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Extensão Universitaria: Moradia e Meio Ambiente

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Moradia e Meio Ambiente:

extensão universitária e compromisso social


Reitor: Carlos Eduardo Cantarelli. Vice-Reitor: Luiz Alberto Pilatti. Diretora de Gestão da
Comunicação: Noemi Henriqueta Brandão de Perdigão. Coordenadora da Editora: Camila Lopes
Ferreira.

Conselho Editorial da Editora UTFPR. Titulares: Bertoldo Schneider Junior, Hieda Maria
Pagliosa Corona, Hypolito José Kalinowski, Isaura Alberton de Lima, Juliana Vitória Messias
Bittencourt, Karen Hylgemager Gongora Bariccatti, Luciana Furlaneto-Maia, Maclovia Corrêa da
Silva e Sani de Carvalho Rutz da Silva. Suplentes: Anna Silvia da Rocha, Christian Luiz da Silva,
José Antonio Andrés Velásquez Alegre, Ligia Patrícia Torino, Márcio Barreto Rodrigues, Maria de
Lourdes Bernartt, Mário Lopes Amorim, Ornella Maria Porcu e Rodrigo Lingnau.

Editora filiada a
Clarice Farian de Lemos
Claudionor Beatrice
Maria Luisa Carvalho
Marilene Zazula Beatriz
Simone Aparecida Polli
Stella Maris da Cruz Bezerra

Moradia e Meio Ambiente:


extensão universitária e compromisso social

CURITIBA

2015
© 2015 Editora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons -


Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.

Esta licença permite o download da obra e o compartilhamento desde que sejam


atribuídos créditos ao(s) autor(es), mas sem a possibilidade de alterá-la de nenhuma
forma ou utilizá-la para fins comerciais.
Disponível também em: <http://repositorio.utfpr.edu.br/jspui/>.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


M827 Moradia e meio ambiente: extensão universitária e compromisso social /
Clarice Farian de Lemos ... [et al.] — Curitiba: Ed. UTFPR, 2015.
66 p. : il.

ISBN 978-85-7014-128-6

1. Arquitetura e sociedade. 2. Arquitetura – Fatores humanos. 3. Habitações –


Projetos e construção. 4. Política habitacional – Curitiba, Região Metropolitana
de (PR). 5. Avaliação de riscos ambientais. 6. Catadores de lixo – Curitiba, Região
Metropolitana de (PR). 7. Extensão universitária – Projetos.I. Lemos, Clarice Farian de.

CDD 23. ed. 728


Bibliotecária: Maria Emília Pecktor de Oliveira CRB-9/1510

Coordenação Editorial
Camila Lopes Ferreira
Emanuelle Torino

Ilustração da capa
Claudionor Beatrice

Normalização
Camila Lopes Ferreira

Projeto gráfico e Editoração eletrônica


Vanessa Constance Ambrosio

Revisão gramatical e ortográfica


Adão de Araújo
COLABORAÇÃO
Apoio Bolsistas de Extensão do Curso de Arquitetura e Urbanismo: Andréia Farias do
Programa de Extensão Universitária (PROEXT) - MEC/SESu - Edital 2014 Nascimento, Bárbara Carvalho Cavalieri, Karine Hilgenberg Martins, Miguel João
SIGProj N°: 143137.648.95463.22032013 Dias da Costa Pereira, Stephanie Noleto e William Willrich.
Voluntários das Atividades de Extensão do Curso de Arquitetura e Urbanismo:
UTFPR Editora Mia Hiromi Nakagiri e Sandro Cabral.
Av. Sete de Setembro, 3165 Rebouças
Educadoras Populares: Vandécia de Assis, Andréa de Barros e Ângela Maria de
Curitiba – PR 80230-901
Azevedo Padillha.
www.utfpr.edu.br
Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo (CEFURIA) e Rede de Educação
Cidadã (RECID).
SUMÁRIO
PREFÁCIO..........................................................................................................................................................9
APRESENTAÇÃO..............................................................................................................................................11
Capítulo 1
POR QUE A ILHA EXISTE?
A questão habitacional na Região Metropolitana de Curitiba ................................................................................13
Capítulo 2
A CHEGADA À ILHA:
Aproximações para construir um processo participativo .......................................................................................19
Capítulo 3
CONHECENDO O ASSENTAMENTO ILHA:
Garimpando informações para construir o diagnóstico.........................................................................................25
Capítulo 4
E AGORA, JOSÉ?
Repensando novos rumos do projeto..................................................................................................................47
Capítulo 5
NAVEGAR É PRECISO:
Em busca de alternativas para o assentamento Ilha..............................................................................................51
Capítulo 6
ALEGRIAS, DORES E ESPERANÇAS:
O que aprendemos com o projeto.......................................................................................................................59
REFERÊNCIAS...................................................................................................................................................65
PREFÁCIO

A
experiência relatada nesse livro é fruto do encontro da uni- Além de explicitar as profundas desigualdades que marcam
versidade, espaço de aprendizado, debate e produção de o cotidiano de nossa metrópole, a experiência revela o grande po-
conhecimento; com a cidade, espaço privilegiado de reali- tencial de transformação dos conflitos urbanos nela presentes, que
zação da vida em sociedade. aproximando Universidade e sociedade possibilitaram o surgimen-
Esse encontro foi possibilitado pela realização de dois Proje- to do novo, do alternativo e do criativo. Os conflitos apresentam-
tos de Extensão, desenvolvidos nos anos de 2013 e 2014, coorde- -se, portanto, como sementes para a concepção de novos métodos
nados pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e a Universidade de intervenção e possibilitam a construção de uma cidade diferente
Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), respectivamente. O presen- da que tem sido pensada e produzida ao longo de nossa história.
te livro registra o projeto desenvolvido pela UTFPR, embora tenha Necessidade e urgência, constatação de limites, superação
havido uma articulação e, em certos aspectos, continuidade entre de desafios, aproximação de diferentes, respeito e esperança, mar-
as duas experiências. cam o conteúdo do livro. Elementos essenciais para que o devir se
Lócus da vida em nossa sociedade, a cidade contemporânea apresente, o processo de ensino-aprendizagem se estabeleça e a
é um espaço marcado por desigualdades e disputas, elementos produção do conhecimento constitua um processo permanente e
que assumem uma expressão contundente quando observamos inovador, a realização do Projeto de Extensão reitera a importância
a dinâmica de produção dos espaços informais de moradia. Tal da participação ativa da Universidade na construção de uma socie-
dade mais igualitária e justa.
dinâmica desempenha uma função relevante na consolidação da
A experiência resgata o sentido de espaço urbano socialmen-
metropolização em Curitiba, embora este processo tenha sido mui-
te produzido, campo de lutas e pleno de possibilidades, cuja apre-
tas vezes obscurecido por uma interpretação parcial da realidade
ensão é essencial para a formação de urbanistas comprometidos
urbana local.
com a transformação das cidades em espaços com maior equida-
Como tem sido ao longo da história da urbanização brasilei-
de, mas conscientes dos desafios a serem enfrentados. A realidade
ra, os espaços de moradia popular ganham visibilidade, em geral,
urbana revela-se assim como um espaço rico de experiências e po-
pela emergência de conflitos. Assim não foi diferente com a Ilha,
tencialmente instigante para aguçar a capacidade criativa e crítica
favela cuja existência revela a luta cotidiana de seus moradores de alunos, educadores, cientistas e profissionais.
para viver e usufruir dos benefícios da grande cidade metropolita-
na, resistindo com persistência, esperança e consciência coletiva às Madianita Nunes da Silva
adversidades impostas por um modelo de urbanização que exclui Professora do Curso de Arquitetura e
desse direito a população de menor renda. Urbanismo da Universidade Federal do Paraná

9
APRESENTAÇÃO

O
fio condutor deste livro é a experiência realizada durante evitar a ação e obter melhores condições de trabalho, os cata-
o projeto de Extensão Universitária ‘Moradia e Meio Am- dores se organizaram e ocuparam um galpão fechado, referente
biente: a construção do diálogo na urbanização do assen- à massa falida de uma empresa, localizado nas proximidades da
tamento Pilarzinho – Ilha’, coordenado pela professora Simone Ilha, e pressionaram a Prefeitura Municipal de Almirante Taman-
Polli, que procurou intervir nas condições precárias de moradia daré para desapropriá-lo. Fruto dessa mobilização, o Poder Ju-
e urbanização de um assentamento na Região Metropolitana de diciário definiu que o terreno passaria a pertencer à prefeitura,
Curitiba (RMC). que, por sua vez, deveria conceder o uso para a Associação dos
O livro conta a trajetória das atividades de extensão, mos- Catadores de Material Reciclável de Almirante Tamandaré – Ilha.
trando como os objetivos inicialmente traçados foram mudando A intenção do CEFURIA, ao indicar o assentamento Ilha, era
com o tempo; as frustrações e os aprendizados ao longo deste ca- de poder realizar uma intervenção preventiva no que se refere à
minho, a partir da experiência dos professores e alunos da UTFPR questão da regularização fundiária, problema recorrente em Curi-
que participaram ativamente nas atividades de extensão. tiba e Região Metropolitana. Ou seja, a proposta era que, em vez
O projeto foi elaborado no desejo de, no âmbito da Ar- de os moradores serem surpreendidos por uma ordem de despe-
quitetura e Urbanismo, desenvolver um trabalho voltado às ne- jo, construíssem, antecipada e coletivamente, uma solução para
cessidades da sociedade, colaborando de forma concreta com as seus problemas de habitação, contando com o suporte técnico e
políticas públicas, especialmente na área de habitação de inte- científico da universidade.
resse social. O Laboratório de Urbanismo e Paisagismo (LUPA), Os moradores, mesmo não fazendo parte da construção
vinculado ao Curso de Arquitetura e Urbanismo da UTFPR - Câm- prévia, anterior à aprovação oficial do projeto de extensão, acei-
pus Curitiba, serviu como local-base onde a ideia nasceu e foi taram participar, pois havia uma ansiedade pela regularização da
desenvolvida. posse da terra e pela solução das enchentes, outro problema que
Assim, no ano de 2013, com o lançamento do edital de afligia a comunidade.
financiamento federal para a realização de projetos de Extensão Com essa demanda, surgiu o embrião do projeto, que pre-
Universitária (PROEXT), a coordenadora do projeto entrou em cisava tomar forma: que objetivos pretendia-se alcançar? Quais
contato com as educadoras populares do Centro de Formação etapas e ações eram necessárias? Qual o orçamento preciso?
Urbano Rural Irmã Araújo1 (CEFURIA) para trocarem ideias sobre o Quem seriam os integrantes da equipe técnica?
desenvolvimento de uma atividade na área de regularização fun- Pensamos em trabalhar dentro da perspectiva de reabili-
diária. tação e permanência da população no local, com a garantia da
As educadoras populares sugeriram então o assentamen- diversidade sócio espacial e mitigação das fragilidades ambien-
to Ilha, no qual já realizavam um trabalho com os catadores de tais. Ou seja, o objetivo inicial do projeto era realizar um estudo
materiais recicláveis. Naquela ocasião, os catadores enfrentavam técnico sobre a viabilidade de os moradores permanecerem no
a ameaça de uma ação civil pública impetrada pelo Instituto Am- local, incluindo propostas de urbanização e de edificação para a
biental do Paraná (IAP), que questionava a quantidade de lixo e a área a fim de que, posteriormente, lutassem pela regularização
degradação ambiental de áreas de preservação permanente nas fundiária. Definiram-se, então, as ações necessárias, o cronogra-
quais o assentamento Ilha estava inserido. Como estratégia de ma, os recursos físicos e os financeiros necessários, dentre outros.
A troca de saberes popular e científico, rompendo a hie-
11
1 Organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, fundada em 1981, cujas ações baseiam-se na Educação rarquização existente na academia, foi um dos pilares pensados
Popular (FREIRE, 1983) e tem por objetivo promover a formação política e fortalecer a organização popular.
para o projeto. Assim, propor-se uma metodologia participativa, o acesso à Arquitetura e Urbanismo com qualidade para toda a
pautada na Educação Popular (FREIRE, 1983), por meio da qual população, independente de sua classe social.
os moradores seriam os sujeitos do processo - uma vez que sua O projeto então foi redigido, enviado e aprovado pelo edi-
organização foi um dos pontos centrais para a existência e con- tal de financiamento do PROEXT 2014. A execução ocorreu esse
tinuidade do projeto. A construção coletiva visava proporcionar ano. Seus protagonistas foram os moradores do assentamento
um debate mais amplo sobre o lugar, sobre o conflito moradia e Ilha em Almirante Tamandaré, professores e alunos da UTFPR
meio ambiente, num permanente processo de educação popular (Câmpus Curitiba) e educadoras populares da Rede de Educação
e de formação política. Cidadã (RECID) e do CEFURIA.
Para alcançar esses objetivos privilegiou-se construir uma Neste livro contaremos a trajetória da realização do projeto
equipe interdisciplinar com profissionais das áreas da Psicologia, a partir da experiência dos professores e alunos da UTFPR que
do Direito, do Saneamento Ambiental, da Engenharia Civil, da participaram ativamente nas atividades de extensão. Apresenta-
Arquitetura e Urbanismo, bem como da Educação Popular, uma remos resultados técnicos do diagnóstico realizado para avaliar
vez que se compreendia a complexidade envolvida na questão da a viabilidade da regularização fundiária do local; a descrição e a
regularização fundiária. análise da tipologia arquitetônica das casas. Falaremos também
Alunos do curso de Arquitetura e Urbanismo da UTFPR das alegrias e das dores, dos tropeços e dos aprendizados que nos
(Câmpus Curitiba) foram incluídos no projeto, com o intuito de acompanharam nesse desafio de construir coletivamente, com os
moradores, alternativas para a questão moradia e meio ambiente.
que a experiência lhes oportunizasse romper com a noção do Ar-
quiteto e Urbanista ‘estrela’, que trabalha para algumas classes
sociais. Promover sociedades mais justas significa democratizar Os autores

12
Capítulo 1

POR QUE A ILHA EXISTE?


