1) O príncipe Áster tem sonhos recorrentes com uma mulher misteriosa que dança e desaparece, deixando-o frustrado.
2) Áster é pego em uma orgia com prostitutas por sua mãe, a rainha Zahara.
3) Zahara repreende Áster e seus irmãos por desrespeitarem o palácio real com tais festividades, e diz que Áster precisa se casar para assumir suas responsabilidades como futuro faraó.
1) O príncipe Áster tem sonhos recorrentes com uma mulher misteriosa que dança e desaparece, deixando-o frustrado.
2) Áster é pego em uma orgia com prostitutas por sua mãe, a rainha Zahara.
3) Zahara repreende Áster e seus irmãos por desrespeitarem o palácio real com tais festividades, e diz que Áster precisa se casar para assumir suas responsabilidades como futuro faraó.
1) O príncipe Áster tem sonhos recorrentes com uma mulher misteriosa que dança e desaparece, deixando-o frustrado.
2) Áster é pego em uma orgia com prostitutas por sua mãe, a rainha Zahara.
3) Zahara repreende Áster e seus irmãos por desrespeitarem o palácio real com tais festividades, e diz que Áster precisa se casar para assumir suas responsabilidades como futuro faraó.
1) O príncipe Áster tem sonhos recorrentes com uma mulher misteriosa que dança e desaparece, deixando-o frustrado.
2) Áster é pego em uma orgia com prostitutas por sua mãe, a rainha Zahara.
3) Zahara repreende Áster e seus irmãos por desrespeitarem o palácio real com tais festividades, e diz que Áster precisa se casar para assumir suas responsabilidades como futuro faraó.
DEITADO EM UM TAPETE DE TECIDO VERMELHO e sedoso, o
príncipe Áster assistia o fogo baixo das lanternas de vidro produzir uma atraente iluminação no corpo desnudo da bela mulher que dançava diante dele. Ele admirava as curvas longas e sensuais que se remexiam em um ritmo hipnótico e as pontas dos seus dedos pinicavam pelo desejo de tocá- la, mesmo sabendo que era impossível. A pele dela reluzia como ouro, e os longos cabelos, pretos como obsidiana, esvoaçavam ao redor do corpo curvilíneo. Ela era a beleza em toda sua forma, mas nem uma outra característica dela o deixava mais fascinado do que os olhos: eles transmitiam audácia, domínio e luxúria. Todas essas emoções poderosas misturadas e unificadas no tom de verde celeste. Ela era a personificação perfeita de uma deusa, e ele a desejava há tanto tempo que sequer conseguia conter a frustração de não poder tê-la. Se ao menos existisse um meio de saber como ela se chamava, ele atravessaria as areias do deserto, os desafios do tempo para encontrá-la e, então, ele a condenaria à danação eterna e a torturaria de forma impiedosa até que ela lhe dissesse o porquê de castigá-lo noite após noite, há sete longos anos. Os passos da dança a levaram até ele, e os lábios pintados de ruge se abriram em um sorriso. Ela se curvou diante do príncipe para sussurrar algo em seu ouvido. Ele teve a ínfima esperança de que lhe desse uma pista que o fizesse chegar até ela, mas não, eram sempre as mesmas palavras: — Meu destino. E assim, como em todas as outras vezes, desapareceu em meio a uma nuvem de fumaça. Áster sentiu o toque de uma mão pequena serpentear por seu abdômen e percebeu que já não estava com sua dançarina dos sonhos. Ainda foi capaz de ouvir o sussurro distante da voz doce em algum lugar da consciência, mas sabia que não passava disso. Uma grande irritação o abateu, e Áster cerrou os punhos para controlar a raiva destrutiva. Nem os deuses saberiam explicar o porquê, e, para dizer a verdade, ele já desistira de entender as razões por trás daqueles sonhos, mas a mesma maldita mulher os invadia todas as noites. Procurou por aqueles olhos em vários rostos no decorrer dos últimos sete anos. Em cada canto da cidade e em cada uma por quem passou. Sempre sem resultados. Nada. Ela parecia existir apenas em seus sonhos, como um fruto ilícito de sua mente distorcida. Sempre sorria com malícia, sempre dançava, deixando para trás apenas uma frase sem sentido e uma ereção latejante entre as pernas do príncipe. Áster ergueu o pescoço para as duas mulheres nuas esparramadas ao seu lado, e lampejos da noite anterior lhe clarearam a mente meio bêbada. Com a visão periférica, encontrou seus irmãos em situações um pouco mais deploráveis que a dele. Ramessés, “o prodigioso”, caçula da família, repousava a cara sobre o traseiro de uma messalina seminua; e o irmão do meio, Darwish, “o astuto”, invicto guerreiro de combate e príncipe indelével, roncava em uma poça do próprio vômito. Por todos os lados era possível ver os destroços do que antes foram belas louças de cerâmica. O tapete de mil fios que cobria o chão, presente de um imperador persa, estava manchado de vinho e Amon-Rá sabia mais o quê. Uma das meretrizes esfregou os seios de forma manhosa no dorso do braço de Áster, enquanto dava um sorriso sinuoso em direção a saliência no saiote do príncipe. Lá no fundo do seu subconsciente, Áster viu os olhos verdes da mulher que provocou sua luxúria, contudo, ele a ignorou e se concentrou em desfrutar uma segunda vez dos lábios volumosos da messalina de garganta profunda. Porém, como nada em sua vida ia de acordo com sua vontade, as portas do grande salão foram escancaradas e a presença taciturna da rainha tomou o ambiente, acordando todos dentro do cômodo e arruinando de vez os planos do príncipe para aquela manhã. As servas da rainha andaram até as janelas de persianas e as abriram, abruptas. Áster fechou os olhos quando a luz ofuscante do sol os machucou e, só então, percebeu que sua cabeça doía como se tivessem enterrado um machado no meio do seu crânio. ─ Saiam todas. ─ A rainha ordenou com sua voz de soberana. As meretrizes se apressaram pelo salão, recolheram as vestes espalhadas e foram embora tão rápidas que o príncipe sequer teve tempo de perguntar o nome daquela com a boca divina. Quando não restou mais ninguém além dos príncipes e da rainha dentro do espaço iluminado pelos impertinentes raios solares, os olhos do primogênito se encontraram com os da mulher parada no centro do cômodo. A postura dela se equiparava a de um guerreiro sanguinário em um campo de batalha, ameaçadora e inclemente. Ela era capaz de derrubar o mais destemido dos homens apenas com a força de sua ira, inclusive ele mesmo, mas Áster preferia virar um eunuco a ter que admitir tal coisa em voz alta. Não era para menos que ela era a rainha soberana e, para a mais absoluta falta de sorte do príncipe, a mãe dele. A matrona andou a passos tácitos até a grande mesa de banquete e os três filhos observaram o seu caminhar de forma cautelosa e em silêncio. Qualquer movimento brusco poderia provocar uma reação catastrófica. Eles aprenderam a temer a fúria da mãe. Zahara pegou um cálice de prata meio amaçado e derramou no chão o restante do vinho que estava dentro. — Eu já recebi imperadores, príncipes e reis de várias províncias neste salão. Já celebrei inúmeros banquetes nesta mesa, inclusive o do meu casamento, e vocês conseguiram tirar toda a importância disso em apenas uma noite, quando de forma tão irresponsável transformaram este lugar em um antro de hedonismo e depravação. Ela soltou a taça no chão ao concluir, causando um estrondo. Estava furiosa, para o terror dos três príncipes. — Quem nos dedurou dessa vez? — Áster foi o mais corajoso dos três e fez a pergunta que pairava na mente deles. — E quem mais nos deduraria? Óbvio, foi Kamilah. — Darwish resmungou, os olhos azuis do príncipe de ébano cintilavam de raiva por ser pego. — Não envolvam a irmã de vocês nisso. — Zahara os silenciou. — Como esperavam que eu não soubesse? O palácio inteiro ouviu a algazarra que vocês faziam. Todos só falam de uma coisa! Os três ficaram em silêncio mediante o argumento irrefutável. Os dois príncipes mais novos tiveram a decência de mostrar constrangimento diante da mãe, já o primogênito manteve a postura autoritária e desafiou Zahara com o olhar. — Vocês não se dão conta de que desonram a mim e a irmã de vocês cada vez que promovem essas festividades imundas? Parecem até gregos! Os filhos olharam para a mãe como se ela os tivesse xingado do pior nome possível. — Mãe, nós acabamos de retornar de uma caçada de semanas, um pouco de diversão é o mínimo que merecemos. — Cale-se Darwish ou jogarei minha fúria sobre você antes do tempo. — Ela deu um olhar tão implacável para o príncipe de ébano que o pobre coitado quase sumiu de tanto que se encolheu. Áster rolou os olhos. — Eu me pergunto em que momento errei na criação de vocês. A cada nova semana vocês inventam um motivo mais fútil para promover essas orgias usando os deuses como justificativa. Acham mesmo que os deuses estão satisfeitos com o que fazem? Nenhum dos três príncipes disse nada. Ramessés tentava a todo custo ficar invisível em um canto da sala, estava tão pálido que bem poderia se fundir à parede e ninguém perceberia. Os olhos azuis da rainha caíram sobre o filho primogênito e mais teimoso, foi quando Áster soube que tudo se resumia a maldição que o perseguia desde o dia do seu nascimento. — Quando você se dará conta de que não é mais um garoto? Quando começará a ter responsabilidades? — Tão cedo, espero — respondeu, fazendo pouco da situação. Zahara suspirou fundo, segurando-se para não atirar um vaso na cabeça da sua cria. Violência nunca foi uma saída para a rainha, embora ela costumasse puxar as orelhas dos filhos quando ainda eram meninos. Até sentia falta da época que podia controlá-los apenas com isso, se naqueles dias fosse assim, todos os seus problemas já estariam resolvidos. — Você será o rei desta terra! Nunca vi alguém tão despreparado quanto você. É assim que governará o seu povo? Desperdiçando comida e bebida e passando suas noites rodeado de mulheres em orgias? Áster sorriu, exibindo os dentes bem alinhados. — Me parece um futuro bastante interessante. — Você precisa de uma esposa! — gritou Zahara, e Áster não pôde reprimir o riso de escárnio que escapou por seus lábios. Ele precisava de muitas coisas. Disciplina? Talvez. Um pouco de pudor? Provável. Mais meia hora com aquela messalina de lábios macios? Com certeza! De uma esposa? Disso eu não preciso. Não mesmo! — Por anos eu dei a você a chance de ser um homem digno de sua posição e encontrar para si uma mulher boa. Você, por outro lado, espantou a todas, uma a uma, até não restar mais uma única pretendente. — O príncipe mal conseguiu controlar o semblante orgulhoso. — Até mesmo seu pai acredita que você já passou de todos os limites. O sorriso de Áster despencou, seu rosto enrugou pelo desgosto absoluto e cada nervo de seu corpo grande enrijeceu. — Desde quando o poderoso faraó se importa com qualquer coisa que eu faça? — Ele usou de todo o seu sarcasmo para fazer a pergunta. A rainha suspirou e andou até ele, tocou com cuidado na face direita do filho e, por um momento, Áster viu aquele brilho de amor maternal que já não via há muito tempo nos olhos dela. — Ele pode não se importar, mas eu me importo o bastante para tomar uma atitude. A nuca de Áster se arrepiou com o tom decidido que Zahara usou e se distanciou dela. — O que quer dizer? A rainha endireitou a postura e, em questão de dois instantes, aquela na frente de Áster já não era mais sua mãe, mas a inclemente rainha Zahara. A única pessoa que podia colocar rédeas nele e a última que Áster queria ver. — Pouco antes de vir para cá eu reuni o conselho e chegamos à conclusão de que Astória precisa de mudanças. A começar por vocês. — Ela encarou os três filhos. — Todos vocês já passaram da idade de se casarem. Em especial você, Áster, fará isso ou perderá seu direito de nascença. Não será mais o líder dessa nação. Áster deu de ombros. — Ótimo, nunca quis ser rei. Ela, acaso, não sabe que ao me proibir de ser um faraó me faz um grande favor? Zahara permaneceu impassível em resposta ao afronte, e Áster soube que tinha algo mais. — Não é apenas isso que perderá — prosseguiu a rainha, ainda com aquele semblante severo. — Ao dizer que perderá seu direito de nascença, eu me refiro a tudo. Nem uma terra, nem um tesouro. Você será exilado Áster, não terá mais contato com nenhum dos seus irmãos. As palavras da rainha o atingiram de forma covarde. O coração de Áster parou diante da resposta e ele sentiu a pancada da traição em seu peito. Devia ter previsto que uma hora ou outra sua mãe descobriria um jeito de atingi-lo. Um jeito de dissuadi-lo a aceitar algo que considerava abominável. Deu um passo à frente, trêmulo. — Não podem fazer isso. — As palavras escaparam em um resfolego, e logo ele estava em fúria. Bateu a mão no peito onde mais lhe doía. — Que espécie de mãe é você que condena o próprio filho ao exílio? Zahara engoliu em seco, seus olhos cheios de coragem fraquejaram por um momento. — Tudo que faço é pensando no seu bem. Uma gargalhada desprovida de emoção rasgou a garganta de Áster. — Me separando dos meus irmãos? Me obrigando a me casar mesmo sabendo que isso me faria um completo infeliz? Excelente maneira de demonstrar o seu afeto por mim. — Áster. — Ramessés chamou o irmão, o tom de voz era uma mensagem explícita para que Áster tomasse cuidado com as palavras. Mas o príncipe herdeiro não queria ouvir ninguém naquele momento, estava convencido de que nada o faria mudar de ideia sobre se casar. Nada! Apontou um dedo para aquela que se dizia sua genitora e se encheu de coragem. Faria o último apelo. Se não fosse o suficiente para fazer Zahara voltar atrás, então nada mais seria. — Se fizer isso, saiba que nunca perdoarei você. Me perderá para sempre como filho. — Áster, não diga algo de que se arrependerá, tolo! — Darwish tentou trazer algum pingo de juízo para o príncipe desnaturado. Sim, talvez seja uma atitude extrema demais. Áster sabia, mas estava pronto para arcar com as consequências. Zahara entendia o que o casamento representava para ele, sabia do mal que lhe causaria ao separá-lo dos irmãos, sabia que ele nunca aceitaria se afastar. A rainha usava isso de maneira baixa para chantageá-lo e fazê-lo aceitar uma esposa. Se Zahara era capaz de ir tão longe sem se importar com as vontades dele, então ele também seria capaz de fazer o mesmo, com toda a sua crueldade. — Eu sinto muito que tenha que ser assim. — Ela disse, mas era claro que não sentia nada. Uma indignação corrosiva invadiu o peito do príncipe ao ver que a rainha estava irredutível em sua decisão. — Saio de viagem ainda hoje. Atravessarei o deserto pelo tempo que for necessário, irei de palácio em palácio, templo em templo, mas só voltarei quando encontrar a mulher que amolecerá o coração que eu e seu pai endurecemos, meu filho. Tal mulher não existia e, se existisse, Áster a destruiria até não restar nada além de ódio e rancor. Nada na terra seria capaz de mudar o que ele se tornara, muito menos algo tão fraco e volátil quanto uma mulher. — Mãe, isso pode levar meses. Não é seguro. — Ramessés foi o único que se mostrou preocupado com Zahara. A rainha tocou no rosto do filho mais moço e o puxou para beijá-lo na testa. Ramessés sempre fora o filho mais atencioso. Ele não merecia o futuro que o aguardava, e Zahara sofria por saber que a culpa por tudo aquilo que seus filhos passavam, e passariam, era dela. — Não se preocupe, levarei comigo soldados e minhas donzelas mais fiéis. Reze para os deuses, meu precioso, peça que eu encontre essa mulher o mais rápido possível, só assim voltarei para casa. Ao dizer isso, Zahara olhou no rosto de cada um dos filhos, demorando-se no do príncipe que se mantinha sombrio com os punhos cerrados dos lados do corpanzil. Áster ainda viu nos olhos da mãe o desejo de ir até ele, mas o orgulho a impediu. — Esteja esperando por sua noiva, Áster. — A rainha disse as palavras de despedida e lhe deu as costas. Caminhou em direção as portas de saída do grande salão antes que seu lado maternal a fizesse mudar de ideia. — Muito bem, traga-a, mas saiba que arruinará para sempre a vida dessa pobre infeliz! O príncipe gritou, mas foi inútil: a rainha já partira. • Nove meses depois •
