Na Corda Bamba - Memórias Ficcionais - Daniel Aarão Reis
Na Corda Bamba - Memórias Ficcionais - Daniel Aarão Reis
Na Corda Bamba - Memórias Ficcionais - Daniel Aarão Reis
Sobre a obra:
Sobre nós:
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
R299n
Na corda bamba [recurso eletrônico]: memórias ficcionais / Daniel Aarão Reis. – 1. ed.
recurso digital
Formato: epub
CDU: 82-34(81)
deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.
Produzido no Brasil
ISBN 978-85-01-92135-2
sac@record.com.br
Para Dievushka
quebrada,
a gente se corta.
A esperança
Pode se machucar
LIVRO I: Ditadura
As hemorroidas
O Tocha
O dia da caça
A explosão
Os sanduíches
Teoria e prática
A encomenda
A fuga
Sylea
Gertrudes
A carteirada
Maria
O sumiço
Pellegrini
A melhor amiga
O último pulo
A queda
O enfermeiro
O filho
O velho
De um a cinco
O reconhecimento
Sinais invisíveis
Sonata
Sem nome
A revolução
Aquele dia
As astúcias do mal
Solilóquios de um agente
As croquetas
Dezembro
Papito
Treino e jogo
El profesor
Pelo ralo
Espera vigiada
O disco
A cadeira
Tempos esquivos
Forças e risos
Travessia
A volta ao Brasil
Carpinteiros
O eLivros espanhol
Filhos do exílio
Cinco dedos
O golpe
O herói
Adiós, América
Babá de crianças
Lena
O quarto escuro
Moçambique
Entrelugares
Acabou a ditadura!
Lisboa
Marquinho
Chegada
A brecha
A visita
Macanudo
O cu dos machos
O concerto
As bombas
O cachorro
Repórter
Realidade brasileira
Sol
O vírus
Luizinho
O Método Marinaldo
Marlene
O nazista
Ex-presidiário
Diretas Já
Na corda bamba
LIVRO I
Ditadura
Praça Santos Dumont
— Antônio Brito.
— Presente.
— Armando Calheiros.
— Presente.
— Bruno Armani.
— Presente.
— Presente.
Nogueira:
— Eduardo Nogueira.
— Presente.
— …
— …
irônicos.
— Presente!
— Não.
— Vão querer…
— E o senhor?
— …
— …
Desentalava:
na água, ou melhor, com os sons que não fluíam. Ainda gozavam dele:
perdiam na garganta.
os filhos da puta dos sons simplesmente não saíam. Mal ou bem foi
levando. Mais mal do que bem, lhe parecia. Até que chegou a hora da
Gabriel:
manifestação de amanhã.
— Eu?
prática.
pilotis do MEC.
marcada para as cinco da tarde, resolveu que tinha que ter uma conversa
refletir com calma, para ver como iria — ou não iria? — lidar com o
começar a lidar com elas. Como dizia a mãe, era uma questão de
falar nisso, só faltavam quinze minutos. Foi para lá com passo resoluto e
se assustou quando viu aquele espaço aberto, que lhe pareceu amplo
e ele pôde ver que alguns soldados batiam seus cassetetes de leve no
veículo.
esperando o quê? Bem, ele não esperaria. Avançou para um dos pilotis
expirar.
de ordem habituais:
Não caiu. Nem cairia tão cedo. Para Gabriel, mal começara a
inspirar, expirar.
As hemorroidas
Era tarde da noite, uma boa e amena noite de maio no Rio de Janeiro. O
melhor mês para viver na cidade: nada de chuva, temperatura não muito
alta nem muito baixa, brisa leve, céu limpo de nuvens. Melhor mês, sem
misteriosos.
eles, era a mesma ditadura, que se prolongaria, cada vez mais dura, até
que fosse derrubada pela luta armada, um projeto ainda algo abstrato,
Como pudera acontecer? Aquela bunda não podia estar ali. Alguns
João Pessoa, com medo dos parentes da moça, furiosos pela súbita
despertador?
O que era aquilo? Uma boa piada ou uma triste história verdadeira?
não havia outro jeito. A sorte foi que Lúcio Flávio também ia saindo; ele
era de se supor, com gente saindo pelo ladrão. Lúcio Flávio disse que
Não havia lugar para mais ninguém e mesmo assim subiram seis. Depois
havia uma pessoa que não estivesse olhando atentamente para eles,
Ultraproct. O que você não pode fazer é não levar a sério esse troço.
tentava bancar o alheado, como se nada daquilo tivesse algo a ver com
eles. Mas era com eles, seguramente, que Lúcio Flávio falava. E disso
— Já te avisei, Gabriel, você tem que tomar Daflon, mas pode ser
piorar.
ainda tiveram que suportar o olhar dos passageiros. Cada um que saltava
Ela ficava sem graça: “Não posso escutar? Vocês estão escondendo
“Mãe…”
Eram oito ou nove, e estava muito apertado ali dentro, mas Gabriel
não estava nem aí, pois podia encostar a perna nas coxas da Natacha,
boas coxas, lindas coxas. Ela, militante, nem notava, ou fingia não notar,
compenetrada na discussão.
um dos donos da Standard Oil, que se escondia entre nós sob o nome de
numa das passarelas da avenida Brasil, ele vai ter que passar por lá…
— Pregos nas ruas por onde passará o cortejo, para estourar os pneus
dos caras…
operários…
engarrafamento…
dono do troço.
estava ajudando.
cara chegar, pois tá todo mundo dizendo que ele vai visitar a Sears, o
Momento de silêncio.
Mais silêncio.
— Por que não? Vocês veem algum outro gesto capaz de alcançar a
coxa dela quando todos estavam empolgados, imaginando uma ação que
surpreenderia o mundo?
Aprovada a proposta com apenas dois votos contra, dali até o fim a
prolongado banho.
Era um belo fim de tarde e a noite preparava-se para engolir mais um dia
daquele outono.
— Pessoal!
Seiscentos? Houve gente, mais tarde, que falou em mil ou mais de mil.
— Mas a repressão não está feliz com nosso sucesso. Não está feliz,
Alguém gritou:
E perguntou, incisivo:
— …
ano passado. Esta é a nossa situação: não vamos ficar aqui. Também não
vamos esperar a noite. Vamos fazer então o quê? Vocês estão vendo
Interrompeu-se um segundo:
— … e de ataque também.
por toda parte: dos pés de cadeira surgiam toscas barras de ferro, e de
uniformes e os escudos deles vestem o medo que eles sentem. Mas nós
— …
— Sim, temos medo, mas vamos lidar com o medo, porque a isto
frente.
humilhados, ofendidos, batidos. Hoje vai ser diferente. Nós vamos tomar
a iniciativa. Hoje, nós é que vamos dar porrada! E temos três vantagens.
A primeira, que é uma grande vantagem: eles não estão esperando que a
destacamentos.
vamos sair daqui correndo. Correndo e gritando. Alto, muito alto. Como
nunca gritamos na vida. Só que não vão ser gritos de dor e de fuga, mas
de raiva e de decisão. Vai ser a hora de eles fugirem. Hoje são eles que
vão levar porrada! Vamos sair em três colunas. A primeira vai tomar a
Uma terceira, à direita, vai tentar alcançar Botafogo. Eles não vão poder
se ocupar de todos nós, inclusive porque nós, agora, é que estaremos nos
ocupando deles.
O que se viu ali nunca antes fora visto. Centenas de estudantes, mãos
para cima, pedaços de pau voando por toda parte e com gritos de fúria,
caiu de costas no chão. Foi como um sinal para os soldados que ali
desacordado.
O dia da caça.
A explosão
Pátria.
— Perguntas?
— Está bem, general, mas como o governo vai responder a esta onda
terrorista?
— Meu filho, ninguém aqui neste país tem peito para desafiar o
Exército?
Tonitruava:
— Aqui estou esperando por eles. Que venham! Duvido que aceitem
o desafio, pois não têm coragem para isso, não são homens para isso.
Um auxiliar adiantou-se:
televisiva:
— É ou não é um babaca?
atacarem “de peito aberto”. Mas esta é a tática dos guerrilheiros: como
por isso que levam a melhor. Somos muito menos, mas, quando
atacamos, em determinado ponto e numa hora dada, somos mais
numerosos.
Sorriu:
que permaneciam calados. Eles faziam parte do grupo que havia posto
Militar, tinha dado baixa há uns meses para se dedicar de corpo e alma à
Entreolharam-se.
enchê-la de dinamite e…
deslizar a bichinha. Ela irá direto para onde a gente quer e explodirá no
Leonardo.
contra a ditadura:
porta de um quartel?
do soldado.
desguarnecida?
garoto que morreu podia ser inocente, não duvido, mas estava ali
reprime o povo.
justa? Digo a vocês: se a revolução for pra frente, como nós queremos,
quatro revolucionários.
Os sanduíches
O caixa deveria estar gordo, pois ali, nas gavetas ou em algum cofre,
sem parar. Mais ao fundo, um casal se entretinha num papo brabo, olho
no olho, cabeças próximas. Não dava para saber se era uma paquera em
uma relação amorosa que já dera o que tinha que dar. E ainda tinha um
infinito, como se tivesse levado um fora. Será que, àquela altura da noite,
com zíper, a metralhadora num saco maior, e traziam também uma boa
Encostou-se o garçom:
Rodrigo adiantou-se:
A voz do garçom:
— Cheeses para todo mundo?
Assentimento geral.
Menos um.
durar para sempre. Quanto ao casal, nem estava aí para o mundo, aquela
Gabriel mal tocara no seu, dera uma mordida e parara. Júlio apenas
aparentando indiferença.
garçom:
— …
— Mais nada?
— …
— Se você quiser…
frente ao Rodrigo.
— …
mas iriam levar a DR para casa ou para o raio que os partisse. Ainda
saíram.
estranhando:
passadas.
O homem hesitou.
rápido para a sacola empunhada por Rodrigo. A ação não durou mais do
— A chave do banheiro.
uma região da cidade de São Paulo. No lado direito, três grandes cruzes
pegou aquele trem pagador, nunca tivemos uma ação igual. Estou
cinco carros. Com dois carros, a gente vai bloquear a Santos aqui, um
depois da ação, teremos pista livre para sair pela Brandão Santos,
repressão.
seguidos pelos demais, todos pela Brandão Santos. Tudo certo, alguma
dúvida?”
segurança combinado.
inesperado?
desses gerentes para ele explicar o que estão fazendo com a grana.
guerra. Sempre calmo, às vezes demais, mas o certo é que esta atitude
dez, doze anos a mais do que eles, talvez até um pouco mais. Sabia que
era quase um velho para a maioria deles. Sorriu consigo mesmo. “Velho
é trapo”, como diziam os que eram realmente velhos, mas que velho que
greve. Fora preso, solto, preso, solto. Mas, depois… depois viera aquela
por um bom tempo. A recuperação foi lenta, dolorosa, mas não tivera
seriam criadas. O principal é que o tempo corria a favor deles, dos que
mundo. O que acontecera em Cuba não fora por acaso. A morte do Che,
sim, fora um acidente. Não deteria o curso positivo das coisas. O mundo,
Mas havia uma coisa estranha ali e que ainda compreendia mal. É
volta. Não tinha por que duvidar da coragem deles. Não a entendia
— Aqui tem uma coisa que não funciona. Ou a teoria está errada ou
da sorte.
A encomenda
vocação.
mais velho, José Carlos, mas este refugava, a bem da verdade, não de
temos amigos em toda parte, sua eleição seria um passeio. Você fala em
compreendo.
— Quero ser médico, meu pai. Como o senhor sabe, me formo este
meu pai, não à toa fez esta carreira brilhante que foi, que está sendo,
história…
não sei?
— Você pensa que eu não sei? Vocês, jovens… com a idade, a gente
vai aprendendo que não se faz o que se quer, mas o que se pode fazer, o
trabalha em condições que não inventamos, mas que são dadas, Zeca,
por forças que nos ultrapassam. Mas se você fica na luta, sempre
consegue fazer alguma coisa boa que não seria feita por outros, ou evitar
lá…
persuasivo que era uma de suas qualidades. O filho era assim mesmo,
Recordou-se, uma vez, há muitos e muitos anos, quando lhe dera uma
conversa:
— Tudo bem, mas tem que ser em outro estado, longe da gente?
capacidade.
— …
que o senhor fez e ainda fará. Pela sua honestidade pessoal. Sei bem que
Mas, como o senhor mesmo disse, as coisas, muitas vezes, não são como
pouco por causa disso, aliás, que vou ser médico lá no Paraná, vou em
cercam.
você.
Endireitou o corpo:
— Estou sabendo, meu pai, e queria te pedir para levar uma nova
— Outra vez?
Zeca sorriu:
— O que sei é que Celestino é meu amigo. Nosso amigo.
— Ele é nosso amigo, meu pai. Isto basta para mim e para nós, pois
não estou dizendo nada de novo para o senhor, pois foi isto mesmo que o
senhor me ensinou.
ensinou.
Zeca chegou para o lado e fez ver duas sacas de feira, grandes, bem
— …
— Não é droga, é?
— Como é que o senhor vai pensar uma coisa dessas? Claro que não
é droga!
— E o que é, então?
— Sei lhe dizer o que não é. O que é… Só sei dizer que foi o
— Quer dizer que você sabe o que não é, mas não sabe o que é!
— É isso aí.
— Vai levar?
— Eu levo.
apanha.
sacas.
no telefone:
sorriam, com malícia. O mar batia nas praias de Aracaju, ele respirou
tempo, uma nova revolução, inventada só por nós. Para nós. Mas
cabeça? Não teria valido a pena pensar melhor sobre a tradição do velho
partido? Não haveria ali algo a ser salvo, além das gírias conservadas na
nada, censurada. Aqui e ali filtravam-se algumas coisas, era preciso ler e
— E você, Gabriel?
— Ok.
ainda não estava preparada para esta forma de luta, corria atrás como
uma barata perdida. Colina, belo nome, bela sigla, muito maior, claro, do
disse Ronaldo, dirigindo-se a mim com aquele olhar que a ironia nunca
abandonava.
trataremos de aperfeiçoar.
muito maior do que nós todos que fazíamos ações pelo país afora. Feita
acabado, mas devia estar confusa com aquilo: quem estaria por trás
era bom sujeito, querido por todos. Sempre calmo. Calmo e tenso. Qual
era a angústia que ele trazia nos olhos? Já desconfiava de que estávamos
entrando num beco sem saída? O Tomás saiu também, foi para Cuba,
iríamos parar?
repetiu Ronaldo.
— Hã… claro, claro, o que vamos fazer com ela? Sugiro atender ao
pedido dela, enviá-la para a Bahia, onde ficará mais segura e fará uma
boa conexão com o pessoal de lá, um reforço. Quem sabe não vamos
namorar com ela, mas o amor pelo Ronaldo falou mais alto. A Marta
gostava de namorar, só que amor mesmo ela tinha era pelo Ronaldo.
proletariado e da revolução.
grudado, mas vem por ali, uns dois carros de intervalo. Já virei e revirei
decolar.
Estavam atrás.
tensão a mil.
fim. Um beco.
Rodrigo gritou:
cerco.
olhou para trás. O tira caído estava sendo ajudado pelos outros. Pulamos
pulou fora o Ronaldo. Mais duas, pulei eu. Rodrigo foi embora. Nos
Partidão!).
João Francisco chegou meia hora antes, pois sabia que não podia errar.
antes.
Era o que ele fazia desde que pegara o emprego: tomar conta do
amigos, empertigado:
Impressionava.
condução. Férias e 13º. O trabalho era ficar das 7h30 às 14h30 no portão
principal da embaixada, que dava para a rua. Era para ele ficar
Dava uns cem passos do portão da rua até lá. Quer dizer, se acontecesse
se defender.
com certo receio nos olhos, quis saber se não era arriscado, ele
desconversou:
governo do Brasil deve proteger aquilo, né? Quer dizer, pelo menos é o
que se espera. Você acha que governo vai deixar a embaixada dos
horas da manhã, dia fresco, batia uma aragem boa vinda da praia.
Voltou-se.
— Mas tem uma moça linda que pode atender no lugar dele…
encadeou:
— Sylea.
sílabas.
— Não tem “i” no fim, o “e” vem junto com o “a”: lea.
— É uma letra que já não existe mais, mas minha mãe a conhecia,
cismou com ela, escreve assim, olha. Pegou num caderninho que estava
pendurado na parte de trás do carrinho do bebê e escreveu, em letra
grande: Y.
— É isso aí, gente pobre capricha nos nomes, pra espantar a tristeza
nomes bonitos. Você não vê os nomes dos bairros pobres: Jardim isso,
— E o seu? Como é?
— O seu o quê?
— Seu nome…
Francisco.
pensamentos ocupados pela mulher. Aquele nome não lhe saía da mente,
Sylea.
TV.
mais cedo.
Fingiu que dormia. Sylea não lhe saía da cabeça. O que estaria
* * *
João disse para si mesmo: acabou, nem vou pensar mais nesta
mulher. Vadia… deu aquela bola e nem aparece no dia seguinte. Chegou
e a levou para cama como nos bons tempos. Mas João estava era
fingindo. Até fodendo, e sua mulher fodia bem, não deixava de pensar
No outro dia, ainda não batera nove horas, João viu lá longe aparecer o
normalidade, mas não conseguiu. Logo que o viu, ela sorriu, como se
— Sylea…
— Hã!?
— É… — Sylea desconversou.
Ele se empertigou:
centro da cidade.
inglês?
— Pode ser.
Passaram-se dois dias sem que Sylea aparecesse. João não conseguia
grisalho, falou com voz suave, numa firmeza que surpreendeu João:
entendida que fala que a paixão só leva a gente pro abismo. Você tem
que ir ver Mãe Clarinda, fazer um despacho, sei lá, só não dá pra se
João concordou, mas sabia que não seria fácil se livrar assim de
No dia seguinte, João nem a esperava mais, passava das dez horas, e,
com ar de deboche.
— Hoje é meu dia de folga, João, tava passando por aqui e resolvi,
— Sylea, você quer dar uma olhada aqui nos jardins da embaixada?
Só uma olhadinha.
— Quem é?
— É o carro do embaixador.
árvores:
— Que beleza isso aqui, João, quanto verde. A conversa está boa,
— Volte sempre.
— Pode deixar.
— Quando, amanhã?
— Só Deus sabe…
passar, mas tinha um ar apressado, apenas um aceno, mal falou com ele.
— Vamos ver…
— Amanhã?
— Só Ele sabe.
Mas voltou, tinha ganhado outra folga. Ficaram ali na conversa mole.
— Mas Sylea…
— Quer dizer que teu patrão sai todos os dias da semana à mesma
hora?
— Você pode até acertar o relógio pela saída dele: 12h30. Nem um
— …???
do que dizia.
acontece.
repente, Sylea ficava meio esquisita, meio secreta, podia vê-la e senti-la
ali ao seu lado, mas parecia que deslizava para fora, para um outro
Passou-se uma semana. Sylea não deu mais as caras. João ia ficando
cada vez mais ansioso, andava meio perdido pelas quebradas, um dia até
chegou atrasado, cinco minutos apenas, mas já bastou para o chefe lhe
acontecido?
Lembrou-se de Sylea:
O país não falou de outro assunto durante vários dias, até que o
ele era mesmo um cara legal. O governo é que saiu perdendo: teve que
Mas tudo isso não foi nada diante do susto que João teve, dias
para a imagem:
— Fala baixo, cara! Não pode ser, homem de Deus, como é que uma
— Bota uma pedra em cima disso. Para salvar teu emprego, tua
conseguia deixar de pensar em Sylea, mesmo sabendo que ela não era
Sylea coisa alguma, que aquilo tudo fora uma enganação, que ele fora
passado para trás por uma garota que nem vinte anos devia ter.
havia chance alguma. João foi perdendo interesse na vida. Enchia a cara
se alcoólatra.
Anos mais tarde, sua história era resumida no bairro em que viveu
numa frase:
Dona Gertrudes era aquela vizinha que todo mundo gostaria de ter.
os vizinhos ouvissem o que dizia nem sobre quem berrava, não estava
nem aí, pelo contrário, parecia que fazia de propósito, “Que ouçam!”.
agilidade e força.
— E a senhora tem a nós, né, mamãe? Teu filho, tua nora e teus
— Gente, vocês são muito jovens, talvez ainda não se deram conta,
e insistia: — Foi preciso muita marcha, muito rosário e reza, para que o
Exército, afinal, entrasse para salvar o Brasil. O mais bonito, porém, veio
— Já contei?
gente pobre, classe média, ricaços, todo mundo junto, o coração batendo
janela. Dava para a rua calma onde moravam, a rua Marques, pequena
observando.
— Almirante…!!!
— Ora, mamãe…
— …???
comando”.
Ela não se aborreceu com o apelido, até gostou. Sim, senhora, era
título militar. E não saía mais do posto. Aconteceu até que a vissem, não
* * *
Ali estava ela naquele dia fatídico, nunca mais esqueceria. Por volta das
Deu o endereço.
— Espera aí…
qualquer coisa. Dava para ver a placa. Leu, releu, memorizou. Voltou
— Alô…
números e as letras.
— E daí que o carro é legal? Os caras podem ser ilegais. Eles estão
denúncia…
Desligaram.
— E…?
— Como assim?
ponto.