A questão habitacional na Região Metropolitana de Curitiba
O
problema dos espaços informais de moradia em Almirante A informalidade cresce devido à associação de algumas ló-
Tamandaré é, antes de tudo, uma questão metropolitana. gicas: a ‘necessidade’ da população residente nesses assentamen-
O assentamento Ilha ilustra bem esse fenômeno, como tos, a atividade imobiliária em Curitiba e, por fim, a atuação do
parte de um processo urbano maior de configuração da Metró- Estado como subsidiário dos interesses privados (SILVA, 2012).
pole de Curitiba (RMC). As mudanças no mercado de trabalho, a forma como as ati-
Os municípios do entorno de Curitiba formaram-se basi- vidades econômicas se distribui nos municípios da RMC, as redes
camente a partir de colônias rurais de imigrantes, localizadas no de infraestrutura e de comunicação, o mercado imobiliário, tudo
que hoje são, muitas vezes, os centros urbanos desses municípios. isso acaba por excluir parcelas da população com menor renda
Na década de 1970, ocorreram os primeiros vestígios de metropo- dos espaços mais valorizados, ampliando as desigualdades socio-
lização, com a consolidação desses povoados distantes e isolados espaciais já existentes. Os moradores de favela são os submetidos
da mancha urbana de Curitiba, e as ocupações das áreas rurais ao maior número de irregularidades e exclusões sobrepostas.
limítrofes à capital. Com o tempo, esse processo ampliou-se e fez Segundo o Plano Estadual de Habitação de Interesse So-
com que as áreas antes rurais fossem gradativamente urbaniza- cial (PEHIS), em Almirante Tamandaré, 20,48% do total de domi-
das, em especial pela ação dos empreendedores imobiliários, que cílios estavam em situação precária, enquanto em Curitiba esse
produziram lotes populares precários, isto é, sem infraestrutura total representava 12,13% dos domicílios (COHAPAR, 2012), se
urbana básica. comparado com o total de domicílios particulares permanentes.
Esse processo contribuiu para o aumento da população po- Além de Almirante Tamandaré, outros municípios periféricos da
bre nos municípios vizinhos, localizadas nas periferias distantes, RMC concentram maior número de assentamentos precários, re-
sem infraestrutura e sem emprego. Alguns municípios da Região fletindo a desigualdade metropolitana de acesso à moradia, aos
Metropolitana de Curitiba (RMC) são chamados de ‘dormitórios’, serviços básicos e à diferente capacidade administrativa entre os
pelas características socioespaciais da população e porque não municípios de uma mesma metrópole.
têm dinâmica econômica estruturada. A partir da década de Almirante Tamandaré possui uma população total de
1990, os espaços informais expandiram e intensificaram-se com a 103.204 habitantes, segundo o censo IBGE (2010), faz parte da
comercialização de imóveis nas favelas e o crescimento dos lote- porção norte da RMC e se caracteriza por territórios de altas de-
amentos clandestinos2. clividades e fragilidades ambientais, sendo historicamente desen-
Atualmente a periferia sofre novas mutações, e não pode- volvidas a extração mineral e a agricultura de subsistência, com
mos compreender sua complexidade por meio da dualidade ‘cen- poucas indústrias ligadas à extração de cal. Mesmo que outras
tro infraestruturado’/‘periferia precária’. A periferia, atualmente, indústrias queiram se instalar nessa região, isso não é incentivado
apresenta novos conteúdos com territórios fragmentados: criam- pelo Plano Desenvolvimento Integrado da RMC (COMEC, 2006),
-se os enclaves fortificados ou as ‘cidades de muros’ (CALDEIRA, porque se acredita que, pelas condicionantes naturais, essa por-
2000), colonizam-se os territórios, impede-se a convivência inter- ção norte apresenta outras vocações metropolitanas, mais rela-
classista, aumentam-se os conflitos ambientais, as desigualdades, cionadas à produção rural e à preservação ambiental. Devido às
o preço da terra e as percepções de medo individualmente viven- características da configuração da malha urbana do município,
ciadas. com poucas vias principais, a mobilidade entre bairros e o centro
2 “[...] nas duas últimas décadas os espaços informais de moradia cresceram e difundiram-se em toda a da cidade torna-se difícil, ainda mais se depender do transporte
extensão do aglomerado metropolitano de Curitiba, passando de 521 assentamentos e 50.311 domicílios no
coletivo municipal, que possui poucas linhas e horários restritos. 15
final da década de 1990, para 948 assentamentos e 86.478 domicílios no final da década de 2000” (SILVA,
2012, p. 219).
As relações mais fortes dos moradores do assentamento
Ilha são estabelecidas com a cidade de Curitiba, devido à menor
distância (localiza-se a 13 km da Prefeitura do Município de Al-
mirante Tamandaré e a 9 km da Praça Tiradentes em Curitiba), ao
transporte público facilitado, ao comércio/serviços especializados
e às ofertas de emprego, ou seja, devido às condições melhores
do que as próprias de Almirante Tamandaré.
A Figura 1 destaca a localização do assentamento Ilha em
relação ao Paraná, à RMC, ao Município de Almirante Tamandaré
e ao bairro Tanguá, reafirmando as menores distâncias e as rela-
ções de vizinhança deste com o Município de Curitiba.
As políticas habitacionais existentes na época da realização
do projeto eram insuficientes para oferecer condições de acesso
à moradia e à terra urbanizada às pessoas de menor renda. O
município de Almirante Tamandaré não possui capacidade admi-
nistrativa para gerenciar uma política habitacional que atenda à
demanda da população.
As áreas que não possuem valor de mercado e mais frágeis
ambientalmente são ocupadas por população de baixa renda, que
não pode pagar por lugares formais e regularizados. O mercado
imobiliário é um fator que dificulta o acesso à terra urbanizada.
Assim, a questão habitacional no Brasil está intrinsecamente as-
sociada a um mercado especulativo de terras.
O caso do assentamento Ilha ilustra bem o processo de
ocupação dos municípios vizinhos e a problemática habitacional
na região metropolitana. Os primeiros moradores chegaram em
1965 e trabalhavam no local como caseiros de uma chácara, no
limite entre Curitiba e Almirante Tamandaré, em área que sofria
pressão por ocupação. Em período posterior, em 1999, a comuni-
dade ampliou-se com as casas dos filhos do casal e outros novos
moradores. Em 2000, as famílias passaram a ocupar as áreas de
preservação permanente e, finalmente, em 2014, já havia cerca
de 38 residências e aproximadamente 152 moradores. Segundo
relatos, muitos dos que moravam no local vieram de remoções
provenientes de áreas posteriormente destinadas à construção de
parques, grandes empreendimentos ou de outras áreas em pro-
cesso de valorização. Na época do projeto, já havia temores em
relação à pressão da especulação imobiliária sobre o local: um
dos moradores comentou que ouvira, de um engenheiro da cons-
trutora onde trabalhava, que em cerca de três anos a Ilha deixaria
de existir. Ou seja, havia uma ameaça de retirada dos moradores,
uma vez que podiam vir a ‘prejudicar’ a beleza do local.
16 O bairro Tanguá, no entorno da Ilha, é rodeado por condo- Figura 1 - Localização do assentamento Ilha em Almirante Tamandaré
mínios horizontais de alto luxo, formando uma ‘cidade de muros’ Fonte: Adaptado do Google Earth (2014).
(Figura 2 e 3). O preço da terra/m² praticado no bairro Tanguá em dormitórios’ para os pobres apenas, mas igualmente para pes-
Almirante Tamandaré corresponde aos mesmos praticados nos soas de classe média alta que, residindo nesses condomínios em
bairros de Curitiba próximos, como Pilarzinho, Taboão, Abran- Almirante Tamandaré, possuem sua vida (lazer, trabalho, comér-
ches, São João, Santa Felicidade, Lamenha Pequena e Cachoeira, cio, educação) concentrada em Curitiba. Esses dados despertam
configurando uma espécie de expansão da valorização imobiliária a reflexão sobre os constantes esforços do mercado imobiliário
para municípios vizinhos. E, ainda, se em todo o anel perimetral para renovar seus produtos, criar novas necessidades, com a jus-
próximo às divisas intermunicipais o preço da terra está na ordem tificativa do contato com a natureza, a percepção de violência e a
de R$ 500,00/m², nesta região o valor é maior, correspondendo anulação do convívio com o diferente.
a quase o dobro, na faixa entre R$ 501,00 a 1000,00/m² 3. Esse A implantação de um novo condomínio residencial bem
preço se produziu no bairro Tanguá (Almirante Tamandaré) por- próximo ao assentamento Ilha provavelmente colaborará com a
que a região é valorizada devido à localização privilegiada entre valorização imobiliária da região. Assim, o preço da terra na re-
os parques Tingui e Tanguá, à infraestrutura instalada e às vias de gião tende a crescer e a expulsar quem não puder pagar por essa
acesso fácil à capital. valorização ou não tiver a posse da terra. Isso é o que comumente
Outro dado do mercado imobiliário do entorno à Ilha era se chama de ‘expulsão branca’. A criação desse condomínio trará
que, se compararmos os valores do m² de terreno em condomínios ainda outro impacto: a gleba original coberta de vegetação, ao
horizontais fechados com loteamentos em localizações próximas, se transformar num condomínio fechado com várias casas, oca-
os condomínios fechados chegavam a custar o dobro do preço. sionará impermeabilização maior do solo. A tendência, quando
O alto custo dos imóveis em Curitiba e a escassez de ter- chover, será de as águas escorrerem de forma mais veloz para os
renos em áreas nobres fizeram com que proliferasse esse tipo de pontos mais baixos do terreno, justamente onde se encontra o
ocupação nos municípios da região metropolitana, em áreas pró- assentamento Ilha, influenciando diretamente no comportamen-
ximas e de fácil acesso à capital. Ou seja, não se trata de ‘cidades to das inundações.

Figura 2 - Os grandes muros dos condomínios fechados pela Rua Prof. Alberto Krauze Figura 3 - Vistas do acesso a Almirante Tamandaré pela Rua Prof. Alberto Krauze
Fonte: Autoria própria (2014). Fonte: Autoria própria (2014).

17
3 Os números citados correspondem a valores médios comparados em sites das principais imobiliárias da região
em agosto de 2014.
Capítulo 2

A CHEGADA À ILHA:
Aproximações para construir um processo participativo

19
A
construção do trabalho participativo perpassa pelo conta- no assentamento. Sentimo-nos como peixes fora d’água querendo
to direto com dada realidade, realidade esta, muitas vezes, entrar nela e, aos poucos, fomos conseguindo, nos afeiçoando, nos
distinta daquela em que o pesquisador, o professor e os es- aproximando.
tudantes universitários vivem. Então, é necessário compreendê-la, Descobrimos que o local foi batizado pelos moradores com
mergulhando em suas entranhas: uma espécie de imersão no local o nome Ilha porque, antigamente, era rodeado pelos rios Barigui e
para conhecermos melhor os pensamentos, os sentimentos, as cren- Tanguá. Passamos então a adotar também esse nome, pois, grada-
ças e as ações das pessoas. tivamente, compreendemos que, para além de sua condição físico-
Foi assim que iniciamos nossa aproximação ao assentamento -espacial, o nome Ilha dizia mais do lugar e do seu isolamento social,
Ilha em uma tarde quente de verão, em fevereiro de 2014. Chega- econômico, político, cultural e ambiental.
mos devagarzinho, com a delicadeza de quem chega em um lugar Ao longo do projeto, voltamos várias vezes à comunidade
desconhecido, de quem está entrando num lugar que não lhe per- para tirar fotos, chamar os moradores a participar das assembleias,
tence, na intimidade de outras pessoas. Chegamos, também, com perguntar sobre o abastecimento de água, medir suas casas e terre-
certos receios: como seríamos acolhidos? É um lugar com tráfico? nos e verificar quão perto estavam do rio e de seus perigos.
A nossa presença foi recebida com um misto de acolhimento Após algumas assembleias (e, por mais que deixássemos
por parte de uns (como a senhora que nos ofereceu um copo de claro que não conseguiríamos, necessariamente, responder a tais
água gelada para amenizar a sede; e a outra que emprestou seu expectativas), as pessoas ficaram animadas na expectativa de que
boné naquele dia tão quente) e desconfiança por outros. Ao mesmo iríamos lhes trazer uma resposta definitiva e adequada em termos
tempo, havia os olhares distantes, os que faziam de conta que não de regularização fundiária e, também, de fazer projetos de urbani-
estavam em casa quando tentávamos uma aproximação maior. Aos zação, de pavimentação das ruas, de iluminação pública, de rede
poucos, nas conversas com os moradores, essa desconfiança se fez de esgoto, de áreas de lazer, dentre outros. Aos poucos fomos gra-
compreensível, uma vez que tanta gente aparecia ali, não raro para vando os nomes dos moradores, onde moravam e um pouco da
aproveitar-se das mazelas dos moradores, fazendo promessas vãs vida de cada um. A cada visita sentíamos mais próximos e ligados
com o intuito apenas de obter algum ganho pessoal e político. à comunidade.
Andamos pelas ruas e ruelas que as pessoas criaram durante Percebemos que as construções das casas seguiam uma
os mais de 35 anos de existência do assentamento Ilha. Conversa- espécie de loteamento. Algumas eram mais antigas; outras nem
mos com algumas pessoas, conhecemos outras, várias crianças nos tanto. Algumas construídas ‘do jeito que deu’; outras de maneira
rodearam para saber o que fazíamos ali. Realizamos nossa primeira planejada e caprichada. O curioso era que, praticamente a cada
assembleia na garagem da casa de uma das moradoras, que gentil- visita, encontrávamos uma novidade, quando não uma nova casa
mente cedeu seu espaço. Esta reunião de aproximação foi animada começando, um novo aterro, novos murros. Havia até uma casa
por um contador de histórias que nos fez refletir sobre a relevância construída com jeito de ‘Arca de Noé’: orgulho de seus morado-
de nos importarmos uns com os outros, de que o problema de um res e admirada pelos demais, inclusive pela equipe. Havia também
é problema de todos. A educadora popular do CEFURIA conduziu uma ponte ‘derrubadora de gente’, construída pelos próprios mo-
o processo, buscando nos fazer refletir sobre qual seria nosso pa- radores, como meio de acesso ao local de trabalho (galpão de re- 21
pel e nossos objetivos durante a execução do projeto de extensão ciclagem): ‘Quem não cai no rio, cai dentro do buraco’ (Figura 4).
Figura 4 - Casa ‘Arca de Noé’ e ponte de acesso da Ilha à Associação dos Catadores de Material Reciclável
Fonte: Autoria própria (2014).

