Boletim Da SBM - Fungos Zumbis
Boletim Da SBM - Fungos Zumbis
Boletim Da SBM - Fungos Zumbis
BOLETIM MICOBIOTA
v. 3, n. 1 janeiro-março 2023
OS ZUMBIS DA VIDA
REAL E OS FUNGOS
QUE OS MANIPULAM
ISSN 2764-3298
BOLETIM MICOBIOTA
v. 3, n. 1, janeiro - março 2023
EXPEDIENTE
Nota do editor
Os autores são responsáveis pela apresentação dos fatos contidos e
opiniões expressas nesta obra
Imagem da capa: Ophiocordycpes unilateralis s.l. infectando formiga
carpinteira|Foto João Araújo
Imagem da contra-capa: Estágios iniciais da infecção de Ophiocordyceps
unilateralis s.l. em formiga carpinteira|Foto João Araújo
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EDITORIAL
Eis que publicamos a primeira edição de 2023.
Na Estante Micológica e na Micofagia, são apresentados os alimentos Inspirando novas gerações: Dra.
fermentados por fungos. Na primeira matéria, apresentamos um livro dedicado Clarice Loguercio Leite ......... 12
ao tema e, na segunda, uma pouco sobre o famoso molho shoyu – produzido a
partir da fermentação de grãos de soja por fungos do gênero Aspergillus. Falando nisso ..........16
A volta da seção Inspirando Novas Gerações detalha as contribuições da Dra. Estante micológica .......... 19
Clarice Loguercio Leite para a micologia. A entrevista é conduzida pelas colegas e
sócias da SBMic Dra. Maria Alice Neves e Dra. Larissa Trierveiler Pereira. Micologia Médica .......... 21
Não deixe de conferir as demais seções como Eventos, Falando nisso e o Líquen da Vez .......... 24
Líquen da vez.
Coleções micológicas ..........26
Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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Uma nota importante:
Para quem ainda não sabe, vale ressaltar que nosso boletim possui ISSN, e com
isso, todas as contribuições aqui publicadas, podem (e devem) ser incorporadas
ao Currículo Lattes de quem as publicou.
Fazer divulgação científica é algo tão importante quanto necessário, e tem sido
cada vez mais bem avaliado por parte das agências de pesquisa e fomento à
ciência, como a CAPES e o CNPq.
Na janela que se abrir, digite os dados relativos à sua publicação, salve e voilá,
está registrada a contribuição no seu Lattes. Simples, fácil e gratuito!
Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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COM A PALAVRA,
A DIRETORIA
Robert W. Barreto | Presidente da SBMic
Saudações micológicas aos nossos atuais e X CBM tem tido estão recebendo boa
futuros associados! acolhida. Primeiro, comemoramos o apoio
total da Universidade Federal de Minas
Os fungos estão na berlinda! Vários livros Gerais, que hospedará o evento.
voltados à divulgação científica sobre os
cogumelos, especificamente, e sobre os Em segundo lugar, obtivemos o apoio e
fungos em geral, têm sido lançados e têm parceria do Instituto Inhotim para o
tido boa acolhida mundial. X CBM. Detalhes da parceria estão sendo Em reunião ordinária realizada em
discutidos, mas, provavelmente incluirá fevereiro, a Diretoria decidiu manter os
A série televisiva “The Last of Us” – uma série atividades (eventos-satélite) nas áreas e valores da anuidade de todas as três
fantasiosa micocatastrófica, em que o vilão dependência do parque. categorias conforme o ano passado
ficcional é um bizarro “Cordyceps” – tem sido (Estudantes de Graduação: R$ 70/
um sucesso mundial com milhões de Houve, também, uma acolhida favorável Estudantes de Pós-Graduação: R$ 120 /
acessos. O momento é propício para para o convite feito para a Reserva Profissionais: R$ 250).
estimular novas vocações micológicas e criar Particular do Patrimônio Natural
pontes entre a SBMic e o público brasileiro. Santuário do Caraça, de uma parceria Serão concedidos descontos na inscrição
visando a realização do X CBM. do X Congresso Brasileiro de Micologia a
Antes, no entanto, temos que conquistar todos os sócios e sócias que pagarem a
como associados nossos próprios O congresso é daqui a um ano, mas o anuidade até o dia 31 de agosto de 2023.
colegas de vocação e profissão. O tempo passa rápido. Vamos precisar
número de pesquisadores e professores muito do apoio de nossos colegas para o Para consultar sua situação, acesse aqui
dedicados ao estudo dos fungos que não sucesso do evento. Coloquem o X CBM e digite seu e-mail de cadastro.
está cadastrado na SBMic é muito em suas agendas. Preparem suas Caso sua anuidade esteja paga, será
grande. Apenas uma minoria está em dia contribuições científicas, associem-se à possível baixar o comprovante de
com as anuidades. Temos que tratar isso SBMic, divulguem a Sociedade e seu quitação. Caso a anuidade esteja em
como um desafio coletivo de nossa congresso! Estamos otimistas e atraso, você será direcionado à página
comunidade micológica. “sonhando alto”. para pagamento.
