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Atualidade Da Teologia Da Libertação : F D A J

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Atualidade da teologia




da libertação*
397

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○






FRANCISCO DE AQUINO JÚNIOR**

RESUMO

A r rtigo trata a atualidade da teologia da libertação. Começa


explicitando o duplo sentido da expressão teologia da
libertação (práxis teologal-teoria teológica) e as “intuições
centrais” que a caracterizam e a estruturam internamente
(primado da práxis e perspectiva do pobre/oprimido). Em
seguida se confronta com problemática da atualidade dessa
teologia (presença, visibilidade, relevância, pertinência). Por
fim, aborda o que consideramos seus desafios mais
importantes e mais fundamentais: parcialidade de Deus
pelos pobres, fé como realização da vontade de Deus,
problemática das mediações, caráter teologal-profético das
lutas populares e relação teoria-práxis.
Palavras-chave: Teologia da libertação, práxis, pobre-
oprimido, atualidade.

*
Artigo de reflexão, escrito no contexto das ultimas discussões no Brasil sobre o método da
teologia da libertação, provocadas pelas críticas de Clodovis Boff ao método teológico de Jon
Sobrino e das novas gerações de teólogos da libertação. Fecha de recibo: 12 de mayo de 2011.
Fecha de evaluación: 13 de junio de 2011. Fecha de aprobación: 2 de agosto de 2011.
Licenciado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará; Bacharel e Mestre em Teologia
**

pela Faculdade Jesuítica de Filosofia e Teologia em Belo Horizonte e Doutor em Teologia na


Westfälischen Wlhelms-Universität de Münster (Alemanha); presbítero da Diocese de Limoeiro
do Norte-CE e professor de teologia na Faculdade Católica de Fortaleza. Correo electrónico:
axejun@yahoo.com.br

THEOLOGICA XAVERIANA - VOL. 61 NO. 172 (397-422). JULIO-DICIEMBRE 2011. BOGOTÁ, COLOMBIA. ISSN 0120-3649
CURRENT STATE OF THE LIBERATION THEOLOGY
Abstract
This article deals with the current state of the Theology of
Liberation. It starts explaining the double sense of the
expression Liberation Theology (theological praxis-
theological theory) and the “central intuitions” which
398 internally characterize and structure it (primacy of praxis and
the perspective of the poor/oppressed). Then, it is
contrasted with the current issues facing this Theology
(presence, visibility, relevance, appropriateness). Finally, the
text presents its most important and fundamental challenges:
God’s partiality regarding the poor, faith as the realization of
God’s will, the problems of mediation, the theological-
prophetical character of popular struggles, and the relation
between theory and praxis.
Key words: Liberation Theology, praxis, the poor-oppressed,
current state.

ACTUALIDAD DE LA TEOLOGÍA DE LA LIBERACIÓN

Resumen
El artículo trata de la actualidad de la teología de la
liberación. Comienza explicitando el doble sentido de la
expresión teología de la liberación (praxis teologal-teoría
teológica), y las “intuiciones centrales” que la caracterizan y
la estructuran internamente (primado de praxis y perspectiva
del pobre/oprimido). Luego, se confronta con la
problemática de la actualidad de esa misma teología
(presencia, visibilidad, relevancia, pertinencia). Al final
aborda sus desafíos más importantes y fundamentales:
parcialidad de Dios por los pobres, fe como realización de la
voluntad de Dios, problemáticas de las mediaciones, carácter
teologal-profético de las luchas populares y la relación
teoría-praxis.
Palabras-clave: Teología de la liberación, praxis, pobre-
oprimido, actualidad.

ATUALIDADE DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO FRANCISCO DE AQUINO JÚNIOR


Há pelo menos duas décadas vem-se discutindo sobre a atualidade da teologia
da libertação.1 Fala-se de crise dessa teologia, discute-se sua relevância, sua
pertinência, sua oportunidade etc. Pouco importa, aqui, a nomenclatura. Im-
porta, por um lado, a realidade ou o fato a que ela remete: que a teologia da
libertação perdeu sua atualidade e que muitos ou alguns recusam-se a aceitar
399
esse fato ou que ela continua atual e que alguns ou muitos insistem em
relegá-la ao passado. E importa, por outro lado, os interesses que estão por
trás das distintas posturas que se tomam nessa discussão: afirmar ou negar um
jeito de viver/pensar a fé e de ser igreja com enormes implicações e con-
seqüências na sociedade e na própria igreja.
Na verdade, quem afirma ou nega a atualidade da teologia da libertação,
o faz sempre, em alguma medida, consciente ou inconscientemente, a partir
e em função de certos interesses eclesiais e/ou sociais. E isso se pode constatar
facilmente. Basta ver os vínculos eclesiais e sociais, o centro de interesses, a
postura em questões mais polêmicas, os gostos litúrgicos, a relação com
autoridades etc de quem afirma ou nega tal atualidade. De modo que nessa
discussão está em jogo muito mais do que a mera objetividade de um fato:
atualidade ou não de uma teologia. Está em jogo a afirmação ou negação de
um determinado dinamismo eclesial e social que não deixa de ameaçar ou
pelo menos de incomodar certos interesses eclesiais e sociais.
Pois bem, nesta discussão, situamo-nos dentro do movimento teológico-
pastoral conhecido como “teologia da libertação” e, a partir de dentro, que-
remos refletir sobre sua atualidade e contribuir com o fortalecimento e
desenvolvimento de seu dinamismo. Mais que atualização da teologia da
libertação em uma nova área de conhecimento, mostrando seu potencial
teórico para o desenvolvimento de novos temas ou problemas, queremos
reafirmar a atualidade dessa “nova maneira de fazer teologia”, identificando
suas características e intuições fundamentais, bem como os desafios teó-
ricos permanentes a serem considerados na abordagem de tema ou pro-
blema novo.

1
Cfr. Vigil, Embora seja noite: a hora espiritual da América Latina nos anos 90; Idem, “Mudança
de paradigma na teologia da libertação”? 311-328; Palácio, “Trinta anos de teologia na América
Latina”, 51-64; González, “El pasado de la teología y el futuro de la liberación”.

THEOLOGICA XAVERIANA - VOL. 61 NO. 172 (397-422). JULIO-DICIEMBRE 2011. BOGOTÁ, COLOMBIA. ISSN 0120-3649
Para isso, explicitaremos, em primeiro lugar, o que entendemos por
teologia da libertação; em segundo lugar, mostraremos em que sentido se
pode e se deve falar de atualidade dessa teologia; por fim, em terceiro lugar,
chamaremos atenção para alguns dos pontos mais determinantes dessa teologia
e que constituem desafios permanentes para ela.

400 TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

Por trás da expressão “teologia da libertação” está um movimento teológico-


pastoral extremamente rico, plural e complexo, cujas fronteiras são muito
difíceis de serem demarcadas. Na verdade, nem se deveria falar de teologia
da libertação no singular, pois não existe a Teologia da libertação. Existem
muitas teologias da libertação.
A pluralidade e complexidade que caracterizam esse movimento estão
constituídas por uma diversidade geográfica (América Latina, África, Ásia, EUA,
Europa)2, por uma diversidade de enfoques ou perspectivas (pobreza, gênero,
etnia, cultura, ecologia, pluralismo religioso)3, por uma diversidade de acento
nas mediações práticas (CEBs, pastoral social, movimento social, partido, etc) e
teóricas (ciências sociais, antropologia, filosofia etc) e por uma diversidade de
problemas/temas enfrentados e formulados (cristologia, trindade, eclesiologia,
sociedade, economia, gênero, cultura etc). Dependendo do problema, do
lugar geográfico, da perspectiva e da mediação prático-teórica priorizada, a
teologia da libertação terá uma configuração ou outra.
Evidentemente, não podemos desenvolver, aqui, essa diversidade de
aspectos ou elementos que caracteriza e configura o movimento plural e
complexo denominado Teologia da libertação. Isso nos levaria longe demais.
Para o nosso intento, é suficiente explicitar os dois sentidos fundamentais da
expressão teologia da libertação (A) e o que consideramos com Gustavo
Gutiérrez suas “intuições centrais” ou sua “coluna vertebral” (B). São aspectos
constitutivos e determinantes de todas as teologias da libertação ou, se se
quer, o que há de comum em todas elas.

