A Revolução Urbana - Henri Lefebvre
A Revolução Urbana - Henri Lefebvre
A Revolução Urbana - Henri Lefebvre
Lefebvre
Henri
AREVOLUÇO URBANA
TRADUÇÃO
SÉRGIO MARTINS
REVISÃO TÉCNICA
MARGARIDA MARIA DE ANDRADE
Belo Horizonte
Editora UFMG
1999
o Élitions Gallimard, 1970 S M Á R
Titulo original: La RéolutionUrbaine
1999 da traduçào brasileira: Editora UFMG
Este livro ou purte dele nào pode ser reproduzido por
qualquer meio sem autorizaçlo cscrita do Editor
Lefebvre, Henri
LASr Arevoluçào urbuna/ Henri Lefebvre;
traduçào de Sérgio Murtins. - Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 1999.
178p. - (Humanitas)
Traduçio de: La révolution urbaine
1. Sociologiu urbana 2. Economia PREFÁCIo
urbana 3. Urbanizaço I. Martins, Sérgio
II. Titulo Ill. Série CAPÍTULO I DA CIDADE ÀSOCIEDADE CRBANA 15
CDD:307.3
CDU:364.122.5 CAPÍTULO II O CAMPO CEGO 33
NOTAS
1Cf. LEFEBVRE, Henri. Tiempos equivocos. Trad. José Francisco Ivars, Juan
Isturiz Izco, Barcelona: Editorial Kairós, (1975) 1976. p.224-226.
0que faz o economista político vulgar, transformado não só em intérprete,
mas principalmente em apologista desta sociedade? Num outro livro dedicado
ao urbano, Lefebvre relembra a ironia fina de Marx: "Coloca-se na acepção
restrita com a consciência perfeitamente em ordem, ou seja, com uma certeza
que não se distingue da trivialidade do bom senso e a si mesma se toma por
verdade científica. Constata, conta, descreve. Tanto contará ovos como tone
ladas de aço, gado ou trabalhadores, com a mesma permanente, tranqüila e
inabalável certeza." Cf. LEFEBVRE, Henri. Opensamento marxista e a cidade.
Trad. Maria ldalina Furtado. Póvoa de Varzim: Ulisséia, (1972], (s.d.]. p.82-83.
No mesmo relato que citei anteriormente, Lefebvre manifestou seu desacordo
quanto às leituras fragmentárias de sua obra, que visam compreendê-la aos
"pedaços" em função das especializações a que supostamente se referem. Em
verdade, cada momento de seu percurso intelectual só pode ser apreendido,
isto ¬, apropriado pela compreensâo, se tivermos clareza com relação à
COncepçao de mundo quc lhe éfundante. Sobre o conjunto de sua obra, que
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C A P
L
DA CIDADE A
S0CIEDADE URBANA
Partirenmos de uma hipótese: a urbanização conpleta da
sociedade. Hipótese que posteriormente serásustentada por
argumehtos, apoiada em fatos. Esta hipótese implica uma defi
nição. Denominaremos "sociedade urbana" a sociedade que
resulta da urbanização completa, hoje virtual, amanhã real.
Essa definição acaba com a ambigüidade no
emprego dos
termos. Com efeito, freqüentemente se designa por essas pala
Vras, "sociedade urbana", qualquer cidade ou cité:' a cité
a cidade oriental ou medieval, a cidade
grega,
comercial ou irndustrial,
a pequena cidade ou a megalópolis. Numa extrema
confusão,
esquece-se ou se coloca entre parênteses as relações sociais
(as relaçòes de produção) das quais cada tipo urbanoésoli
higote dário. Compara-se entre si "sociedades urbanas" que nada têm
de comparáveis. Isso favorece as ideologias
subjacentes: o
organisismo (cada "sociedade urbana", em si mesma, seria um
"todo" orgânico), ocontinuísmo (haveria continuidade his
tórica ou permanência da "sociedade urbana"),o evolucionismo
(os períodos, as transformações das relações sociais, esfu
mando-se ou desaparecendo).