ATRAVESSANDO UM OCEANO INTEIRO DE AREIA
VERMELHA, escondido entre montanhas de pedras tão antigas quanto o tempo, ficava o oásis de Astarte. Um paraíso cheio de belezas naturais perdido no meio do deserto. O lugar era quase desconhecido por completo para o restante do mundo. Para se chegar até ele, o forasteiro teria que viajar por dezenas de dias e noites, enfrentar o sol escaldante do Egito, as areias inconstantes do deserto e os animais peçonhentos que se escondiam na obscuridade da noite. Devido ao difícil acesso que lá ficava o templo das sacerdotisas do faraó. Moças que eram tiradas de suas casas ainda jovens e levadas para lá, onde eram ensinadas e preparadas até os dezoito anos quando, em uma cerimônia grandiosa, juravam fidelidade aos deuses e anos de servidão como sacerdotisas do faraó. Estas moças eram conhecidas como as esposas do deus Amon-Rá. Ao fazerem o juramento, abdicavam do casamento, dos filhos e viviam apenas para preparar novas moças para a geração seguinte. Assim, perpetuavam a tradição. Uma dessas moças era Zaya. A única filha mulher de doze irmãos. Nem sempre Zaya quis ser uma esposa de Rá, houve uma época em que ela era livre para escolher ser o que queria. Seu pai era um mercador e era muito comum que ela e a família vivessem como beduínos, viajando de cidade em cidade por todo o Egito à procura de bons compradores. Por onde passava, Zaya chamava atenção por suas características. Desde pequena a menina já tinha traços marcantes que a distinguiam como única. Quem batia os olhos nela podia dizer com segurança que seria muito bela um dia. A menina não precisava dizer nada. Tinha apenas aquela veia encantadora que fisgava a afeição das pessoas, era como se sua doçura trouxesse à tona o que as pessoas tinham de melhor. E isso, ligado ao fato de que era muito inteligente, transformou-a em motivo de orgulho para os pais. Seu pai era um homem bondoso e a amou como um pai deve amar um filho, mas após a partida de sua mãe, ele mudou de forma tão drástica que apagou qualquer lembrança do homem que fora uma vez. Passou a evitar Zaya e não conseguia olhar nos olhos dela sem se encolher de ódio. Guardava um rancor monstruoso. A menina era muito parecida com a mãe, ele dizia, aqueles olhos que viam demais, aqueles cabelos escuros demais e aquele corpo que não deveria pertencer a uma mulher de boa índole. Ela herdara, assim como a beleza, as raízes impuras da mãe. Os anos foram passando e Zaya cresceu. Aquela beleza, que antes era pura e encantadora, moldou-se em algo mais feminino e maduro, passou a despertar a lascívia nos homens, e um desses fora seu irmão mais velho. Ravic sempre demonstrara posse e ciúme excessivo por Zaya, mesmo quando ela era uma menina. A princípio ela acreditava que era apenas um sentimento de dever fraternal, por ser a única filha mulher entre seus irmãos, era natural que Ravic desejasse protegê-la. Por ela estava tudo bem, até que os ataques de possessividade se tornaram incômodos e as investidas se tornaram mais descaradas. Mesmo sendo muito inocente sobre os homens, ela sentia que não era correto. Primeiro Zaya passou a perceber que ele a olhava demais em momentos que ela estava distraída. Isso se tornou tão grave a ponto de Ravic se tornar a sombra dela e a perseguir onde quer que Zaya fosse. Ela mesma já o flagrara várias vezes observando-a enquanto ela se banhava nas margens dos rios. Mesmo quando Zaya parou de se banhar por dias, ele passou a invadir sua barraca durante a noite para observá-la durante o sono. Ela se sentia apavorada, sabia que uma hora Ravic se cansaria de apenas olhá-la e tentaria fazer algo muito pior. Então resolveu se queixar com o pai, esperando que ele a protegesse. Por semanas seu rosto ardeu pelo tapa que recebeu. O pai a culpou. “Está em seu sangue”, ele gritava. Era uma mulher sem honra e corrompia o coração dos bons homens com sua profanidade e devassidão, assim como sua mãe fizera. E dessa maneira Zaya foi parar em Astarte. Há quase sete anos ela era escrava do próprio desejo de liberdade. Seu peito doía pelos anseios do seu coração partido e, em meio a solidão, chorava de tristeza. Mesmo ali rodeada pelos deuses que fora duramente ensinada a adorar, Zaya questionava sua própria fé. Dedicara a vida inteira àquelas crenças, assim como fora instruída a fazer, e só o que teve em troca de sua subserviência foram perdas e provações. Talvez o pai dela tivesse razão no fim de tudo. As palavras que ele lhe dissera na última vez em que ela o viu se repetiam na cabeça de Zaya noite após noite como ecos dos seus pesadelos e da verdade que ela se recusava a enfrentar. Zaya era uma mulher impura de alma e, por esse motivo, os deuses não olhavam por ela. Duas semanas, era esse o tempo que lhe restava. Em duas semanas ela se tornaria uma mulher diante das leis do seu povo e faria seu juramento para com os deuses, depois disso nunca mais poderia fugir do seu destino. Nunca mais poderia sair de Astarte. Não existia uma só alma viva que fora parar no templo por livre vontade. Além da tristeza constante por estarem longe de suas famílias, ainda havia todo o abuso físico exercido pelas sacerdotisas mais velhas. Tudo funcionava em uma hierarquia. Primeiro vinha a grã-sacerdotisa, a maior autoridade dentro do templo, depois as sacerdotisas mais velhas — algumas estavam lá há tanto tempo que se esqueceram que existia todo um mundo inexplorado fora dali —, e, por último, vinham as noviças, em que Zaya se encaixava. Como a entrada de homens era proibida em Astarte, o trabalho braçal era distribuído entre as noviças. As moças que vinham de famílias nobres tinham a sorte de pegar trabalhos mais leves, como tecelãs, cozinheiras, ou ficavam a preparar os templos para as cerimônias diárias. Enquanto as outras, de origem mais pobre, pegavam o trabalho pesado nos campos. Empurravam arados e colhiam trigo. Em Astarte o solo era fértil e as águas eram as mais limpas de todo o Egito. Ali elas produziam cevada e papiro em abundância, mas boa parte deles ia direto para as grandes cidades. Embora o lugar tivesse riquezas em fartura, elas não viviam em meio à pompa. Suas roupas eram feitas de linho grosso, mal lavrado, produzido pelas próprias sacerdotisas, e não podiam usar tintura no rosto ou qualquer adorno pelo corpo. Isso era de uso exclusivo das sacerdotisas mais velhas. Todos os dias eram as mesmas refeições: pão e água e, às vezes, quando a colheita era abençoada, elas tinham alguma fruta. Viver de modo simples era um fundamento para ser uma esposa de Amon-Rá. Eram proibidas de fazerem ou terem qualquer coisa que pudesse desvirtuá-las dos seus propósitos. Ainda mais quando o assunto eram os desejos da carne, “Esses são os mais traiçoeiros.”, diziam. O destino de uma mulher por vezes era terrível, Zaya aprendera muito cedo e da pior forma possível. Seu espírito aventureiro teve que ser reprimido e seu coração que ansiava por liberdade era silenciado noite após noite. Vez ou outra, ao longo dos anos, ela pensou na possibilidade de fugir, mas mesmo que levasse suprimentos o suficiente para um exército, o destino no deserto era incerto demais para arriscar. Se ao menos houvesse a garantia de uma morte rápida, mas nem isso. Já abandonara as esperanças, ou acontecia um milagre ou ficaria enclausurada entre aquelas paredes de adobe para sempre. Naquela etapa de sua vida Zaya faria qualquer coisa para se ver longe dali. Assim que terminou seus afazeres do dia, andou a longas passadas pelos corredores do pequeno palácio das esposas até chegar no cômodo que compartilhava com mais oito mulheres. Ao entrar no quarto estreito e mal- iluminado ela se assustou ao ver que estavam no meio de uma completa e barulhenta desordem. Todas as noviças andavam de um lado para o outro eufóricas, experimentavam vestidos, pintavam o rosto com tinturas coloridas, cobriam-se de acessórios. Zaya franziu o cenho, desnorteada. — Em nome de Rá, o que está havendo? — indagou para ninguém em especial. — Zaya! Darissa exclamou ao vê-la. A jovem largou a túnica azul que tinha nas mãos e correu até ela. — Onde você estava? Procurei você por toda parte! — Ela parecia afoita. — Ocupada com as ovelhas. — Zaya cutucou a ponta do dedo onde entrara uma farpa. — Então por isso não sabe de nada. — O rosto de Darissa mal conseguia se conter de ansiedade. Zaya deixou a farpa de lado e focou na amiga. — Com “nada” você quer dizer... — A rainha está em Astarte! Os olhos de Zaya por pouco não saltaram de suas órbitas. — A rainha? — Sua voz saiu incrédula. — Enfim os deuses ouviram nossas preces, irmã, teremos uma chance de ir embora. O coração de Zaya saltou com um leve batimento, uma chama de cor azul e dourada abraçou as friezas do seu ser, enchendo-a com algo que perdera há anos: esperança. Contudo, algo a prendia. Zaya sempre depositou toda a sua fé nas coisas erradas e isso a ensinara depois de muita pancada a não confiar tão cegamente em seu próprio coração. — O quê? Mas como? — O príncipe Áster precisa de uma esposa. A rainha viajou o país inteiro atrás da afortunada e agora está em Astarte — explicou Darissa em êxtase. — Imagine só, ser a esposa do príncipe Áster! — disse uma noviça que ouvia a conversa. — Já ouvi mais de uma vez os boatos sobre sua beleza e bravura, imagine só ser mãe de seu herdeiro. — Suspirou e todas as outras a acompanharam em um coro de suspiros por todo o quarto. Zaya soltou um bufo de incredulidade. Os deuses atiravam uma oportunidade única na frente daquelas garotas tolas e tudo em que elas conseguiam pensar era no príncipe? Eram tão cegas pelo desejo inútil de romance que não viam que o verdadeiro prêmio não era um príncipe metido a valente, mas a coroa. Aquela que fosse escolhida seria a próxima rainha de todo o império! A mente de Zaya se vislumbrou com essa possibilidade. — A mim pouco importa o príncipe, só quero a chance de ir-me deste lugar. Todas as cabeça se voltaram para ela, e as mulheres no cômodo a encararam como se barba crescesse em seu queixo. — Mas é um príncipe — disse uma delas como se isso fosse grande coisa. — Sim, mas e se for pançudo? Pelas expressões de pavor que as jovens fizeram, Zaya se deu conta de que elas ainda não pensaram na possibilidade de o príncipe ser feio como um jumento deformado. Viu a oportunidade perfeita de se divertir com a situação. — E se tiver os dentes da frente enormes? — Continuou, segurando- se para não rir das expressões enojadas. — Ou pior... As noviças ficaram em um silêncio temeroso, olhando-a com olhos esbugalhados e assombrados. — E se for cheio de piolhos? Todas gritaram levando as mãos à cabeça. Zaya se dobrou em gargalhadas. — Amon-Rá me livre. — Benzeu-se uma delas. — Isso quer dizer que não tentará competir pela mão do príncipe, Zaya? — Darissa inquiriu. — E perder a oportunidade de deixar Astarte? Jamais. — É uma pena, porque você não vai. O clima dentro do quarto mudou de forma brusca com a intrusão daquela voz. As noviças correram pelo local formando uma fila e baixaram as cabeças. Por instinto, Zaya se encolheu à espera de uma chibatada que não veio. O silêncio no cômodo se tornou pesado à medida que Zafir, a grã- sacerdotisa, entrava no recinto a passos calmos e vilanescos. Odiando ter que se curvar diante da gárgula, Zaya dobrou a coluna. — Perdoe-me senhora, eu entendi que todas as moças que ainda não fizeram a consagração teriam a oportunidade de estar diante da rainha — disse Darissa, mantendo os olhos presos ao chão de maneira respeitosa. — Sim, todas as noviças que estão livres de suas obrigações. — Zafir respondeu. — Mas eu estou livre de minhas obrigações, senhora. Fiz tudo pela manhã. — Zaya se apressou em dizer. A mulher torceu o nariz adunco e os olhos de salamandra perversas fitaram a noviça com menosprezo. — Bom, creio que não, passei pelo chiqueiro dos leitões agora a pouco e parece que não é limpo há semanas. O ardor feroz da injustiça corroeu as entranhas de Zaya. Zafir fizera de propósito. A velha sempre buscava um jeito de prejudicá-la e daquela vez não poderia ser diferente. — Mas senhora... — Zaya tentou insistir, mas as línguas frias de couro do chicote bateram contra sua face esquerda, virando o seu rosto e a pegando desprevenida. Ela lutou contra o desejo de levar uma mão até o rosto flagelado a fim de diminuir a dor. A impressão que tinha era a de que sua pele estava em carne viva. Havia uma razão para Zafir adorar aquele artefato cruel, a grã-sacerdotisa testara cinco materiais diferentes na pele das noviças até achar um que não deixasse marcas. A ardência era muito familiar, ela era companheira de Zaya há muitos anos. Portanto, sabia que se esperasse passaria, junto com a queimação da humilhação. A gárgula maldita a encarou esperando uma reação. Sempre com aqueles olhos de demônio querendo vê-la humilhada, querendo vê-la chorar, mas, como em todas as outras vezes, Zaya apenas enfiou aquele ardor quase insuportável goela abaixo e ergueu o queixo, esperando a chibatada seguinte. A grã-sacerdotisa a encarou de olhos semicerrados, não podia bater nela sem motivo e por essa razão não perdia a oportunidade de pegá-la despreparada. Fora assim desde a primeira vez que Zaya se rebelou, na mesma manhã em que chegou ao oásis. Zafir esperava uma garota assustada, apavorada e chorosa, quando não a encontrou nunca mais deixou Zaya em paz. — Não ouse me contradizer. Pegue a vassoura e trate de deixar o chiqueiro limpo, vá lá e fique com os porcos, seus iguais. — Cuspiu as palavras com um humor sombrio. Zafir agarrou o queixo de Zaya de maneira tosca, com as mãos ásperas, e avaliou com um sorriso doentio o ódio nos olhos da noviça. — Onde já se viu, a filha de um beduíno mercador de tecidos achar que pode se casar com o príncipe do Egito. Eu deveria chicoteá-la apenas por cogitar tal loucura. Zaya apertou os dentes, combatendo a vontade de revidar cada palavra e ficou em silêncio a modo de evitar uma segunda chibatada. Ela sabia reconhecer uma batalha perdida. A grã-sacerdotisa ainda a encarou mais um pouco, aguardando que dissesse algo na esperança de bater na outra face de Zaya, quando viu que não conseguiria tal regalia uma segunda vez, virou-se para as outras noviças. — Estejam prontas em uma hora. Não deixem sua rainha esperar. Após uma última olhada superior em Zaya, Zafir deu as costas e saiu cantarolando. — Que mulher horrenda! — Darissa choramingou de piedade pela amiga. — Não se preocupe Zaya, a justiça dos deuses não falhará. Osíris não terá misericórdia da alma dela quando pesar seu ímpio coração na balança da justiça. — Pouco me importa essa gárgula. — Zaya rosnou, sentindo os contornos do chicote marcados em sua pele. — Escute, você e Norvina tem que se destacar diante da rainha. Será a única oportunidade de saírem deste lugar, basta