Nestas andanças, descobrimos que os moradores tinham um dos moradores no projeto, modificando dias e locais das assem-
time de futebol, o União da Ilha, que os homens jogavam futebol nas bleias a fim de nos adequarmos às suas rotinas e modo de ser.
quintas-feiras à noite e, por isso, quando havia assembleia, ‘saiam Mas também soubemos, pelas conversas com os moradores,
de fininho’ para não serem notados. O time tinha uniforme e um que havia gente que não cuidava do lugar, que botava fogo na ca-
brasão criados pelos moradores, além de uma página no Facebook! çamba do lixo, que jogava o lixo e a sucata na frente de casa, no
Dependendo de onde jogavam, as mulheres iam junto formar torci- mato e nas ruas. Por isso, havia até ‘rato do tamanho de uma capi-
da: ‘É torcida organizada, levam até latinhas!’. Havia um ‘pesque & vara’, que ameaça a saúde de todos. Havia quem danificava a ilumi-
pesque’, porque até então não se transformara num pesque & pa- nação pública, ou seja, enquanto uns cuidavam do lugar, outros o
gue. Tinha diversão e alegria. As pessoas também se reuniam no bar depredavam.
de um dos moradores para ouvir música, dançar e arrumar um jeito Houve dificuldades para envolver todas as pessoas do assen-
gostoso de estar com a turma. As crianças construíam suas próprias tamento nas assembleias, devido a conflitos mal resolvidos entre
pipas. Ali ninguém nunca foi assaltado, apesar de viverem em um eles. Além disso, como já vimos, havia moradores que não partici-
município com um dos maiores índices de violência do Estado do Pa- pavam das assembleias, pois não se importavam com as melhorias
raná, pois ‘na Ilha todos eram trabalhadores’. No Natal, cada adulto para o bem comum. Havia também certa divisão de grupos no as-
apadrinhava uma criança e lhe dava um presente; faziam uma festa sentamento, entre os que se reuniam para resolver os problemas da
coletiva, para a qual cada um colaborava como podia. Soubemos Associação de Catadores de Material Reciclável e os demais morado-
que, em tempos idos, costumavam fazer festa junina na rua. Assim, res. Então, parecia que as reuniões eram sempre para resolver pro-
percebemos que, apesar de todas as adversidades, aquelas pessoas blemas de um determinado grupo e não de todos, como era o caso
foram criando suas soluções, suas formas de lazer, suas formas de de nossas assembleias. Assim, em alguns momentos a Ilha parecia
22 (sobre)viver. Descobrir essa dinâmica do cotidiano do assentamento se transformar num arquipélago: havia um núcleo mais próximo,
foi importante para pensar ações de participação e envolvimento formado principalmente pelos moradores mais antigos, por pessoas
que ali nasceram e que sonhavam com uma Ilha melhor para seus (móveis, roupas, louças, comida, ...), mas vidas, como já ocorrera
filhos; porém, havia, também, um grupo cuja aproximação foi difícil, com duas crianças. A Figura 5 mostra algumas fotos da enchente
apesar dos vários convites e que, ao que pareceu, residia a menos de 2012 no assentamento Ilha.
tempo ali e não tinha vínculos afetivos com o local. Após abordar a questão da enchente, em visitas a cada casa
Na ilha, apesar das dificuldades de toda ordem, a natureza no intuito de mobilizar as pessoas para as assembleias, a equipe
era exuberante. Rodeados por dois grandes rios, o Barigui e o Tan- percebeu que essa era a principal preocupação dos moradores,
guá, era privilegiada com um bosque de araucárias e um tanque mais ainda do que a regularização, pois era o problema que en-
com peixes. frentavam todo ano e que, pairando como ameaça a cada chuva
A proximidade dos rios era ambivalente para os moradores. forte, poderia afetar sua permanência no local. Tocar nesse tema
Mesmo poluídos, eram vistos como uma das belezas da Ilha. Neles levou os moradores a entender melhor o que fazíamos ali, e que o
as crianças se refrescavam no verão e uma moradora disse que re- assunto era do seu interesse, levando novas pessoas a frequentar
alizava seus rituais religiosos de purificação. as assembleias.
No entanto, algo parecia comum a todos: o medo ‘de quan- A preocupação dos moradores estava posta: ‘Então, profes-
do começa a chover forte’, ‘das enchentes’, ‘do rio quando sobe’, sora, quem tem direito aqui: o meio ambiente ou as pessoas?’ Era
‘dos dias que chove sem parar’, o medo de ter de conviver com isso possível encontrar uma solução para as enchentes e permanecer ali,
permanentemente, de que o rio não levasse embora apenas coisas lutando para regularizar e urbanizar o local? Ou teriam que deixar

Figura 5 - Registros de enchente na Ilha em 2012


Fonte: CEFURIA (2012).

23
o ‘Jardim do Éden’? As Figuras 6 e 7 mostram o meio ambiente Visando responder a essas questões, a equipe buscou infor-
retratado pelas moradoras na oficina de fotografia realizada no mações diversas para construir um diagnóstico de caráter técnico e
assentamento. baseado em estudos e planos cedidos por órgãos públicos.

Figura 6 - Vegetação às margens do Rio Barigui Figura 7 - Vista da vegetação existente na Ilha
Fonte: Oliveira (2014). Fonte: Mariano (2014).

24
Capítulo 3

CONHECENDO O ASSENTAMENTO ILHA:


Garimpando informações para construir o diagnóstico

25
Q
uando começamos a trabalhar no assentamento Ilha, não condomínios horizontais fechados, que se caracterizavam como
sabíamos o que iríamos encontrar. Tínhamos ouvido falar frações ideais, mas apresentavam lotes e ruas internas, resguar-
das enchentes, mas não sabíamos suas características (fre- dados da malha urbana por muros altos e complexos esquemas
quência, intensidade, abrangência, entre outras). A expectativa era de segurança; condomínios verticais com quatro pavimentos den-
de regularizar a área para possibilitar moradia mais digna, num tro dos padrões do Programa Habitacional do Governo Federal
processo pautado na metodologia de Freire (1983), entendendo ‘Minha Casa, Minha Vida’ (MCMV); ocupações irregulares nas
que os moradores são os autores de sua própria história. margens dos rios; e, por fim, glebas derivadas das sobras das
Em janeiro de 2014, iniciamos as primeiras visitas para o re- morfologias anteriores (Figura 8).
conhecimento da área, e na sequência, contamos com a participa- Com uma topografia ondulada, as áreas ocupadas do en-
ção dos alunos do curso de Arquitetura e Urbanismo da UTFPR. A torno (loteamentos e condomínios) apresentam relevo bastante
metodologia das atividades de extensão foi dividida em módulos recortado, marcando o percurso dos rios Tanguá e Barigui e, o
com oficinas com os moradores, visitas e levanta-
mentos de campo, pesquisa bibliográfica, interpre-
tação de legislação e seminários. Nossos contatos
com os moradores sempre foram intermediados pe-
las educadoras populares do CEFURIA e da RECID.

3.1 Uma descrição do entorno


O assentamento Ilha está localizado na ex-
tremidade sul de Almirante Tamandaré, no bairro
Tanguá, numa região que concentra característi-
cas peculiares, que a diferenciava do restante da
cidade, limitada pelo Contorno Sul e pela Avenida
Fredolin Wolf, ambas vias de conexão direta com
Curitiba, tornaram a região alvo de grande inte-
resse imobiliário, com a aprovação de diversos lo-
teamentos e condomínios fechados no início dos
anos 2000, que se encontram consolidados e em
constante expansão.
O entorno imediato da área de intervenção
concentra morfologias bastante distintas de uso
e ocupação do solo. De um lado, os loteamentos
residenciais, característicos do zoneamento ZR-2
(lote mínimo de 360m², testada de 12m), em sua 27
maioria regularizados em 2005; de outro lado, os Figura 8 - Caracterização do entorno da área de intervenção
Fonte: Adaptado do Google Earth (2014).
encontro dos dois, delimita a área que estudamos neste projeto b) Descaso com a topografia local, que forçou uma ocu-
de extensão. pação completamente diversa do projeto aprovado, como
As condições físicas como relevo, declividades e faixas de maneira de se adaptar à declividade da região;
preservação permanente não foram consideradas na aprovação e c) A construção de casas em áreas de grandes declividades,
na implantação de alguns loteamentos do entorno. O caso mais na beira da rua, sem respeito aos recuos necessários.
flagrante é o do Loteamento Iracema (Figura 9), localizado ao lado Com relação ao transporte coletivo, a região é atendida por
da área de intervenção, em uma região com altas declividades. linhas de ônibus que, predominantemente, ligam a região ao cen-
Apesar de o projeto do loteamento ter sido aprovado em tro de Curitiba e aos terminais de transporte da capital. As linhas
2005, apresenta várias deficiências: que ligavam a área da Ilha ao centro de Almirante Tamandaré apre-
a) A implantação da Avenida Pilarzinho - mesma rua que sentavam frequência insuficiente, não promovendo forte vincula-
oferece acesso ao assentamento Ilha - a apenas 7m do Rio ção dos moradores com a sede do município e demais bairros.
Barigui (dentro de Área de Proteção Permanente); A infraestrutura urbana (como iluminação pública, luz e
telefonia) é resultado da extensão dos serviços e infraestrutura
disponível nos loteamentos populares existentes no entorno: o
loteamento Campos Elísios e o Jardim Iracema em Almirante Ta-
mandaré, além do Bracatinga, no bairro Pilarzinho em Curitiba.
As áreas regularizadas contam com energia elétrica dis-
tribuída pela concessionária local. Entretanto, no assentamento
Ilha, verificam-se pontos de ligações irregulares, os ‘gatos’, como
em alguns pontos da rede elétrica ao longo do entorno imediato.
Além disso, passava pelo assentamento uma linha de alta tensão,
que fazia a distribuição entre a subestação situada nos bairros Or-
leans e Taboão em Curitiba. Apesar da infraestrutura nos postes,
as lâmpadas, quando existiam, apresentavam-se em sua maioria
danificadas, segundo os moradores, devido a depredações, invia-
bilizando iluminação adequada. Os vários pontos de escuridão da
Avenida Pilarzinho causavam prejuízos a todos que precisavam
circular após o anoitecer, incluindo adolescentes que frequenta-
vam a escola no período noturno.
De acordo com a Companhia de Saneamento do Paraná (SA-
NEPAR), havia uma extensão da rede de distribuição de água até o
final da Avenida Pilarzinho. Apenas 12 casas possuíam regulariza-
ção desse serviço. De acordo com o Gráfico 1, 47% da população
da Ilha utilizavam para o abastecimento de água o hidrômetro co-
letivo, 44% o hidrômetro individual, 6% a ligação informal e 3%
utilizavam o poço como fonte de abastecimento de água.
A Prefeitura Municipal de Almirante Tamandaré é a respon-
sável pela coleta dos resíduos sólidos urbanos da região. Cerca de
32% dos moradores são catadores de material reciclável. Antes
de 2011, eles não possuíam local adequado para realização do
trabalho, sendo o material armazenado dentro ou em frente de
28 suas próprias casas, o que gerava grande risco para todos os mo-
Figura 9 - Loteamento Iracema, projeto aprovado versus consolidado radores da Ilha e insegurança quanto à perda de trabalho quando
Fonte: Adaptado do Google Earth (2014).
Gráfico 1 - Tipologia de abastecimento de água
Fonte: Silva, Braga e Metzner (2013).

ocorriam enxurradas e alagamentos. Conforme já relatado, o sig-


nificativo envolvimento de um grupo de moradores do assenta-
mento com ocupação de um galpão fechado na redondeza mobi-
lizou a criação da Associação de Catadores de Material Reciclável
da Ilha em janeiro de 2011. As Figuras 10, 11, 12 e 13 mostram
vistas internas e externas da atual associação.
A criação da Associação Ilha de Materiais Recicláveis for- Figura 10 - Galpão da Associação de Catadores de Material Reciclável da Ilha
taleceu as reivindicações coletivas e a briga jurídica pelo galpão, Fonte: Autoria própria (2014).
denominado pelos moradores como ‘barracão’. Na época da rea-
lização do projeto, seus integrantes ainda estavam em fase de or-
ganização, realizando parcelas do trabalho da separação e venda
do material de forma individual. Porém, o CEFURIA realizava um
trabalho com o intuito de promover o esforço coletivo e a orga-
nização de seus associados, com vistas a fortalecer a associação e
aumentar a renda dos catadores.

3.2 Tipologia arquitetônica e parcelamento


O conjunto de edificações do assentamento Ilha, que con-
tava 38 casas, em uma primeira abordagem, mostrou-se com
grande irregularidade. Essa aparência se devia a um conjunto di-
versificado de tipologias que variavam em porte, posicionamen-
to dentro do terreno, técnicas construtivas, diferentes fases de
acabamento, cores, dentre outras. Uma análise mais atenta, po-
rém, revelou que esse assentamento obedecia a uma lógica de
implantação de grande maturidade, embora a aparência plástica
do conjunto mostrasse o oposto.
Partindo-se do não edificado, ou seja, dos alinhamentos,
recuos, afastamentos e do arruamento, a ordem se estabeleceu.
Figura 11 - Vista interna do galpão da Associação de Catadores de Material 29
Reciclável da Ilha
O traçado da principal via de acesso era paralelo ao rio Barigui e Fonte: Autoria própria (2014).
dava continuidade à rua existente, interrompendo-se apenas na
proximidade com o rio Tanguá. A bifurcação no acesso ao con-
junto era secundária e revelava-se discretamente, quase impondo
um caráter privativo. As duas vias transversais à principal tinham
menor dimensão de caixas e impunham-se como acesso seleti-
vo, embora público. As áreas de alargamento existentes na via
principal eram os adequados retornos para veículos normais e
médios, como caminhões de gás, mudanças e outros. Os retor-
nos nas vias secundárias permitiam a passagem e a manobra de
veículos. Os recuos e alinhamentos existentes subentendiam um
pacto ou regra de uso coletivo, que era respeitada. Essas dimen-
sões variavam em função do tipo de via para a qual estavam situ-
adas. Em resumo, a implantação urbana era correta e adequada.
Um levantamento in loco revelou que a geometria do conjunto
demonstrava uma previsão projetual que foi seguida durante a
implantação. O reforço deste argumento é que havia reservas de
terrenos, esperando por edificações, em que a lógica estruturante
seguia e transpassava essa descontinuidade. Importante salientar
que, as áreas lindeiras ao rio Barigui, bem como os alargamentos
Figura 12 - Local de despejo dos resíduos
Fonte: Autoria própria (2014).
da via principal, eram os naturais pontos de encontro da coletivi-
dade, dado o caráter de praça que se estabelecia pela percepção
deste espaço dilatado. O lado ao longo do rio oferecia esta mes-
ma característica de enriquecimento da paisagem e, embora de
manutenção precária, guardava o potencial simbólico reforçado
pela mata ciliar, na época pouca e disforme.
As casas, quase sempre resultantes de processo de auto-
construção ou edificação colaborativa, expressavam o processo
da consolidação da apropriação do território (Figura 14).
A princípio, pequenas e de madeira, com o tempo foram se
ampliando e mudando o sistema construtivo para alvenaria de ti-
jolos e estrutura de concreto. Permaneciam, quase que a maioria,
em estado inacabado, esperando revestimento final em reboco e
posterior pintura. O aspecto inconcluso, porém, revelava que seu
uso auferia cuidados com jardinetes, floreiras e outros aspectos
decorativos, que constituíam o caráter residencial afetivo e dife-
renciador dos habitantes do assentamento. O sistema colaborati-
vo de construção também estimulava a criatividade arquitetônica.
Mesmo com o domínio das técnicas construtivas convencionais, o
desafio de certas soluções arquitetônicas expôs aspectos inusita-
dos de grande valor expressivo e plástico, a exemplo da edificação
cuja volumetria sugeria a forma de um barco. A casa estava ao
lado do rio cuja região era sujeita a inundações periódicas.
30 Figura 13 - Vista interna do galpão da Associação de Catadores de Material Reci-
A forma de implantação das residências, com relação às
clável da Ilha
Fonte: Autoria própria (2014). suas aberturas, integrava o espaço comunitário. Eram comuns
portas e portões permanecerem abertos, promovendo a interação
do interior com o exterior, o que ampliava o espaço de vivencia
comum e a percepção de segurança mútua das famílias. A intera-
ção arquitetônica se dava primeiramente para o espaço de vias e
também para as edificações que não dispunham de muros.
O assentamento Ilha é produto de uma ocupação informal,
resultado de uma exclusão urbanística que escapa ao controle do
Estado, não tendo sido objeto do planejamento adequado e pro-
gressivo por parte dos órgãos públicos. A ocupação de área do
fundo de vale caracteriza-se como provisória, aguardando, assim,
ações emergentes para sua correta e segura integração urbana.
A Figura 15 mostra uma análise da morfologia do assenta-
mento Ilha, apresentando uma perspectiva da modelagem volu-
métrica da área.
A Figura 16 é resultado de levantamento planimétrico e visa
demonstrar a situação de implantação do assentamento Ilha. O po-
Figura 14 - ‘Casa Arca de Noé’ e outras casas do assentamento Ilha
Fonte: Autoria própria (2014). sicionamento da vegetação, bem como seu porte, corresponde à

