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Tese Rociclei Da Silva - Versão Final Ufrj
Tese Rociclei Da Silva - Versão Final Ufrj
Tese Rociclei Da Silva - Versão Final Ufrj
Tese de Doutorado
Setembro de 2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO – ECO
INSTITUTO BRASILEIRO DE INFORMAÇÃO EM CIÊNCIA E TECNOLOGIA – IBICT
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO – PPGCI
ROCICLEI DA SILVA
RIO DE JANEIRO
2016
Rociclei da Silva
Rio de Janeiro
2016
S586 Silva, Rociclei da.
Navegando com a comunicação comunitária em uma maré de
microrevoluções. / Rociclei da Silva. – Rio de Janeiro, 2017.
157 f.
Tese (Doutorado em Ciência da Informação) - Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação; Instituto
Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Programa de Pós
Graduação em Ciência da Informação, Rio de Janeiro, 2017.
Orientador: Giuseppe Mario Cocco.
CDD 302.23
Dedico esta aos meus pais Nanci Lessa da Silva e José Valderi da Silva (em memória). Esta
tese é resultado de tudo que vocês me ensinaram.
Ao meu filho Yuri e a minha esposa Fátima, companheiros e amigos de todos os momentos,
desculpem as horas roubadas.
AGRADECIMENTOS
Ao professor Dr. Giuseppe Cocco, grande mestre e orientador de uma viagem onde se cruzam
impressões de dois mundos tão distintos, a academia e a favela.
À professora Dra. Sarita Albagli por ter aceitado participar da banca de qualificação e
aprovação deste trabalho e suas considerações valiosas na qualificação da pesquisa e e por
acompanhar minha trajetória acadêmica até aqui.
À professora Dra. Leonora Corsini por ter aceitado participar da banca de qualificação e
aprovação deste trabalho e por suas considerações valiosas na qualificação e na defesa da tese
que muito contribuiu para a qualidade do texto final.
À professora Dr. Alexandre Mendes por ter aceitado participar da banca de qualificação e
aprovação deste trabalho e suas considerações valiosas na qualificação da pesquisa.
Ao professor Dr. Arthur Coelho Bezerra por ter aceitado participar da banca de aprovação
deste trabalho. Agradeço pelas palavras durante a defesa da tese.
A Professora Ivana Bentes por compartilhar seu conhecimento com tanta generosidade e
prazer.
À amiga Gizele Martins, incentivadora e colaboradora desta pesquisa que tanto contribui para
qualidade do trabalho final. Muito obrigado pela troca de ideias e compartilhamento de textos
e por abrir as portas dos meios de comunicação comunitária da Maré.
Ao amigo e mestre da comunicação popular Vitor Giannotti (em memória) por ter incentivado
e mostrados os caminhos e as fontes que me possibilitaram ter acesso à história da
comunicação popular no Brasil e na América Latina.
À Eliana Souza Silva pelos textos, apostilas, livros e pela gentileza de ter aberto as portas do
Observatório das Favelas, ESPOCC, Jornal Maré de Notícias e todos os equipamentos de
comunicação ligados ao observatório que tanto contribuíram para a qualidade final da
pesquisa.
Aos entrevistados para a pesquisa de tese que contribuíram em muito para o desenvolvimento
da pesquisa.
À minha família por compreender minhas ausências e me apoiar de forma incondicional para
que esta pesquisa fosse realizada. Um beijo para você Fatima Teodoro e ao nosso filho Yuri
Teodoro. Amo vocês! A minha mãe que me deu apoio, suporte e amor incondicional. As
minhas irmãs pelas palavras de incentivo e coragem.
À equipe do Jornal O Cidadão da Maré, amigos e companheiros que incentivaram e
colaboraram contando suas experiências na comunicação comunitária com tanto carinho e
paciência. Um agradecimento especial a Thais Cavalcante pela entrevista e por expor suas
experiências e história na comunicação comunitária.
À equipe do Jornal Vozes da Maré em especial a Hélio Euclides por ter compartilhado suas
experiências e conhecimentos com prazer e orgulho.
À toda equipe do NPC – Núcleo Piratininga de Comunicação, e em especial a Claudia
Santiago Giannotti por todo carinho, respeito e atenção.
Aos colegas da turma de doutorado 2012-1 e em especial ao amigo Alexandre de Souza Costa
pelas conversas encorajadoras e espirituosas em momentos tão difíceis e delicados. Muito
obrigado por tornar certos momentos mais palatáveis. Hey Ho Let’s Go...
Ao Amauri Ferreira pelas sugestões, esclarecimentos, troca de ideias e compartilhamento de
textos, vídeos, livros e artigos que tanto ajudaram para qualidade do trabalho. Obrigado
amigo!
A todos que contribuíram para que eu chegasse até aqui!!!
RESUMO
The main objective of this research was to investigate the community communication
developed in the set of favelas of Maré as an articulator / mobilizer of informational dynamics
in favor of the democratization of information, the construction of citizenship and the
emancipation of those who practice it and those who have access to it. In this sense, the
research questioned the informational and linguistic strategies and practices of this type of
communication to attract mobilize and raise awareness among the residents? What
differentiates the information produced by the community communication from the
information produced by the mass media and its power of transformation of the inhabitants
and the territory? He also investigated whether community communication promotes a change
in the subjectivity of Maré residents and for this we draw inspiration from Félix Guattari's
pioneering reflections on the production of subjectivity and micropolitics. We treat
community communication practices as molecular resistors that produce micro-revolutions
that create mutations in the conscious and unconscious subjectivity of individuals and social
groups and that break into liberating processes. The research results pointed out that the
information and knowledge provided by community communication leads residents to
question the world they are in and to think and reflect the need for change. The research also
detected that the performance in community communication is an opening for new
perceptions, new meaning and values. Changing the perception of the favela, changing the
relationship with the territory and the other, thinking and acting collectively, denouncing, but
also presenting solutions, sensitizing and mobilizing the residents are only part of a great
transformation that communicators are going through.
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 12
2 CAPITALISMO, A GENEALOGIA DO CONTROLE E COMUNICAÇÃO ................... 21
2.1 Hardt e Negri – o Império e o controle............................................................................... 22
2.1.1 Imitação, repetição e opinião ........................................................................................... 26
2.1.2 Êxodo e revolução ........................................................................................................... 31
2.2 Deleuze e Guattari - o controle e a palavra de ordem ........................................................ 32
2.2.1 Linguagem, informação, comunicação ............................................................................ 34
2.2.2 Criação – como construir um Corpo-sem-Órgãos ........................................................... 39
2.3 Elias Canetti – o controle e a metamorfose como fuga ...................................................... 42
2.4 Williams Burroughs – A palavra controle e o vírus da linguagem .................................... 49
3 CAPITALISMO, COMUNICAÇÃO, SUBJETIVIDADE E MICRORREVOLUÇÕES ......... 62
3.1 Capitalismo Mundial Integrado, produção de subjetividade e as mídias ........................... 62
3.1.1 Polifonia e comunicação comunitária.............................................................................. 68
3.2 Guattari e a emergência de uma era pós-mídia................................................................... 71
3.3 Rumo a uma era pós-Media ................................................................................................ 73
3.4 A pós-mídia guattariana na contemporaneidade ................................................................ 78
3.5 A era pós-mídia e a crise da subjetividade ......................................................................... 84
3.6 A comunicação e a Revolução Molecular .......................................................................... 88
4 UMA MICROREVOLUÇÃO CHAMADA COMUNICAÇÃO COMUNITÁRIA ......... 104
4.1 Breve história da comunicação comunitária..................................................................... 104
4.2 Em busca de uma conceituação de comunicação comunitária ......................................... 110
4.2.1 Comunidade e pertencimento ........................................................................................ 116
4.3 Conhecendo o conjunto de favelas da Maré ..................................................................... 119
4.4 Breve história das experiências em comunicação comunitária na Maré .......................... 120
4.4.1. A experiência do Jornal O Cidadão .............................................................................. 124
4.4.2. A experiência da Escola Popular de Comunicação Crítica (ESPOCC)........................ 125
4.4.3. A experiência do Jornal Maré de Notícias.................................................................... 127
4.4.4. A experiência do Coletivo Maré Vive .......................................................................... 128
4.4.5. A experiência do Imagens do Povo .............................................................................. 129
4.4.6. A experiência da Radio Maré FM ................................................................................ 131
4.4.7. Outras experiências....................................................................................................... 132
4.5 Convivendo e atuando na Comunicação Comunitária – um estudo empírico .................. 133
4.5.1 Panorama geral da comunicação comunitária no conjunto de favelas da Maré ............ 134
5 CONCLUSÃO ................................................................................................................... 146
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 153
12
1 INTRODUÇÃO
Nesta tese utilizamos o conceito de comunidade não como simples conceito descritivo
de um modo de estruturação social, mas como ideia mobilizadora de transformação social. O
termo é pensado como crítica à fragilização das instâncias da vida comum, da perda da
dimensão solidária da existência, do excesso de individualismo da sociedade contemporânea.
Para a pesquisadora Raquel Paiva (1998), o conceito de comunidade tem aparecido como
“investido de um poder de resgate da solidariedade humana ou da organicidade social
perdida” (p. 11). As experiências vividas através da comunicação comunitária evidenciam que
sentimentos como os de mobilização, cooperação, pertença e proximidade parecem ressurgir.
Segundo a pesquisadora, a palavra comunidade parece estar envolta em ideias de
solidariedade, de ética e humanismo. Cabe ressaltar, contudo, que ao utilizarmos o termo
comunidade estamos nos referindo ao território favela.
Arquivos do Museu da Maré atestam que desde a década de 1980 temos a presença de
veículos de comunicação que buscavam comunicar a partir da realidade da Maré. Neste
período surge a TV Maré, no ano de 1988, a partir da iniciativa de um grupo de moradores do
morro do Timbau patrocinada pela ONG Cáritas. Hoje a comunicação se faz presente na Maré
através de diversas iniciativas que passam pela exibição de filmes, com o projeto Cineminha
no Beco; por oficinas fotográficas, com o projeto Imagens do Povo desenvolvidas pela Escola
de Fotógrafos Populares; por oficinas de cinema, com o projeto Escola de Cinema Olhares
da Maré; pela formação de comunicadores na Escola Popular de Comunicação Critica
(ESPOC); pela Rádio Maré FM, chegando à circulação dos jornais Maré de Notícias e o
tradicional O Cidadão, uma referência em comunicação comunitária em todo o Estado do Rio
de Janeiro; e, finalmente, seu curso de comunicação comunitária que visa formar novos
comunicadores comunitários. O midiativismo também se faz presente por meio de canais
colaborativos como o popular Maré Vive. Estes projetos são peças de um grande e potente
mosaico da comunicação presente na Maré que, através de suas ações, promove a
democratização da informação ao mesmo tempo em que expande o território de todos aqueles
que deles participam.
objetivo principal é conquistar o maior número de pessoas possível para serem agentes de
construção de outros mundos possíveis, com base na solidariedade, na cooperação e na
colaboração. Este é o maior objetivo da comunicação comunitária, ser uma comunicação que
conduz as pessoas para a luta por seus direitos e consequentemente pela transformação de
seus mundos.
Mais especificamente, nesta tese buscamos analisar e refletir sobre a relação entre
mídia, informação, poder, linguagem e produção de subjetividade, a partir do que se observa
na prática da comunicação comunitária e seus efeitos no território; analisar as estratégias e
práticas informacionais e linguísticas desse tipo de comunicação para atrair mobilizar e
conscientizar os moradores. Também investigamos o que diferencia a informação produzida
pela comunicação comunitária da informação produzida pelos grandes meios de comunicação
e sua potência de transformação dos moradores e do território. Por afim, investigamos se a
comunicação comunitária promove a mutação da subjetividade dos moradores da Maré e para
tal as reflexões pioneiras de Félix Guattari sobre produção de subjetividade e micropolítica
foram uma importante inspiração.
Para a realização dos objetivos expostos acima adotamos uma metodologia que
compreende um levantamento bibliográfico sobre a comunicação comunitária no Brasil, nas
favelas do Rio de Janeiro e no conjunto de favelas da Maré. Além disso, foram realizadas
entrevistas com comunicadores comunitários, midiativistas e representantes de equipamentos
de comunicação do complexo de favelas da Maré. Todas essas informações são resultantes
das observações e vivência do pesquisador (como aluno e colaborador) no Jornal O Cidadão
da Maré. Um universo teórico onde campo de ação e campo de reflexão se confundem,
seguindo as linhas mestras da metodologia de pesquisa-ação.
16
Seguindo esta pista, fomos buscar a origem do termo “controle” na rica obra do
também escritor e crítico social Williams Burroughs, que tratou os meios de comunicação
como uma das principais máquinas de controle, mas que também mostrou que nenhum
sistema de controle é infalível e que o limite do controle é a palavra. Ou seja, a libertação do
controle está na palavra. Assim, a fuga do controle apontada por Deleuze passa por encontrar
bolsões de solidão e de silêncio, a partir dos quais finalmente seria possível produzir algo
digno de ser dito, para que se possa ter um lugar novo para criar e fugir da incessante
circulação de palavras de ordem e contínua transmissão de comandos.
1
A subjetividade de que falamos não está atrelada a um sujeito já dado a priori, ou mesmo a uma teoria do sujeito
herdeira da tradição filosófica da modernidade que apresentava o sujeito como indivíduo constituído nos
domínios de uma suposta natureza humana. É uma subjetividade da ordem da produção e que produz, dentre
outras coisas, o próprio sujeito, num processo contínuo, imprevisível e aberto. É o próprio conceito de produção
que muda: a relação sujeito/objeto (que a tradição da razão instrumental define como sendo produtiva) desloca-
se passando a constituir uma relação produtiva enquanto relação de sujeito a sujeito. Cf., para mais detalhes,
Maurizio Lazzarato (2006).
2
Deleuze e Guattari partem do pressuposto que a realidade é pura produção, composta por singularidades e
sustentada pelo desejo, sendo assim, desejo aqui é produtor de realidades, processo de produção de universos
psicossociais, o próprio movimento de produção destes universos. O desejo cria a possibilidade de produção,
criação, invenção de modos e formas vitais. A realidade é produção desejante e o desejo é a força motriz que
impulsiona o ser humano a produzir, a imergir num devir criador e impulsiona a subjetividade em múltiplas
direções. Dessa forma, o desejo pode ser identificado como uma força afirmativa de invenção e de diferença que
segue sempre em movimento, operando como uma potência criadora e quebrando as normas inflexíveis. Assim,
é neste sentido que nesta tese falaremos em produção de subjetividade e subjetividade como produção.
18
As reflexões de Guattari nos mostram que a tentativa de controle social por parte do
capitalismo contemporâneo, através da produção da subjetividade em escala planetária, se
choca com fatores de resistência consideráveis, em processos de permanente diferenciação.
Não se trata apenas de resistir aos processos de serialização da subjetividade, mas também da
tentativa de produzir modos de subjetivação originais e singulares, processos de
singularização subjetiva. Uma revolução molecular parte das relações entre os sujeitos e não
da tomada do poder estatal, do controle, do dominar o outro, abrindo espaço para a revolução
do homem, tendo em vista que aposta na transformação do seu conjunto de valores e crença e
não apenas na transformação do mundo material. É uma revolução que tem como ponto de
partida o próprio homem, a relação com ele mesmo e com o outro e como ponto de chegada a
3
Para Deleuze e Guattari, o minoritário, o menor, não é o grupo excluído da maioria ou subordinado a outro por
um padrão que define a tal maioria (os negros, as mulheres, os homossexuais), mas o processo de variação que
escapa do sistema de poder pertencente à maioria. “Minoria designa aqui a potência de um devir, enquanto
maioria designa o poder ou a impotência de um estado, de uma situação. Cf. Deleuze e Guattari, 1995, p. 133-
134.
19
criação de novos modos de existência. Podemos perceber então que, neste contexto, a mídia
alternativa é simultaneamente espaço de subjetivação não capitalista e linha de fuga que
escapa aos regimes de controle e desafia a grande mídia.
Para finalizar estas considerações iniciais enfatizamos que não temos o desejo de
produzir teoria idealizada sobre a comunicação comunitária. Não alimentamos a crença
ingênua de que a comunicação comunitária fará a grande revolução, que transformará
radicalmente a favela e derrubará ou substituirá a grande mídia. A proposta é mostrar a
comunicação comunitária desenvolvida no conjunto de favelas da Maré como instrumento de
comunicação produzido autônoma e coletivamente por seus moradores. Uma comunicação
que tem como base a troca, o compartilhamento, a solidariedade e o encontro. Uma
comunicação que visa uma transformação do homem, a expansão de seu território e da sua
percepção. Não quer fazer como os meios de comunicação dominante, nem melhor, nem na
mesma direção. Mas busca encontrar outro uso, outra relação de escuta. É a conquista do
direito de exercer suas formas de comunicar, de enunciar suas ideias, seus valores, seus
significados e seus desejos.
moleculares, ultrapassando todos os muros que são erguidos, materiais e imateriais, para
tentar paralisá-la e contê-la.