serem escolhidas e poderão fazer qualquer coisa, inclusive me tirar daqui. Passou os olhos pelo cômodo, procurando pelos cabelos negros de Norvina, mas não a encontrou em lugar algum. — Eu tentarei, Zaya. Mas... — Darissa parecia insegura. Mesmo com todas as barbaridades que já presenciara, Darissa conservava um coração inocente demais para o próprio bem. — Faça o que for necessário, Issa. — Zaya falou, sentindo que precisava sair dali o mais depressa possível ou desabaria. Deu as costas e foi em direção ao único futuro que lhe restava. ZAYA USOU A BARRA DA TÚNICA para enxugar as gotas de suor que se formaram em sua testa e continuou movendo o ancinho para empurrar as fezes dos porcos para fora do cortelho. Ruminando o sentimento de humilhação que isso trazia, ela esfregou o chão. Vez ou outra levava os olhos mais para cima, para onde as chamas das lanternas de cerâmica no salão principal brilhavam acesas. O sol se baixou dois palmos a Oeste, o que significava que as noviças já estavam há mais ou menos uma hora e meia na presença da rainha e, até então, não retornaram. O corredor que levava até o salão ficava no segundo andar do palácio e dispunha da maior varanda do lugar, portanto, ela as viu atravessarem, guiadas por Zafir. Formavam uma delicada e colorida fila de beldades. Tiraram dos baús seus vestidos mais requintados, suas peças de bijuterias mais valoráveis e davam tudo de si naquele momento. No fim de tudo Zafir fizera um favor para Zaya ao proibi-la de participar, de outra maneira, ela não teria roupa decente para se apresentar diante da rainha. Imaginava quais critérios a soberana usaria para escolher a felizarda que seria a mulher que sucederia seu lugar de rainha do Egito. O único que sabia era que a decisão não seria fácil, ali estariam vinte garotas. Uma mais bela e qualificada do que a outra. Sentiu, de súbito, um aperto na garganta e os olhos marejaram contra sua vontade. Zaya odiava sua autopiedade, mas a culpa por sentir-se daquela forma era dela por ter se permitido ter esperança. Sim, aquela era a melhor chance que alguém em sua posição teria durante a vida inteira, mas fora muito tola por pensar, mesmo que por um segundo, que teria a menor probabilidade de ser escolhida. Afinal, como Zafir gostava de lembrá-la, Zaya não passava de uma grosseira de origem duvidosa. Limpou uma lágrima traiçoeira que escorreu pelo canto do olho e tomou um grande susto ao perceber que não estava sozinha. — Você não está perdendo nada — disse Norvina como se soubesse o porquê de Zaya chorar. — O que faz aqui? Você deveria estar lá em cima dando apoio a Darissa. — Zaya fungou, optou por ignorar o que a amiga dissera. A mulher de olhos de raposa se encostou de forma despreocupada na parede, e Zaya observou suas feições sob a luz do sol poente. Norvina era uma mulher bonita, mas carregava uma marca no olhar de alguém que caminhara pelas trevas, o que assustava Zaya às vezes. — Eu prefiro passar o resto da minha vida limpando bosta de vaca a ter que me render a um casamento de conveniência. — Por mais que essa seja a sua perspectiva de futuro, não é a nossa. — Zaya retaliou, irritada. — Mesmo que um casamento fosse a solução para nossos problemas, acha mesmo que teríamos chance de ser escolhidas? — Norvina bufou. — Você é o que é, Issa vem de origem persa e eu... Ela se interrompeu e seus pensamentos se perderam em algum lugar escuro de sua mente. Quando Zaya chegou em Astarte, Norvina já estava ali. Era reclusa e quase nunca falava, não deixava ninguém se aproximar o bastante para saber mais sobre sua vida ou de onde viera. Zaya nunca fizera perguntas sobre o passado da amiga, ou sobre as circunstâncias que a levaram até ali e, talvez por isso, a irmandade delas funcionasse tão bem. Mas havia vezes, como naqueles momentos, que era impossível ignorar a manta de mistérios que rodeava Norvina. — Enfim... — Continuou, despretensiosa. — A ideia de deixar Astarte pode ser tentadora, mas o mundo lá fora é cruel demais para pessoas como nós. Aqui nós estamos seguras. Naquele ponto ela tinha razão. Zaya viveu a vida inteira sendo usada e maltratada pelas pessoas que mais estimava e isso a fizera ver que jamais poderia manter a paz onde quer que fosse. Raiva e caos a perseguiam como sua maldição. Primeiro fora sua mãe, que a abandonara sem pensar duas vezes, depois veio Ravic e seu pai e, em Astarte, foi a vez de Zafir. Ela tinha certeza de que se fosse para o Palácio da Alvorada, onde vivia o faraó, a fim de se casar com esse tal príncipe, era provável que atrairia mais coisas ruins para si mesma. Homens eram criaturas instáveis. Não mereciam a confiança de uma mulher, eram possessivos por natureza. Apaixonavam-se pelo que viam por fora de uma mulher, sentiam-se consumidos pela necessidade de possuir aquilo que queriam, não paravam de correr atrás até que o tivessem e, depois que eles o conseguissem, o encanto se esgotava como uma poça de água sob o sol escaldante. Com o tempo, Zaya começou a entender a melhor maneira para sobreviver em um mundo governado por eles. Pense como um deles. Seja manipuladora, cruel e egoísta e aja apenas com a razão. Dessa maneira colecionará várias conquistas e receberá estatuas com seu nome. Era melhor mudar o rumo dos pensamentos se não quisesse se afogar na própria amargura. Torceu em silêncio para que Darissa tivesse mais sorte do que ela. Ainda que Norvina estivesse certa em temer o mundo fora de Astarte, aquela continuava sendo a melhor opção. Pássaro que nasce livre não sobrevive em cativeiro, e Zaya tinha certeza de que morreria de desgosto a qualquer hora. Minutos depois, quando o manto da noite já cobria todo o vasto céu, as duas voltaram para o palácio das esposas. Optaram por um caminho que as afastaria da ala agitada. Norvina não queria ser pega fugindo e Zaya não queria dar a Zafir o prazer de ver seu estado lamentável. Quando cruzaram as portas laterais da entrada, ambas se depararam com o rebanho de mulheres prostrado no meio do lugar. — Zaya, Norvi! — Darissa deixou o grupo e andou até elas, segurando as saias do vestido. Ela as alcançou e desceu os olhos pasmos pelo vestido imundo de Zaya. — O que houve com você? Foi limpar o chiqueiro e resolveu apostar corrida com os porcos? Zaya revirou os olhos. — O que fazem aqui? Por que não estão com a rainha? O semblante da garota persa se entristeceu e isso trouxe um mal- agouro. — Eu falhei, Zaya. Sinto muito — choramingou triste. Zaya tentou não transparecer o tamanho do seu desalento, não queria que a amiga se sentisse mais culpada do que deveria sentir. — Isso quer dizer que outra foi escolhida? — Norvina indagou, quase feliz com a possibilidade. Darissa negou com a cabeça. — A rainha não gostou de nenhuma de nós. Zaya juntou as sobrancelhas, a revolta lhe tomou o rosto. — Como não gostou de nenhuma? — Não sei, apenas nos olhou de uma por uma e disse que nenhuma de nós é boa o suficiente para seu filho. — A boca de Zaya se abriu e foi tomada de indignação. — A grã-sacerdotisa pediu que esperássemos aqui enquanto tenta convencê-la a nos dar outra chance. Zaya apertou os punhos, sentindo o fulgor da raiva domar todo o corpo magro. Tudo bem que era a rainha, mas era cruel demais encher o coração das mulheres de esperança para, no instante seguinte, tirá-la delas sem a menor piedade. — O que ela esperava encontrar? Deusas? — Zaya estava muito, muito irritada. — Aposto que não consegue enxergar as beldades que temos aqui, porque está cega com a barreira de prepotência na frente do próprio nariz. Foi um daqueles momentos em que existe uma grande barulheira e tudo se silencia de súbito. Darissa ficou pálida, olhando para algo atrás de Zaya e, com base na sorte Zaya nem precisou se virar para saber para quem a amiga olhava. Rápido, sentiu o calor da raiva ser substituído pelo frio do medo absoluto. Oh, demônios! Reuniu toda a coragem que tinha, o que queria dizer que era quase nenhuma, virou-se, desejando que um buraco se abrisse sob seus pés, Anúbis saísse por ele e a arrastasse para o além-túmulo. De pé, atrás delas, estava a rainha em pessoa. Os olhos azuis e astuciosos brilhavam com algo indecifrável. Do mesmo modo que era incrivelmente bela, também era amedrontadora. Usava uma túnica amarela com bordados coloridos e adornos banhados a ouro por toda parte exposta do seu corpo esguio e formoso. Inclusive, em sua peruca, repousava um diadema que tinha uma naja em riste com a boca aberta e a língua bifurcada de fora no topo. A rainha a olhava com minúcia. Da ponta do dedinho do pé descalço e sujo de lama até a raiz do cabelo duro de poeira e assanhado. Zafir olhava para Zaya com um sorriso cheio de satisfação cruel, sabia que, desta vez, Zaya fora longe demais. Uma coisa era certa: de uma maneira ou de outra, ela iria embora de Astarte, ainda que seu destino fosse a sete palmos do chão. A rainha abriu a boca, e Zaya apenas esperou pela sentença. Todavia, ao invés de ordenar que ela fosse atirada aos crocodilos, pelos lábios da majestosa mulher saíram as palavras mais inesperadas: — É ela. NINGUÉM TEVE CORAGEM DE SE MOVER pelo que pareceu uma eternidade enquanto a rainha mantinha os olhos sagazes presos em Zaya. Era possível sentir a tensão de incredulidade vagar entre as mulheres, ninguém acreditava de verdade que a rainha acabara de escolhê-la para ser a noiva do príncipe. Ela, a escolhida. Humpf. Isso é um absurdo! Uma sandice absoluta! Como poderia? Era surreal e a única explicação que achara, fora a mais óbvia de todas: a rainha era louca de pedra. Maluca! Zafir, que até então estava tão dura quanto uma estátua, deu um passo cauteloso para frente: — Majestade, talvez queira reconsiderar... A rainha a calou apenas com o levantar de uma mão. — Como se chama e de onde vem? — Dirigiu-se a Zaya. Zaya pigarreou, molhou os lábios, ainda estabanada, fez a reverência mais patética que alguém já vira e se apresentou com os olhos no chão. — Me chamo Zaya, majestade. Eu era a única filha mulher de um mercador de tecidos. Antes de vir para cá, minha família vivia como beduínos. A rainha enrugou o nariz em desgosto, a filha de um beduíno com certeza não seria muito qualificada para ocupar o lugar de uma princesa. Porém, não poderia ser qualquer outra. Zaya era a escolhida e não era de forma leviana. Nos olhos da mulher brilhavam as estrelas do destino. Zaya viu o desprazer nítido no rosto da soberana e presumira que logo ela mudaria de ideia quanto a levá-la. Devia saber que sua felicidade duraria pouco, mas não esperava que fosse acabar tão rápido. Cruzou as mãos em frente ao corpo, criando uma armadura, impedindo-se de sofrer por algo que jamais teve. — Vá se limpar e me encontre no salão reservado em cinco minutos. — A rainha ordenou, causando uma expressão interrogativa no rosto da jovem e, após dar uma última olhada reprovadora em suas vestes, saiu, acompanhada das próprias servas. Um silêncio incrédulo pairou na sala enquanto a soberana se afastava, mas bastou ela virar no fim do corredor que Zaya sentiu garras frias se enterrarem em seu couro cabeludo e foi atirada com brusquidão contra uma parede. Bateu a cabeça na superfície sólida, a pancada produziu um zunido em seus ouvidos e a deixou tonta. — Sua escrava insolente! — Zafir continuou a puxá-la pelo cabelo enquanto sibilava em seu ouvido. — Você não sairá daqui para lugar nenhum, entendeu? O hálito repugnante causou ânsia de vomito em Zaya, e a dor em sua cabeça foi o suficiente para fazê-la chegar ao limite. Por muitos anos Zaya teve medo de Zafir, ainda mais no início, quando, por muitas vezes, rebelou-se contra as duras práticas de ensinamento que ela adotava. Porém, pela primeira vez na vida, os ventos sopravam ao seu favor e a única maneira da gárgula impedi-la de ir embora dali seria matando-a. Com as mãos trêmulas, Zaya deu um soco nos braços da mulher, fazendo-a cambalear, pega de surpresa. Ela juntou as mãos ao redor do corpo, sentindo o prazer inigualável da vingança estalar furioso em suas veias. — É melhor que você comece a orar pela misericórdia divina a partir de agora, Zafir, porque quando eu for a rainha não haverá deserto nesse mundo que me impedirá de encontrá-la. A voz saiu baixa, mas ameaçadora, e a postura dura da naja definhou. Ela deu dois passos covardes para trás. No fim de tudo, era apenas isso que Zafir era, uma pessoa covarde com um pouco de poder. Zaya deu um último olhar de desprezo para ela, o mesmo que a grã-sacerdotiza lhe dedicara diversas vezes, e se retirou, indo em direção ao cômodo para tentar ficar apresentável para a rainha. — Zaya, isso que você fez foi bravo! — Darissa entrou no quarto pouco tempo depois acompanhada de Norvina. Zaya queria concordar com ela, mas estava muito longe de sentir-se satisfeita. — Não, fui imprudente, apenas a deixei mais zangada. — Usou um pouco da água de um lavabo para tirar a sujeira das mãos e das pernas. — Mas agora ela não terá como descontar as frustrações em você. A rainha te escolheu Zaya, você vai para muito longe das maldades dela. — E em quem você acha que ela vai descontar quando eu me for? Ao entender o que ela queria dizer, o sorriso de Darissa morreu. — Mas você vai nos tirar daqui, não vai? Era muito cedo para prometer algo assim. Zaya não podia garantir nem a própria sobrevivência, quem diria a das duas. — Farei o que for possível, Issa. — Ela pôde prometer. Sempre faria o possível para protegê-la. — É isso mesmo que você quer? — A voz dura de Norvina chegou até ela, e o receio a atingiu. Zaya continuou na tarefa de se vestir sem olhar para a amiga. Não queria que Norvina a fizesse mudar de ideia. Não era mais uma opção. — Que alternativa eu tenho? Entre um marido que não amo e a vida dentro deste templo, escolherei sempre a que me garantir mais liberdade. — Casamento é o oposto de liberdade. — Seria muito bom se você guardasse seu pessimismo para você. Nesse momento ele não me ajudará em nada. Zaya escutou os passos se aproximarem e teve que parar quando Norvina a segurou nas mãos, obrigando-a a olhar para ela. Algo no fundo dos olhos da amiga fez um nó se formar na garganta de Zaya. É medo. Em sete anos, Zaya nunca a vira demonstrar essa emoção e não tinha nada de mais assustador do que ver uma mulher forte e determinada como Norvina tão humana e vulnerável. — Não vou pedir para mudar de ideia, te conheço o suficiente para saber que não mudará, mas espero que tenha ciência do que enfrentará. Zaya olhou para o canto. — Eu prefiro não pensar nisso agora. Tirou as mãos de Norvina das dela voltou a se vestir. Ao fazer isso, também afastou todos os pressentimentos ruins que se infiltraram em seu coração. Norvina não disse mais nada e se afastou para um canto do quarto enquanto a deixava terminar de se aprontar. Algum tempo mais tarde, Zaya caminhava até a sala reservada onde a rainha a esperava. Do lado de fora das portas pesadas quatro guardas de estaturas medonhas protegiam a entrada. Só depois de dizer o nome, eles liberaram a passagem. A sala estava bem iluminada com várias lanternas, e a bonita soberana sentava-se atrás de uma mesa grande, esperando-a. No mesmo instante, Zaya se ajoelhou perante a mulher. — Majestade, rogo que perdoe minha impertinência e meus maus modos, minha insubordinação não deve ser refletida em meu caráter. — Levante-se menina, isso não combina nem um pouco com você. Zaya ergueu os