2
Cfr. Boff et al., “Teologias do terceiro mundo: convergências e diferenças”.
3
Cfr. Libânio e Murad, Introdução à teologia, 254-283.

ATUALIDADE DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO FRANCISCO DE AQUINO JÚNIOR


Expressão “teologia da libertação”
A expressão “teologia da libertação” indica tanto um movimento eclesial mais
ou menos reflexo, isto é, um jeito de ser igreja, de viver e celebrar a fé, uma
práxis pastoral, quanto seu momento mais explicita e estritamente reflexivo,
isto é, sua elaboração e formulação teórico-conceitual. Na formulação mais
precisa de Ignacio Ellacuría, ela designa tanto uma “práxis teologal” quanto
uma “teoria teológica” em uma unidade estrutural (teoria-práxis) mais ou menos 401
tensa e conseqüente.4
Trata-se, portanto, de um movimento teológico-pastoral, práxico-teórico,
teologal-teológico, como queira. Pertence a esse movimento tanto quem toma
parte nessa práxis teologal (povo de Deus em geral e, dentro dele, quem
exerce algum ministério, ordenado ou não) quanto quem se dedica a seu
momento mais explicitamente teórico-teológico (pregação, catequese, for-
mação e teologia no sentido mais estrito do termo); tanto o famoso teólogo
Leonardo Boff e o grande bispo profeta Pedro Casaldálida, quanto as inúmeras
organizações e lideranças eclesiais, famosas ou anônimas, quanto, ainda, todos
os que se vinculam e, de uma forma o de outra, tomam parte nesse jeito de
ser igreja, de viver e pensar a fé.
A teologia da libertação é, antes de tudo, uma “práxis teologal”: um jei-
to de viver e celebrar a fé, um jeito de atuar e intervir na sociedade, um jeito
de configurar a vida individual e coletiva, eclesial e social etc. Trata-se do jeito
de viver e agir de Jesus de Nazaré, o Cristo. Por isso mesmo, a práxis que
caracteriza a teologia da libertação é a práxis do seguimento de Jesus de
Nazaré que consiste na realização histórica do reinado de Deus.5
Antes de ser uma teoria bem elaborada e formulada, a teologia da
libertação é um dinamismo eclesial, uma práxis. Esse é o sentido fundamental
da formulação, um tanto ambígua, de Gustavo Gutiérrez da teologia como
“ato segundo” frente à práxis de fé como “ato primeiro”.6 Sem essa práxis não

4
Cfr. Ellacuria, “Relación teoría y praxis en la teología de la liberación”, 235-245.
5
Cfr. Ibid., 235.
6
Cfr. Gutiérrez, Teología de la liberación, 81; Idem, La verdad los hará libres, 12s. A ambigüidade
reside na formulação da questão nos termos de “atos” e, sobretudo, de “ato primeiro” e “ato
segundo”, como se fossem duas coisas separadas e independentes. Na verdade, como reconhece
o próprio Gutiérrez, em toda práxis de fé há um “esboço de teologia” (Gutiérrez, Teología de la
liberación, 67) e a teologia é sempre, de alguma forma, “um momento” dessa práxis (Ibid., 87).
Por isso mesmo, seria mais correto e mais preciso falar da teologia, simplesmente, como “um
momento” da práxis de fé.

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se pode falar de teologia da libertação, por mais irredutível e importante que
seja seu momento estritamente teórico. E essa é a razão pela qual sempre
que se fala de teologia da libertação, pensa-se, imediatamente, nas CEBs, nas
pastorais sociais, nos grupos eclesiais que acentuam mais a dimensão práxica
e social da fé e nos cristãos engajados nos movimentos e nas lutas populares
ou, de alguma forma, sensíveis e solidários a essas causas.
402 Para evitar mal-entendidos no que diz respeito ao sentido da expressão “práxis
teologal”, convém fazer algumas precisões, ainda que em forma de teses.
– Em primeiro lugar, a práxis teologal não se opõe à teoria teológica nem
a substitui. Não existe práxis que prescinda completamente de intelecção nem
intelecção que prescinda completamente da práxis. Toda teoria é teoria de
uma práxis e toda práxis tem um momento teórico irredutível que precisa ser
desenvolvido.
– Em segundo lugar, a práxis teologal não se reduz a nenhuma de suas
modalidades ou configurações. Pode-se enfatizar/priorizar um aspecto ou outro
(social, econômico, gênero etc). Mas qualquer reducionismo é arbitrário e, no
fim das contas, empobrecedor e comprometedor do dinamismo do reinado
de Deus que diz respeito a todas as dimensões da vida humana.
– Em terceiro lugar, o caráter teologal da práxis diz respeito à sua respec-
tividade objetiva ao dinamismo do reinado de Deus: contribui/favorece (graça)
X dificulta/impede (pecado), para além de toda boa intenção, da qual, como
diz o dito popular, “o inferno está cheio”. É algo real antes re-flexo e diz
respeito a toda e qualquer práxis, da mais “religiosa” à mais “profana”.
Mas, além de uma “práxis teologal” mais ou menos reflexa e como
aprofundamento e desenvolvimento de seu momento intelectivo, a teologia
da libertação pretende ser uma “teoria teológica” no sentido mais estrito da
palavra: “máximo exercício racional e ‘científico’ possível sobre seu objeto
englobante que é o Reino de Deus”.7
Embora nem sempre desenvolvendo e elaborando suficientemente sua
reflexão, nem sempre conseguindo as melhores formulações e muitas vezes,
pela urgência pastoral ou precariedade dos meios, protelando tal empreen-
dimento, a teologia da libertação sempre pretendeu e sempre se esforçou

7
Ellacuria, “Relación teoría y praxis en la teología de la liberación”, 235.

ATUALIDADE DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO FRANCISCO DE AQUINO JÚNIOR


por constituir-se como “algo estritamente teológico” e como “algo que possa
estimar-se como uma teologia total”.8 Até que ponto e em que medida tem
alcançado tal meta é algo a ser verificado em cada caso, sem esquecer que
ela é uma tarefa em construção. Mas quanto à pretensão e aos esforços, não
há nenhuma dúvida.
Enquanto “algo estritamente teológico”, a teologia da libertação nem é
antropologia, nem sociologia, nem politologia, nem ciência da religião etc., 403
mas teologia. O fato de priorizar a mediação das ciências sócio-históricas,
“não implica necessariamente que se transforme em uma dessas ciências
com linguagem teológica, assim como a preferência clássica pela mediação
filosófica não fazia necessariamente da teologia uma forma de filosofia”.9
Enquanto “teologia total”, ela não é uma teologia do político ou do so-
cial ou mesmo da libertação, se esta é entendida como um tema entre outros.
Como dizia Gustavo Gutiérrez, a teologia da libertação “não nos propõe tanto
um tema novo para a reflexão, mas uma maneira nova de fazer teologia”.10
Ela pretende tratar da “práxis teologal” em sua totalidade, sem se reduzir a
nenhum de seus aspectos ou dimensões, por mais que a urgência sócio-
pastoral a obrigue a dar maior atenção a questões sócio-econômicas, de gênero,
cultura, ecologia etc.
Não é, portanto, uma teologia do social ou político, mas uma teologia
da realização histórica do reinado de Deus – seja no que tem “de Deus” (tota-
lidade do Deus revelado por Jesus e em Jesus), seja no que tem de realização
histórica de seu “Reinado” (história como lugar de presença e atuação do
Deus de Jesus), mas em sua unidade estrutural de “Reinado de Deus”.11
De modo que quando se fala de teologia da libertação, fala-se tanto de
um movimento eclesial (práxis) quanto de seu momento mais estritamente
intelectivo (teoria), ou seja, fala-se tanto de uma “práxis teologal” quanto de
uma “teoria teológica” em sua unidade estrutural, ainda que se ponha o acento
numa ou noutra.