Aqui, reservaremos o termo "sociedade urbana" à sociedade
que nasce da industrialização. Essas palavras designam, por
tanto, a sociedade constituída por esse processo que domina e
absorve a produção agrícola. Essa sociedade urbana só pode
ser concebida ao final de um processo no curso do qual explo
dem as antigas formas urbanas, herdadas de
transformações
descontínuas. Um importante aspecto do problema teórico éo
de conseguir siuar as descontinuidades em relação às conti
nuidades, e inversamente. Como existiriam descontinuidades
agrícola
absolutas sem Continuidades subjacentes, sem suporte e sem Será preciso insistir demoradamente que a produção
benm como
processo inerente? Reciprocamente, como existiria continui perdeu toda autonomia nos grandes países industriais,
setor
dade sem crises, sem o aparecimento de elementos ou de àescala mundial? Oue ela n·o mais representa nem o
características
relações novas? principal, nem mesmo um setor dotado de
distintivas (a não ser no subdesenvolvimento)? Mesmo conside
As ciências especializacdas (ou seja, a sociologia, a econo
rando que as particularidades locais e regionais provenientes
mia política, a história, a geografia humana etc.) propuseram dos tempos em que a agricultura predominava não desapare
ali,
numerosas denominações para caracterizar a "nossa" socie ceram, que as diferenças daíemanadas acentuam-se aqui e
dade, realidade e tendências profundas, atualidade e virtuali não émenos certo que a produção agrícola se converte num
dades. Pôde-se falar de sociedade industrial e, mais recente setor da produçào industrial, subordinad:a aos seus imperati
mente, de sociedade pós-industrial, de sociedade técrnica, de vos, submetida às suas exigências. Crescimento econômico,
sociedade de abundância, de lazeres, de consumo etc. Cada industrialização, tornados a0 mesmo tempo causas e razões
uma dessas denominaçòes conmporta uma parcela de verdade supremas, estendem suas conseqüências ao conjunto dos terri
empírica ou conceitual, de exagero e de extrapolação. Para tórios, regiðes, nações, continentes. Resultado: o agrupamnento
denominar a sociedade pós-industrial, ou seja, aquela que tradicional próprio àvida camponesa, a saber, a aldeia, trans
nasce da industrialização e a sucede, propomnos aqui este con forma-se: unidades mais vastas o absorvem ou o recobrem;
ceito: sociedade urbana, que designa, mais que um fato on ele se integra à indústria e ao Consumo dos produtos dessa
sumado, a tendência, a orientação, a virtualidade. Isso, por indústria. Aconcentração da populaço acompanha a dos meios
conseguinte, não tira o valor de outra caracterização crítica de produção. O tecido urbano prolifera, estende-se, corrói os
da realidade contemporânea como, por exemplo, a análise resíduos de vida agrária. Estas palavras, "o tecido urbano",
da "sociedade burocráica de consumo dirigido". não designam, de maneira restrita, o domínio edificado nas
Trata-se de uma bipõtese teórica que o pensamento científico cidades, mas o conjunto das manifestações do predomínio da
tem o direito de formular e de tomar como ponto de partida. Tal
cidade sobre o campo. Nessa acepçào, uma segunda residência,
procedimento não só é corrente nas ciências, como éneces uma rodovia,um supermercado em pleno campo, fazem parte
sário. Não há ciência sem hipóteses teóricas. Destaquemos do tecido urbano. Mais ou menos denso, mais ou menos espesso
desde logo que nossa hipótese, que concerne às ciências ditas e ativo, ele poupa somente as regiðes estagnadas ou arrui
"sociais", estávinculada a uma concepção epistemológicae nadas, devotadas à "natureza". Para os produtores agrícolas,
metodológica. O conhecimento não é necessariamente cópia os "camponeses", projeta-se no horizonte a agrovila, desa