21
Em suma, a proposta deste capítulo foi traçar uma genealogia do controle tendo os
meios de comunicação como seu principal instrumento. Optamos por fazer a exposição dos
conceitos em uma trajetória decrescente, tendo como ponto de partida o conceito de Império
22
de Hardt e Negri, passando por Deleuze e Canetti até chegarmos a Burroughs e a origem do
termo controle. Nas reflexões propostas por todos esses autores, os meios de comunicação
aparecem como instrumento central do controle. Vale destacar que todos eles também
apresentam propostas – linhas de fuga 4 como diriam Deleuze e Guattari – para escaparmos do
controle. Estas propostas foram usadas como referência para avaliarmos as ações
desenvolvidas pela comunicação comunitária como instrumento de resistência e fuga ao
controle apresentadas na parte empírica da pesquisa.
4
Linha de fuga pode ser entendida como o pensamento que não se fecha sobre o reconhecimento de situações e
saberes, mas, pelo contrário, questiona os modelos e se propõe a novos encontros nas relações em que foi
produzido. As linhas de fuga são aquelas que escapam da tentativa totalizadora e fazem contato com outras
raízes, seguem outras direções. Não é uma forma fechada, não há ligação definitiva. São linhas de intensidade
que, ao mesmo tempo que fogem, fazem fugir.
23
O Império é descrito pelos dois autores como uma pirâmide e como uma combinação
dos três regimes clássicos de governo: na parte superior encontra-se a monarquia. Sua função
é a de unificar todo o sistema através de uma força policial global, função exercida pelos
Estados Unidos, outros países membros do chamado G-7, bem como pelas principais
organizações supranacionais militares e financeiras. Na parte central da pirâmide está a
aristocracia, cuja função é a articulação dos vários elementos do sistema, exercendo o controle
distribuído por todo o planeta. Este controle distribuído se dá através do capital financeiro e
das empresas transnacionais que operam no mercado global, das redes de fluxos de capital,
tecnologia, bens e pessoas; e, por outro lado, pelo conjunto geral de Estados-nação com a
mediação das potências mundiais, para negociar com o capital transnacional, redistribuir
população de baixa renda e disciplina.
controle são interiorizados, e reativados pelos próprios sujeitos, no que os autores de Império
denominam de estado de alienação autônoma. O resultado é que o Império se torna um espaço
uniforme no qual não há um lugar especifico onde se exerça o poder. O poder está em toda a
parte e, neste sentido, o Império é um “não lugar” de poder, o controle e a produção de
subjetividade são resultados de uma série de dispositivos dispersos em uma estrutura de rede.
O controle imperial opera mediante três grandes instrumentos de poder que são,
segundo Hardt e Negri, a bomba, o dinheiro e o éter. É fácil perceber que o primeiro elemento
é de natureza militar, o segundo, de natureza econômica e o terceiro de natureza
comunicacional. O éter, simboliza os meios de comunicação que, na atualidade, escapam a
todo tipo regulação que pode ser exercida a partir de um Estado. A soberania passa a ser
articulada por sistemas de comunicação. A gestão da comunicação, a estruturação do sistema
educativo e a regulação da cultura são agora, mais do que nunca, “prerrogativas soberanas” as
quais, no elemento éter, serão diluídos. O Império impõe uma circulação contínua, invisível e
infinita de seus próprios signos através dos meios de comunicação, que são sistemas
simbólicos importantes que operam mediante o fascínio e a convicção em vez de coerção e
violência, procurando promover a aceitação e a proliferação de acumulação de capital. A
comunicação torna-se, portanto, o elemento central que estabelece as relações de produção,
que orienta o desenvolvimento capitalista e que transforma radicalmente todas as relações
possíveis dentro da divisão nacional e internacional do trabalho. Hoje, a comunicação é a
indústria da consciência, representa o modo de produção capitalista em que o capital consegue
26
Numa de suas mais conhecidas obras Gabriel Tarde (1907) analisa o processo de
formação de opinião a partir das relações entre os indivíduos, um processo em que as crenças
e os desejos são as forças plásticas e as forças funcionais que animam a vida social. As
crenças e os desejos são assim o terreno de possibilidade de toda sociedade, fluxos
“quantificáveis”, verdadeiras “Quantidades Sociais” que constituem o fundo de toda
disposição social. Além disso, Tarde acrescenta que a vida social é composta especificamente
de radiações imitativas, advertindo, no entanto, que não são sensações, modelos de
comportamento ou representações que são imitados, mas sempre uma ideia ou um querer, um
julgamento ou um desígnio, onde se manifestam crenças e desejos. Para o autor a imitação e a
repetição dizem respeito à propagação de fluxos de crenças e de desejos pelo campo social.
Quando alguém imita, propaga um fluxo. E o que é o fluxo, segundo Tarde? É crença ou
5
Entendemos por desterritorialização um processo que libera um conteúdo (multiplicidade ou fluxo) de todo
código (forma, função ou significação), e o faz correr sobre uma linha de fuga. Conforme a definição de Deleuze
e Guattari (1997) “A desterritorialização é o movimento pelo qual se deixa o território. [...] Dito em outras
palavras, a desterritorialização desfaz o que uma territorialização anterior fez. Ela constitui assim uma noção
crítica por excelência, constantemente subjacente, para nos atermos a um mesmo registro, a programas como:
‘desedipianizar o inconsciente’” (op. cit., p. 97).
27
desejo; um fluxo é sempre de crença e de desejo. As crenças e os desejos são o fundo de toda
sociedade e são fundamentais para a estruturação da realidade.
Neste sentido, podemos dizer que as máquinas de comunicação possuem uma relação
orgânica com a máquina imperial; elas são, ao mesmo tempo, seu efeito e causa; produto e
produtor; sua expressão e organização; multiplicadores e organizadores de interconexões.
Máquinas de comunicação e máquina imperial se legitimam, esvaziando as contradições e
neutralizando as diferenças, como sustentam Hardt e Negri (2001, p.53). Indo em direção
oposta à da perspectiva habermasiana, os autores de Império argumentam que na nova ordem
imperial toda ação comunicativa é instrumentalizada – a produção comunicativa e a
construção de legitimação imperial caminham de mãos dadas, são cúmplices e inseparáveis.
Juntas formam um engenho autovalidante, autopoiético e sistêmico. Na esfera da biopolítica a
comunicação exerce, enfim, papel fundamental, uma vez que organiza o movimento da
globalização e controla o sentido de direção do imaginário, isto é, o imaginário é canalizado e
guiado dentro da máquina de comunicação, que possui a função fundamental de legitimar o
Império. Assim, podemos considerar que os meios de comunicação prestam um grande
serviço na legitimação do Império. No entanto, a legitimidade do Império não nasce de
consensos anteriores, tais como acordos e contratos de direito transnacional. O Império se
autolegitima pelos discursos que produz e que as subjetividades reproduzem, aceitam e
justificam.
permitem aos cidadãos formarem opiniões próprias, que são refletidas fielmente de volta por
meio das pesquisas de opinião. Vemos assim a existência de um movimento circular onde a
mídia legitima o Império, que por sua vez legitima a mídia. Hardt e Negri também destacam
que a informação teria se tornado progressivamente mais homogênea com a fusão de
corporações de comunicação em gigantescos conglomerados. Por esta razão a mídia privada
torna-se muitas vezes porta-voz do Império, tanto quanto qualquer sistema estatal; há muito
tempo a mídia assumiu a posição de voz e até mesmo consciência do povo em oposição ao
poder de estado e de interesses privados do capital.
Contudo, como afirma Tarde, nenhuma forma de controle consegue abarcar todo o ser.
Há sempre algo que escapa, que foge ao controle e resistir é sempre possível. Mas aí cabe
perguntar, como escapar e fugir em um regime que controla todos os campos da vida social?
Que controla práticas e virtudes? Que observa atentamente as suas próprias margens por meio
da racionalidade capitalista? Em um mundo global no qual o pós-modernismo articula o
discurso da discórdia, o ato de se posicionar contra o império significa começar a descobrir as
melhores formas de fazer ruir a soberania imperial. Ser contra o Império é o âmago do que
Hardt e Negri designam de republicanismo pós-moderno. Se a resistência à autoridade na era
disciplinar estava representada pela sabotagem, na era do controle social em todos os níveis
ela se faz representar pela deserção. Desta maneira, as batalhas contra o Império podem ser
vencidas pela subtração, pela recusa, pela deserção, pela aceitação deliberada do êxodo e do
nomadismo. Escapamos dos sistemas interligados de regras e poder pela deserção, através da
evacuação dos lugares de poder. A deserção, o êxodo e o nomadismo são as armas
apresentadas por Hardt e Negri (2006, p. 232) no ataque ao Império e caracterizam-se como a
nova forma de luta.
comando. O êxodo, por sua vez, será concebido como a rejeição da atual ordem social e a
construção de novas formas de vida. O êxodo se refere a uma luta de classe que não tem como
base a oposição direta, mas sim a negação do poder, a recusa à obediência e a qualquer tipo de
obstrução ao movimento e desejo. Já o nomadismo implica movimento, circulação de afetos e
novas possibilidades de ser (hibridização). A deserção, o êxodo e no nomadismo invocam o
desejo de libertação, ou seja, transcendem os espaços do poder constituído.
de controle e disciplina. “É o êxodo que cria o deserto e faz surgir o novo”. Ela é a alternativa
viva que pulsa dentro do Império. Seus valores são as armas que utilizam nessa
empreitada. Criatividade para se contrapor às subjetivações que criam corpos dóceis.
Comunicação e cooperação para fazer rizoma 6 com as novas formas de se relacionar. Não se
faz mais necessário representar nem uma soberania para mediar as relações. As associações
de indivíduos singulares criam a potência necessária para aumentar coletivamente a potência
de cada um na medida em que vai negar a contradição um/todos, eu/coletivo. A forma
imperial se alimenta constantemente da produção da Multidão. É a Multidão que cria, gera e
produz. O poder do Império é apenas organizativo, não constituinte, ele vampiriza a produção
da Multidão. Esta, por sua vez, é potencialmente autônoma.
Assim, a luta proposta por Hardt e Negri é uma luta biopolítica, posto que tem por
objeto uma forma de vida; é luta constituinte que visa criar novas formas de viver em
comunidade, ao passo que no Império trata-se acima de tudo de controlar modos de vida. A
base desta luta, como já dissemos, está na deserção, no êxodo e no nomadismo no mais amplo
sentido de “ser contra” e recusar os disciplinamentos, as ordenações que classificam, regulam,
identificam, adestram e os controles impostos em qualquer setor da vida. Nossa luta é contra
um inimigo inacessível, asseveram Hardt e Negri. Sendo assim, mais que uma técnica de
confrontação ou captura do aparato estatal, a principal função de uma política anticapitalista
está assentada na constituição de um novo lugar no “não lugar”, quer dizer, produzir espaços
sociais de cooperação produtiva que detenha a eficácia da hegemonia capitalista. O êxodo é a
única via de liberação que o Império nos deixou. Êxodo, resistência e construção de territórios
liberados, em nível mundial.
6
Entendemos por rizoma a proposta de construção do pensamento onde os conceitos não estão hierarquizados e
não partem de um ponto central, de um centro de poder ou de referência aos quais os outros conceitos devem se
remeter. O rizoma funciona através de encontros e agenciamentos, de uma verdadeira cartografia das
multiplicidades.
31
coletividade. Nos termos de Negri (2001,p.34), a fuga é como um treinamento para o desejo
da liberdade, sempre lembrando que não se trata de negação ou antítese, mas sim de uma
travessia esvaziante dos múltiplos espaços imperiais.
2.1.2 Êxodo e revolução
O filósofo e cientista político norteamericano Michael Walzer define êxodo como uma
marcha em direção a uma meta, um progresso moral, uma transformação (WALZER, 1985.
p.12). Nesta definição o êxodo aparece como um paradigma revolucionário, uma revolução
social e política, e como um deslocamento em busca de um desejo e de transformação do ser.
Em Êxodo e Revolução o autor enfatiza que o êxodo é um relato de fuga ou libertação que se
expressa em termos religiosos, mas que é sobretudo um relato secular, um relato histórico e
do mundo real. Nesta leitura da história do Êxodo, o que ganha destaque é a marcha da
liberdade, a luta constituinte pela possibilidade de transformação – neste mundo –, bem como
a recusa da escravidão, da tirania e da opressão (WALZER, 1985 apud CORSINI, 2007). Este
êxodo tampouco narra um movimento de retorno, de volta para casa: o êxodo é uma jornada
para a frente – e não apenas no tempo e no espaço. É a marcha em direção a um propósito, o
progresso moral, a transformação. “Os homens e mulheres que finalmente chegam a Canaã
não são, no sentido literal e no sentido figurado, os mesmos homens e mulheres que deixaram
o Egito” (WALZER, op. cit., p. 12).
O que o êxodo, na leitura de Walzer, tem a nos ensinar é que a porta da esperança
permanece aberta, que existem alternativas para além das opções que são dadas, mas que tais
alternativas exigem o trabalho árduo e contínuo de homens e mulheres que deve caminhar em
marcha rumo ao deserto. Esta marcha para o deserto é uma metáfora deste caminho ao novo,
ao diferente: é a caminhada através do deserto que só se alcança quando todos se unem e
caminham. Poderíamos dizer, parafraseando Bruno Cava (2013), autor de “A multidão foi ao
deserto”, que a periferia foi ao deserto e o deserto é a comunicação comunitária onde se
constitui o êxodo. Neste caso, a transformação e a libertação não consiste em um movimento
que vai derrubar a grande mídia, mas antes um movimento que vai do preconceito,
marginalização, e alienação da grande mídia até uma comunicação que respeita, valoriza,
reconhece e potencializa o pobre.
32
poder de modulação contínua. Se nas sociedades disciplinares todo o empenho era no sentido
de moldar os corpos segundo determinados modelos, nas sociedades de controle os moldes
nunca chegam a se constituir integralmente. Os moldes são transformados de forma contínua
e rápida em outros moldes, fato que impede a identificação dos modelos de moldagem. Nunca
se termina nada em um regime de controle.
Quando nos informam, nos dizem o que julgam que devemos crer. (...) Ou
nem mesmo crer, mas fazer como se acreditássemos. Não nos pedem para
crer, mas para nos comportar como se crêssemos. Isso é informação, isso é
comunicação; à parte essas palavras de ordem e sua transmissão, não existe
comunicação. O que equivale a dizer que a informação é exatamente o
sistema do controle (DELEUZE, 1999, p. 10).
Deleuze e Guattari (1995) postulam a tese de que a linguagem não é antes de tudo,
comunicativa e tampouco informativa. Sua análise parte do estudo da unidade elementar
mínima da linguagem, o enunciado. Para os autores, todo enunciado produz efeitos que lhe
são imanentes, mesmo o mais neutro, o mais inocente. O enunciado age enquanto palavra de
ordem, sendo a palavra, portanto, o próprio ato de ordenação. A linguagem, por sua vez, é
simplesmente a união de palavras que impõe algo. É, por si própria um imperativo. Falar é
transmitir ou propagar uma palavra de ordem, ou seja, o objetivo do falante é ser obedecido.
Logo, de acordo com Deleuze e Guattari, o falante não procura comunicar ou informar, mas
sim persuadir, produzir no outro uma transformação. Porém, nem sempre a ordem é explícita,
afirmada como imperativo, mas pode surgir como sugestão que deve ser cumprida, obedecida.
Vale ressaltar que as palavras de ordem não remetem somente aos comandos, mas a todos os
atos que estão ligados aos enunciados por uma “obrigação social”. Dando continuidade ao
estudo do enunciado, os autores afirmam que cada enunciado remete a um enunciado anterior
35
e não a uma realidade exterior; a linguagem não tem exterioridade. Os enunciados têm, assim,
o mesmo estatuto que as imagens:
Ao afirmarem que a linguagem não é nem informação nem comunicação, mas que a
mesma necessita da informação como o mínimo necessário para a efetuação dos atos que lhe
são imanentes, Deleuze e Guattari demonstram que a palavra de ordem deriva da ligação entre
o enunciado e os atos que se realizam no próprio enunciado (força ilocutória). Por ser uma
relação imanente na própria linguagem, a palavra de ordem torna a ligação entre o enunciado
e o ato redundante: um enunciado sempre executa um ato e um ato se executa dentro de um
enunciado. Portanto, um não existe sem o outro. No entanto, é exatamente no meio dessa
ligação entre o enunciado e o ato que nasce a palavra de ordem. Nesse modelo proposto por
Deleuze e Guattari, a informação e a comunicação, comumente admitida como o valor
36
essencial da linguagem, nada mais é do que a condição mínima ou simples acessório para a
transmissão da palavra de ordem:
De acordo com esta proposta, a solidão é concebida como uma solidão existencial,
como poder de criação de posições existenciais. Nesta perspectiva, a solidão não diz respeito
a indivíduos e sim a fenômenos de borda, onde se executam processos de criação da
existência que se libertam das formas de sociabilidade dominantes. O silêncio é concebido
como sintoma criador que isola para estar à altura das experimentações que se impõem. O
isolamento permite encontrar esses vacúolos nos quais podemos criar novas alternativas de
vida para além das determinações dominantes. É a partir de experiências de espaços vazios,
silêncios, barulhos internos e externos que atacaremos estruturas antigas de pensamentos e
aportaremos novos conceitos e ideias fazendo o antigo envergar, ruir, transformar dando voz
ao que está clamando passagem. Trata-se de uma produção que dialoga com o futuro. A
proposta é fechar os olhos para acalmar os excessos de comunicação, de informação, de
imagens e podermos perceber outros sentidos, criar “vacúolos de solidão”. Fazer do silêncio e
da solidão lugares seguros nos quais a criação encontre o espaço que precisa para respirar e
resistir. Precisamos, na solidão e no silêncio, fechar os olhos e ouvir a nós e aos outros que já
se encontram dentro de nós, que já são um “nós”.