Figura 15 - Perspectiva aérea de modelagem volumétrica do assentamento Ilha 31


Fonte: Autoria própria (2014).
imagem de satélite e confrontação de dados in loco. A numeração A Tabela 1 descreve as características das unidades familiares
das edificações do assentamento apresenta a quantidade de habi- em termos de materiais, usos, tamanho e número de pavimentos.
tações que, em 2014, era de 38 unidades residenciais unifamiliares
ocupadas. Tabela 1 - Características das unidades habitacionais do assentamento Ilha
Número da Nº
Área (m²) Tipologia Construtiva Uso Observações
Edificação Pavimentos

1 15,00 1 madeira residencial


2 45,37 1 madeira residencial
3 53,08 1 alvenaria residencial
4 112,22 2 alvenaria residencial
5 54,58 1 madeira e alvenaria residencial
6 83,73 2 alvenaria residencial
7 30,00 1 alvenaria residencial
8 63,89 1 madeira residencial
9 35,00 1 madeira residencial
10 59,00 1 madeira residencial em substituição
11 78,39 1 madeira residencial
12 33,00 1 madeira residencial
13 42,00 1 madeira residencial
14 53,65 1 madeira residencial
15 50,00 1 madeira residencial
16 207,34 2 madeira e alvenaria residencial
17 106,50 1 alvenaria misto
18 16,25 1 madeira residencial
19 73,70 1 madeira residencial
20 36,75 1 madeira e alvenaria residencial
21 30,00 1 madeira e alvenaria residencial
22 12,50 1 madeira residencial
23 35,00 1 madeira residencial
24 114,00 1 madeira misto
25 14,25 1 madeira residencial
26 10,00 1 madeira residencial
27 129,83 1 madeira residencial
28 66,02 1 madeira residencial
29 127,80 1 madeira e alvenaria misto
30 95,92 1 madeira residencial
31 66,00 1 madeira residencial em substituição
32 46,80 1 alvenaria residencial
33 42,00 1 alvenaria residencial
34 73,02 1 madeira e alvenaria residencial em substituição
35 44,00 1 madeira residencial em substituição
36 15,04 1 madeira residencial
37 56,00 1 madeira residencial
Figura 16 - Implantação geral do assentamento Ilha 38 125,17 1 alvenaria residencial
Fonte: Autoria própria (2014).
32 Fonte: Autoria própria (2014).
A delimitação da área de pesquisa do assentamento Ilha foi O assentamento teve dois grandes momentos no processo
estipulada ao norte pelo limite com chácara, a leste pelo rio Barigui de evolução urbana, conforme ilustra a Figura 18. Inicialmente, foi
e a oeste pelo rio Tanguá, conforme mostra a Figura 17. A área pos- parte integrante de uma chácara que, depois de desmembrada,
sui aproximadamente 12.340,00m², distribuída da seguinte forma: recebeu a ocupação da família de seu chacareiro como primeiro
a) Somatório de áreas construídas: 2.352,81m² (38 casas morador. Estes salvaguardaram uma parte do terreno para os seus
com área em projeção); familiares, que gradualmente ocuparam os espaços próximos (1).
b) Área de ruas e servidões: 2.197,75m²; O remanescente foi parcelado e destinado a outros moradores, não
c) Área remanescente: 7.787,26m². ficando claro no relato dos moradores quem fez esse processo (2).
A taxa de ocupação, ou seja, a área impermeabilizada do O sistema viário se estabeleceu, principalmente, como pro-
solo, correspondia a 36,88%. A mancha pintada em escuro demos- longamento da Avenida Pilarzinho que, mesmo no seu trecho re-
tra essa ocupação. gular, ocupa área de preservação permanente (APP) do rio Barigui.

Figura 18 - Planta de ocupação inicial


Figura 17 - Delimitação geral de território ocupado
Fonte: Autoria própria (2014).
Fonte: Autoria própria (2014). 33
Sua largura possibilita o trânsito em duas mãos inclusive para a divisa com a chácara que originou o assentamento Ilha. Todas
caminhões de médio porte. O traçado da via é sinuoso, segue a as vias são em leito natural. Destaca-se a inexistência de passeios,
margem do rio, afastando-se de seu eixo na porção posterior. ou seja, a circulação de pedestres e de veículos é feita em mes-
Na Avenida Pilarzinho (a 90 graus), originavam-se duas ser- mo espaço. As servidões também dispõem, em seu término, de
vidões, com 3,7m de largura cada. Esta via permite o acesso de espaço ampliado para manobras de veículos, possibilitando os
veículos, em mão simples, às casas. Quando existe, o recuo das retornos viários.
edificações praticado nesta via é mínimo, cerca de 50cm, o que O parcelamento do solo (Figura 20) demonstrou certa re-
deixa as casas praticamente de portas abertas para a servidão de gularidade quanto ao traçado, às proporções e às dimensões dos
passagem (Figura 19). lotes. A divisão inicial, ocupada pela família do antigo caseiro,
Além dessas servidões, outra bifurcava-se da Avenida Pilar- estabeleceu uma divisão em lotes a partir de uma servidão a no-
zinho na entrada do assentamento. Essa é irregular, de uso exclu- venta graus (90°) com relação à via principal (Avenida Pilarzinho).
sivo da família que deu início à ocupação e estabelece, também, As outras duas tipologias de parcelamento dividem-se em:

Figura 19 - Sistema viário e retornos do assentamento Ilha Figura 20 - Planta de ordenamento de ocupação do solo
Fonte: Autoria própria (2014). Fonte: Autoria própria (2014).
34
a) Face lindeira ao rio Barigui: os lotes são parcelados de for- para os terrenos mais estreitos, este é na ordem de 2m enquanto
ma a garantir a mesma proporção em termos de área total, nos terrenos mais largos na faixa de 5m. A exceção se dá na edi-
sendo que os terrenos de menor profundidade têm testada ficação comercial que doa à rua o seu recuo, configurando-se em
mais larga e vice e versa; um largo.
b) Face lindeira ao rio Tanguá: os lotes são parcelados ten- O parcelamento do solo, embora predominantemente regu-
do as divisas laterais paralelas ao estabelecido pelo traçado lar, apresentou inflexões não paralelas em dois casos. Esses casos
inicial, são de menor testada e maior profundidade. Nessa condicionam os limites dos terrenos às casas e não o contrário.
área ocorre um tipo de subdivisão de lotes no sentido da Não se percebeu, nesses casos, nenhum litígio entre vizinhos e sim,
profundidade. a aceitação de que a obra, em sua fase de alocação, apresentou
A delimitação de lotes é marcada, normalmente, pela cons- problema de esquadro. O traçado do parcelamento é apresentado
trução de muros ou cercas, exceto na área inicial que é ocupada na Figura 21.
por aparentados. Com relação aos recuos da via principal, as casas Há apenas três casos de lotes desocupados no assentamen-
obedecem a um posicionamento afastado das testadas sendo que, to, conforme mostra a Figura 22. Os terrenos encontram-se deli-

Figura 22 - Planta de lotes desocupados e área disponível para parcelamento


Fonte: Autoria própria (2014).
Figura 21 - Planta de parcelamento do solo 35
Fonte: Autoria própria (2014).
mitados e cercados, sendo que um deles com muros fechados em pilastras de alvenaria de tijolos, sobre as quais se apoiavam. Essa
alvenaria e com portão. O ponto comum nesses terrenos foi o fato sistemática construtiva é herança da imigração italiana, predo-
de estarem em processo de aterramento. minantemente, que, instalada no Sul do Brasil no final do sécu-
Outra área subutilizada foi a gleba remanescente ao lado lo XIX, valia-se da mata de araucárias para suprir-se de material
da ocupação que, segundo os moradores, pertence ao antigo pro- construtivo. O domínio dessa técnica construtiva é simples, bem
prietário da chácara. Essa área configura-se como a mais nobre como a instrumentação do trabalho.
do conjunto, pois destaca-se como ponto focal de acesso ao as- Notou-se, no assentamento Ilha, a autoconstrução procedi-
sentamento, em cota de nível do solo mais alta, com um lago em da pelo empreendedor, geralmente o proprietário, auxiliado por
sua porção central, considerada uma APP. Pelas características am- familiares ou amigos. As tábulas de pinheiro não eram mais dis-
bientais, veremos nas conclusões deste trabalho que a área não é poníveis e foram substituídas por outras de pinho, com proprie-
passível de parcelamento. dades resistentes inferiores. A pintura das casas não era predo-
Quanto às tipologias construtivas das edificações, o sistema minante, prevalecendo a aparência natural do material, fato que
predominante é o da madeira (Figura 23). As casas foram constru- contribuía para sua decomposição pelas intempéries.
ídas através de estrutura de madeira (montantes e viguetas), com O outro sistema construtivo notado foi o de alvenaria de
vedação em tábuas (30cm x 2,5cm) arrematadas por mata-juntas blocos cerâmicos. Este sistema, mais resistente, é usado em con-
verticais (1 x 5cm). As casas foram elevadas do solo, através de junto com uma estrutura em concreto armado. As casas assim
construídas valiam-se de aterros, de forma que os baldrames
eram aparentes e executados sobre o solo. Equivaliam-se, na altu-
ra dos pisos, às casas de madeira. O complemento natural a este
sistema, o reboco, quase não era aplicado, existindo em esparsos
casos como ‘fachadismo’, ou seja, um acabamento estético que
identifica e qualifica a propriedade.
As coberturas predominantes eram em telhas cerâmicas,
existindo também coberturas em cimento amianto. O histórico de
ocupação da Ilha relata que as primeiras moradias eram barracos
de lona, logo substituídos por pequenas casas de madeira.
O uso das edificações era predominantemente residencial,
sendo que, do conjunto de 38 unidades, apenas 3 configuram-se
como de uso também comercial (Figura 24). A modalidade deste
comércio é temporária, ou seja, seu uso ocorre apenas depois das
18 horas, quando os moradores retornam de suas atividades prin-
cipais. Configuravam-se na abertura do espaço para os amigos do
assentamento, onde se disponibilizam algumas bebidas e peque-
nos lanches. Apenas um imóvel estava caracterizado tipicamen-
te como edificação comercial e dispunha de espaço de recepção
mais amplo, que incluía mesa de jogos de bilhar.
A Figura 25 destaca o número de pavimento das edifica-
ções em alvenaria e estrutura de concreto armado, em compara-
ção às demais edificações com apenas um pavimento.
Algumas residências estavam em processo de substituição (Fi-
gura 26). O motivo predominante é o comprometimento do nível
do piso com o nível atingido pelas águas quando das enchentes. A
36 Figura 23 - Planta de tipologias construtivas necessidade de elevação do nível do piso para proteção das águas
Fonte: Autoria própria (2014).
implica na inteira substituição da moradia. Normalmente, as casas
Figura 24 - Planta usos das edificações Figura 25 - Planta número de pavimentos
Fonte: Autoria própria (2014). Fonte: Autoria própria (2014).

são construídas paulatinamente no mesmo terreno e, em sua fase As áreas de encontro do assentamento acontecem principal-
final, usa-se o material da moradia anterior. mente ao longo da via de acesso principal, do lado do rio Barigui e
A ameaça de enchentes fazia com que os moradores preca- na área alargada próxima ao espaço comercial (Figura 27). Embora
vidos providenciassem aterros em seus terrenos. Os aterros, feitos esse comércio só funcione depois do horário de expediente conven-
por despejo simples de terra e de entulhos de obras demolidas, cional (após as 18 horas), o alargamento espacial dessa área geome-
eram depositados nas vias de acesso comuns e, depois, transpor- tricamente central favorece o encontro, o espaço para a recreação
das crianças e, também, para as conversas entre amigos.
tados aos terrenos. Notou-se que, depois de uma enchente, es-
Com esse descritivo físico-territorial realizado por meio de
tas ações se aceleraram, contando-se cerca de 40 cargas de terra
minuciosos levantamentos, com visitas in loco, medições de casa
(15m³ cada). Houve casos de aterros externos aos terrenos e ca- a casa e do entorno imediato, procurou-se estabelecer as relações
sas, constituindo-se de pequenos diques contra as enchentes. No analíticas entre o conjunto de edificações e o lugar de moradia. Esse
entanto, essas ações, que num primeiro momento parecem como levantamento também é revelador da forma de organização territo-
soluções ou tentam retardar as enchentes, podem provocar seu rial do assentamento, das suas potencialidades e suas fragilidades,
efeito contrário, com o carreamento desses materiais para o rio, colaborando numa leitura espacial e construtiva que pode favorecer
37
contribuindo para o assoreamento e enchentes maiores. futuras intervenções ou diretrizes para as políticas públicas.
Figura 26 - Planta de edificações em processo de substituição Figura 27 - Planta de localização de áreas de encontro
Fonte: Autoria própria (2014). Fonte: Autoria própria (2014).