ou reflexo, simulacro ou simulação, de um objeto já real. Em parecendo a velha aldeia. Prometida por N. Khrouchtchev
contrapartida, ele não constrói necessariamente seu objeto em aos camponeses soviéticos, a agrovila concretiza-se aqui e
nome de uma teoria prévia do conhecimento, de uma teoria do ali no mundo. Nos Estados Unidos, exceto em algumas regiões
objeto ou de "modelos". Para nós, aqui, o objeto se inclui na do Sul, os camponeses virtualmente desapareceram; apenas
hipótese, ao mesmo tempo em que a hipótese refere-se ao persistem ilhotas de pobreza camponesa ao lado das ilhotas
objeto. Se esse "objeto" se situa além do constatável (empírico), de pobreza urbana. Enquanto esse aspecto do processo global
(industrialização e/ou urbanizaço) segue seu curso, a grande
nem por isso ele éfictício. Enunciamos um objeto virtual, a
sociedade urbana, ou seja, um objeto possivel, do qual teremos cidade explodiu, dando lugar a duvidosas excrescências: subúr
que mostrar o nascimento e o desenvolvimento relacionando-os bios, conjuntos residenciais ou complexos industriais, peque
nos aglomerados satélites pouco diferentes de burgos urba
a um processo e a uma práxis (uma ação prática). nizados. As cidades pequenas e médias tomam-se dependências,
Que essa hipótese deva ser legitimada, não deixaremos semicolônias da metrópole. Éassim que nossa hipóese impõe-se,
de reiterar e tentar. Os argumentos e provas em seu favor ao mesmo tempo como ponto de chegada dos conhecinentos
não faltam, das mais simples às mais sutis.
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utilizando-se as palavras
adquiridos e comoponto de partida de um novo estucdo e cde Do mesmo modo, em seguida, das transfor
novos projetos: a urbanizaçào completa. Ahipótese a antecipa. "revoluç§o urbana", designaremos o conjunto
mações que a sociedade contemporânea atravessa para passar
Ela prolonga atendncia fundamental do presente. Aravés e do período en que predominam as questões de crescimento
no seio da "sociedacde burocrática de consumo dirigiclo" a programação) ao
sociedade urbana está em gestaçao. e de industrializaço (modelo, planificação,
prevalecerá decisiva
período no qual a problemáica urbana
e das modalidades pró
Argumento negativo, demonstração pelo absurdo: nenhuma mente, em que a busca das soluções
outra hipótese convém, nenhuma outra abarca o conjunto dos urbana passará ao primeiro plano. Entre as
prias à sociedade pre
problemas. Sociedade pós-industrial? Coloca-se uma questào: transformações, algumas serão bruscas. Outras graduais,
de lazeres? responder est1
oque vem depois da industrialização? Sociedade vistas, concertadas. Quais? Serápreciso tentar
Contenta-se conm uma parte da questão; limita-se o exame clas questão legítima. De antemão, não écerto que, para o pens1
tendências e virtualidades aos "equipamentos", atitude realista sem ambigüidade.
mento, a resposta seja clara, satisfatória,
que deixa intacta a demagogia dessa definiçào. Consumo As palavras "revolução urbana" nào designam, por
essência,
maciço aumentando indefinidanmente? Contenta-se em tomar ações violentas. Elas não as excluem. Como separar
anteci
os índices atuais e extrapolá-los, arriscando-se assim a reduzir padamente o que se pode alcançar pela aço violenta e o que
realidade e virtualidadesa um único de seus aspectos. E assim seria próprio
por diante. se pode produzir por uma ação racional? Não
da violência desencadear-se? E próprio ao pensamento reduzir
A expresso "sociedade urbana" responde a uma necessi a violência ao mínimo, começando por destruir os grilhões
dade teórica. Não se trata simplesmente de uma apresentação no pensamento?