Nas palavras de Deleuze (2010, p.130) “Não nos falta comunicação, ao contrário, nós
temos comunicação demais, falta-nos criação. Falta-nos resistência ao presente”. Mas como
resistir em uma sociedade soterrada por informações, por comunicações de exageros? Para o
autor, criar é resistir. Seguindo esta ideia, só a criação é capaz de nos libertar desta
comunicação em excesso, que dizima o que há de vivo, esvaziando imagens e falas. Assim
compreendemos que a criação é a única força capaz de se sobrepor à avalanche de
informações e ao esvaziamento da linguagem. Resistir, na perspectiva deleuziana, é inventar
novos sentidos, novos caminhos, novas vias de pensamento, desvinculados da representação;
38
novas formas de vida que escapem às codificações do homem e da produção de signos que
constituem os espaços pré-fabricados da cultura contemporânea que capturam e nos controlam
todo tempo, é criar novas maneiras de ver, sentir e pensar no mundo, que fogem à lógica
formal do sistema dominante. Só o ato de criação pode fazê-lo. A estratégia é resistir ao atual,
seguir sensações e devires 7, experimentar os territórios virtuais do plano de imanência.
Resistir é, então, criação, criação permanente de novas possibilidades de vida, é invenção do
próximo instante. Sendo assim, não criar é não resistir.
A opinião, que no decorrer dos anos se tornou um valor simbólico de poder, não
escapou da análise de Deleuze. O autor denuncia a opinião como o que deve ser superado
pela criação. Os domínios da criação (ou do pensamento como assume Deleuze) devem
exatamente ultrapassar as ideias prontas, o senso comum, os preexistentes e os clichês nos
quais nos amparamos como a “uma espécie de ‘guarda-sol’ que nos protege do caos”
(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 260). A criação necessita da fantasia, do delírio ou
mesmo da loucura. A esse respeito, Deleuze e Guattari remetem ao escritor e poeta D. H.
Lawrence, que descreve o que a poesia faz:
7
Devir é um dos principais conceitos criados por Deleuze e Guattari e é essencial para entender como seu
pensamento funciona. Os devires se definem em um campo de multiplicidade, desdobramento da diferença, onde
as forças que constituem o corpo entram em uma zona de vizinhança, fronteiriça, uma copresença. O devir se
contrapõe à noção do Ser imóvel e estabelece o conceito de mudança como constituinte do real. É o acontecer, o
ir sendo, mover-se, transformar-se, passar.
39
Podemos compreender então, à luz do que Deleuze denominou palavra de ordem, que
a opinião realiza repetição, na maioria das vezes, não inventiva, não criativa. De acordo com
esta concepção, as palavras são pequenas “sentenças de morte” que foram criadas para se
obedecer, acreditar nelas e dar ordens à vida. Assim, compreendemos que a opinião pública
atua no registro primeiro da palavra de ordem enquanto conjunto de sentenças produzidas por
fluxos imitativos. A imitação diz respeito a representar o já dado, não há o pensar que diz
respeito às possibilidades de criação. Pensar não é conhecer a verdade, mas implica criá-las,
experimentá-las. Nenhuma criação existe sem experiência (DELEUZE; GUATTARI, 1996,
p.166).
responder à morte, não simplesmente fugindo, escapando, mas fazendo com que a fuga
comporte nela mesma a ação e a criação, “não fugindo, mas fazendo com que a fuga aja e
crie” (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 58). Para que isso ocorra, é preciso, segundo os
autores, criar um corpo sem órgãos (ou apenas CsO): “[...] encontre seu corpo sem órgãos,
saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de
alegria. É aí que tudo se decide” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.11).
São as máquinas desejantes (estado, família, igreja, escola, etc.), movidas pela lógica
da falta, que procuram nomear e estabilizar o corpo buscando produzir organismos e assim
fazerem o corpo padecer. Tornar um corpo um organismo é lhe atribuir uma utilidade, é
inseri-lo na sociedade para realizar determinados fins. Com isso o desejo é esmagado, os
órgãos capturados, amarrados e ordenados dentro de uma lógica capitalista. O órgão é sempre
instrumento de algo para além dele mesmo. Nesta condição o corpo se torna preso, fraco e
infeliz. Deleuze e Guattari advertem que o corpo sem órgãos não se opõe aos órgãos do corpo
(porque é através dos órgãos que as intensidades são produzidas), mas sim ao organismo e às
organizações de poder. É somente negando o organismo que podemos encontrar a potência e
vigor do mundo e da vida com toda a sua força trágica e transgressora. Da mesma maneira,
embora repudie as máquinas desejantes, o CsO também as atrai e se apropria das mesmas:
O corpo sem órgãos é produzido como um todo, mas no seu lugar próprio,
no processo de produção, ao lado das partes que ele não unifica, nem
totaliza. E quando se aplica, se rebate sobre elas, induz comunicações
transversais, somas transfinitas, inscrições plurívocas e transcursivas sobre
sua própria superfície, onde os cortes funcionais dos objetos parciais são
sempre re-cortados pelos cortes das cadeias significantes e os de um sujeito
que aí se descobre” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 46).
41
Canetti inicia sua reflexão sobre a ordem demonstrando a relação entre ordem e fuga e
vai buscar a explicação no reino animal trazendo como exemplo o rugido do leão que é a
própria sentença de morte para os outros animais e traz consigo uma ordem de fuga. Desta
maneira, ao investigar como a ordem acontece em sua forma mais primitiva, Canetti concluiu
que ela se originou na ordem de fuga ao afirmar:
ameaça, do olhar, da voz, da figura aterradora” (idem), e a fuga é última instância a qual se
pode apelar contra a tal pena de morte. Segundo o autor, a ordem seria mais antiga do que a
fala, ou seja, antes mesmo de poder articular a linguagem, o homem já exercia atividades de
comando, e é isso que possibilita que os animais possam ser adestrados. Os cães seguem uma
ordem que lhes é dada, mesmo sem conhecer a fala.
Algo que não pode deixar de ser destacado sobre a ordem, assinala Canetti (1995), é
que ela desencadeia uma ação dotada de uma direção definida. Assim toda ordem possui as
seguintes características: suscita uma ação; não admite resistência; a ação executada sob uma
ordem é percebida como algo alheio para aquele quem a recebe; é reconhecida como mais
forte; faz crescer o poder daquele que dá a ordem. Aprofundando essas reflexões sobre a
ordem, Canetti vai decompô-la em duas componentes: o impulso e o aguilhão. O autor
designa por impulso, palavras ou slogans, aquilo que faz submeter o outro, ou seja, a ordem
dada. O aguilhão é o efeito da ordem naquele que a recebe e em seguida a executa, isto é, o
efeito da ordem guardado no inconsciente do dominado. Para cada ordem recebida e
executada, corresponde um “aguilhão”, ou seja, um espinho que é colocado dentro do
indivíduo, um corpo estranho que se introduz no corpo daquele que a executa: a sua cicatriz.
Portanto, toda palavra é detentora de uma ordem e uma vez que esta palavra se realiza em um
ato produz um efeito sobre o empírico resultando em uma marca no corpo daquele que a
recebe. Podemos sintetizar o pensamento de Canetti com a seguinte sentença: ordem
cumprida = aguilhão encravado.
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Sendo toda palavra detentora de uma ordem (morte), então como escapar, resistir à
ordem? Toda e qualquer ordem não cumprida desmente e nega o poder. O poder vive na
perturbação de ver todas as suas ordens cumpridas, pois só assim se afirmar como poder. A
necessidade de confirmação prova a possibilidade de desobediência e fuga da ordem. Negar
ou não cumprir uma ordem é a afirmação da liberdade, é uma possibilidade de fuga, ou seja,
toda ordem está relacionada a uma contraordem de fuga. Como afirmou Canetti,
originalmente a ordem é uma ordem de fuga. Empurra quem está ameaçado para longe do
perigo.
Canetti observa o quanto expressões como “Pronto?”, “Sim”, “Vamos”, revelam que a
linguagem não existe para ser acreditada ou mesmo sequer compreendida, mas sim para ‘nos
corpos. A linguagem é concebida como emissão, recepção e transmissão de “palavra de
ordem”, por oposição a um postulado linguístico que sugere uma natureza informativa e
comunicativa. Assim, todo indivíduo possui cicatriz em seu corpo, pois todos nós temos
algum tipo de aguilhão, e alerta:
Os homens podem acumular em seu interior esses aguilhões, que podem ter
sua origem em ordens recebidas vinte ou trinta anos antes. Está tudo dentro
deles e tudo, através de uma espécie de subversão, deve voltar à luz [...] todo
homem que vive em sociedade está cheio de algum tipo de aguilhões de
ordem. Esses podem multiplicar-se até empurrá-lo para ações absolutamente
monstruosas, porque seus aguilhões o estão sufocando (CANETTI, 1988, p.
116-132).
45
Em um momento dos estudos sobre a palavra de ordem, Canetti fez uma análise
especial sobre a arte do orador que busca direcionar a massa fazendo-a superar o medo.
Com base nestas afirmações podemos considerar o orador como o líder da massa cuja
função é hipnotizar, tal qual descrito por Freud em sua obra “Psicologia das massas e análise
do eu” (2011). Para Freud cada massa tem um líder, que cumpre a função de
hipnotizador. Segundo Canetti, uma ordem a muitos tem um caráter muito peculiar. Seu
objetivo é converter em massa a maioria, e, na medida em que consegue, ela não desperta
medo. O slogan do orador, que impõe uma direção ao povo reunido, tem precisamente esta
função e pode ser considerada como uma ordem transmitida a muitos. Vale lembrar que o
autor se refere à massa enquanto conjunto esvaziado de singularidade, onde agem as forças da
igualdade homogênea entre seus membros. A ideia de massa, de acordo com Canetti, foi um
recurso dos indivíduos para se libertarem do temor de contato com o desconhecido, pois ela
iguala os sujeitos, trazendo-lhes segurança. Desta maneira, o autor, o princípio da sua
formação é o “medo de contato”.
A palavra slogan foi minuciosamente estudada por Canetti, que nos explica sua origem
etimológica a partir de duas palavras celtas: sluagh (que significa “exército dos mortos”) e
ghairm (que significa “chorar” ou “call”), ou seja, o grito dos guerreiros mortos, o grito de
guerra que vem do céu. O slogan faz parte de um truque retórico que nada mais era do que o
clamor dos mortos que ajudava a lutar contra o inimigo. O slogan que apresentava uma
conotação militar rapidamente ganhou uma conotação política. Assim se revela a força do
slogan como palavra de ordem, pois através da criação e declaração de um slogan a
possibilidade de outro mundo é aberta ou torna-se a realidade: “os gritos de guerra das nossas
massas modernas deriva dos exércitos de mortos das Highlands” (CANETTI, 1995, p. 42).
Outra questão relevante na obra de Canetti (1995) refere-se aos meios utilizados pelo
detentor do poder para conseguir manter a vítima sob sua tutela. É a partir dessa reflexão que
nasce o conceito de metamorfose e desse estudo resulta uma série de definições. A
metamorfose, segundo o autor, seria um instrumento tanto de aproximação para enganar a
46
vítima e conseguir cercá-la, como também um mecanismo de fuga da vítima. Canetti inicia
sua reflexão sobre o fenômeno afirmando que nada em nós é mais antigo e originário do que
os processos de capturas e incorporação. Uma das formas de um predador, com intenção
hostil, aproximar-se de sua presa é a espreita. Durante todo o momento da espreita, o predador
já tem a presa incorporada a si. A metamorfose ocorre neste momento, pois o predador não
revela sua verdadeira identidade e muito menos sua real intenção. A metamorfose torna o
modo de espreita eficaz a tal ponto que faz com que a presa acredite e confie no predador.
Neste contexto, o modo de espreitar pode ser concebido como uma forma de sedução que leva
a presa a permitir a aproximação de seu algoz. Por outro lado, a presa também passa por um
processo de metamorfose na tentativa de despistar ou escapar do ataque do predador.
Uma situação que não pode ser desprezada e que vai ser explorada por Canetti é o
momento em que o predador captura a presa. Após o bote do predador, acontece o primeiro
contato efetivo. O momento do contato físico é o que o homem mais teme, pois é o contato
com o desconhecido. Segundo Canetti, a nossa vida em civilização é o esforço para evitar o
contato com o desconhecido. O temor de ser tocado por um desconhecido nos coloca não
somente em um estado de alerta permanente, como também de manter uma distância de
segurança em relação ao outro. Muros, paredes, grades, cercas, seguranças, câmeras têm por
função nos colocar o mais distante possível de um contato ou de ser abordado por um
desconhecido. Até mesmo no sono, em que nos encontramos muito mais indefeso, podemos
ser perturbados com muita facilidade por tipo de temor,
Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido.
Ele quer ver aquilo que está tocando; quer ser capaz de conhecê-lo ou, ao
menos de classificá-lo. Por toda parte, o homem evita o contato com o que
lhe é estranho... Todas as distâncias que os homens criaram em torno de si
foram ditadas por esse temor ao contato (CANETTI, [1960] 2005, p. 13).
distanciamento e temor. Vale ressaltar que o pânico é um grande inimigo da massa, pois é ele
que a dissolve. Ao instalar-se, obriga cada indivíduo a afirmar sua individualidade, uma vez
que luta pela própria vida.
Em A consciência das palavras, Canetti (2011) escreve sobre o ofício do poeta, termo
que ele usa para falar daquele que escreve, como sendo o guardião das metamorfoses
produzidas pela humanidade e das que ainda deverão ser produzidas. O poeta tem como tarefa
exercitar “o dom da metamorfose”, isto é, o dom de transformar-se em outra pessoa qualquer,
um anônimo, alheio à vaidade da fama, capaz de despojar-se da objetividade produtiva, abrir-
se para a experiência, para novos encontros, apostar em uma lógica sensível e tramar uma
ordem oculta sob o caos. É preciso seguir adiante na produção da própria obra sem esperar
aplausos de uma massa que não sabe e não quer experimentar. Na visão de Canetti, o poeta
conserva na radicalidade de seu ato a alavanca de que carecemos para renovar a linguagem,
ou melhor, para renovar a vida.
[...] Num mundo que proíbe mais e mais a metamorfose (...), que multiplica
irrefletidamente os meios para sua própria destruição (...) num tal mundo que
se poderia caracterizar como o mais cego de todos os mundos, parece de
48
Quando Canetti diz que “o poeta é o cão do seu tempo”, faz um chamado a farejar a
realidade como um cão e não hesitar no esforço de compreendê-la. É preciso meter o focinho
49
úmido nas mentiras, não deixar nada de fora, ser insaciável em sua curiosidade, revirar o lixo
da linguagem para salvar significâncias. É o focinho que liga o cão aos seus domínios, a
procura de saciar seu vício que é o gozo interior que nunca se satisfaz com o que tem. Para
Canetti, o poeta também tem um vício insaciável que o liga ao seu ambiente, por isto propõe
ao poeta farejar a realidade de forma incessante e obstinada e negá-la sempre num processo de
criação para lançar novos caminhos aos pés sem rumo. Este convite de Elias Canetti é
direcionado aos poetas, mas pode ser extensivo a todos nós.
O termo “controle” utilizado por Deleuze para nomear a sociedade contemporânea foi
forjado pelo escritor norte americano William Burroughs (1914–1997), que leva ao extremo a
questão do controle pela palavra e faz uso do mesmo com uma série de nuances e variações.