3.3 Levantamento das diretrizes de ocupação nos órgãos públicos


Foram muitos os desafios encontrados no processo e na de- com dados atualizados ou, mesmo, aplicáveis à área em estudo.
finição dos parâmetros que serviram de subsídio para a tomada de Procuramos conversar com especialistas que fizessem essa trans-
decisão quanto à viabilidade ou não da regularização urbanística e posição e adequação à situação da Ilha. Também buscamos dados
fundiária do assentamento. Mais importantes até que o resultado junto aos moradores nas visitas e nas assembleias.
final, foram o caminho percorrido e as dificuldades encontradas ao Para iniciar o trabalho, organizamos um seminário, por meio
tratar de regularização fundiária em assentamentos irregulares em do qual buscamos experiências já desenvolvidas por Universidades
áreas de preservação permanente. e Organizações Não Governamentais, como forma de aprender
A Figura 28 ilustra as primeiras visitas de professores e alu- com elas. Contamos com a apresentação do projeto de extensão
nos realizadas no assentamento para conhecer a realidade local. ‘Cidades em Debate’, realizado por professores da UFPR, em 2013,
38 Nesta etapa procuramos elaborar um relatório técnico a par- projeto que abordou as características da produção dos espaços
tir de laudos encontrados em órgãos públicos, laudos nem sempre informais de moradia na RMC, a partir de dois estudos de casos:
de Energia (COPEL). Pesquisamos os Planos Diretores Municipais e
Metropolitanos existentes e o Projeto Viva Barigui4 durante o perí-
odo de fevereiro a outubro de 2014.
Vários órgãos públicos procurados se mostraram interessados
em ajudar. No entanto, as informações apresentadas, muito frag-
mentadas, nem sempre eram passíveis de aplicação, seja por sua
generalidade, seja por estarem desatualizadas. Entretanto, há ainda
que ressaltar que, para alguns técnicos de órgãos públicos, as popu-
lações em espaços informais de moradia eram consideradas ‘esper-
tas’, porque não pagavam impostos, luz e água e, ainda, ‘lucravam’
com esse ‘negócio’. Esse raciocínio, de criminalização da pobreza, já
foi amplamente discutido em vários fóruns, sendo preciso avançar,
haja vista as desigualdades sociais na produção das cidades e as difi-
Figura 28 - Primeiros contatos e visitas
culdades de acesso à moradia no mercado formal de terras.
Fonte: Autoria própria (2014). Diante dessa situação, começamos a ter dificuldades para
estabelecer parâmetros técnicos mínimos, que estivessem de acor-
do com a legislação ambiental vigente e para definir as possíveis
a Ilha (Almirante Tamandaré) e a Vila Nova Costeira (São José dos
alternativas para sanar ou amenizar o problema das enchentes na
Pinhais). Outra experiência apresentada foi a de Regularização Fun-
Ilha. Em alguns órgãos, faltavam bases cartográficas atualizadas que
diária na Vila Sabará, realizada pelos profissionais da Ambiens Co-
identificassem a presença das famílias no local. Os mapas mostravam
operativa e, por último, participamos de uma oficina prática de
que a área não era ocupada; em outros, os estudos existentes nos
Educação Popular ofertada pelo CEFURIA e pela RECID.
órgãos públicos, em escalas em geral mais genéricas, incompatíveis
Também realizamos reunião com os secretários de Governo
com a dimensão do assentamento, que não permitiam determinar
e Planejamento, Habitação, Urbanismo e Meio Ambiente de Almi-
parâmetros específicos (tipo de solo, existência ou não de banhado),
rante Tamandaré, para apresentar as atividades de extensão que
necessários para o desenvolvimento do projeto. Em outras situações,
estavam sendo desenvolvidas no assentamento Ilha e para solicitar
os parâmetros ambientais e urbanísticos eram estabelecidos de for-
o envolvimento desses órgãos, fator importante na resolução de
ma arbitrária. Em outros órgãos, a exemplo da Secretaria Municipal
problemas complexos, como a regularização fundiária em APP.
de Meio Ambiente (SMMA) de Almirante Tamandaré, seguiam-se as
Na sequência, foram iniciadas visitas a vários órgãos pú-
definições genéricas do Código Florestal, sem considerar o caso es-
blicos estaduais e municipais, para levantar informações estraté-
pecífico; as prefeituras não dispunham de corpo técnico suficiente
gicas que pudessem subsidiar possíveis projetos de intervenção
para visitas técnicas à Ilha para formalizar os parâmetros. De outro
como: cotas de inundação, faixas de preservação obrigatória, ti-
diziam não poder informar sobre a área, porque os moradores não
pos de solo do assentamento, localização das nascentes, diretri-
eram os proprietários da terra. Vendo as condições precárias de mo-
zes de ocupação do terreno, áreas não edificantes, dentre outras.
radia de grande parte do povo brasileiro, questionamos: como essas
No entanto, surgiram as primeiras dificuldades, pois essas infor-
informações podem ser de tão difícil acesso?
mações básicas nem sempre estavam acessíveis aos profissionais
Pensando nesse sentido, a definição de diretrizes urbanísti-
e, muito menos, à população.
cas ambientais para essas áreas deveria ser organizada de tal ma-
Visitamos as Secretarias de Urbanismo, Habitação e Meio
neira que pudessem ser mais acessíveis à população e fazer parte
Ambiente (das prefeituras de Curitiba e de Almirante Tamandaré),
de planos e programas de forma mais dinâmica.
a SANEPAR, o Serviço Geológico do Paraná (Mineropar), a Coorde-
nação da RMC (COMEC), o Instituto de Águas do Paraná (antiga
Superintendência de Desenvolvimento de Recursos Hídricos e Sa-
4 O Programa ‘Viva Barigui’, lançado pela Prefeitura Municipal de Curitiba, tinha como objetivo a recuperação
neamento Ambiental - SUDERHSA), o Instituto de Pesquisa e Pla- da bacia do rio Barigui, que corta o município de Curitiba em uma extensão de 60km. O programa contava com 39
recursos da Agence Française de Développement (Agência Francesa de Desenvolvimento). Eram cerca de R$ 85
nejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) e a Companhia Paranaense milhões previstos para o ‘Viva Barigui’.
Como relatado acima, entre o planejado e
o executado, encontrarmos muitas barreiras para LINHA DE TRANSMISSÃO
VIA IRREGULAR
obter as informações necessárias. Mesmo com um
corpo técnico de professores capacitados e um gru-
po de alunos envolvidos na atividade de extensão,
demoramos mais de seis meses para conseguir as
informações necessárias para elaborar o diagnósti-
co completo da área. Mas, apesar das dificuldades,
pudemos coletar várias informações importantes,
principalmente junto aos órgãos públicos, as quais
apresentaremos a seguir.
No Serviço Geológico do Paraná (Mineropar),
descobrimos que cerca de 85% do território do mu-
nicípio de Almirante Tamandaré é área de influência
do Aquífero Carst, um reservatório subterrâneo de
águas em terrenos de rochas carbonáticas, uma área
extremamente frágil que requer cuidados quanto à
sua ocupação. Assim, o município possui altas decli- APP
ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE
vidades e fragilidades ambientais, tendo pouca dis-
ponibilidade de solo para uso urbano. Os fatos de a
porção onde se encontrava o assentamento Ilha não Figura 29 - Confluência dos rios e indicação da faixa de preservação da mata ciliar
ser afetada por essa propriedade do solo, aliada à Fonte: Adaptado do Google Earth (2014).
sua localização estratégica em relação à metrópo-
le Curitiba, faziam com que houvesse uma forte pressão por ocu-
b) Área non aedificandi (proibido qualquer tipo de constru-
pação na região. Outra informação importante foi que, segundo
ção) de 15m para cada lado da Linha de Transmissão da Co-
o Projeto Geotécnico da RMC, no Mapa de Adequabilidade para
pel que existia no local.
loteamentos residenciais, de 1999, constava que o assentamento
era situado num banhado, considerado APP pela legislação federal. Cabe lembrar que as faixas de preservação permanente dos
Nas secretarias de Urbanismo e Meio Ambiente da Prefeitura rios são estabelecidas por legislações federais bastante genéricas
de Almirante Tamandaré, procuramos os parâmetros de uso e ocu- e que deixam margem a diferentes interpretações, apresentando
pação do solo, as diretrizes urbanísticas e ambientais referentes incertezas aos técnicos quanto às suas delimitações. Pela resolu-
aos terrenos localizados no final da Rua Pilarzinho, denominada ção do Conselho Nacional do Meio Ambiente 369/2006 (CONAMA,
pelos moradores de Ilha. A Secretaria de Urbanismo nos informou 2006), é possível reduzir as áreas de preservação permanente (APP)
que a área estava contida no Zoneamento Residencial 2 (ZR2), isto para 15m, nos casos de sua supressão ser comprovada para fins
é, prioritariamente residencial, coletiva ou unifamiliar, podendo se de regularização fundiária. No entanto, essa exceção parece ter se
estabelecer também comércio, serviços de bairro e outras ativida- tornado a regra e vem sendo aplicada indiscriminadamente para a
des não poluidoras. Em caso de novas construções no assentamen- regularização de loteamentos irregulares, para a construção de vias
to, estas deveriam atender aos parâmetros urbanísticos e construti- mesmo em faixas de APP reduzida, em áreas passíveis de inunda-
vos estabelecidos para esse Zoneamento. Foi também na Secretaria ção, como foi o caso do trecho regular da Avenida Pilarzinho, que
de Urbanismo que, a partir de uma conversa informal com seus oferecia acesso ao assentamento Ilha.
técnicos, descobrimos as diretrizes gerais para a área, conforme Em uma das assembleias com os moradores (Figura 30), des-
apresentado na Figura 29. cobrimos o histórico de várias transformações pelas quais o assen-
40 a) Faixas de preservação permanente de 30m praticadas para tamento passou e as ‘melhorias’ executadas por eles próprios, na
as margens dos rios Tanguá e Barigui; tentativa de fugir das enchentes.
do seu espaço, seu local de moradia, o prolongamento da Aveni-
da Pilarzinho, a servidão de passagem e o aterro de outros terre-
nos para a alocação das novas casas.
Na Prefeitura Municipal de Curitiba, conversamos com
técnicos da SMMA, da Secretaria Municipal de Obras Públicas
(SMOP) e do projeto Viva Barigui. Constatamos que as informa-
ções, fragmentadas, dificultavam o entendimento da realidade:
assuntos como execução de parques lineares e reconstituição da
mata ciliar estavam sob responsabilidade da SMMA, enquanto
que a dragagem do rio Barigui e o aumento do leito do rio diziam
respeito à SMOP.
Embora as divulgações do Programa Viva Barigui afirmas-
sem que o rio seria recuperado e que as matas ciliares seriam rees-
Figura 30 - Assembleias realizadas na Ilha
tabelecidas, na prática, em reuniões com técnicos das secretarias,
Fonte: Autoria própria (2014). chegamos à conclusão de que nenhuma ação do projeto atingiria
a região do assentamento Ilha, apesar de sua propaganda afirmar
que a recuperação abrangeria todo o Barigui.
De acordo com registros obtidos na SMMS da Prefeitura
Em termos ambientais, verificamos que a área estava lo-
Municipal de Curitiba, inicialmente o rio Barigui conformava-se
calizada numa planície de inundação dos rios Barigui e Tanguá,
em um meandro que contornava grande parte do assentamento
isto é, a área fazia parte do leito do rio. Além disso, segundo a
(Figura 31).
legislação ambiental, estava localizada em APP, onde deveriam
Não encontramos dados que precisassem a data de sua existir, na beira do rio, matas ciliares que ajudassem a preservar
modificação e qual foi o órgão responsável pelas obras de retifi- suas margens, sendo áreas impróprias para ocupação humana.
cação do rio Barigui, mas, segundo os moradores, as obras foram Essas duas considerações poderiam ser flexibilizadas pelas
realizadas em meados de 1995, em parceria com as prefeituras de já citadas resoluções do CONAMA, se não fosse outro dado ain-
Almirante Tamandaré e de Curitiba, promovendo a eliminação do da pior, referente às inundações no assentamento: na época do
canal que cruzava o assentamento (Figura 32). projeto, não existia na Ilha nenhum tipo de sistema público de
Posteriormente, esse canal foi aterrado pelos próprios mo- drenagem, o que contribuía para a ocorrência das enchentes.
radores. Nessa mesma época, houve, ainda segundo os morado- O Plano Diretor de Drenagem (SUDERHSA, 2002) para a ba-
res, a execução da dragagem do rio Barigui. O rio Tanguá tam- cia do rio Iguaçu apresentou levantamento sobre as principais
bém sofreu modificações, com retificação de um pequeno trecho, áreas sujeitas a enchentes, onde era possível visualizar a man-
feita por membros do assentamento Ilha. O que anteriormente cha de inundação e as cotas que afetavam a Ilha e seu entorno.
descrevia um ‘s’ passou a ser um percurso mais retilíneo e mais Segundo os dados do plano, em relação ao nível do mar, a Ilha
distante das casas da Ilha (Figura 33). Uma limpeza informal de encontra-se numa altitude de 904m, e a mancha de inundação,
suas margens também foi realizada pelos moradores. Essas ações numa cota de 906m. Essas cotas referiam-se ao cenário da pior
ocorreram em meados de 1995, na tentativa de conter as enchen- chuva em 25 anos. Em síntese, esse estudo indicou que, a cada
tes sofridas regularmente. 25 anos, o assentamento Ilha estaria sujeito a inundações que
Conforme já comentado, outros aterros irregulares foram poderiam atingir até 2m de altura (Figura 34).
executados com anuência dos moradores, que acreditavam que De acordo com os moradores, a pior enchente vivenciada
essas transformações poderiam amenizar as enchentes ou ofere- pelo assentamento ocorreu em janeiro de 2011, quando a água
cer melhores condições de moradia. Tornou-se prática frequente atingiu a altura de cerca de 1,2m das casas. Durante a realiza-
caçambas despejarem clandestinamente, no local, entulhos de ção do projeto (07 de junho de 2014), e após seu término (24
41
construção civil, o que pode ser observado inclusive durante o de dezembro de 2014), novas enchentes ocorreram, porém em
projeto. Com esses entulhos, os moradores foram autoproduzin- menor proporção. Segundo os moradores, a chuva característica
Figura 31 - Percurso inicial dos rios Figura 32 - Rio Barigui retificado Figura 33 - Percurso atual dos rios
Fonte: Adaptado do IPPUC (2014). Fonte: Adaptado do IPPUC (2014). Fonte: Adaptado do IPPUC (2014).