literária ou pedagógica, nem de uma formalização do saber No que concerne ao urbanismo, eis duas balizas
no caminho
adquirido, mas de uma elaboração, de uma pesquisa, e mesmo que será percorrido:
de uma formação de conceitos. Um movimento do pensamento urba
em direção a um certo concretoetalvez para oconcreto se esboça a) muitas pessoas, desde alguns anos, têm visto no
a caráter científico e técnico. Nesse
e se precisa. Esse movimento, caso se confirme, conduzirá nis1mo uma práica social com
uma prática, a prática urbana, apreendida ou re-apreendicla. caso, a reflexão teórica poderia e deveria apoiar-se nessa
Sem dúvida, haveráum umbral a transpor antes de entrar no prática, elevando-a a0 nível dos conceitos e, mais precisa
concreto, isto é, na prática social apreendida teoricamente. mente, ao nível epistemológico. Ora, a ausência de uma tal
Não se trata, portanto, de buscar uma receita empírica para epistemologia urbanística é flagrante. Iremos aqui nos esforçar
fabricar este produto, a realidade urbana. Não éisso o que para preencher tal lacuna? Não. Com efeito, essa lacuna tem
freqüentemente se espera do "urbanismno" e o que muitas um sentido. Não seria porque o caráter institucionale ideoló
vezes os "urbanistas" prometem? Contra o empirismo que gico disso a que se chama urbanismo prevalece, até nova or
constata, contra as extrapolações que se aventuram, contra, dem, sobre o caráter científico? Supondo que esse procedi
enfim, o saber em migalhas pretensamente comestíveis, éuma mento possa se generalizar, e que oconhecimento sempre
teoria que se anuncia a partir de uma bipÛese teórica. A essa
passe pela epistemologia, o urbanismo contemporâneo parece
pesquisa, a essa elaboração, associam-se procedimentos de distante disso. É preciso saber por que e dizê-lo;
método. Por exemplo, a pesquisa concernente a um objeto
virtual, para defini-lo e realizá-lo a partir de um projeto, já b) tal como ele se apresenta, ou seja, como politica (com
tem um nome. Ao lado dos procedimentos e operações clássicas, esse duplo aspecto institucional e ideológico), o urbanismo
a deduçãoea indução, háatransdução (reflexo sobre o objeto condiciona-se a uma dupla crítica: uma crítica de direita e
possfve). uma crítica de esquerda.
O conceito de "sociedade urbana" apresentado anteriormente A critica de direita, ninguém a ignora, é de bom grado
implica, portanto, simultaneamente, uma hipótese euma definição. passadista, não raro humanista. Ela oculta e justifica, direta
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ou indiretamente, uma
ideologia neoliberal, ou seja, a "livre lentamente secretado a realidade urbana, corresponde a uma
empresa". Ela abre o caminho a todas as iniciativas "privadas"
dos capitalistas e de seus capitais. ideologia. Ela generalizao que se passou na Europa por oca
siào da decomposição da romanidacde (do Império Romano)
A criticade esquerda, muitos ainda a ignoram, nào é e da reconstituição das cidades na Idade Média. Pocde-se muíto
aquela
pronunciada por esse ou aquele grupo, agremiaç'o, partido, bem sustentar o contrário. A agricultura somente superou a
aparelho, ou ideólogo classificados "à esquerda". E aquela coleta e se constituiu como tal sob o impulso (autoritário) de
que tenta abrir a via cdo possível, explorar e balizar um terreno centros urbanos, geralmente ocupados por conquistadores
que nào seja simplesmente aquele do "real", do realizado, hábeis, que se tornaram protetores, exploradorese
ocupado pelas forças econômicas,sociais e politicas existentes. isto é, administradores, fundadores de um Estadoopressores,
ou de um
E, portanto, uma crítica u-tópica, pois tona distância em relação esboço de Estado. A cidade politica acompanha, ou segue cle
ao "real", sem, por isso, perde-lo de vista. perto, o estabelecimento de uma vicda social organizada, cla
Dito isso, tracemos um eixO: agricultura e da aldeia.