Embora a inspiração de Deleuze tenha sido Os limites do controle de 1975, o termo atravessa
todas as obras de Burroughs, que vai desde as tragédias pessoais, passando pelo estilo de vida
americano (o american way of life), pelo exercício do poder, até as alterações na comunicação
contemporânea. Na literatura, Burroughs ficou conhecido por uma intensa experimentação de
formas de escrita, e pelas reflexões sobre vírus, controle e linguagem. Na linguagem literária,
experimentou e deu lugar a uma série de rupturas estilísticas. Avistava na linguagem um
parasita, um vírus que consumia a carne, o osso e o sangue de seu hospedeiro. Burroughs
tratava o controle sempre como um fenômeno que é externo ao indivíduo sobre o qual é
exercido. O controle se tornou uma preocupação constante na vida deste autor.
contra sua esposa Joan Vollmer provocando sua a morte. Foi também o espírito que o
apavorou por quase toda a vida. Burroughs apresenta a palavra controle na sua dimensão
espiritual e metafísica de um ser místico invasor capaz de suprimir a vontade e promover a
obediência do corpo dominado. Burroughs acreditava em espíritos, magia, forças alienígenas
e maldições. Em 1992, submete-se a um ritual xamânico de purificação e se liberta do
controle do espírito e abandona a expressão Ugly Spirit até o fim de sua vida. Porém, passa a
designar o espírito pela expressão Ugly American, em referência ao american way of life, mas
também às instituições políticas e instâncias como Estado, nação, polícia, mídia, família,
religião institucional, dinheiro, a propriedade, entre outros.
Em Almoço Nu, Burroughs apresenta a medicina como ação sobre o ambiente e sobre
a população. Ainda na mesma obra, chama atenção para o fato da medicina interferir e se
deslocar cada vez mais por dimensões diferentes da vida humana. Naquele momento, o autor
testemunhava a medicalização da vida com a produção em massa de a toda uma série de
antidepressivos, ansiolíticos e tranquilizantes em geral e com ela a proibição das drogas.
Neste contexto, vai afirmar que o médico é um especialista em controle. O controle, nesta
situação, surge como técnicas de adestramento e manipulação mental de sujeitos. Entre as
técnicas usadas estão o uso de substâncias psicoativas, torturas, aprisionamentos, lavagens
cerebrais, etc. As drogas podem ser compreendidas como técnicas de controle, uma vez que
podem anular a vontade do sujeito. O elemento alucinógeno, químico é apenas um grande
aparato de controle, que por sua vez está localizado abaixo de outro, médico-policial, que
cumpre a missão de gerar dependência.
manter-se no poder” (BURROUGHS apud MILES, 1992, p. 172). Esses mecanismos são
produtores de baixos níveis de consciência e trabalham para não elevar a consciência que
pode melhorar a condição humana. Para Burroughs a “máquina de controle” só se realiza em
uma sociedade estratificada e hierarquizada e, portanto, as sociedades sedentárias tendem
fazer uso desta maquinaria, enquanto sociedades nômades tendem a não tê-la.
Podemos resumir dizendo que a crítica da linguagem de Burroughs concentra-se nas palavras
de comando, comunicação e informação, na linguagem de controle.
Embora tenha dado mais ênfase ao texto escrito, Burroughs situa também o vírus na
palavra falada, palavras que são transmitidas e reproduzidas, repetidas – a palavra escrita seria
um vírus que tornou possível a palavra falada. Logo, o surgimento da fala e o surgimento da
escrita estariam relacionados a este vírus. Este vírus atingiu um estado estável de simbiose ou
equilíbrio benigno com seu hospedeiro, e por essa razão não é reconhecido como tal. Além
disso, o anfitrião vê o vírus da palavra como uma parte útil de si mesmo. Assim, a palavra
escrita aparece não com o homem, mas com o vírus. Ela é o vírus. Depois de infectado, o
homem passou a conviver com a linguagem numa relação simbiótica. O simbólico agora vive
no homem. E vice-versa. Mas sendo a escrita a origem da palavra falada, é também a origem
de uma relação de autoridade.
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No princípio era a palavra e a palavra era Deus e desde então tem permanecido um
mistério. A palavra era Deus e a palavra foi carne, dizem-nos. No princípio de quê
exatamente esteve essa palavra inicial? No princípio da história escrita. Pressupõe-se
em geral que a palavra falada antecedeu a palavra escrita. Eu sugiro que a palavra
falada, tal como a conhecemos, é subsequente à palavra escrita. No princípio era a
palavra e a palavra era Deus e a palavra foi carne, dizem-nos... carne humana... No
princípio de quê exatamente esteve essa palavra inicial? No princípio da história
escrita.” (BURROUGHS, 1994, p. 19)
Burroughs faz uso da palavra inicial bíblica, tão velha quanto intrigante, para
demonstrar que a escrita é o fundamento da lei divina que governa as pessoas, o mundo. É o
fundamento da transmissão da lei, do mandamento, da ameaça, impresso na Bíblia, que
atravessou o tempo e chegou até os dias de hoje ordenando e controlando. O autor se refere
ao homem porque, ao contrário do animal, é capaz de escrever e, nesse sentido, ir aos
primórdios da história e da manipulação da mesma: o controle da informação.
Segundo Burroughs, o que nos separa dos animais é a escrita e não a própria palavra.
Os animais falam e transmitem informações. Mas não escrevem. Não são capazes de tornar a
informação acessível às gerações futuras ou aos animais fora do alcance do seu sistema de
comunicação. “Um velho rato sábio pode saber muito sobre ratoeiras e veneno, mas não é
capaz de escrever no Reader´s Digest um manual (BURROUGHS, 1994, p.19-20). Citando o
médico-linguista polonês Alfred Korzybski, que promoveu o conceito da Semântica Geral,
Burroughs descreveu o ser humano como “o animal que encadeia o tempo”, complementando
com a afirmação:
Não ocorreria ao nosso velho rato sábio reunir os ratos jovens e passar-lhes
os seus conhecimentos numa tradição oral porque todo o conceito de
encadeamento do tempo não poderia ocorrer sem a palavra escrita. A palavra
escrita é, evidentemente, um símbolo de qualquer coisa. A palavra escrita "é
uma imagem, é uma figura (ibidem, p.20).
No artigo “Word authority more habit forming than heroin” (A autoridade da palavra
forma mais hábitos que a heroína), incluído na coletânea The Burroughs File, publicada pela
primeira vez em 1984, o autor afirma que a autoridade das palavras forma hábito. Ao usarmos
as palavras apresentamos um hábito enunciado na ação desejada pela ordem determinada.
Dependemos desta conduta assim como um viciado depende da heroína. O que surge desta
55
dependência é uma relação de controle. E, mais uma vez, Burroughs demonstra que o controle
vem de um fator externo. É o vírus da linguagem atuando no interior do indivíduo, agindo
como uma droga, promovendo mudança de percepção, a alteração da consciência. No entanto,
a eficácia da linguagem como produtora de consciência é também exaltada.
Uma palavra escrita, na teoria burroughsiana, é uma imagem, e palavras escritas são
imagens em sequências, ou melhor, figuras em movimentos (BURROUGHS, 1994). As
imagens, assim com as palavras, são instrumentos de controle. As imagens inseridas em
jornais, revistas, televisão, outdoors são formas de controle, pois o design de uma propaganda,
de notícia ou de um programa televisivo é elaborado nos mínimos detalhes para provocar um
efeito em quem as recebe. Tudo que envolve a imagem (cor, brilho, intensidade, formato,
tamanho de letra, música, o tom e o timbre de voz de uma pessoa, etc.) é pensado e criado
com o intuito de seduzir, conquistar e controlar o sujeito e todos estes detalhes provocam
alterações de percepção, produções de consciência (BURROUGHS, 1994, p. 52). Ao
incorporar as imagens como instrumentos de controle, o autor inclui em suas críticas o
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A técnica de cut-up, que em uma tradução livre quer dizer “recorte”, é uma técnica
literária não-linear na qual um texto ou conjunto de textos são cortados literalmente em
pequenas porções que depois são rearranjadas de modo a criar um texto novo. Ao escrever em
cut-up, o texto se torna livre de linearidade e da hierarquia imposta pela linguagem na
construção de significado. O cut-up tinha como objetivo libertar a linguagem através de seu
uso não instrumental, não significativo e com isso promover a libertação do indivíduo e a
transformação do mundo. Burroughs desejava desmontar e remontar nossas velhas máquinas
57
de escrita. Para ele o cut-up é um método impessoal de inspiração, invenção, e um acordo que
redefine a obra de arte como um processo que ocorre em colaboração com os outros e não é
de propriedade exclusiva de artistas. O método trouxe a colagem para os escritores, algo já
usado pelos pintores há 50 anos. Todo texto é na verdade cut up, colagem de palavras lidas,
ouvidas, encabeçadas. Usar a tesoura torna o processo aberto e matéria de expansão e
variações.
Esta versão literária da técnica de colagem também é complementada por uso literário
de outros meios de comunicação. Esta técnica foi usada intensivamente por Burroughs que a
descobriu através de seu amigo pintor e escritor Brion Gysin na França. No verão de 1959
Gysin começou a experimentar com cut-ups, cortando uma folha de jornal em pequenas
secções e reordenando-as aleatoriamente. Descrevendo a descoberta, Brion Gysin sublinhou,
“o método cut-up trata as palavras como o pintor trata suas tintas, matérias-primas com regras
e razões próprias". Quando Gysin começou a experimentar cut-ups em seus trabalhos,
Burroughs imediatamente viu a semelhança deste método com as ‘justaposições’ usadas por
ele em seu livro Almoço nu. Em 1960 essas primeiras experiências com cut-ups seriam
publicadas no livro Minutes to go, escrito em parceria com Gysin, Sinclair Beiles e Gregory
Corso. O poema Minutes to Go foi escrito através deste procedimento de uma forma não
editada.
Na música, o cut-up seduziu artistas como David Bowie, Iggy Pop, Kurt Cobain
(Nirvana), John Cale (Velvet Underground) e Sonic Youth, todos adeptos declarados da
técnica que aprenderam diretamente com Burroughs. David Bowie foi o primeiro músico a
fazer experiências com cut-up no álbum Diamond Dogs. A técnica também está presente nas
letras de bandas como Throbbing Gristle, REM, Nirvana e Radiohead, particularmente em seu
álbum Kid A. Na música Lust for Life, Iggy Pop faz referências à escrita de Burroughs.
Burroughs gravou trechos de seus livros e contos que foram musicados por Sonic Youth, John
Cale, Phillip Glass, Laurie Anderson entre outros. Os Beatles, que imortalizaram Burroughs
na capa de Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, foram apaixonados pela sua
experimentação. No cinema, Burroughs fez uma série de filmes em cut-up com o cineasta
britânico Anthony Balch. Além disto, as impressões digitais de Burroughs podem ser vistas
nos filmes do diretor e produtor norte americano Darren Aronofsky e do cineasta mexicano
Alejandro González Iñárritu. Os cut-ups trouxeram uma nova dimensão para os filmes ao
cortar e rearranjar o mundo e as imagens nos filmes. A influência das experiências de
Burroughs com edição e justaposições aleatórias pode ser visto em grande parte da música e
do cinema dominante hoje e que não é mais visto como radical.
Burroughs manteve uma relação muito estreita com o movimento punk ao longo dos
anos 1970, movimento que surge como uma afirmação oposta ao modo de vida hippie de paz
e amor, e da produção de uma música com poucos acordes, crua que fazia oposição à música
tecnicamente trabalhada do rock progressivo. Jello Biafra, vocalista da banda punk
californiana Dead Kennedys, declarou ter feito uso da técnica cut-up para compor músicas
como “Man with the dogs”. De acordo com Jello Biafra, diversos artistas pioneiros do punk
rock como Iggy Pop, Lou Reed e Will Shatther do Negative Trend foram leitores assíduos da
obra de Burroughs e muito influenciados por suas ideias.
A filosofia punk do “se você não gosta do que existe, faça você mesmo” ou,
simplificando, “do it yourself”, é totalmente burroughsiana. Os punks criaram suas próprias
artes plásticas, suas próprias roupas, seus acessórios, seus próprios discos (o que deu início a
um real sistema de gravadoras independentes) e suas próprias publicações chamadas de
fanzines, que eram xerocadas, mas que também utilizava muita colagem.
A experimentação compulsiva de Burroughs com os cut-ups foi uma maneira que ele
encontrou de executar uma interferência contra o mundo opressivo da comunicação que ele
denominou de “controle”. Burroughs acreditava que a linguagem e a imagem eram virais e
que a disseminação em massa de informações fazia parte de um arco-conspiração para
restringir o potencial da mente humana. Com o cut-up Burroughs encontrou um meio de
fuga; um antídoto para a doença das mensagens de controle que transformam seu conteúdo
original. Se a mídia de massa já funcionou como uma enorme barragem de material, o método
cut-up seria uma maneira do artista voltar a lutar usando as suas mesmas táticas.
Na obra The Ticket that Explode, toda ela escrita sob a técnica cut-up e publicada em
1994, Burroughs apresenta inúmeras instruções para a produção de conteúdo através da
manipulação e edição de textos e conteúdo audiovisual. Além das explicações para o
desenvolvimento de diversos experimentos com imagens, em um trecho quase profético, vai
60
realidade. Afinal, o que faz a internet senão usar palavras, imagens e som para controlar o
usuário. A fim de resistir à perda de controle o usuário deve aprender a manipular as palavras
e as imagens. Portanto, a máquina de escrever só poderá melhorar e transformar a condição
humana se o usuário for capaz de assumir o controle da máquina. Mais que resistir à
mercantilização, é preciso produzir escrita, pois escrever é produzir um acontecimento,
apontar o futuro, criar uma nova realidade.
Em sua fantástica obra Almoço Nu Burroughs descreve uma sociedade de controle que
esconde bárbaros, rituais opressivos utilizando uma máscara de racionalidade e realidade que
está eternamente mal representada na mídia. Uma sociedade na qual o homem faz uso de bens
materiais e tecnologia visando escapar de seu interior, onde o homem é reduzido a um estado
de selvageria e onde o ambiente do homem serve para entorpecer e sufocá-lo. Esta é a
sociedade que Burroughs recusou e este é o homem que ele sonhou libertar. Por esse motivo,
o foco de seu trabalho foi sempre a identificação de sistemas de controle e construção de
meios para destruí-los. Burroughs sempre lutou pela liberdade completa, a liberdade de todo
tipo de controle. Com sua loucura caminhou na direção contrária ao que era imposto pela
política, aos modelos, a mídia e toda cultura massificante e a supressão do modo de vida
americano e os valores familiares tradicionais. Rompeu hábitos lineares de pensar, falar,
escrever e imaginar. Ao longo de todo seu trabalho Burroughs teceu uma mensagem
apaixonada: desconstruir sistemas de controle e pensar por si mesmo.
62
Capitalismo mundial integrado (CMI) é o nome proposto, já no final dos anos 1970,
por Félix Guattari para designar o capitalismo contemporâneo como alternativa à
globalização. Guattari propõe este nome para designar o capitalismo contemporâneo por
entender que o CMI não tem fronteiras regionais ou nacionais, por ser móvel e rizomático e
por operar por um processo intenso de desterritorialização/recomposição ininterrupta de si
mesmo e objetivando a atividade humana e o setor de produção. Nenhuma atividade humana,
nenhum setor de produção fica fora do seu controle. O CMI não respeita tradições e por isso
63
No entanto, tais transformações, de acordo com Guattari, não pressupõem que o novo
capitalismo substitua por completo o antigo. O que há é uma coexistência, estratificação e
hierarquização de capitalismos de diferentes níveis que põem em jogo de um lado, os
capitalismos segmentários tradicionais territorializados nos Estados-nação e, de outro lado,
um capitalismo mundial integrado, que não mais se apoia unicamente no modo de
semiotização do capital financeiro e monetário.
autonomia) e molar (A linha molar diz respeito a estados definidos, modelos dominantes, são
aquelas que reproduzem as palavras de ordem, dos processos de controle, da rigidez, de
oposições binárias e maniqueístas) por dentro do tecido social agenciando e produzindo
subjetivação. A subjetividade contemporânea é contingenciada por dispositivos de poder e
saber que operam a favor dos interesses das grandes corporações telemáticas. É uma
subjetividade alienante, mass-midiática, que utiliza as inovações tecnológicas e criativas a
favor da manutenção de antigos dogmas sociais.
Guattari (2003) ressalta que a vida doméstica vem sendo regularmente influenciada
pela mídia. Esta vida conjugal e familiar está petrificada por uma padronização de
comportamentos que são constantemente modelados dentro do paradigma da máquina
capitalística. Esse controle se dá de forma rápida, imperceptível, constante e ilimitada, tendo a
mídia como principal instrumento na produção desejante. Deste modo, a subjetividade
funciona no coração dos indivíduos, em suas formas de pensar, de perceber o mundo e de se
relacionar com uma sociedade suporte das forças produtivas.
equivalentes gerais. “São espécies de robôs, solitários e angustiados, absorvendo cada vez
mais as drogas que o poder lhes proporciona” (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 40)
Guattari vai chamar atenção para a modelagem, adestramento das crianças cada vez
mais precoce através das mídias eletrônicas, e destaca neste processo a televisão, os
computadores e os jogos educativos que visam incutir as semióticas dominantes do mundo
capitalista. Há assim uma substituição de mães e professoras pela televisão, nesta tarefa de
iniciação aos códigos sociais.