A carteirada
Logo que abriu a porta, saindo para o trabalho, Luís Alberto topou com
— Mas…
— Mas o quê?
carros, tudo de segunda mão, claro, velhas baleias, mas passeavam neles
insuficiente, apenas duas ou três vagas para seis carros ou mais. Alguns
camisa, mostrou:
SNI.
mulher:
— SNI?
Informações!
— E daí?
estragar nossas vidas. É como diz o ditado: manda quem pode, obedece
reverência e receio:
— E eu com isso?
por uma nova aura: ficaram meio que reservados, ares de importância,
Nem bem passou uma semana, Luís Alberto pôde sentir a nova
para o Fla × Flu, sol a pino, mofando. Suado, comentou com o torcedor
— Estou aqui há duas horas e ainda falta, olha só, um dois, três,
— SNI…
* * *
Virgílio pavoneava. No mês seguinte, deu outra prova da força. A
vizinha mais velha da vila, dona Lucrécia, bateu na porta da sua casa.
estavam se habituando:
poderia ajudar?
— O que é?
— É que…
— Quem é, mulher?
A voz aproximou-se:
— Dona Lucrécia…
— …
podia me ajudar? Não tenho mais idade para entrar naquelas filas. Como
vocês sabem, moro só com meu filho e o pobrezinho sai cedo para
trabalhar.
— …
A velha suplicou:
condoeu:
— Não tem problema, dona Lucrécia. Hoje não posso, nem amanhã,
meses.
— Pois é — sorria triunfante dona Lucrécia.
alturas. Tendo feito uma manobra arriscada, e ilegal, ele bateu o velho
— SNI!
— Como é que é?
bandeira.
Ouviu o chofer falando para uma pessoa que estava no banco de trás:
escovinha:
— Secreto.
— Mostre aí.
Naquele dia Virgílio não voltou para casa. Quando reapareceu, três
— SNI de merda!
Butch Cassidy & Sundance Kid
A ação foi preparada com todo o cuidado. Simples, mas era o primeiro
direita, antes de uma rua estreita que margeava a via férrea. O plano:
com o dinheiro numa sacola grande, atravessar a via férrea por fendas
um lugar seguro.
modo.
Era uma época amena para quem queria tirar dinheiro dos bancos.
— Movimento na avenida?
correndo mais apressado sob a pele, o que talvez lhe desse mais energia
e disposição.
cabeça.
contra a ditadura.”
Travessia rápida pelos trilhos, entrada calma nos carros, aceleramos para
para vários meses, teria melhor serventia do que nas mãos dos
banqueiros.
Sobraçando a gorda sacola encontrei Sol na esquina combinada.
diziam que tinha um nariz grande demais. Eu nem notava, ficava parado
— Você nem sabe o que tenho aqui. Dinheiro para muitos meses.
ao cinema, comemorar.
ver Butch Cassidy & Sundance Kid, o filme de faroeste que se tornaria
mal se iniciava?
— Hum, hum…
cansaço bom de fodas bem dadas, senti Sol me abraçando, seu hálito
Disse apenas:
1
Georges Duhamel, “Ballade de Florentin Prunier”
direito de ler a revista, odiada pelo marido e pelos filhos; diziam que não
prestava, que era uma baixaria, mas ela gostava, fincou pé, e com o
sua vida, Maria…”, mas e daí?, que abreviasse, não largava o cigarro,
perdera o rumo, como seria mais adequado formar a frase? Sorriu para si
anos, nem nostalgia suscitava. Quanto aos três filhos, tinham se danado
pálida, encolhida num suéter azul-escuro, tão largo que lhe cobria quase
coisa que não se permitia fazer era alterar notas, a isso não chegava; de
resto, durante anos eles foram para ela os filhos que já não tinha mais.
Do que não gostava muito era da agitação política. Não que fosse contra,
nada disso, até era a favor, compreendia os seus estudantes, mas ficava
um belo presente, um vestido de seda negro que ela nunca usara, mas
Endireitou-se:
as mãos:
— …?
duas.
— Minha filha, você dorme aqui. Se este é o seu problema, acabou o
problema.
de leite quente, viu a jovem comer com sofreguidão, devia estar com
Voltou à sala:
casa.
Suspirou.
— Não, Jôse, você não precisa me dizer nada, nem eu quero saber.
ajudo.
Parecendo muito cansada, logo depois foi dormir. Maria ficou ainda
— Essas meninas…
Na manhã seguinte, Jôse acordou ágil. Maria lhe serviu um robusto café
da manhã, com direito a omelete e frutas. Já não era aquela jovem pálida
Carregando a mochila maior do que ela, Jôse partiu, não sem antes
— Para mim?!
— Do estrangeiro…?
— ESTAMOS SALVOS!
Maria sorriu: sua casa fora uma escala para Josefa se mandar do país.
maldormidas.
dr. João Carlos, o JC, que a acompanhava, era um amigo dos tempos da
faculdade, não da Filosofia, mas aparecia sempre por lá, bem falante,
Todos os dias, passava duas ou três vezes pelo quarto. Pegava sua
observando. Maria não queria decepcioná-lo. Não era a ciência dele que
Josefa
Nota
1 Em tradução livre: “E Florentin morreu muito rapidamente / E sem barulho, para não acordá-
la.”
O nosso homem das letras
conferir.
— É, mas vai ter que ser assim mesmo. De barba, nem pensar. Hoje
conhecem sem barba e sem bigode, sem nada. O bigode vai disfarçar.
Pelo menos, fico diferente em relação ao retrato que está nos cartazes.
carinho ou de amor.
O próprio Gonzaga, amigo dos cubanos, fica por aí dizendo que esse
— Você quer saber, ele não deixa de ter razão. Concordo com ele. E
até alguns caras da ALN que treinaram com eles. Tá todo mundo com
tempo, é o que nos basta. Não vamos levar para o Brasil as concepções
dos cubanos. Não é esta a minha intenção, nem a nossa, nem a da nossa
organização.
— Você a tem de sobra, para dar a todos nós, mas estou com maus
pressentimentos.
você citou o Gonzaga, lembre-se de que foi também ele quem disse que
eu era o nosso homem das letras, e que ainda iria me tornar um grande
vontade de foder.
pensou várias vezes na luta do povo vietnamita. Teve inveja. O povo ali
estava sofrendo demais, mas era uma guerra popular, todo mundo
Mas daria para virar. Ele estava voltando para isto, ele e muitos outros.
pouco ridículo, mas era necessário. Sacar se estava sendo seguido sem
dar bandeira, sem deixar a polícia notar que você tinha percebido que
ela estava na sua cola. O mais difícil era cortar o contato, sempre sem
dar bandeira. Fácil de dizer, difícil de fazer, sobretudo quando não se
tinha de reserva. Para sua surpresa, deixaram-no só, numa cela. Passou a
noite lá, sem dormir, na expectativa. Fera acuada. Pela porta entreaberta,
valer começaria? Iriam matá-lo? Sabia que eles sabiam que ele era um
apelação. E então?
Consolação.”
O sumiço
Ela sabia que ele gostava de ser chamado assim, “garoto”, e fazia de
— É que não consigo pensar em outra coisa, Ju, acho que todos nós
— Vira essa boca para lá, meu amor. Cadê tua empolgação, tua
— Então?
— …
anunciava para o ano que vem a guerrilha rural, e a gente falou disso no
lado. Mas ele morreu. Um pouco antes, um pouco depois, caíram vários
nossa organização, para não falar das bases de apoio. Quem é que ainda
— …
convencer os demais?
incrédula.
eram o seu forte. Julia sabia muito bem que tanto ele como ela se
artes gráficas. Era isso que eles eram: artistas gráficos. Ele, professor,
acaso numa palestra que ele dera na Esdi, a Escola Superior de Desenho
num sujinho ali perto. Era nessas conversas que as melhores dicas
surgiam, muito mais do que nas salas amontoadas de carteiras da
que as ideias, voando por todos os lados, passavam por cima deles como
raios distraídos. Ela pensava: gosto do ar rude e decidido que ele tem. E
malicioso. Ele pensava: gosto dos olhos negros e dos lábios grossos
que eles — estava levando todo mundo de roldão para o fundo das
favor do tal recuo estratégico. Ninguém entendeu o que ele queria dizer.
Severino.
— Mas…?
— Não concordamos. Ou melhor, achamos que você tem razão, em
parte. Precisamos, sim, recuar. Está todo mundo de acordo com isso.
Mas recuar para acumular forças que nos possibilitem voltar a agir.
continua viva.
Virou de ponta-cabeça. Este recuo parcial não vai tirar a gente do radar
dos homens…
muita gente.
De longe e mesmo à média distância, ele parecia ser um cara como outro
qualquer. Não muito baixo, tampouco alto. Cabelo preto ralo, boca
dizia serem de fundo de garrafa. O rosto… como era o rosto dele? Nada
atenção.
sentia a força de seu caráter. Era uma coisa meio esquisita, porque não
conversam numa situação eu não vou dizer inferior, seria exagero, mas
numa posição desigual, de espera. Não, ele não era nada especial, e, no
entanto, era, sim, singular, mas você só sentia isso se chegasse perto. De
Mas não ficava por aí, não, porque, para complicar, havia um outro
Era mais do que isso. Era como se ele também não se estivesse levando
a sério, e mais ainda, era como o mundo todo não devesse ser levado tão
a sério.
Era isso que distinguia o Pellegrini: não levava nada tão a sério, mas
pelo carisma próprio dos que a gente tratava na época como líderes de
massa. Essa não era sua praia. Quase nunca falava em público, mas
atenção, pois o que ele dizia parecia vir de uma reflexão amadurecida.
espicaçando ciumeiras. Não tocava violão nem sabia dançar, mas o papo
Duvidava. Mas não tinha fórmulas prontas, era uma pessoa que se
carro pagador, o qual, para azar deles, só trazia cheques assinados, uma
ação era três vezes maior do que o que eles efetivamente tinham em
mãos. Sacanas!
alugado para fazer reuniões e preparar novas ações. Mais cedo do que
eventuais, seria sempre mais fácil lutar com o tempo do nosso lado.
porque ela virá, se você não estiver aguentando, diga que eu tenho a
contasse.
Roberto vieram morar logo depois de casados. Três cômodos, uma sala
meio por uma divisória baixinha: metade era do 301; a outra metade, do
policiais.
meio safado.
arrumar a casa, cozinhar, cuidar dos filhos etc. Ela segurava todas.
com fome, bebia uma cerveja, via televisão e ia para a cama, onde
casamento, mas era coisa rara. E ia rareando cada vez mais. Lígia não
da Baixada.
— De…?
de casa…
— Dê-se por feliz, amiga, casa na Penha, bem montada, maridão que
— Gostaram do apartamento?
— Nada mal.
— Recém-casados?
— Hein?
— Seus filhos?
responder:
— Marta.
— Hein?
— Ronaldo.
— Como?
logo que os vizinhos eram reservados. Tímidos? Não, não era timidez.
Era outra coisa. Marta não era tímida de jeito nenhum, mas Ronaldo, é
verdade, não era de muita conversa. Nas raras vezes em que vinha à
olhar.
No fim de uma certa manhã, Lígia convidou Marta para vir a seu
sua voz. Lígia teve um estalo: Marta era isso mesmo, sincera,
discos ali… Bem, o Ronaldo era vendedor de livros, nada estranho que
— Pode deixar, vizinha, ora veja, vizinhos são para isso mesmo,
ajudam-se na precisão.
varanda se fazia tanto calor. Eram todos sempre muito gentis, educados
Silenciosos…
— Que coisas?
É
— É que eles, às vezes, recebem amigos e passam horas conversando
Roberto olhou atento para ela, calado, e ela viu nos olhos dele um
brilho ruim, teve vontade de engolir as palavras, mas já era tarde, elas
— E para eles?
— Criatura, você tem que pensar antes de tudo em nós e nos nossos
acontecer de novo.
Aconteceu dali a dois dias. Meio trêmula, Lígia ligou para o marido.
Quando ele desligou, teve vontade de sumir. Depois de meia hora, bateu
— É que…
Percebeu nos olhos de Marta o brilho que vira nos olhos do marido,
suas mãos com carinho, mas com firmeza e, nos olhos, uma
eternidade.
Já era noite quando o rabecão chegou para retirar os corpos.
O último pulo
Ringo estava, mais uma vez, no ponto entre o sono e a vigília. Para seu
ninguém sabia que ele morava ali… Seria a polícia? Sim, certamente, a
polícia. Estremeceu.
policiais. Não, não iria acontecer. Não era só que mal soubesse atirar,
faltava-lhe decisão. Há muito sabia que esta hora, mais tempo, menos
tempo, iria chegar, e ele iria se entregar, acabaria de vez com aquela
angústia.
— Ronaldo!
Sim, Ronaldo, o único na organização que sabia que ele alugara
aquele apartamento.
que não conseguiu identificar, a camisa meio rasgada, saindo para fora
— Claro, entre.
Entreolharam-se.
viera avisar.
mais dois.
— …?
muitos tiros, cara, tiro pra tudo quanto é lado. Ainda ouço os gritos de
Marta: “Corre!” Fomos cada um para um lado. Não a vi mais, nem sei
— Nem sei direito, acho que não. Prestei atenção, acho que não —
disse ele, não muito convicto. — Sei que rendi o motorista de um carro
que passava. Os estalos secos, as balas zunindo, um inferno. Dali a
alguns quarteirões, saltei e fiz sinal para um táxi. Tive o cuidado de fazê-
— É… estou vendo.
seu jeito inimitável, de olhar de baixo para cima, com olhos irônicos.
Vamos sair daqui, alguém pode ter me visto. Você tem para onde ir?
— Não tenho para onde ir, Ronaldo, acho que vou ficar.
ficar.
— Sabe, cara, a mim eles não vão pegar. Não tocam em mim. Ainda
tenho seis balas no revólver. Cinco pra eles. Se não der, a última é para
mim.
— Mas é tortura certa, pelo menos pra mim. A essa altura, eles
devem saber que fui para a Direção depois da ação do embaixador. Eles
Foi então que ouviram uma gritaria lá fora. No início, eram gritos
Ronaldo compreendeu.
ouviu mais nada, já estava sendo levado aos trompaços, pelas escadas,
apanhando muito.
encontrado, morto, numa rua da Lapa. Marta lia a notícia e não queria
acreditar:
Gabriel pigarreou:
seu corpo.
Marta chorava.
* * *
possíveis:
— Como assim…?
aborrecendo:
— Foi você mesmo que disse: esta ação não tem pé nem cabeça.
— …
Iriam em dois carros. Num deles, Marta, Lírio e João. No outro, ele
Gabriel:
Ponderara:
prostração.
queda livre. Aquilo tudo tinha que ser analisado de outra maneira, não
— Tudo bem, Lírio, mas participa uma vez mais com a gente nesta
— Você não tem mesmo jeito, Gabriel, mas será minha última… e
Cenira também não estava nada bem. Saíra de uma cirurgia delicada
de dois meses.
— Cenira, não dá… você não vê? Se houver repressão, como é que
— Vira sua boca para lá, Gabriel! É assim que você anima a gente?
Vamos nessa, Gabriel, estou dentro, e não vai ser você que vai me tirar.
quieto, era uma rocha, decidido. Mas Josué era muito jovem, seria sua
— Não estou vendo esta ação com bons olhos. Uma coisa de
sobrevivência.
Por isso é que ela agora estava cobrando, e tinha razão. Mas já estava
de Gabriel:
fora.
Uma denúncia?
revólver da bolsa.
Entraram por uma rua de terra, o barulho das sirenes agora estava
Cenira arquejava:
Josué, enfático:
gente chegar ao topo e descer do outro lado, nem vão se dar conta de que
salvara.
Cenira insistia:
— Cai fora, Gabriel. A gente fica aqui.
que, talvez, quem sabe, daria para escapar, todos juntos. Um por todos,
todos por um, não era assim que o velho pai sempre falava, referindo-se
eram, afinal?
Silêncio absoluto.
caverna.
Silêncio.
para o alto.
tossindo muito, mãos para o alto. Havia ali um monte de policiais civis,
fosse um inseto.
e nus.
Gabriel sentiu muito frio, na pele e por dentro. Um frio por dentro
que nunca tinha sentido. Entrou no camburão nu em pelo, ficou ali só,
zonzo. Estaria num pesadelo? Beliscou-se. Não, não era sonho. Quando
cabelos, aos gritos, chutes e pontapés. Caiu de costas no chão, uma bota
“Era a tal coisa, você deveria aceitar ou não? Por que pensar no assunto?
Já não aceitou? Mas você não deveria aceitar. Aceitou? Agora, aguenta
bobo, não, de esperto, pois queria ganhar mais e ter mais consideração.
que tinha desde pequeno, quando a mãe saía para trabalhar e o deixava
Foi.
trabalho. Você está às vésperas de dar baixa, mas queremos propor que
fique no Exército…
Ele se aprumou:
— Você vai precisar fazer uma provinha, coisa fácil, a gente arranja
muito especial.
— …?
— Vai exigir silêncio. Ouviu bem, Jessé? Você não vai poder contar
bem, Jessé?
— Você vai ganhar bem, Jessé, muito melhor do que agora, mas,
repito, não vai poder contar nada a ninguém, Jessé. Se contar, vai se dar
armadilha, da qual não poderia sair tão cedo, deveria ter caído fora, cara,
era o momento de cair fora, mas você resolveu ficar, agora olha a
bananosa…”
com respeito e um certo medo. Era para lá que eram levados os caras
Coisas que a gente pode entender, coisas que não pode ou não deve
gente defende este país dos terroristas que querem acabar com a gente,
O major perguntou:
— E onde, meu filho, você ouviu isso? — o major cresceu para cima
trato. Do que você vai ver e ouvir aqui… boca de siri, seu moço, nem
“Ali já não tinha volta. Ou ainda dava? Não, já não dava, claro que
não dava, você foi muito estúpido para ter deixado as coisas chegarem a
esse ponto.”
celas. Dentro de cada uma, uns caras muito sérios olhando para ele.
dez.
O outro apenas o olhara, meio desconfiado, severo. Os olhos,
Perfilou-se.
— Jessé de Souza.
— Sem dúvida.
No dia seguinte estava ele lá, fazendo o que sabia fazer. Curativo no
Ubiraci:
Foi. Um soldado abriu a porta com uma chave grande de metal. Jessé
tanto apanhar, o corpo era uma equimose só, todo roxo. Um médico
estava lá, leu o nome costurado no jaleco: dr. Lobo. Ele já estava saindo.
um vidrinho de antibiótico.
“Você não devia ter feito isso! Tinha que aplicar a injeção e dar o
fora. Era este o teu serviço! Mas… foi sem querer! Como é que eu ia
ver, ou podia? Ele podia olhar para onde quisesse. Você é que não podia
mais alto. Jessé nem sabia onde aplicar a injeção. Os braços do cara
ouviu:
— Eles vão me matar. Gabriel. Lúcio e Helena, 252-82-38.
Jessé não falou nada. Não perguntou nem respondeu. Mas não podia
clara:
— Gabriel sou eu. Eles vão me matar. Telefone para Lúcio e Helena,
252-82-38.
telefonar? Se pegam, e vão pegar, é você que vai parar lá naquela cela,
estivesse bêbado. Sem bem saber o que estava fazendo, viu um orelhão,
— 252-82-38.
— Alô.
— Alô…
Lúcio despertou:
Perguntou de novo:
— Quem tá falando?
— Quem é?
Quando sentiu que a mulher voltara a dormir, virou para sua posição
Exército, antro notório das torturas e dos torturadores. Gabriel tinha sido
Estremeceu.
numa emboscada.
direto para a página das notícias policiais. Ficava ali tentando ler nas
Medo de ler o que não queria. Mas ali poderiam aparecer indícios
fora integralista nos anos 1930, aderira depois ao Estado Novo, apoiara
mão:
algum modo ajudar, contribuir para que a prisão do meu filho seja ao
matem.”
pior:
— Não, não foi engano, falei isso para não infernizar o seu sono.
Avisaram, não sei quem, que o Gabriel foi preso, está lá na Barão de
Mesquita.
traiçoeiro.
professor, sondou um velho general de reserva, quem sabe por ali não
havia notícias.
ele quem atravessou a rua para apertar sua mão. Parou-o para dizer:
conte comigo.
mês. Um dia, Helena entrou pela sala como se fosse uma ventania, com
Lúcio sorriu:
tocava nada ali havia tanto tempo… e pôs a valsa preferida dele, de
Strauss…
— Você me convida?
— Permita-me, senhora…
mulher comentou:
— Por quê?
— Pois é, alguma coisa não deve ser tão boa assim. Afinal, o que
mais.
— Lúcio, temos que ser serenos, dar confiança, não vamos começar
a chorar à toa.
ainda assim trazia nos olhos uma estranha confiança. Trocaram breves
olhando para um mesmo ponto, fora daquele espaço, além das grades,
escrever antiquada.
coragem…
cada mão, estão seis dedos quebrados por oficiais do Exército brasileiro,
maldade. Eu queria…
expressa autorização.
exasperou-se:
e determinou:
E dirigindo-se ao homem:
Almeida?
Brasil?
governo brasileiro?
— É claro…
Mas a voz soava hesitante, havia ali uma certa confusão. Endireitou-
acusações?
movidos por uma mola oculta, dando sinais de irritação. O juiz procurou
prosseguiu:
quase inaudível:
— Eis um homem…
— O velho venceu.