Éevidente que essa tese não tem sentido quando se
trata
dos imensos espaços onde um seminomadismo, uma miserável
100%
agricultura itinerante sobreviveram interminavelmente. Écerto
que ela se apóia sobretudo nas análises e documentos relatívos
que vaida ausência de urbanização (a "pura natureza", a terra ao "modo de produção asiático", às antigas
civilizações cria
entregue aos "elementos") àculminação do processo. Signifi doras, ao mesmo tempo, de vida urbana e de vida agrária
cante desse significado o urbano (a realidade urbana)-, (Mesopotâmia, Egito etc.). A questão geral das relações entre
esse eixo éao mesmo tempo espacial etemporal: espacia!, a cidade e o campo estálonge de ser resolvida.
porque o processo se estende no espaço que ele modifica;
Arrisquemo-nos, então, a colocar a cidade política no eixo
temporal, uma vez que se desenvolve no tempo, aspecto de espaço-temporal perto da origem. Quem povoava essa cidade
início menor, depois predominante, da prática e da história. política? Sacerdotes e guerreiros, príncipes, "nobres", chefes
Esse esquema apresenta apenas um aspecto dessa história, militares. Mas também administradores, escribas. A cidade
um recorte do tempo até certo ponto abstrato e arbitrário, política não pode ser concebida sem a escrita: documentos,
dando lugar a operações (periodizações) entre outras, não ordens, inventários, cobrança de taxas. Ela é inteiramente
implicando em nenhum privilégio absoluto, mas numa igual ordem e ordenaço, poder. Todavia, ela também implica um
necessidade (relativa) em relação a outros recortes. artesanato e trocas, no mínimo para proporcionar os materiais
No caminho percorrido pelo "fenômeno urbano" (numa indispensáveis à guerra e ao poder (metais, couros etc.), para
palavra: o urbano), coloquemos algumas balizas. No início, o elaborá-los e conservá-los. Conseqüentemente, ela compreende,
que há? Populações destacadas pela etnologia, pela antropo de maneira subordinada, artesos, e mesmo operários. A
logia. Em torno desse zero inicial, os primeiros grupos humanos cidade política administra, protege, explora um território fre
(coletores, pescadores, caçadores, talvez pastores) marcaram e qüentemente vasto, aí dirigindo os grandes trabalhos agrícolas:
nomearam o espaço; eles o exploraram balizando-o. Indicaram drenagem, irrigação, construção de diques, arroteamentos etc.
oslugares nomeados, as topias fundamnentais. Topologia e grade Ela reina sobre um determinado número de aldeias. Aí, a pro
espacial que, mais tarde, os camponeses, sedentarizados,aper priedade do solo torna-se propriedade eminente do monarca,
feiçoaram e precisaram sem perturbar sua trama. O que importa símbolo da ordem e da ação. Entretanto, os camponeses e as
ésaber que em muitos lugares no mundo, e sem clúvicda em comunidades conservam a posse efetiva mediante opagamento
todos os lugares onde a história aparece, a cidade acompanhou de tributos.