A televisão e as novas mídias não são os únicos elementos da emergência das novas
subjetividades. Para Guattari (1993, p.80), a subjetividade da criança é construída no
66
8
Guattari analisa as subjetividades maquínicas propondo que se fale, no lugar de um sujeito da enunciação ou das
instâncias psíquicas de Freud, de agenciamentos coletivos de enunciação, que corresponderiam a uma
“subjetividade de natureza industrial, maquínica, ou seja, essencialmente fabricada, modelada, recebida,
consumida”, subjetividade que seria sempre “fabricada e modelada no registro do social” (GUATTARI;
ROLNIK, 1996, p.25 e 31). Esta subjetividade coletiva, porém, não surgiria do simples aglomerado de
subjetividades individuais, ou do somatório de sujeitos portadores de identidades fixas e definidas a partir de
oposições binárias (homem/mulher, adulto/criança, capital/trabalho, natureza/sociedade; trabalho/lazer, etc.).
Guattari parte da ideia de processos de subjetivação que supõem a afluência de certo número de singularidades
(singularidades que são sempre múltiplas), que explodem o âmbito da pessoalidade, dos sujeitos individuados.
Trata-se então de pensar em processos de individuação e de produção de múltiplas subjetividades resultantes de
“entrecruzamentos de determinações coletivas de várias espécies, não só sociais, mas econômicas, tecnológicas,
de mídia etc.” (ibidem, p. 34). Assim, a constituição do mundo e das subjetividades que o habitam pode ser
pensada como uma produção incessante que não tem mais como ponto de partida um sujeito definido a priori,
mas que parte das diversas possibilidades de ser, de existir, que se abrem a partir dos encontros entre as múltiplas
e diferentes subjetividades e das relações com o Outro (entendido como lugar ou ser da diferença) e com o
mundo. É neste sentido que podemos situar o processo de produção de subjetividade – os agenciamentos
coletivos de enunciação propostos por Guattari – nos domínios da produção, da expressão e da linguagem.
68
A comunicação comunitária constitui assim uma força contra hegemônica que, com
sua estrutura plural e polifônica, produz novas linguagens e novos sistemas produtivos e
propicia novas formas de reflexão sobre a comunicação. O enfoque da comunicação
comunitária na polifonia de vozes permite a instrução dos cidadãos (pois contribui para a
promoção da cidadania e consumo crítico das mensagens midiáticas) e a diversidade da
informação.
A favela é quase sempre eleita pelos grandes veículos de comunicação como uma
espécie de espelho invertido da cidade, ou melhor, como não pertencente à cidade, um corpo
estranho dentro da cidade que deve ser controlado, combatido ou até mesmo extirpado. Uma
doença urbana cuja prevenção torna-se estritamente a repressão. A favela é definida na grande
maioria das narrativas midiáticas pela falta (falta de segurança, falta de higiene, falta de
educação, falta de cultura, falta de conhecimento, falta de informação e etc.). Diante de uma
realidade plural as mass mídias enfatizam apenas o elemento da carência, da ausência. Trata-
se de uma comunicação pensada e aplicada como prática de poder que se esconde sob o véu
do informar e reportar e no qual a informação não tem potência de transformação. Há
nitidamente uma relação de poder onde aqueles que detêm mais poder de representar acabam
também tendo mais poder para se consolidar. Por sua vez, a comunicação comunitária desloca
os discursos do medo, insegurança e terror que exilam a favela e produzem subjetividades
amedrontadas, temerosas e, portanto, passivas, para afirmar outros modos de vida e de estar
nesse mundo que não os hegemônicos produzidos pelas mass mídias.
Ivana Bentes (2014), abraça a hipótese de que a mídia de massa, na sua prática
“neutra” e “imparcial”, funciona com palavras de comando ou de ordem, exatamente no
sentido utilizado por Deleuze e Guattari. Bentes afirma que o jornalismo e a publicidade
massivos trabalham com comandos, concordando com o postulado de Deleuze e Guattari
(1995) de que “a informação é apenas o mínimo estritamente necessário para a emissão,
transmissão e observação das ordens consideradas como comandos” e “ordenar, interrogar,
prometer, afirmar, não é informar”. Neste sentido, a informação que a mídia de massa faz
circular corresponde à sua visão hegemônica e estereotipada sobre as favelas, em suma, a
palavra de ordem, o comando que se tornará a verdade. Os meios de comunicação massivos
atuam como agentes significantes, produtores de sentido que não produzem a realidade, mas
sim a determinam. Como dizia George Orwell, “a massa mantém a marca, a marca mantém a
mídia e a mídia controla a massa”.
relação com o corpo, com a mente e com a sociedade, fazendo surgir uma subjetividade
assistida por computador. Ao referir-se a essa “subjetividade assistida por computador”,
Guattari aponta para o engendramento rizomático inusitado que se pode constituir com as
máquinas informacionais. Entretanto, esta nova forma de subjetividade assistida por
computador não é o simples resultado da mudança tecnológica, mas antes uma manifestação
micropolítica que surge na esteira de uma nova apropriação de mídia. Para Guattari, a
informática e a tecnociência não são nada mais do que formas hiperdesenvolvidas da própria
subjetividade e que são usadas de acordo com uma intencionalidade. Se por um lado, a
subjetividade não se reduz a um ponto de vista (subjetivo), a máquina não se reduz a uma
função ou realidade objetiva. Para o autor, uma máquina que não estiver investida de desejo e
alimentada de subjetividade é como um corpo sem vida.
uma era pós-mídia, caracterizada por uma reapropriação e uma re-singularização da utilização
da mídia, segundo admitia Guattari (ibidem, p. 15). Nesta perspectiva, através da evolução da
tecnologia ainda é possível reapropriar e re-singularizar o uso da mídia, através de usos
diferenciados da mídia e da tecnologia que permitam a constituição de vetores de
singularização.
Assim, uma nova e positiva aliança entre homens e máquinas seria possível,
concorrendo para que as atuais máquinas informacionais e comunicacionais produzam novos
agenciamentos de enunciação. Essas potencialidades podem desembocar enfim em uma nova
era, uma era pós-mídia, “que as livre dos valores capitalísticos segregativos e crie condições
para o pleno desabrochar dos esboços atuais da revolução da inteligência, da sensibilidade e
da criação” (GUATTARI, 1992, p. 187). Na era pós-mídia, a mídia e suas modelizações
subjetivas não teriam mais ambições de sobrecodificar a realidade. Ao contrário, teriam como
objetivo ser uma fonte de heterogeneidade e polifonia, de novas formas de viver em
sociedade. Um dos pontos primordiais de uma agenda de mudança é fazer transitar as
sociedades capitalistas da era da “mídia” em direção a uma era “pós-mídia”, esta última
compreendida como o momento de reapropriação dos meios de comunicação pela multidão de
grupos e minorias, capazes e geri-los em uma via de singularidade e autonomia. O termo pós-
media foi forjado por Guattari para descrever essa transformação das estruturas clássicas das
mídias de massa para novos agenciamentos coletivos de enunciação que rompem com a
produção de subjetividades normativas.
não teriam mais como base um regime de uma verdade transcendente como o formato das
mídias de massa. Importante observar que toda essa teorização foi formulada antes do
desenvolvimento da World Wide Web tal como a conhecemos agora. Guattari tinha como
base suas experiências nas estações de rádio livres, como a Rádio Alice (1974-1977), a mais
lendária das rádios livres europeias situada na cidade de Bolonha na Itália.
A grande característica da Rádio Alice era a recusa em assumir uma postura político-
partidária definida nos termos convencionais e por trazer à discussão pública temas
considerados malditos como o corpo, o desejo, o prazer e a preguiça. Com muita frequência
mesclava valores estéticos com ações políticas. A grande revolução promovida pela Rádio
Alice não se resumia à questão de dar espaço de fala a excluídos e marginalizados, como
jovens, homossexuais, mulheres, desempregados e outros, mas gerar um agenciamento
coletivo de enunciação permitindo o máximo de conexões transversais e transformações
subjetivas entre todas essas subjetividades emergentes. O fenômeno Alice fez brotar uma
sucessão de contradições entre as rádios estatais e outras rádios, promovendo uma ruptura,
num nível considerado molecular, entre um modelo de escuta previsível e algo diferente e
mutante que começava a ser ouvido. A ruptura da Rádio Alice estava na sua concepção de
contrainformação centrada na enunciação e não no enunciado. A Rádio Alice conquistou sua
fama não somente por pregar o discurso de liberdade radiofônica e liberdade de expressão,
mas por romper com as formas discursivas convencionais.
Guattari percebeu que a rádio livre consistia numa utilização totalmente diferente da
mídia rádio. Foi neste sentido que elaborou uma teoria não para o rádio, mas para aquele tipo
de rádio, as rádios livres e chegou à conclusão de que não se tratava de fazer como a rádio
dominante, nem melhor, nem na mesma direção. Tratava-se, ao contrário, de encontrar outro
uso, outra relação de escuta, uma forma de feedback e de fazer falar línguas menores. A ideia
era de promover um certo tipo de criação que não poderia acontecer em nenhum outro lugar.
Guattari costumava afirmar que a rádio livre é como uma espécie de fósforo que você risca e
logo tudo pega fogo. Para ele, as rádios livres eram abertura de possibilidades para uma
apropriação coletiva dos meios de comunicação e ressurgimento de um novo espaço de
liberdade, abrindo o caminho para um novo tipo de democracia direta. Contribui para esta
concepção o fato das rádios livres terem colocado no espaço público mediatizado a palavra do
ouvinte.
75
Na visão de Berardi, a rádio representava uma minoria política, apenas pequena parte
do mundo político, mas uma maioria social. A Rádio Alice era um laboratório que permitiu a
circulação e hibridação destes novos vocabulários. Um ponto de intersecção de diferentes
experiências – cada experiência sendo diferente da outra. Uma rádio menor, uma linha de
fuga que abriu brechas e se difundiu e permitiu a várias moléculas sociais (diversas rádios
livres surgiram em potência) se deslocarem segundo uma lógica comunicacional que não é
compatível com a reprodução do poder. Berardi (2005) exalta a função do rádio nas lutas da
década de 1970 que, na sua visão, não desempenha uma função organizacional ou de
liderança, mas antes a de disseminar um sentido político novamente. Em outras palavras, uma
função de rizoma que é dar voz aqueles que nunca tiveram. Atuando desta forma, os meios de
comunicação têm a função de ideologizar pessoas, afirma Berardi. A Rádio Alice não era um
quartel para a doutrinação, mas um laboratório verbal onde mentes coletivas (as mulheres, os
desempregados, os trabalhadores, homossexuais, estudantes entre outros) adquiriram uma
voz. Essa foi a grande insurreição: a multiplicidade de línguas únicas que desafiam a
uniformidade sufocante regulada pela mídia.
Não se trata de reagir à força do poder opondo a ele uma força igual,
conteúdos contra conteúdos. Trata-se ao contrário de introduzir nos
interstícios da comunicação social os fatores de desvio, de ironia e
décloisonnement, trata-se de encontrar as linhas de fuga capazes de fazer
"delirar" o fluxo dominante e de fazer emergir o obsceno, o que resta fora da
cena (BERARDI, 2005).
Guattari participou com muito entusiasmo desse movimento de rádio livres e absorveu
muito conhecimento da experiência que teve na Rádio Alice. Dessa relação surgiu a rádio
livre Tomate, uma experiência interessantíssima das periferias francesas. O nome “Tomate”
foi uma homenagem aos italianos da Rádio Alice. A rádio Tomate foi lançada em 1981 tendo
como objetivo incentivar uma nova noção de debate e uma forma alternativa de comunicação
que girasse em torno da área local e das ruas. Era uma rádio livre autogestionária que dava
voz aos imigrantes africanos em Paris. Dois anos após o seu início, devido à perseguição da
77
No entanto, não basta fazer rádios livres ou vídeos independentes etc.; isto não será
suficiente para desmontar a produção de subjetividade dominante, já advertia Guattari. O
autor era categórico ao afirmar que para desmantelarmos a subjetividade capitalista é preciso
que a reapropriação dos meios de comunicação de massa se integre em agenciamentos de
enunciação que tenham toda uma micropolítica e uma política no campo social. Além disso,
salientava que o interesse da rádio livre deve estar vinculado a um grupo de pessoas que
desejem transformar sua relação com a vida cotidiana, e que queiram também transformar a
forma de relação que têm entre si no seio da própria equipe que produz a rádio, que
desenvolvem uma sensibilidade; pessoas que tenham uma perspectiva ativa em termos desses
agenciamentos e, ao mesmo tempo, não se fechem em guetos (GUATTARI, 1993, p. 121).
Assim, evidencia-se que a resposta não está no campo técnico, mas sim na
micropolítica. Se a mídia em seus usos dominantes pode ser vista como gigantesca máquina
produtora de subjetividade consensual, então são aqueles meios que podem constituir uma
produção alternativa de subjetividade os mais receptivos a uma transformação pós-mídia.
Desde os anos 1990 que a subjetividade está diante de facilidade, através da evolução
tecnológica, de uma reapropriação singularizada da mídia. Em suas reflexões visionárias, esse
acontecimento já era apontado por Guattari (2009, p. 47) como o fator mais relevante para nos
afastar da modernidade mass-midiática opressiva e nos conduzir a uma era pós-midiática
libertadora. Ele acreditava que, na era pós-midiática, haveria um remanejamento do poder a
78
Por volta de 1998, a teoria guattariana do pós-midia começa a ser desenvolvida, já sob
o impacto da Internet e meios de comunicação e de distribuição digital com base em mídia,
pelo teórico cultural britânico Howard Slater (2000), que descreveu os operadores pós-mídia
como os profissionais de mídia e ativistas que trabalham no campo disperso da música
independente, impressão, imagem e produção online. Assim como Guattari, Slater situava as
práticas pós-mídia em oposição aos meios de comunicação de massa, afirmando, além disso,
que as práticas de pós-mídia são caracterizadas por pequenas redes diversas, distribuídas por
operadores que fazem uso dos então novos meios digitais de produção e distribuição. A
atividade pós-mídia não é o resultado de uma resolução discursiva, que só levaria a outro
79
discurso, é muito mais o processo que permite que as contradições sejam empurradas na
direção de enigmas provocando ligas.
De acordo com esta perspectiva, o midiativismo pode ser entendido como a dimensão
da prática ativista que funciona por meio e sobre as plataformas eletrônicas virtuais. Constitui
também a terra de abertura e a pluralidade de informações para a organização ativa, a
monitoração do poder, o questionamento da mídia tradicional, a promoção da liberdade de
expressão e a defesa dos direitos fundamentais. Nos termos de Pasquinelli:
9
Centro de Mídia Independente, também chamado Indymedia, é uma rede internacional de meios de
comunicação criada por várias organizações de mídia independentes e alternativos e ativistas em 1999 com a
finalidade de proporcionar a cobertura das bases das Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle. O
centro atuou como um centro de informações para jornalistas e forneceu relatórios atualizados, fotos, imagens de
áudio e vídeo através de seu website. Usando as imagens recolhidas, o Seattle Centro de Mídia Independente
produziu uma série de cinco documentários, uplinked todos os dias para satélite e distribuído por todo os Estados
Unidos para estações de acesso público.
82
O midiativismo de favela também se constitui pelo uso de mídias modernas (por ex.
Internet, aplicativos de celular) e tradicionais (rádio, jornal) e representa formas de
contrainformação, de mobilização popular e de compartilhamento de pensamento crítico.
Através dessas ações se produz conhecimento sobre a favela tanto para moradores quanto para
as pessoas de fora dela, informações que confrontam o jornalismo corporativo deslocando os
discursos do medo e do terror sempre apresentados pela grande mídia, reforçando a
representação negativa da favela. Normalmente as ações visíveis online são apenas pontas de
um complexo iceberg de relações interpessoais e de criatividade coletiva (CUSTÓDIO, 2013).
O que a comunicação da favela faz é questionar a pauta e o papel da imprensa corporativa na
sociedade que retrata a favela como território de morte e dor e reforça a discriminação contra
sua população. A comunicação da favela é luta, resistência, mas acima de tudo é instrumento
de libertação.
De acordo com Negri e Hardt, essas figuras subjetivas são o terreno sobre as quais e
contra as quais os movimentos de resistência e rebelião não só devem agir, mas já mostram
toda a capacidade de recusá-las e de criar novos tipos de subjetividades que surgiriam como
focos de resistência e criação. Para os propósitos da pesquisa nos interessa o conceito de ser
mediatizado, aquele que surge do controle sobre as redes de informação e comunicação. Se
antes tínhamos a escassez da informação e travávamos uma luta para termos acesso à
informação e ao conhecimento, hoje uma torrente de informações desfila à nossa frente em
pouco tempo. A tempestade de informação difundida através das redes sociais, blogs, fóruns e
debates dificulta a reflexão e reduz a complexidade das questões.
atenção”. De acordo com Hardt e Negri, “ele vê o melhor, mas segue fazendo o pior” por ser
um sujeito capturado pela rede de comunicações.