— …
boiavam na córnea.
— …
Dava uma informação falsa. Até que os homens fossem conferir, você
ganhava tempo.
Ganhar tempo. Cada minuto que você ganha, um ponto para você. Uma
— Qual é…?
situação e acabar dizendo coisas que não queria, ou não deveria dizer. E
aí, se e quando você começa a dizer coisas que não deveria… aí pode
dar merda…
— E o método turco?
— Este é mais difícil, porém mais seguro: você não dá nada, nada de
— Não importa. Você não diz nada, não nega nem confirma nada.
alguém na roda.
que você não vai fazer nenhuma cagada, o silêncio te protege. Mas tem
um perigo aí também…
— Qual é?
de ódio. Aí você morre, mas não diz nada pros filhos da puta.
Começou:
cabeça, desamparada, caiu pra trás com força. Tontura. Daí eles
e de terror.
— Um, dois…
Desmaiou.
fingidos de amizade.
— …
queriam te matar…
— …
— …
— Cara, deixa eu te dizer uma coisa: se você não disser nada, nada
alguma coisa que não tenha valor, qualquer coisa, e com isso já consigo
segurar os caras…
por mês, reunia amigos para jogar pôquer. Mesa redonda, tampo verde,
único, porém, que era realmente craque, que ganhava sempre, com ou
sem sorte, era o Roque. Um dia, Fernando, então nos seus quinze anos,
perguntou:
— Vou te dizer, porque você é filho do seu pai, mas não conta pra
ninguém. Um segredo entre nós, para você jogar pôquer e se virar por aí.
Porque o pôquer é a vida em miniatura. Você sabe, a vida é um grande
estão contidos nele. Se você se der bem no pôquer, vai se dar bem na
— Ué, mas eu ouço meu pai dizer que quem tem sorte no jogo não
ensinou: — Se você está com um jogo bom, você ganha; todo mundo
— Parece lógico.
— Como?
— Como assim?
estiverem trêmulas, é porque você está nervoso. Quem tem um jogo bom
você estivesse olhando pro nada, olhando para qualquer coisa sem o
— …?
— Os caras vão olhar para as tuas mãos, para o teu rosto, mas vão
olhar principalmente para os teus olhos, Fernando, eles vão querer ver
através dos teus olhos onde estão teus pensamentos e o valor do teu jogo.
— …?
Sentiu-se retornando de uma longa viagem. Ali estava: nu, com frio,
Olhos neutros.
neutros. O cara não sabe que estou blefando. Eles têm tudo e eu não
sentia muito frio. Percebeu que estava sozinho numa cela. Solitário.
onde, sobre velhos militantes que haviam passado pela tortura sem nada
juiz. O juiz engrenou o longo questionário que tinha sob os olhos. Mas o
incômoda pergunta:
— Só isso!?!?
— …?
neutros.
O reconhecimento
My brothers in arms
2
Mark Knopfler, “Brothers in Arms”
onde dava para enxergar cinco celas, fechadas com portas de metal
— Acorda, vagabundo!
Estava todo quebrado, com manchas roxas nas pernas e nos braços,
passado por isso em São Paulo, e foi de lá que me trouxeram para esta
Olhei.
— E aí, reconhece?
E como conhecia…
Paulo, para onde tinha ido de ônibus, há mais ou menos dois anos. Dia
chuvoso em Sampa, esperei-o na rodoviária. A senha era fingir que
perguntar:
Eu responderia de bate-pronto:
— Prefiro o Super-Homem.
uma coisa era como se a coisa existisse de verdade: parecer forte era
estudantes.
namorada nova, queriam mais era foder. Foderam a mais não poder. Fui
vermelho porque era amigo dos praças e dos sargentos, e por isso era
pega pra capar, o cara não foi encontrado em lugar nenhum, estava
cara…
minha vida.
reconhece o Vicente?
— Não finge, não, porra, Gabriel, a gente já sabe que você saiu
você não vai vacilar, né, meu caro amigo? Não agora, depois que eu jurei
não te conhecer.”
disse:
haveria tempo e espaço para fugir. Mas não foi esta a proposta aprovada.
Mas não deu. Não tinha como dar. Aí, quando não deu, e veio a hora da
porca torcer o rabo, descarregaram a culpa em cima de mim. As
— Vocês dois querem voltar pro pau de arara para admitir que se
conheciam?
“Não, companheiro, não vacila, sei que você está fodidão, mas se me
reconhecer vai feder e vai foder ainda mais, você nem imagina o que vai
voltar para a tortura… sei que é a pior coisa que pode acontecer, mas é
amigo.”
Meus lábios estavam apertados, secos, mas dos meus olhos era como
investigação.
Nota
2 “Testemunhei seu sofrimento / Quando a fúria da batalha estava no auge / E embora tenham
armas.”
Sinais invisíveis
O pai desenhou com precisão uma espécie de cuia, virada para cima.
esquerda, de cima para baixo. Significado: sa, se, si, so, su, ou za, ze, zi,
zo, zu. Inclinada para a direita, adquiria outro significado: da, de, di, do,
du.
congressos etc.
a “barriga” pela direita é asto, esta, isto, osto e usta. Se subirem pela
Gabriel perguntou:
sabe quem está falando e o assunto sobre o qual alguma coisa está sendo
dita, o que ajuda, facilita a leitura. Na dúvida, vocês vão tentando: ba,
va, be, ve… às vezes é difícil encontrar a boa conexão, mas sempre é
possível achá-la.
taquígrafos profissionais.
o orgulho:
qual tanto confiavam? E como estariam seus pais, seus outros irmãos?
Como estariam se virando? Os planos que os pais tinham para eles, tudo
Repetiu, alto:
— Não sei em que você está pensando ou do que está falando, mas
Surpreso, ficou emocionado, havia meses não via o irmão nem tinha
sem nome, cometidas por oficiais das Forças Armadas. Mas “aqui em
livre da tortura, pelo menos por um tempo, pelo menos até que os
torturadores não o requisitassem novamente para conferir uma
Gabriel perguntou:
— Onde?
guarda.
Gabriel esgueirou-se para a porta. Não podia ficar colado nela. Era
proibido. Assim como era proibido também falar com os presos da outra
cela. Ficou ali, a um passo da porta, fazendo sinais, até que alguém, do
com os olhos.
— Ba-asto-ante. E vo-ocê?
— Mu-ito.
— Ma-chu-uca-ado?
— Na-ada de gra-ve.
— Si-im.
— Co-ra-ge-m.
— Não fa-alta.
— A-inda não.
— Ma-al?
— Re-ecu-epe-ra-ada.
— E a or-ga-ani-aza-ção? Vi-iva?
amedrontar.
Sonata
veado?
— Sei lá se eles eram veados!! Além disso, o Júlio não tem nada de
professora reconhece que ele está indo bem, tem ouvido bom, aprende
depressa.
— Vamos parar por aqui, não aguento mais esta conversa, ponto
anos. Desde que Júlio nasceu, seu pai, o então tenente da Aeronáutica,
Ficou só Júlio, mas o pai o apresentava aos amigos com o nome duplo:
— …
— Tá bem, pode brincar, mas, um dia, vai ter que vestir a camisa.
levou pela primeira vez ao Maracanã. Foi um suplício. Júlio olhava para
O pai protestava:
— Ele é meu filho, olha para onde quiser e ninguém tem nada com
isso!
Na briga feia, correu sangue. Não houve mais clima para continuar
no colégio que Heloísa prezava tanto. Na nova escola, Júlio se deu bem.
exaltado. — Não conseguirão! A não ser que passem por cima das
Forças Armadas, e eles não têm força para isso. Veremos! Que venham!
— E se vierem?
— Como é que é?
O pai berrou:
— Eles quem?
— Ele tem razão, Miguel, você é que tem trazido esse assunto aqui
pra dentro de casa, só fala nisso, parece samba de uma nota só.
Perguntou, brusco:
que a mulher olhava para o filho com uma ponta de orgulho. Limitou-se
— Veremos!
Seguiram-se anos tensos, agitados, a República conhecia os anos mais
corpo e alma, passava dias e dias fora, mal pisava em casa, só aparecia
estranho.
rapaz, já era agora um rapaz, fugia das conversas que o pai suscitava,
depois que ele havia saído para a faculdade. Não deu outra: em meio aos
muito, mas, como era de seu feitio, se conformou. Miguel nunca mais
música, perguntou-lhe:
— Mozart?
— Hein…?
— Esta música… é de Mozart?
— É de quem?
cair em emboscada.
Sabia disso até por experiência própria, mas estava muito cansada
para pensar e andou pela trilha assim mesmo. Seguiu aos tropeços,
levada pela fome que sentia, pela fome e pela sede, muita sede, a
para sempre. O que estava fazendo naquela trilha? O que estava fazendo
ali?
Desde o início, pressentira que aquilo não ia dar certo. Não podia
dar. Não eram dali, não conheciam os lugares nem ninguém, tinham
homens chegaram. Nem que a gente quisesse seria possível sair. Sair
A rigor, a fuga havia começado. Desde aquele dia… sete dias atrás?
palavras de Carlão:
sorte!
Boa sorte?
Juvenal dissera:
— Vamos dormir e, de manhã cedo, partimos no rumo nordeste,
dos tiros, eram muitos, zunindo, tirando lascas das árvores, deixaram-na
zonza de medo. Ela saíra correndo e nunca fora capaz de imaginar que
sozinha e perdida.
Murmurou baixinho:
— Juliano…
— Juliano…
Ninguém respondeu.
vez mais, os mosquitos não davam trégua, a sede apertava, as feridas não
Silvino.
fossem feras. Da sua equipe ainda fazia parte o índio Suruí, sempre
como uma cobra, sem fazer barulho, em silêncio, e sabia ler os rastros
terroristas que estão por aí nesses matos. Soube que o senhor tem um
bom time. Carta branca para atirar e prender. E para arrebentar quem o
senhor achar que tem informação que leve aos terroristas. Matar, não. Só
em último caso. Matar é com a gente. Tente pegar os caras vivos. Nós é
recompensados.
Graça abriu os olhos com dificuldade e falou com uma voz fraca,
junto à moça:
ajuda. Abre uma cova rasa aqui para esta piranha sem nome.
para dentro.
que iria acontecer. Tentou lutar, mas faltavam-lhe forças. De costas para
teve tempo e força para agitar o braço que não fora ferido. De longe,
Suruí levantou os olhos e ainda viu a mão dela se movendo por fora da
para o fundo.
— …
Lacraia gritou:
— Suruí, agora é com você. Vai lá, desenterra e tira a cabeça, é tua
especialidade.
Pavilhão.
A revolução
meia.
Na segunda caixa:
Pãezinhos de queijo. Mais seis latas de guaraná. Acho que está tudo aí.
piedade.
“Deve estar com pena da gente e pensando: ter filho preso, que
destino.”
Solícito, seu Armando adiantou-se para segurar a caixa que ela
levava:
— Até que hoje não está tanto, e há coisas mais pesadas neste
Dois filhos presos, uma filha exilada, outro filho sumido, escondendo-se
dois estavam levando. No fim das contas, eram coisas menos para suprir
mas tinham medo de perdê-lo, nem pensar em perdê-lo, pois era o único
estava lá. Quando ele chegava, mais uma hora de desconforto, sentados
em bancos de madeira, sacolejando na estrada de terra e pedra, o sol a
pino.
toda hora nos rádios e nas TVs. Seu Armando chegava também com
programa divertido.
Só que não.
mas não fala dele.” E concluía: “É isso aí, a gente só pensa, mas não
fala, porque vai fazer mal.” Assim, as palavras serviam para disfarçar o
Mas não era por cinismo que não falavam do assunto que os
coisas que a eles e aos presos não faltava, mas que era sempre necessário
muito magro:
E perguntaram:
— Que revolução…?
que revolucionou a vida das mães e dos pais de vocês, a minha vida e a
E completou:
nossas vidas.”
domingo.
Aquele dia
Acho que nunca mais vou esquecer. Acordamos na tranca dura, todo
torcer pelo Brasil ou não, uma vez que o governo fazia todo o possível
tricampeonato.
Tinha entrado naquilo ali por engano. Fui preso num encontro com um
cara que queria comprar armas. Meu negócio era esse: vender armas.
que precisava das armas para lutar contra o governo, queria fazer uma
peguei uma cana dura, com direito a tortura e tudo mais. Um horror
de revolução eu não entendia nada, nem sabia que tinha uma revolução
no Brasil. Agora estava ali com eles, na Ilha Grande, como se fosse um
prisioneiro político.
Com o tempo, verdade seja dita, aprendi a admirar aqueles caras. Eu
não entendia direito o que eles queriam, mas eram caras de coragem,
lutavam por suas ideias e davam tudo por elas, até a própria vida. Quem
ele, com os dedos, claro, pois ninguém ali podia ter faca ou canivete, só
nos davam colheres e olhe lá. Descascando as laranjas para ele, íamos
tinha entrado.
ver.
Eu, que não sou bobo, guardei as pilhas de um radinho que tínhamos
— Vai levar sem pilha? Leva não, deixa aqui, depois vai e não volta.
— Cadê as pilhas?
— Juro, cara, e de que adianta você levar um rádio sem pilha? Pode
baixinho.
No aguardo, Gabriel e Francisco, meus companheiros de cela,
travesseiro, confirmei:
— Gabriel tá na lista!
força para se conter, mas qualquer um podia ver que estava transtornado.
visitas, ouvi boatos de que outras ações daquele tipo iam acontecer. Será
mesmo? Aquele pessoal estava sendo destroçado, todos os dias caía um.
estava na lista. Ele e mais 39, e ainda algumas crianças, filhos de gente
Dali a pouco, vieram buscar o Gabriel. Ele voltou duas horas depois,
Até que chamaram o Gabriel para ir embora. Ele e mais três que
deixou tudo que ele tinha para nós, saiu apenas com a roupa do corpo e
liberdade, estava todo mundo grudado nas grades das celas, olhando.
e mais outros, e daí a pouco eram palmas por toda parte, até eu me
qualquer parada, que haviam passado por todas, chorando que nem
cantavam uma música que eles conheciam, mas que eu nunca tinha
ouvido.
Fiz que sim com a cabeça, nem sei por quê, mas também me senti
Daí eles partiram. Foram embora. Nunca mais os vi, e nunca mais
— Gabriel tá na lista!
firme, audível para quem estava do outro lado da pesada porta de ferro,
Andersson, vociferou:
constituídas.
sem tamanho.
haviam embarcado.
confirmação.
difundida por todas as rádios do país, com a lista dos quarenta e tantos
o desejavam.
podre. O trajeto agora era o mesmo, só que eu não estava indo, mas
controlar, mas era preciso, pois o jogo ainda estava sendo jogado e nada
estava decidido.
tanto uso. Comida que eu já nem sabia mais que existia, bife com fritas,
da Ilha Grande, que podiam ser ingeridos com a certeza de azia nas
horas seguintes.
deferência e atenção, quase com cuidado. Será que não se viam como
não, era como se a atuação num outro setor da polícia fosse suficiente
tempo para perceber que não era nada disso, ali estavam sendo reunidos
dor, os olhos injetados, marejados. Para mim, enquanto era ouvido por
era conduzido para os camburões, junto com os demais, deu para ver o
que estava sentindo por perder aqueles presos que tanto lhe custara
no dia seguinte. Que esta ordem seja bem compreendida por todos.
esperar, o que iria acontecer. E aí, quando afinal aconteceu, era como se
fosse irreal. Será que estava mesmo acontecendo? Sério, eu iria sair
se realizando?
carcereiros-torturadores.
Mal entrevi Rodrigo ao meu lado. O encontro com ele foi intenso,
— Gabriel…
mãos, firmes. Olhando para ela, voltei a cabeça para a cadeira de rodas:
— E…?
Respirei aliviado. Com tanto para dizer, mas sem saber o que dizer,
rebati de volta:
Ela gracejou:
Não sei ao certo dizer as razões, mas o fato é que aquela viagem me
exterior, então, nem pensar, tinha que ter muito dinheiro, coisa só para
as elites ou para as classes médias altas, e põe altas nisso. E uma última:
todo tipo de serviços prestados aos passageiros. Eu nunca soube por que,
Galeão.
mão esquerda ligadas por um par de algemas. Tínhamos que estar bem
minha mão esquerda, mesmo sem aviso prévio, acompanhava sua mão
vez.
tarde, soube que eram mais de quarenta agentes. Entre eles, vários
época. Como veremos daqui a pouco, eles se dariam mal, mas não nos
antecipemos. Oficialmente, eles estavam ali para nos vigiar e impedir
Ele não gritara, mas falara com uma voz suficientemente alta para
que todos ouvissem o que estava dizendo, desejando que aquilo fosse
Galeão.
mas teve que engolir. Que mais podia fazer? Ainda viveríamos algumas
aparência de poder, pois nada podiam fazer em seu nome. É verdade que
nós também não tínhamos possibilidade de fazer o que quer que fosse
— O senhor é médico…?
— Você é mais jovem que eu, mas não tem o direito de me chamar
pois era a primeira vez que nos víamos e ainda teríamos muito tempo
certa medida, frios. Bem, não posso falar por todos, mas era o que eu
encontrar a liberdade.
parecendo mais alto do que era, e falou com voz clara e segura:
e sentir — que estávamos, afinal, livres, num país livre, e onde nos era
facultada, a partir de agora, o que o major Leão dizia que não mais
Nove ou dez horas, e mais alguns fusos horários, não mais do que isso, e
— Meio esquisito…
— Esquisito como?
— Assim como quem anda apalpando alguma coisa para ver se é ela
mesma…
— Uma vezinha mais, por favor; não, o braço, não, a perna… (flash)
Claro que eu sabia que aquilo que estava fazendo ou estava sendo
bom som não poderia de algum modo ajudá-los, diminuindo a sanha dos
incomodavam.
Codi.
Europa.
experiências da prisão?
arara e…
— Na parede? Como?
miséria?
— … é perigoso…
— … o cuscuz?
— Doce ou fruta?
— Experimenta o melão.
vocês falam…
— … a da tortura…
nada a dever.
— Eu quis dizer que não conheço bem, mas já tomei vinho francês
— Olha, eu vou dizer uma coisa a vocês, acho que nunca comi tão
bem.
— Claro que o sufoco tem que ser levado em conta, mas é que a
brincou Rodrigo.
— É que…
encontravam.
— Não conseguem…?
— … comer e falar desses… desses assuntos ao mesmo tempo —
suspirou o francês.
havíamos sofrido.
Uma questão esquisita
E de certezas:
luta revolucionária.
tom irônico.
Terra.
Refugiado político, nem pensar, nem gosto de ouvir estas palavras. Coisa
ideia é que retornaremos em breve, muito rápido, para a luta que nos
espera.
condições da cadeia com grande coragem. Não poupava críticas aos que
acrescentava, ameaçador:
maioria:
este deve ser compreendido, acolhido, ajudado, suas feridas devem ser
tratadas com cuidado, e todos devemos trabalhar para que ele supere a
a tese, prosaica, de que era preciso tratar do preparo físico. Não sei se
Como a maioria ali não se sobressaía pelo corpo apurado, era prioritário
do cangaço:
esperar para ver como evoluiriam as coisas. Era dos poucos que punham
tão valiosas para nos dar? Além disso, ele confidenciou certa vez, num
autonomia, fica-se à mercê dos cubanos. Claro, sem dúvida eles são
nossa autonomia?
E acrescentava, irônico:
daquela ilha por vontade própria. A esta opção, de esperar para ver,
meio furtivo, através de uma meia palavra, de uma frase pela metade, de
tomado? Não, não era possível sequer pensar em deixar a luta, o retorno,
aconselhada de maneira clara por ninguém, me parecia ser foder até não
poder mais. Infelizmente, não podia ser realizada por todos, eis que
pois seu amor, disse-me ela um dia, era muito grande para se concentrar
cadeia.
um gesto largo, como que querendo abranger todos os que ali estavam —
Alguém atalhou:
afundada na água.
mandam mais que nossa própria vontade. E o que parecia certo pode,
Não saberia dizer se o verão em Argel é sempre doce, nunca mais passei
verões por lá, não teria como comparar, mas os dias que passamos
naqueles meses de junho e julho não poderiam ter sido mais suaves. Céu
garrafas de rum para todo o grupo e aqui trago oito para nós.
em Paris e que viera nos ver logo que soube de nossa chegada à Argélia.
subconsciente ou do inconsciente.
Rodrigo —, o que eu me pergunto é por que ela não foi fiel ao seu
Você está criticando o fato de que ela deixou de ser coerente com o seu
passado?
traindo mamãe…
— Como é que você pode concordar com o cara antes que ele diga o
— Não entendi…
— Cara, o Nelson quis dizer que, quando uma pessoa trai a outra, o
— Taí uma fórmula engenhosa, mas… o que tem a ver com a nossa
conversa?
múltiplas.
garrafa:
infiel a nós. No caso, ela foi fiel a si mesma. Nunca escondeu suas
preferências e divisões.
assumido a corno manso, que sabe que é corno e nada diz a respeito.
dificuldade João Francisco. — Afinal, ela não pode ser acusada de ter
— Digamos que ela traiu com suavidade, com meiguice, coisas que,
— Não, não concordo. A rigor, ela não traiu, seria um grave erro
— No bangalô dela?