8
Idem, “Teología de la liberación frente al cambio socio-histórico en América Latina”, 314.
9
Ibid., 315.
10
Gutiérrez, Teología de la liberación, 87.
11
Ellacuria, “La teología como momento ideológico de la praxis eclesial”, 177.

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“Intuições centrais” da teologia da libertação
Por mais distintas que sejam as diversas teologias da libertação, existe algo
em comum entre elas; algo que permite, de alguma forma, falar de teologia
da libertação sem mais. Gustavo Gutiérrez, por exemplo, fala de “duas intuições
centrais que foram as primeiras cronologicamente e continuam constituindo a
sua coluna vertebral”. Trata-se do primado da práxis e da perspectiva do pobre/
404 oprimido.12
Quanto ao primado da práxis, diz ele, “desde o começo, a teologia da
libertação considerou que o compromisso com o processo de libertação é o
ato primeiro e que a teologia vem depois, como um ato segundo”.13 Isso
aponta para o duplo esforço de “fazer valer a importância do comportamento
concreto, do gesto, da ação, da práxis na vida cristã”14 e de “colocar o trabalho
teológico no complexo e fecundo contexto da relação prática-teoria”.15
Por um lado, enquanto “práxis teologal”, a teologia da libertação nasce
dentro de um movimento eclesial mais amplo de redescoberta do caráter
práxico da fé cristã e se configura como sua radicalização.16 A fé cristã não
consiste primária e radicalmente em aceitação e confissão de doutrinas nem
na observância de rituais religiosos, por mais necessários e importantes que
sejam, mas na realização da vontade de Deus. Ela consiste, fundamentalmen-
te, no seguimento de Jesus de Nazaré; é uma fé práxica, ativada pelo amor
(Gl 5,6). Há, portanto, uma centralidade e um primado da ação sobre o dou-
trinário e o ritual na fé cristã: “nem todo aquele que me disser: Senhor, Senhor!
entrará no Reino de Deus, mas aquele que cumprir a vontade de meu Pai do
céu” (Mt 7, 21).
Por outro lado, enquanto “teoria teológica”, a teologia da libertação
leva a sério o caráter práxico de toda teoria17: é sempre teoria de uma práxis
(real ou imaginária) e aponta/serve sempre à alguma práxis; em boa medida,

12
Gutiérrez, A força histórica dos pobres, 293.
13
Ibid., 293.
14
Idem, Teología de la liberación, 79.
15
Idem, A força histórica dos pobres, 293.
16
Cfr. Gutiérrez, Teología de la liberación, 72-80; Taborda, Sacramentos, práxis e festa. Por uma
teologia latino-americana dos sacramentos, 19-39.
17
Cfr. Gutiérrez, Teología de la liberación, 80-88; Ellacuria, “Relación teoría y praxis en la teología
de la liberación”.

ATUALIDADE DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO FRANCISCO DE AQUINO JÚNIOR


é condicionada por interesses bem determinados, normalmente não expli-
citados; está mediada por estruturas de pensamentos (dualistas, reducionistas,
estruturais etc) e por conceitos socialmente forjados, desenvolvidos e trans-
mitidos; tem sua fonte inesgotável de conhecimento e seu critério último (não
único!) de verdade na realidade que procura inteligir. Há, portanto, também
na “teoria teológica”, um primado da práxis. Ela não é senão o “momento”
consciente e reflexo da “práxis teologal”. De modo que, em última instância, 405
o problema da “teoria teológica” é o problema de sua “relação” com a “práxis
teologal”.
Quanto à perspectiva do pobre/oprimido, ela concretiza e determina
tanto a práxis teologal quanto a teoria teológica. A teologia da libertação não
é, sem mais, uma práxis eclesial e uma teologia da práxis. É uma práxis e uma
teologia feitas “a partir do reverso da história”18 e em vista do processo de
libertação dos “Cristos açoitados das Índias”.19 É uma práxis e uma teologia da
libertação. A perspectiva do pobre e do oprimido constitui, aqui, “a chave
para a compreensão do sentido da libertação e da revelação do Deus
libertador”.20
Esse é seu ponto de vista ou seu locus 21 fundamental. Ele configura a
teologia da libertação tanto como “práxis teologal” quanto como “teoria
teológica”. Por um lado, a revelação de Deus em Israel e, particularmente,
em Jesus Cristo está profundamente vinculada à sorte e à libertação dos pobres
e oprimidos. Deus se revela ai, antes de tudo, como o salvador/libertador dos
pobres e oprimidos e a salvação/libertação dos pobres e oprimidos aparece
como sinal por excelência da realização de seu reinado neste mundo. De
modo que a “práxis teologal” que constitui a teologia da libertação é, fun-
damentalmente, uma práxis de libertação dos oprimidos: pobres, mulheres,
negros, índios, deficientes etc.
Por outro lado, enquanto momento consciente e reflexo dessa práxis,
“teoria teológica”, a teologia da libertação tem, aí, seu ponto de partida (é

18
Cfr. Idem, A força histórica dos pobres, 245.
19
Cfr. Ibid., 283s.
20
Idem, A força histórica dos pobres, 293s.
21
O locus da teologia da libertação, diz Gutiérrez, “está nos pobres do subcontinente, nas massas
indígenas, nas classes populares, está em sua presença como sujeito ativo e criador de sua
própria história, nas expressões de sua fé e esperança no Cristo pobre, nas suas lutas pela
libertação” (Ibid., 284).

THEOLOGICA XAVERIANA - VOL. 61 NO. 172 (397-422). JULIO-DICIEMBRE 2011. BOGOTÁ, COLOMBIA. ISSN 0120-3649
teoria dessa práxis), sua meta (está a serviço dessa mesma práxis) e um de
seus critérios fundamentais (lugar de realização e verificação e princípio de
desideologização). É uma teologia feita a partir, na perspectiva, no horizonte,
do ponto de vista dos pobres e oprimidos; uma teologia que leva a sério tanto
a parcialidade pelos pobres e oprimidos que caracteriza a revelação e a fé
cristãs quanto o caráter práxico de toda teoria, assumindo, crítica e cons-
406 cientemente, seu lugar social. Esse é o sentido próprio e específico da expressão
lugar teológico na teologia da libertação22 que, no fim das contas, não significa
outra coisa senão levar a sério a evangélica opção pelos pobres tanto na
“práxis teologal” quanto na “teoria teológica”.
Estas duas intuições fundamentais constituem, pois, a “coluna vertebral”
de todas as teologias da libertação, seja enquanto “práxis teologal” seja
enquanto “teoria teológica”. Todas elas nascem e se desenvolvem como teo-
logias da práxis (primado da práxis) de libertação (perspectiva do pobre/
oprimido). O que varia é o acento dado a determinada práxis (eclesial, social,
política, cultural etc) e a determinado aspecto da libertação (pobreza, gênero,
etnia, ecologia etc) e a forma de explicitar o vínculo teoria-práxis (ato primeiro
– ato segundo, teoria como momento da práxis etc).

ATUALIDADE DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

Tendo presente a pluralidade e complexidade que caracterizam a teologia da


libertação, sua dimensão práxica e teórica (práxis teologal e teoria teológica) e
suas características fundamentais (primado da práxis e perspectiva do pobre/
oprimido), podemos, agora, perguntarmo-nos por sua atualidade: a teologia
da libertação tem alguma atualidade?