A SBMic tem que ser entendida como a A fim de garantir a participação de toda Faça o pagamento da anuidade o quanto
casa e o fórum dos que escolheram os nossa comunidade, bem como, consolidar antes, pois pode haver atrasos de até 7
fungos como assunto preferido. Somos um evento à altura da SBMic, já foram dias entre a confirmação do pagamento e
muitos mas continuamos dispersos. Não estabelecidas as taxas de inscrição do disponibilização do comprovante de
precisa e nem deve ser assim! Congresso, sendo que o primeiro lote se quitação. Não deixe para a última hora.
encerra em 31 de agosto deste ano. A boa
Nosso congresso serve de motivação extra notícia é que sócios da SBMic têm
para atrairmos os colegas dispersos e desconto significativo na taxa de inscrição Robert W. Barreto é professor da
divulgar a Micologia e nossa própria do evento. Universidade Federal de Viçosa (UFV)
produção. e Presidente da SBMic
Mas ATENÇÃO! rbarreto@ufv.br
Estamos trabalhando intensamente para Para que o desconto seja garantido, é
organizar o X Congresso Brasileiro de necessário que os sócios e sócias estejam Eduardo Guatimosim é professor da
Micologia. Vamos aproveitar os “ventos com sua anuidade em dia. As anuidades, Universidade Federal do Rio Grande
favoráveis”! A página do congresso já está como o próprio nome diz, devem ser (FURG) e Editor Chefe do Boletim
disponível. pagas todos os anos, assim, quem pagou a Micobiota
anuidade em dezembro de 2022 deve e.guatimosim@furg.br
Algumas ideias que a organização do pagar novamente agora, em 2023.
Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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CAPA
Os zumbis da vida real
e os fungos que os manipulam
Micologia e horror cinematográfico se distópico em que fungos, artrópodes hospedeiros para torná-los
encontraram recentemente na forma denominados na série como zumbis da vida real, foi fonte de
de um jogo eletrônico de “Cordyceps”, deixaram de infectar e inspiração para os autores da série e
ação/aventura e uma série de TV manipular formigas para infectar e tem sido uma fonte de fascínio e até
derivada, ambos sob o nome The Last zumbificar humanos. mesmo alguma preocupação
of Us. (injustificável) do grande público.
A intrigante biologia de alguns
Tanto a série quanto o game que a “Cordyceps”, que têm a capacidade de Fungos entomopatogênicos, aqueles
antecede se passam em um cenário manipular o comportamento dos que infectam insetos, têm intrigado
Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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naturalistas desde o século 19 – como
Alfred Russell Wallace, um dos
grandes nomes por trás da ideia de
evolução das espécies por seleção
natural, – desde a década de 1860.
Mas, poucos cientistas se dedicaram
ao entendimento mais profundo
desses fascinantes organismos.
Formigas-zumbi:
entendendo o fenômeno
O fenômeno de “zumbificação” de
humanos é um assunto controverso e
um tanto quanto místico. Já quanto
aos insetos (mais precisamente
formigas doentes) “transformados em
zumbis” não há dúvidas, eles existem!
Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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Sendo assim, as imediações desses
cadáveres se tornam verdadeiros
campos minados de esporos que
infectarão as próximas formigas
que, por acaso, se atrevam a
cruzar o território semeado pelo
fungo.
A série tem tido grande sucesso e Nigelia aff. martiale infectando um besouro | Foto: João Araújo
alcançado um público de vários
milhões de pessoas. Em resposta à
preocupação dos telespectadores,
vários artigos já foram
apresentados em grandes meios de
comunicação como National
Geographic, CNN, Forbes Magazine
entre outros. Neles, se esclarece
que é improvável se esperar que
“Cordyceps”, ou fungos
relacionados, se tornem patógenos
de humanos. Além dessas questões
sobre a impossibilidade de sermos
infectados por esses “fungos
zumbificantes” há alguns aspectos
da biologia dos “Cordyceps” que
não são ainda devidamente
explicados nessas matérias para o
público.
Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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1) Taxonomia, histórico evolutivo e nomenclatura
dos fungos zumbificantes
Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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2) Existem muitas espécies de fungos manipuladores das
"formigas-zumbi”, não apenas uma
“Cordyceps” – o fungo manipulador Os “fungos zumbificantes” são muito de formigas éinfectada por “sua
das formigas zumbi, é tratado como especializados em relação às espécies própria espécie de fungo”. Portanto, se
uma única espécie em The Last of Us que infectam. Uma espécie de extrapolarmos esse número para a
e na maioria dos artigos não- Ophiocordyceps só pode infectar uma diversidade global de formigas
científicos, já que não há menção a espécie de formiga. No entanto, com carpinteiras, que se aproxima de 1.200
múltiplas linhagens e diferentes base em extensas pesquisas em todo espécies, e aplicarmos a taxa
tipos de infecção e estratégias de o mundo, é senso comum entre os (conservadora) de 50% das espécies de
manipulação que vemos nas micologistas que atuam na área, que formigas tendo um Ophiocordyceps
infecções da vida real. existem muito mais de 35 espécies especialista que as ataca, podemos
capazes de zumbificar seus estimar um número global de 600
O gênero Ophiocordyceps, que inclui hospedeiros. O fenômeno de espécies de “fungos zumbificantes”
todas as espécies de fungos “zumbificação” deve ser muito mais ainda a serem descritas.
manipuladores das “formigas- comum e a grande maioria dos
zumbi”, é composta atualmente por “fungos zumbificantes” ainda nem foi Atualmente, podemos ver apenas a
cerca de 320 espécies descritas. descoberta e descrita. ponta do iceberg, mas os trabalhos
Dentre essas, aproximadamente 35 avançam pelo mundo e o interesse pelo
tem documentado o efeito de Os levantamentos já feitos indicam tema é grande. Além de enriquecimento
manipulação do comportamento que mais de 50% das espécies de do conhecimento sobre diversidade e
das formigas infectadas. As formigas carpinteiras são infectadas taxonomia desses fungos, espera-se
“vítimas” são, predominantemente, por uma espécie única de que novos tipos de manipulação de
espécies de Camponotus spp. (as Ophiocordyceps, na Amazônia comportamento (zumbificação) sejam
formigas carpinteiras). brasileira. Cada uma dessas espécies revelados nos próximos anos.
Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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Ophiocordyceps unilateralis s.l. em formiga carpinteira | Foto: João Araújo
O terceiro equívoco é que os fungos Alguns anos depois, Blake Barnes, do onde morava. Essa espécie já havia
zumbis são organismos obscuros que Missouri, encontrou outra espécie de sido descrita por mim mesmo, anos
só são encontrados em áreas fungo zumbificante não descrita. antes, de outra parte da Flórida. O
remotas ou nas profundezas das Nesse caso, o fungo manipulava as fungo tinha sido coletado crescendo
florestas tropicais. Isso não é formigas, levando-as a morrerem e a em cabeças da formiga carpinteira
verdade. fazerem o fungo esporular dentro de (Camponotus floridanus). Essa nova
toras caídas em matas próximas a coleta revelou, finalmente, que a
Além das espécies realmente sua casa. Esse tipo, anteriormente formiga infectada, em seus momentos
encontradas nas profundezas das desconhecido de manipulação, finais, morde a folha de uma palmeira,
florestas, novas espécies vêm sendo provavelmente confere proteção ao o que também é comum em espécies
encontradas e descritas a partir de fungo contra o clima frio, amazônicas.
espécimes coletados, até mesmo contrastando com o comportamento
por amadores, em todo o mundo. usual de formigas infectadas em Fungos desse grupo podem ser
regiões tropicais, onde essas mordem bastante comuns em florestas e
Dois exemplos vêm de espécies folhas no sub-bosque. jardins pelo Brasil todo! Talvez, se
descritas nos Estados Unidos: você olhar com atenção, consiga
Ophiocordyceps kimflemingiae e Após um olhar mais atento e por encontrar tais zumbis (autênticos)
Ophiocordyceps blakebarnesii. meio de análises morfológicas e pendurados em plantas no seu quintal
genéticas, confirmou-se que o fungo ou numa floresta perto de você.
Kim Fleming descobriu que seu de Blake era de fato uma nova
próprio quintal na Carolina do Sul espécie. Ambas as espécies Uma coisa é verdade: estamos
era um hotspot com centenas de receberam o nome dos autores que cercados por zumbis da vida real.
formigas-zumbi. Essa micologista as descobriram. Mas isso não é motivo para termos
amadora foi observando e medo dos fungos. Afinal, não somos
coletando amostras ano após ano, Recentemente, em Gainesville, na formigas!
possibilitando, além da descrição da Flórida, foi encontrado por mim, um
João Araújo é curador assistente
nova espécie O. kimflemingiae, um espécime de Ophiocordyceps em micologia do New York
melhor entendimento sobre sua camponoti-floridani no quintal da casa Botanical Garden
ecologia. jaraujo@nybg.org
Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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INSPIRANDO NOVAS GERAÇÕES
Maria Alice Neves é professora associada na UFSC com Larissa Trierveiler Pereira é professora voluntária e
doutorado pela City University of New York e The New pesquisadora colaboradora do Laboratório de Estudos
York Botanical Garden e mestrado em Biotecnologia pela Micológicos da UFSCar, mestre em Biologia de Fungos pela
UFSC. Tem experiência em taxonomia, atuando UFPE e doutora em Botânica pela UFRGS. Atua com ênfase
principalmente com biologia sistemática molecular e em taxonomia de macrofungos, sistemática molecular,
filogenia de macrofungos e ectomicorrizas tropicais aspectos ecológicos de macrofungos, etnomicologia,
(Basidiomycota, Agaricales sensu lato, Boletales) micofagia, cogumelos comestíveis e divulgação científica
(perfil: @micolabufsc) Foto: Maria Alice Neves (perfil: @fancnacabeca). Foto: Larissa T. Pereira
Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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Maria Alice - Hoje estou aqui fazendo descobri que tinha uma professora no curso em Bariloche com o micologista
mais uma entrevista para a série sul do Brasil vinculada a um curso de alemão, doutor Rolf Singer. Só que ele
"Inspirando Novas Gerações", e nossa pós-graduação - no caso meu foi furou, e nós éramos muitas pessoas! A
inspiração de hoje é a doutora Clarice mestrado - eu me inscrevi. Mas doutora Irma Gamundí de Amos nos
Loguercio Leite, que eu tenho orgulho de quando eu cheguei para a entrevista, acolheu na casa dela, e eles ficaram
chamar de minha eterna professora, e ela disse “não, eu trabalho com muito constrangidos porque não eram
convidei a Larissa Trierveiler Pereira para macromicetos degradadores de só brasileiros - eram peruanos,
fazer essa entrevista comigo. Então, madeira”. E aí começou, eu gostei! paraguaios, várias pessoas que
Clarice, muito bem-vinda! Está super Tinha a parte microscópica e tinha a queriam fazer um curso com ele. E elas
charmosa, como sempre, voltando à vida parte de campo, mas pessoalmente deram o curso, nós fizemos muitas
depois do acidente que aconteceu no eu gosto mais de laboratório, e foi a coletas em Bariloche, todo mundo.