ou seguiu de perto a aldeia. Arepresentaço segundo a qual o Nunca ausentes, a troca e o comércio devem aumentar. De
campo cultivado, a aldeia e a civilização camponcsa, teriam início confiados a pessoas suspeitas, os "estrangeiros", eles
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se fortalecem funcionalmente. Os lugares destinacdos à troca do sudoeste, na França, primeiras cidades a se constituírem
e ao comércio sào, de início, fortemente marcados por signos em torno da praça do mercado. Ironia da história. O fetichismo
da mercadoria aparece com o reino da mercadoria, com su:a
de beterolopia. Conmo as pesoas que se ocupam deles e os lógica e sua icdeologia, conm sua língua e seumundo. No século
oCupam, esses lugares sào, antes cle mais nada,excluíclos da XIV, acredita-se ser suficiente estabelecer um mercado e cons
cidade política: caravançaris, praças de nercado, faubougs truir lojas, pórticos e galerias ao redor d praça central, para
etc. O processo de integraçìo do mercacio e cla mercacdoria
(as pessoas e as coisas) à cidale cura séculos e séculos. A que os mercacdlores e compradores afluam. Senhores e bur
troca e o comércio, indispensiveis à sobrevivÁncia como à vicda, gueses edificam, então, cidacdes mnercantis nas regiões incultas,
quase desérticas, aincla atravessadas por rebanhos e seminô
suscitam a riqueza, omovimento. Acidade politica resistecom
toda asua força, com toda a sua coesao; ela sente-se, sibe-se mades transumantes. Tais cidades do sudoeste francês perecem,
ameaçada pelo mercado, pela mercacloria, pelos conmerciantes, apesar de terem os nomes de grandese ricas cités (Barcelona,
por sua forma de propriedade (a propriedade mobiliária, Bolonha, Plaisance, Florença, Gran1da etc.). De todo modo,
movente por definiçào: o dinlheiro). Inumeráveis fatos testemu a cidade mercantil tem seu lugar, no percurso, depois da cidade
nham a existência, ao lado da Atenas política, tanto da cicdacle política. Nessa data (aproximadamente no século XIV, na
comercial, o Pireu, quanto as interdiçòes em vào repeticas à Europa Ocidental), a troca comercial torna-se função urbana;
disposiçào de mercadorias na ágorn, espaço livre, espaço do essa função fez surgir uma forma (ou formas: arquiteturais e/ou
encontro politico. Quando Cristo expulsa os mercadores clo urbanísticas) e, em decorrência, uma nova estrutura do espaço
templo, trata-se da mesma interdição, com o mesmo sentido. urbano. As transformações de Paris ilustram essa complexa
Na China, no Japão, os comerciantes permanecem durante interação entre os três aspectos e os três conceitos essenciais:
longo tempo na baixa classe urbana, relegada num bairro função, forma, estrutura. Os burgos e faubourgs, inicialmente
"especializado" (heterotopia). Em verdade, éapenas no Ocidente comerciais e artesanais Beaubourg, Saint-Antoine, Saint
europeu, no final da Idade Média, que a mercadoria, o mercaclo Honoré tornam-se centrais, disputando a influência, o pres
e os mercadores penetram triunfalmente na cidade. Pode-se
tígio e o espaço com os poderes propriamente políiticos (as
conceber que outrora os mercadores itinerantes, um pouco instituições), obrigando-os a compromissos, participando com
guerreiros, um pouco saqueadores, escolheram deliberada eles da constituição de uma poderosa unidade urbana.
mente as ruínas fortificadas das cidades antigas (romanas) Num determinado momento, no Ocidente europeu, tem
para levaracabo sua luta contra os senhores territoriais. Nesta lugar um "acontecimento" imenso e, entretanto, latente, se
hipótese, a cidade política, renovada, teria servido de quadro se pode dizer, porque despercebido. O peso da cidade no con
à ação que iria transformá-la. No curso dessa luta (de classes)
contra os senhores, possuidores e dominadores do território, junto social torna-se tal que o próprio conjunto desequilibra-se.