22
Desde Tomás de Aquino (ffr. ST I, q.1, a.8, ad 2) e Melchor Cano (cfr. Cano, De locis theologicis,
7-10), a expressão lugar teológico indica os diversos “lugares” onde se pode encontrar
“argumentos teológicos” – “próprios” e “alheios”, “necessários” e “prováveis”. Cano fala de dez
lugares teológicos: Sagrada Escritura, tradições de Cristo e dos Apóstolos, Igreja Católica, concílios,
Igreja Romana, santos padres, teólogos escolásticos, razão natural, filósofos e história humana.
Outros teólogos acrescentaram outros lugares teológicos como a liturgia, os sinais dos tempos
etc. Na teologia da libertação, a expressão lugar teológico tem um sentido distinto. Ela não
significa fontes de argumentos da teologia, mas o horizonte, a perspectiva ou o ponto de vista,
a partir do qual se lê e se interpreta, inclusive, as distintas fontes ou sedes ou domicílios de
argumentos da teologia. Ignacio Ellacuría e Jon Sobrino distinguem, neste contexto, entre fontes
e lugar da teologia. O que, classicamente, é nomeado lugar teológico é tomado por eles como
fontes da teologia, reservando a expressão lugar teológico para designar o horizonte, a
perspectiva ou o ponto de vista social da teologia. Ter presente e claro esta distinção é fun-
damental para evitar mal-entendidos e acusações infundadas.

ATUALIDADE DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO FRANCISCO DE AQUINO JÚNIOR


A resposta a essa pergunta depende, em parte, do que se compreenda
por atualidade ou do aspecto sob o qual ela seja abordada: simples estar
presente, maior ou menor visibilidade, relevância histórica, pertinência teologal-
teológica. Vejamos se e até que ponto podemos afirmar a atualidade da
teologia da libertação sob esses diversos aspectos.
1. Atualidade diz respeito, antes de tudo, ao simples fato de algo estar
presente. É o caráter de atual de algo. Indica a presença física ou real de algo. 407
Dizemos que algo tem mais ou menos atualidade, na medida em que está
mais ou menos presente. E este estar presente de algo, pelo simples fato de
estar presente, impõe-se de tal modo que podemos até fazer de conta que
não o vemos, podemos ignorá-lo, podemos negá-lo etc., mas na medida em
que o fazemos, reconhecemos, de alguma forma, sua atualidade: só podemos
fazer de conta que não vemos o que vemos, só podemos ignorar e negar o
que nos está presente. Esse é o nível mais básico e mais fundamental da
atualidade de algo. Qualquer outro nível ou forma de atualidade o supõe e se
fundamenta nele.
Neste sentido, não há como negar a atualidade da teologia da libertação.
Ela está presente na Igreja e na sociedade de muitas formas: na vida de
muitos cristãos e de muitos grupos, comunidades e organizações eclesiais; no
ministério profético de alguns bispos, presbíteros e animadores/as de comu-
nidade; na vida religiosa inserida e comprometida com as causas populares;
na atividade teológica de muitos teólogos e teólogas; nos mais diversos
movimentos e organizações populares; no Fórum Social Mundial; em partidos
de esquerda; em romarias, ritos, cantos, orações; em poesias, pinturas, ca-
misetas; em livros, artigos, cartilhas, folhetos; em teatros, vídeos e CDs; em
aulas, conferências, debates, entrevistas; em gestos proféticos como o jejum
de dom Luis Cappio contra a transposição do Rio São Francisco; nas pastorais e
nos organismos sociais (CPT, CIMI, Caritas, P. dos Pescadores, P. do Povo da
Rua, P. dos Migrantes, P. Carcerária, P. do Menor, P. da Criança, P. Operária
etc), dentre outros. De modo que, tanto como “práxis teologal” quanto como
“teoria teológica”, a teologia da libertação continua presente/atual!
2. Atualidade diz respeito, em segundo lugar, à maior ou menor visibilidade
de algo em um determinado momento; ao fato de aparecer, de ser visto, de
ser comentado, de ocupar o centro das atenções. Dizemos que algo tem mais
ou menos atualidade na medida em que está na mídia, na boca do povo, na
moda etc. Esse modo de atualidade, por um lado, supõe e se fundamenta no

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primeiro modo de atualidade a que nos referimos há pouco (só ganha
visibilidade o que está presente), mas, por outro lado, depende de uma série
de fatores e condições, sem os quais dificilmente ganharia tanta visibilidade:
vai de encontro a alguma necessidade/ansiedade/busca, sem esquecer que
estas também são produzidas e, cada vez mais, dentro da lógica do mercado
(produto-desejo/necessidade-marketing); acesso aos meios de comunicação
408 (televisão, rádio, jornal, revista), sem esquecer que estes têm seus interesses
e são bem seletivos; respaldo e apoio de instâncias institucionais de poder;
caráter novidoso, impactante etc.
Neste sentido, há que se reconhecer que, embora a teologia da li-
bertação não careça completamente de atualidade, não é o movimento eclesial
de maior visibilidade no momento. Os movimentos de cunho mais “religioso”,
clerical e midiático, moral e culturalmente mais conservadores, politicamente
mais de direita e bem relacionados com o “poder” gozam, sem dúvida, de
maior atualidade na Igreja e na sociedade: trabalham muito com o emocional,
existencial, corporal; têm muito apoio e respaldo de bispos e padres, na medida
em que respondem mais aos interesses institucionais imediatos da Igreja (fieis,
dízimo), recuperam o culto à autoridade eclesiástica e mantêm com ela certa
relação de subordinação (desde que o apóiem); não entram em conflito com
os detentores do poder econômico e político, pelo contrário; e, sobretudo, têm
muito acesso à mídia –têm até canal de televisão– e, através dela, exerce enorme
influência no cultivo de práticas devocionais, cantos, forma de rezar etc.
Em comparação com esses movimentos, a teologia da libertação tem
muito menos visibilidade: parece bem menos atrativa para a maioria dos fieis;
tem um acesso muito restrito à mídia e conseqüentemente um alcance bem
reduzido; conta cada vez menos com apoio efetivo de bispos e padres; embora
não deixe de ser impactante (nem que seja pelo caráter conflitivo que todo
compromisso transformador acarreta), não tem mais o caráter novidoso de
outrora, quando praticamente toda Igreja parecia estar do “outro lado”.
Continua presente/atual, mas tem bem menos visibilidade. Não está na moda!
3. Em terceiro lugar, atualidade diz respeito à relevância ou importância
de algo em um determinado momento; ao fato de ir ao encontro de ne-
cessidades reais e concretas. Dizemos que algo tem mais ou menos atualidade
na medida em que responde positiva e efetivamente a uma determinada
situação. A atualidade de algo está, aqui, condicionada pelo contexto no qual
se faz presente e pelos interesses aos quais responde. A pergunta pela

ATUALIDADE DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO FRANCISCO DE AQUINO JÚNIOR


relevância de algo desemboca necessariamente na pergunta pelo para quem
esse algo é relevante ou não: o que é extremamente relevante para uns,
pode não ter nenhuma relevância para outros.23 Isso não significa nenhum
relativismo, mas contextualização e historicização da (ir) relevância que algo
pode ter: depende sempre, em boa medida, do onde e do para quem.
Neste sentido, dificilmente, pode-se negar a atualidade da teologia da
libertação. Mas é preciso dizer em que contexto e para quem ela tem relevância 409
ou não. Como diz Gustavo Gutiérrez, “a teologia da libertação nasceu do
desafio que representa para a fé a pobreza [e opressão] geral e desumana
existente na América Latina e no Caribe”. Como essa situação se mantém e
até se aprofunda, “conseqüentemente, continuam vigentes em nossos dias, e
com maior ímpeto e alcance, os desafios da pobreza [e opressão] à nossa
solidariedade e à nossa reflexão”.24
A relevância ou atualidade da teologia da libertação está profundamente
vinculada a essa situação de pobreza e opressão. Ela diz respeito, antes de
tudo, a essa situação e pode/deve ser comprovada, de maneira especial, nas
diversas lutas populares pela transformação dessa situação: sem-terras, sem-
tetos, povo da rua, menores, indígenas, negros, mulheres, pescadores, meio
ambiente etc. Nesta perspectiva, é significativa e sintomática a realização do
Fórum Mundial de Teologia e Libertação25, já em sua terceira edição, no seio
do Fórum Social Mundial: sinal importante de sintonia com as causas populares
e de sua atualidade e relevância nestas mesmas causas.
4. Por fim, atualidade diz respeito à pertinência de algo em respeito a
algo; ao ser atual de algo em algo por lhe ser concernente, por lhe pertencer
intrinsecamente. Dizemos que algo tem mais ou menos atualidade na medida
em que é mais ou menos característico, próprio ou constitutivo de algo.