olhos devagar até bater com eles no rosto da rainha consorte. Ela continuava a estudá-la com demasiada curiosidade. — Sua indelicadeza e sua total falta de decoro são qualidades pouco atraentes em uma mulher e qualquer pessoa com um pouco de bom senso nunca escolheria você para ser a futura rainha de uma nação. A verdade, Zaya, é que não procuro uma rainha, mas uma mulher com coragem suficiente para enfrentar até mesmo aqueles que estão acima dela. A soberana se levantou da cadeira de respaldo e andou devagar até a noviça, as fendas que se abriam em cada lado de sua túnica amarela permitiam ver a pele bronzeada de suas coxas. A rainha pegou o queixo da jovem escolhida com uma mão carregada de anéis pesados e o virou de um lado para o outro, avaliando-o. — Perdoe-me, majestade, se puder ser mais clara… — Eu viajei pelos últimos nove meses por todo canto do Egito, visitei palácios e templos, conheci mais mulheres do que posso me lembrar e estava quase certa de que essa mulher não existia até bater meus olhos em você. É você quem eu procuro, Zaya. Zaya piscou várias vezes tentando entender o que ouvira. — Deixe-me ver se entendi, majestade, não sou boa para ser uma rainha, mas sou perfeita para o que busca? Os lábios tingidos de dourado da soberana sorriram de leve para o lado. Toda a beleza e feminilidade da mulher mais velha faziam Zaya sentir- se como uma menina inexperiente. O que de fato era. — Me chame de Zahara. A primeira coisa que você precisa saber é que meu primogênito, Áster, não é um homem fácil. Se casará apenas porque o forço a isso, e acredite quando digo que ele fará o possível para que você desista antes mesmo da cerimônia ser realizada. Zaya não gostou nem um pouco da sensação de formigamento que sentiu no peito ao ouvir o nome do príncipe pela primeira vez. Áster. Era um nome forte, ela não conseguia pronunciar. — Somente uma mulher que abre a boca para chamar a rainha do Egito de prepotente é forte o suficiente para enfrentá-lo sem medo. E por esse motivo Zaya era perfeita. Não por ser cativante ou bonita, ou por ter alguma qualidade que a fazia se destacar diante das outras concorrentes, mas porque era grosseira o suficiente para enfrentar um príncipe. Zaya sentiu a facada em sua dignidade. Zafir estava certa. — Eu darei a você patrimônios que garantirão seu futuro e nunca precisará voltar para um desses templos outra vez, tudo que tem que fazer é permanecer casada com Áster, mesmo quando ele começar a tornar a sua vida um tormento, porque acredite, ele irá. — O olhar que Zahara lhe deu a fez ter certeza disso. O que a rainha não sabia era que nem mesmo Norvina conseguira convencê-la a desistir, não seria um príncipe libertino de caráter infantil que o faria. — Há mais coisas que devo saber para me preparar? — perguntou, mesmo com a decisão já tomada. Os olhos de Zahara se cravaram nela como facas afiadas. — O casamento terá que ser real, Zaya. Não sei se entende a profundidade disso, mas falo de filhos. Zaya tentou não demonstrar o próprio repúdio diante da última palavra. Filhos... Nunca imaginou que os teria algum dia. Na verdade, sentia arrepios de pavor só de se imaginar colocando uma criança no mundo em que vivia. Mas ela devia prever que o futuro faraó teria que ter herdeiros e não podia ver aquilo como algo romântico. Era apenas um acordo. Uma conveniência. Uma troca. Não muito justa, ainda assim uma troca. Ela teria que se unir a um homem que não amava, que, era provável, detestaria. Em algum momento teria que submeter-se para tornar o casamento verdadeiro e dar a ele um filho. Tudo era o que se esperava de qualquer casamento comum em meio à realeza, mas, por alguma razão, Zahara tratava do assunto como se fosse algo mais e, talvez, só talvez, Zaya fosse mais essencial para aquele casamento do que ele era para ela. Uma vida infeliz ao lado de um príncipe é melhor do que apenas uma vida infeliz. — Eu quero a garantia de que não serei maltratada. — Áster pode ser o que for, mas não é um covarde. — Zahara garantiu com firmeza e em seus olhos não cabiam mentiras. Zaya assentiu, satisfeita. — Tenho comigo duas irmãs em Astarte, Darissa e Norvina, me separar delas traria muita infelicidade para mim. Com sua permissão, majestade, gostaria de levá-las comigo para Astória. Zahara aquiesceu em resposta. — Referente ao que peço a você, será o de menos. — Sendo assim, eu aceito me casar com seu filho. A rainha sorriu e seus olhos astutos se encheram de uma animosidade que Zaya não sentia. Na verdade, sentia-se condenada. — Aproveite sua última noite neste lugar, despeça-se de suas companheiras. Nossa jornada pelo deserto em direção a Astória começará ao primeiro raio de sol. COMO FORA DITO, ANTES MESMO DO DIA sobrepujar a noite elas já estavam na porta do templo prontas para partirem. Fora aconselhado que levassem apenas os bens mais preciosos para que não precisassem carregar peso nos dias que vagariam pelo deserto. Uma vez no palácio de Astória, ganhariam novas vestimentas. A viagem pelo deserto seria exaustiva e poderia ser perigosa. Para escapar de animais peçonhentos, os viajantes fariam parte do trajeto montados em camelos, por isso, precisariam se proteger ao máximo dos raios de sol. Além de tecidos que cobriam a pele dos braços e costas, as servas da rainha também pintaram os rostos das mulheres com fortes tinturas e óleos. A rainha seria levada em um carro de guerra puxado por quatro cavalos, com ela iriam quatro soldados portando lanças afiadas e pontiagudas. O restante dos homens as acompanharia em camelos, a fim de protegê-la em uma escolta. Nenhuma das três mulheres quis se despedir de ninguém. Darissa parecia apressada em começar a jornada, talvez com medo de que algo pudesse mudar a decisão da rainha. Já Norvina estava em um silêncio constante, não dissera nada desde o momento em que Zaya tornou para o quarto na noite anterior e a informou sobre a partida. Zaya tivera medo de que Norvina escolhesse ficar. O que era estranho, mesmo que Zaya soubesse que a amiga odiava aquele lugar tanto quanto qualquer outra, parecia não querer ir embora. Zafir desaparecera, Zaya não viu nem a sombra da grã-sacerdotisa desde a noite anterior quando a enfrentou. O que era uma pena porque adoraria olhar em sua cara de gárgula uma última vez antes de ir-se dali. Quando chegaram no topo da duna de areia que ocultava o oásis, as três mulheres se viraram e olharam para o que fora a prisão delas durante todos aqueles anos. Zaya olhou uma última vez para a bacia de água que rodeava Astarte e, em seu íntimo, soube que aquela não seria a última vez que veria o lugar. Ainda que tivesse mais memórias ruins do que boas, de certa maneira ela era grata por tudo que o lugar lhe trouxera. Aprendizado e coragem para enfrentar seus inimigos. Todas as coisas ruins que lhe aconteceram, desde o abandono dos pais até as maldades de Zafir, influenciaram-na a ser quem era. E Zaya sentia que precisaria confiar muito em si mesma para o que estava por vir. — Espero nunca mais voltar para este lugar — disse Darissa, e foi a primeira das três a dar as costas. À medida que se distanciaram, mais leve Zaya sentia-se e mais acreditava no que acontecia. Pela primeira vez em anos ela se permitiu ter alguma perspectiva de um futuro em que ela poderia ser algo mais do que um grão de areia insignificante em um mar de terra. Logo a euforia foi substituída pelo enfado. A caminhada pareceu ficar ainda mais exaustiva quando o sol brilhou alto no céu. O calor fumegante que queimava suas cabeças e secava suas gargantas tornou o ato de respirar cada vez mais difícil e não tinha um vento sequer, nem uma brisa perdida, que ajudasse a diminuí-lo. O balanço ritmado das passadas dos camelos trazia vertigens para Zaya. Sequer podiam parar para descansar ou atrasariam os dias de viagem. A rainha estava apressada para retornar ao palácio, o que era compreensível já que estivera tantos meses longe. Andaram por todo o dia, parando apenas para comer e alimentar os animais e depois retornaram para a caminhada exaustiva. Quando o véu da noite começou a descer, a soberana escolheu um lugar para passar a noite e os inúmeros soldados começaram a montar as barracas. Eles deviam fazer aquilo com frequência, não demorou muito para as três barracas de tecido grosso estarem de pé, sustentadas por varas grossas de madeira. A da rainha era a maior delas e ficava um pouco afastada, a das servas vinha em seguida, e então a das noviças. Os soldados não tinham barraca, eles montaram guarda do lado de fora e revezavam os turnos durante a noite, o que fez com que Zaya se compadecesse um pouco por eles. As donzelas estavam cansadas demais para comerem qualquer coisa, apenas beberam um pouco de água e já estavam adormecidas. Diferente de Zaya. Ela sentia as engrenagens em sua mente trabalharem como nunca. Os olhos não queriam descansar, embora sentisse o corpo exausto. Talvez fosse por causa da sensação de vulnerabilidade que o deserto trazia, mas em seu cerne ela sabia que não era apenas isso. O deserto lhe trouxe algumas memórias da época em que vagava com sua família. Lembrar-se deles era sempre doloroso demais, por isso Zaya os evitava. Devia demonstrar braveza e parecer que já não se perturbava, mas nem sempre era capaz de vencer as batalhas contra seus demônios. Outra coisa que perturbava seu sono era a realidade que colidia contra ela. A cada passo que dava mais para longe de Astarte, mais tinha percepção do que faria. Ela se casaria mesmo com um príncipe. Me casar com um príncipe! É... demais. Sufocante. Atordoante... um pouco excitante, talvez. O espaço dentro da barraca ficou pequeno para comportar os pensamentos de Zaya, e ela teve que sair um pouco para não enlouquecer com a ideia de que iria se casar com um homem que sequer conhecia. Entretanto, qualquer e todo pensamento foi arrastado para longe quando pisou fora da barraca e vislumbrou o céu estrelado, vasto e profundo. Zaya sentiu-se pequena diante de toda aquela magnificência. No oásis o toque de recolher nunca permitia que vissem um céu como aquele. Naquele momento, era impossível não acreditar na existência de alguma divindade superior, não era possível que algo tão belo tivesse nascido apenas do nada. Perguntou-se se os deuses podiam vê-la de algum lugar em todo aquele céu e, pela primeira vez em muito tempo, rezou e pediu para que eles a protegessem do que estava por vir e que a dessem forças para lutar por si mesma. Também fez algo que não sentia vontade de fazer há tempos: Zaya dançou. Sentiu o vento saracotear ao redor de si e se ligou com a natureza como sua mãe a ensinara a fazer quando menina: com seu espírito. Uma luz celeste no meio do deserto. Em seu peito, sentiu uma fagulha dourada se expandir e logo o formigamento estava presente, abrangia seu coração. Então Zaya soube que devia parar. Foi para a barraca para pegar seu tapete de dormir e o esticou próximo à tenda do lado de fora, deitando-se em seguida. Não demorou para que enfim descansasse. Aquela mesma rotina se repetiu por sete dias e sete noites. Ela já podia sentir os efeitos da exposição ao sol em sua pele. Entendia que se chegasse a fugir do oásis como quisera muitas vezes, era provável que morresse de sede ou de insolação, sem falar que nunca saberia como achar o caminho até uma cidade. Curiosamente, os soldados da rainha usavam um aparato que os ajudavam a mediar a distância das estrelas, dessa maneira sabiam para onde ir. No oitavo dia, enquanto Zaya repetia seu ritual de colocar o tapete no lado de fora das barracas, Darissa se deitou ao lado dela e ficaram ambas olhando a imensidão de estrelas. — Como acha que ele é? — A jovem persa perguntou em algum momento. Zaya, que achou que ela dormia, deitou-se de lado. — De quem fala? Darissa também se virou de lado para olhá-la. — Ora de quem, o príncipe! Zaya dirigiu os olhos para o céu, com medo de onde aquele assunto poderia levá-la. — Bom, eu já disse como acho que ele é. — A resposta rasa não foi o suficiente para aplacar a curiosidade de Darissa. — Não acha de verdade que é um pançudo, dentuço e piolhento, acha? Zaya faria um comentário sarcástico, mas foi pega por uma sensação familiar de formigamento no peito quando Darissa continuou: — Afinal, ele será seu marido, deve estar preocupada com isso. Sim, ele será o meu marido. Ela não devia encarar o casamento como outra coisa que não uma mera formalidade ou sentir os formigamentos toda vez que o homem era mencionado. Ela não o conhecia, não conhecia o rosto dele e nunca ouvira falar nele até alguns dias atrás. Mas toda vez que Zaya soltava um pouco as rédeas e se permitia pensar no príncipe o formigamento voltava, abraçando o seu peito e se alastrando pelo seu corpo, cobrindo-a com a sensação estranha de proteção. Ela sempre sentiu o formigamento ao dançar, por isso achou que fosse algo relacionado à sua saúde, mas toda vez que pensava no príncipe, seu corpo reagia daquela forma. — Bom, é um príncipe, não é? Deve ser pelo menos interessante. Tentou não transparecer nada do que sentia na voz. — Eu não me importaria de me casar com um príncipe dentuço, se ele fosse um bom homem. — E quando você fosse beijá-lo? Ele sempre bateria os dentes nos seus. — Darissa enrubesceu rápido. — Zaya, você é terrível! — Riu batendo com o ombro no dela. Zaya sorriu em resposta e aproveitou para voltar o olhar para o céu enquanto Darissa divagava sobre as possíveis características do príncipe até que adormeceu. A escolhida tentou dormir também, mas não conseguia parar de se perguntar como Áster deveria ser fisicamente, e o formigamento persistia em cutucá-la. Era isso que queria evitar, pensar demais nele. Zaya não devia se preocupar com a aparência, não importava, ele era apenas um meio para um fim. Mas foi impossível refrear a curiosidade e, pela primeira vez desde que soube que estava destinada a se casar, permitiu-se pensar em seu príncipe sem qualquer sentimento de culpa. O que diziam sobre ele era que era um galanteador, então, com certeza, devia ser pelo menos agradável aos olhos. Era bom, significava que submeter-se a ele não seria um sacrifício tão grande assim. Pelo menos era o que Zaya acreditava ou esperava. Divagou sobre as coisas que viriam a lhe agradar nele, acabou não percebendo que o formigamento em seu peito já evoluíra para uma sensação calorosa e dormiu com uma sensação nem tão desagradável assim. No décimo dia eles enfim chegaram a uma civilização. A cidade de Ahmead, que ficava em um intervalo de poucos dias até Astória. Lá puderam comer e beber com um pouco mais de fartura e, após uma noite agradável na casa de um gentil e hospitaleiro imperador, pegaram uma embarcação real que as levaria pelo Nilo por mais quatro dias até o tão almejado destino. A viagem pelas águas transcorreu com muito mais velocidade e calmaria, enfim, no décimo terceiro dia, após uma viagem exaustiva debaixo de um sol escaldante e através de um deserto confuso, elas tiveram pela primeira vez a visão das grandes necrópoles da cidade de Astória e do magnífico Palácio da Alvorada. O PALÁCIO REAL FICAVA A ALGUNS MINUTOS longe da cidade, no topo de uma elevação, rodeado por grandes tamareiras e por duas necrópoles de tamanhos assustadores. Zaya já ouvira falar delas, mas nunca as vira. Mesmo tão distante, era possível ver os detalhes da arquitetura ostensiva. A fachada do