitirão que seja feito, senão a partir do olhar humano.
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Pessimismo antropológico
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Emoções e valores
exclusivamente ao humano como, supõe-se, faria o pessimismo antropológico. De fato,
Schopenhauer escreve:
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Emoções e valores
pessoa assim que ele se sente à vontade” (SCHOPENHAUER, 2014a, p. 343). A fim de
corroborar essa afirmação psicológica sobre o caráter da espécie, Schopenhauer evoca nada
menos do que as palavras no mais notável pessimista antropológico no tratado De cive:
“Toda alegria do coração e todo momento feliz dependem de nós termos alguém com quem
possamos nos comparar e pensar o melhor de nós mesmos” (HOBBES apud
SCHOPENHAUER, 2014a, p. 343).20 O mesmo diagnóstico foi confirmado por filósofos
tão distintos entre si como Rousseau e Nietzsche, tendo lugar marcante em suas obras. Se
ampliamos seu escopo, entendemos que a história do pensamento encontra um lugar
comum, um ponto pacífico, com relação à imensa dificuldade que o ser humano tem para
se alegrar com a felicidade alheia, a não ser que ele mesmo seja sua causa ou pelo menos
participe dela. A exceção a essa regra é sublinhada por Schopenhauer como um “caráter
sublime”, ao fim do §39 do MVR I:
O caráter sublime, por exemplo, notará erros, ódio, injustiça dos outros
contra si, sem no entanto ser excitado pelo ódio; notará a felicidade
alheia, sem no entanto sentir inveja; até mesmo reconhecerá as
qualidades boas dos homens, sem no entanto procurar associação mais
íntima com eles; perceberá a beleza das mulheres, sem cobiçá-las. [...]
Pois, em seu próprio decurso de vida com seus acidentes, olhará menos
a própria sorte e mais a da humanidade em geral, e, assim, conduzirá a si
mesmo mais como quem conhece, não como quem sofre.
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 280)
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elevação do eu contra o não-eu. Em outras palavras, o problema antropológico não decorre
tanto do modo de ser objetivo da espécie quanto da sua excepcional faculdade de
representação abstrata, que leva o indivíduo humano demasiadamente para fora de si e de
seu presente.
Parece que Schopenhauer, enquanto pessoa, não atendia bem a sua exigente
concepção de bondade, sendo antes animado por um decidido orgulho acerca de quem ele
mesmo era. Não obstante, são significativas e úteis ao propósito presente as palavras dos
manuscritos póstumos citadas por Safranski na biografia de Schopenhauer:
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Considerações finais
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Emoções e valores
como absolutamente concordante consigo mesma, o que Schopenhauer reiteradamente diz
no livro II do MVR.
Vimos ao longo desta exposição que os limites de nosso conhecimento nos
impedem de julgar a coisa-em-si, bem como de transformá-la. A onipresença do mal no
mundo é um fato, mas, na condição de fato, é ao mesmo tempo incontornável se não
individualmente e sua elucidação metafísica nos diz que concerne tão somente à vida dos
indivíduos. Em verdade, todo mal é físico ou oriundo de relações físicas a que as múltiplas
aparências da Vontade estão a cada vez submetidas na medida de sua cegueira. O mal não
é atributo da Vontade ‒ ou melhor, da coisa-em-si ela mesma ‒, mas remissível à sua
cegueira originária. 23 A culpabilidade advém da faticidade de um livre querer que se
efetiva produzido um mal que igualmente poderia não existir. Poderia porque, sendo livre,
a Vontade não pode ser dita compelida a se afirmar, como o prova a possibilidade de
autonegação.
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Notas:
1
Doutor em Filosofia. Professor Adjunto no Departamento de Filosofia da UFRN e membro permanente do
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da mesma universidade (Natal, Brasil). Atua principalmente nas
áreas de Metafísica e História da Filosofia em geral. Em seu trabalho recente, dedica-se à filosofia de
Schopenhauer e destacam-se artigos e conferências sobre o amor, liberdade e outros temas de interesse nas
filosofias da existência. Membro do núcleo de sustentação do GT Schopenhauer da ANPOF e líder do Grupo
de Pesquisa Metafísica Contemporânea. E-mail: dax@cchla.ufrn.br.
2
“Não querer a vida/existência” não é, para Schopenhauer, o mesmo que querer morrer. Conhecida sua tese
de que no suicídio se exprime um querer a vida, remeto o leitor ao texto “A afirmação da vontade-de-viver
no suicídio: a vida como representação” (MORAES, 2010b), já que o tema excede o escopo do presente
artigo.
3
V. p. ex. SCHOPENHAUER, 2015, cap. 22, p. 333 et passim; 2014a, cap. 22, p. 405 et passim.
4
Da negação da vontade, porém, não tratarei aqui. Além de considerar os limites da presente exposição, em
vista do que se deve evitar desvios, a questão do “pessimismo moral”, como se poderá perceber, prescinde
da possibilidade da negação da vontade, sequer sendo aconselhável começar daí como muitas vezes se faz.
Em síntese, a tese de que o mundo seja algo que seria melhor não existir e de que o querer viver que nele se
manifesta merece ser negado pertence a um diagnóstico que em nada influi na constatação de um pessimismo
moral, pelo qual a Ética consiste em uma teoria que visa ao esclarecimento do intelecto, não podendo jamais
servir à correção do caráter, ou reforma do coração. Desse modo, restrinjo-me a brevíssimas considerações
no único interesse do que se pretende expor neste artigo.