23
Em um dos planejamentos pastorais da arquidiocese de São Paulo, por exemplo, foi feita uma
pesquisa, na qual se perguntava o que o povo “espera da Igreja”. Um morador de rua respondeu:
“que me deixem entrar para usar o banheiro”. O que para muitos pode parecer banal, irrelevante
e até desrespeitoso, é absolutamente relevante para os 10 mil moradores de rua de São Paulo,
dos quais 40% fazem suas necessidades fisiológicas na rua (cfr. Lancelotti, “Visão da Igreja a
partir do povo da rua”, 125s).
24
Gutiérrez, Onde dormirão os pobres? 29, 30.
25
Cfr. Susin (org.), Teologia para outro mundo possível; Brighenti, “Gritos da África. A propósito
do II Fórum Mundial de Teologia da Libertação”, 340-359. Em breve deve sair algum escrito
sobre a terceira edição desse fórum, realizada em janeiro de 2009 em Belém.

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Compreendida dessa forma, atualidade diz respeito, por um lado, à respec-
tividade de algo a uma realidade maior e, por outro lado, à maior ou menor
pertinência desse algo respeito a essa realidade maior.
Assim, por exemplo, hidrogênio e oxigênio são elementos constitutivos
da água, de modo que onde quer que haja água, estes elementos estão
sempre presentes; a corporeidade é uma nota constitutiva do animal humano,
410 de modo que sem corporeidade não há animal humano. Noutras palavras,
atualidade indica, aqui, o caráter de (mais ou menos) próprio, constitutivo, ca-
racterístico, intrínseco etc de algo, independentemente de sua maior ou menor
visibilidade (segundo modo de atualidade) e até mesmo de sua maior ou
menor relevância (terceiro modo de atualidade).
Neste sentido não se pode negar a atualidade ou pertinência da teologia
da libertação, enquanto configuração histórica do cristianismo ou atualização
da fé cristã, seja como “práxis teologal” seja como “teoria teológica”. As intuições
ou os princípios fundamentais da teologia da libertação –primado da práxis e
perspectiva do pobre/oprimido– são de tal modo característicos/constitutivos
da revelação e da fé cristãs que não podem ser negados sem que esta negação
comprometa a revelação e fé cristãs em sua própria essência: seu caráter prá-
xico (não é mera teoria/doutrina, mas antes de tudo ação salvífica) e sua par-
cialidade pelos pobres e oprimidos (salvação, em primeiro lugar, dos pobres e
oprimidos e, a partir dele, de todos/as).
Evidentemente, a teologia da libertação (como, inclusive, o cristianismo
nascente, para não falar da cristandade), enquanto movimento histórico, não
esgota as potencialidades práticas e teóricas do cristianismo nem a revelação
e a fé cristãs se reduzem a seu caráter práxis e a sua parcialidade pelos pobres/
oprimidos. Mas, repetindo, estes aspectos ou princípios são de tal modo cons-
titutivos da revelação e da fé cristãs que devem ser conservados “oportuna e
inoportunamente” (2Tm 4,2) e, na medida em que a teologia da libertação os
conserva de modo conseqüente, para além de todas modas pastorais e teo-
lógicas, ela tem uma pertinência teologal e teológica inegável.
Em síntese, embora a teologia da libertação não esteja na moda e não
tenha tanta visibilidade (segundo modo de atualidade), continua presente e
atual (primeiro modo de atualidade), com grande relevância na luta contra a
pobreza e as diversas formas de opressão (terceiro modo de atualidade) e
com grande pertinência teologal e teológica (quarto modo de atualidade).

ATUALIDADE DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO FRANCISCO DE AQUINO JÚNIOR


DESAFIOS PERMANENTES DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

A atualidade da teologia da libertação, como vimos, é uma realidade, mas


uma realidade que, por sua pertinência teologal e teológica e por sua relevância
histórica, deve ser aprofundada e ampliada, de modo que se torne cada vez
mais atual. Neste sentido, mais que mera constatação, a atualidade da teologia
da libertação é um desafio a ser enfrentado e uma tarefa a ser executada. E
para isso é preciso não perder de vista e cuidar especialmente daqueles as-
411
pectos ou elementos que estruturam e configuram esse jeito de viver e pensar
a fé que é a teologia da libertação.
Evidentemente, pode-se discutir quais são esses aspectos ou elementos.
Aqui, em todo caso, indicaremos, sem maiores desenvolvimentos, aqueles
que consideramos mais fundamentais e determinantes da teologia da libertação
e, portanto, seus desafios permanentes: (1) parcialidade de Deus pelos pobres,
(2) fé como realização da vontade de Deus, (3) a problemática das mediações,
(4) caráter teologal-profético das lutas populares e (5) relação teoria-práxis.

Parcialidade de Deus pelos pobres


Antes de tudo, é preciso insistir no fato –e toda insistência, aqui, será pouca–
de que o Deus que constitui o fundamento último da fé e da teologia cristãs
não é um principio absoluto-universal-imparcial-abstrato, lógico-racional ou
como queira, mas, bem concretamente, o Deus que se revelou em Israel e,
particularmente, em nosso senhor Jesus Cristo. Esse Deus não se revelou sem
mais como o ser onipotente, onipresente e onisciente das metafísicas clássicas,
mas, antes de tudo, como salvador dos pobres e oprimidos. Tampouco sua
revelação constituiu, fundamentalmente, na entrega de verdades sobre ele,
mas, antes, em ação salvífica.
Por um lado, “Deus não se manifestou primariamente nem como a
verdade do mundo nem como o fundamento de toda verdade e de todo con-
hecimento”, mas, antes de tudo, “como um Deus salvador, como fundamento
da saúde e da liberdade do homem. Ou, dito de um modo mais preciso, Deus
não se manifestou apenas como salvador, mas, primordialmente, enquanto
salvador, no ato mesmo de salvar. Esta é a experiência fundamental que nos
transmite a Escritura”.26

26
González, Trinidad y liberación. La teología trinitaria considerada desde la perspectiva de la
teología de la liberación, 59.

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No Antigo Testamento, Deus liberta o povo da escravidão e no contexto
dessa libertação dá-se a conhecer: “na ação mesma de salvar a seu povo Deus
diz quem é o que ele é e o diz justamente salvando”.27 De modo que a re-
velação do nome de Deus (Ex 3,14) é inseparável do Êxodo e, por isso mesmo,
deve ser lida a partir e em função do Êxodo.
No Novo Testamento, por sua vez, a revelação de Deus é inseparável da
412 ação salvadora de Jesus. Assim, por exemplo, quando os discípulos do Batista
perguntam a Jesus se é “aquele que deveria vir”, ele responde:
Ide informar a João sobre o que vistes e ouvistes: cegos recuperam a visão, co-
xos caminham, leprosos ficam limpos, surdos ouvem, mortos ressuscitam,
pobres recebem a boa notícia. E feliz aquele que não tropeça por minha causa.
(Lc 7, 22s).