Congresso de Micologia aqui em Floripa minha iniciação. Ao fazer o mestrado,
(risos)... lá em Porto Alegre, eu pude fazer
Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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Maria Alice - Porque o doutorado tu
fizeste lá depois, e foi quando conheceste
a Andrea, não foi?
Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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2005. Curso com Roy Halling na UFSC. Esq para dir de pé: Marcelo Rother, Andrea Romero, Clarice Loguercio Leite, Larissa
Trierveiler Pereira, Marisa Campos Santana, Wagner Cortez, Cláudia Groposo, Maria Alice Neves, Roy Halling, Josué Michels, Juliano
Marcon Baltazar. Agachados, esq para dir: Gilberto Coelho, Elisandro Ricardo Dreschler dos Santos| Foto: Clarice Loguercio Leite
uma mulher em um lugar que, por um aluno me disse “mas a senhora fazer, senão a gente vira um replicador
mais que seja mais livre, a gente não gosta de mim!” e eu dizia, “mas de metodologia. Por que a gente
ainda tem que lutar às vezes, muitas eu não tenho que gostar de ti, meu admira os antigos micólogos? Porque
vezes. Houve reuniões em que eu objeto de amor é a micologia!” eles não tinham microscópio, e olha
resolvi perguntar pro colega qual era o que coisas perfeitas eles fizeram! Foi
problema! Então, é esse tipo de coisa. Maria Alice – Como você vê a diferença na muito tempo investido, e eu acho que
Eu fico vendo a postura que eu tenho, educação ao longo das gerações de tem que ter esse tempo, essa vontade,
que eu tomei na minha vida, que é ser estudantes desde que começou a dar aula? essa capacidade de pensar e de fazer
enfrentadora, é ser quase "masculina" as coisas, essa dedicação. Tem que
para conseguir lidar. Até os alunos que Clarice - As pessoas que têm uma certa decantar, tem que passar um tempo
eram rebeldes, eu sempre fui para cima. característica para fazer pesquisa e para a gente amadurecer.
Eu me lembro, na época, do João André investigação continuam muito
Jarenkow dizer “um dia eles vão te parecidas. O que facilitou é que tu tens Maria Alice – Tem algum recado que para
bater”, e eu pensava “não, eles batem meios, rapidez em realizar. Tu passou inspirar as futuras gerações?
em quem abaixa a cabeça para eles”. Eu por um momento em que para a gente
tinha que ter esse enfrentamento numa pesquisar em uma bibliografia, por Clarice - As pessoas têm que pensar
sala de aula. exemplo, a gente tinha que pedir, muito, ler muito e ter muita aptidão.
escrever para o autor, esperar muito Estou falando aqui com duas mulheres
Maria Alice - Vejo que o que as pessoas tempo... Mestrado e doutorados muito versáteis, elas fazem muitas
chamam de crueldade é ser direta e ser demoravam muito tempo porque não coisas. Essa versatilidade, essa força
objetiva. Mas as pessoas se ofendem se tu se tinha acesso à bibliografia, por interior, é importante para quem faz
é séria e direta, quando essa é na verdade exemplo. Então, a tecnologia auxiliou, ciência. A gente precisa ter paciência e
a forma mais eficiente de se trabalhar, mas eu não acho que a tecnologia pensar que um dia vai dar certo, não no
especialmente na ciência. deixe pessoas que não têm sentido da esperança, mas da
interesse pela ciência mais persistência. Pensando
Clarice - Então tem uma educadora, do interessadas. Eu não vejo isso! Acho persistentemente é que vou seguir.
ponto de vista acadêmico, e você que há pessoas que conseguem usar
também se torna uma orientadora do Larissa Trierveiler Pereira é professora
esses mecanismos mais recentes e
ponto de vista civilizatório para certas da Universidade Federal de
fazer um trabalho melhor, com mais
São Carlos (UFSCar) e representante
pessoas. Eu acho que um professor é, qualidade. Mas acho que é anterior a regional da SBMic
de certa forma, em vários aspectos, isso: as pessoas que gostam de ler, Lt_pereira@yahoo.com.
um artista! Ele representa, ele tem um as pessoas que gostam de pensar,
texto que é o que ele deve essas pessoas podem fazer ciência. Maria Alice Neves é professora
saber muito bem, mas também fazer Pensar profundamente sobre certas associada na Universidade Federal
essa performance e tem que ser isso: coisas, até mesmo sobre a existência, é de Santa Catarina (UFSC) e
flertar com as pessoas, seduzir. Uma vez representante regional da SBMic
isso que faz com que a gente possa
maliceneves@gmail.com
Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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FALANDO NISSO
Mesmo diante de um cenário de não Fomitiporia nubicola Alves-Silva, Bittencourt & Drechsler-Santos. Espécie descrita em
valorização e negligência legal e 2020 que é encontrada, até o momento, crescendo apenas em árvores vivas e troncos
mortos de Drimys angustifolia. Existem apenas dois registros de ocorrência de
política, as mudanças já começaram Fomitiporia nubicola, ambos localizados em Santa Catarina, sul do Brasil.
a acontecer e o futuro quanto à Fomitiporia nubicola é uma espécie ameaçada pelas ações antrópicas, sendo
considerada vulnerável pelos critérios de avaliação da IUCN | Foto: Genivaldo Alves-
conservação da funga brasileira Silva
parece ser algo promissor.
Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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Algumas capturas de tela de reuniões durante as etapas de organização da proposta de criação do Grupo de Especialistas em Fungos do
Brasil, da Comissão de Sobrevivência de Espécies (SSC) da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). As fotografias
mostram os membros do Grupo até o momento: 1 - Prof. Dr. Elisandro Ricardo Drechsler-Santos. 2 - Profa. Dra. Luciana da Silva Canêz. 3 -
Prof. Dr. Diogo Henrique C. Rezende. 4 - Prof. Dr. Francisco J. Simões Calaça. 5 - Prof. Dr. Nelson Menolli-Jr. 6 - Profa. Dra. Larissa Trierveiler
Pereira. 7 - Prof. Dr. Jadson Diogo P. Bezerra. 8 - Profa. Dra. Tiara Sousa Cabral. 9 - Biólogo Kelmer Martins-Cunha
funga quanto da flora e fauna. Ainda não existem os fundamentos regulamenta a proteção e
para uma política de inclusão de conservação das espécies.
Esse processo vem aumentando fungos na agenda de conservação do
significativamente, principalmente Brasil, uma vez que espécies Com isso, um país de proporções
em domínios fitogeográficos e ameaçadas recentemente publicadas continentais, dotado de grande
ecossistemas que resguardam vários na lista vermelha global, ainda não diversidade de fungos, deve buscar
endemismos fúngicos. foram reconhecidas em uma lista formas de fortalecer planos e ações
vermelha nacional ou em programas que permitam proteger suas
Felizmente, o país vem revelando de conservação e biodiversidade do espécies.
muitas novidades no processo de governo brasileiro.
reconhecimento de espécies O BrazFunSG surge neste contexto,
fúngicas, mas até o momento pouco Essa negligência pode ser explicada com a seguinte visão: “Brasil, um
se sabe sobre o estado de pela ausência de menção a esses país que valoriza e conserva os
conservação de tais espécies. organismos na legislação federal que Fungos”. O grupo, inicialmente
Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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formado por oito pesquisadores de
diferentes regiões do país, e por
especialistas em diferentes grupos
de fungos, tem em sua equipe
micólogos e liquenólogos dedicados
a incluir os fungos nos diferentes
programas de sobrevivência de
espécies, na legislação ambiental,
áreas protegidas, política social e
econômica, gestão de ecossistemas,
educação e comunicação científica.
O BrazFunSG irá promover diversas Logo criada para representar o grupo que busca integrar tanto a
dimensão continental do país e a relevância da funga, como
ações, entre elas: componente essencial para o equilíbrio dos ecossistemas terrestres
Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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ESTANTE MICOLÓGICA
Um banquete microbiano
Ao organizarmos o livro pioneiro em
língua portuguesa chamado
“Microbiologia de Alimentos
Fermentados” (Editora Blucher, 2022),
recorremos a uma divisão clássica dos
alimentos fermentados em grupos,
baseada no tipo de matéria-prima.
Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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Grãos de kefir de leite Chá fermentando para produção de kombucha
Foto: José Guilherme Prado Martin Foto: José Guilherme Prado Martin
Dos cárneos para os plant-based, sem fermentar a soja, que se transformará que bactérias acéticas correspondam
dúvidas é no grupo das leguminosas no tão apreciado shoyu? ao grupo mais abundante, as leveduras
que os fungos são a grande estrela! são imprescindíveis para a ecologia da
Desde o tempeh indonésio E como em uma mesa que se preze fermentação do chá, contribuindo,
fermentado por Rhizopus oligosporus, não pode faltar uma boa dose de ainda, com a formação de compostos
ao molho de soja (em que o koji, bebida, não poderíamos deixar de voláteis responsáveis pelos atributos
Aspergillus oryzae, exerce papel mencionar a relevância das leveduras de sabor da bebida.
primordial), passando pelos para a produção de bebidas
fermentados asiáticos (ainda) pouco fermentadas produzidas e consumidas Que tal se refestelar nesse banquete
conhecidos de grande parte da no mundo todo. microbiano junto a uma leitura atenta
população, como o angkak (arroz sobre cada um desses grupos de
chinês com sua hipnotizante cor Falar de Saccharomyces cerevisiae e sua alimentos e bebidas, com informações
avermelhada devido ao crescimento relação com a fermentação de cervejas, técnicas acerca dos bioprocessos
de Monascus purpureus, mesmo fungo vinhos e cachaça pode soar redundante, envolvidos na sua fermentação? É a
usado na produção de sufu vermelho, mas e o papel de leveduras autóctones isso que o livro “Microbiologia de
uma espécie de tofu fermentado). na fermentação de uma grande Alimentos Fermentados” se propõe.
variedade de bebidas alcoólicas, como
Os fungos, sejam eles filamentosos ou hidroméis, meloméis, alguns tipos de Fermentemos!