palácio era imponente, com longas colunas papiriformes em seu entorno e paredes de adobes revestidas em calcário que eram beijadas pela luz cadenciada do sol, cintilavam. De cada lado das grandes muralhas de pedra que o protegiam, estavam as estátuas de Amon- Rá. Os homens de corpos másculos feitos de ouro com uma grande cabeça de falcão olhavam para baixo, para a cidade, dando a impressão de que atuavam como grandes guardiões. — Estupendo! — Darissa exclamou, olhando fascinada na mesma direção. Todas elas estavam um pouco. Fosse pelo esplendor, luxo ou pela paisagem bonita que a cidade proporcionava. — Lembra-me um pouco o lugar onde nasci — disse Norvina. — A diferença é que lá era muito mais belo. Zaya trocou um olhar cúmplice com Darissa. Aquela era a primeira vez que Norvina falava algo sobre sua origem. — E lá existiam muitas árvores, Norvi? — Darissa indagou, abraçando Norvina pelos ombros. — Muitas e muitos lagos, e crianças. Lembro-me das risadas e das cantigas. — Um sorriso triste nasceu no rosto da mulher, e seu olhar se perdeu em algum ponto trágico de sua história. — Quem sabe você poderá voltar para lá agora que estamos livres. — Zaya sugeriu. O semblante triste de Norvina foi arrastado para longe com brusquidão, substituído pela palidez de um temor espreitador. — Espero nunca retornar. — Estremeceu. — Além disso, eu não deixaria vocês, não sobreviveriam um dia sem mim. As outras duas sorriram e toda a conversa a cerca do passado de Norvina foi postergada, pois tiveram que desembarcar do navio. Logo no porto, dois carros de guerra as aguardavam para levá-las para o palácio. Enquanto cruzavam as ruas estreitas da cidade bem arborizada e com formosas casas feitas de junco, Zaya notou que muitas pessoas paravam o que faziam para vê-las passar, alguns até saíram de suas casas ou colocaram as cabeças para fora das janelas para verem a rainha. O caminho seguiu dessa maneira até que, por fim, chegaram nas grandes portas de madeira do palácio real. Por dentro das muralhas, o lugar parecia muito mais exuberante e incrivelmente enorme. Tudo era verde e, diferente do deserto, existia vida por todo lado. As paredes do palácio eram grossas, com gravuras feitas nos tijolos de barro branco e cheias de janelas por onde entravam iluminação e vento. Elas foram tiradas do carro de guerra com a ajuda dos soldados, e a rainha subiu rápido as escadarias cobertas por tapetes. O salão de recepção era ainda mais esplendoroso, com portas que davam para inúmeros corredores e um teto tão alto que Zaya sentia-se diminuta enquanto atravessava. A rainha se dirigiu para uma das donzelas que a acompanhavam. — Peça que esvaziem o harém no segundo andar, Hagid. A moça fez um aceno de cabeça breve e saiu para fazer o que fora ordenado. Zahara se virou então para as três moças, ela tinha um brilho animoso nos olhos. Estava feliz por estar de volta, era perceptível. — Vocês ficarão lá até o casamento, depois disso, serão deslocadas para outra parte do palácio. Providenciarei novas roupas e colocarei uma criada a serviço de vocês, serão minhas protegidas enquanto estiverem comigo. Fez um sinal para que um dos guardas parado próximo às colunas viesse até ela. — Sim, majestade? — Onde estão os meus filhos? — A princesa Kamilah está em alguma parte do palácio e os príncipes saíram para caçar há dois dias. — Ouvir aquilo fez com que Zaya respirasse aliviada. Muito tarde Zaya se deu conta de que não se preparara para conhecer o noivo. Uma insegurança que até então não sentira a deixou apavorada. Como será quando o conhecer? O que devo dizer? E pelos deuses, olhe o meu estado! Ela acabara de cruzar o deserto, nenhum homem iria querer se casar com ela ao vê-la daquele modo. Ela precisava de um tempo para se preparar. Talvez um dia, ou dois, ou quem sabe uma semana. Ah vamos! Quem quero enganar? Poderiam se passar meses, ainda assim não estaria pronta. — Como foram os últimos meses, Zaid? — Zahara perguntou para o guarda. — Não houve muita mudança em sua ausência, majestade. — E o faraó? Era a primeira vez que a rainha se referia ao próprio marido e o seu tom de voz era tão indiferente que sequer parecia falar sobre o pai dos filhos. Em resposta, o guarda apenas deu um olhar cheio de significado para a mulher, meneando com a cabeça. Zahara desviou os olhos para o chão, dessa vez eles não estavam tão impenetráveis como costumavam ser. Ali escondia um sentimento conflituoso que Zaya não soube decifrar. Após puxar uma respiração lenta, Zahara se virou para as três. — Bom, agora Zaya está aqui e algumas coisas mudarão. Isso trouxe um péssimo presságio para Zaya. Era bom que aquele povo não depositasse muita fé nela, pois não conseguia nem amarrar duas pontas de corda sem causar um desastre, quem diria consertar o que quer que fosse que acontecia naquele palácio. A donzela que saíra há alguns minutos retornou. — O harém já está pronto, majestade. — Muito bem. Zaya, acompanhe Hagid, ela será sua donzela de agora em diante. — A moça chamada Hagid sorriu e se curvou de leve diante da nova patroa. — Será um privilégio servi-la. A maneira subserviente como a mulher a tratou incomodou Zaya muitíssimo. Até outro dia ela era como Hagid e não sentia-se bem aceitando-a como uma serviçal. Ela não precisava de uma donzela. Podia se cuidar sozinha. Zahara pareceu perceber seu desconforto. — A partir de amanhã tudo ficará um pouco corrido, minha querida. Essa viagem de caça veio em bom momento, dessa maneira terei o tempo necessário para preparar você até o retorno de Áster, mas toda ajuda é necessária. Você precisará de Hagid. Zaya ainda não sentia-se confortável com isso, mas não diria mais nada, depois se entenderia com Hagid. Acompanhou-a, seguida por Norvina e Darissa. Atravessaram muitos corredores decorados com luxo. Ela não estava tão fascinada com a decoração muito dourada quanto as outras duas mulheres atrás dela, o receio que pairava sobre ela a impedia de sentir-se à vontade. Chegaram em um corredor inabitado que dava acesso a uma bonita porta dupla com entalhes de flor de lótus. Hagid a abriu e deixou que passassem. O harém era um grande cômodo espaçoso, com o chão coberto por tapetes longos e um teto sustentado por quatro colunas. A decoração era um tanto mais simples, com cortinas de cores vivas e camas de penas cobertas por tecidos finos e almofadas bordadas. Entretanto, nada chamou mais atenção de Zaya do que a sacada que dava acesso ao jardim verdejante cheio de plantas coloridas e árvores frondosas, em que havia uma piscina de água cristalina. — Eu vou me acostumar com facilidade a viver neste lugar — disse Darissa, atirou-se em cima de um leito e rolou no colchão de penas como um pequeno porco feliz na lama. — Lembre-se que somos apenas convidadas e não devemos abusar da hospitalidade da rainha. — Norvina alertou, passando as mãos nas cortinas de linho translúcido que cobriam o dossel de uma cama. — Tente relaxar, Norvi. Estamos longe de Astarte, sem regras ou punições, pela primeira vez podemos ser nós mesmas. — Darissa ria, dançando ao redor da amiga. — É isso que me preocupa. — Norvina murmurou, tentando resistir, mas ninguém resistia a doçura de Darissa por muito tempo e, em questão de segundos, as duas dançavam ao redor da mesa no centro do aposento. Algumas horas depois, quando já estavam bem acomodadas, o jantar foi servido ali mesmo. Elas sentaram-se em almofadas no chão, e Zaya apenas as observou, rindo vez ou outra enquanto as duas conspiravam sobre os príncipes. — Como você os imagina? — Darissa indagou, mastigando um bolinho de carneiro. Norvina levou um dedo ao queixo, pensativa. — Um deles deve ser gago, o do meio com certeza é vesgo e o primogênito no mínimo deve ser malcheiroso. Zaya franziu a testa, parando de mastigar. — Por que acha isso? — É a única explicação que encontro para que os três permaneçam solteiros. — Talvez eles esperem pela mulher certa. Casamento por amor, quero dizer. — Darissa sugeriu como a boa sonhadora que era. Já Norvina, que era o oposto disso, gargalhou com a sugestão. — Ou talvez prefiram a companhia masculina, se é que me entendem — murmurou com uma mão na boca, fazendo Darissa ficar tão vermelha quanto a sopa de tomate em seu prato. — Pelos deuses, espero que não. Quero ter sobrinhos! — Uma nova voz se introduziu na conversa. Uma mulher entrara ali sem que as moças percebessem. Ela andou até o grupo ostentando um bonito sorriso em seu rosto oval. Usava uma peruca de fios pretos que terminava em seus ombros e um belo vestido azul de faixa traçado, destacando a silhueta delgada e curvilínea de seu corpo. — Perdoe a intromissão, não pude esperar muito mais até conhecê- las. — Ela parou a dois metros delas e as olhou de uma a uma. Foi impossível não sentir-se envergonhada, afinal aquela mulher era elegância e majestade pura, assemelhava-se a uma deusa. Na frente dela, Zaya sentia-se como algo desprovido de elegância e majestade. A estranha parou os olhos astutos nela. — Você deve ser a Zaya. — Seu sorriso se expandiu. — Eu sou Kamilah, e em breve seremos irmãs. Zaya sorriu sem jeito, ela era estonteante demais. Cativante, poderia ser a palavra. Além da beleza óbvia, havia algo mais em Kamilah, não sabia bem o quê. Talvez fossem seus trejeitos ou quem sabe os olhos castanhos avermelhados, eles atraíam a constante atenção para o seu rosto. — É um prazer conhecê-la. — Zaya fez uma mesura. — Agora voltando ao assunto, não creio que nenhum dos três sejam inclinados a pederastia, embora suspeite que um deles já tenha experimentado na juventude. — Ela confidenciou, fazendo Norvina sorrir, e deixando Darissa ainda mais tímida. — A única coisa que os mantém solteiros é Áster. — O noivo de Zaya? — Darissa indagou com os olhos bem arregalados. — O próprio. A mulher andou até a mesa em que há pouco elas comiam e sentou- se em um espaço vago no chão, esperando que elas fizessem o mesmo. — Acontece que eles têm uma espécie de pacto masculino, algo inútil que os obriga a seguir Áster em suas estupidezes. — Humpf... — Norvina rolou os olhos e voltou a comer. — Por isso nossas esperanças estão em você, Zaya. Os três príncipes são como uma pirâmide em construção, basta que derrube a haste que os sustenta e as demais irão abaixo. Zaya presumira que a haste era uma metáfora para seu noivo. Talvez ela não devesse subestimá-lo tanto assim, afinal, alguém que era capaz de enfrentar uma mulher como Zahara de certo não era flor que se cheirasse. Ela mesma não era, por essa razão estava ali. Kamilah tocou, afável, o ombro dela. — Antes de saírem em caça, meus irmãos e eu apostamos quanto tempo você aguentaria até desistir. — É? — Ela juntou as sobrancelhas. Kamilah balançou a cabeça em afirmativo e riu. — Darwish e Ramessés deram duas semanas. Bom, era claro que esses príncipes nunca conheceram uma mulher determinada entre o que quer e o que precisa fazer para conseguir. Estava mais do que na hora de aprenderem uma lição. Zaya ergueu o queixo, tomada por um sentimento novo. Ansiava por mostrar seu valor. — E você? Quanto tempo apostou? Kamilah pareceu apreciar a ousadia dela. — Eu apostei que levariam duas semanas também, mas para Áster estar louco por você. — A resposta pegou Zaya de surpresa, o que a fez enrubescer. Um homem louco por mim... isso soa apavorante. Ela não queria, não mesmo. Já tivera um homem louco por ela no passado e isso trouxe uma desgraça para sua vida. — Eu odeio perder, ainda mais para meus irmãos, portanto, por favor, se precisar trapacear, pode contar comigo. — A princesa piscou, cúmplice. Kamilah era mesmo a melhor pessoa que ela conhecera em anos. Era muito bom já ter um aliado do time adversário ao seu favor antes da batalha ser iniciada. Zaya não acreditou que fazia mesmo planos de tomar um homem só para ela. — Bem, eu darei o meu melhor. ZAYA FORA TOLA POR ACREDITAR QUE não estava pronta para conhecer seu príncipe prometido. A cada dia que passava, e ele não retornava para casa, ela sentia que o pânico opressivo dentro de si ficava cada vez maior e incontrolável. Estar naquele palácio, dia após dia, roendo as unhas com a expectativa de vê-lo entrar pelas portas do harém, consumia-a. Preferiria enfrentar a situação como quem tira o curativo de uma ferida, rápido. Era provável que doeria por um momento, mas, com sorte, passaria logo. Sua cabeça inquieta não parava de idealizar o primeiro momento em que eles se veriam frente a frente. Algo dentro dela a alertava de que ele a repudiaria por ser a filha de um mercador e isso atacava seus nervos como ninguém. Todos os criados, com a exceção de Hagid, olhavam para ela como se tivessem pena de sua pobre alma. Ao menos a rainha estava tão ocupada transformando os dias de Zaya em um completo caos que ela não tinha tanto tempo para se preocupar com o gênio indomável do príncipe ou com sua periculosidade. Zahara já estava com tudo planejado. Assim que Áster chegasse, ela faria um jantar em que apresentaria Zaya para todos da família e para o conselho. Pretendia casá-los apenas alguns dias depois. A pressa em casá- los provocava uma péssima intuição em Zaya. Mesmos há tantos dias em Alvorada, não pôde conhecer o faraó. Estava quase encarcerada no harém e, pelo visto, seria assim até que ela se casasse. Enquanto isso não acontecia, Zaya era apenas uma hóspede. Uma hóspede muito preciosa. As portas do harém estavam sempre protegidas por guardas do palácio. O que a fazia se sentir como uma espécie de oferenda. A fim de não as matar de tédio, a rainha deu para cada uma das três mulheres um presente que as entreteria. Para Darissa deu uma tela de linho e vários utensílios de pintura. Norvina ganhou uma harpa, e logo descobriram que não fora uma boa ideia, Norvina podia ser habilidosa em muitas coisas, mas com a harpa era um desastre anunciado. Quanto a Zaya, ganhou lições e mais lições de protocolos que deveria tomar quando estivesse diante do faraó e do futuro marido. Todas as noites ela se esgueirava para os jardins e passava horas com os pés enfiados na água da piscina, observando o movimento da cidade mais ao longe. O harém ficava no segundo andar e as muralhas quase cobriam toda a vista, ainda assim ela podia ver. Tudo era coberto pelo breu noturno, mas em alguns pontos das ruas era possível ver as tochas e as lanternas. Era claro que o povo de Astória amava o faraó e a rainha-consorte. Os criados eram sempre bem-humorados, o que indicava que gostavam de trabalhar ali. Diferente de outros impérios que ela conhecera, na grande cidade não existia trabalho escravo. Isso que a deixava confusa e a fazia pensar. O faraó não devia ser tão bom assim se mantinha templos como o de Astarte em atividade, em que as mulheres eram escravizadas e obrigadas a abdicar do livre arbítrio ainda crianças. Somando a todas essas preocupações, ainda existia aquela sensação de formigamento que não a deixava em paz. A cada dia ficava mais potente e se tornava presente em seu peito, mas aquela noite estava fora do comum. Com o coração agitado, ela andou até a sacada para ver se o vento frio da noite era capaz de lhe dar algum alívio. Em geral o formigamento vinha quando ela pensava demais em Áster, era como uma pequena fagulha debatendo-se furiosa em busca de libertação, mas ela sequer pensava nele naquele momento. Talvez devesse procurar ajuda. Ao sair do cômodo, ela viu que a lua estava esplendorosa