A “Palavra” que Deus “comunicou” (At 10, 36), diz Pedro, não é outra
senão “o que aconteceu por toda Judéia, começando pela Galiléia” (At 10,37):
“Deus ungiu com Espírito Santo e poder a Jesus de Nazaré, que passou fazendo
o bem e curando todos os possuídos pelo diabo, porque Deus estava com
ele” (At 10,38).
Por outro lado, enquanto salvador, o Deus bíblico se manifestou como
um Deus partidário dos pobres e dos oprimidos (Jd 9,11), a ponto de se
identificar com eles (Mt 25,31-46). Na verdade, como bem tem insistido Jon
Sobrino,
...a relação de Deus com os pobres deste mundo aparece como uma constante
em sua revelação. Esta se mantém formalmente como resposta aos clamores
dos pobres; e por isso, para conhecer a revelação de Deus é necessário conhecer
a realidade dos pobres. Dito de outra forma: a relação Deus-pobres no Êxodo,
nos profetas ou em Jesus não é apenas conjuntural e passageira, mas estrutural.
Existe uma correlação transcendental entre revelação de Deus e clamor dos
pobres e, por isto, embora a revelação de Deus não se reduza a responder ao
clamor dos pobres, cremos que sem introduzir essencialmente essa resposta
não se compreende a revelação.28

A libertação dos pobres e oprimidos no Êxodo e na práxis de Jesus de


Nazaré não é algo secundário ou periférico na revelação do Deus bíblico, mas
algo constitutivo dessa revelação e algo que diz respeito ao mistério mais
profundo de Deus mesmo. Revelar-se no processo de libertação do Êxodo (e

27
Ibid., 59.
28
Sobrino, “Teología en un mundo sufriente. La teología de la liberación como ‘intellectus amo-
ris’”, 55.

ATUALIDADE DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO FRANCISCO DE AQUINO JÚNIOR


não no processo de dominação do Faraó) e na práxis libertadora de Jesus de
Nazaré (e não na práxis de César) não é mero detalhe ou casualidade ou
roupagem, mas tem a ver com o mistério mesmo de Deus que não pode
assumir a “forma” de um Faraó ou de um César sem se negar a si mesmo. O
Deus bíblico é, portanto, em si mesmo, essencialmente, constitutivamente,
um Deus partidário dos pobres e oprimidos.
Por mais que o mistério de Deus não se esgote em sua parcialidade 413
pelos pobres e oprimidos, essa parcialidade é uma de suas notas constitutivas
– mesmo que isso seja um escândalo metafísico (para certas metafísicas avessas
ou pouco afeitas à história/historicidade). E essa parcialidade de Deus tem
enormes conseqüências para a fé cristã e, inclusive, para seu momento mais
estritamente intelectivo, teologia.

Fé como realização da vontade de Deus


A fé cristã é, fundamentalmente, “o ato pelo qual a salvação que teve lugar
em Cristo alcança as pessoas e as comunidades, transformando-as e iniciando
uma nova criação”.29 Esta salvação não consiste, primariamente, na entrega
de verdades ou doutrinas sobre Deus nem em exigência de ritos religiosos,
mas num dinamismo práxico-salvífico (Cor 4, 20). Conseqüentemente, a fé,
enquanto abertura a e acolhida desse dinamismo, tampouco consiste, pri-
mariamente, em aceitação e confissão de doutrinas ou em ritos religiosos,
mas em inserção e participação ativas nesse mesmo dinamismo.
Esse caráter ativo/práxico da fé nem se contrapõe nem compromete
seu caráter gracioso. A fé é um dom (Ef 2, 8), mas um dom que, uma vez acol-
hido, recria-nos, inserindo-nos ativamente em seu próprio dinamismo: “cria-
dos por meio de Cristo Jesus para realizarmos as boas ações que Deus nos
confia como tarefa” (Ef 2, 10). É, portanto, um dom-tarefa: algo que recebemos
para realizar.
Certamente, a fé é um ato inteligente e tem seu momento de verdade.
Mas nem é pura intelecção (esta é apenas um momento do ato de fé) nem
essa intelecção consiste primariamente numa doutrina conceitualmente
elaborada (esta não é senão um momento mais desenvolvido e elaborado
daquela). De modo que não se trata de contrapor realidade/práxis e verdade/
teoria, mas de evitar o reducionismo intelectualista da fé.

29
González, “Fé”, 369.

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Também é claro que a fé tem sua expressão simbólico-ritual. Mas esta
não é senão isso: expressão (manifesta a) mais ou menos eficaz (leva à) da
fé.30 Sem a fé, essa expressão deixa de ser manifestação e perde sua eficácia,
convertendo-se em puro ritualismo. De modo que, tampouco aqui, trata-se de
contrapor práxis de fé e expressão simbólico-ritual, mas de evitar o reducionismo
ritualista da fé.
414 Importa, em todo caso, insistir, aqui, no caráter práxico da fé cristã. Ela
consiste num dinamismo de vida, num jeito de viver a vida, numa práxis: viver
como Jesus viveu! Numa palavra, ela consiste no seguimento de Jesus de
Nazaré.31 E aqui não basta ter fé em Jesus (confessá-lo doutrinalmente e celebrá-
lo ritualmente); é preciso ter a fé de Jesus (viver do que e como ele viveu), o
iniciador e consumador da fé (Hb 12,2): “uma fé ativada pelo amor” (Gl 5,6),
que se mostra nas obras (Tg 2, 18), que nos leva a passar “fazendo o bem”
(At 10,38), que nos faz “próximo” dos caídos à beira do caminho (Lc 10, 25-37)
e que tem como medida e critério definitivos as necessidades da humanidade
sofredora (Lc 10, 25.37; Mt 25,31-46).
No seguimento de Jesus, não basta andar com Jesus no peito (“Jesus é
o Senhor”; “Jesus é 10” etc); é preciso ter peito para andar com Jesus: “quem
diz que permanece com ele deve agir como ele agiu” (1Jo 2,6); “nem todo
aquele que me disser: Senhor, Senhor! entrará no Reino de Deus, mas aquele
que cumprir a vontade de meu Pai do céu” (Mt 7,21). E essa vontade do Pai diz
respeito à vida em sua totalidade, em todas as suas dimensões.

A problemática das mediações


No item anterior insistimos no fato de que a fé cristã consiste no seguimento
de Jesus, portanto, num modo de vida, numa práxis. Não se trata apenas de
ter conseqüências práticas, como se ela fosse algo meramente intelectual e/
ou anterior à práxis, mas, mais radicalmente, de ser, em si mesma, práxis.
Enquanto tal, ela supõe tanto uma opção pessoal (apropriação de deter-
minadas possibilidades) quanto algo que está dado (determinadas possibilidades
de atuação).