leveduriformes, operam vinhos, fermentados de frutas e cervejas
transformações incríveis, trazendo especiais – a exemplo das cervejas José Guilherme Prado Martin é
texturas e sabores complexos e cada belgas Lambic, Gueuze e Kriek, e da professor da Universidade
vez mais apreciados no mundo todo. americana Coolship Ale? Federal de Viçosa (UFV)
Será que alguém é capaz de tomar nas guilherme.martin@ufv.br
Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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MICOLOGIA MÉDICA
Bol. Micob., Rio de Janeiro, RJ, v.3, n.1 p.1-35, jan-mar 2023
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determinante da patologia. Dentre estas, destacam-se as cutâneas/subcutâneas respectivamente. Em mulheres, a
causadas por fungos dos gêneros Histoplasma, candidíase vaginal é uma infecção ginecológica muito
Paracoccidioides, Coccidoides e Sporothrix. comum causada pelo crescimento excessivo do fungo
Candida albicans, que vive normalmente no trato digestivo
Em geral, os seres humanos e a maioria dos mamíferos são e genital.
resistentes a doenças fúngicas invasivas – particularmente
se comparados com animais de “sangue frio”. Uma Entretanto, alguns fungos podem de fato cruzar a
combinação de imunidade adaptativa e endotermia (a barreira hematoencefálica e causar diversas infecções
grande maioria dos fungos não cresce a 37°C) protege os severas que são classificadas como meningites ou
mamíferos e as aves de potenciais ataques. meningoencefalites, abscessos cerebrais, rino-órbito-
cerebral e que são frequentemente fatais ou de difícil
Infelizmente as doenças fúngicas de humanos vêm se tratamento.
tornando bastante comuns. Ainda que de forma irônica, o
próprio progresso médico (implementação de terapias Exemplos de gêneros de fungos que causam tais
baseadas em imunobiológicos em pacientes infecções no sistema nervoso central incluem
transplantados – por exemplo) tem aberto as portas para Cryptococcus spp., Mucoromycetes (Rhizopus sp.,
infecções fúngicas. Ademais, a tragédia global da Rhizomucor sp. e Mucor sp.), alguns fungos ditos
epidemia de HIV criou legiões de pessoas dimórficos – capazes de se desenvolverem com forma
imunocomprometidas. Para esses últimos, a criptococose filamentosa ou como leveduras unicelulares
é hoje uma grande causa de mortes na África (Histoplasma spp., Paracoccidioides spp., Blastomyces
subsaariana, e a histoplasmose na America Latina. spp. e Coccidioides spp.), alguns “fungos negros”
(Exophiala dermatitidis, Cladophialophora bantiana e
Em outubro de 2022, a Organização Mundial de Saúde Rhinocladiella mackenziei) e Candida spp.
criou uma lista prioritária de patógenos fúngicos para
orientar a pesquisa, desenvolvimento e ações de saúde Para a maioria das situações em que esses fungos
púbica. Nessa lista da OMS há três categorias: prioridade infectam pacientes humanos, as pessoas adoecem ao
crítica, alta e média. Ela inclui fungos como Candida auris e inalar os esporos de fungos, causando uma doença
Sporothrix brasiliensis – importantes patógenos de primaria nos pulmões e, a partir dali a colonização pode
humanos, que estão emergindo no país e no mundo com se expandir pela corrente sanguínea e então se
algum potencial pandêmico. disseminar para o cérebro ou a medula espinhal.
É sabido que a maioria dos antifúngicos disponíveis no Já no caso de Candida spp., que naturalmente habita o
mercado utilizados no tratamento destas micoses são nosso corpo de forma benigna, a colonização do
muitas vezes ineficazes devido aos mecanismos de cérebro se dá pela corrente sanguínea e geralmente
resistência intrínsecos destas espécies. Não existem está ligada a imunossupressões severas. Ainda é um
vacinas para serem utilizadas na prevenção nem no mistério como os fungos conseguem cruzar a barreira
tratamento destas micoses. hematoencefálica, mas os principais fatores de risco
são: pacientes com HIV/AIDS, o uso prolongado de
Ou seja, a funga não deve ser negligenciada como fonte esteróides (como a prednisona), tratamentos
de risco em potencial de eventos catastróficos globais. continuados com medicamentos administrados após o
Dois exemplos assustadores de pandemias envolvendo transplante de órgãos e drogas anti-TNF (fator de
fungos estão em andamento hoje. Uma está levando à necrose tumoral), que às vezes são administrados no
extinção em massa de anfíbios (sapos, pererecas e tratamento de artrite reumatóide ou outras condições
salamandras) pelo mundo – o vilão é um quitrídio (fungo autoimunes. As meningites fúngicas não se espalham
aquático). A outra, a “síndrome do nariz branco” causada entre as pessoas como é reportado na série de TV –
por Pseudogymnoascus destructans – introduzido (não se diretamente inspirado em outras fantasias de filmes de
sabe como) a partir da Europa, que está dizimando horror como os de vampiros, lobisomens e zumbis em
amplamente as populações de morcegos norte- que a infecção é transmitida pela mordida de pessoas
americanos, com graves consequências potenciais ao infectadas.
meio ambiente e à agricultura.