Vamos lá.
Era mais fácil dizer do que fazer. Tivemos grande dificuldade para
docemente, não tanto por escolha, mas porque a decisão, insegura, nos
fazia falta.
— Martaaaaaa…
— Martaaaaaa…
com vagar e gostou do que viu. Alto, mais para magro, 35 anos
esquerda que fizesse alguma crítica, por leve que fosse. A saga da
revolução cubana corria o mundo por meio dos discursos de Fidel, dos
Golias. Cuba versus EUA. Cuba sí, yankees, no! Não havia meio-termo
nós.”
matadouro?”
alto, forte, sólido, parecia um touro, uma força da natureza. Solícito, não
Grande Jefe. Como Fidel falava bem! Quase todos, mesmo os inimigos,
apaziguada.
levar, não apenas ele, todos eles, inebriados pelo verbo inesgotável do
autoconfiantes.”
torturados na cadeia.”
demais deles, sentiu grande afeto por todos, e não apenas por causa da
azulados de tão escuros, com quem fodeu muito nos hotéis de Havana.
cubanos! Formaram uma das melhores turmas que passaram por suas
desse certo com eles, não daria com mais ninguém. Mas não deu certo
com eles também. Novo fracasso. Dora morreu rasgada por uma rajada
chefe deles, foi um dos últimos a cair, também despedaçado por tiros.
Havana. Nunca soube exatamente por quê, mas aquilo o revoltou, e ele
mesmo, acreditou que tinha feito aquilo com a melhor das intenções,
“Diga a verdade, miserável! Aquilo não tinha nada a ver com uma
brasileiros? Como seriam eles? Qual seria sua onda, como ele gostava de
água sobre o pincel, sacudiu-o para que ficasse bem seco, enroscou a
a morte? Será que estava se tornando frio com a morte dos outros, como
terminal?
“Em todo caso, tudo que eu pensei fica aqui entre nós. Entre mim e
você, bonitão.”
volta de uma da tarde. A comida não era má, e havia até alguma fartura,
mas era sempre a mesma, trazida duas ou três vezes por semana por um
levavam livros para ler e outros marcavam reuniões, pois dava tempo
— Croquetas?
programa.
Não era uma distância pequena, mas encaramos. Andar a pé, na Havana
entender. Croquetas.
com gente saindo pelo ladrão. Não era, a rigor, uma loja, mas uma tenda,
uma barraca quadrangular, como existem nas feiras livres do Brasil. Na
Ivan me instruiu:
garrafa por pessoa. E também não carece pedir as croquetas, elas vêm
— Vamos lá. Você não está acostumado a subir nos ônibus lá do Rio
e duas croquetas.
e mais árdua, quase violenta. E havia ainda uma terceira etapa, sobre a
qual Ivan não me instruíra: para beber e comer era necessário sair
pratinho de papelão sobre uma folha de papel fininha que fazia as vezes
Foi uma decepção. A cerveja estava morna, mas tudo bem, não era
nem muito melhor nem muito pior do que as que eu conhecia no Brasil.
bom, uma cor marrom amarelada, mas, além disso, eram gordurosas,
isso aí, elas têm gosto de plástico, não passam de croquetes plastificados.
— Claro que não! Nem consigo imaginar como você pode gostar de
calma do mundo:
— Você mais cedo que tarde aprenderá a gostar disso que está
* * *
gastronômico.
— Fevereiro.
— Por quê?
— Ficar pulando por aí não é a minha, não é por isso que eu gosto…
isso é muito estranho, mas muito legal, você não acha? No carnaval as
— … e cara de mau…
se fizesse permitido, mesmo que por poucos dias, esta coisa me interessa
e me diverte, e por isso fevereiro é um mês sem igual. Além disso,
fim da tarde aquietava o calor e dava uma onda boa. Um vento leve
gente não faz nada, só pensa no que fez no ano que está acabando e
cultiva ilusões para os dias que virão pela frente, fazendo promessas que
prolongado, meio exasperado e infindável. Tem gente que não gosta, até
mais com as cigarras. Aliás, tem gente que acha que a fábula é uma
tem a ver com o carnaval, uma festa que está mais para cigarras do que
para formigas.
trabalho?
— Será que era por isso que o Marx não gostava dele?
— A saber…
— O Marx tinha olhos de lince para ver o futuro, mas era, como
todo mundo, um filho de seu tempo. Queria casar as filhas com pessoas
que não as levassem para a miséria como ele próprio levou a mulher, e
não tinha certeza de que o Lafargue, vindo ninguém sabia exatamente de
— … um patrimônio sólido?
— As más línguas vão por aí, tratam o Marx com muita severidade,
como se fosse possível existir um ser humano sem falhas. Mas eu queria
— Mas, vem cá, tem também uma coisa muito desagradável, aquele
as multidões…
Ele pode ser em parte estragado pelo consumismo que você critica, mas
— Tudo isso acontece, tem sido assim, mas será que estamos
condenados a que seja sempre assim? Veja o que está acontecendo agora
ganham mal, para impedir essa coisa odiosa que existe em toda parte,
que fazer com tanto presente, enquanto outras nada recebem ou ganham
assustadoras?
— Não creio que seja por aí. Veja bem: os cubanos estabeleceram
poderão levar mais de um que seja apropriado para sua idade. Além
o rosto nas vitrines, jogando olho grande na alegria dos outros, como é
— Mas isso não tem nada a ver com dezembro, mas com a
— Pode não ter sido bem assim, mas a parábola tem algo a ver, pois
reservados apenas aos que tinham mais recursos. E a grande coisa é que
não parecia ser nada difícil. Nem os recursos necessários àquela singela
passear por lá, olhar as pessoas, ver o movimento, jogar conversa fora.
cubanos.
revolucionária…
— … a fodelança…
fodança…
— … fodelança…
— Verdade?
que podiam ficar ali fodendo por quantas horas quisessem e ainda
descanso, uma grande iniciativa para o Estado. Aqui foi mesmo uma
— Sim…
— Pois é, mas já ouvi dizer que a pressão é grande para revogar isso
moralizar, o parque.
— Mala chance.
— Fodelança, cara!
— Qual?
— Não…
H.
— Não sei direito por que isso acontece, cara. Tem gente que atribui
língua usada aqui em Cuba. Cada povo lida com o tesão de modo
diferente, cada pessoa diz o que quer na hora de gozar, o que a excita,
vai saber, mas esse negócio de gritar papito na hora de gozar, pelo
menos para mim, e sem querer fazer jogo de palavras, fode com
qualquer boa trepada. Agora, deve agradar aos homens cubanos, pois se
as mulheres falam isso não é para sacanear nem para fazer brochar,
certo?
* * *
Passei boa parte da noite insone, cismado com o parque Almendares.
Desde que fora preso, já estava batendo um ano, não dava uma trepada.
Nenhuma. Enquanto estava atrás das grades, tudo bem, o recurso à velha
punheta era universal, não tinha saída. Nem para mim nem para
Zero. Certo, nos primeiros tempos, depois que saí da cadeia, deu aquele
parque, imenso, verdejante. Fiquei por lá, rondando, que nem cachorro
vendinha sem fila. Parece mentira, mas estou falando a mais pura
verdade: estavam vendendo cerveja com croquetas sem fila, nem parecia
que eu estava num país socialista. Fui até lá. Àquela altura, já me tornara
— Puedo?
en tu país.
abancando:
Ficamos ali numa conversa boba, sobre a chuva que caíra na semana
anterior, que aguaceiro!, sobre o sol que retornara depois com força, que
chamava —, seus dois filhos, cuidados pela mãe e pelo pai, a dureza do
dia a dia, as filas, o mau caráter do ex-marido que a tinha largado por
abraçava quando, assim como quem não quer nada, levantamos e fomos
a casa é vossa. Imaginei malícia nos olhos dele, mas devia ser impressão
o caminho, indaguei:
como você.
pegando.
— Papito! Papito!
vinham dela própria, de Adélia, que as sussurrava para mim. Não chego
a dizer que levei um susto, mas fez um efeito de ducha fria em cima de
um tição aceso. A ação foi perdendo, digamos, o ritmo, e, apesar de um
nestas horas:
— No te enfades, ya pasará.
palavras:
— Papito! Papito!
Conrado completou:
vir para Cuba. Um dia conversara com Pellegrini a respeito. Ele parecia
— Eu não vou.
não vai?
E encerrava o papo com aquele sorriso enviesado que era sua marca
registrada:
— Outras tarefas…
fundo, Gabriel, somos uma espécie de família. Vou para onde a família
está indo…
Gabriel retrucou:
— Nem todo mundo, Pellegrini não vai. Vários outros também estão
dizendo o mesmo.
esculhambava o Léo.
Brizola.
camas?
na mata?
barbeado:
— Claro que não, companheiros, vocês não vão ter nada disso. Na
guerrilha rural pra valer, vocês vão ter que dormir no mato, em redes, e
comer o que caçarem ou pescarem. Mais duro do que tudo: vão ter que
sorriso indulgente:
Ivan indagava:
— Bem, nesse caso talvez fosse melhor saber disso e não pensar
brincadeira de guerrilha…
que há de básico numa guerrilha. Como vocês irão levar isso na prática
Marta insistiu:
Você mesmo acabou de dizer que não temos aqui as condições reais de
Outro dia, quase desistindo, falei para ele: “Companheiro, se você achar
situação de fato.
Choviam as críticas:
Ivan. — Didi sabia jogar o fino da bola, por isso não ligava tanto para o
treino. O que esse treinamento está mostrando é que não sabemos nem
— Já lhe disse mais de uma vez, Fernandez, aqui não sou mais um
do nosso povo.
— Um professor-soldado ou um soldado-professor?
revolução.
trinta anos, tinha apenas seis ou sete a mais do que a maioria ali, em
se acirravam as discussões:
burguesa.
minha.
burguês.
redimir a humanidade.
Chegando ali, dava um grito agudo e caía como que desfalecida sobre o
cânticos num crescendo até que, depois de um certo tempo, o pano roxo
Cristo.
saber.
Rodrigo atalhou:
sido lavrador. Apurou-se, mais tarde, que o avô dele era, na verdade,
Florêncio passou a dizer, na maior cara de pau, que, sim, o avô nunca
na imaginação do Florêncio, mas ele continua dizendo isso por aí, que
Dava para entender por que o Reginaldo era tão firme em sua
resolução:
apenas um soldado.
se, determinado, tentava mais uma vez, e ainda uma outra, e mais outra,
exposição sobre um tema que você domina… Não temos outra pessoa
como soldado.
curso. Não havia sido fácil aprovar a proposta pela qual Ivan e ele
por Ivan, mas a questão dos critérios foi determinante para o adiamento
da decisão:
nomes.
irônico:
com alívio que Gabriel partiu. Não estava levando fé no curso, uma
E arrematava:
embora.
Nunca tinha feito um voo tão longo e cansativo: de Havana para
fama de serem os mais seguros do mundo, mas ali dentro fazia um frio
andando por avenidas largas, quase sem trânsito, ele me deixou num
1941. Dali, num dia de tempo bom, dava para divisar as torres do
clandestinidade.
Foi o que fiz, ousando apenas dar uma voltinha nas cercanias do
identifiquei no hotel.
— Comment?
— Je suis belgue.
zombeteiro, me corrigiu:
calor amigo das centenas de pessoas que se comprimiam ali, dando vivas
simpatia.
— On verra.
Severino Lagos, acompanhado por um cara que tinha tudo para ser um
lo…
chegada.
de segurança.
tinha, tudo que criticava em nosso caso — em grande parte, com razão
você ir para Orã. Ela está fora da rota dos passeios turísticos, você não
segurança possível.
— Mas, Lagos…
e nós vamos embarcar. Uma vez por semana, passarei para te ver, dar
de voltar ao Brasil.
ônibus saiu na hora marcada, nove da manhã, e veio lotado. Havia ali de
Lagos me explicou:
está comendo uma cebola como a gente come uma maçã, e nem dá
você não tem esse costume, tende a ser mais sensível, mas vai acabar se
— É… pode ser.
com ducha, privada e uma pia, encimada por um pequeno armário com
fogão, um rádio, colchonetes para deitar e dormir, uma boa mesa com
— O proprietário do apartamento…
— Não posso te dar nenhuma informação sobre isso. Basta que você
— É…
Consultou o relógio:
é claro, mas sim daqui a oito dias… Virei sempre, salvo imprevistos,
volta.
mesmo tempo.
“Opa, ainda está muito cedo para começar a falar alto sozinho”,
diz, em alto e bom som, aí pode ser grave. Mas ainda não é o caso. Pelo
menos por ora. Não sou um Robinson Crusoé. Não por enquanto. Vou é
— É…
Acordei com uma fome ancestral. Desci para a rua e logo encontrei
chef, longe disso, mas aprendera a preparar uma dieta básica ainda no
parecia vir das profundezas da terra. Corri até a varandinha. Era uma
noite escura, sem lua à vista, mas toda iluminada por estrelas, e não tive
cidade, que dormia em silêncio. Elas eram bem escandidas, mas, como
esqueceria.
uma aventura solitária e isolada, e que nada mais nos restava senão
do bom cheiro das laranjas e das tangerinas, das feiras semanais, alegres
alto, cara limpa, sem barba ou bigode, fala um francês bem ruim. Ele
não deve passar muito tempo por aqui, coisa de algumas semanas.
Gabriel.
— Como assim?
Eles não estavam habituados a ter estrangeiros por lá, de modo que não
A mulher dele, Najla, também precisava ser prevenida. Como ela ficava
horas da noite, mas sai também por aí, de bicicleta, vai longe. Ele se
— A vida dirá…
Naim acrescentou:
— Quem é Esmail?
— E o que houve?
vigiando o rapaz…
— Trancada em casa?
sabe escrever nem tem profissão, fica em casa o dia inteiro. Daí que
ganhou a tarefa de ficar bisbilhotando a vida do rapaz…
bola para ele e entrou numa de paquerá-la, puxar assunto, você sabe…
Ela não fala francês, ele não fala árabe, então ficaram numa troca
levar o cara para visitar os parentes em Sidi Bel Abbès, enfim, integrar o
rapaz, familiarizar-se com ele, pois assim o cara, virando amigo, vai
A conversa com Esmail não foi tão fácil. O primo não gostou da
— Mas como é que vou lá, sem mais nem menos, bater na porta de
vai serenar e entrar nos eixos. Vocês ficam amigos, sabe como é?
— Como é que é?
No dia seguinte, Esmail bateu na porta do 602. Teve que bater duas
vezes até ouvir passos que se dirigiam para atender. Com a porta
mulher, Najla.
— Pois não…?
— Eu me chamo Esmail.
— Aqui?
história…
— E por que veio estudar história tão longe do Brasil?
lábios — bem…
Argel vem jogar com o nosso Moloudia, aqui em Orã. Como brasileiro,
rápido.
parecendo cada vez mais forte. O que restava para eles? Procurar discos
voadores no céu?
levado para Orã. Ele só tinha três semanas na cidade argelina quando
Roma. Hoje você retorna comigo a Argel e amanhã mesmo voa para a
capital italiana.
na Argélia.
Era mais do que certo que Lagos tinha razão, mas o fato é que
irônicos, que parecia saber muito mais de Gabriel do que Gabriel sabia
dele. Chamava-se Naim, nunca antes tinha ouvido aquele nome, o cara
viver falando a língua dos sinais com a vizinha que vivia trancada em
casa, e com o marido dela, entrão que só ele, e Gabriel diria mesmo
“Tem paciência”, disse Gabriel para si mesmo, “assim não dá, daqui
argelinos.”
documentação etc. Tocha ficou em Paris, Abel fora para Roma, onde
O encontro com Abel e sua mulher, Larissa, foi uma das melhores
parecia mesmo boa: muitas prisões, arrefecimento geral das lutas contra
tempos difíceis.
refletia haviam lidado com as terríveis crises e guerras dos anos 1930,
indagou:
tristonho, por saber que Sol e Gabriel viviam um intenso namoro quando
ocorrera sua prisão. — Tive notícias de que ela está agora na Bahia, uma
pessoal.
conhecia, iria ouvi-lo mais tarde, sem dúvida. No dia seguinte, porém,
Julgou que ela fosse, talvez, uma maluca qualquer. Trancafiou-a e foi
do que tinha nas mãos. Depois de três dias, no entanto, intrigado pelo
Uma tristeza profunda, mas sem uma lágrima sequer. Embarcou dali a
exílio londrino. Perdeu a conta das vezes em que pôs o disco para rodar.
explicação. Por que ela mandara o disco e não uma carta, um bilhete que
fosse? Bem, o disco era uma forma de mensagem. Sol não era muito de
que qualquer carta ou bilhete poderiam transmitir. Isto seria tudo? Tinha
sua lógica, mas algo parecia escapar, obscuro. Poderia haver algo mais?
rosto.
A cadeira
que se abatera sobre eles não tinha paralelo com nenhuma outra jamais
difícil de descrever.
anos e não ventava há décadas. O nome do lugar era Bir Kadem, e eles
eram três morando numa casa baixa, sem varanda, uma sala e dois
clandestinidade podia ser aquela, mais furada que um queijo das Minas
improvável garçom que sabia falar francês melhor do que ele… Quando
ele poderia esperar que um garçom corrigisse o seu francês, esta língua
curioso de não sei quantos policiais, filmado e fotografado por não sei
quantas câmeras? Isso sem contar os árabes lá em Orã, que lhe davam a
nítida impressão de que ele vivia num show de Truman, o tempo todo
um Godot que não aparecia, por uma diretriz que não vinha, talvez não
viesse nunca mais, e eles lá, tolhidos, bestando, sem poder dar um pulo
que fosse em Argel, para tomar um trago, ver um filme, observar as
pessoas na rua.
centro da cidade, está assim de gente que não pode e não deve ver vocês
que era mesmo muita gente. — É preciso ter paciência. Não se dizia que
Mas ainda não está completa a lista das agruras que viviam — havia
para cima, de cabeça para baixo. Era lentilha dia sim e dia também. Não
era que Gabriel não gostasse de lentilha, era até um de seus pratos
Bem, eles liam. Havia ali algumas dezenas de livros de Marx, Lênin,
volumes eram indigestos a não mais poder. Mas Gabriel foi em frente, a
Descobrindo uma árvore frondosa nas cercanias, ele ia para lá, punha-se
vezes, entrecortado por certa angústia: o que tinha aquela leitura a ver
dificuldades de todo tipo que se colocavam para aqueles que, como ele e
seus amigos, mirrados Davis, pretendiam enfrentar o Golias do grande
das cadeiras, livros postos na mesa, caneta e lápis nos dedos, ficava ali,
Marta segurava pior o rojão. Também era uma leitora voraz, mas
meio kafkiana, que era o pão deles de cada dia. Agoniada, às vezes
Um dia, ela teve uma ideia. Lançou-a num daqueles tristes almoços
regados a lentilha:
Marta insistiu:
sim, algum dinheiro. Sei bem porque sou eu quem tem cuidado do nosso
dinheiro, isso que você chama com pompa de nossas finanças. Gastamos
tão pouco com estes manjares de lentilha que acaba nos sobrando alguns
absurdo. Era só o que faltava, nas condições em que estamos, sair por aí
comprando cadeiras.
uma. Confortável. Tem tudo a ver com a nossa situação. Passamos o dia
inteiro lendo. Vamos ter um lugar confortável para sentar a bunda.
— Eu…?
comprar e pronto.
contrariar Marta. Além disso, via com bons olhos, afinal, a ideia de ter
Marta se rejubilou:
e ali, quem tem boca vai a Roma. Uma boa hora e meia mais tarde,
cadeira de madeira, espaldar alto, braços largos, onde dava para colocar
foram eles pelo caminho de volta. Quase duas horas depois, entraram em
disparou:
— Deixa eu experimentar!
— Viu? Eu não disse que seria bom termos uma cadeira confortável?
segredo, combinaram:
assalto.
aos solavancos, sem tirar a bunda do assento. Comeu devagar, como era
“As coisas não estavam dando certo, nossos planos iam por água abaixo.
que saiu primeiro, estar no Brasil há tempos, ou era pelo menos para ele
estava ficando difícil, e ele ali, mofando. Até mesmo o pessoal que
formado por camas baixas de madeira, uma mesa na sala com quatro
dar notícias, pois as novidades eram quase sempre escassas; não raro,
nulas.
Corria o mês de agosto, o verão ia alto, o calor, muito seco, podia ser
seco. Custou um pouco a perceber que o som era produzido pelo bater
Abarcou-os com seu olhar de forasteira, mas levou pouco tempo para se
dar conta de que todos, ou quase todos, dirigiam olhares fixos para ela.
sentimento que Marta levou um tempo para decifrar, pois não estava
e lascívia.
recuar, incrédula.
— Foraaaaa!
— Francesa de merda!
— Foraaaaa!
— Então é isso, não posso nem passear por aí — disse ela, ao chegar
me sentir cercada.
antes da sua chegada, eu estava passeando aqui perto com Maria Júlia, a
mulher do Lagos. Ela tinha vindo trazer não sei o quê, e, enquanto
Lagos conversava com Ivan, saí com ela para comprar alguns
mantimentos para a boia do dia a dia. Como você sabe, ela é morena,
na rua; a velha nos atacando, nós tentando nos livrar dela. Começou a
juntar gente, tivemos que apressar o passo para cair fora antes que se
formasse uma multidão pronta para vingar a honra ofendida do povo
argelino.