30
Cfr. Taborda, Sacramentos, práxis e festa, 163-173.
31
Cfr. Sobrino, “Seguimento de Jesus”, 771-775.

ATUALIDADE DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO FRANCISCO DE AQUINO JÚNIOR


A fé cristã tem um momento de opção pessoal insubstituível. Ninguém
é obrigado a seguir a Jesus, a viver como ele viveu. Essa é uma possibilida-
de, mas uma possibilidade a ser escolhida. Pode-se, sem dúvida, forçar e
mesmo obrigar a alguém a pertencer à religião cristã, a confessar suas dou-
trinas e a praticar seus ritos. A cristandade e, particularmente, a invasão e
colonização do que chamamos América Latina que o digam. Mas isso não é
sem mais fé cristã. 415
A fé cristã começa no momento em que alguém assume como seu o
dinamismo de vida suscitado por Jesus e seu Espírito, deixando-se configurar
por ele e configurando o mundo segundo esse mesmo dinamismo, a partir
das situações que lhes toca viver e das possibilidades de que dispõe. É claro
que, assim como se pode confessar a fé sem vivê-la (“descrença dos crentes”),
pode-se, também, viver a fé sem confessá-la (“fé dos não crentes”).32 Mas,
mesmo nessa “fé anônima”, há um momento de opção pessoal intransfe-
rível, por mais condicionado que seja: ajo dessa forma, mas poderia agir de
outra forma.
Essa opção pessoal, entretanto, precisamente enquanto opção é opção
por algo dado: possibilidade de optar e optar pelo jeito de Jesus (dons-radicais)
e possibilidades concretas de que dispomos para efetivar essa opção (dons-
mediações). É a dupla dimensão graciosa ou de gratuidade da fé. Por um la-
do, tanto a possibilidade mesma de poder optar (abertura humana radical)
quanto a possibilidade concreta de optar pelo jeito de viver de Jesus (dom
salvífico por excelência) é dom de Deus que recebemos gratuitamente. Por
outro lado, a configuração concreta de nossa vida e nosso mundo segundo o
dinamismo desencadeado por Jesus e seu Espírito e apropriado por nós na fé
depende do momento e da situação em que vivemos e das possibilidades
reais que dispomos (mediações históricas).
Certamente, podemos e devemos criar possibilidades que viabilizem
nossa opção pelo jeito de viver de Jesus, mas só podemos criar a partir das
possibilidades que já nos estão dadas. Daí que a fé cristã, sendo sempre a
mesma (fé de Jesus), é sempre diversa (fé dos com-Jesus nas distintas situações
históricas).
Esse é um dos paradoxos e um dos dramas fundamentais da fé cristã:
um dinamismo de vida suscitado por Jesus e seu Espírito (dom) que deve

32
González, “Fé”, 375.

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tomar corpo em situações e contextos diversos, a partir das reais possibilidades
materiais, biológicas, psíquicas, sociais, políticas, culturais, eclesiais etc dis-
poníveis (tarefa). Deve configurar nossa vida e nosso mundo segundo esse
dinamismo, contra todo fatalismo e determinismo. Mas só pode fazê-lo a partir
das possibilidades reais disponíveis, contra toda forma de idealismo e espi-
ritualismo. E isso vale para todas as dimensões da vida: da sexual à econômica.
416 Todas elas devem ser configuradas segundo o dinamismo suscitado por
Jesus e seu Espírito. Mas essa configuração dependerá, em grande parte, das
possibilidades com que se conta em cada caso. Daí que a fé, inserindo-nos no
dinamismo salvífico-recriador de Jesus (dom), não nos oferece receita sexual,
política, econômica etc., mas, antes, constitui-se como desafio e missão (tarefa).
O grande desafio da fé consiste, portanto, em discernir e escolher, em
cada caso e em cada situação, entre as reais possibilidades disponíveis, as
mais adequadas e mais fecundas para a configuração de nossa vida e de
nosso mundo segundo o dinamismo suscitado por Jesus e seu Espírito.
Nesse processo, é preciso ter sempre em conta que, se nenhuma po-
ssibilidade real é absolutamente adequada, no sentido de esgotar as
potencialidades desse dinamismo, elas não são igualmente (in)adequadas:
umas são mais (in)adequadas que outras. Aqui, conta-se sempre com uma
boa dose de risco, de aposta... Em todo caso, um critério fundamental e per-
manente de discernimento das possibilidades a serem apropriadas, em qual-
quer que seja a dimensão da vida, são as necessidades e os clamores da
humanidade sofredora, das vítimas de toda e qualquer forma de injustiça e
exclusão (Mt, 25, 31-46; Lc 10, 25-37).

Caráter teologal-profético das lutas populares


Tomada em sua totalidade, a fé cristã é uma práxis extremamente complexa e
dinâmica. Por um lado, ela diz respeito à vida humana em sua totalidade e em
suas mais diversas dimensões: pessoal, social, econômica, política, gênero,
cultural, eclesial etc. Por outro lado, tem uma estrutura radicalmente aberta:
depende do contexto em que é vivida e das possibilidades reais acessíveis em
cada situação/ocasião. Daí que a práxis crente, a fé, seja irredutível a alguma
de suas dimensões e/ou a qualquer de suas configurações. O que não significa
que não se possa dar maior atenção ou relevo a alguma de suas dimensões
(pessoal, social, econômica, gênero etc) ou configurações (individual, familiar,

ATUALIDADE DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO FRANCISCO DE AQUINO JÚNIOR


eclesial, popular etc), dependendo do contexto em que se vive, dos dramas e
das exigências de cada situação e momento históricos.
Na teologia da libertação sempre se deu particular atenção e relevância
às lutas populares como lugar privilegiado de vivência da fé. Em boa medida,
pode-se afirmar que ela nasceu, desenvolveu-se e continua se desenvolvendo
no seio das lutas populares por libertação. Taborda chega, inclusive, a tomar a
“práxis de libertação” como a “feição epocal da fé na América Latina”.33 É claro 417
que essa “não é a única feição” da fé na América Latina, “nem sequer a mais
freqüente, mas é a que melhor responde aos desafios do momento”34 ou, em
todo caso, a que se confronta de modo mais conseqüente com um dos mo-
mentos mais determinantes (no pecado ou na graça) de nossa vida individual
e coletiva: o momento de sua institucionalização e controle sociais.
Na verdade, nossa vida é muito mais condicionada e determinada pelas
estruturas da sociedade do que parece: a forma de nos cumprimentarmos
uns aos outros (tu, você, senhor/a, excelência, majestade, eminência etc), o
ser homem ou mulher, as relações de poder, a produção e distribuição de
bens e riquezas, a relação com o meio ambiente etc são, em grande parte,
regulamentadas e controladas socialmente.
Certamente, tudo isso tem sua origem em ações concretas de pessoas
concretas. Mas na medida em que vai se impondo e se institucionalizando, vai
adquirindo um poder enorme de configuração, para o bem ou para o mal, da
vida individual e coletiva. Esse poder de configuração pode estar mais ou
menos em sintonia com o dinamismo de vida suscitado por Jesus e seu Espírito:
pode tanto permitir ou facilitar (dinamismo gracioso) quanto impedir ou di-
ficultar (dinamismo pecaminoso), adquirindo, assim, um caráter estritamente
teologal. É a dimensão estrutural ou institucional do pecado e da graça.

33
Cfr. . Taborda, Sacramentos, práxis e festa, 25.
34
Ibid., 24. “Se se privilegia agora a feição epocal da fé que se traduz em ação transformadora
da realidade, é porque é a feição mais urgente da fé nesse momento histórico, feição para-
digmática. Não se desvalorizam nem depreciam as feições menos chamativas e espetaculares,
mas sempre necessárias e insubstituíveis. A entrega a Deus não se mede pela eficácia. O óbulo
da viúva valeu mais que a esmola do rico (cfr. Mc 12, 41-44), embora essa pudesse solucionar
mais problemas. O pobre a que todo cristão no seguimento de Jesus deve um amor preferencial
não é só ou principalmente o pobre ‘útil’, potencial transformador da sociedade, agente da
revolução, mas também o pobre ‘inútil’, o lúpen, o doente inválido, o excepcional que em
pouco ou nada contribuirá à nova sociedade em gestação.” (Ibid., 24).