Mas uma vez estabelecida uma infecção no sistema nervoso
Em contrapartida, as micoses mais comuns são as menos central, estes fungos poderiam então controlar a mente de
perigosas. Exatamente aquelas que acometem unhas e nós humanos? A resposta é não.
peles, conhecidas como onicomicoses ou micoses
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História derivada de um vídeo-game mostra a sociedade após uma brutal destruição provocada por fungos | Foto: Divulgação HBO
Não existem dados na literatura que mostrem que os O cérebro humano produz grandes quantidades, por
fungos podem controlar nossas ações como mostrado na exemplo, de dopamina – importante neurotransmissor,
série de TV “The Last of Us”. No entanto, há casos em que envolvido na regulação da atividade motora, processos
infecções fúngicas do sistema nervoso central podem cognitivos, mecanismos defensivos e modulação de
impactar a cognição do doente. Um exemplo, são as funções motivacionais. Ou seja, C. neoformans pode usar a
infecções do sistema nervoso central por Cryptococcus dopamina presente no cérebro de pessoas infectadas
neoformans, que além de provocarem dores de cabeça, para produção de componentes essenciais para sua
náuseas, vômitos, poliúria, aumento da temperatura sobrevivência neste órgão.
corporal e sonolência, podem também levar a um estado
de confusão mental, convulsões, depressão e diminuição A realidade sobre os resultados da infecção de patógenos
da função mental. Estudo recente mostra que alguns fúngicos humanos é assustadora e não ficcional.
pacientes com doença de Parkinson, uma doença Epidemias, entretanto, ainda não são uma realidade. Tais
neurodegenerativa que tem como principal característica infecções catastróficas são raras e não contagiosas.
a inflamação de neurônios, apresentavam infecções
mistas de bactérias e fungos. A maioria dos fungos Mas é preciso atenção. Num mundo em transformação e
identificados nesse estudo sobre doença de Parkinson cada vez mais desequilibrado pela atividade humana, os
pertenciam aos gêneros Botrytis sp., Candida sp., Fusarium gatilhos para novas pandemias são imprevisíveis. O
sp. e Malassezia sp. estudo da Micologia é sim fundamental para se evitar que
fungos patogênicos se tornem, de fato, uma ameaça para
Um outro aspecto curioso é que uma vez que uma os humanos. É o que a Organização Mundial da Saúde nos
infecção fúngica é estabelecida no sistema nervoso sugere: prestar atenção e estudar os fungos.
central, os patógenos podem então utilizar compostos
produzido nesse órgão para sua proteção. Por exemplo, o
tropismo de C. neoformans pelo cérebro foi correlacionado
Marcus de Melo Teixeira é docente da Universidade de
com a presença de altas concentrações de precursores
Brasília (UnB) e representante regional da SMBic
para a atividade da lacase. Essa enzima é fundamental
marcus.teixeira@gmail.com
para a produção de melanina, um fator de virulência
importante para esse fungo.
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LÍQUEN DA VEZ
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correspondem a uma mesma
espécie, e assim são reconhecidos
taxonomicamente como “sinônimos”.
De todo modo, R. celastri pode ser Fig. 3: Ramalina celastri em seu hábitat, mostrando os ramos, apotécios e
pseudocifelas. Canguçu – RS | Foto A.A. Spielmann
caracterizada pelo talo cespitoso,
ramos achatados e relativamente
largos, pseudocifelas elipsoides a
lineares (Fig. 4) sobre toda a
superfície, ausência de propágulos
simbiônticos, geralmente com
apotécios por todo o talo e ausência
de compostos medulares
secundários.
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COLEÇÕES MICOLÓGICAS
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exposição durante a Semana
Universitária para atrair a atenção dos
estudantes do ensino básico.
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EVENTOS
Existem momentos na vida que Santa Cruz (UESC); os liquens, curso (que também foi uma disciplina
precisam ser especiais. Precisam ser reverenciados a todo momento pelo do PPGFAP) “Diversidade de
marcados por algo único e inédito! Prof. Adriano Spielmann, da Macrofungos Ascomycota”, no
Universidade Federal do Mato Grosso município de Urubici/SC.
Foi assim que aconteceu o encontro do Sul (UFMS); os coprófilos, lindos
entre ilustres representantes de habitantes de substratos com cheiro O curso contou com atividades práticas
gerações de especialistas brasileiros não tão agradável, observados pelo em ecossistemas de altitude do Parque
que dedicam sua vida a estudar a Prof. Francisco Calaça, da Nacional São Joaquim, cuja realização
diversidade de fungos ainda pouco Universidade Estadual de Goiás (UEG), se deveu aos apoios dos projetos INCT
conhecidos no Brasil: os Ascomycota. e os fascinantes fungos Herbário Virtual da Flora e dos Fungos,
manipuladores de insetos, abrangidos PELD/BISC, MIND.Funga
O planejamento era antigo, antes pelo Dr. João Araújo do Jardim PRONEM/FAPESC, ICMBio (PARNA São
mesmo de imaginarmos uma Botânico de Nova Iorque (NYBG). Joaquim), The New York Botanical
pandemia (Covid-19). Somente em Garden, PPGFAP/UFSC e Sociedade
2022, na Serra Catarinense, que jovens Este é um importante passo para a Brasileira de Micologia (SBMic).
micologistas tiveram a oportunidade popularização, conservação e
de andar nas mágicas matas nebulares continuidade dos estudos da A oportunidade foi dada para
ao lado de uma das maiores diversidade de fungos Ascomycota do participantes de todo o Brasil, bem
autoridades em micologia ambiental Brasil. A iniciativa foi organizada pelo como do Reino Unido e dos Estados
do nosso país. grupo de pesquisa Unidos da América. Ao todo, quase 20
MIND.Funga/MICOLAB e pelo PPG em pessoas, entre estudantes do PPGFAP,
O aprendizado dessa experiência Biologia de Fungos, Algas e Plantas cursistas da comunidade externa ao
chegou a grupos de Ascomycota tão (PPGFAP) da Universidade Federal de programa e professores convidados,
diversos e cheios de novidades, como Santa Catarina (UFSC). estiveram envolvidos em diversas
os fitopatógenos, estudados há mais atividades focadas no estudo de
de 50 anos pelo Prof. José Luiz Entre os dias 28 de novembro e 02 de diferentes grupos de fungos
Bezerra, da Universidade Estadual de dezembro de 2022, foi realizado o Ascomycota.