naquela noite. Iluminava tudo com sua meia luz pálida e tenra. Algo muito forte, como um chamado divino, puxou-a para aquele lugar e a deixou com os pés coçando pela vontade de afunda-los na grama que cobria todo o jardim. As regras da rainha foram bem claras: ela não podia sair do quarto desacompanhada, em especial à noite, mas Zaya não iria para longe. Além disso ela já fizera aquilo inúmeras vezes nos últimos dias. O que de terrível pode acontecer? O jardim era rodeado por sebes altas de folhas verdes e por árvores de copas gigantescas, talvez para dar privacidade para quem decidisse tomar um banho na piscina. Entretanto, a noite estava fria e ela não sabia nadar. Subiu as saias da vestimenta que usava, um vestido branco drapeado sem alças que se estendia até os seus calcanhares e sentou-se na borda de cerâmica, afundando uma perna de cada vez. A água estava fria, mas, aos poucos, amornou. Zaya ouviu um barulho à sua esquerda e imaginou ser um bicho escondido entre as árvores. Prestou mais atenção e percebeu que não era bicho coisa nenhuma, mas uma pessoa. Levantou-se em um pulo. Um calafrio de medo percorreu sua espinha ao imaginar o que fariam com ela se fosse pega fora das habitações tão tarde da noite. Subiu as saias até os joelhos e correu em direção à escada que levava até a sacada do harém, mas era tarde demais e a sombra do infeliz apareceu no chão à sua frente através da luz do fogo. Zaya deu meia volta, olhou para os lados sem saída, desesperada por um esconderijo e agoniada com o formigamento que parecia querer sufocá- la. Olhou para a frente e tudo que viu foi uma árvore, uma bonita oliveira com galhos longos e grossos muito farta de folhas. Ela não pensou duas vezes antes de escalar o tronco grosso e áspero, ralando as coxas no processo. Em Astarte ela se acostumara a encontrar rotas de fuga sempre que queria fugir do quarto das noviças para furtar alguma comida das despensas, mas nunca o pavor de ser pega fora tão grande. As chibatadas de Zafir nem se comparavam ao medo que tinha de decepcionar a rainha. Apoiou-se em um galho e esperou em silêncio enquanto o intruso tomava posse do seu precioso jardim. Então, as batidas descompassadas do coração de Zaya se misturavam à comichão incessante no íntimo dela. Através das frestas dos galhos em que estava, ela pôde ver a silhueta se projetar na escuridão. É um homem. Ele carregava uma lanterna e o fogo bamboleante produzia uma luz dourada no cabelo castanho acobreado dele. O corte era curto, típico dos guardas do palácio. Ele tinha costas grandes, muito largas e musculosas e bíceps impressionantes. Quem quer que fosse, não pretendia ir embora tão cedo. Ele chegou na borda da piscina e começou a se despir. Naquele momento tudo foi esquecido, o formigamento, o coração acelerado, até mesmo sua respiração. Zaya devia ter desviado os olhos, se fosse uma boa mulher teria sentido-se envergonhada, mas aquela seria a primeira vez que veria um homem nu. Um belo guarda cheio de músculos. Ela apoiou o pé em outro galho e afastou algumas folhas para que pudesse ter uma melhor visão de quando ele se desfizesse dos braceletes dos pulsos e, em seguida, do saiote pesado, ficando apenas com as finas roupas íntimas que escondiam seus membros inferiores. O homem era alto e, mesmo de costas, ela sabia que ele era bonito. Algo emanava dele, um apelo sexual intenso que fisgava a atenção dela quase de maneira involuntária. Zaya se sentia como uma abelha atraída para o mel. Ele começou a desamarrar o nó que prendia a peça íntima em sua cintura, e Zaya se inclinou mais para frente, afastando um galho intrometido que atrapalhava sua visão. Ele enfim abriu as amarrações e quando estava prestes a colocar o traseiro para o ar livre, o barulho de um galho se partindo o fez parar e ficar estático. Zaya estava tão irritada com o fato de seu gladiador ter parado de se despir que sequer percebeu que o galho que acabara de se partir era o que sustentava seu peso. Ela emitiu um arfar audível de pavor e, para sua completa consternação, o homem virou o rosto e olhou direto para ela como se a enxergasse através da escuridão. Ela soltou o galho fino que segurava e, como sua maldita sorte nunca estava a seu favor, o infeliz voltou com tudo em seu rosto, jogando-a para trás e a fazendo cair de maneira desastrosa pela árvore. Zaya tentou gritar, mas acabou engolindo uma folha e começou a tossir. Aquele não era mesmo o seu dia. Sentindo os golpes das cipoadas por todo o seu corpo, ela entregou a alma para os deuses e esperou o encontro iminente com o chão. A pancada não veio. Apenas um tranco tosco que a fez perder o ar e sentir uma dor aguda em suas costelas. Com o coração na garganta, ela abriu os olhos devagar e mal teve tempo de se recuperar da queda quando seu instinto a lembrou de que não estava ali sozinha. Aos poucos tomou consciência de mãos grandes e exigentes que rodeavam sua cintura, e do corpo masculino abaixo do seu. Zaya desceu os olhos e viu o peito desnudo do intruso que estragara sua noite. Fora ele que amortecera sua queda. Ela subiu o olhar para o rosto dele, iluminado pela luz da lanterna que estava caída não muito longe dali, e uma sensação estalou dentro do corpo de Zaya, dando-a a certeza de algo que não sabia explicar. Ela estava certa, ele era mesmo bonito, seus olhos eram mesmo impressionantes e pareciam rir de Zaya. Um vento gelado afastou o cabelo dela revelando o seu rosto na luz da lanterna e tudo nele mudou. Antes que ela pudesse reagir, ele inverteu suas posições ficando por cima dela e prensando-a contra o chão, afundando os dois na grama úmida com o peso do seu corpo monumental. Seu olhar se tornou mortífero, e Zaya soube de imediato que aquela queda fora o menor dos seus problemas. Foi tudo tão rápido, uma nova rajada de vento fez a chama da lanterna se apagar e tudo ficou escuro. Seu coração frenético falhou uma batida quando ela sentiu as mãos dele percorrerem o seu corpo, apertando-a e apalpando-a com possessividade, como se quisesse atestar que ela era real. O suspiro de surpresa de Zaya foi audível. Os dedos longos traçaram um caminho de arrepios pela barriga dela, através do vale entre seus seios até a palma da mão dele repousar no peito dela, e quando ele sentiu o descontrole do órgão vital de Zaya, os lábios dele formaram um sorriso malvado no canto da boca. Os dedos dele continuaram a subir até chegarem na garganta fina da mulher, e sua mão envolveu o pescoço de Zaya como um colar. O rosto dele parou a centímetros do dela. Tão perto que seu hálito quente raspou os lábios trêmulos de Zaya quando ele disse: — Agora eu peguei você, feiticeira. ÁSTER ENCAROU OS LÁBIOS VOLUMOSOS SEMIABERTOS e, mesmo com a chama da lanterna apagada, foi capaz de ver aqueles olhos brilharem como mercúrio na penumbra da luz da lua. Algumas características do rosto dela estavam diferentes, ele notara, mas aqueles olhos o perseguiram por tanto tempo que ele os reconheceria em qualquer situação. Era mesmo irônico pensar que a mesma mulher que buscara sem cansar por sete longos anos, caíra do céu direto para os seus braços. E agora ela estava em sua posse, pequena, tangível e sua. Toda sua. Pensou na possibilidade de ser apenas mais um sonho e se apavorou com a ideia. Ele a tomou, tocando sua pele e sentiu a maciez na palma de sua mão. Prendeu-a contra o corpo, temendo que fosse um devaneio, temendo que ela sumisse como sempre fazia, deliciou-se com a calidez de sua pele e ficou duro quando ela suspirou fragilidade. Soube que era real quando parou com a mão em um seio e sentiu o coração dela, furioso. Sim, minha feiticeira, eu me sinto igual. Pensou com a mente perversa. Desesperado por inteiro. Áster envolveu a garganta fina da mulher dos seus sonhos com os dedos, deixando-a refém de sua delicada bondade. Todas as malditas devassidões que pensou em fazer com ela ao longo dos anos enfureceram o seu sangue. — Agora eu peguei você, feiticeira — murmurou contra a pele macia, e um resfolego doce, tentador ao extremo, escapou pelos lábios dela. Que agonia pretensiosa. Mais venerável. Inflou a sua ganância e ele precisava dela com tanta ferocidade que sentiu os ossos derreterem. O corpo pequeno se moveu abaixo do dele, e as pernas dela se afastaram para recebê-lo bem no meio delas. Sim! Ele foi direto ao paraíso quando as coxas macias abraçaram sua cintura, e ela se encaixou nele com perfeição. Sim, com perfeição. Ela era perfeita como se ele tivesse a desenhado para si com um pincel divino. Era muito menor do que ele e parecia um pedaço de cristal frágil em comparação com a massa muscular do príncipe. Naquela posição, encaixada nele, ela tinha a altura perfeita, o tamanho perfeito, tudo perfeito para proporcionar o prazer mais inigualável que Áster nunca ambicionou sentir. Ele faria tudo que ela pedisse se a recompensa fosse o toque dos seus lábios. E quando estava quase lá, no limiar da sua doce recompensa, quando pensou que não haveria mais nada entre ele e a cura para o seu sofrimento, foi atingindo no nariz com uma força brutal que fez seus olhos lacrimejarem. — Afaste-se de mim! — A fera traiçoeira esbravejou, empurrando-o para cair para o lado enquanto ele se contorcia de dor. — Pelos deuses! Você me acertou! — Áster levou uma mão ao nariz em chamas. Ele a olhou atordoado. Como uma criatura tão pequena pode ter tamanha força?! Ela se levantou e o encarou com o peito arfante, parecia indignada e raivosa, acima de tudo, nenhum pouco arrependida por ter acertado o rosto dele. E só então, vendo a fúria esfuziante no rosto dela, Áster percebeu que ela não o conhecia. — Com mil infernos! — resmungou, a dor em seu nariz não tinha nem comparação com a dor que sentiu ao perceber que ela não fazia ideia de quem ele era. — Vai se arrepender por ter me tocado dessa maneira. — Ela ameaçou por entre os dentes, empunhando o dedo como uma espada. Áster se levantou. Ainda tinha um pouco de dificuldade para enxergar devido às lágrimas, mas não passou despercebido o interesse dela pelo seu abdômen nu. Sorriu de lado. Ela não era tão imune a ele quanto queria aparentar ser. — Vou é? Me diga como. Ela comprimiu os lábios, respirando pesado como se doesse. A luz da lua bateu de modo cadenciado na pele bronzeada dela e evidenciou suas curvas cobertas pela túnica branca. Seus traços e sua cor deixavam óbvio que ela não pertencia à cidade, duvidava até que ela tivesse nascido no Egito. Felizmente Áster estava de costas para a luz e isso camuflava toda a fascinação em seu rosto ao olhar para ela. — O que acha que acontecerá com você quando descobrirem que tentou beijar a noiva do príncipe Áster? Ora, que maldição! Ele sentiu seu interior paralisar, até mesmo a dor em seu nariz foi esquecida. — Noiva do príncipe Áster? — repetiu, sem acreditar no que ouvia. — Sim. — Ela afirmou com a cabeça. Os braços cruzados em uma postura perniciosa. — Se você é quem diz ser, isso significa que a rainha está de volta a Astória. — Ele devaneou. Ergueu a cabeça na direção do alto palácio, bem lá em cima, onde as torres quase tocavam o céu, conseguiu ver as chamas das lanternas brilharem com suavidade na sacada do harém isolado. — Você é um péssimo guarda. — Ela o insultou. — Já faz sete dias desde que a rainha retornou. Sete dias... Áster tencionou o maxilar com raiva por sua mãe fazer o que prometeu que faria. Passou por cima da vontade dele e trouxe para casa uma mulher muito suspeita para ser sua esposa. Estudou a criatura em sua frente, agora que estava de pé, ele podia 1valia-la melhor. Começou por seus cabelos, eles conseguiam ser mais escuros que a própria noite fria. Caiam para baixo meio ondulados. Tantas vezes ele acordara, amargurado pelo desejo de passar as mãos por eles e naquele momento que ele tinha a chance, não refreou sua tentação. — O que está fazendo? — Ela perguntou assustada quando ele moveu a mão até os fios espessos, mas também não se esquivou. Áster nunca conhecera uma mulher com cabelos tão lindos. Os fios tocaram a pele da mão dele, causando um calafrio quente em seu corpo. Áster se afastou como se isso o tivesse queimado e foi ele quem a olhou assustado. O príncipe sentia os desejos mais primitivos ansiarem por aquele momento e quase gargalhou com a maldita ironia da situação. Só podia ser um castigo divino, não havia outra explicação para logo a mulher que ele desejava mais do que qualquer outra, ser a única que ele não podia ter. — Vai ficar aí me olhando? — Ela perguntou com rudez, tentando se esconder com os braços ao notar que ele observava as elevações fartas de seus quadris. Áster começou a se cobrir com a roupa. A resistência dela o irritava. — Você está aí toda ofendida porque eu tentei te beijar, mas foi você quem caiu de uma árvore, porque estava tentando me ver nu. A fera ficou sem palavras e, mesmo que seu rosto já estivesse vermelho, Áster soube que ela ficou envergonhada. Isso o excitou em um nível excessivo, quase doloroso, era a confirmação que ele queria. Mesmo que pouco, ela o desejara também. Era sua. Como eu sei. Tão certo quanto o ar que entra por minhas narinas traz o cheiro doce dela. — Não tentei ver você pelado! — Ela se defendeu, nem um pouco certa disso. — Já estava aqui antes de você chegar, se quer saber. Tive medo de que pudesse ser alguém e corri para me esconder. — Se tentava se esconder é porque não deveria estar aqui. Ela olhou de um lado para outro ao ser pega no flagra. Áster sorriu de lado, deliciando-se muitíssimo. — Acho que agora você me deve um agradecimento, minha doçura, afinal eu salvei a sua vida. Ela ergueu outra vez aquele dedo insolente no ar, e ele tentou não rir de sua figura cômica com os cabelos desarranjados cheios de folhas que se prenderam ali no momento da queda. — Não sou sua doçura — disse, fazendo-o desejar pegá-la rude contra seu corpo e mostrar para ela que era sim, sua. Minha. — E preferia que tivesse caído de cara no chão a ter que agradecer a você por ter me salvado e tentado me... me... Áster deu um passo à frente, ansioso para ouvir o que sairia pelos lábios dela. — Ter tentado o quê? Basta dizer... Ela tragou saliva e, em seus olhos, ele viu o próprio desejo refletido. Por alguma razão ela se recusava a senti-lo, ele pôde vê-la confusa e lutar contra. — Não volte a me tocar! — Ela berrou, ultrajada. Aquela mulher podia ter o corpo, o rosto e todas as características da deusa que o encantava em seus sonhos, mas estava muito longe de ser ela de fato. A sua deusa não gritava ou apontava os dedos na cara dele, nem o ameaçava. Aquela mulher na frente de Áster era dona de uma língua afiada, não tinha um pingo de amor à vida e, por mais insano que pudesse parecer, o desejo dele por ela aumentou ainda mais, voltando-o louco. Ele estava tão fascinado com a beleza dela que se esqueceu de um fator alarmante. Perguntou-se se talvez haveria um dedo de sua mãe naquilo, tudo naquela criatura parecia distraí-lo do foco principal: fazê-la desistir de se casar com ele. Áster adquirira uma longa experiência em afugentar mulheres durante os últimos anos e não desistiria de fazer isso com aquela em sua frente só porque a queria em sua cama. Talvez, quem sabe no futuro, ele poderia fazê-la sua amante. Ofereceria um mar de ouro para ela, ele se colocaria de joelhos aos seus pés e seria seu devoto mais fiel se ela o aceitasse. Contanto que ela concordasse em nunca