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As estruturas da sociedade não são simplesmente estruturas econômicas,
políticas, culturais, de gênero etc. São, também e sempre, estruturas teologais,
enquanto objetivações (institucionalizações) e mediações (poder dinamizador)
da graça ou do pecado. Daí sua importância central para a fé cristã, com-
preendida como seguimento de Jesus: um modo de viver, como um jeito de
configurar a vida individual e coletiva.
418 Ora, na medida em que a sociedade está organizada ou estruturada de
tal forma que priva uma grande parte da humanidade inclusive das condições
materiais básicas de sobrevivência, que mantém a dominação e a exploração
dos homens sobre as mulheres, dos brancos sobre os negros, que discrimina
e marginaliza deficientes, idosos, homossexuais, que destrói o meio ambiente
e compromete o futuro da própria espécie humana no planeta, entre outros,
ela des-figura a presença de Deus no mundo e constitui-se como um obstáculo
ao dinamismo de vida suscitado por Jesus e seu Espírito. Suas estruturas têm,
portanto, um caráter intrinsecamente pecaminoso: constituem-se como obje-
tivação e mediação de um dinamismo pecaminoso. Enquanto tais, apresentam-
se e impõem-se como um dos maiores desafios atuais para a vivência da fé e,
conseqüentemente, para a ação pastoral da Igreja.
É neste contexto que as lutas populares por libertação aparecem como
lugar privilegiado (não exclusivo) de vivência da fé. Elas se confrontam, pre-
cisamente, com esse momento estrutural ou institucional da vida social, des-
mascarando/denunciando seu caráter injusto e buscando/anunciando formas
mais justas de estruturação da sociedade. E, na medida em que o fazem,
constituem-se, objetivamente (para além de toda confissão e intencionalidade),
como mediações da ação redentora e re-criadora de Jesus e seu Espírito: en-
frentam-se com o pecado do mundo e inserem-se no dinamismo salvífico-
recriador de Jesus e seu Espírito.35
Isso não nega a existência, necessidade e eficácia de outras ações/
mediações salvíficas (oração, ação individual, ações coletivas assistenciais etc)
nem o que haja de pecado nas lutas e organizações populares (centralismo,
autoritarismo, autopromoção, vingança, absolutização etc). Simplesmente,
reconhece e leva a sério sua densidade teologal (mediação salvífica) e sua
relevância histórica (necessidade e urgência atuais).

35
Cfr. Boff, Teologia do cativeiro e da libertação, 73-82; Idem, “A salvação nas libertações: o
sentido teológico das libertações sócio-históricas”, 23-26.

ATUALIDADE DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO FRANCISCO DE AQUINO JÚNIOR


Relação teoria-práxis
Em sua obra clássica Teologia da libertação, Gustavo Gutiérrez chamava atenção
para o fato da teologia da libertação não propor tanto “um tema novo para a
reflexão” (libertação), mas “uma maneira nova de fazer teologia” (“reflexão
crítica da práxis histórica”), segundo a qual a teologia se configura como uma
“teologia libertadora, uma teologia da transformação libertadora da história
da humanidade e, portanto, de sua porção –reunida em ecclesia– que confessa 419
abertamente a Cristo”.36
Uma teologia que não se limita a pensar o mundo, mas que busca se situar co-
mo um momento do processo através do qual o mundo é transformado: abrindo-
se ao dom do Reino de Deus no protesto ante a dignidade humana pisoteada,
na luta contra o despojamento da imensa maioria da humanidade, no amor que
liberta, na construção de uma nova sociedade, justa e fraterna.37

Convém destacar, aqui, dois aspectos fundamentais para o quefazer


teológico implícito nessa “maneira nova de fazer teologia”.
1. A realidade que a teologia procura inteligir, “o dom do Reino de Deus”,
é uma realidade práxico-libertadora: uma realidade que se realiza (sem se
esgotar) na história como libertação. Por mais transcendente que seja, é
transcendente na história. De modo que transcendência e história nem se re-
duzem (monismo) nem se contrapõem (dualismo) uma à outra, mas constituem
uma unidade estrutural (respectividade de notas irredutíveis). Na formulação
de Gutiérrez,
...não há duas histórias, uma profana e outra sagrada, ‘justapostas’ ou ‘estrei-
tamente ligadas’, mas um único devir humano assumido irreversivelmente por
Cristo, Senhor da história. Sua obra redentora abarca todas as dimensões da
existência e a conduz ao seu pleno cumprimento. A história da salvação é a en-
tranha mesma da história da humanidade.38

2. Enquanto “reflexão crítica da práxis histórica”, a teologia é “um momento


do processo através do qual o mundo é transformado”. Embora Gutiérrez não
tenha conseguido desenvolver suficientemente e tirar todas as conseqüências
dessa tese, indicou com ela um caminho extremamente fecundo para a com-
preensão e desenvolvimento da atividade teológica: parte da práxis do Reinado

36
Gutiérrez, Teología de la liberación, 87s.
37
Ibid.
38
Ibid., 245.

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de Deus e está a serviço dessa mesma práxis (caráter práxico), intelige sentindo
e não em contraposição aos sentidos (caráter sentiente), é momento da práxis,
mas um momento (caráter de momento). De modo que, do ponto de vista es-
tritamente teórico, a problemática da teologia da libertação é, última instância,
o problema da relação “práxis teologal” – “teoria teológica”.39 Um dos proble-
mas teóricos mais complexos/difíceis e mais decisivos/determinantes da
420 teologia da libertação que aqui mal podemos indicar.

A MODO DE CONCLUSÃO-CONVOCAÇÃO
Dizíamos na introdução desse artigo que nossa reflexão sobre a atualidade da
teologia da libertação seria uma reflexão a partir e em vista do fortalecimento
do movimento teológico-pastoral conhecido como teologia da libertação. Por
essa razão nossa “conclusão” tem um caráter de convocação: pé na estrada!
Mãos à obra!
É preciso seguir configurando nossa vida eclesial como seguimento de
Jesus de Nazaré: fidelidade ao Deus dos pobres e oprimidos na oração/liturgia
(imagem de Deus, linguagem/discurso sobre Deus, cantos, formulação das
orações, ritos etc), na prática cotidiana de cada um (modo de se relacionar
com os outros, ação/reação etc), na organização eclesial (comunidade – caris-
mas – ministérios) e no trabalho pastoral (prioridade absoluta das necessidades
da humanidade sofredora).
É preciso fortalecer as diversas lutas populares presentes hoje em nossa
sociedade: sem terra, sem teto, povo da rua, pescadores, marisqueiras, me-
nores, mulheres, negros, índios, atingidos por barragem, seringueiros, ribeirin-
hos, lutas de bairro etc etc. Elas são mediações objetivas do dinamismo de
vida suscitado por Jesus e seu Espírito na estruturação e institucionalização da
vida social.
É preciso tomar em sério e desenvolver, de modo conseqüente, o mo-
mento mais estritamente teórico-teológico da práxis de fé: um momento
específico irredutível (com seu dinamismo, com suas exigências, tarefas, méto-
dos, instrumentos etc), mas um momento da práxis de fé, da qual recebe sua
última determinação (realidade a ser inteligida, meta da intelecção, modo de
intelecção, lugar de verificação etc).

39
Cfr. Ellacuría, “Relación teoría y praxis en la teología de la liberación”; Idem, “Hacia una fun-
damentación del método teológico latinoamericano”.

ATUALIDADE DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO FRANCISCO DE AQUINO JÚNIOR


Essa é a hora que nos toca viver e viver como seguidores/as de Jesus de
Nazaré: sempre na fidelidade ao Deus dos pobres e aos pobres da terra. E
nessa fidelidade se joga a atualidade presente e futura da teologia da libertação.
É tarde
mas é nossa hora.
É tarde
mas é todo o tempo que temos à mão para fazer o futuro. 421
É tarde
mas somos nós essa hora tardia
É tarde
mas é madrugada se insistimos um pouco.
Pedro Casaldáliga

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ATUALIDADE DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO FRANCISCO DE AQUINO JÚNIOR

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