d) A inundação na Ilha não era um problema pontual, mas


que acarretava nas inundações na Ilha possui alto nível de preci-
complexo, sendo consequência de todas as modificações
pitação e ocorria num curto espaço de tempo.
efetuadas pela urbanização ao longo da extensão da bacia
A impermeabilização do solo, a supressão da mata ciliar, o
do rio Barigui.
assoreamento e a consequente diminuição da secção do leito dos
rios foram fatores agravantes das enchentes. Quando a chuva era Sendo assim, uma ação ou obra pontual, como, por exem-
intensa, o solo impermeabilizado ou sem vegetação não conse- plo, uma bacia de contenção ou dragagem do rio, não solucionaria
guia absorver o suficiente da água, que escorria e lavava o solo, o problema das inundações no assentamento, levando em consi-
indo sempre em direção da cota mais baixa, justamente onde es- deração a vida do rio, da mata ciliar e da preservação das áreas
tavam as casas dos moradores da Ilha. permeáveis.
O assentamento Ilha apresenta as seguintes características: Segundo depoimento de alguns moradores, quando ocorriam
a) Um fenômeno hidrológico, visto a área se configurar num enchentes na região em que se localizava o assentamento Ilha, várias
fundo de vale, planície de inundação dos rios; vezes o nível do rio Barigui passava da cota da Ponte Vila Martha, si-
b) O rio Barigui, que passou por retificação, tenderia de for- tuada na divisa intermunicipal entre Curitiba e Almirante Tamandaré.
ma resiliente a voltar aos seus meandros originais; Devido a essa informação, achamos importante realizar um
42 c) A supressão da mata ciliar ao longo de todo o leito do rio levantamento topográfico altimétrico, para verificar o desnível do
era um fator agravante; terreno pertencente ao assentamento Ilha a partir dessa ponte. O
Figura 34 - Mancha de alagamento
Fonte: Adaptado de SUDERHSA (2002).

levantamento altimétrico tomou como marco zero a Ponte Vila Quando iniciamos as atividades de extensão, não tínhamos
Martha (Ponto P0), seguindo em direção ao assentamento, pas- informações sobre o comportamento das enchentes: sua frequên-
sando pelos pontos P1 a P8, até o fim da Avenida Pilarzinho (P9), cia, área de abrangência, intensidade, dentre outras. Algumas des-
conforme a Figura 35. sas informações surgiram durante uma cheia ocorrida em junho de
Ao inserir na estação total, a medida da altura do equipa- 2014. Na ocasião, pudemos compreender que as águas não provi-
mento, em cada ponto estacionado, e a do bastão com o prisma, nham do extravasamento do rio Barigui. Com frequência, as águas
foi possível obter as distâncias horizontais (DH) e os desníveis verti- que inundavam a Ilha provinham do rio Tanguá, da enxurrada que
cais (DV), em metros, dos pontos percorridos. Com as informações vinha ‘detrás’ do assentamento, inundando a área do tanque de
dos desníveis verticais, calculamos as cotas de todos os pontos e, peixes e as demais áreas, até encontrar com as águas do rio Barigui.
com isso, foi possível desenhar o perfil do terreno (Gráfico 2). Segundo os moradores, em episódios mais fortes, o rio Ba-
Com esse estudo verificou-se que o desnível entre a Pon- rigui também extravasava, encontrando as águas do rio Tanguá.
te Vila Martha e o assentamento Ilha era menor que 1,773m, ou
Essas informações, obtidas pelo relato dos moradores, revelam um
seja, a declividade do terreno era de 0,33%, e a inclinação, de
comportamento hídrico da bacia que não constava nos mapas ou
0°11’23,87”. Portanto, nas enchentes em que o nível do rio Barigui
ultrapassava a cota dessa ponte, o assentamento Ilha ficava quase estudos dos órgãos técnicos e que, para nós, era importante, a fim
2m embaixo da água, o que reforçou os dados do Plano Diretor de de determinar se alguma parte do assentamento estaria livre dos
episódios de inundações. Assim, esse episódio indicou que a área,
43
Drenagem (SUDERHSA, 2002) e do especialista em hidrologia, que
apontaram a região como área sujeita a inundações periódicas. anteriormente julgada livre da inundação, era igualmente atingida.
Ao longo da trajetória da construção do diagnóstico, houve
também informações desencontradas, sendo uma das mais impor-
tantes a indefinição dos limites administrativos do assentamento
Ilha, devido às obras de retificação do rio Barigui. Desencontros
nas informações recebidas não esclareciam se a área pertencia ao
Município de Curitiba ou a Almirante Tamandaré. O esclarecimento
dessa questão era muito importante, pois poderia mudar o rumo
das propostas no assentamento, uma vez que as políticas urbanas
no Brasil são territorializadas e, como tais, é bastante distinta a
capacidade administrativa de intervenção de um e de outro muni-
cípio. Caso a Ilha pertencesse a Curitiba, poder-se-iam prever solu-
ções dentro do projeto ‘Viva Barigui’ ou obras pelo Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC), com planos de reassentamento
ou remanejamento, como estava em curso com a ocupação irregu-
lar no Jardim Bracatinga, área vizinha da margem esquerda do rio
Barigui. Essa possibilidade trouxe grandes expectativas à equipe do
projeto, que preferiu não a comunicar aos moradores, uma vez que
as informações eram desencontradas.
De acordo com os moradores, no endereço de correio apa-
recia o Município de Almirante Tamandaré, porém, no documento
consultado pela equipe no cartório de registro de imóveis, grande
Figura 35 - Trajeto percorrido no levantamento topográfico altimétrico parte da área do assentamento Ilha pertencia oficialmente à Com-
Fonte: Adaptado do Google Earth (2014). panhia de Habitação de Curitiba (COHAB-CT). Apenas depois das
visitas e conversas com técnicos da COHAB-CT e com a Secretaria
de Urbanismo de Almirante Tamandaré, com o mapeamento do
registro de imóveis e outras plantas cadastrais, essa dúvida foi
sanada: a Ilha pertencia a Almirante Ta-
mandaré. Pelas investigações realizadas,
chegamos à conclusão de que a priori-
dade dos órgãos públicos era seguir o
limite administrativo imposto pelo novo
curso do rio Barigui após sua retificação.
Segundo os técnicos da COHAB-CT, o re-
gistro de imóveis seria atualizado com a
inclusão dessa informação, e a Ilha esta-
ria totalmente inserida no município de
Almirante Tamandaré. Apesar de os mo-
radores já se considerarem pertencentes
44 a essa cidade, a definição poderia trazer
Gráfico 2 - Perfil longitudinal do terreno resultante do levantado topográfico altimétrico maior capacidade de intervenção e
Fonte: Autoria própria (2014).
acesso a serviços públicos, devido às melhores condições quan- nos rios Barigui e Tanguá, este cenário pode mudar e apresentar
to aos recursos disponíveis no município de Curitiba. Por isso, a novas possibilidades. Salientamos que o espaço urbano sofre cons-
equipe se dedicou a esclarecer a que município de fato o assen- tantes mudanças empreendidas por diferentes atores sociais, apon-
tamento pertencia. tando que essa leitura necessita estar em constante reavaliação, pois
Quanto à condição fundiária da terra, para a Secretaria de se podem descobrir novas variáveis e outros rumos.
Urbanismo da Prefeitura de Almirante Tamandaré, parte da área A construção do diagnóstico foi sempre permeada de dúvi-
pertencia a uma tradicional família da região, parte dos moradores das e esperanças, mas a impossibilidade de regularização naquelas
tinha direito de posse por um mandato de reintegração, parte da circunstâncias e momento caiu como um ‘balde de água fria’ sobre
área não tinha inscrição fiscal (porque ainda era considerada como toda a equipe e ainda mais sobre os moradores, esperançosos de
área rural na planta cadastral desatualizada de Almirante Taman- alternativas. A Figura 36 ilustra as condicionantes físico-ambien-
daré) e, por fim, grande parte era compreendida como APP segun- tais do assentamento Ilha, como a cota de nível mais baixa do seu
do a legislação ambiental. entorno imediato, o lago na área livre de moradia e a proximidade
Dentro deste contexto - de informações imprecisas, das difi- dos rios, características que contribuem com as inundações fre-
culdades encontradas, da capacidade técnica e temporal da equipe quentes no local.
de extensão, dos técnicos e especialistas com
quem conseguimos conversar nos órgãos pú-
blicos, dos estudos disponíveis – os dados le-
vantados indicaram que, com as condições do
assentamento Ilha naquele momento (declivi-
dades, proximidade das casas dos rios Barigui
e Tanguá, ocupação de áreas legalmente pro-
tegidas) -, não era possível propor um projeto
de regularização fundiária e urbanística das
famílias no território ocupado, como inicial-
mente se imaginara.
O principal motivo dessa decisão foi não
se poder assumir a permanência das famílias em
locais que ofereciam riscos aos moradores, nes-
te caso, o das enchentes. O mapeamento das
cotas de inundação, associado aos episódios
de inundação, ao levantamento altimétrico e à
localização específica no encontro de dois rios
(formando um ‘V’), levou-nos a concluir que a
Ilha funciona como uma bacia de contenção
das águas das chuvas do seu entorno imediato,
não havendo condições de encaminhar, naque-
le momento, ações de regularização.
Entendemos, porém, que esse diagnósti-
co não é estanque, e que, caso novas ações ou 45
obras de contenção de cheias sejam realizadas Figura 36 - Croqui do assentamento mostrando os condicionantes ambientais
Fonte: Autoria própria (2014).
Capítulo 4

E AGORA, JOSÉ?
Repensando novos rumos do projeto

47
C
onforme já apontado, quando começamos o projeto de ex- Então, percebemos que muitas vezes falávamos em meto-
tensão, não sabíamos bem onde tudo isto iria dar. Tínhamos dologia participativa e trabalhávamos de forma convencional: aca-
objetivos, mas a própria realidade foi nos mostrando outros bávamos envolvidos em atividades, relatórios e reuniões no LUPA e
vieses. Havia a dúvida se a regularização seria possível, mas, igual- perdíamos a dimensão do envolvimento dos moradores. Percebe-
mente, havia a forte esperança de encontrar uma solução para os mos que uma metodologia participativa dava muito mais trabalho,
problemas dos conflitos entre moradia e meio ambiente presen- porque tínhamos de nos desdobrar em horários que fugiam ao de
nosso trabalho, pois o tempo da Ilha era outro. Deu trabalho, por-
tes na Ilha. Preocupávamo-nos tanto em não criar expectativas nos
que exigia muitas explicações técnicas e que deviam ser dialogadas
moradores, mas, ao que parece, nós mesmos relutamos e lutamos
de forma que os moradores pudessem entender claramente o que
em aceitar o diagnóstico. Relutamos pelo compromisso que tínha- tais questões significavam. Deu trabalho, porque exigiu um esforço
mos com os moradores, e tentamos checar as informações, de di- de transposição de valores, ou seja, o que era certo para mim podia
ferentes óticas, a fim de não corrermos o risco de apresentar da- não o ser para o outro. Enquanto para nós a Ilha poderia repre-
dos errôneos ou mesmo informações que causassem expectativas sentar um local de más condições de moradia, de risco, para eles
que não poderíamos cumprir. Não aceitar também motivou novas era um ‘Jardim do Éden’, conforme apareceu nas falas de alguns
pesquisas mais aprofundadas, mas que acabaram por corroborar moradores: ‘porque, claro, se fosse um lugar ruim, ninguém tava
a impossibilidade da regularização naquele momento, devido aos morando’ e ‘ninguém quer sair daqui’.
prognósticos das enchentes e à inexistência de ações viáveis, na- Em uma metodologia participativa, é preciso aprender a
compreender o conceito local do que é importante, que pode ser
quele cenário, para contenção das mesmas.
diametralmente oposto para nós da Universidade. Colocar-se no lu-
Aos poucos, notamos que não havíamos envolvido comple-
gar do outro, compreender seus desejos, suas ânsias e sofrimentos
tamente os moradores no processo, que, durante as dificuldades podem ser questões das mais difíceis de um profissional conquis-
encontradas na elaboração do diagnóstico, ficamos algum tempo tar e, infelizmente, são pouco debatidas e vivenciadas nos cursos
em reuniões na universidade, sem insistir no convite para que al- universitários. Parece muito mais razoável permanecer no campo
guns moradores viessem à UTFPR para juntos discutirmos a ques- técnico (no qual tenho expertise e que me dá segurança de trazer
tão dos entraves encontrados. respostas prontas para tudo), do que sair da zona de conforto para
Nesse momento, tivemos várias reuniões com a educadora construir juntos as questões que afetarão sobremaneira a vida das
social do CEFURIA. Parecia que ela também estava tentando nos pessoas e do seu lugar.
convencer sobre a visão política de um assentamento. Enquanto Ficamos algumas semanas remoendo as questões até conse-
guirmos marcar nova assembleia para apresentar o diagnóstico. Fi-
falávamos de questões técnicas, de conhecimentos elaborados, ela
camos tristes também, porque nos afeiçoamos aos moradores; tris-
nos falava da prática, da experiência vivida e sentida; de estar no
tes por não podermos trazer boas notícias. Somente conseguimos
meio dos moradores, da vontade que eles tinham de resolver tudo falar disso mais tarde, quando a educadora popular refletiu que o
aquilo, mas que não sabiam ao certo como fazer. Ela nos ensinava ideal é, sim, unir o conhecimento acadêmico ao saber popular. Mas
sobre a possibilidade de mudanças (nós sabíamos sobre isso, mas como fazer isso, já que não é uma linha reta? “Somos um coletivo
só na teoria), sobre a necessidade de as pessoas se mexerem, de 49
de apoiadores. Não vivemos aqui, mas entendemos que vocês não
buscarem seus direitos, de se apropriarem de sua cidadania. precisam viver isto”.
Depois de algum tempo, após digerir a frustração, conse-
guimos realizar a assembleia para relatar aos moradores as conclu-
sões. Eles, que inicialmente nos receberam com certa expectativa,
acabaram por ficar mais quietos e meio desanimados. Trouxemos
uma pessoa de outro assentamento para falar sobre suas experi-
ências.
A educadora popular questionou o grupo de moradores, no
sentido de tomarem uma posição se queriam ou não prosseguir
com o movimento da busca de melhor moradia, e pensar numa
alternativa em outro local, pois não adiantaria ‘esquecer’ da re-
alidade, apesar de dura, pois, mais cedo ou mais tarde, alguém
poderia ameaçá-los, tirá-los dali, e, além disso, eles continuariam a
ter que enfrentar as enchentes enquanto ali permanecessem. Sen-
timos que alguns poucos se animaram para traçar algumas metas;
outros nem tanto.
De fato, conforme já comentado, a participação dos mora-
dores ao longo de todo o projeto foi menor que o esperado, sendo
praticamente os mesmos que compareciam às assembleias. Com
a apresentação do diagnóstico, houve uma nova queda na par-
ticipação, o que criava uma sensação de injustiça e irritação nos
moradores participantes, pois sabiam que abriam mão de seu tem-
po de descanso e de outras ocupações, para discutir assuntos de
interesse de todos.
Ante o diagnóstico, surgiu a questão: o que faremos já que
a regularização fundiária e a urbanização do local já não são pos-
síveis neste momento? Os vínculos afetivos com os moradores já
estavam criados, de modo que, apesar de os prazos formais para o
projeto já estarem se esgotando, a equipe se mobilizou para pen-
sar alternativas a curto, médio e logo prazo para a Ilha. Não se
tratava de um compromisso acadêmico, nem apenas ético, mas
de um compromisso de pessoas que viveram uma história juntas e
construíram laços.