Ivan ponderou:
— Não vai ter jeito, teremos de fazer como o Gabriel fez com as
cebolas…
comigo…
— …?
por semana em Orã. Quando ele não podia vir, era eu que ia a Argel, e
faz com as maçãs. A partir da terceira cebola, você não sente mais o
Marta exclamou:
— Agora estou entendendo por que sinto cheiro de cebola a dez
metros de você…
— Assim terá que ser, Marta, este é o cenário da nossa vida daqui
os homens têm aqui. Rodrigo dizia que era pura veadagem, pouca
Ivan, hein?
mesma coisa num sentido inverso: no news, good news. Quando não
destruição total, não quero dizer que a situação seja boa. Ao contrário,
acho que tudo deve estar ruim, bem ruim. Para ficarmos há tanto tempo
sem nenhum tipo de orientação, é claro que a situação deve ser das
sobre o que ainda iria acontecer. Agora já eram seis morando nos
para eles?
— Algo especial deve ter acontecido. Espero não ter sido uma
Mas Lagos tinha vindo com uma boa novidade, coisa rara naqueles
tempos bicudos:
— Recebi notícias de Paris: Freitas está a caminho. Chegará amanhã
a Argel e me pediu para chamar vocês todos para uma reunião à tarde.
Estou de partida para Orã, vou buscar o Rodrigo e a Ludmila, ele quer
retorno ao Brasil.
baixo e ter prudência. O lugar estava para ser alugado, mas poderiam
receberem propostas que, com certeza, iriam mudar suas vidas. Todos
quinta-feira.
James Bond, com que adentrou o recinto. Abraçou cada uma e cada um
digressão que durou algo em torno de duas horas. Ele discorria bem, um
discurso articulado, mas não era assim tão fácil guiar-se naquele
dava para agarrar e dizer: isto aqui é sólido. Não, era tudo assim meio
fluido. A coisa toda derivava, rolava. Dizer que não ficava em pé talvez
fosse um exagero, podia parecer uma crítica negativa, mas dava uma
se abriam. Quem iria para qual lugar, para fazer o quê etc. Me deu uma
pensamento para longe, não era razoável pensar assim. Afinal, Freitas
era o companheiro da direção, não estava ali para nos enganar. Mas a
— Para ser mais preciso, sete forças, vocês seis mais eu…
deboche:
Marta interveio:
— Quanto a mim, sinto muito, sou mais uma fraqueza do que uma
força.
como uma epidemia. Sem querer, estavam todos rindo. Rindo muito,
não param mais, vão aumentando, indo e voltando, como se todo mundo
velas ao vento.
Os mistérios de Severino Lagos
Nunca se soube direito quem era Severino Lagos. Quando Gabriel topou
com ele na Argélia, nos começos dos anos 1970, que, afinal, seriam os
mais longos de sua vida, ficou tão surpreso como quando o conheceu,
Lagos devia ter seus trinta anos, era baixinho, magro, com secura e
samba, fica; quem não samba, vai embora.” Começaria então a luta
decisiva.
de Trabalho Armado, a FTA. Houve uma certa dúvida: não seria melhor
tratava-se de um artesão das artes gráficas… Até seria melhor, sim, mas,
nacional punham para quebrar. “Quem sabe faz a hora, não espera
acontecer.”
Continuar fazendo ações não seria uma fuga para a frente? Recuar? Com
que perspectivas?
daria satisfações de seu sumiço, nem nada lhe foi indagado. Era preciso
total confiança de todos, mas Gabriel sentia que a recíproca não era
desvencilhar-se dela logo depois. Seu melhor escudo, para o que desse e
As condições objetivas…
— Vocês não têm nenhuma chance, cara, só não vê quem não quer.
notícias. Quando veio o golpe que derrubou Allende, uma nova derrota,
* * *
vez mais puído. Lagos olhou-o com olhos distantes, voltados para algum
pediu para ver o que era. Mostrou: os Escritos militares de Mao Tsé-
ler Mao com atenção.” O eLivros sorriu sem graça, insistiu no convite
tão grande.
fotos minhas que pareciam realmente ter sido tiradas em anos diversos.
tem que ter um, uma identidade fiscal, mais uma peça na engrenagem de
o cemitério.
fora tão calmo como naquela noite estrelada. Eu já não estava tão
curso das coisas. Ressoava forte nos meus ouvidos o velho refrão de
1968: fazer a hora, não esperar acontecer. Bonito na canção… mais fácil
bar, pedi um cálice de vinho tinto e fiz um brinde à vida, a minha mãe e
a meu pai, que bem gostariam de estar ali. Só no outro dia, consultando
o mapa, é que percebi que estava em outra avenida, que dava também
para o Arco do Triunfo, mas que tinha outro nome, bem menos atraente:
localizar.
valorizado como deveria ser. Para a maioria de nós, fazer revolução era
carta para o Abel em Roma. Em cada página, inspirado por um velho tio
problema não era tão grave assim. Esperamos umas duas horas, sem
construíam meios para retornar aos respectivos países e, nas horas vagas,
até que o sol desse adeus à cidade. Saí, então, com as golas do casaco
pardos. Só não sabia que meu hotel era vizinho do Café Haiti, um dos
— Gabriellllllll!
Não dava para não olhar e fingir que não era comigo. Mesmo porque,
no instante seguinte, eu era abraçado pela frente, pelos lados e por trás.
Eram três camaradas, libertados, como eu, em troca do embaixador
alemão.
estou clandestino…
tinha ido para o ralo. E dessa vez eu nem podia culpar os cubanos.
A volta ao Brasil
que era prioritário agilizar o retorno. Era mais fácil, porém, pensar nele
do que concretizá-lo.
paraguaios seriam úteis, em tese, mas não era fácil encontrar uma
organização.
Comecei a ter minhas dúvidas sobre o Zé desde o dia em que me
Nunca ficou muito claro para mim que mensagens ela desejava
mandar com aqueles olhares, nem eu tinha intimidade com ela para
Zé, é um bom sujeito, mas está variando.” Só que falar, mesmo, ela não
certeza.
pouco mais tarde, a tarefa de cuidar dos caminhos da volta dos nossos
Zé do Curvelo sentenciava:
para o Brasil.
— A ideia é comprá-lo…
— Não acha que é muito alto para uma organização pequena como a
nossa?
— As línguas têm uma base comum, seu Zé, mas os falares são
muito diferentes…
tudo desenhado e calculado e você diz que isso não passa de um sonho?
Zé não se conformava:
— Sem dúvida, seu Zé, sem dúvida. No próximo ponto, trago uma
resposta.
mistura de lotação brasileira dos anos 1950 com uma kombi dos anos
cooperativa?
pagar vocês.
— Pode ser que sim, pode ser que não. Adquirir um ofício, porém,
não nos fará mal, poderá fazer até bem, em caso de necessidade.
descanso.
Jorge era um cara magro, de olhos castanhos, rosto liso, sem barba,
no Jorge. Se ele nos trouxera, estava tudo bem, bola para a frente, eles se
madeira.
competia a nós levar essa consciência aos operários. De fora para dentro.
— Não me lembro.
— Se você não se lembra, esqueça de uma vez. Deve ter sido alguém
operária. Por eles dedicara e arriscara a vida, fora preso e passara maus
série:
consultada, respondeu:
— Um elefante! O Dumbo!
vermelha, que serviria para coser o bichão. “Foi minha a ideia da linha
com a tesoura, uniu as duas partes com agulha e linha vermelha — “Foi
fechar com agulha e linha, estava pronto o meu elefante. Fiquei com a
leve impressão de que não tinha feito rigorosamente nada, mas minha
Fez mesmo, dona Nair me deu dez. É verdade que todos os outros
também ganharam dez, mas, quer saber, foi minha primeira experiência
de trabalho manual.
não era lá muito largo, mas, aos meus olhos, surgiu como se tivesse
perna do Rodrigo.
perna.
observador participante.
o ruim ali era eu. Enquanto meu irmão se virava até que bem, pois já
cooperativa. Afinal, deixei de ir, tomado por outras relevantes tarefas que
democracia.
violência…?
leis…
socialismo?
inquietações:
— Estou seguro de que não haverá guerra civil, vira essa boca para
no pasa nada.
Esta era de fato uma expressão que você ouvia de muitos chilenos, e
ou “apenas”:
puder.
disso, não era nada fácil definir em que direção se faria a reconstrução,
nem em que bases ela seria feita. Questões difíceis, delicadas, sobretudo
políticas mais sólidas, mas não a confiança mútua. Ela era mais do que
descobrimos, uns mais cedo, outros mais tarde, que, sorrateira como um
encontro com Freitas? É provável que não tenha aparecido para todos no
mesmo momento. E não com a mesma intensidade para cada um. Mas é
triunfante.
rumos da revolução.
Era uma visão messiânica, apresentando como nova uma velha teoria
tinha uma conotação mais erótica do que política. Penetrar era foder.
Ora, foder não era propriamente um problema para nós, mas a proposta
levados pelo vento forte de uma derrota cujos limites e sentidos ainda
Completei, desanimado:
assim por alguns. Agora, pensa bem, a nossa reunião de cacos vai
parecer o quê?
estava entrevendo.
Filhos do exílio
telefone. Ela ressoou alta e com um eco incomum. No dia anterior, sob
— Alô?!
Gabriel:
— Nasceu Tatiana!
Helena não sabia o que dizer, nem com qual sensação atinava. Era a
limitou a murmurar:
— Viva!
mão:
— Nasceu Tatiana!
— Boa sorte, boa sorte, que viva ela! Que viva a vida!
— Nasceu Tatiana!
nosso apoio!
jornalista espanhol:
com altos e baixos, às vezes mais baixos do que altos. É preciso que
indefinida?
— Tento achar que sim, mas vou sentindo que não. Pelas notícias
governo.
naturalizando-se.
com Nina, sua mãe, pela primeira vez numa praça, em Santiago.
— Viu essa, Nina, Dora também vai ter filho. Se for homem, vai ser
Ernesto…
— …
— Você não vai ficar sozinho nesta… Também eu vou virar pai!
de uma guerra civil que a muitos parecia inevitável, passando por cima
Francisco, tantas outras e outros que foram chegando quase sem pedir
pude deixar de recordar uma conversa que eu, ainda menino, tivera com
um velho tio.
filho nele.
consolei-me, se eles não tivessem sido quatro vezes egoístas, eu, que fui
meio cabreiro:
vai ver. Foi o próprio cara que indicou, ele conhece a cidade melhor do
que nós.
De fato, a esquina não podia ser mais sossegada. Uma vez feitas as
braço, me levou para uma bodega ali do lado, onde foi possível comer
um preço camarada.
Ele era bem mais velho do que a nossa média, nem alto nem baixo,
coisa meio paternal, que se acentuava com um hábito que ele tinha de
perceber:
você ao ateliê que montei. Você verá que tenho as melhores condições
João indagou:
Nina comentou:
recomenda…
No rosto de todos pintou uma certa decepção. Para quem nunca tinha
acho que não teremos perna para chegar lá. Em todo caso, lá ficou o
JAMAIS!
uma noite sem lua, retornando meio embriagado para casa, ele foi
abordado por dois assaltantes, facas nas mãos. Intimado a entregar seus
ininteligível:
— Sou um TERRORISTA!
Poeta não queria apenas ajudar, mas também participar, e não apenas
nossos.
Era com surpresa e desalento, como quase todos nós, que ele tomava
linhas de coesão que pareciam tão fortes iam se desfazendo sob o peso
tantos anos.
confiança fora abalada para sempre. Não parecia mais seguro de nada e
de fora:
— Admiro a perseverança de vocês, mas, às vezes, me pergunto se…
Eu cobrava:
dos projetos que vínhamos discutindo. E andava para cima e para baixo
Até que um dia não vi mais o Poeta. Mandou dizer que gostava da
gente e que sentia muito, mas estava fora. Para honrar o apelido, pouco
tempo antes do golpe que arrasou de vez nossas esperanças, ele nos
(nem na água)
por nenhum.
meses e quase não dava trabalho à noite. Quando emitia algum sinal de
branco, único luxo que nos fora possível para tranquilizar os seus
seguida.
criara para ajudar os eLivross no Chile, e que estava sob o fogo das
prolongar, ainda havia um ponto com Ivan para discutir sobre nossas
A batalha diária para subir nas liebres, sempre abarrotadas, não foi
Levantei a cabeça:
comentários, ditos em voz baixa, não ouvi bem, mas o tom era meio
Olhamos ao redor.
E vimos.
emboscada. Logo nos chamou a atenção que usavam, por baixo dos
— Será o golpe?
— Esquema de emergência.
depois.
receber vocês.
cômodos, dois quartos e uma saleta, com duas janelas dando para a rua
nos pentes. Nina e eu íamos para a cama vestidos, prontos para escapar a
saber como nos safaríamos daquela situação sem saída. Quanto a mim,
— Bem, aqui não estamos preocupados, pois vocês são gente boa,
E foi assim que nos foi dado assistir à derrota catastrófica, histórica,
Nina fingiu que não era com ela. Havia alguns dias que andávamos
como acreditar?
corvos agourentos.
pelas ruas. Estava justamente parada num sinal, aguardando que a luz
Bem, agora não dava mais para ignorar. Voltou-se. Era Jean Marc.
seguido ambos direto para Santiago, havia pouco mais de dois anos.
Autocontrolado e calmo, como se estivesse num passeio rotineiro, Jean
sabemos. E o pior é que eles ainda têm um ponto para daqui a vinte dias,
Gabriel e Manuel…
seguros.
— E você?
me protege…
matando todo mundo pelas ruas, nem pedem documentos, atiram sem
nem perguntar. Você acha que esse papel suíço vai te proteger da sanha
desses caras?
vale muito, pode crer. Em todo caso, é melhor do que nada, mas isso não
isso é sério?
— Pelo que ouvi dizer, sim, tem funcionado. Você não imagina o
esse refúgio.
— Tenho dúvidas. Acho que não teriam peito para invadir o refúgio
servem, estão lotadas e muito bem vigiadas, nem pensar em ir para lá…
mesma hora, bem na esquina em que nos vimos hoje por acaso. Até lá,
e para meu irmão. Por saber que os companheiros estavam sãos e salvos
no bairro da Providência, mas juntou tanta gente lá dentro que, não sei
como, ela foi transferida para um casarão na rua Irarrázaval, uma rua
grade…
jaqueta:
uma no carrinho, outra puxada pela mão. Vocês não podem vacilar na
longe. Se tudo correr bem, encontro com o Manuel e eles entram como
pulo em nossa casa e prevenimos a mãe de Nina de que ela deveria ter as
Comemos qualquer coisa de almoço, nem dava para ter fome naquelas
Aquelas duas horas e meia duraram uma eternidade, mas, como fora
fez o que fez por imprudência, não era seu estilo. Nem por amizade, pois
ajudar. E foi decisiva a sua ajuda. Brecht pode ter tido razão ao dizer que
é pobre um país que precisa de heróis. Mas o fato é que muitas vidas
Foi um herói.
Adiós, América
conduto para sair do Chile, eu passava, creio que todos passavam, por
lentos, como água entre os dedos, devagar e sempre. Uma tarde sem sol,
— Tchê, não nos resta muita coisa, senão acreditar. Há uma tradição
elite…
ditadura chilena, sem dúvida, não gosta da gente, preferia nos ver no
ainda exista quem seja capaz de narrar aquela saga, para que a memória
por Lagos em Argel. Ela provava por A + B que meu nome era João
era João e não Gabriel. Toquei de leve o braço de Nina e segredei para
ali, com aquele enorme pepino nas mãos. Deu vontade de mastigar e
pedaços. Sorte nossa foi que a estrada era longa, e os ônibus, muito
aliviado, mas triste por ter perdido aquela preciosa documentação que
chilena, não estavam, era evidente, com nenhuma pressa de se ver livres
certo, tinha que dar certo. Mas não aconteceu nada de positivo. Foi
como uma descida ladeira abaixo num carro sem freio e sobre o qual
pena apostar.
com esta gente nas ruas? Além disso — comentei —, acho que a gente
filhos, Ángel e Isabel, Víctor Jara, entre tantos outros, mostravam uma
face até então invisível para nós, a das nações indígenas da América do
E nós ali tão perto e tão longe, de costas para eles e eles de costas para
nós, ambos mirando os oceanos, sem perceber que, agindo assim, não
novo. A gente fazia força para não reconhecer o óbvio, mas ele se
pela imensa maioria dos chilenos, mas como quase certa por todos nós,
desforra ou a uma nova derrota, mas que nos fosse dada ao menos a
Pelos meus ouvidos, entrou o choro das crianças, que soava agora
— Adiós, América.
A pensão das lâmpadas coloridas
forte do país, que nos recebeu com fidalguia, fomos logo avisados de que
queriam mesmo era nos ajudar a sair do país. Para isso concederiam
passagens aéreas, de ida… Para onde quer que fosse, para onde
permitisse uma viagem internacional. Era uma folha solta, com uma
perguntou:
— ¿Cómo dices?
documento.
Insisti:
— Temos confiança entre nós, mas não sei como vai reagir, digamos,
ouviu-se um grito:
aquele título de viagem? Alguém me indicou uma loja ali perto, onde
fechou a porta, fez cara fechada e não quis atender mais ninguém. Daí a
dias desapareceu, como que por encanto. Mas eu e meu irmão, Nina e
francesa, tivemos uma boa notícia: o Tocha chegaria dali a dois dias ao
braços, gritei:
— Toooochaaaa!!!!
interior.
gentil. Quanto a nós, meu velho, você sabe tanto quanto eu, continuamos
a viver no improviso.
de lá, seria mais fácil obter informação sobre o Brasil. Além disso,
discutiremos sobre isso mais tarde. Em todo caso, também trago algum
Interessado, perguntei:
Fez um ar solene:
exclamou:
— Como é que é?
percebido.
Sob a ponte Mirabeau
— Cuba é uma ilha, ou seja, como tal está cercada de água por todos
O que pesava de fato para mim era voltar a ficar sob controle e à
Joana, ela se responsabilizava por nós. Mas o fato é que não estava lá, ao
vivo e a cores. Fizemos valer que nosso objetivo era alcançar a Bélgica,
olhava para nós, mais uma coçada, mais uma olhada. Empacamos. Este
advertiu:
a mão:
corpo. O policial correu atrás, mas suas tentativas não deram certo.
como era, podia passar a vida inteira correndo atrás, mas nunca o
Esgoelou-se o policial:
ofereceu-se para nos hospedar o tempo que fosse necessário. Não nos
fundamentais para quem vinha dos trópicos para o frio europeu. Fomos
agradecer?
tudo, apesar das cores vivas dos pubs e dos vermelhos e típicos ônibus
de dois andares. Ainda por cima, tínhamos de aturar uma chuva fininha
que não parava de cair, combinada com o famoso fog, que, às vezes,
guiados pelas redes de apoio que surgiam de todo lado, e passando por
ou de família.
Dois ou três dias depois, afinal, chegou a boa notícia: saíra o visto
residentes em Paris?
Nossa conselheira numa organização parisiense de assistência pediu
nos daria uma posição em breve. No aguardo, saí pelas ruas de Paris
Mirabeau”. Os versos que ela nos mandava decorar vieram fáceis, como
Et nos amours
mesmo:
3 “Sob a ponte Mirabeau corre o Sena / E nossos amores / É preciso que eu me lembre: / A
alegria vem sempre depois da tristeza // Vem a noite, soa a hora / Os dias se vão, eu permaneço.”
Babá de crianças
como uma nova etapa da vida. Não seria fácil para ninguém.
concretamente do PCB?
Gabriel retrucava:
— Ok, irei, mais por você do que por alimentar qualquer tipo de
expectativa…
de tudo que foi feito até agora. Não se trata de apontar casos particulares
coisa: o que queremos de fato? E, para além de nossa vontade, para onde
estamos indo?
disso.
outro ainda tentou levantar a peteca, mas não houve jeito, a reunião
Ora, ela pode ter dúvidas quanto a ela mesma, mas eu — ele aí se
inércia. Alguns meses depois, porém, sem que a classe operária se desse
conta, extinguiu-se por inação criativa. Para além das opções políticas, a
Ivan filosofava:
precisando?
para casa, servir um lanchinho e esperar o casal chegar, por volta das
os pais chegarem.
— Será que isto seria razoável para você? Você está se formando, já
tudo bem? Abriu uma pequena cômoda na sala e pude ver uma bela
Eles estavam mesmo constrangidos, mas, graças aos céus, fui aceito.
mais velho. Ele gostava de lhes dar cascudos e puxar suas orelhas, e eu
comigo:
— Você é minha empregada. Se não fizer o que quero, vou falar com
meus pais.
Eu mantinha a calma:
— Você pode dizer e fazer o que quiser, mas não encosta a mão nas
tuas irmãs.
depois do almoço, num acesso de mau humor, Louis avançou com tudo
para cima das meninas. Foi preciso muito agarra-agarra. Para acalmar o
um para cada lado, emburrados. Mais alguns dias e atrasaram tanto que
tinha dado o pé e não voltaria mais. Foi um custo botá-lo na cama, pois
pregara uma peça. E uma lição de vida. Mas eu ainda levaria alguns
anos para perceber que aquele trânsito iria me ajudar a sair da poesia
Ela era um doce de pessoa, desde pequena, não havia quem não se
mãe ralhava:
vizinho:
— Lena, estes livros são meus, você não tem direito de dar o que não
é seu.