luta prodigiosamente fecunda no Ocidente, criadora de una A relação entre a cidade eocampo ainda conferia a primazia a
históriae mesmo de história tout court, a praça do mercado este último: àriqueza imobiliária, aos produtos do solo, às
torna-se central. Ela sucede, suplanta, a praça cda reunião (a pessoas estabelecidas territorialmente (possuidores de feudos
ágora, o fórum). Em torno do mercado, tornado essencial, ou de títulos nobiliários). A cidade conservava, em
relação aos
agrupam-se a igreja ea prefeitura (ocupada por uma oligarquia campos, um caráter heterotópico marcado tanto pelas muralhas
de mercadores), com sua torre ou seu campanário, símbolo de quanto pela transição dos faubourgs. Num dado momento,
liberdade. Deve-se notar que a arquiletura segue e traduz a essas relações múltiplas se invertem, há uma reviravolta. No
nova concepção da cidade. O espaço urbano torna-se o lugar eixo deve ser indicado o momento privilegiado dessa
do encontro das coisas e das pessoas, da troca. Ele se
menta dos signos dessa liberdade conquistacla, que
orna volta, dessa inversão da heterotopia. Desde entào, a revira
parece a não aparece mais, nem mesmO para si cidade
Liberdade. Luta grandiosa e irrisória. Nesse sentido, houve urbana num oceano camponês; ela nãomesma, como uma ilha
razåo em estudar, dancdo-Ihes um valor simbólico, as "bastides! mesma como paradoxo, monstro, infernoaparece mais para si
ou paraíso oposto
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à natureza alde ou camponesa. Ela entra na consciência e olhar, ao mesmotempo ideal e realista do pensamento, do
no conhecimento como um dos termos, igual ao outro, cla poder, situa-se na dimenso vertical, a do conhecimento e
da razão, para dominar e constituir uma totalidade: a cidade.
oposição "cidade-campo. O
campo? Não émais - nàoénada Essa inflexão da realidade social para o urbano, essa des
mais que a "circunvizinhanca" da cidade, seu horizonte,
seu limite.As pessoas da aldeia? Segundo sua própria maneira continuidade (relativa) pode perfeitamente ser indicada no
de ver, deixam de trabalhar para os senhores territoriais. Pro eixo espaço-temporal, cuja continuidade permite justamente
situar e datar cortes (relativos). Bastará traçar uma mediana
duzem para a cidade, para o mercado urbano. E, se sabenm que entre o zero inicial e o número final (por hipótese, cem).
os mercadores de trigo ou madeira os exploram, encontram
porém no mercado o caminho da liberdade. Essa inverso de sentido nào pode ser dissociada do cres
pessoas cimento do capital comercial, da existência do mercado. Éa
Oque se passa próximo a esse momento crucial? As cidade comercial, implantada na cidade política, mas prosse
que refletem nào mais se vêem na natureza, mundo tenebroso guindo sua marcha ascendente, que a explica. Ela precede
atormentado por forças misteriosas. Entre eles e a natureza, um pouco a emergência do capital industrial e, por conse
o
entre seu centro e núcleo (de pensamento, de existência) e guinte, a da cidade industrial. Este conceito merece um
mundo, instala-se a mediação essencial: a realidade urbana. comentário. A indústria estaria vinculada à cidade? Ela estaria,
com o
Desde esse momento, a sociedade no coincide mais antes de mais nada, ligada à não-cidade, ausência ou ruptura
coincide mais com a cité. O Estado os subjug.,
campo. Não da realidade urbana. Sabe-se que inicialmente a indústria se
OS reúne na sua hegemonia, utilizando
suas rivalidades. Para
se anuncia implanta como se diz próxima às fontes de energia
os contemporâneos, entretanto, a majestade quepor atributo? (carvo, água), das matérias-primas (metais, têxteis), das
velada. A quem se confere a Razão
Ihes aparece a razão reservas de mão-de-obra. Se ela se aproxima das cidades, é
ÅRealeza? Ao divino Senhor? Ao indivíduo? Contudo, é para aproximar-se dos capitais e dos capitalistas, dos mercados
que se restabelece após a ruína de Atenas e de Roma,
da Cité e de uma abundante mão-de-obra, mantida a baixo preço.