50
Capítulo 5

NAVEGAR É PRECISO:
Em busca de alternativas para o assentamento Ilha

51
E
mbora o diagnóstico tenha apontado que, considerando as tes visava evitar perdas humanas e reduzir os danos e prejuízos
condições daquele momento, não seria possível a regulariza- materiais dos moradores do assentamento Ilha.
ção fundiária das famílias no assentamento Ilha, cabe lembrar Entramos em contato com a Defesa Civil de Almirante Taman-
que um número expressivo de famílias morava havia mais de 20 daré e de Curitiba, sendo que ambas atuam apenas na assistência
anos no local, o que assegurava o direito à posse da terra e aos e ajuda à população atingida quando da ocorrência de chuvas in-
recursos dos moradores investidos na construção das casas. O di- tensas, não sendo possível obter nenhum apoio naquele momento
reito à moradia está contemplado por diversas normas, desde a no âmbito preventivo. Uma das professoras fez uma visita à Defesa
Declaração Universal dos Direitos do Homem (A FRANÇA NO BRA- Civil de Itajaí (SC). Seu excelente sistema de monitoramento de rios
SIL, 2015), a Carta Mundial pelo Direito à Cidade (CARTA MUNDIAL possibilita uma ação preventiva e de evacuação dos locais antes de
PELO DIREITO À CIDADE, 2006), a Carta de Recife por um Brasil as enchentes ocorrerem. Essa visita, muito importante, permitiu
Sem Despejos (INSTITUTO PÓLIS, 2006), reforçado pelo Estatuto da perceber a complexidade da questão do monitoramento dos rios e
Cidade (Lei Federal 10.257/2001) (BRASIL, 2001) e outras leis espe- da elaboração de um plano de contingência para enchentes. Além
cíficas no Brasil. No artigo 6º da Constituição Brasileira, consta que disso, o contato foi proveitoso, pois recebemos doação de cartilhas
a moradia é um direito social, de modo que compete ao Estado e educativas, e o coordenador da Defesa Civil se dispôs a fazer uma
à sociedade implementá-la, porque, “[...] sem um lugar adequado visita e palestra informativa na Ilha no ano de 2015.
para se viver, é difícil manter a educação e o emprego, a saúde fica Com base nessas informações, ocorreu-nos iniciar as ativi-
precária e a participação social fica impedida” (MARRA, 2010, p. dades com uma assembleia visando conhecer a realidade dos mo-
6353). radores durante e após os eventos de enchentes, os seus dramas
Com a impossibilidade de atingir os objetivos iniciais do pro- e o que faziam para minimizar esse problema. Convidamos todos
jeto, nossa preocupação concentrou-se em saber como poderíamos os moradores para participar da assembleia, que aconteceu num
contribuir com os moradores, visto que as atividades de extensão e sábado à tarde. De início, nos apresentamos, esclarecendo o ob-
o Curso de Arquitetura e Urbanismo se propõem a trabalhar dentro jetivo daquele encontro. Na sequência, destacamos a importância
de um caráter propositivo, de elaboração de projetos. Igualmen- do planejamento, de traçar um plano de ação prévio preparatório e
te, procuramos a contribuição de outras áreas do conhecimento, da organização coletiva necessária para enfrentar os momentos de
visando proporcionar condições mais dignas de vida para aquelas enchentes. Falamos sobre as medidas que deveriam ser tomadas
pessoas. antes, durante e depois, para evitar perdas materiais e humanas,
Pensou-se então em dois grupos de alternativas: as de curto contaminações, contração de doenças e acidentes domésticos, en-
e médio prazo referentes a ações de enfrentamento das enchentes tre outros. Esse encontro foi enriquecido com o depoimento de
e, outras ações mais complexas, de médio e longo prazo, que se uma das moradoras. Relatou ter um filho deficiente físico e, por
referiam à busca de alternativas de moradia em outro local, prefe- isso, seu marido havia construído uma rampa para poder removê-
rencialmente nas redondezas. -lo facilmente de casa, além de já terem instalado diversas pratelei-
Em relação às ações de curto e médio prazo referentes às ras altas para proteger roupas, alimentos e outros objetos, no caso
enchentes, uma das professoras e uma bolsista, em pesquisas na de enchentes. Ao fim, entregamos, aos moradores as cartilhas com
internet, descobriram um pluviômetro caseiro e diversos materiais orientações sobre as enchentes, doadas pela Defesa Civil de Itajaí
informativos sobre como agir antes, durante e após as enchentes. (SC). Aproveitamos, também, para fornecer um folder informativo
Elaborar um plano de contingências para a prevenção de enchen- sobre o assunto, elaborado pela equipe do PROEXT/2014, junta- 53
mente com os telefones dos órgãos que deveriam ser acionados
em situações de emergência.
O primeiro passo havia sido dado com essa assembleia. En-
tretanto, para que o plano emergencial, no caso de enchentes,
fosse eficaz, entendíamos que o acompanhamento das condições
climáticas e o monitoramento das chuvas realizados por alguns
moradores eram primordiais. Assim sendo, uma das medidas era
compartilhar com os moradores conhecimentos e instrumentos
que os auxiliassem a reconhecer a chegada de chuvas intensas e
prever situações emergenciais de enchentes, a fim de não mais se-
rem surpreendidos, nem terem que passar as noites em claro, ‘vi-
giando o rio’. Entre as soluções encontradas, estava a confecção
de pluviômetros (Figura 37) e a instalação e leituras de réguas de
medição da profundidade, nos rios Barigui e Tanguá (Figura 38).
Desse modo, prosseguimos com a ideia de dar condições
aos moradores de confeccionarem os próprios pluviômetros e de
capacitarmos alguns voluntários para avaliação das chuvas e lei-
turas das réguas, com o objetivo de identificarem e monitorarem
situações de iminência de risco de enchente. Essa ação visou fa-
zê-los se apropriar de conhecimentos que lhes proporcionassem
mais recursos para enfrentar sua situação de habitação precária,
e que não ficassem na dependência da equipe do projeto ou de Figura 38 - Régua para leitura do nível do rio
outro agente externo. Fonte: Ambrosio (2015).

A construção dos pluviômetros artesanais era


relativamente simples e acessível e, para isso, orga-
nizamos uma oficina, na qual convidamos, nova-
mente, todos os moradores para participarem, em
um sábado, no período da tarde. O dia e o período
foram escolhidos por eles, mas, novamente, poucos
compareceram...
Abrimos os trabalhos explicando que o pluvi-
ômetro é um instrumento utilizado para medir a al-
tura total de água precipitada, que seria a leitura da
lâmina de água acumulada durante a chuva, sendo
que seus dados eram sempre fornecidos em milíme-
tros por dia ou em milímetros por chuva, e, também,
reforçamos a importância de anotar as leituras rea-
lizadas. Para confeccionar o pluviômetro, contamos
com materiais, doados pela universidade e pelos
próprios moradores. Confeccionamos coletivamente
54 Figura 37 - Modelo adotado de pluviômetro artesanal os pluviômetros, a partir das explicações dadas por
Fonte: Adaptado de CÁLCULO (2015). uma das professoras (Figura 39).
Nessa mesma oficina, aproveitamos para construir e instalar
as réguas nos dois rios, Barigui e Tanguá. O propósito era possibi-
litar, a uma distância segura, a leitura e o monitoramento de seus
níveis. As réguas foram construídas em tubo de Policloreto de Vinil
(PVC), com 4m de altura, preenchido com cimento e areia, sendo
que o primeiro metro foi utilizado para fixação no solo, e a cada
intervalo de um metro foram se alternando 5cm das cores verde
(nível normal), amarelo (atenção à variação do nível) e vermelho
(estado de alerta) com branco (Figura 41).

Figura 39 - Oficina de construção de pluviômetros, com moradores do


assentamento Ilha
Fonte: Autoria própria (2014).

Junto com a construção do pluviômetro, fornecemos aos


presentes uma planilha para registro dos dados de precipitação
(Figura 40). Explicamos, então, que precisariam observar a quan-
tidade de chuva acumulada no pluviômetro (em mm) e anotar o
dia e a hora. Comentamos ser importante que, após a medição
de cada evento de chuva, o pluviômetro fosse esvaziado, para a
realização de nova leitura e também para evitar a dengue. Salienta-
mos, ainda, que o total de 70mm de chuva, dentro de um período
de 72 horas (3 dias), era um valor crítico, por isso, deveriam ficar Figura 41 - Régua instalada no rio Barigui
em estado de alerta quando a medição começasse a se aproximar Fonte: Autoria própria (2014).
dessa marca.
Com a fixação das réguas em uma das margens dos rios,
seria possível estipular o tempo que o rio poderia levar para ter o
seu nível elevado em 1m, ao verificar o nível inicial do rio e após
uma hora de intervalo. Apesar de não serem dispositivos precisos,
o objetivo era de que os moradores tivessem meios de prever o
tempo necessário para o transbordamento dos rios, no caso de
chuvas intensas.
Essas ações também trouxeram frustrações à equipe téc-
nica, que tanto se preparou para as oficinas, às quais compare-
ceram poucas pessoas (menos de 10% das famílias) (Figura 42).
Figura 40 - Planilha para preenchimento das leituras pluviométricas Os professores e alunos saíram desanimados. Ponderamos
Fonte: Autoria própria (2014). que a ausência dos moradores seria uma reação à notícia dada na
assembleia anterior, de que não seriam possíveis a regularização 55
fundiária e ações mais contundentes para o combate às enchen-
tes e que tal reação era compreensível. Concluímos que se espera-
va uma reação como essa, que era preciso certo tempo para que
fosse assimilada e se pensasse em outras saídas. Posteriormente,
o assentamento foi atingido por fortes chuvas na véspera do na-
tal de 2014 e, por telefonema, soubemos que, embora a força
das águas tivesse levado a régua do rio, os pluviômetros foram
importantes para indicar a quantidade de chuva suficiente para o
transbordamento do rio.
Ainda em relação às ações de enfrentamento das enchentes,
a equipe obteve, durante a realização do projeto, a informação de
que o Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres
Naturais (CEMADEN) possuía o projeto ‘Pluviômetros nas comuni-
dades’, que realizava a doação de pluviômetros semiautomáticos
para populações em áreas de risco, o que possibilitaria um moni-
toramento mais preciso das chuvas e enchentes. Em assembleia,
consultou-se os moradores sobre o interesse em fazer a solicitação
e que, em caso afirmativo, se a mesma poderia ser realizada em
nome da Associação dos Catadores de Materiais Reciclados Ilha,
uma vez que o CEMADEN condicionava a doação ao cadastro de
uma entidade organizada. Os moradores concordaram, e um deles
se prontificou a ser o responsável pelo pluviômetro e pelas medi-
ções, caso a doação se concretizasse, sendo que, até o encerramen-
to do projeto, o CEMADEN ainda não havia dado um retorno. A
equipe do PROEXT/2014 comprometeu-se em acompanhar o pro-
cesso, mesmo após o término da atividade de extensão.
Essas foram, portanto, as ações de curto e médio prazo em
relação à questão das enchentes. Foram relevantes, uma vez que
o tempo de permanência dos moradores no local ainda é incerto.
Ainda que pretendam lutar por uma moradia em outro local, o
processo é longo e implica desenvolver a organização comunitá-
ria ainda frágil na Ilha, a obtenção de recursos financeiros, dentre
outros. Ou seja, ainda teriam que enfrentar as enchentes enquan-
to ali residissem.
Concomitantemente às ações relativas às enchentes, a
equipe buscou soluções de longo prazo, referentes às alternativas
Figura 42 - Localização das famílias que confeccionaram e instalaram os pluviômetros
artesanais de habitação em outro local. Para tanto, realizaram-se duas pes-
Fonte: Adaptado do IPPUC (2014). quisas: uma sobre a disponibilidade e o valor de terrenos nas pro-
ximidades; a outra sobre os programas de habitação disponíveis.
Realizamos pesquisas prévias na internet e procuramos o
setor de habitação da Caixa Econômica Federal (CEF) de Almirante
Tamandaré, a fim de sabermos quais eram os programas habita-
cionais disponíveis para a faixa salarial de 0 a 3 salários mínimos,
56 buscando descrever o contexto do assentamento Ilha, para definir
qual seria o programa mais adequado, caso fossem necessárias
ações de remoção das áreas de risco ou os moradores decidissem Essa etapa também nos propiciou mais um aprendizado so-
lutar por uma moradia digna em outro local. bre as metodologias participativas. Saímos afoitos na busca dos
A equipe foi muito bem recebida pelos profissionais da CEF, terrenos, e iríamos apresentar os resultados na assembleia sobre
que esclareceram dúvidas e transmitiram informações importan- ações nos casos de enchente. Porém, a educadora popular do
tes sobre o programa habitacional MCMV. Também, recorremos CEFURIA nos interrompeu, indicando que, além de ser informa-
ao relato de pessoas que já passaram por essa experiência, que ção demasiada para um só dia, a busca de terrenos era um passo
contaram os desafios e vantagens da utilização do programa ‘Mi- posterior. Primeiro, era preciso reunir os moradores, debater se
nha casa, minha vida – entidades’ (MCMV-E), a fim de conhecer de fato desejavam sair do local, para então pensar ‘para onde’ e
melhor os desafios de sua implantação. ‘como’. Se o assentamento não estivesse fortalecido, não conse-
Pautados nas informações obtidas, analisamos as diversas guiria se mobilizar para tal ação, uma vez que a mesma requer or-
modalidades do MCMV (entidades, governo e construtoras), e ganização popular, haja vista os desafios que teriam de enfrentar
concluímos que a melhor opção para os moradores da Ilha pare- (encontrar terrenos que atendam às demandas do assentamento
cia ser o MCMV-E, com o necessário apoio da Prefeitura Municipal a um preço viável, os entraves burocráticos e políticos) e as ex-
de Almirante Tamandaré, uma vez que, além de adequar-se às periências que ela conhecia de outros assentamentos mostravam
particularidades da população (renda, trabalho informal, área de que a luta por uma moradia digna era árdua e longa.
risco e outras), julgou-se que a participação dos moradores ine- O objetivo dessas ações referentes às alternativas de habi-
rente a esse programa traria vantagens financeiras (menor custo tação (pesquisa de terrenos e sobre programas habitacionais) era
da obra), na qualidade das moradias (maiores do que as unidades que os moradores podiam pleitear, junto à Prefeitura de Almiran-
das construtoras e adequadas às necessidades e demandas dos te Tamandaré e, também, através do Programa MCMV, recursos
moradores), além de favorecer o fortalecimento da organização para comprar o terreno e construir suas moradias em um local
política e cidadã dos moradores. fora de áreas de risco e de preservação ambiental. Caso obtives-
Apresentamos resumo das informações, em forma de qua- sem êxito nessa etapa, a equipe da universidade se prontificou
dro comparativo (diferentes modalidades do MCMV), em folheto em dar continuidade às atividades de extensão, realizando os pro-
redigido de forma a facilitar a compreensão. O material foi entre- jetos, assessorias de construção para que o assentamento pudes-
gue em assembleia, e uma moradora se prontificou a distribuí-lo se usufruir de conhecimentos técnicos sem pagar por eles, pois
aos ausentes. habitação é um direito.
Iniciamos uma busca via internet de disponibilidade, loca- A busca de novas alternativas para o assentamento Ilha
lização e valores de terrenos à venda na região. Priorizou-se en- também evidenciou quantas dificuldades é preciso enfrentar, no
contrar terrenos próximos à Ilha, uma vez que a localização desta sistema capitalista, para implementar políticas habitacionais sé-
era considerada uma das principais vantagens de morar no local, rias voltadas à população de baixa renda. É o caso do programa
devido à proximidade do centro e dos serviços urbanos (transpor- MCMV, cuja implantação foi acompanhada por uma absurda es-
te coletivo, posto de saúde, escola) de Curitiba e do galpão da peculação imobiliária. Assim, os valores dos financiamentos ofe-
associação de reciclagem. Quanto às áreas disponíveis, os preços recidos na época à população pobre (R$ 64.000,00) tornaram-se
variavam bastante, conforme a declividade, a localização próxima irrisórios, não cobrindo custos com a compra de terreno, a cons-
a avenidas ou estradas, enfim, a infraestrutura disponível. A prin- trução e a infraestrutura, muito menos para a comprar de um
cipal dificuldade foi encontrar uma gleba do tamanho necessá- imóvel pronto.
rio para todas as famílias juntas. Mas nem os moradores sabiam
quem estaria disposto a essa decisão, para eles tão radical, de
mudar toda a vida já consolidada até então na Ilha. Também foi
protocolada, na Prefeitura de Almirante Tamandaré, uma solicita-
ção sobre a disponibilidade de terrenos de posse do Município,
que poderiam ser utilizados para realocar as famílias da Ilha. A
resposta foi que o município não dispunha de áreas para esse fim.
57
Capítulo 6