— Dou.
Uma criatura firme, não era boba, não, tinha opinião sobre tudo e
para tirá-la de uma posição qualquer. Fez-se uma moça morena, cabelos
fila para namorá-la, mas ela não era de dar mole para qualquer um, não
Um dia perguntei:
— E aí, Lena, o cara tá dando em cima de você, você não está vendo
acima de tudo…
— Acima de tudo?
namorava todas, mas não teve sucesso com Lena, não. Na verdade, nem
sei dizer se tentou, mas sei que ela não gostava dos caras galinhas que
dizer que o Perroni era galinha, mas ele andava sempre pulando de galho
em galho, muito inconstante para uma mulher como Lena. Aí, pode
mulherão. Mas muito na dela, sem ser fanfarrona, nunca foi metida a
besta, simples, beleza sem pintura, sem batom nem ruge, na época estava
gostasse, quem não quisesse, foda-se, Lena não estava nem aí.
Foi uma surpresa para mim ver o nome dela no jornal. Mais que
cercado pela polícia. Lena metida com a polícia, eu nem podia acreditar!
na prisão. Estava lá como sempre foi, doce e calma, com aquele sorriso
meigo que só ela sabia ter. Como se estivesse em casa. Normal. Nós
falaram que tinham feito uma ação revolucionária, mas, aqui entre nós,
foi sequestro mesmo, né? Em todo caso, Lena estava na lista dos que
mais a vi.
Era uma noite quente e abafada de janeiro de 1971 quando Maria
— É que…
— Mas o quê?
estranho, estrangeiro.
Não levou muito tempo para Lena se deixar envolver pela atmosfera
daquilo, era muita promessa sendo feita, algo haveria de ser cumprido.
— E aí, Lena?
— É o travo…
Leila inquiriu:
concluo o curso de medicina, penso que vou poder dar uma boa
tudo e por tudo diferente do tipo de homem que ela imaginava que iria
mudam assim não, de repente, é tudo muito mais complicado que isso.
Ele falava de autores que ela nunca lera até então: Foucault e Lacan
eram seus preferidos. E Thomas Mann, por quem ela logo se apaixonou.
se. Boaventura gostava de foder, fodia muito bem, e Lena teve orgasmos
chegada a Berlim, o tal travo reaparecera. Assim, sem mais nem menos,
ponto que ninguém conseguia ver. Quando percebia que algo não ia
com aquilo de uma vez, e ela era boa de resolução. Acordou naquela
sempre, tinham dado uma boa trepada na noite anterior. Ela o observou
dormindo. Ele era um cara muito legal, mas ela estava de fato resolvida.
ao seu futuro ofício de médica? Difícil dizer, mas ela foi toda de branco,
das botas a um bom casaco com gola de lã, comprado num brechó na
cheio o corpo de Lena, que se espatifou nos trilhos. Ela nem ouviu a
frente:
Posso imaginar que as pessoas estranhem, mas nunca me senti tão bem
Futebol ao ar livre, nem pensar. Não sei se por causa disso, mas sempre
Eu não gostava, e não ia. Podia ser fraco, mas tinha personalidade,
sabia o que queria e não era me esfalfar correndo atrás de uma bola.
na rua, me assustei:
Ela me puxou pelo braço, mas eu virei a cabeça para trás, aquilo me
chamou a atenção. Mas não fiquei com raiva dela, não, acho; acho, não,
tenho certeza, ela queria me proteger. Minha mãe sempre foi assim, só
pai se mandou muito cedo, ela me disse que eu nem tinha dois anos,
nem lembro dele, só do nome, minha mãe me disse um dia: Dick. Seria
um apelido? Não sei, nunca soube. Ela também nunca mais falou nele
ressentimentos?
Um dia, a Marta falou que ela era superprotetora, que aquilo podia
convenci. Só porque ela me fez dormir com ela até os catorze anos?
Tudo bem, acho que aí ela exagerou um pouco, sim, mas todo mundo
não tem seus exageros? A intenção dela era boa, me proteger, me dar
Quem era o autor? Ah, sim, Leo Huberman. Era um pouco simplista,
não se comunica?
Ela riu, achou que tinha feito uma boa piada. Não achei graça e fui
em frente. Mais tarde, quando a barra pesou, ela foi ser jornalista e não
bronca? Não, eu não era de meter bronca, queria mais era apoiar, mas
achava que eles tinham razão, aquela ditadura tinha mesmo que ser
derrubada pela força, das armas, se fosse o caso. Daí ter pedido ao
Ronaldo para ingressar na organização; ele, sim, era um cara legal, gente
fina, que gostava de conversar, não se impunha nem impunha suas ideias
fui, mas a Dissidência, a DI, a Dirce, como a gente dizia entre nós, pô,
aquilo foi uma aventura. Não deu certo, demos com os burros n’água,
medo. Pavor. É isso, pavor, fiquei apavorado. Quando ele deu aquele
pulo para escapar dos homens, pensei que tinha pulado para a morte, ele
pesadelos? Volta e meia tenho um. Brabos. Nem vale a pena contar.
Minha mãe vinha me visitar na cadeia, todo domingo estava lá, com
para Santiago, sabia que as pessoas estavam se juntando por lá, então fui
mãe veio comigo, mas logo depois teve que retornar. Mandava um
dólares e dava para ir tocando sem maiores problemas. Foi no Chile que
Respondi, alegre:
— Como assim?
vida.
o jeito dela, sempre foi assim, ia dormir comigo, não era de maldade,
não, eu morava num quarto e só tinha uma cama, onde minha mãe ia
dormir? No chão? Luanda não gostou, achou esquisito, ninguém me
falava nada, mas, se eu sou tímido, não sou estúpido, sacava pelos
estivesse ali, poderia conversar com ele, ele era compreensivo, não
com um olhar doce. De vez em quando, um sorriso irônico, mas não era
Ronaldo, mas… de que adianta invocar o nome dele? Já não está mais
conosco há muito tempo. Como dizia o outro, não adianta chorar sobre o
leite derramado. Acho que minha mãe teve ciúme de Luanda. Ou foi
Luanda que teve ciúme dela? O fato é que, por um motivo ou por outro,
Acabou. Quando minha mãe voltou para o Brasil, já não foi possível
se ele tinha razão, passei a usar os tais óculos escuros, mas a luz do sol
gostar mesmo era do escuro. Escuro espesso, denso. Foi disso que
comecei a gostar.
ONU, corri para lá, sem querer saber se era ou não perigoso. Tipo
náufrago quando vê uma tábua boiando por perto. Agarra e pronto, não
quer saber de outra coisa. Fui bem recebido no abrigo. Fiquei ali uns
dois meses. Mas, antes de sair de lá, recomeçou a alergia à luz, cada vez
mais violenta.
Muito longe, e muito frio. Mas recebi um recado positivo de minha mãe.
Era, sim, uma boa saída. Tinha boas condições de segurança. Um dos
franco, eu diria que fui mais levado do que fui por vontade própria.
Agora estou aqui há quase um ano. Parece que o exílio vai durar.
Minha mãe veio logo do Brasil e, como sempre, me ajudou. Ganhei uma
boa casa, ela dorme num quarto, eu no outro. Aqui é um país bom,
inverno longo, sol escasso, claridade mínima, acho que, para mim, é o
melhor lugar que poderia existir. Fico o dia inteiro no quarto, ouço
música, leio um livro ou outro, mas gosto mesmo é quando tudo fica
escuro. Tipo breu. Aquele escuro que você nem enxerga o próprio dedo
diante do nariz. Não enxerga nada. Assim vou vivendo. Assim é que me
sinto bem. Não me encham o saco, não me façam discursos, não preciso
— Chegou a carta!
Maputo, Moçambique.
meses, mais por ideia de Nina, tinham resolvido tentar a sorte em outro
Não fora nada fácil retomar a universidade. Primeiro, logo depois que
francês bem precário dos dois foi deixado de lado. Também foram
era complicado ficar com eles e preparar os trabalhos dos vários cursos.
passou a dar uma mão preciosa com as crianças. Além disso, eles se
cangote. Não foi mole. O horizonte que se abria a partir daí era o
doutorado. Ou…
Nina argumentava:
própria sobrevivência…
como teoricistas.
Gabriel indagou:
— Vejo duas saídas para nós: Portugal, onde a Revolução dos Cravos
meses, não ia mesmo bem das pernas, seus limites tornavam-se cada vez
O pai sobressaltou-se:
— Vai começar tudo de novo? Olha que agora vocês têm duas
crianças.
veio mais rápida do que esperavam: Arraes dava força à opção que
abraçaram:
Lisboa. Deu para ver uma pequena sombra de inquietação nos olhos de
Gabriel quando souberam que, ficando longe da França por dois anos,
respondeu.
Brasília — quando chegara lá, em 1960, vira uma cidade feita de barro
Voando em círculos para pousar, ele via da janela uma cidade de médio
— Têm filhos?
— Dois.
não acharam a menor graça. Ele tinha uma vaga ideia do tamanho dos
porta da grande sala de reuniões, quase levei um susto. Era ele mesmo, o
Tocha.
história, não pode virar uma matéria como outra qualquer, com questões
mundo marxista.
Era mais fácil dizer que havia uma ditadura em Moçambique do que
resultados não tinham sido muito promissores, mas não haveria hipótese
camarada Brejnev…?
erguido:
suíços:
— Não sei mais o que fazer, acho que vou embora. Uma coisa é
certa, não vou me submeter, não saí do Brasil censurado para cair nas
Lembrei-me do reitor:
sair dos eixos. Dias depois de começar, ele apareceu lá em casa rindo:
Planejamento.
Adverti:
— E daí? Você precisa ver como ela me olha, é claro que está dando
em cima de mim.
as frentes.
— A desencadear!
fotógrafo?
— Tá feito.
ferramentas que fossem úteis à produção agrícola, uma vez que mais de
80% da população viviam no campo. Foi um sucesso, e o intercâmbio
compromisso.
perguntou:
do sorriso aos seus lábios mostrou que preferira achar graça no episódio.
high spirits, caminhando para casa, ele entrou, sem querer, no perímetro
modos. Foi preso, e a intercessão dos amigos não lhe foi de valia
Amsterdam.
Comentei:
— Quebram o galho…
Aquino embatucou:
— Como é que é?
— É uma expressão nossa, para significar isso mesmo que você está
falando, isto é, quando uma pessoa inventa uma maneira para superar
casa, pois era sempre inquirida, de forma desconfiada, pelos guardas que
mim?
próprio país. Era exatamente esta situação que ele tentava reverter com
para todos ver as latinhas. Sentir o cheiro e o gosto do guaraná era como
coordenar a reunião:
Silêncio. Pigarros.
Aquilo era para valer mesmo? Ela duvidava. Enquanto falava, porém,
Gabriel interveio:
tinha sido uma boa decisão? Funcionaria? A discussão pegou fogo, e foi
mãe:
Por que você, sendo católica, não pensa em ir a Roma, receber a bênção
do papa?
— A gente não viaja, Gabriel. Seu pai visita os filhos, eu vou junto.
passeavam pela cidade, Lúcio ia sempre com uma bolsa, atento às filas,
procurando ver se havia algo à venda para saltar em cima e comprar. Ele
população.
Um dia, levei os dois a uma grande feira que existia na periferia próxima
qualquer momento.
massacre.
negros, como a gente não tem costume de ver no Brasil, salvo na Bahia.
da Frelimo, antirracista radical, mas não creio que isto fora decisivo.
Acho que era uma questão de modo de ser e de viver. Era uma coisa
civilização.
fosse ilegal.
Atalhei:
universidade…
não chega aos pés do que sentimos no Rio de Janeiro, daí que o
— O que é isso?
limitou-se a dizer:
— Pode levar.
entrelugares.
Acabou a ditadura!
— Brasileiro?
— Sim.
— Não tenho…
— Não.
O cara puxou então uma gaveta e de lá tirou um papel com uma lista
direção.
— Exato.
eletricidade no ar.
Vargas e Jango.
para o Brasil. Seria uma primeira visita, e mal dava para imaginar a
capa, viajar com ele só mesmo para países da Europa — nem todos —
seus portadores. Mas agora não tínhamos nem mesmo esse passaporte
mambembe.
próprio país, eu ganhava, sem que pedissem nada em troca, por pura
nacionalidade. Mas ainda faltava algo que não era apenas um detalhe:
crianças.
funcionário:
uma semana. Ele faria tudo para ter uma resposta. Dali a sete dias,
uma semana.
— Eles continuam sem responder. Não dizem que não, mas também
Zappa!
A viagem das crianças foi um sucesso. Era a primeira vez que iam ao
África.
Rio de Janeiro com suas praias incríveis e outras tantas belezas. Ficaram
com suas vontades sempre satisfeitas. Para driblar o calor, houve dia em
que três tias se revezaram abanando Tatiana, para que nada atrapalhasse
Brasil, tão malvado com seus pais, tinha coisas tão bonitas e boas?
Quem sabe alguma coisa não teria acontecido ali que os pais ainda não
sabiam?
dava. Muita coisa, pouco tempo. Era uma turma pequena, de uns quinze
eu, esbaforido, tentando terminar tudo que tinha para dizer, dois deles
cruzaram olhares, acho que trocaram alguma piada sobre o jeito como
eu estava conduzindo a aula, mas não consegui ouvir bem. Sei apenas
riram, e riram tanto que até lágrimas vieram a seus olhos. E eu, atônito,
sente a picada.
E ele respondeu:
agulhas entortei nos braços das pessoas. Entortei, entortei, até que
aprendi.
trabalho. Fui chamado para outros cursos, com alunos funcionários civis
bradava, colérico:
país?
graça. Mas era necessário ganhar alguns cobres para garantir o leite das
pontificava:
quer. Dividir para reinar, a velha máxima das classes dominantes. Elas se
unem, e nós iremos nos dividir? Justo agora, que a ditadura dá os
últimos suspiros?
PTB.
Os debates esquentavam:
do mesmo?
— Você ainda não conversou com o Brizola. Ele está cheio de ideias
Braga.
alternativa irá por água abaixo com essa história de retorno ao PTB.
deles próprios, dirigido por eles e não por políticos que falavam em seu
derrota, mas pelo menos havia sido uma proposta de mudanças radicais,
percebi que alguma coisa, ainda indefinida, me dizia que nunca mais a
Era assim mesmo que ele se chamava, sem o “s” no final: Marquinho.
dura, família “pobre, pobre, pobre, de marré deci”, como dizia a antiga
escolas públicas, até que, vitória dele e da família, entrou numa das
dia, os olhos vermelhos de tanto chorar, por efeito das bombas de gás,
estavam agora secos. Notei que havia neles uma raiva e uma amargura
garantiu que não era difícil segurar o choque elétrico. Era só uma
questão psicológica.
Perguntei, incrédulo:
corrente elétrica e pode vir com tanta força que é capaz de matar a
E completava, sorrindo:
Comentei:
Mas ele dizia isso rindo, pois, de fato, não guardava rancor. E, bem,
promover divergências e rachas. Sem saber para onde ia, ele chegou a
Sem alternativas, não teve outro jeito senão ficar em Portugal, à espera
brincadeira, indaguei:
— Não vejo nada de muito bom, mas acho que vou embarcar no
roupagem.
— Agente da CIA?
Ô
— Ô, Marquinho, você não sacou ainda? O Partidão tem esse
trampa. Fixou os olhos neles. Sentia a Lelê puxando seu braço, mas não
tirava a vista dos caras, imaginando que tinha coisa ali. Os dois
“Eles não vão me pegar de novo”, pensou. “Ah! Isso é que não, não vai
de eLivross em Lisboa:
Passaram-se mais dois dias. A aflição era geral, pois todo mundo gostava
Saiu a anistia!
A rigor, não foi uma surpresa total. Apostando mesmo que ela estava
Ainda assim, era uma baita emoção receber a notícia. Pelo telefone
salazarista.
Quando cheguei, ainda antes das nove horas, já topei com uns cinco
— Saiu a anistia!
— Está aqui, Gabriel, foi aprovada ontem, por uma curta maioria. O
íntegra, mas tem alguns pontos obscuros, que a gente tá aqui quebrando
parágrafo:
pessoal.”
inclusive eu!
parágrafos.
dentro!
— Certo mesmo?
isso?
é, os militares do DOI-Codi.
todos eles.
maravilhoso!
estão contemplados!
Rafael vibrou:
força:
chegar um dia em que todo esse sofrimento de vocês vai ter fim.
passaportes!
— Sério?
— Verdade verdadeiríssima!
Ele não fez por menos. Rindo muito, acho que já meio de porre,
todo mundo queria segurar, esmiuçar, apalpar, ver com os próprios olhos
eLivross de quase dez anos, e pedi para ver a chegada na cabine dos
cabine permite.
morte caso voltasse, infiltrava-se por todo o meu corpo uma emoção
difícil de explicar.
Naquele momento meio inebriante, lembrei-me de uma história
“que seja infinito enquanto dure”. Ele havia feito a leitura com uma voz
junto, “Sonho meu, sonho meu, vai buscar quem mora longe, sonho
espirais, o bichão alado veio calmo, quase silencioso, até que ouvi a voz
decidida do comandante:
— Agora.
logo que foi solto ele rumou para o exílio em Londres. Saindo do Brasil,
abraço”. Tinham lhe dado fúria e tormento, Gil respondera com alegria
mesmo:
você andava pelo grande pátio do aeroporto até a escada que dava acesso
um último adeus aos que tinham ido se despedir. Nas chegadas, a mesma
do mundo, até que, em fins dos anos 1970, começaram a surgir os novos
depois?
Quando saí, a ditadura passou a me chamar de “banido”, uma figura
terem sido obrigados a abrir as portas das cadeias para os que estavam
evidências. Daí que o termo banido pegou de tal maneira que até os
fora mais uma vez renomeado; não era nem banido nem libertado, era
de direito. Partidário da luta contra a ditadura, ele, como meu pai, não
alma à defesa dos presos políticos, entre eles vários amigos e colegas.
Naqueles tempos sem eira nem beira, era preciso coragem e caráter para
pleno direito nas lutas pelas liberdades democráticas. Técio estivera com
meu pai nas horas mais brabas, na escuridão mais densa, quando a
tínhamos ouvido falar com afeto, ele também parte do corajoso grupo de
nem ele saberíamos precisar quando havia sido a última vez. Desde que
Mateus sumira do radar. Nosso pai, nas visitas que me fazia, dava
saberia dizer se chegavam, para que ele viesse se juntar a nós no exílio.
Mas havia ali uma barreira, uma espécie de código de ética que impedia
que estavam presos, no silêncio dos que estavam mortos. Mais tarde, nas
respeito que até hoje não mereceram. Pois Mateus estava lá, surgido do
nada, e, quando me abraçou, pelo inesperado, levei uma fração de
geral e irrestrita!” Ela, na verdade, não fora nem ampla, nem geral, nem
— Está vendo?
agoniada:
— Está vendo?
Que tipo de política? O que fazer naquele Brasil que permanecia como
inescapáveis.
meu pai. Que barra eles tinham segurado! Que rabo de foguete fora
horror pelos dois que haviam sido presos e torturados, o alívio de vê-los
tantos outros como eles enfrentaram deve ser levado em conta. Enquanto
razão de ser, mas a decisão não tinha nada de insana, fora meditada e
repensada. Premeditada.
político.
para assumir sua homossexualidade. Não foi nada fácil nem rápido. As
amorosas. Tocha teve que lidar com essas circunstâncias, sofreu essas
sociais dos anos 1960, passou a se sentir mais livre para exercitar suas
com a censura que ele sabia estar no ar. Aquilo não deixava de me
Respondia, malicioso:
— E no futuro?
sedutora, esplêndida.
— E aí, está gostando novamente de mulher? — perguntei.
ou homem, pra mim não tem a menor importância, ou tem cada vez
menos importância.
Tocha:
Moçambique?
que…
marinheiro num porto, esperando um novo navio, sem saber se ele viria
pouco uma lei de anistia, cujo teor ainda era muito controvertido. Uma
— Você vai ser preso, cara! É óbvio que os homens vão te prender!
uma eventual prisão. É provável mesmo que seja preso. Mas tenho
certeza de que não vão me torturar. Uma vez preso, impetro um habeas
corpus. Duvido que me neguem. Além disso, a anistia vai ser aprovada
Vão ter que deixar os tribunais agirem. E nos tribunais, não duvidem,
Ele debochava:
d’água:
— Não é minha intenção, mas não chega a ser um mau conselho. Vai
depender deles.
recuar.
comentou:
— Pô, a gente está aqui numa luta há anos para sair da cadeia e
favor.
democráticas.
ganhou.
A visita
abraçar, de beijar, e isso era tão bom depois de anos vivendo na Suíça,
nas relações pessoais, que era o que mais incomodava, pois atravessava
pessoas no aeroporto. Parentes que Pedro e Flávia não viam há anos, dos
uma palavra, mal queriam saber onde estavam e o que faziam, mas
amigos do peito.
— Entramos na moda!
— Às vezes acho que isso tudo não tem nada a ver. Pura hipocrisia.