conceber. Olhou para ela, que parecia ridícula lutando contra um pedaço de galho que se emaranhou em seus cabelos. — Você não tem noção do que a espera, não é? Ele a rondou como um felino, tentando entender o que fizera sua mãe escolhê-la, além da beleza óbvia. — Se você for começar a falar sobre como meu noivo é terrível, se poupe, é só o que me dizem desde que cheguei aqui. Áster arqueou uma sobrancelha, surpreendido. Ela já sabia sobre ele, mesmo assim estava ali? Pelo visto a Doçura não tinha medo de uma boa briga. Pelo menos ele se divertiria na sua missão de se livrar dela. — Bom, eu duvido que tenham dito tudo a você. Você sabe, eles não falariam com medo de fazê-la fugir. Ela perdeu o semblante sarcástico e o encarou mais séria. — O que quer dizer? — Mordeu a isca. — Por que acha que esse príncipe chegou a uma idade tão avançada sem se casar? — Ela ficou em silêncio, esperando a resposta. — Tem uma aparência bestial. — Feio? — Horripilante! A mulher arregalou os olhos, levou uma mão a boca, e ele apertou os lábios para não gargalhar. — Sem falar das pústulas, elas cobrem todas as partes de sua pele. — Áster fingiu um arrepio, chacoalhando o corpo. — Pústulas? — Ela sussurrou, alto o bastante para que ele captasse o nojo em sua voz. — Um monte delas por todo o corpo. — Atiçou ainda mais. Áster esperou que fosse o suficiente para fazê-la fugir, mas a coisinha se mostrou um pouco dura na queda. — Bom, não foi por sua beleza que eu atravessei o deserto. Com certeza cairia igual se ele fosse lindo, não me importo com isso. Áster se perguntou que tipo de mulher continuaria interessada em um homem após saber que ele tem pústulas. Pense, pense. Ela não podia ser tão resiliente como aparentava ser. Com os anos, Áster aprendera que todas as pessoas têm um ponto fraco e não demoraria para descobrir o dela. Ele teria muito tempo para isso. — Bom, já que você não se importa com as pústulas também não se importará com as amantes. — Amantes? — O tom de voz da mulher saiu tremido e, naquela trepidação, ele viu a sua chance. — Inúmeras, uma por noite e, às vezes, várias de uma vez. Pôde ver o desprazer tomar posse dos contornos bonitos do rosto delicado da mulher e isso o incomodou um pouco. Uma parte dele não ficou feliz em causar aquilo nela, mas Áster afastou a sensação pela felicidade absoluta de saber que vencera. Ela soltou um praguejo com raiva e, após lhe dedicar um olhar de desprezo, pôs-se a sair dali com pisadas firmes. O príncipe nem esperou que ela sumisse por completo para dar as costas e voltar para dentro do palácio. Áster sabia bem que caminho seguir para chegar mais rápido até o quarto andar. Aquela ala era quase desabitada, era onde ficava o observatório astronômico e, às vezes, alguns estudiosos subiam para estudar o cosmo, mais ninguém além deles. Ela se mudara para lá desde que parou de ser uma das preferidas dele e agora aquele lugar era uma espécie de santuário para ela. Onde se afastava para estar sozinha com seus próprios pensamentos. Logo no corredor, sustentado por pilares de mármore liso, ele viu a estátua da deusa Hator e se curvou com respeito antes de entrar no aposento sem bater na porta. Ali em cima, os ventos eram fortes e arrastavam as cortinas de linho vermelho. As poucas lanternas acesas iluminavam o centro do lugar, mas era a lua que dominava tudo. Ele não precisou procurar muito para encontrá-la, estava de frente para a varanda, de costas para ele, usando uma túnica branca e sem a peruca que cobria seus cabelos curtos e castanhos-acobreados. Ela era muito bonita, sempre fora. A última vez que ele a vira, fora há nove meses e as coisas terríveis que dissera antes dela partir o perturbaram todos os dias. Desejou ir até ela e abraçá-la com força, mas ainda existiam um milhão de coisas não resolvidas entre os dois. — Me perguntava quanto tempo você demoraria para vir até aqui. A rainha falou, virando-se para o filho. Já sentira sua presença. Ele notou que Zahara estava um pouco abaixo do peso, pôde ver isso, o deserto não era generoso com ninguém. Ainda assim, ela continuava a ostentar aquele olhar inclemente que dizia que o esperava. — E então? Não vai me dizer nada? Não vai começar a disparar suas grosserias e me ameaçar? Ela andou para dentro do quarto até uma mesa de onde tirou um vaso de cerâmica branca e despejou o vinho em um cálice de ouro. — Isso adiantaria de alguma coisa? — Ela meneou a cabeça em resposta, virando-se para encará-lo, e ele viu um raio de esperança em seus olhos azuis. — Zaya é a sua noiva, aceite esse fato. Áster sentiu vontade de sorrir ao ouvir o nome dela. Zaya. — Não pensa que é provável que nos condenará a uma vida de infelicidade nos enfiando em um casamento? Ora, você sequer sabe de onde ela vem. Na verdade, muitos mistérios rondavam aquela mulher, Áster não podia ignorar que ela esteve em seus sonhos durante anos. Ela não representava nenhum perigo à primeira vista, embora tivesse um gancho de direita fenomenal. Ainda assim o desejo que sentia por ela não era o bastante para fazê-lo mudar de ideia quanto ao seu futuro. — Dou-lhe a oportunidade de começar o seu casamento da maneira certa, você pode aceitar isso e fazer o possível para conquistar sua noiva ou você pode estragar tudo e ir pelo caminho mais difícil. Ele exalou ar, detestava quando a mãe dava voltas em seus argumentos. — Qual é a sua ideia de casamento feliz, mãe? Por acaso é um pouco parecido com o seu? Zahara fechou os olhos com a pancada e recuou, sempre fugia quando o assunto era aquele, mas Áster estava apenas cansado de ignorar o elefante na sala. — Quando foi a última vez que ele veio até aqui? A mãe lhe lançou um olhar tempestivo que o alertava para ter muita cautela. — Não faça isso. Não me ataque para se defender. — Você se isolou neste lugar acreditando que assim ele sentiria sua falta, mas enquanto você vive aqui como uma párea, ele continua a fingir que nada acontece. Ela respirou fundo ao ouvi-lo dizer tais palavras cruéis e seu olhar se tornou sombrio. — Isso não é da sua conta, Áster. — É da minha conta quando passa a me afetar, é da minha conta quando isso influencia na vida de meus irmãos. Veja o que o casamento trouxe para Kamilah! Apenas desgosto e humilhação. — O que aconteceu com Kamilah, eu não pude controlar, mas não acontecerá com você. De qualquer maneira, você vai se casar e trate de aceitar isso. Nunca aceitarei! — Agora que você enfim voltou, começarei os preparativos para o jantar de compromisso, será amanhã mesmo. Esteja pronto. Dessa maneira ela deu as costas, encerrando a conversa. Voltou para a sacada, deixando-o prostrado, entalado com as coisas que ansiava dizer. Aquela era a palavra final da rainha. Seu tom de voz não deixava espaço para dúvidas. Áster balançou a cabeça em negação e deixou o local pisando firme. NO MOMENTO EM QUE DECIDIU ACEITAR a proposta da rainha, Zaya não parara para pensar que além de entrar em um casamento inesperado, também aceitaria fazer parte de uma outra realidade. Ela crescera em meio a ensinamentos diferentes dos daquela gente. De onde vinha, casamento era a união entre duas pessoas pela eternidade. Em meio a realeza, ter várias esposas era tão normal quanto ter uma coleção de cavalos. Agora ela entendia o que Norvina tentara lhe dizer quando a perguntou se ela tinha noção das coisas que abriria mão. Gostaria de ter se preparado para isso com antecedência. O pensamento de que no futuro seu parceiro se entreteria pelas noites com outras mulheres, e até mesmo torná- las suas esposas, fez com que Zaya repensasse se estava disposta. Sua relutância era irracional e ia contra todos os seus planos de se manter indiferente aos seus sentimentos, ela sequer conhecia o noivo, e tudo indicava que o detestaria. Mas isso não a isentava de sentir um incomodo no estômago toda vez que o imaginava no futuro com outras mulheres. Seria difícil ignorar seu orgulho, ainda mais porque tocava em sua vaidade a ideia de que seu marido precisasse de outras mulheres. Ainda assim, não seria um sacrifício, já que para sentir possessividade por alguém, primeiro deveria querê-lo, e Zaya não queria Áster de forma alguma, não daquela maneira. Era tudo uma questão de se manter fiel com a realidade da sua situação. Ela não queria um marido, ela queria a coroa e poderia muito bem ignorar seu desejo infantil de um casamento feliz, sabendo que com o tempo ganharia outras coisas para amar. Como filhos. Na manhã seguinte, ela foi chamada para tomar o desjejum no harém particular onde ficavam os aposentos da rainha e, enquanto caminhava pelos corredores, não pôde deixar de buscar o rosto daquele guarda insolente entre os inúmeros guardas do palácio. Reprimiu o sentimento de frustração quando não o encontrou em parte alguma. Era melhor assim, não sabia o que faria se ficasse frente a frente com ele outra vez. Aquele homem atrevido... Não conseguia pensar nele sem sentir a raiva voltar a borbulhar o sangue nas veias. A maneira como ele a tocara. Daquele jeito tão... como se eu fosse tão... necessária. É inadmissível! O pânico voltava a tremer no coração de Zaya toda vez que se lembrava da sensação de ter os olhos dele em cima dela. O corpo dele em cima do dela, devorando-a e tocando-a com uma luxúria descarada. Pífio! Ela não queria pensar nele e nem nas coisas estranhas que ele a fez sentir com aquelas mãos. Zaya se acostumara a despertar a lascívia nos homens, mas foi a primeira vez que não sentiu nojo nem repúdio quando um a tocou de maneira tão intima. Não sentiu a necessidade de fugir e se esconder, pelo contrário. Pela primeira vez na vida, Zaya sentiu que era recíproco e isso a apavorou. Ela esperava não o ver tão cedo. Melhor, esperava não o ver nunca mais. Era possível sentir o cheiro doce dos incensos que vinham dos aposentos de Zahara. A porta estava entreaberta, por isso Zaya só a empurrou e entrou. A mulher estava sentada de maneira confortável em uma mesa bem localizada, rente a uma grande janela. Ela trajava uma roupa simples de linho branco e não usava nenhuma maquiagem. Seus cabelos verdadeiros estavam soltos, as mexas iam até a altura de sua nuca, castanhos-acobreados como os do guarda da noite anterior. Sem todos aqueles acessórios e tinturas, ela ficava mais humana. Zahara tinha uma aparência distinta, muito semelhante à de Zaya. Era evidente que ambas não tinham as mesmas raízes do povo de Astória. A pele mais clara, os cabelos lisos, os olhos claros e os traços do rosto mais finos deixava isso óbvio. Ao se aproximar, Zaya notou que no colo da mulher estava um belo felino de pelugem muito brilhosa e escura. Ao ver que ela chegava muito perto, o gato se arrepiou e sibilou, mostrando as garras para ela. Zaya estancou no lugar. — Não se importe com Bastet, ela fica muito mal-humorada pela manhã. — Zahara passou uma mão no lombo da gata para acalmá-la e indicou uma cadeira para que a jovem se acomodasse. — Sente-se, tenho boas notícias. — Esperou ela sentar-se. — Áster, enfim, retornou para Astória! Zahara não pareceu se dar conta de que Zaya ficou lívida ou, se percebeu, preferiu ignorar. — Já iniciei todo o andamento para o jantar dessa noite, você poderá conhecê-lo afinal. Zaya sentiu a boca seca de repente e decidiu beber um pouco do suco de damasco. — Será uma noite memorável e precisamos deixá-la impecável. Não tenho dúvidas de que você se sairá bem. — Continuou animosa. Zaya deu um sorriso torto, parecia sentir uma dor horrível. Encarou o cálice com suco em sua mão sem conseguir tirar da mente as palavras do guarda na noite anterior. “Inúmeras, uma por noite e, às vezes, várias de uma vez...” — Antes do casamento, você passará por uma série de preparações. A primeira delas é a regalia de Ísis, em que deverá fazer uma pequena apresentação diante de Áster para mostrar que o aceita como marido. A maioria das mulheres tocam ou cantam, mas você é livre para fazer o que se sentir mais à vontade. O casamento saía mais caro do que ela achou que seria. — Depois disso vem a cerimônia de fertilidade. Banharemos você com leite e óleos aromáticos por algumas horas e então nos livraremos dos pelos do seu corpo, e claro, cortaremos o seu cabelo. Zaya se engasgou com o suco. — Como assim? — Agarrou as pontas dos cabelos como se quisesse defendê-los. Zahara acariciou o lombo da gata, que se espreguiçou em suas coxas, antes de erguer outra vez os olhos para a jovem. — Você escolheu não ser mais uma plebeia, querida, será uma princesa, depois uma rainha, e escolhas exigem sacrifícios. Existem regras a seguir, costumes para manter. Você terá que usar sempre perucas, será mais prático se não tiver tanto cabelo para esconder. Eu também sofri quando tive que cortar os meus, mas com o tempo você se acostuma. Zaya tocou nos cabelos, pensando se teria coragem de se livrar deles. Nunca foi vaidosa a ponto de se importar em cortá-los, mas também nunca lhe deram trabalho. Ela gostava deles, era uma das poucas heranças que tinha da mãe. — Quanto mais cedo tudo estiver feito, mais cedo vocês poderão se casar e começar a me dar netos. Duvido que meu filho se privará de ter intimidade com você, levando em consideração sua disposição para distribuir o sêmen entre as messalinas da cidade. Um rubor furioso cobriu todo o rosto da pobre coitada. Zaya não queria conversar sobre o sêmen do seu futuro marido ou sobre sua virilidade. Não queria pensar nele daquela maneira. Queria ignorar o fato de que teria que submeter-se a ele quando chegasse a hora. Quando um sujeito se deita com tantas mulheres ao longo da vida, chega um momento em que acaba adquirindo certos gostos por um tipo só. Talvez ele preferisse mulheres mais velhas com experiência em seduzir, ou mais carnudas. Com um pouco de sorte, ela seria o oposto do tipo por quem o príncipe tinha fetiches. Seria um sonho se ele a achasse feia e asquerosa, dessa maneira, quem sabe, não arranjava logo uma segunda esposa e a deixava em paz. Sim, seria perfeito! — Leva quanto tempo até que ele possa escolher uma nova esposa? Zahara a olhou surpresa, sem dúvidas não esperava tal pergunta, ainda mais que Zaya parecia ansiar por isso. Pela cara da rainha, Zaya sabia que Zahara ficou curiosa em saber se a jovem gostaria de dividir o marido com outras. Ela sabia que era uma escolha arbitrária, mesmo mulheres que eram ensinadas a aceitar isso, morriam de desgosto. Zaya se perguntou se o faraó tinha outras esposas. — Eu não acho que você deva se preocupar com isso. Uma mistura de decepção com alívio confundiu as emoções de Zaya. Se fosse esperta, teria trancafiado os sentimentos em um baú nos confins da mente e jogado a chave fora, mas a fidelidade do futuro marido era a única coisa que martelava na mente dela. A mão de Zahara cruzou a mesa e pousou em cima da de Zaya. — Meu filho é um bom homem, e eu sei que poderá ser um bom marido, você só precisará atravessar a barreira de hostilidade que ele ergueu em volta de si. Zaya não estava certa se queria atravessar qualquer barreira que a levasse para mais longe de si mesma. — Áster deveria ter se casado aos dezoito anos com uma de suas primas ou uma mulher de classe nobre que estimasse, mas é teimoso como um burro de carga. Ela acabou rindo, e Zahara a acompanhou. Entre uma risada e outra, Zaya se pegou admirando a rainha um pouco mais. Por baixo de toda aquela fachada de soberana inclemente, existia uma