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Os professores compartilharam suas
experiências e conhecimentos durante
as coletas, sempre orientando sobre as
boas práticas de campo e pós-campo,
com aulas e seminários, estes últimos
apresentados tanto pelos professores
quanto pelos cursistas.
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EVENTOS
Exposição está em cartaz no Oi Futuro, Rio de Janeiro, até 26 de março | Foto: Robert. W. Barreto
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BELEZA SUTIL OU EVIDENTE
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MICOFAGIA
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Molho de soja pronto | Foto: José Guilherme Prado Martin
embolorados para produção do molho rudimentar? Pois Esse processo em geral leva 72 horas, e a temperatura
麹
bem, koji ( ) em japonês significa “grão mofado”, e o fungo deve ser muito bem controlada, pois se muito baixas,
crescido é reconhecido como uma verdadeira bomba dificultam o crescimento do fungo; se aumentarem demais
enzimática. (como ocorre naturalmente, já que o crescimento
microbiano gera calor), o fungo pode morrer e inviabilizar
São essas enzimas as responsáveis por grande parte das a produção do shoyu. E são essas enzimas que,
transformações da soja no molho escuro e saboroso. posteriormente, atuarão no estágio seguinte, o moromi.
Ainda que esta espécie seja mais próxima de Aspergillus
niger (utilizado amplamente em processos industriais) e de Aqui, o koji é misturado a uma salmoura (entre 13% e
Aspergillus flavus (reconhecido por seus isolados que têm a 20%). O tempo de fermentação nesse estágio pode variar
capacidade de produzir toxinas), A. oryzae não as produz, o de 6 a 8 meses – a partir de agora certamente você
que fica claro quando olhamos para todo o passado e economizará no shoyu, reduzindo o desperdício! E é
histórico de uso deste fungo na produção de alimentos e durante todo esse tempo que o amido é convertido em
bebidas. produtos como álcoois, ácidos (especialmente o lático), e
dióxido de carbono, enquanto as proteínas são quebradas
É na fase koji que A. oryzae, na forma de uma bela névoa em peptídeos e aminoácidos que conferem aromas e
constituída de esporos, é inoculado em grãos de soja sabores característicos.
previamente cozidos e misturados ao trigo já tostado.
Enquanto os esporos germinam e crescem sobre os grãos, Em unidades de produção ao estilo tradicional, os
criando uma camada branco-acinzentada (por vezes microrganismos naturalmente presentes nas paredes dos
esverdeada) pulverulenta, uma série de enzimas é tanques iniciam a fermentação; em indústrias, bactérias
produzida, especialmente as amilases (que quebram o láticas e leveduras são adicionadas para direcionar o
amido em maltose e glicose), as proteases (que quebram processo, padronizando a qualidade do produto. Destaque
as proteínas, gerando peptídeos e aminoácidos) e as para as leveduras halotolerantes Zygosaccharomyces rouxii
lipases (que liberam ácidos graxos a partir de lipídeos).
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e Clavaria versatilis, bem como bactérias láticas,
especialmente Tetragenococcus halophilus.
Ingredientes:
No entanto, o shoyu fermentado tradicional apresenta
coloração que tende mais para o marrom que para o
1 quilo de sobrecoxa de frango desossada
preto, o que pode prejudicar a aceitabilidade dos
Suco de 2 laranjas pera
consumidores habituados ao molho mais escuro.
½ xícara de chá de shoyu (fermentado - legítimo)
Notou que em nenhum momento esse processo envolve a
2 cm de gengibre fresco ralado
fermentação? É por isso que o molho quimicamente
2 dentes de alho ralados
elaborado não é classificado como um alimento
1 pitada de sal
fermentado. Na tentativa de melhorar as características de
sabor e aroma, algumas indústrias fazem um processo
Modo de preparo:
misto, adicionando partes de molho moromi ao substrato
químico previamente preparado.
Prepare uma marinada misturando o suco de laranja, o
shoyu, gengibre e alho ralados e o sal. Misture bem o
Se tiver a oportunidade de provar um molho
frango à marinada e mantenha tudo dentro de um saco
tradicionalmente fermentado, não hesite – você irá se
plástico bem fechado durante 30 minutos, sob
surpreender! Falando em surpresa, que tal aproveitar todo
refrigeração. Descarte a marinada e leve as sobrecoxas ao
esse conhecimento sobre fermentação e aprender a
forno pré-aquecido a 250°C até dourar (cerca de 20
preparar um prato simples, mas repleto de umami? Então
minutos). Outra opção é levar à frigideira com a pele virada
já reserve uma dose de shoyu e surpreenda seus
pra baixo até dourar (virando e repetindo o processo), ou,
convidados!
ainda, assar em grelha até ficar tostado.
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O Boletim Micobiota é uma publicação da Sociedade Brasileira de Micologia.
Outras informações em https://sbmic.org/index.php