A figura do sujeito mediatizado nos reporta ao paradoxo político realçado por Étienne
de La Boétie e Baruch de Espinosa: às vezes, as pessoas se empenham por sua servidão como
se fosse sua salvação. E com legiões de midiatizados sufocados por informação, vai se
edificando um consenso no imaginário coletivo que tem uma relação determinante com o
projeto de poder contemporâneo.
Hardt e Negri (2014, p. 31) entendem que não é através da circulação de informações
ou ideias que se formam a classe e as bases de ação política, mas sim através da construção
dos afetos políticos, o que exige uma proximidade física. Enquanto seres mediatizados,
experimentamos a democracia participativa através de um “like” ou de um link, e como isso a
proximidade física, que é necessária para a ação política, é dificultada. Assim, um novo senso
comum foi alcançado pelas diversas lutas sociais a partir do ano de 2011, o qual abriu e
constituiu novas perspectivas de debate e ação política. Com efeito, segundo os autores, os
participantes dos acampamentos e ocupações de 2011 vivenciaram o poder de criar novos
afetos políticos e de desenvolvimento e experimentações de novas formas democráticas de
decisão por meio do ato de estar juntos. A maioria dos participantes passa a ser não um
consenso ou um corpo homogêneo, mas sim uma conexão de diferenças, pois por mais que as
estratégias e os objetivos das lutas sejam variados, são capazes de se conectar formando um
projeto plural e compartilhado. Esta pluralidade surge em busca do acesso livre e
compartilhado do comum e de sua autogestão; discutir, aprender, ensinar, estudar, comunicar-
se e participar das ações: essas são algumas das formas de ativismo, constituindo o eixo
central da produção de subjetividade numa ontologia plural da política que é colocada em
prática por meio do encontro e da composição de subjetividades militantes. A singularidade
de cada luta promove, em vez de impedir, a criação de um terreno comum (HARDT; NEGRI,
2014, p. 93). E este comum supõe tanto as riquezas do mundo material como o conjunto da
produção social, os chamados bens naturais (conhecimentos, linguagens, códigos, informação,
afetos e suas consequências).
multiplicado pelo uso das tecnologias e mídias digitais, corpos, mentes e máquinas se
entrelaçaram por um outro mundo. Aliado aos usos das tecnologias e mídias digitais, o sujeito
da multidão segura sua própria vida nas mãos quando mantém o contato corpóreo.
Outra linha de fuga sugerida por Hardt e Negri (2014, p. 63), é libertar-se: “o poder
não é capaz de sobreviver quando seus sujeitos se libertam do medo”, é preciso buscar uma
fuga, ser invisível. Os autores também sugerem constituir-se: “Que se vayan todos!”, recusar
a representação e reinventar e concretizar a democracia, tornar-se governante do comum.
Tornar-se comum é uma atividade contínua, orientada pela razão, vontade e desejo da
multidão, que deve passar por uma educação de seu conhecimento, pela criatividade, pelos
afetos políticos inovadores, para que as decisões sobre o comum sejam tomadas por meio da
participação-decisão democrática, e não por meio de representantes eleitos.
fundamento político moderno da luta de classes como centro da questão política, polarizada
no enfrentamento burguesia versus proletariado. A partir de Maio de 68, a dominação na
ordem da subjetividade surge como problema político central na composição social
contemporânea. Neste momento, as contestações são direcionadas para questões que dizem
respeito essencialmente à subjetividade, a seus direitos e desejos. O foco político desloca-se
do âmbito das macroideologias para o campo dos desejos da subjetividade. O movimento de
Maio de 68 foi uma manifestação local e singular do desejo de pequenos grupos encontrou
ressonância em uma multiplicidade de desejos reprimidos, isolados uns dos outros,
esmagados pelas formas dominantes de expressão e de representação.
Rolnik (2008) nos diz ainda que a ação micropolítica interfere na relação entre a
cartografia social dominante e a realidade sensível, invisível e indizível que está sempre em
movimento e é fruto da presença intensiva da alteridade que não cessa de afetar nossos
corpos. Desse modo, a ação micropolítica produz crises, colapsos, fazendo ruir as estruturas e
diagramas vigentes.
A micropolítica deve ser entendida, de acordo com Guattari, como o agir cotidiano dos
sujeitos, na relação entre si e no cenário em que ele se encontra. Uma ação na micropolítica,
por sua vez, é ação de uma política micro, não porque pequena, mas política menor; menor,
não porque menos importante, mas relativa aos movimentos políticos minoritários que
escapam das máquinas sobrecodificadoras e das medidas padrão. Micropolítica dos/nos
grupos porque era uma política relativa aos processos de criação de si e do mundo; a um só
tempo político de subjetivação e política de organização do socius, o meio social onde cada
um está inserido. A ação micropolítica é aquela que atua na formação do desejo no campo
social, nos modos de formação de visões de mundo e nos modos de vida. Está presente nas
práticas cotidianas, solitárias, de grupos e dá-se precisamente no cruzamento das instâncias
dos coletivos e do individual e do microssocial. Aqui Guattari se refere a uma ação no sentido
spinozista, onde toda ação é o movimento de modificação de si mesmo que é causado pela
própria potência de existir desse corpo que modifica a si mesmo. Nesta potência de existir o
seu ato é necessariamente afirmativo. Nosso ato afirma a nossa potência. Fazer micropolíticas
é pensar e agir na perspectiva da invenção, de construção de máquinas de guerra (combate)
capazes de fazer fugir os fluxos.
isto a revolução molecular permanece somente molecular, escapa por todos os lados e não
pode influir sobre as grandes relações sociais. As armas desta máquina são linhas nômades de
voo e invenção, a combinação de fugas e invenção. Na existência nômade, durante o voo, a
deserção do aparelho de Estado, a inventividade da máquina de guerra desenvolve novas
formas de sociabilidade, de práticas instituintes e poder constituinte.
10
No conceito deleuziano de “rostidade”, o rosto é definido como lugar de inscrição de forças sociais,
econômicas e subjetivas; o rosto é produção social. Mas também, e, sobretudo, este rosto aponta
simultaneamente a possibilidade de esfacelamento da identificação.
93
desejo da produção do corpo sem órgãos. Desfazer o rosto, tornar-se imperceptível, produzir
novos enunciados e outros desejos, exprimem o sentido clínico (a grande saúde) e político
(manter o fascista em nós afastado). Precisamos fazer uma guerrilha constante contra nós
mesmos. Precipitar uma mudança radical através da libertação do desejo.
complementaridade e coexistência entre os dois planos, mas é preciso notar que o nível molar
somente detém o molecular em um plano, que é o seu próprio. Ou seja, o sistema duro não
abole a vivacidade dos fluxos, que continua perpetuamente mutante. Não só as lutas sociais,
mas as lutas individuais são ao mesmo tempo molar e molecular. As lutas esquizofrênicas e os
delírios paranoicos não são menos molares do que moleculares. É o revolucionário que
remaneja o social, uma prática de micropolítica que sujeita as máquinas molares (grandes
máquinas sociais) ao desejo molecular (revolucionário).
Deleuze e Guattari (1996, p. 83) afirmam, além disso, que “somos segmentarizados
por todos os lados e em todas as direções. O homem é um animal segmentário”. Neste caso, a
ideia é de que nosso vivido seria segmentarizado espacial e socialmente em todas as nossas
atividades: habitar, circular, trabalhar ou brincar, nas funções que cumprimos e nos modos
pelos quais nos subjetivamos. Somos compostos por segmentos que nos constituem, por
linhas que se entrelaçam, compondo territórios. Somos compostos então por três linhas de
segmentaridade (que fogem de toda uma organização premeditada, afrouxando e desviando,
ali onde algo maior parece prender): a primeira é a linha de segmentaridade dura, ou de corte
molar. Ela corresponde às passagens sucessivas e aos jogos binários que objetivam a vida.
Está relacionada às passagens sucessivas da vida, inscrevendo sobre e pelo indivíduo uma
linearidade, que se distribui de um ponto a outro. Um ponto de saída e um ponto de chegada.
É composta não somente por grandes conjuntos molares – Estados, instituições, classes – mas
ainda por “pessoas como elementos de um conjunto, os sentimentos como relacionamentos
entre pessoas” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 67). Esta linha de composição da realidade
pode ser também definida como “linha finita, visível e consciente da organização dos
territórios” (ROLNIK, 1989, p. 50).
Essa linha molecular mais maleável, não menos inquietante, muito mais
inquietante, não é simplesmente interior ou pessoal: ela também põe todas as
coisas em jogo, mas em uma outra escala e sob outras formas, com
segmentações de outra natureza, rizomáticas ao invés de arborescentes. Uma
micropolítica (ibidem, p.72)
Deleuze e Guattari (2012) nos mostram que essas figuras de segmentaridade passam
umas pelas outras, umas nas outras, se misturam constantemente e não param de interferir
uma sobre as outras. Transformam umas às outras. O efeito de ser atravessado por elas pode
durar alguns instantes ou se manter por muito tempo, pode ser passageiro ou ganhar maior
96
dimensão em nossas vidas. Tudo é político porque tudo provém de uma relação de força e,
portanto, de uma relação de poder. E todas essas segmentaridades encontram-se tanto na
macropolítica, como na micropolítica. Macro e micro diferem-se pelo tipo de natureza de cada
dimensão. São tomadas pelos tipos de conexões que estabelecem, pelas proliferações que
promovem, pela política que exercem. Assim, certas linhas emparelham-se mais com uma
política ou outra. O macro e o micro são dois modos de recortar a realidade.
As três linhas de segmentaridade são imanentes entre si, estão emaranhadas umas nas
outras e operam movimentos de travessia. Essas linhas nos compõem em indizíveis territórios
que, por sua vez, se conjugam num jogo incessante e frenético, formando redes, malhas
existenciais. Elas nos definem e nos constituem, mas também nos arrastam para longe de nós
mesmos. Elas nos prendem ou nos liberam, nos cristalizam ou inventam para nós uma saída.
A vida é a multiplicidade destas três linhas, que se encadeiam, bifurcam, recortam e
conectam. A cada ponto origina uma linha que pode estar condenada à destruição ou à rigidez,
faz fugir, mas que também pode se condensar em “microfascismos”.
A revolução proposta por Guattari, não é somente uma resistência contra os processos
de serialização da subjetividade, mas também a tentativa de produzir modos de subjetivação
originais e singulares, processos de singularização subjetiva. Uma revolução que parte das
99
relações entre os sujeitos e não da tomada do poder estatal, do controle, do dominar o outro. É
uma espécie de insurreição que não propõe o enfretamento direto com o Estado, mas sim a
ocupação de áreas singelas e, sem ser alvo do espetáculo, tem seu trunfo na invisibilidade.
São transformações que implicam uma nova percepção do mundo, uma nova percepção da
violência, uma nova relação com o corpo, uma possível quebra de valores, uma possível
reavaliação da existência, uma nova relação com o tempo, que participam de uma
revolução/produção. Portanto, a revolução molecular: não é uma palavra de ordem, um
programa, é algo que sentimos, que vivemos, em encontros, em instituições, nos afetos, e
também através de algumas reflexões.
Essas transformações dizem respeito à produção de subjetividades que são aquelas que
ocorrem em nível molecular e abrem espaço para o novo. Criam encaminhamentos para novas
formas de ver o mundo e a vida. Neste contexto, as linhas de desterritorialização (linhas de
fuga), os fluxos, o nomadismo, os devires enquanto desejos (corpos sem órgãos) são
elementos moleculares imperceptíveis capazes de transformar a realidade imediata, a
realidade de seus membros e a partir daí causar infecção. Tudo isso está na base desta
revolução molecular, da micropolítica do desejo. É nestes espaços que se situam as práticas
do midiativismo, midialivrismo, comunicação comunitária/popular, etc.
100
poder. Na visão do autor, há dois tipos de conflitualidade nos espaços capitalistas. As lutas de
interesses, lutas econômicas, lutas sociais, lutas sindicais no sentido clássico; e as lutas
relativas às liberdades, novos questionamentos da vida cotidiana, do ambiente do desejo, e
outras estão contidas na expressão revolução molecular, onde situa as rádios livres e que nós
situamos a comunicação comunitária, tendo em vista que as propostas são similares, ou seja, a
transformação do ser e a construção de um novo mundo. A comunicação comunitária põe em
evidência uma luta contra o que Guattari chamou de produção de subjetividade capitalística.
Não resta dúvida de que os instrumentos do Estado são muito mais poderosos do que
os dos coletivos que lutam por transformação da sociedade. Deleuze e Guattari enfatizam que
é preciso reconhecer o Estado, sua força, suas armas para assim mantê-lo a distância. A
proposta é se rebelar sem ter o embate direto com o Estado. A revolução, aqui, não é algo
permanente, mas sim um processo, um certo momento de transformação. Sendo assim, o
objetivo não é uma solução permanente, mas o incentivo de irrupções temporárias, e,
portanto, a luta deve ser constante. A tática é ocupar, temporariamente, as brechas, atacando
as estruturas de controle e as ideias na busca por novos mundos, mesmo que sejam
microuniversos. Conceber a revolução como processo, é admitir que se trata da produção de
algo novo, algo que produz transformações no sistema social e singular. Podemos denominar
de revolucionário um processo que traz o inédito, e este momento precisa ser criado
constantemente. Estas revoluções acontecem nas mais diversas esferas da vida, na cultura, na
arte, nas relações afetivas etc. Trata-se de produção de história, de imprevisibilidade, de
alterações profundas que não podem ser programadas e controladas por completo, como um
músico que não sabe onde vai chegar no momento de composição de uma canção.
Peruzzo chama a atenção que desde 1970, 1980, houve mudanças nas práticas da
comunicação popular e alternativa.
106
das Organizações Globo, com o seu bem-sucedido projeto de jornais de bairro, criado pelo
jornalista Milton Temer. Implantado em 1982 o periódico circula até hoje, em formato de
revista. De acordo com Marco Morel, o esvaziamento da imprensa popular se deu entre 1982
e 1986, período pós-ditadura de abertura política, mas que surpreendentemente os jornais
perdem força e aos poucos vão se extinguindo. De acordo com professor Adair Rocha, neste
período a pauta dos jornais de favela já abordava assuntos como machismo e racismo. Temas
que, segundo ele, não eram debatidos na imprensa sindical. Nesta época, os sindicatos se
fortalecem e, consequentemente, a imprensa sindical ganha espaço e se estabelece como a
imprensa popular/alternativa do período. Na década de 1990, temos a consolidação desta
imprensa.
Apesar de ser uma forma de comunicação típica entre as décadas de 1960 e 1980 do
século passado, a expressão comunicação alternativa vem sendo retomada (PERUZZO, 2008,
p. 373). A título de exemplificação, podemos citar o Jornal Brasil de Fato, o Centro de Mídia
Independente, o Jornal O Trecheiro, o Jornal AJIndo, entre outros. Essas manifestações,
desde as desenvolvidas nas décadas de 1960 até as atuais, podem representar uma alternativa
quanto à fonte de informação, pelo conteúdo e pela forma como este é abordado (ibidem, p.
374).
Regina Festa (1986, p. 10), identificou três fases da comunicação popular no País, e
suas inter-relações com os processos políticos, econômicos e sociais de suas respectivas
épocas.
policial, mas também falar de cultura. Além disso, serviu para articular as várias iniciativas
locais de imprensa popular feita pelos favelados, que tinham no Favelão espaço para publicar
notícias de suas comunidades. Toda a produção do jornal era feita de forma coletiva por
representantes de diferentes favelas do Rio de Janeiro.
A questão da posse do solo urbano era a maior preocupação da população das favelas,
ainda sob o impacto das políticas de remoção de favelas vigentes nas décadas de 1960 e 1970,
quando a política de segregação espacial da cidade tomou proporções inéditas, removendo os
favelados das áreas centrais do Rio de Janeiro, particularmente da zona sul, e transferidos para
terrenos vazios nas periferias. Diante deste quadro, a Pastoral da Favela decidiu criar o
Serviço de Assistência Jurídica, conduzido por advogados ligados à Igreja, como forma de
auxiliar as comunidades na luta pela posse da terra. Paralelamente apoiam a resistência dos
favelados criando O Favelão, que se torna o veículo de informação e mobilização popular
contra as remoções e opressão sofridas pelos moradores de favela.
O auge do Favelão foi de 1983 até 1985, durante a campanha das “Diretas Já!”,
quando o Favelão foi chamado para todos os eventos relacionados a campanha. O objetivo do
jornal era que os moradores de favelas tivessem acesso a uma informação correta sobre a
conjuntura do país através dos próprios favelados, e não por meio da grande imprensa. Hoje,
com 35 anos de vida, O Favelão continua resistindo, informando e transformando. Mesmo
com todas as facilidades das tecnológicas contemporâneas o jornal insiste na forma impressa,
mantendo a tradição do papel, mas cumprindo com seu importante papel.