— Quer traduzir?
homens da ditadura.
Entre outras, uma das grandes injustiças daquela anistia manca havia
houvesse jorrado feio nas salas geladas onde comera solta a tortura.
vezes parecia sem fim. Mas como ela aproveitara… Do limão fizera uma
humanas, é verdade, o país era uma merda, mas eles viviam em paz e
recebido os pais duas vezes, os irmãos dela também tinham ido visitar.
Viajaram pela Alemanha, foram até Estocolmo, onde havia uma grande
tirava uma grana como baby-sitter. Nada muito cansativo, dava para
— Lembra do Julinho?
— Claro.
pulso direito.
atrás das grades. Falaram das lutas que tinham travado, dos trabalhos na
controlar, mas não conseguia. Falou do casamento dele com Flávia, das
Sentia, às vezes, uma trava na garganta, aquilo podia não estar sendo
conveniente, mas não conseguia parar. Foi até o fim, bebeu o cálice até a
última gota. Depois, meio desamparado, sem jeito, olhou em torno e
la ou consolá-la, mas não deu, não sabia onde colocar as mãos, ela
dava os últimos soluços quando um dos presos falou, com voz serena e
sofrimentos:
Eu vi um Brasil na tevê
— Macanudo é a mãe!
Todo mundo menos o João Feitosa, que este era o nome dele, nome
claro, lhe fora dado de gozação. E como Feitosa se enfurecia, não deu
outra, o apelido pegou. Pegou tanto que, às vezes, até a mãe o chamava
assim:
— …?
fundo do sertão da Bahia. Devia ter umas duzentas, 250 casinhas, uma
Seu Armindo, o cara mais sabido da cidade, que tinha até alguns
ficar sentado em frente à sua venda, uma das duas ou três que existiam
— Rio das Barreiras está tão longe de tudo… Nem Deus dá as caras
por aqui!
Fazia referência ao padre, que aparecia só uma vez a cada três meses,
— Vira essa boca pra lá, seu Armindo — diziam as freguesas que
Bahia. Sob um sol inclemente durante boa parte do ano, Rio das
apelido sacana:
— Vai, Macanudo!
uma letra bem desenhada e capaz de frases inspiradas, que lhe rendiam
elogios de dona Tereza, professora exigente que tinha prazer em ler para
irmão da mãe. Depois, soube-se que fora para Salvador, sonho de todos
entender:
quer dizer?
Dona Camila ficava até tonta de orgulho. Exibia as poucas cartas que
— Notícias do Macanudo?
* * *
Armindo:
— Estamos procurando uma tal de dona Camila.
— Polícia!
O jipe foi até lá. Os homens bateram na porta. Ao ver dona Camila,
indagaram, bruscos:
senhores?
Um deles ameaçou:
— Não finja que não sabe, minha senhora. Se mentir, vai se dar mal.
gritar:
ninguém nada sabia nem havia ali informação alguma que pudesse ser
valiosa para eles. A noite havia caído quando o jipe foi embora,
atônita, aterrada.
consolá-la:
Ele dizia estar sendo bem tratado, que a mãe não se preocupasse, logo
estaria livre e voltaria para abraçá-la novamente. Espalhou-se a notícia
pela cidade
— Feitosa, um presidiário!
Seu Armindo, um dos poucos que ainda visitava dona Camila, atenuava
a maledicência:
— Dona Camila, não liga para este povo, não. Feche os ouvidos, é
tudo gente que não presta. Um dia o Feitosa volta e a gente ainda vai
— Caramba! Acho que ninguém daqui de Rio das Barreiras foi tão
longe.
Dona Camila não sabia se ficava alegre ou triste. Seu filho estava
— Claro que volta, dona Camila, ora já se viu? Quem parte acaba
— Nunca li isso não, nem sei nada dessa história. Só queria saber se
no vocabulário das gentes. Mas eu diria que o grande agito ficava por
natural da terra que chegara mais longe do que qualquer um deles, uma
Gente, o que eu vou contar, vocês vão achar que é mentira. Mas
notícia de que ele viria de avião. Que avião era aquele? Um teco-teco?
pousou numa estrada vizinha. Dali entrou num tremendo carrão, vindo
Quando o vimos sair do carro, levamos um susto, nem parecia ele, mas
tratava: uma enciclopédia, nem sei o que significa; êta palavra difícil!
brasileiros.
todos os que puderam vir, com direito a garçons e tudo, gente vinda de
— Viva o Macanudo!
herói.
O cu dos machos
— Seu João…?
cu.
Jorge Fragoso, fora buscá-la no aeroporto. Tinha sido recebida com uma
filho caçula do patrão. Ele tivera que viajar para o exterior, João nem
polícia estavam atrás dele. Ah, esse mundo sem porteira! Como é que a
polícia podia estar atrás de um cara tão bom, de boa família e tão jovem
dele, o Bento e o Jair, como iam na escola etc. Bem, o fato é que ele,
João, João das Neves, motorista com muita honra, nunca dera uma
resplandecente, Chevrolet. Era ele que o lavava, três vezes por semana.
nascido também lá, mas registrado como brasileiro. Sim, senhor, nascido
no estrangeiro, mas brasileiro, que seu Jorge não iria deixar que
tratava todo mundo de igual para igual, mas com deferência, inclusive
sempre, era uma espécie de marca registrada dele, puxara o seu braço,
mulher:
Ela não chegava a ser bonita, mas tinha um charme, minha Nossa
Desde então a levava para cima e para baixo, e ela sempre tinha uma
palavra carinhosa para ele. Fez questão de conhecer seus filhos. João os
mulher do patrãozinho. Fora uma festa, pois dona Marta tinha presentes
para dar: uma big caixa de lápis de cor para o Bento, com cadernos de
um livro de poesia, uma vez que ele era crescidinho e já aprendera a ler.
bom, você vai ver, e brinque com esta caixa, pois você vai ser médico.
era gente boa, gente fina. E agora, de supetão, aquela pergunta… Como
entender aquilo? Por falar em cu, aquilo, sim senhor, era de cair o cu da
bunda. Pelo retrovisor, João tentava localizar os olhos dela, ver através
lançou:
lado.
cu. Acredito. Mas… e a vontade? Nunca lhe deu vontade de dar o cu?
fio. João estava desnorteado, nem sabia mais para onde estava dirigindo.
sou cabra-macho.
— Quem falou isso pra senhora, dona Marta? Se acontece por aí,
Quando João a viu novamente pelo retrovisor, ela estava calma como
esta cidade, Marta, muita luz, cores fortes, sol gostoso e permanente,
praias lindas, tudo que a gente não tinha no exílio. E você se dá muito
falam em futebol e política, mas no pior sentido que a política pode ter,
grupos diferentes, pode? Parece que tem um muro de Berlim entre eles.
logo, logo, sem nem pedir licença, senta um cara querendo te paquerar, e
contar, é in-su-por-tá-vel. Não sei por quanto tempo ainda vou aguentar
ela estava dando em cima de seus homens, encoxando eles. Mas Marta
estava apenas jogando charme, era o seu fraco e o seu forte, o que
para tirar as usuais fotos de formatura, ela cismou que eram agentes
extremos. Daí que Marta entrou em trabalho de parto, mas o bebê não
nascia, e ela ali, sentindo dores horríveis, cercada por aquelas caras
mascaradas de branco, desconhecidas, naquele ambiente frio, luzes
uma tragédia, pois ela queria porque queria sair dali, rápido. Acabou
psicológico?
Desconcertado, me segurei:
— Claro que você sempre acha que sim. Você e aquele seu amigo, o
Ivan, vocês se acham muito legais, mas são dois loucos de pedra… Você
não se dá conta, Gabriel, loucos de pedra! Ele pensa que tem o rei na
não enxergam.
Dei um sorriso amarelo, sem graça. Ela me disse então que estava
— Nem precisa dizer nada. Claro que todos responderam que não às
duas perguntas.
deram, mas tiveram vontade. Veja lá, uma sociedade de machos e muitos
querendo dar o cuzinho, não é bizarro? — E completou: — Esse mundo
Meses depois, soube por uma amiga que Marta largara Natal de mão e
tinha vindo para o Rio. Estremeci: será que faria aqui também suas
questionário?
O fim de Severino Lagos
Eu saí do Brasil ninguém soube quando, nem como, nem por onde. Só
eu mesmo. Nem minha mulher, a Maria Júlia. Ela acabou saindo pelo
Uruguai, não tinha ninguém em seu encalço, barra limpa. Legal, até
passaporte ela tinha. Eu não podia fazer o mesmo, estava sendo caçado
olhos em cima de mim, retratinho nos cartazes. Não podia dar mole,
certas coisas, você só pode confiar em si mesmo, e olhe lá. Tem que
fazer que nem o líder dos comunistas chilenos aconselhava: até para
dormir, melhor ficar com um olho aberto. Antes de traçar minha rota,
pesquisei. Determinei lugar e hora de dar o salto. Até hoje ninguém sabe
Agora na volta, vou fazer o mesmo. Não quero que ninguém saiba,
sei lá onde esse troço vai dar, não confio nem um pouco nesta abertura
gente. Tem gente que confia, que confie por sua conta e risco. Ficam aí
inveja à CIA e à KGB. Não quero ninguém dando vivas, nem comitê de
recepção. Não gosto de aparecer. Vou ser discreto como sempre fui, do
meu jeito. Ninguém pode reclamar de mim. Dei sempre tudo para
maluca, alucinada. Mas, quando só existe vontade, não dá. Não deu.
foi uma revolução. Porreta. O povo todo lutando. Aprendi muito com
eles, cheguei a arranhar o árabe, para facilitar a comunicação. Funcionou
segredos. Mas foi graças a mim e ao meu ateliê, arranjado com cuidado,
cansava de falar para eles: “Método. Vocês precisam ter método.” Mas
para trás. Não podia dar certo. Apelar para Lênin tantos anos depois,
tentado antes. Todos se deram mal. Não desmereço o Lênin, ele era
momento certo. Mas a Rússia nunca foi modelo para nós, nem podia ser.
cubanos, Fidel e Che, mas eles só tinham mesmo cojones, como eles
fizeram.
Gostei demais da Maria Júlia, mas não sou homem de uma mulher só,
ia. Até que ela não aguentou mais a Argélia. Foi a aspereza dos árabes?
Foram os ventos secos do deserto? Ou foi o ciúme doentio dela? Sei lá,
só sei que, com a morte da organização, ficar sem ela foi mais um
Fui para Paris, ver o que acontecia por lá. Mas me mantive afastado
da velha turma. Aquela colônia de eLivross foi perdendo cada vez mais
fazer o quê? Uma vez, por acaso, topei com o Gabriel, ele me viu, me
chamou, deve ter ficado impressionado com minhas roupas. Desde que
cheguei, quando saía de dia, coisa que fazia de raro em raro, pois prefiro
puído, dava uma de mendigo, e foi assim que topei com o Gabriel. Dei
no pé, eu até gosto dele, me recrutou para a organização, mas o que vou
verdadeiros. São mais sábios para muitas coisas da vida. Se falo com o
daí a pouco todos vão saber onde estou. Vou me tornar um livro aberto.
minha vida.
documentação nota dez. Passei por São Paulo, dei uma olhada no Rio;
cara, como o país mudou! É verdade que tem muita gente fodida, mas,
duas, nem quis saber de ver a família toda, para quê? Vai que tiram
ainda não é hora de recuperá-los. Sei lá o que vai acontecer com este
país! Pode ser que não aconteça nada, mas, e se acontecer? E se essa
abertura der com os burros n’água e tudo virar um estrupício só? O país
mudou da água para o vinho. Está tudo muito instável. Quanto a mim,
acho que vai explodir. Será que a milicada vai aturar tantas críticas? Não
vejo a hora em que eles virão para cima da gente. E os homens do DOI-
Codi, vão ficar de braços cruzados? Duvido. Bem, quando a coisa toda
1964, saio fora, tranquilo, com minha documentação posso partir até
pelo Galeão, não vai dar problema. Agora, se o pau quebrar em grande
me nota nem me observa. Por aqui ficarei esperando a zorra pegar fogo.
mulherão, ela é casada com um tipo bronco, recatada que nem ela só,
avança, vira uma onça, tem uma foda enérgica. Mas, como disse, não
A última vez que se ouviu falar do Severino Lagos foi depois da anistia,
já no Brasil. Uma surpresa, pois ninguém sabia que ele voltara do exílio.
de seu corpo, caído, nu, ao lado de uma mulher, também nua e morta, a
amantes.”
fim, mas pessoas que nós mal conhecemos, que nunca ligaram pra nós,
a qualquer custo…
braço. Virou uma espécie de praga: “Olha aqui, temos um eLivros para
mostrar, quem quer ver, tocar, saber como é e como não é?” Um saco!
Alex Polari?
— Que versos?
— Falavam bem?
— Bem mal, cara, era um tal de dizer que envergonhavam a família,
que eram terroristas sem alma, depravados… Cresci ouvindo isso, mas
agora tá todo mundo querendo ver os eLivross, tocar neles, ouvir o que
dizem.
Tinha gente saindo pelo ladrão, até vizinhos tinham vindo ver, como se
os caras fossem astros de cinema. Fui lá e apertei a mão deles. Foi uma
emoção, cara, senti vontade de abraçar, mas me contive, achei que seria
— Foi anteontem e não lavei a mão até agora, esta mão que você tá
não havia nada que se igualasse à sua cotação. Por isso é que Augusto
— Não dá, você sabe que o Hilário foi muito bom pra minha mãe.
Ele era reacionário pra cacete, mas nunca negou fogo. Ajudou nos piores
— A Luísa era gente boa. É verdade que, em política, não dizia coisa
ditadura.
contrário”.
— Você não ouviu? Ele é irmão dela, conhecia minha mãe também,
— É, mas o fato é que ajudou minha mãe, deu trabalho pra ela na
secretaria do curso, ela trabalhou anos lá, saiu do sufoco em que estava,
— Ok, Luísa, juro que não vou esquecer. Mas queria saber se o tal
direita pura e dura, que nem teu tio, porra, não há família sem gente de
— Sei lá, mal conheço o Hilário, ele era militar da Marinha, não
podia ser de esquerda, né? Passou cedo para a reserva e se meteu nesse
enricou. Educação particular tá dando muita grana neste país. O que sei
é que ele, apesar dos pesares, ficou do lado da minha mãe num momento
brabo. E sabia direitinho quem eu era, mas nunca falou mal de mim pra
minha mãe, nem de você. Ao contrário: diz ela que, volta e meia,
mandava lembranças.
— Ok, nós vamos lá, mas tem uma coisa: se o tal Hilário se meter a
* * *
Margarida e Augusto, mais dona Nenê, mãe dela, chegaram ao
Ele abraçou dona Nenê com carinho, dois beijos no rosto. Abraçou
bom e do mau tempo, mas era um assunto que não dava para esticar
deveria lembrar:
— Ah! Sim, vocês estiveram em Moçambique, Hilário me falou
disso.
quase solene:
Valsa nº 11.
Levinda, imperativa:
A conversa então tomou outros rumos, até que, mais para o final da
— Esse Brizola não toma jeito mesmo. Quando a gente pensa que
rindo:
não é mesmo?
ainda visíveis, embora muita gente queira cobrir a sujeira com o tapete.
pela primeira vez, mas quero te dizer uma coisa, com toda a sinceridade,
levantou-se:
O silêncio continuava espesso, não havia nele uma única brecha. Não
vomitava.
As bombas
pra lá de táxi.
— Foi pra lá? Mas como? Explodiram uma bomba e ele foi pra lá?
Instituto dos Advogados, que funcionava num outro andar. Lúcio, havia
da bomba tinha corrido veloz, como uma corça perseguida por um tigre.
Gabriel insistiu:
viu o chefe da portaria, seu Carmelo, que o reconheceu. Ele fez um sinal
e o funcionário o deixou passar.
muita gente por lá, o ambiente era de luto e de indignação. Uma carta-
funcionário de seu gabinete, seu tio, José Ribamar de Freitas, que ficou
três dedos da mão direita, todos os dentes e quase toda a audição. Mais
uma cerimônia discreta, a comoção foi grande demais, e não foi possível
pediu a uma colega que revezasse com ela e veio ter com o amigo. Entre
Ela continuou:
ousadia com que esses caras agem. Estão mesmo dispostos a tudo para
melar a transição.
nada.
dizer que podiam jogar não sei quantas bombas sobre ele que de nada
Meu medo é que venham em cima da gente; eles não perdoam o retorno
dos eLivross…
Marta concordou:
recordou, melancólico:
voz:
Dizem que eu me comportei mal; mal, não, péssimo. Não deixam de ter
vez que eu via os PMs com cagaço; eles abriram as portas e deixamos
Fiquei num quarto em Piedade, e até que não era ruim. A Francisca me
apoiou, foi comigo, ela topava qualquer parada, me amava mesmo, para
do nosso quarto era o teto de amianto e o calor filho da puta que fazia
desmanchava em suor.
pequenas ações de carro. Não era difícil, era só fazer cara de mau,
que jogavam fora, mas não era isso que diziam, falavam que iam ler em
casa. Tenho minhas dúvidas, acho que a maioria jogava mesmo no lixo.
era de agir, e na ação eu sempre ia bem. Acho que isso é que levou muita
Quando fui preso, tremi. Quem não treme? Mas aguentei firme a
porradaria. Não sou de ter medo de levar porrada, talvez porque apanhei
muito de meu pai e de minha mãe. Tenho uma certa vergonha de falar
nisso, de como levei cacete de meus pais, levava tanta porrada que, às
vezes, nem para a escola eu podia ir, de tão roxo que ficava. É, nunca
falei isso para ninguém, de vergonha mesmo. Mas acho que foi isso que
apanhando muito, mas minha história tinha coerência, e talvez por isso
passado. Eles estavam cansados de saber que, depois de uma certa hora,
você. Nem esperavam mais nos aparelhos. Me deu pena perceber que a
minutos, dê no pé.
Pô, esperei quase duas horas debaixo de pau para dizer o nosso
endereço. Quando eles chegaram lá, não é que encontraram a Chica? Foi
duro ver ela apanhando, não tinha nada para dizer, ainda não tinha nem
ingressado na organização, acho que eles viram logo que ela não tinha
nada a ver. Largaram ela num canto. Não foi mole para mim, ver aquilo
tudo, minha mulher apanhando, quase nua, com as roupas rasgadas. Mas
Daí fui para a cela coletiva. Foi aí que comecei a ter aquela angústia.
Comecei a ter medo do tempo de vida que ia perder. Uma vez, de noite,
revolução que não acontecia em lugar nenhum? Quem é que queria fazer
aquela revolução? Quem é que viria libertar a gente? Tinha gente saindo,
podia sonhar em sair daquela maneira, teria que aguentar. Quantos anos?
Meu consolo eram as visitas da Chica. Mas tudo corria rápido, ainda
mentira? Eu checava, ela negava, mas eu sentia, tá saindo fora, era pior
largando de mão.
Até que um dia me deu um estalo. Pedi para falar com o dr. Jaime.
Ele era o chefão dos caras, daí pedi para falar com ele. O que eu tinha
vida atrás das grades. E comecei a ter certeza de que, mais cedo ou mais
guarda para falar com o dr. Jaime. Pensei que eles iam crescer para cima
de mim, mas foi tudo muito rápido. Num instante, eu estava diante dele.
na cadeia.
Naquele mesmo dia, fui transferido para uma cela separada dos
minha cela, ela estava estranhando, sem entender nada. Fodemos como
nunca, mas ela queria entender o que estava se passando. Tive grande
dificuldade para explicar. Acho que ela ficou em dúvida, mas acabou
aceitando. Ela saía e entrava à hora que bem entendia. Lá fora, afastou-
se dos familiares dos presos, passou a ter uma vida reclusa, solitária,
noites comigo.
Fiz o possível para ajudá-los, pois sabia que minha liberdade dependia
disso. Depois de um certo tempo, fui entrando numa, resolvi pedir para
sair com eles para caçar os revolucionários. Eles nunca me deram uma
eternidade?