ALEGRIAS, DORES E ESPERANÇAS:


O que aprendemos com o projeto

59
E
ntre acertos e erros, alegrias e frustrações, o projeto propor-
cionou à equipe importantes aprendizados, dentre os quais
o de que o problema habitacional da Ilha não está contido
apenas na escala do assentamento, mas das transformações urba-
nas do entorno imediato, a exemplo do estudo aprofundado do
comportamento hidrológico dos rios e com obras de grande porte
na contenção das cheias. Com isso, a perspectiva da abordagem
centrou-se na ótica das políticas públicas municipais e regionais,
envolvendo os municípios de Almirante Tamandaré e Curitiba, visto
que o assentamento se encontra numa zona de fronteira, no limi-
te administrativo dos dois municípios, às margens de importantes
rios como o Barigui e Tanguá.
Com isso, a melhoria no assentamento Ilha requer que a
esfera pública assuma, de forma prioritária e integrada, políticas
públicas nas áreas da habitação e do meio ambiente, drenagem
urbana e prevenção de enchentes, políticas que venham a mudar
o cenário atualmente imposto: área que se transformou numa
bacia de contenção das águas das chuvas do entorno. Não veri-
ficamos ações integradas no projeto ‘Viva Barigui’, porque esse
projeto contempla ações em apenas uma das margens do Rio,
muito menos ações da Prefeitura Municipal de Almirante Taman-
daré nesse sentido.
Queremos, com isso, salientar a importância da dimensão
das políticas públicas urbanas para a solução de problemas com-
plexos e que, apesar das várias normativas e planos existentes,
coletados nos órgãos públicos, sua gestão ainda é fracionada e,
quando realizada, feita ao sabor das urgências.
A integração das políticas públicas e o compromisso sério
com o problema habitacional do Município, entendendo que este é
parte da forma de produção da cidade, são algumas das bandeiras
de reivindicação para promover ações mais comprometidas com a
realidade social da população em espaços informais de moradia.
Em dezembro de 2014, realizamos a assembleia de encerra-
Figura 43 - Assembleia de encerramento das atividades de extensão
mento das atividades do projeto de Extensão (Figura 43), visando Fotos: Autoria própria (2014).
fazer uma retrospectiva, avaliar a validade do projeto e planejar os
novos passos. 61
Iniciou-se o encontro com a apresentação de fantoches de de procurar novas alternativas habitacionais fora da Ilha, devido ao
bonecos, que contaram a história do assentamento, atraindo, de trabalho, às burocracias, ao tempo, à localização, às exigências da
forma lúdica e descontraída, muitas crianças e adultos. Em se- organização coletiva, ao tamanho da casa, aos recursos já inves-
guida, fez-se um retrospecto das principais decisões tomadas ao tidos no local, que, bem ou mal, representam para os moradores
longo da trajetória do projeto, explicando novamente os motivos uma vida de dedicação.
determinantes que nos levaram à conclusão de que, no momento, A educadora popular chamou nossa atenção para o fato de
a área não era passível de regularização fundiária: estudos técnicos que o crescimento das pessoas em comunidade não necessaria-
revelaram que, conforme a intensidade pluviométrica, a área sofre- mente se apresenta de forma evidente, linear e imediata, mas sim
ria constantes inundações, não sobrando lugar para relocação ou a de forma qualitativa. Destacou, ainda, que, apesar de nossa sensa-
construção de casas de maneira segura. ção de fracasso, pela impossibilidade da regularização fundiária e
Os novos rumos tomados foram encontrar mecanismos de pela pouca participação dos moradores nas assembleias, a atuação
prevenção de riscos e formas seguras de acesso a outros locais, na Ilha tinha feito diferença para os moradores. Citou o exemplo
em caso de inundação. Instalaram-se pluviômetros e réguas de rio de um morador, que ligou para uma das educadoras, dizendo que
para a medição das chuvas e para estudar, no caso específico, quais um dos vizinhos estava construindo um muro que poderia agravar
seriam os indicadores de risco para o assentamento. Solicitou-se, o risco de enchentes. Segundo a educadora, com o projeto, ‘eles
para instalação na Ilha, ao CEMADEN, um pluviômetro semiauto- começaram a entender que estão em uma área de risco e que tem
mático, que faria medições e controle constante das chuvas da pessoas e situações que podem acirrar os riscos’.
área de forma mais precisa. Da reunião, também participou uma Entendemos que o tempo de apreensão do assentamento
moradora de Almirante Tamandaré, líder do Movimento de Luta era diferente do tempo de execução de um projeto de extensão
por Moradia. A moradora explicou como eles têm trabalhado com universitária. Até mesmo a equipe técnica demorou muito para
os programas do MCMV-E. começar a entender as necessidades dos moradores e a realidade
Ficou combinado que os professores da UTFPR envolvidos concreta da Ilha. Quando isso aconteceu, o ano acadêmico se apro-
no projeto permaneceriam à disposição dos moradores, caso estes ximava do fim, e fomos obrigados a ‘encerrar’ o projeto quando
sentissem necessidade de dar continuidade ao monitoramento das da exigência da elaboração de um relatório oficial a ser entregue
chuvas ou para ações referentes à Associação de Catadores de Ma- às fontes de financiamento dos Ministérios envolvidos. Os tempos,
terial Reciclável e futuras alternativas habitacionais. efetivamente, são distintos: os tempos de integração com o assen-
Nesta assembleia, foram entregues aos moradores as carti- tamento, entre a própria equipe técnica, das prefeituras e órgãos
lhas produzidas pela equipe, com as principais conclusões do pro- governamentais que precisaram ser consultadas e que demonstra-
jeto de extensão, o livro Lixo Extraordinário, de Vik Muniz, e o filme ram falta de dados para as necessidades do projeto, de compreen-
homônimo, com a direção de Karen Harley, João Jardim e Lucy são das demandas dos moradores e, também, das possíveis solu-
Walker. Os moradores demonstraram alegria e espanto, pois não ções. Como sincronizar tudo isso? São perguntas que infelizmente
esperavam a surpresa. só conseguimos responder depois que o tempo passou.
Na cartilha ilustrada, reconheceram-se nas fotos e procura- A dimensão interdisciplinar também foi um aspecto interes-
vam os desenhos de suas casas. Nos rostos, os sentimentos eram sante do projeto. Essa interdisciplinaridade fez com que novos as-
muitos diversos: dúvidas quanto a um futuro incerto, mas a certeza pectos sob a ótica do morador, da academia e da educação popular
de que, organizados, poderiam realizar mais ações. A triste consta- fossem levados em consideração, mudando, em vários momentos,
tação: não era possível regularizar o local e que a Prefeitura de Al- os rumos inicialmente traçados. Houve de fato uma troca de sabe-
mirante Tamandaré não realizaria ações em prol dos moradores da res dentro da equipe: psicólogas aprendendo termos técnicos da
Ilha, porque não existe, no Município, uma política habitacional, Engenharia Civil, da Arquitetura e Urbanismo; e, engenheiros e ar-
nem estrutura organizada para ações da Defesa Civil; e, ainda, que, quitetos descobrindo formas de se comunicar com os moradores.
no momento, não havia lugar melhor para se instalar do que o que Como já assinalado, o projeto também propiciou troca de
eles ocupavam, próximo a Curitiba e aproveitando a infraestrutura saberes populares e acadêmicos, de modo democrático e não hie-
62 da Capital, mesmo tendo de virar-se como podem nas enchentes, rarquizado, consoante a Educação Popular Freiriana, a exemplo das
que, talvez para alguns, não represente um risco. Havia certo receio informações dos moradores sobre a retificação do rio Barigui - da-
dos que não encontramos em nenhum documento oficial pesquisa- riscos de acidente de trabalho. Além disso, avaliaram as condi-
do - e das oficinas de prevenção de enchentes e de construção dos ções ambientais e elaboraram propostas para adequação do lo-
pluviômetros, nas quais possibilitamos o acesso à conhecimentos e cal. Os resultados obtidos poderão ser utilizados pela associação
à tecnologia que promovessem maior conhecimento da dinâmica dos catadores para participar de editais e pleitear financiamentos
das enchentes e das chuvas e ações de enfrentamento dos riscos. para a implantação das melhorias.
As atividades realizadas pela universidade no assentamento Além do projeto de extensão, outra ação foi a criação, no cur-
ultrapassaram o escopo do projeto. Foram levadas para as prá- so de Arquitetura e Urbanismo da UTFPR, de disciplinas optativas, na
ticas de ensino nas disciplinas de Saneamento do Curso de Ar- área de Habitação Social e de Intervenções em assentamentos pre-
quitetura e Urbanismo. Os alunos se envolveram plenamente nas cários, que poderão futuramente fazer parte da grade permanente;
atividades do barracão, para dar suporte à Associação de Cata- disciplinas essas que promovam a reflexão crítica e propositiva do es-
dores de Materiais Recicláveis da Ilha. Uma das atividades foi a tudante com relação à temática da produção da cidade e à habitação
elaboração de projeto arquitetônico preliminar (Figura 44), para de interesse social. Ainda há muito a avançar no que tange ao papel
a melhoria das condições de trabalho e avaliação das condições da Universidade Pública, no perfil do aluno egresso em Arquitetura e
de abastecimento de água potável e de coleta de esgoto para os Urbanismo, nas iniciativas de promoção social e nas propostas mais
moradores do assentamento. humanas para as cidades, embora o curso tenha se mostrado aberto
Os estudantes do Curso de Técnico em Segurança do Traba- a discutir essas questões. Quem sabe possamos avançar nos rumos de
lho (disciplina Saneamento Básico) também participaram de ati- uma educação mais libertadora, na construção do ‘Arquiteto e Urba-
vidades relacionadas ao barracão da Associação de Catadores de nista Popular’, aquele que olha detidamente para a realidade e reflete
Material Reciclável. Esses estudantes elaboraram uma relação de sobre como suas proposições podem colaborar na construção de ci-
equipamentos de proteção individual necessários para minimizar dades justas e democráticas.
Ao término do projeto, permaneceu o vínculo com os mo-
radores, vínculo formado ao longo das inúmeras visitas e as-
sembleias, alimentado pela acolhida dos moradores, que não só
abriram suas casas para a realização das atividades, mas nos re-
ceberam com carinho: como esquecer o bolinho de chuva que a
esposa de um morador fez para servir em uma assembleia, o fato
de terem aberto sua casa de piso branco, num dia de chuva e bar-
ro, o bolo de coco para a assembleia final, os apertos de mão, os
sorrisos? Conhecimentos, aromas, paladares, afetos... tudo isso
fez parte dessa experiência.
Assim, não era possível encerrar de forma brusca essa rela-
ção estabelecida. Embora não mais vinculado oficialmente a um
projeto de extensão, continuamos a caminhar junto com a Ilha.
Compartilhamos de suas conquistas e também de suas dores:
quando chovia forte, ligávamos para algum morador, para saber
se estava tudo bem. Infelizmente, na véspera do Natal de 2014,
uma forte chuva gerou um alagamento. Telefonamos, aflitos. Uma
professora foi ao local, e mais uma vez os moradores nos ensina-
ram sobre sua força: ao invés de tristeza e lágrimas, vimos a alegria
Figura 44 - Proposta de leiaute para o galpão da Associação de Catadores de de uma criança que veio agradecer as bonecas que um professor
Materiais Recicláveis Ilha havia lhe dado (Fala para aquele professor que eu o amo muito!), e
Fonte: Autoria própria (2014). recebemos os votos de um feliz Natal da moradora, que procurou
nos tranquilizar de que tudo estava bem na Ilha.
63
Até o momento da conclusão deste livro, continuamos a
acompanhar o andamento do pedido do pluviômetro semiauto-
mático solicitado ao CEMADEN (Figura 45), sem definições claras
de sua instalação.
A associação dos catadores será incluída no projeto de incuba-
ção de empreendimentos econômicos solidários, o qual terá início em
2015 na universidade e que concorrerá ao edital do PROEXT 2016.

Figura 45 - Projeto Pluviômetro nas Comunidades


Fonte: CEMADEN (2014).

Com a Ilha, aprendemos que, entre o planejado e o executa-


do há uma distância; que os saberes popular e acadêmico podem
e devem dialogar, que construir um processo participativo é algo
árduo, mas rico e que os vínculos afetivos vão além dos calendários
64 e burocracias...
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v. 4, 2002. Disponível em: <http://www.aguasparana.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=265>. Acesso em: 13 jun. 2014.

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Capa: Papel Triplex 250 gramas
Miolo: Papel Offset 90 gramas
Fontes: Minion Pro (subtítulos e texto) e Century Gothic (títulos)
Tiragem: 500 exemplares
Livro impresso na JZ Cópias e Impressões Ltda.
Curitiba
2015
Impresso no Brasil
Printed in Brazil

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