Entre os vários estudiosos do tema destaca-se Mário Kaplún (1985, p. 7), que, ao
referir-se ao fenômeno da comunicação popular e alternativa, afirma tratar-se de “uma
comunicação libertadora, transformadora, que tem o povo como gerador e protagonista”.
Ressaltando os aspectos educativos desse tipo de processo de comunicação, o autor (1985, p.
17) esclarece que as mensagens são produzidas “para que o povo tome consciência de sua
realidade” ou “para suscitar uma reflexão”, ou ainda “para gerar uma discussão”. Os meios de
comunicação, nessa perspectiva, são concebidos como “instrumentos para uma educação
popular, como alimentadores de um processo educativo transformador”.
Outro pesquisador da práxis comunicativa popular que contribuiu muito para práticas
e concepções teóricas que merece ser lembrado, é o Gilberto Gimenez (1979). O autor
entende que a comunicação popular “implica a quebra da lógica da dominação e se dá não a
partir de cima, mas a partir do povo, compartilhando dentro do possível seus próprios
códigos” (p. 60).
Raquel Paiva define a comunicação comunitária como aquela “que efetivamente possa
comprometer o indivíduo com o exercício de sua cidadania, que possa permitir-lhe uma
112
atuação no seu real-histórico, podendo transformar, inclusive, sua existência e a das pessoas à
sua volta”. Paiva ressalta que está presente na comunicação comunitária “um aspecto
dinâmico e reivindicatório”, de acordo com os interesses comuns dos grupos. “Os indivíduos
agrupados por interesses comuns podem retomar como cidadãos a possibilidade que lhes foi
negada, de interferir nas decisões do poder público”. Além disso, aponta como características
os aspectos de “conscientização da realidade” e o sentimento “de pertencimento entre seus
membros” (PAIVA, 2003, p. 56-57). Paiva aponta o comunitário como o lugar propiciador de
novas formas de reflexão sobre comunicação.
Por esta razão Miani compreende que os termos popular e comunitária, usados nesta
ordem e combinadamente, são “complementares e dialeticamente interseccionados”. Miani
faz uso da filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin para afirmar que “é também no plano da
linguagem que se estabelecem as disputas político-ideológico que vão dimensionar o
potencial contra-hegemônico implicado nas concepções e práticas da Comunicação Popular e
Comunitária”.
113
Peruzzo (2008, p. 368-369) também adverte que o uso do termo comunitário pode ser
problemático, uma vez que “vem sendo empregado para identificar diferentes processos
comunicacionais, desde formas de comunicação do ‘povo’ até experiências desencadeadas no
âmbito da mídia comercial de grande porte [...]”. Para esta pesquisadora, o termo comunitário
tem sido alvo de deturpações e apropriações para fins que não tem nenhuma relação com os
anseios dos setores populares.
A análise da história mostra que desde a década de 1960, até os dias atuais, há
manifestações de comunicação não massivas que se tangenciam em alguns pontos, com
algumas semelhanças e interrelações, mas que, ao mesmo tempo, apresentam diferenciações
conceituais, no que diz respeito à sua prática. É o caso da chamada comunicação popular, a
alternativa e a comunicação comunitária.
Outro fator que nos levou a adotar o termo comunitário, foram os estudos do filósofo
pragmatista John Dewey (1859-1952), considerado um dos primeiros estudiosos a utilizar o
vocábulo comunicação. No primeiro capítulo da obra Democracia e Educação, Dewey afirma
que há mais do que um laço verbal entre as palavras comum, comunidade e comunicação: “Os
homens vivem em comunidade em virtude das coisas que têm em comum; e comunicação é a
maneira pela qual passam a possuí-las em comum” (DEWEY, 2009, p. 9). A partir da desta
afirmação, entendemos comunidade como um grupo de pessoas que têm interesses em comum
e que se ligam umas às outras pela comunicação. A comunicação, na percepção de Dewey, é
um processo, sendo o principal elemento a fazer a ligação entre os membros de uma
sociedade, sendo, inclusive uma necessidade. Nesta perspectiva a comunicação envolve não
só linguagem falada e escrita, mas todo um conjunto de sinais que expressam valores e
conhecimentos, e cumpre a função de tornar a experiência um patrimônio comum, partilhado
e desfrutado por todos. Em suas reflexões, Dewey reforça sempre a noção de que comunicar é
partilhar ideias, dividir conhecimento.
Além disso, Palácios reitera que uma comunidade possui uma identidade coletiva,
transformando-se em um modo de dizer quem somos. No entanto, o autor adverte que não
devemos ter como base o significado contido nos dicionários que conceituam comunidade
como “qualidade do que é comum, sociedade, lugar onde residem indivíduos agremiados,
comuna”, mas conceituada como pessoas que se mobilizam para o mesmo fim.
Por sua vez Raquel Paiva, em seu livro O espírito comum: comunidade, mídia e
globalismo de 2003, recorre ao sociólogo alemão Ferdinand Tonnies para definir a palavra
“comunidade”. Paiva diferencia os termos comunidade e sociedade a partir de suas
características. “Se na sociedade o que prevalece é a vontade individual, com seus membros
fortemente individualizados, na comunidade, ainda de acordo com Tonnies, é a vontade
comum e o interesse coletivo que predominam” (PAIVA, 2003, p. 70). Desta maneira,
comunidade e sociedade não podem ser vistas como diferenças absolutas, mas, sim, como
modos de relacionamento humano complementares. Enquanto a palavra comunidade é envolta
de uma ideia de solidariedade, de ética e humanismo, esta solidariedade deve ser
116
compreendida como uma estratégia, uma rede de forças que constrói um saber e particular de
convivialismo e de experiência local.
Paiva não faz distinções de tipos de comunidade. Para ela, na vida comunitária,
A delimitação do termo comunidade, mesmo sendo algo amplo e não unânime entre os
teóricos do tema, é de fundamental importância tendo em vista que o termo se presta para
designar uma diversidade de situações, em especial a que se refere aos grupos com objetivos
ou interesses específicos. A palavra comunidade evoca sensação de solidariedade, de vida
comum. Mas um ponto essencial ao tratar-se de comunidade, é a exigência de pertencimento a
117
um determinado espaço. Afinal, sempre podemos nos identificar com algo, ou nos
entendermos como parte de algo. O pertencimento a um determinado grupo ou movimento,
apresenta-se como um refúgio social. Quando incorporamos a comunidade e passamos a vê-la
como algo que nos pertence, já estamos inseridos nela. É o elemento mais potente nessa
definição. O pertencimento é o motivo que conduz à participação ativa, que por sua vez, é o
elemento que fomenta a comunicação comunitária. Se não há a concepção de pertencimento, a
compreensão de comunidade pode se perder. A ideia do convívio com o outro, passa pela
necessidade que o indivíduo tem de pertencimento à comunidade. Nas palavras de Paiva:
para o grupo social, em uma relação direta com o cotidiano das pessoas. Além disso, só pode
ser considerada notícia o que realmente interessa diretamente a comunidade envolvida. Vem
daí a importância do pertencimento a um determinado território na composição das
sociedades contemporâneas como um todo.
Como já vimos nas reflexões de autores como Guattari e Rolnik, a identidade acaba
circunscrevendo a realidade a quadros de referência, fazendo passar as singulares maneiras de
existir por apenas um mesmo quadro de referência identificável. “o que interessa à
subjetividade capitalística, não é o processo de singularização, mas justamente esse resultado
do processo, resultado de sua circunscrição a modos de identificação dessa subjetividade
dominante” (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 68-69).
Assim, propomo-nos a abordar o sujeito sob outra perspectiva, enquanto
singularidades, associando-o a sua própria existência e remetendo-o a uma multiplicidade de
experiências. Enquanto singularidade abrange toda existência, a identidade é um conceito
circunscrito; a subjetividade de um indivíduo diz respeito menos à identidade e mais à
singularidade, ou seja, a possibilidade de viver a existência de forma única, no
119
A localização da Maré às margens de uma das principais avenidas da cidade não é por
acaso. Foi justamente com a criação da Avenida Brasil, que as primeiras famílias que
120
Os arquivos do Museu da Maré mostram que pelo menos desde a década de 1980
veículos de comunicação já marcam presença no território da Maré falando da/e para a
população local. É o caso do Jornal União da Maré, editado de modo artesanal, a partir de um
original em estêncil, impresso em mimeógrafo e fotocopiado, o jornal comunitário circulou
em doze edições de periodicidade irregular, entre janeiro de 1980 e dezembro de 1982, pela
área da Maré, Bonsucesso, Ramos e adjacências, bairros do Rio de Janeiro. Com um objetivo
editorial claro, o jornal enfatizava as virtudes do associativismo e da capacidade de
deliberação no meio comunitário, e lutava contra a cooptação de lideranças nas associações de
123
moradores pelo poder público. Chama atenção o fato do jornal não ter nenhum vinculo
oficialmente a nenhuma instituição, ONG ou Associação de Moradores.
Outra experiência marcante é a TV Maré que atou pelas ruas e becos da Maré entre
1988 e 1996. A TV trabalhava com vídeos comunitários, gravando, registrando depoimentos
de moradores a partir de uma metodologia de história oral, para exibição em praça pública e
posterior discussão com os próprios espectadores da comunidade. O equipamento utilizado
pela equipe da TV para exibir sua produção era uma televisão, um vídeo e uma fita VHS
postos em um beco ou rua da favela. Os moradores levavam suas cadeiras para se verem
espelhados na tela da televisão em um filme no qual eram protagonistas. O projeto foi uma
iniciativa de um grupo de moradores do morro do Timbau e patrocinado pela Cáritas
Brasileira, uma entidade de promoção e atuação social ligada à arquidiocese do Rio de
Janeiro. A partir de uma articulação com a Associação Brasileira de Vídeo Popular foi feita a
capacitação dos integrantes da equipe que incentivavam outros grupos a criarem suas TVs
comunitárias. No inicio da década de 1990 o alcance da transmissão foi ampliado com a
aquisição de um transmissor pirata UHF que possibilitou as imagens serem exibidas nas casas
dos moradores. Marcelo Vieira (2016), um dos fundadores da TV, relata que no ano de 1992,
no período da ECO92, a TV exibiu durante dois dias vídeos com temas ecológicos. Sem uma
maior articulação política e estrutural do trabalho, as atividades da TV Maré só resistiram até
1990. A TV Maré encerrou suas atividades, mas continua viva na mente de todos aqueles que
viveram a experiência de ter alguns minutos de suas vidas registradas em um filme.
do mesmo ano, um novo fechamento e o confisco dos equipamentos deram por encerrada a
trajetória da Rádio Maré.
A partir da entrada da jornalista Renata Souza como editora, O Cidadão mudou a sua
linha editorial para a defesa e garantia dos Direitos Humanos e também para denuncias sobre
os problemas locais. Antes da renovação do projeto editorial, o jornal se caracterizava pela
cobertura de temas prioritariamente ligados à identidade e cultura local. Esta mudança
encontrou tanta divergência que parte da equipe se afastou do jornal. Apesar disso, a mudança
da linha editorial provoca uma reação positivas ao estreitar os laços com os moradores que
passam a procurar mais a equipe do jornal para denunciar os mais diversos problemas da
favela. Renata Souza (2013) explica que O Cidadão nega o trinômio imparcialidade-isenção-
neutralidade, falácia amplamente divulgada pelas corporações midiáticas. Para pesquisadora,
a cobertura se caracteriza pela defesa dos moradores das comunidades, mesmo que haja nas
reportagens o cuidado necessário para o equilíbrio entre as posições de fontes divergentes.
125
Uma vez por ano, o jornal realiza o curso de comunicação comunitária que acontece
nas dependências do CEASM. Estão inclusos conteúdos sobre História da Maré, Linguagem
para Comunicação Comunitária, Webjornalismo e Mídias Sociais, Fotografia/audiovisual,
Rádio, Diagramação, Direitos Humanos e Favela e produção de matérias para jornal impresso.
Todas as aulas contam com a participação de parte da equipe do jornal, e algumas com
professores especialistas no assunto. O curso é gratuito e ao final os participantes recebem
certificado. Podem participar pessoas de todas as idades, gêneros, raças e origens, interessadas
em aprender uma comunicação social voltada para os direitos humanos e não precisa ser
morador da Maré. O curso realizado em 2016 contou com verba do edital Rio Ações Locais..
visando potencializar sua ação crítica e transformadora. É a primeira escola orientada para a
formação de repórteres populares, capazes de pensar e exprimir uma visão de mundo diferente
daquela veiculada pela grande mídia, no sentido de afirmar a identidade de um grupo social
historicamente marginalizado.
Ainda durante o período letivo, os estudantes produziram para o Canal Futura a série
“Crônicas Urbanas”, além do cineclube Sem Tela, que hoje é ponto de difusão digital do
Ministério da Cultura na Maré. Outro desdobramento foi a participação desses jovens nas
oficinas do cineasta Cacá Diegues, que resultaram no filme “5X Favela, agora por nós
mesmos”. Em junho de 2007, o mesmo grupo participou do Festival Audiovisual Visões
Periféricas, com produções de periferia de todo o Brasil.
A partir de 2012 a ESPOCC passa a contar com o patrocínio da Petrobras e, hoje, tem
ainda o apoio da Brazil Foundation e ICCO, que colaboram na construção e execução do
primeiro curso de Publicidade Afirmativa do Brasil. São 90 jovens de vários lugares do Rio
de Janeiro, aprendendo, criando e trocando conhecimentos nas habilitações de Audiovisual e
Cultura Digital. Um encontro que reúne comunicadores populares, universidades e
profissionais de grandes agências.
O jornal mensal Maré de Notícias teve sua primeira edição em dezembro de 2009.
Antes da circulação da primeira edição, a Redes da Maré realizou a pesquisa “Por um jornal
da Maré, diga como você quer” em todas as comunidades da Maré para saber quais os
interesses de leitura dos moradores. Essa pesquisa mostrou a necessidade de um jornal feito
na e pela comunidade, já que a maioria das pessoas se disse insatisfeita com o que lê e vê
sobre a Maré. Dos 2.300 entrevistados, 98% afirmaram que é importante a existência de um
jornal comunitário.
populares são comumente apresentados pelos meios de comunicação. Assim como o jornal O
Cidadão, o Maré de Notícias é construído a partir da ideia de que a opinião da comunidade
deve ser fundamental na formação da direção do que é publicado.
O Maré Vive é um canal de mídia comunitária, formado por jovens midiativistas, feito
de forma colaborativa, por moradores de diversas partes do conjunto de favelas da Maré. A
página foi criada no domingo, dia 30 de março de 2014, dia que o Estado oficializou a
ocupação no conjunto de favelas da Maré com uma operação realizada rapidamente logo ao
amanhecer e que se transformou em espetáculo midiático de domingo. O canal foi idealizado
por um grupo de moradores reunidos ao redor de uma mesa de bar dentro da favela. Da
conversa de bar nasce a proposta inicial observar a ação dos militares de forma colaborativa e
independente. Menos de 24 horas depois, as Forças Armadas começaram a avançar pelas ruas
e becos de 15 favelas que compõem o conjunto de favelas da Maré. Em meio ao clima de
desconfiança dos moradores e à atuação dos militares – que revistavam carros, caminhões e
cidadãos – nascia um dos coletivos de comunicação comunitária mais atuante na região, o
Maré Vive. Rapidamente o trabalho do grupo conquista respeito e confiança da população ao
divulgar relatos dos moradores sobre a ocupação militar e publicar denúncias de abusos
cometidos pelas forças de ocupação na Maré.
A proposta inicial de criar uma página para registrar a ocupação militar se transformou
no que é hoje: uma revista eletrônica com informações em tempo real e sendo seguida por
mais de 30.000 pessoas. Hoje a página se transformou em uma espécie de observatório da
129
acervo se caracteriza pela cobertura de temas sociais, com ênfase no cotidiano de regiões
periféricas, favelas e espaços populares em geral. A equipe de fotógrafos é composta por mais
de 70 integrantes, todos formados pela Escola de Fotógrafos Populares, uma das ações do
Programa Imagens do Povo.
Uma equipe de cinco pessoas, todos moradores da Maré, é responsável por uma
programação bem diversificada que tem programas de música, ecologia, cultura entre outros.
Mas a programação está aberta para entrevistas, debates e para participação de dos ouvintes
por telefone ou visitando a rádio, e assim trazem as informações do cotidiano da comunidade
para a rádio sem intermediários. Os assuntos são bem típicos de uma rádio comunitária, Há
também informações de utilidade pública, noticiais dos jornais e lançamentos de trabalhos de
músicos locais. A programação da Rádio Maré 98 configura-se como a proposta de convergir
tais áreas em uma programação dinâmica. Suas metas são de levar música e informação
contextualizada sobre a temática a que se propõe, mantendo o foco no local, ao mesmo tempo
em que busca se inserir na comunidade, tendo-a como fonte e como receptora, quebrando o
fluxo unidirecional da comunicação e aproximando-se dos preceitos radiofônico.
alcançar essa meta, da aplicação de teorias ligadas ao jornalismo popular e comunitário, com
muita música debates e informação.