5
Não se trata de uma petição de princípio ou de uma circularidade pois a justificação moral da metafísica
não depende de que não possamos conhecer o que se encontra para além do princípio de razão, mas tal
justificação envolve um salto sem o qual qualquer explicação objetiva padece de uma lacuna imperdoável,
que é a de tomar o que é apenas para o sujeito como aquilo que é em si mesmo, cognoscível ou não. O mundo
não pode ser conhecido a partir de si mesmo e seu modo de aparecer ‒ tal pretensão é ingênua ‒, sendo a
metafísica autêntica o modo de pensá-lo independentemente de suas leis, empreitada em que Schopenhauer
se mostra mais radical do que Kant. Uma vez admitida uma metafísica, a ela deve pertencer a possibilidade
da liberdade e, portanto, da responsabilidade. Sendo assim, não se trata de defender uma metafísica segundo
pressupostos metafísicos e a admissão não dogmática de uma metafísica a posteriori se converte a um só
tempo em uma exigência da razão ‒ como Kant o admitiu – e um resultado a priori da crítica da razão,
segundo a qual todo fenômeno supõe uma subjetividade transcendental que o representa.
6
Cf. passagem paralela no capítulo 18 do MVR II (SCHOPENHAUER, 2014a, p. 301-302; 2015, p. 239-
240). São textos fundamentais para que não se superestime a possibilidade de conhecimento da coisa-em-si,
pois revelam muito mais do que a mera distinção entre o si-mesmo como tal, formal ou concretamente
considerado, e o eu abstrato.
7
V. p. ex. SCHOPENHAUER, 2014a, cap. 19 (item 6), p. 337; 2015, cap. 19 (item 6), p. 270.
8
V., p. ex., “Caráter, liberdade e “Aseität”: sobre a assimilação das noções de caráter inteligível e caráter
empírico de Kant por Schopenhauer” (DEBONA, 2016a), que traz uma compreensiva abordagem da relação
entre a ética schopenhaueriana e a de Kant e, nesse ínterim, menciona o impasse relativo à conciliação entre
liberdade e necessidade, para cuja solução aponto aqui, como já fizera antes em mais detalhe (MORAES,
2011).
9
Cf. SCHOPENHAUER, 2014a, p. 346; 2015, p. 278.
10
V. tb. p. ex. sobre as determinações essenciais e inessenciais: §26, p. 201; §28, p. 224.
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11
Uma análise do caso da religião, articulado de modo bastante conciso com os temas da liberdade, do
caráter, do ateísmo, da responsabilidade e de nossa “necessidade metafísica”, pode ser encontrada em “Sobre
a impossibilidade do aprimoramento moral pela religião” (MORAES, 2017a).
12
Aqui se faz referência à tese do caráter adquirido, que aparece sob esta forma privilegiadamente no §55
do MVR I e, em verdade, é exposta em todas as suas nuances nos Aforismos de sabedoria de vida. Consiste
no conhecimento refletido sobre o próprio caráter, pelo qual se torna possível uma conduta não errática, mas
uniforme na vida. Portanto, a falta disso implica uma “ausência de caráter” no sentido de que o indivíduo
como que se comporta ao sabor das circunstâncias e inclinações imediatas, inconsistentemente.
13
Sobre essas alternativas e sua precariedade no que diz respeito à realização da moral no mundo, ver o
artigo “O caráter inteligível como fundamento ontológico para a sabedoria de vida” (MORAES, 2016).
14
Como seu artigo se concentra em um diálogo interessante com a tese do chamado “pessimismo
metafísico”, tema que excede o presente tópico, limito-me a mencionar de modo geral a sua noção de
“pessimismo pragmático”, que consiste em um modo particular de se relacionar com o pressuposto mal
intrínseco à existência, uma adequação do costume.
15
Por essa atitude é possível vincular a sabedoria de vida às considerações que Schopenhauer faz sobre
estoicos e cínicos no §16 e no capítulo 16 dos dois volumes do MVR, respectivamente.
16
Sobre isso, ver “Mefistófeles e o mundo como vontade: os tipos afirmador e negador, otimista e pessimista,
no Fausto, de Goethe” (MORAES, 2015).
17
A paginação indicada para as citações de Schopenhauer correspondem à da edição brasileira listada nas
referências.
18
V. comentário etimológico a essa passagem em “O dualismo kantiano e sua crítica por Schopenhauer”
(MORAES, 2013, p. 420-421, n. 2), fazendo paralelo entre a terminologia aí empregada e aquela de
Rousseau, cuja influência sobre Schopenhauer parece bastante defensável.
19
A tradução brasileira de “Selbstsucht” por “amor-próprio” não parece adequada, mas preserva algo
importante, que é a não atribuição dessa forma de egoísmo aos animais irracionais, que compartilham com
os humanos um egoísmo mais fundamental, genérico, que é o natural “Egoismus”, compatível à noção de
amor-de-si.
20
Citado conforme traduzido na nota 326, p. 555, no mesmo volume.
21
O item 9, a seguir, é dedicado à já mencionada identidade entre caráter (vontade) e coração.
22
SCHOPENHAUER, 1877, cap. 19, item 4, p. 238: “früher zum Gegenstand der Ueberlegung, als des Eifers
und Verdrusses machten”.
23
Sobre a relação entre o mal e a cegueira da Vontade, no sentido que ela não pode ser considerada má em
si mesma, ver “A inocência da Vontade” (MORAES, 2017b), a cujo conteúdo se faz referência neste
parágrafo.
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Referências
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Anot. Fernando Costa Matos. 3. ed.
Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: EDUSF, 2013.
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schopenhaueriana
Emoções e valores
SCHOPENHAUER, Arthur. Sämtliche Werke. Vol. III. Ed. Julius Frauenstaedt. Leipzig:
Brockhaus, 1877.
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