essenciais, a lógica e
após o obscurecimento de suas obras Logo, ela pode se implantar em qualquer lugar, mas cedo ou
mas o seu renascimento não é
o direito. O Logos renasce; tarde alcança as cidades preexistentes, ou constitui cidades
a uma razão
atribuído ao renascimento do urbano, e sim novas, deixando-as em seguida, se para a empresa industrial
transcendente. O racionalismo que culmina com Descartes
camponesa háalgum interesse nesse afastamento. Assim como acité política
acompanha a inversão que substitui a primazia resistiu durante longo tempo à ação conquistadora, meio pací
Durante esse
pela prioridade urbana. Ele não se vê como tal. fica, meio violenta, dos comerciantes, da troca e do dinheiro,
nasce a imagem da cidade. A cidade já
período, entretanto, a cidade política e comercial se defendeu contra o domínio
poderes. Ela já
detinha a escrita; possuía seus segredos e (ingênua e da indústria nascente, contra o capital industrial e o capita
opunha a urbanidade (ilustrada) à rusticidade
tem sua lismo tout court. Por que meios? Pelo corporativismo, a imo
brutal). A partir de um determinado momento, ela bilização das relações. O continuísmo histórico e o evolucio
própria escrita: o plano. Não entendamos por isso a planifi nismo mascaram esses efeitos e essas rupturas. Estranho e
cação ainda que ela também se esbocemas a planimne
precisamernte essa admirável movimento que renova o pensamento dialético: a
tria. Nos séculos XVIe XVII, quando ocorre não-cidade e a anticidade vão conquistar a cidade, penetrá-la,
inversão de sentido, aparecem, na Europa, os planos de cida
primeiros planos de Paris. Ainda não fazê-la explodir, e com isso estendê-la desmesuradamente,
des e, sobretudo, os levando à urbanização da sociedade, ao tecido urbano reco
projeção do espaço urbano num espa
são planos abstratos, entre a visão e brindo as remanescências da cidade anterior à indústria. Se
ço de coordenadas geométricas. Combinação esse extraordinário movimento escapa àatenção, se ele foi
planos mostram a
a concepção, obras de arte e de ciência, os descrito apenas fragmentariamente, éporque os ideólogos
cidade a partir do alto e de longe, em perspectiva, ao mesmo quiseram eliminar o pensamento dialético e a análise das
geometricamente. Um
tempo pintada, representada, descrita
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Contradições em tavor do pensamento lógico, ou seja, da reagem sobre elas. Bem entendido, se há uma realidade
constataçào das coerências e tào-somernte das coerências. urbana que se afirma e se confirma como dominante, isso Sóse
dá atravésda problemática urbana. Que fazer? Como construir
Nese movimento, a realidade urbana, ao mesmo tempo ampli cicdades ou "alguma coisa" que suceda o que outrora foi a
ficada e estilhaçada, perde os traços que a época anterior lhe Cidade? Como pensar o fenômeno urbano? Como formular, clas
atribuía: totalidade orgânica, sentido de pertencer, imagem sificar, hierarquizar, para resolv-las, as inumeráveis questões
enaltecedora, espaço demarcado e dlominado pelos esplen que ele coloca e que dificilmente passam, não sem múltiplas
dores monumentais. Ela se povoa com os signos do urbano na resistências, ao primeiro plano? Quais os progressos deci
dissoluç§o da urbanidade; torna-se estipulação, ordem repres sivos a serem realizados na teoria e na ação prática para que
s0va, inscriçào por sinais, códigos sumários de circulação (per aconsciência alcance o nível do real que a ultrapassa e do
cursos)e de referência. Ela se lê ora como um rascunho, ora
possível que lhe escapa?
Como uma mensagem autoritária, Ela se declara mais ou menos
imperiosamente. Nenhum desses termos descritivos dá conta Assim se baliza o eixo que descreveo processo:
completamente do processo histórico: a implosão-exploso
(metáfora emprestada da fisica nuclear), ou seja, a enorme
concentração (de pessoas, de atividades, de riquezas, de coisas Ciclade Zon:a
Cidade
e de objetos, de instrumentos, de meios e de pensamento) na Cidade
comercial industrial crítica
política
realidade urbana, e a imensa explosão, a projeção de frag
mentos múltiplos e disjuntos (periferias, subúrbios, residências 100%
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