Agora em 2016, Gizele Martins desenvolveu o Favela Fala, um curso de dois meses
sobre comunicação comunitária para moradores da Maré. As aulas do curso "Favela
Fala" acontecem na Portelinha, aos sábados, em tempo integral. Além da discussão de
assuntos do dia a dia da comunicação e das favelas, o curso também tem aulas técnicas, como
o de fotografia, produção de vídeos e outras. Tudo isso gratuitamente. Gizele contesta a ideia
que pressupõe que se alguns moradores de favela não conseguem ler, logo não podem se
comunicar: “Comunicar-se é um direito humano. Favela Fala é um curso que provará como
todos podem se comunicar”. O curso Favela Fala, de Comunicação Comunitária, é
133
Pensar a Cidade
Pensar os Morros da Cidade
Pensar as Favelas nos Morros da Cidade
Pensar os Moradores das Favelas nos Morros da
Cidade
Itamar Silva
Após um ano participando das atividades do jornal O Cidadão, decidi viver outra
experiência e ingressei no curso de comunicação comunitária oferecido pelo jornal no ano de
2013. Na condição de aluno tive a oportunidade de experimentar a metodologia do curso,
acompanhar a participação, desenvolvimento e a transformação dos alunos através da
observação durante as aulas, nas atividades práticas na favela, nos grupos das redes sociais,
nos eventos e mobilizações. Porém, não me furtei das entrevistas com os alunos, mas que
foram aplicadas através de conversas informais nos intervalos das aulas e durante eventos e
momentos de lazer.
tem o povo como seu gerador e protagonista. Uma práxis que atua como espaço de encontro,
de comunhão, de interação e integração popular, mas também de tensões e conflitos. Seria
muito ingênuo aceitar que um meio comunitário, por partir do princípio da participação da
comunidade na produção da informação, não apresentasse disputas de poder. O espaço na
mídia comunitária é um campo de conflitos. Não há um modelo único, apesar de existirem
características centrais que a caracterizam. Há sempre divergência de interpretações, de
intenções e de projetos em torno das mídias comunitárias. Os conflitos também se afloram nas
disputas internas, nas disputas entre opositores. Esse não é um problema a erradicar, mas
condição de existência de todo espaço de relações sociais. São os conflitos que fazem as
experiências de comunicação comunitária avançar, aperfeiçoando-se, cada vez mais, em um
processo gradativo. A cada dia a comunicação comunitária vai se revelando numa pluralidade
de formas e mostrando sua validade no contexto das comunidades, mesmo que não expressem
mecanismos puros de autogestão. Embora uma das suas características seja a horizontalidade,
detectamos que há organizações que tendem ao uno, com um formato centralizador e vertical,
mas há organizações que tendem ao múltiplo seguindo um formato horizontal, rizomático. Por
fim, são múltiplas linguagens emitindo múltiplas vozes que geram múltiplas ações, reações e
expressões. A multiplicidade é uma reação ás forças homogeneizadoras da globalização, é a
resistência à uniformidade. Mas, não são os conflitos e as contradições que vão tirar o brilho
desse tipo de ação cidadã. A sociedade se abre a múltiplas experiências.
comunitária do Jornal O Cidadão em 2013, afirmou durante a aula que a linguagem tem que
ser direta, sintética, dando atenção especial ao ponto parágrafo na confecção de um texto'. De
acordo com Jacob, o desafio é transformar o Jornal Comunitário em Jornal Popular, de fácil
compreensão do leitor. Na concepção da jornalista, quanto mais resumido for o texto e direto,
mais o leitor ficará satisfeito e bem informado. Outro exemplo dado pela jornalista, foi o
Twitter onde o texto tem que ser feito com pequenos caracteres, não podendo ultrapassar o ''
limite estabelecido''. O Facebook, veio revolucionar a forma de linguagem, onde a fotografia e
palavras curtas ganham em dimensão tão grande que se contrapõe a mídia oficial.
Outro ponto detectado, é que não há por parte da comunicação comunitária o propósito
de fazer a comunidade a pensar em uma única direção. O objetivo é ajudar o leitor a refletir,
questionar e entender os problemas locais. Não há o objetivo de impor uma determinada
posição ou um determinado olhar, mas fazer o morador refletir por que não há saneamento
básico na favela, por que a violência na favela é maior e mais covarde, por que jovens negros
e pobres são as maiores vítimas da polícia. São algumas reflexões, entre tantas outras,
promovidas pela comunicação comunitária. Ou seja, a comunicação comunitária é um
dispositivo de transformação social. O objetivo final é conquistar o maior número de pessoas
possíveis para atuar no sentido de outros mundos possíveis, com base na solidariedade, na
cooperação e na colaboração. Essa é a maior função da comunicação comunitária. Ser uma
137
comunicação que conduza as pessoas para a luta por seus direitos e consequentemente pela
transformação de seus mundos.
Defender que temos sim uma linha editorial parcial, que defendemos os
direitos humanos, que defendemos o direito à vida, que somos parte do
processo da comunicação comunitária e não o todo, que devemos fazer
sempre com os moradores, que é o meu público alvo, é preciso ouvir, estar
atento às críticas, fazer o outro se sentir importante para também poder
participar como ele se sente a vontade, seja ele um morador que saiba ler ou
não. Ou seja, a comunicação que a gente faz deve ser voltada para todos
independentemente da idade, se sabe ler, já que a comunicação é um direito
humano, sendo a comunicação comunitária um dever nosso (MARTINS,
2015).
Assim como toda a sociedade brasileira, temos uma mídia comercial que
chega todos os dias nas nossas casas e faz a gente ter vergonha da gente
mesmo, faz a gente ter medo do próprio local em que moramos, ela dita
regras e comportamentos. No entanto, a mídia comunitária traz esse
diferencial nas minhas ideias, pois ela me fez conhecer a própria favela em
que moro e diversas outras favelas e periferias de todo o país (MARTINS,
2015).
com isso desenvolver o pensamento crítico, sobre a realidade de cada um dando como
ferramenta pra o próprio discurso ser forjado”. Para Gizele Martins, a importância do jornal O
Cidadão para a Maré está no fato dele trazer a identidade “favelada” para o debate. Foi o
jornal que criou a palavra mareense, com o objetivo de fazer com que os moradores e
moradoras começassem a ter como pertencimento a favela. Gizele também destaca o fato do
jornal valorizar a favela, seus costumes, sua cultura e enfatizar o que a ela tem de bom e
potente em oposição a grande mídia que destaca a favela como criminosa, violenta, marginal,
feia. Outro fator que a comunicadora ressalta é o fato do jornal ser um formador de novos
comunicadores comunitários em todo o conjunto de favelas da Maré. Para Hélio Euclides, a
importância do jornal Maré de Notícias para o conjunto de favelas da Maré está no seu
compromisso com o desenvolvimento da comunidade e por ser um espaço que dá voz ao
morador.
A forma de ser e fazer comunicação comunitária já é, por si só, sua maior forma de
estratégia. Quando o morador é convocado a participar da pauta do jornal, da rádio, do site e
etc., ele não só se sente parte importante do processo de produção da notícia como encontra
um espaço que ouve a sua voz. Ele é o sujeito da produção informativa e não simplesmente
receptor passivo de informação. A relação sentimental com o território e com o coletivo é
uma característica da informação na comunicação comunitária. Trata-se não apenas do direito
do cidadão à informação, enquanto receptor, tão presente na grande mídia, mas do direito ao
acesso aos meios de comunicação na condição de emissor e difusor de conteúdos. Ela também
representa uma alternativa quanto à fonte de informação, pelo conteúdo e pela forma como
este é abordado. Outro fator a ser destacado, é a postura democrática e horizontal de
investigação e veiculação da informação, as relações afetivas do comunicador com seu
território, o reconhecimento do Outro. E participação ativa do morador, como protagonista da
gestão e da emissão de conteúdo, proporciona a constituição de processos educativos e
comunicativos, contribuindo para o desenvolvimento do exercício da cidadania.
Outro ponto a ser destacado é que o comunicador que faz a coleta da informação é
alguém de dentro da comunidade que conhece os problemas cotidianos e que pode ser
abordado a qualquer momento. Afinal, ele é um membro da comunidade e não alguém que
vem de fora em busca de informação. Em suma, o comunicador comunitário é o morador da
comunidade, que conhece como ninguém a realidade onde vive. Cada cidadão se encontra
perto da notícia e das informações que acontecem em seu meio. Não há necessidade de
intermediário, pois ele mesmo pode divulgar e informar as outras pessoas que estão à sua
volta o que está acontecendo. Assim, a comunidade mantém sua identidade nos veículos de
comunicação, pois as normas, objetivos e modo de funcionamento passam a estar sob a
responsabilidade da própria comunidade. Não podemos esquecer que na comunicação
comunitária a mensagem transmitida é a valorização da cultura local. Isso potencializa a
informação e atrai o morador.
comunicacional, sua realização está diretamente ligada à linguagem utilizada, que depende do
contexto social, do tipo de aprendizagem e competência intelectual do indivíduo que dela se
apropria.
para promover o pensamento crítico e gerar mobilização política nas favelas. Deste modo,
normalmente as ações transmitidas são pontas de um complexo iceberg de relações
interpessoais e de criatividade coletiva (CUSTÓDIO, 2013). Através de mídias comunitárias,
coletivos e redes de apoio mútuo e ação conjunta, os moradores das favelas têm sido capazes
de assumir o controle dos canais e plataformas de comunicação para fazer ouvir suas próprias
vozes e demandas. O midiativismo é um dispositivo que leva a favela para além da favela,
segundo Gizele Martins:
Com o avanço das mídias sociais e do acesso aos celulares que alguns
moradores de favelas têm hoje, é possível ter midiativistas de favelas
também. O que é importante porque faz a notícia ser mais dinâmica, além de
conseguir um alcance para além do local de moradia. Ou seja, ela consegue
disputar opinião pública em tempo real e tendo um diferencial porque coloca
a voz de quem vive, de quem está dentro do espaço favelado vivenciando
tudo isso (MARTINS, 2015).
Não é tarefa das mais fáceis atuar como comunicador comunitário e preservar o direito
à informação no conjunto de favelas da Maré é algo delicado e desafiador em virtude do clima
de tensão no território que tem várias frentes. As facções que guerreiam entre si, Milicianos e
143
Polícia Militar, todos esses grupos estão presentes no conjunto de favelas da Maré e impõem a
censura. Em maio de 2014, a jornalista Camila Marins, o cartunista Carlos Latuff e o
fotógrafo Naldinho Lourenço foram ameaçados por policiais militares que se opuseram à
realização da cobertura, dizendo que precisavam de autorização caso contrário a cobertura
estaria proibida. Também no relatório do Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro, de outubro
de 2015, constam relatos de ameaças, revistas e até a necessidade de se mudar de residência.
Thaís Cavalcante, coordenadora do jornal O Cidadão, revela que a prática da comunicação
dentro das favelas é um desafio e pode colocar a própria vida em risco. “A comunicação que,
dentro da favela, é mais delicada do que a que temos em outros lugares. Além de jornalistas,
somos moradores. O cuidado é redobrado e tudo nos envolve emocionalmente também”,
afirma Thais. Durante a ocupação militar o cenário não foi alterado. Os comunicadores se
sentiam limitados e intimidados para circular pelas ruas, becos e vielas da favela e produzir
matérias sobre temas ligados aos direitos humanos. “Nós nos sentíamos limitados para poder
relatar e fotografar o que acontecia. Seja a respeito do exército ou de um evento cultural
cotidiano. Recebi gritos de um militar, sobre como falar ou dar bom dia”, relata Thais
Cavalcante. A censura tem sido um dos principais problemas enfrentados por muitos deles.
que as duas formas de comunicação se diferenciam “quando nós sabemos que o interesse da
mídia comunitária é o de defesa local, defende sim uma parcialidade. Já a mídia comercial,
ela se camufla dizendo que é imparcial e criminaliza a vida na favela e todo o espaço
favelado”. Gizele alerta que os interesses são muitos distintos. E isso se reflete na informação
produzida. É uma informação comprometida com ideologias políticas e interesses
econômicos. A grande mídia hoje é um poder político, um poder real.
Outro questionamento que levantamos foi sobre qual seria o poder de transformação
dessa informação e outras subjetividades são produzidas. Como já citamos, a transformação
dos indivíduos envolvidos com a comunicação comunitária é um fato. A atuação na
comunicação comunitária é uma abertura para novas percepções, novos significado e valores.
Não ter vergonha de dizer que mora na Maré, dizer que é mareense é afirmar a favela. Mudar
a percepção sobre a favela, mudar relação com o território e com o outro, pensar e agir
coletivamente, denunciar, mas também apresentar soluções, sensibilizar e mobilizar os
moradores são apenas parte de uma grande transformação pela qual passa os comunicadores.
Não só por seus relatos, mas principalmente pelo que presenciamos ao longo de quatro anos.
5 CONCLUSÃO
Nossa pesquisa propunha-se a alcançar um objetivo mais geral, que seria analisar a
prática da comunicação comunitária no conjunto de favelas da Maré no Rio de Janeiro como
espaços onde as diferenças, subjetividades e alteridades de seus participantes são valorizadas,
trabalhadas e transformadas. Sendo assim, configura-se como importante meio capaz de
desencadear lutas por outras formas de vida e por outros mundos o que Guattari chamou de
revolução molecular, ou microrrevoluções. Estas microrrevoluções são criadoras de mutações
na subjetividade consciente e inconsciente dos indivíduos e dos grupos sociais. A dimensão
micropolítica revela ser mais que uma dimensão na escala espacial (a do lugar) ou que uma
temporalidade (a do cotidiano), abrindo a história à experiência que se espreita no cotidiano.
A comunicação comunitária foi pensada pelas potências do menor, das microrrevoluções, de
uma micropolítica de experimentações que resiste à grande mídia contemporânea, guardiã de
memórias, vozes, sentidos e silêncio.
Destacamos outro tipo de midiativismo de favela que acontece nas redes de apoio
mútuo e ações em conjunto entre ativistas de diferentes favelas. Os Midiativistas de favela
circulam e participam de debates, intervenções culturais e manifestações em outras
148
Se não há algo de novo a dizer, melhor silenciar e deixar o silêncio mostrar algo
diferente, pois há sempre um mundo novo por descobrir, como demonstrou tão bem
William Burroughs com suas experiências usando a técnica cut-up, sempre encontrando uma
vida nova em um mundo morto. Não podemos esquecer também dos ensinamentos do Elias
Canetti que dizia que através de uma metamorfose a presa pode escapar do predador. E
lembrar sempre que o predador também passa por uma metamorfose para não revelar sua
verdadeira identidade e muito menos sua real intenção. Canetti nos mostrou os dois tons da
palavra de ordem: a morte pela estagnação e a fuga daquilo que não deseja este triste fim.
Vamos seguir em fuga.
Os meios alternativos não ameaçam a mídia tradicional, mas revelam-se como uma
ameaça aos fundamentos da função jornalística, que sempre procurou ter o controle da
verdade dos fatos. Ao mesmo tempo em que afirmava que a linguagem é um vírus, William
Burroughs exaltava também a eficácia da linguagem como produtora de consciência e
apontava a produção de uma imprensa clandestina para subverter o poder da imprensa.
Preferimos não tratar a comunicação comunitária como subversiva, mas antes como uma
comunicação de resistência, uma língua de fuga, um vírus que penetra em um sistema
aparentemente estável para mostrar suas várias falhas. Um vírus que contamina o corpo social
em sua relação com o consumo, com a produção, com o lazer, com os meios de comunicação
e com a cultura. Afinal, somos todos efeitos de contágios, de vírus e bactérias, eles mesmos
organismos em estado de contínua emergência. Mas, como afirmou o próprio Burroughs, o
limite do controle é a palavra. Se o poder, o domínio e o controle residem na palavra a
libertam também. Desta forma, sendo a comunicação comunitária uma máquina produtora de
palavra, podemos então dizer que esta palavra pode desmantelar a máquina de controle.
Burroughs propõe que se questione o sistema e não se o veja como infalível. Mas o que faz a
comunicação comunitária senão questionar os discursos universalizantes da mídia tradicional
que redundam nas palavras de ordem?
No ano de 2012, quando foram dados os primeiros passos na Maré com intuito de
conhecer as formas de comunicação que ali eram desenvolvidas, percebemos que havia uma
riqueza de possibilidades em cada veículo de comunicação comunitário que eu conhecia. A
convivência e a observação mostraram que a fonte de onde emana a potência que alimenta
essa forma de comunicação se encontra na própria diversidade cultural da Maré. Na história
de resistência dos seus moradores, na rica identidade cultural do negro, do nordestino, do
índio, do homem simples do campo e de todos aqueles que ajudaram a erguer o conjunto de
favelas da Maré, na sabedoria acumulada no cotidiano de superação constante. Mas também
naquilo que representa todos os veículos de comunicação comunitária que levam uma
experiência de constante reflexão e formação cidadã.
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