— Silvério, nem pra amanhã nem pra eternidade, mas vai sair, conte
Francisca:
— Por que não? Mesmo porque, qualquer dia desses, vou sair…
palavra.
partir daí a coisa foi ficando mais leve, mesmo porque as ações armadas
anos, é isso aí, curti dois anos de cadeia. Seis meses como
atenção, se eles te pegam, podem acabar com você. Aqui está uma
Saí feliz da vida e vivi todos esses anos numa boa. De vez em
quando vem um remorso, mas o que eles poderiam esperar de mim? Dei
tudo de mim, mas não dava para aguentar aquela angústia, eu ia estourar
OAB. Não tenho dúvida de que foram os caras do dr. Jaime. Agora, são
eles que estão numa ruim. Querendo reverter o rumo das coisas. Não
concordo.
estariam dispostos a conversar? Tudo bem que não aprovem o que fiz,
diabo, as pessoas são humanas, cometem erros, nem sei se o que fiz foi
realmente errado, pois, pela liberdade, o que a gente não está disposto a
fazer?
cabeça rodava, meio confusa; teria alguma chance de ser bem acolhido
* * *
de Química, indaguei:
Dali a meses, durante uma ação, o Silvério foi preso. Passou bem
na dele, como sempre, calado, sóbrio. Com o passar dos meses, porém,
Um belo dia, sem aviso prévio, pediu para falar com o dr. Jaime —
ser chamados pelos presos. O tal dr. Jaime foi um dos piores carrascos
cabo da guarda para conversar com o Jaime, foi uma surpresa. Daí a
vociferou:
Acho que já disse isso aqui, mas vou repetir, sempre tive a maior
porque foi um termo corrente, mas prefiro dizer dela que foi uma
eram, tinham seus defeitos. Cada um e cada uma tinham os seus, quem
indulgente. Tem muita gente que não perdoa as esquerdas por isso, mas
levam a nada.
curso, mas ninguém sabia direito onde ia dar. Muitos diziam, e com
razão, que não ia dar em nada, que a ditadura ia continuar com outros
mordomias. Sem falar nos homens do porão. Taí outro termo com o qual
sempre embirrei. Porão? Por que não sala de visitas? Todo mundo sabia
não era nenhuma novidade, era o pão deles de cada dia, um recurso
sempre acionado pela polícia. Para a classe média, sim, ver os filhos
serem torturados, foi uma surpresa. Mas quem é que não sabia? Não dá
sacasse.
dúvidas, houve gente que mostrou a cara, que se arriscou, pôs o seu na
história. O jornal saía uma vez por mês, com reportagens sobre as
condições de vida reais das pessoas; ouvia-se gente que andava de trem,
reportagem típica nessa linha feita pelo Tim Lopes. Ele se empregou
como elas, comeu como elas e fez um brilhante relato. Sem floreios, sem
todas e saía de lá com relatos incríveis. Muitos anos mais tarde, mas aí já
época.
fim dos anos 1970, a grande paixão do João era o Repórter, uma
Abraçamo-nos.
nada fixo. Têm pintado uns cursos livres por aí, umas pesquisas, coisas
Ele filosofou:
bem consumidos, jogam fora que nem bagaço de laranja. Mesmo os que
Ele sorriu:
Arregalei os olhos:
exílio.
— Ooooowwww!
coração foi a Sissi, que fazia a arte do jornal, com destaque para um
ali um trabalho remunerado, mas o que os animava mais que tudo, mais
olhos das pessoas, nos movimentos dos braços e das pernas, nos toques
estava se passando.
pagaria para ficar por ali, mas o que eu poderia fazer? Ensaiei uma
proposta:
ocular.
João sorriu:
específica?
Hesitei…
fazer.
— Qual seria?
Mesmo sem saber direito onde me levaria aquele acordo, não vacilei:
— Fechado.
no rosto.
altas horas da noite chegarem com seus cálidos abraços. Dali fomos para
como doem…
Realidade brasileira
chegara ao fim, mas descer no Brasil não estava sendo fácil. Então, num
moçambicano, o Rafael:
— É… aí é foda.
— O quê?
Perguntei a ele:
nem caranguejo?
falei:
fome.
— Não é que seja ruim, Rafael, não me entenda mal. Longe de mim
dizer que tive uma experiência ruim. Passei lá bons anos da vida.
Ele sorriu:
curso que também fez sucesso era sobre a história do Brasil depois de
animado, mas com os bolsos vazios, pois as taxas cobradas eram muito
altas e o que sobrava para os palestrantes era muito pouco, quase nada.
seria realista querer que eles pagassem mais do que estavam pagando,
pois o padrão ali estava mais para a diversão do que para ganhar a vida.
atividades.
Vai daí que, nessa batalha inglória, recebi um belo dia uma dica que me
pareceu interessante:
— No Horto?
— Acho que não dá pra mim, não, nunca fiz história agrária…
mas logo se via que tinha uma energia fora de série. Ela me olhou com
esteve no exílio, Gabriel? O que você fez na vida, onde trabalhou e o que
fez?
compensação financeira, não chegava a ser alta, mas não seria tão
Ela sorriu:
para mim, sempre amigável, não parecia ter dado muito valor ao fato de
— Então, minha pergunta ficou no ar, o que você quer fazer aqui?
rosto:
— Sim…?
níveis: teoria política, onde se estudava da dupla Marx e Engels até Mao
brasileira”.
fingindo segurança.
— Como é que é?
vontade:
— Passei muitos anos fora do Brasil, estou voltando agora, daí que
a minha cara. Yedda olhou-me bem nos olhos. Continuava a sorrir, mas
— Estou contratado?
não perca por esperar: vou lhe dar para estudar uma realidade brasileira
Yedda me disse:
terna, completou:
com doçura por uma velha amiga que, segurando seu braço, disse, quase
Que surpresa boa! Sol havia sido uma das paixões da minha vida.
Não tivemos nem um ano de vida comum, mas, como se sabe, essa coisa
mais ou melhor do que períodos de dez anos ou mais. Isso vale para as
começam a dançar, tudo vira de cabeça para baixo e a gente não anda
juntos…
novamente…
consolar:
“Paixão é quando você dá o que não tem a uma pessoa que não
conhece.”
— O quê?
— Paixão…
história da água que vai saindo devagar por entre os dedos, os quais,
flui. Questão também de liberdade, de não ficar preso num passado que
da vida que precisa ser vivida. Não vou dizer que não pensei mais nela,
Ivan desconfiava:
— Juro que estou dizendo a verdade, volta e meia sinto o cheiro dela
revoando…
Daí que, quando topei com ela no Galeão, estremeci. Ela não estava
como era, mas como se compunha nos últimos meses em que ficamos
juntos. Explico: Sol era dessas mulheres muito tímida de atitude, mais
calada do que falante, com frequência ensimesmada, pensativa. Porém,
minissaia, moda dos anos 1960, caiu-lhe muito bem, parecia feita para
ela, com umas coxas roliças e uns joelhos redondos, benza Deus, e um
qualquer, num vidro especial, que ficasse bem fechado, com o cheiro lá
dentro, mas não foi possível, jamais encontrei esse recipiente mágico, se
Quando dei com ela no Galeão, empurrada por uma amiga, Sol me
traje que ela usava quando nos mudamos para o subúrbio, fugindo da
então que aquele vestido longo era um código, um código secreto, entre
nós:
perdidos, tateava, como uma pessoa num corredor escuro como breu à
procura da luz.
Mas o abraço não podia durar para sempre, outras pessoas entravam
sisuda. Cadê o sorriso? Séria, ela apenas abanou a mão, e pensei vê-la
murmurando:
— A gente ainda se vê.
— Quando e onde?
sua recuperação. E conseguiram. Uma vez livre de novo, Sol, que fazia
me:
impressão de que o exílio para muitos fora um inferno, mas, para mim,
os erros cometidos tinham virado acertos. No fim das contas, era como
se tivessem dado certo. Agora, para muita gente, os erros tinham dado
dela, dez anos tinham sido incapazes de mudar a graça daquele sorriso.
andanças pelo mundo. Ele voltava com toda a suavidade deste mundo, e
Não, não dava, eu sentia muito pela Sol, nós tínhamos uma enorme
Ela sorriu, meio triste. Prometemos nos rever. Nos levantamos e nos
pela última vez. Meses mais tarde, a noite já tinha chegado, alguém me
telefonou:
a seu lado. Mas não me aproximei do caixão nem quis ficar para o
para a janela e, sem dizer uma palavra, pulou para o vazio da morte.
No beco das Sardinhas, lugar onde agora eu fazia ponto dia sim e dia
cemitério.
— Então me conta o que você tem feito por aí. Me diga um pouco,
Ele então me contou tudo que havia acontecido desde que retornara
Daí havia sido levado para a penitenciária Lemos de Brito, onde teve
entregar, como que trocando a liberdade pela prisão. Era difícil para eles
aceitar isso.
depois, voltei pra trás das grades, mas não durou muito, recuperei a
mais interessante, e foi possível viajar bastante pelo interior goiano, ver
surpreendeu-se:
— Não quero ouvir falar de sua demissão. Você foi muito importante
política.
que te ofereceu mais grana. Mas eu cubro o que ele te prometeu, diga-
me quanto é…
— Tive que insistir que não era nada daquilo que ele estava
tudo em vão. Quando nos despedimos, ele ainda estava certo de que eu
Ele filosofou:
para nós: ir morar com os pobres deste país. Me juntei à confraria dos
de alguns meses lá, me mudei para Salvador, com esses mesmos padres.
que um dia…
— Deu o fora…
arrego, depende muito das circunstâncias em que você vive, de como teu
corpo reage a elas. Por uma razão ou por outra, o fato é que disseram
que…
— …?
o vírus da aids.
direito de fazer isso! Não podiam fazer isso!” Pus o cara pra fora do
quarto, não queria conversa, estava puto da vida, não sabia o que fazer.
— E aí?
sair é agora. Então pulei da cama, fiquei em pé, segurei com a mão
— E os enfermeiros?
acho até que é maior do que a ignorância. A ideia da aids como peste
hora.” No que ameacei, o cara apertou o botão do térreo e pulou pra fora
Eu perguntei, incrédulo:
que comecei a me dar conta de que eu mesmo não sabia direito o que ia
alguém gritando atrás de mim: “O cara está com aids, cuidado!” Pedi
um café e uma água mineral. As pessoas olhavam pra mim e eu via nos
— Tava todo mundo com medo. Quando saí do hospital, veio atrás
Tocha sorriu:
Rio e resolvi dar uma passadinha aqui para comer uma sardinha e beber
uma caipirinha. Hoje, no final da tarde, parto outra vez rumo a Salvador,
— E o coração?
tomar conhecimento.
Luizinho
corredor da morte e ouvi a porradaria em cima dele. Não foi mole, não.
O cara, porém, entrou em luta com ele e levou um tiro. Mortal. Louro o
para o DOI-Codi. Os caras o receberam com sangue nos olhos, não sei
provação.
Tiramos cadeia juntos lá na ilha. Luizinho era dos bons. Queixo
semelhantes. Daí que Luizinho foi obrigado a tirar fotos e a fazer todos
tinha de fato razão, o nome que estava na lista era de outro preso.
exílio, quase nove anos e meio depois, e fui visitar os presos, ele estava
mais rigorosa. Naquela que foi sua quarta provação, houve, porém, uma
coisa boa: seu namoro e posterior casamento com Leilah. Ela vinha de
visita, acompanhando os pais de um amigo. Eles se apaixonaram no ato.
Luizinho foi uma luz. Depois de muita luta, conseguiram que o direito a
preconceituoso!
apenas para dar uma força, mas porque eram coisas bonitas de se ver e
de se usar.
tarde para fazer um berço para ele ou para ela, ainda não sabiam. Leilah
transformara o Brasil. A coisa foi tão para a frente que, um ano depois,
revolveram mudar de ramo, abrir uma pequena fábrica de móveis, pois
verificaram que, dando certo, seria bem mais rentável. Numa primeira
sobrava tempo para curtirem a vida. Foi mais uma provação, a sexta.
enfunadas.
— Foi como acabei de te dizer, dor aguda, fui parando o carro, parei.
— Acho que não. Vai ver que foi uma angina no peito. Acontece.
porta:
Leilah esmurrou e deu pontapés na porta, mas não tinha forças para
e pediu socorro:
médicos.
oito duplas e um grupo de três, uma trinca. Todos estão com as fichas
Assentimento geral.
essas questões.
ganharemos o povão.
Gabriel apaziguava:
— Ok, ok, não vamos brigar por isso, foi apenas uma brincadeira. O
chegariam lá, com certeza. Mesmo porque, como dissera Gabriel, era
filiados…
Jacinta interveio:
— Olhem, tudo pode acontecer aqui, menos briga entre nós. Temos
contra eles…
processo de conscientização…
alcançadas.
Ele era um pouco mais velho do que a maioria, mais baixo do que
partido lá na zonal.
filiados.
reunião do núcleo?
— Amanhã.
— Tô dentro.
— Mas só pode ser do núcleo quem mora num dos bairros da zonal.
por lá.
É
— Me chamo Marinaldo, uma mistura de Marina e Arnaldo. É
comum neste país os pais juntarem seus nomes no dos filhos. Não é lá
junto das pessoas e pedir as assinaturas. Não há coisa mais fácil a fazer.
Juvenal atalhou:
disso…
também.
Temos pressa, gente. Também vamos usar uma casa meio em ruínas que
Juvenal interrompeu:
— Porra nenhuma!
nada a ver. Que revoluções socialistas, que nada! Vamos fazer um baita
alguém?
caminho.
Marlene
— O Gabriel está?
— Tu tá ocupado?
— Qual é?
— Isso é problema seu, vá em frente, pode ser uma boa. Como você
Leme.
morava.
jornais, não foi difícil reconhecê-la. Uma negra alta, cabeça envolvida
Ela se voltou para mim com olhos indagativos, grandes, saltados das
mas simpática:
meu gosto.
série.
publicada. E pode me chamar de você. Devo lhe dizer que também sou
falar?
Ela sorriu:
para as casas que o Lacerda inventou para nós lá na Vila Kennedy. Meu
fosse para aquele fim de mundo, sem transporte, sem nada, como é que
eles conseguiriam se virar? Daí eles vieram pra cá, e a família veio
junto.
— Família grande?
— Lá pelos anos 1970. Não era mole, não. Era preciso enfrentar os
Ao mesmo tempo, me dei conta de que não dava pra ganhar a vida como
carnaval?
essas festas…
também já fui metida nisso, mas acho uma coisa muito alienante. Além
pode ser bom para alguém, como isso pode contribuir para a formação
Tentei ponderar:
conto, mas não quero falar mais nisso. Desde que virei evangélica,
graças a Deus, passei a ver essas coisas de outra forma, e acho que não
denúncia de tudo que está aí, dessa política de elites, que sempre
trabalhadores.
bases?
As nossas bases estão alertas, vivas. Veja o Lula. Ele está ligado às bases
operárias pela história, pela profissão, pelas lutas, como que ele vai sair
voando por aí? Mesmo que ele quisesse, mesmo que eu quisesse, as
Provoquei:
— É verdade, mas não cairemos nelas. Você está olhando esta casa?
tijolo, como você tá vendo. A gente vai construindo, mas nunca vou sair
daqui, nunca! Sempre morarei no morro e com esta gente que me apoia
lhe a melhor sorte e apertei sua mão forte, confiante. Ela era realmente
assoviando uma música antiga, que nos animava nos anos 1960. Dizia
mais ou menos o seguinte: “Mas olhem bem, vocês, quando derem vez
A primeira vez que ouvi Celso Castro falar do nazista foi em Paris.
Morte e vida severina, era a parte que nos fora concedida naquele
latifúndio.
tipo louro, sabe, aquele louro que é quase branco, e que é comum entre
os alemães? Pois é, o cara era assim, olhos azuis muito claros, alto,
parecer como de centro ou cristãs. O Walter, era este o nome dele, não
— As pessoas o questionavam?
— Meu pai tinha posições progressistas, mas sua orientação era não
Ele dizia: “A gente não discute com freguês, não aqui dentro.” Um belo
realmente aconteceu.”
— E aí?
judeus?” O Walter fez força para não perder a calma, seus olhos
infâmia inventada pelos judeus e por seus aliados, nunca provaram nada
Ordem da Águia, não era qualquer um, não, que recebia essa
condecoração.”
— …!
Celso concluiu:
— Ficou muito claro pra todo mundo que o Walter não era apenas
ter fugido para a América Latina e se estabelecido por lá. Será que seu
muito.
— Claro que sim. E não foi um caso único. Nem era peixe pequeno.
Brasil, do Rio Grande do Sul a São Paulo. Quem sabe, quando a gente
um dia voltar pro nosso país, não levo essa história pra frente?
saber a cara que tinha o país: “Brasil, mostra a tua cara!” Com ironia
amarga, ele pedia ao país que revelasse os seus negócios e o nome dos
seus sócios, mas sem nenhuma convicção de que isso seria possível.
mas, pela força que havia nele, eu acreditava que conseguiria superar os
Celso devia estar no encalço de pistas que o levassem a elas. Não muito
Celso e Nelson haviam se rendido, mas foram crivados de balas por uma
perguntar.
de gás.
recuperada mais tarde por sua filha num dos melhores filmes sobre a
assassinato.
resposta.
Ex-presidiário
atirar.
Gabriel insistiu:
da foto. Gabriel negou com a cabeça. Não, não era ele. Maria Lúcia
interveio:
Ela própria, com dedo seguro, apontou para uma figura, em pé, na
levaram longe.
Sim, ali estava ele, na foto tirada havia cerca de quinze anos. O
vida fora uma correria sem descanso para garantir o leite das crianças e
depois. Ele fora aprovado, mas a nomeação custara muito a sair, outra
— Sim, sem dúvida. Você leva jeito para identificar pessoas, Maria
Lúcia.
Ele então passou a descrever os demais retratados, indicando as
espichando a cabeça, chegando-se por trás dos ombros dos que miravam
Gabriel explicou:
quinze anos.
de história, entrei para a UFF há alguns anos, agora trabalho aqui. Mas
nem sempre foi assim. Sabe como é que é, né? Eu participava da luta
sorte de estar entre eles e pude sair da cadeia. A Argélia, na época, era
contado!
deles em junho daquele mesmo ano. A foto foi tirada no dia da nossa
partida.
Graça custava a acreditar:
arquivos. Não se sabia como, mas ela conseguia quebrar todos os galhos,
— Ô, Graça, não é possível. Você não sabia que houve uma ditadura
neste país?
Gabriel retrucou:
— Eu estou cada vez mais certo de que muita gente não sabia…
— Mas…?
— Sim…
— Como assim?
ter sido tratado dessa forma, mas, de fato, sim, sou um ex-presidiário.
— Um ex-presidiário…
— O que meu pastor vai dizer quando souber que você — uma
professor?
E se lamentou de novo:
Cinelândia?
no país.
Um terceiro interveio:
não significa que vamos “matar aula”, apenas suspendê-la. Quero dizer:
a aula não será perdida. Entretanto, já que há divergências, por que não
comício, e repomos a aula em outro momento. Mas quem não quiser ir,
político. Quem fosse contra, tudo bem, não sofreria nenhum tipo de
aquilo.
Gabriel sorriu:
hoje. Eu não diria que voltamos ao clima de 1968, mas há, sim, algumas
semelhanças.
Geralda insistiu:
Gabriel concordou:
política para o centro das atenções. Como se, para as grandes maiorias,
uma questão geral se tornasse atual. Acho que isso é muito legal, como
Mil, digo assim porque acho que havia lá muito mais gente do que cem
mil pessoas, havia grupos que realmente entoavam: “Só o povo armado
derruba a ditadura.”
— Sim, você tem razão, mas penso que a grande maioria queria
discussão.
que há algo maior aí. Em todo o mundo, vocês podem observar que as
— E por quê?
— Taí uma questão que a gente pode propor para um debate mais
aprofundado…
conversa:
— E aí, Joana, você que levantou a questão das diferenças, teria algo
mais a falar?
Presidente Vargas. Dez vezes mais do que nos anos 1960. Eu não diria
hoje é muito mais ampla e forte do que a frente que havia às vésperas da
Gabriel retrucou:
muito difícil, alguns analistas dizem que será quase impossível, uma vez
chamada abertura?
Maria Clara:
Ele cismava:
“Na época das lutas dos anos 1960, havia uma épica: a luta armada,
4
Gérard Bourgeois e Jean-Max Rivière, “L’Amitié”
— Vai ver é ele mesmo que está espalhando a notícia falsa pra todo
mundo comentar.
notícia. O vírus da aids, recusado e negado por ele, fizera o seu trabalho.
decidiram voar para Salvador, onde ele morava e trabalhava. Quem sabe
pouco, para nosso desespero, o ônibus parou num sinal. O Tocha, então,
com esse remédio tuas hemorroidas vão melhorar no ato.” Todo mundo
— Numa outra vez, por acaso, ele me encontrou com a Sol na rua.
Eles estavam na época numa mesma base, e ela tava danada da vida com
desespero dela, pois isso não deveria acontecer. Aí, chegando nosso
Do jeito dela, escancarado, Marta riu sem parar. Em seguida, foi sua
chegavam a Paris, vindos do Chile, com uma mão na frente e outra atrás.
Denfert-Rochereau.
perguntou Raimundo.
— Como assim?
vocês… Deu tudo pra trás. Não tenho nada pra vocês.
Raimundo, torcendo as mãos, engatou:
— Vocês, eu não sei o que vão fazer, quanto a mim… — ele apontou
desejava que fosse bem esclarecido, ele dizia, batendo a mão na mesa:
faut pas exagérer.” E uma última: houve um tempo em que ele trabalhou
em uma sala com outros franceses. Aí, quando chegava, dizia da soleira
que não tinha, ele respondia sempre: “Só economiza quem tem dinheiro;
chegar com notícias positivas para nós. Fomos todos para o lugar de
severos e sisudos. No meio deles, centro das atenções, quem estava lá? O
uma visita oficial, ele começou a clicar o rosto de Samora Machel muito
E Gabriel concluiu:
nesse quesito.
Estocolmo?
cadeia?
— E o trem sueco?
— O dr. Lúcio Flávio está muito enfraquecido. Acho que não passa
mesmo… partir.
considerando que vocês são velhos amigos vindos do Rio, vou deixar
na corda bamba.
Nota
4 “Muitos de meus amigos vieram das nuvens / Trazendo o sol e a chuva como simples bagagens
/ Eles criaram a estação das amizades sinceras / A mais bela das quatro que existem na Terra.”
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Na corda bamba
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