mulher caridosa e uma mãe preocupada. — Após o casamento, vocês se mudarão para a ala norte do palácio onde terão um cômodo espaçoso com a privacidade necessária nestes primeiros meses de casados. Depois disso você poderá escolher um outro aposento caso deseje ficar sozinha. — Por que eu não posso ter um aposento só para mim agora? — perguntou, mas o olhar de Zahara deixou evidente o quanto ela era inocente. — Você não sabe nada sobre a intimidade entre um homem e uma mulher não é, querida? — Com os olhos presos no prato, Zaya meneou a cabeça. — Digamos que seja tão bom que vocês não vão querer se separar um do outro. — Se é tão bom como diz ser, por que eu desejaria ter um quarto só para mim depois? Zahara se afastou até descansar as costas no respaldo da cadeira. — Com o tempo pode ser que você precise do seu espaço. — Zaya olhou ao redor de todo aquele aposento bem decorado a procura de um sinal do faraó, mas não encontrou nada, nem uma roupa masculina, nem adereços. Talvez Zahara falasse por experiência própria. — Mas vai depender apenas de vocês dois. Se dependesse dela, não dormiriam juntos nem uma noite sequer, mas não queria pensar nisso naquele momento. Já era apavorante o suficiente saber que teria que dividir seu corpo com um homem, não precisava de mais detalhes sobre como seria após o casamento. — Quanto a Norvina e Darissa, não se preocupe. Elas ficarão sobre minha tutela e terão o harém só para elas. Caso uma delas deseje fazer alguma coisa com seu tempo livre, existem muitas profissões bem remuneradas aqui em Astória. Elas, inclusive, podem conseguir um marido também no momento certo. Norvina não, mas Darissa sempre demonstrara desejo em se casar. Quando sua família ainda era viva, e ela morava em seu país natal, fora prometida em casamento ao filho mais velho do rei da Pérsia. Por infelicidade o destino fora alterado, e ela parara em Astarte. Talvez ela desejasse regressar para casa, quem sabe não existia alguém para quem Darissa ansiasse retornar. Zaya não queria se afastar da amiga que considerava uma irmã, mas era egoísmo demais pedir para que ela ficasse ali, levando em consideração todo o passado sanguinolento do povo de Darissa contra o povo egípcio. Depois que tudo foi esclarecido entre Zaya e Zahara, as donzelas da rainha acompanharam Zaya de volta para o harém no segundo andar. A tarde foi turbulenta, e a escolhida não teve mais um momento de paz. Zahara levava a sério seu plano de deixar Zaya impecável para o banquete. Ela quase sentia-se o prato principal da noite. Vinte donzelas, sob o acompanhamento da rainha, levaram-na até as fossas de banho do palácio, e Zaya perdeu as contas de quantas coisas foram passadas sobre sua pele e em seus cabelos até que estivesse considerada "limpa". Zahara queria que a beleza de Zaya ficasse exposta, por isso não a pintou com cores fortes. Passou uma pasta dourada em suas delicadas pálpebras e rodeou as extremidades dos seus olhos com um preto marcante que realçou bastante o verde oliva das írises. Os cabelos foram penteados e jogados para trás e para que não ficassem tão humildes colocaram um diadema de ouro com uma serpente deitada sobre sua testa. Zaya achou as roupas mais espetaculares. O vestido amarelo tinha alças trançadas que cobriam os seios médios dela, mas deixavam expostas suas costelas e boa parte da barriga. Ele caía esvoaçante até os tornozelos descalços, e as duas fendas que se abriam nas pernas dela exibiam o brilho dourado da pele bronzeada de suas coxas. O que a deu um aspecto divino que ela sequer sabia que tinha. Ao fim, as donzelas terminaram o acabamento com braceletes de ouro em seus braços e em seus tornozelos. E então, a inevitável hora de encontrar o príncipe herdeiro chegou. Zaya teve que tirar coragem de onde não sabia que tinha para conseguir dar um passo à frente em direção à sala do trono onde todos a esperavam. As portas eram feitas de madeira com desenhos de animais em ouro e maçanetas do formato da cabeça de uma águia. Um dos guardas no lado de fora anunciou sua chegada e tudo na sala ficou silencioso. As batidas do coração de Zaya ressoaram em seus ouvidos quando deu um passo à frente e entrou naquele lugar opulento. No mesmo instante sentiu o peso de inúmeros olhos a esmagarem. Repassou todas as instruções que Zahara lhe dava há dias e andou pelo caminho do tapete que levava ao trono no final da sala extensa, de cabeça baixa — não podia olhar direto para o faraó até que ele autorizasse. O único som dentro do ambiente provinha dos seus passos e da sua respiração errática. Zaya podia sentir a tensão palpável no ar, como poeira. Em algum lugar dentro daquela sala o seu prometido a olhava e o medo da desaprovação a fez desejar dar meia volta e correr para longe. Quando chegou ao fim do tapete e avistou os pés cobertos por sandálias bem ornadas do faraó, Zaya se pôs de joelhos, ainda de cabeça baixa. — Soberano Radamés, senhor de todas as terras, peço que receba minha humilde presença em sua companhia esta noite. — A voz de Zaya demonstrava toda a insegurança que sentia. — Levante-se. — O homem pediu e sua voz retumbante ressoou pelas paredes pesadas do salão. Devagar Zaya o fez e permitiu que seus olhos repousassem no rosto do faraó. Ele era muito diferente do que ela esperava, ouvia histórias sobre o soberano de todo Egito e seus feitos desde que era apenas uma menina e foi inevitável não construir a imagem de um homem que se assemelhava a um deus. Não tinha uma pele de ouro, nem asas, nem olhos de esmeralda que viam tudo ou algo que indicasse poderes divinos. A verdade era que o poderoso Radamés era tão humano quanto ela própria, com uma pele escura, olhos castanhos e uma postura que denotava sua posição de senhor do Egito. A rainha estava de pé ao lado do marido no trono e seu olhar sereno tentava passar tranquilidade para Zaya. — Ouvi falar muito de você esses dias, Zaya, acharia até que alcançou uma fama maior do que a minha. O olhar do faraó e sua postura eram amedrontadores, mas não continham nenhuma maldade. Ele tinha aquele ar de alguém que sabe que detém poder, mas sem a intenção de escancarar isso. Na verdade, chegava até a ser simpático. — Fico lisonjeada, majestade, mas estou longe de ter uma grama de sua altivez. — Se minha esposa achou você boa o bastante para meu primogênito, então eu com certeza também acharei. Zahara nunca erra em suas intuições. Ele olhou de soslaio para a esposa parada ao seu lado, mas esta não moveu uma só fração do rosto diante do elogio do marido. — Sobre uma coisa não resta dúvidas, você tem uma beleza admirável. Não concorda, Áster? — O faraó perguntou, virando o rosto para a direita. A impressão que Zaya teve foi a de que seu coração parou de bater. Pelo canto do olho, ela viu um movimento à sua esquerda e virou o rosto para onde estavam três homens de boa aparência. O menor deles tinha um olhar sereno e um semblante confiante, ele a encarava com um sorriso apaziguador que a fez se afeiçoar a ele quase no mesmo instante. O do meio, por outro lado, era o completo oposto. Era um homem forte, de musculatura medonha, com os traços do rosto muito marcantes e expressivos até demais, o maxilar anguloso. Ele era mesmo bonito. Seus olhos eram azuis tão claros quanto o céu celeste e sua pele era escura como pó de mirra. Ele era como um afrodisíaco para os olhos e a encarava com cautela. Estudava-a. É um caçador. Pela maneira descarada como a olhava, por um momento, Zaya achou que fosse ele seu predestinado, mas então o terceiro homem na ponta se moveu dando um passo à frente. A atenção de Zaya foi arrastada para ele. Como se ela não tivesse controle do próprio corpo, tudo pareceu virar uma coisa só, seu ar, seus batimentos cardíacos, seu tato e olfato, tudo era por ele e dele. Áster a olhava com o deboche estampado no rosto atrevido e um sorriso cretino nos lábios assimétricos. — Sim, meu pai. De fato é. É ele, o guarda. O meu maldito noivo! ÁSTER SE DELICIOU COM AQUELE MOMENTO. O rosto de Zaya permaneceu impassível, mas ele conseguia ver nos olhos dela toda a surpresa que sentiu ao reconhecê-lo. Viu o momento em que ela ligou todos os pontos, chegando à conclusão óbvia, e se divertiu muito com aquilo. Escultural. Divina. Com certeza não era natural que fosse tão irresistível a ponto de fazê-lo desejar roubá-la diante de todos para que não pudessem ver quão feminina e graciosa era. Ele estava fisgado, por completo. Encantado pela maneira como as chamas tremeluzentes dos archotes davam um brilho dourado na pele cor de marfim que estava exposta em algumas partes do corpo de Zaya. O vestido que a cobria era simples, e ela não estava vestida para chamar atenção, ainda assim, quando andou pela sala até chegar em frente ao trono, nenhum dos olhos do local se desviaram dela. Áster se encontrou muito aborrecido com isso, acostumara-se a tê-la só para si em seus sonhos. Ela tinha algo no caminhar que era hipnotizante, sua prometida fora agraciada com a beleza e a majestade de uma deusa e agia como se não soubesse disso. Era feminina sem desejar ser. Seus ombros curvados para dentro e seus olhos, que às vezes desviavam para o chão, indicavam que ela não queria chamar atenção para si, mas era tarde demais. Eu já vi você, minha feiticeira. Enquanto o faraó continuava a trocar conversas amenas com Zaya, todos prestavam muita atenção. Alguns por mera curiosidade, outros julgando se ela era qualificada o bastante para a posição que estava prestes a receber. O faraó fez várias perguntas sobre a procedência dela, as quais Zaya respondeu tudo de maneira muito rasa. Após as apresentações iniciais, permitiram que Zaya circulasse pelo salão para conhecer o restante do conselho e alguns pares importantes da realeza. Ele foi deixado de lado, esquecido, enquanto ela passava de mão em mão e nunca na dele. Ela evitava esbarrar o olhar com o dele deliberadamente. — Que criatura mais divina. A voz de Darwish se interpôs em seus pensamentos. Áster tencionou o maxilar, de leve, incomodado ao ver que o irmão tinha os olhos maliciosos em Zaya. — Deixe-me tê-la por uma noite antes de se casar com ela, irmão. — O maldito teve coragem de pedir. Ele lançou um olhar mortal para Darwish e nunca desejou tanto ser filho único como naquele momento. — Não fale insanidades — rebateu com rispidez e se virou para ir até um servo com uma bandeja de bebidas. — Qual o problema? Já dividimos centenas de mulheres. — Darwish o seguiu. — Nenhuma delas seria minha esposa. — Áster disse por cima do ombro, pegou uma taça e a virou na boca apenas para constatar que era suco. Praguejou. Sentiu os olhos azuis do irmão em cima dele e soube que era analisado. Darwish tinha a irritante mania de testar qualquer um apenas observando suas reações mediante as provocações que fazia. Era quase como um dom intrometido, ele conseguia saber quando alguém mentia ou estava nervoso. Por infelicidade, era raro que Áster passasse pelos testes, por isso odiava tanto quando o irmão o olhava daquele modo. — Você está interessado nela. — Darwish constatou com um sorriso afetado. O príncipe herdeiro bufou, fazendo pouco caso. — Não estou, não. — Sim, ele estava, mas não daria a Darwish o prazer de saber disso. — Não o culparia se estivesse, ela é a criatura mais bonita que eu já vi. — Ramessés se introduziu na conversa. Áster levou os olhos até Zaya outra vez, ela estava na companhia da mãe deles e conversava com a esposa do escriba real. Ele observou seus movimentos, os cabelos, as mãos e o sorriso. Sim, para a sua completa perdição Zaya era a criatura mais bonita que já pisara naquele salão. Quem sabe até em Astória! E ela poderia ser dele pela eternidade, tudo que Áster tinha que fazer era dar as costas a todas as promessas que fizera para si mesmo no passado. Cada uma delas. — Você acha? — Fingiu indiferença. — Eu já estive com mulheres muito mais bonitas. Muito bem, aquela era uma mentira deslavada. Ele sabia, seus irmãos sabiam, ora, até mesmo as paredes daquele palácio sabiam! — Então você não se incomodará se eu conseguir roubá-la para mim, verdade? Darwish dizia aquilo apenas para irritá-lo, e bem, ele conseguiu. Áster mal pôde controlar a fúria que correu em seu sangue e o fez apertar os punhos. Desde menino sempre contou tudo para os irmãos, mas nunca mencionou a feiticeira que perturbava os seus sonhos. Acostumara-se a ser um exemplo para eles e não podia demonstrar fraqueza. Um homem que se deixa ser influenciado por uma mulher com facilidade não merece as bolas que tem. Movido por esse pensamento, ele deu um tapa faceiro no ombro do irmão. — Se você conseguir, me fará um favor. Darwish abriu um sorriso de orelha a orelha. — Então me deem licença, irei conhecer a mãe dos meus filhos. — Sem esperar mais, ele andou até onde estava Zaya. Áster viu de longe quando Darwish chegou até ela, curvou-se de leve e falou algo com seu charme encantador. Para o completo desespero do príncipe herdeiro, Zaya sorriu radiante, esplendorosa como uma flor de lótus ao desabrochar. Ele sentiu uma fraca pulsação em seu âmago, um desalento sôfrego que o pedia para ir até eles e participar da conversa. Mas Áster não podia fazê-lo, então ficou onde estava, tentando parecer o mais indiferente possível. Para a felicidade do príncipe herdeiro, não demorou que o banquete fosse anunciado. O faraó ocupou a cabeceira da longa mesa, sentado confortavelmente com a rainha-consorte ao seu lado. Eram raros os momentos que Áster via os pais na companhia um do outro, somente em jantares importantes em que a presença dela era fundamental, e quando isso acontecia se ignoravam e maneira deliberada, como faziam desde o início da noite. Eles eram a razão para ele não acreditar em matrimônios. Áster o temia, para ser franco. Eles eram agraciados com riquezas, adoração e soberania, em compensação eram amaldiçoados a solidão eterna. Era o preço que se pagava pelo poder. Ele olhou para a mulher sentada ao seu lado, Zaya podia achar que o casamento era vantajoso, mas com o tempo seria ela que ocuparia a posição em que sua mãe estava agora: casada com um homem que odiava. Áster evitou olhar muito para Zaya durante a noite, além de não saber se conseguiria controlar sua fascinação por muito mais tempo, sabia que Zahara o observava. Nunca algo foi tão difícil. Cada movimento que Zaya fazia o levava ao limiar do desespero. Queria conversar com ela, tocá-la, senti-la. Ela, por outro lado, foi muito bem-sucedida em ignorá-lo. Após o jantar foram servidas taças de cerveja, e o faraó foi o primeiro a se ausentar. Não surpreendeu Áster em nada, o homem nunca tinha tempo para a família e isso não mudaria por causa do casamento do filho mais velho. Ele dirigiu os olhos para a mãe e viu que ela observava o marido enquanto ele se afastava acompanhado de alguns guardas. Nesse momento Áster pôde ver o sofrimento nos olhos dela. Quem a via de fora jamais saberia, mas Áster era o seu filho primogênito e já vira esse mesmo olhar no rosto da mãe tantas vezes ao longo dos anos que decorara a dor contida neles. Isso o enfureceu mais do que tudo e o fez recobrar as razões por se opor com tanto fervor àquele espetáculo. Ele não podia fraquejar, não por uma mulher e muito menos por algo tão fútil quanto desejo. Não precisava de Zaya para solucionar o problema, qualquer mulher poderia dar prazer a ele. Para provar isso mandaria que levassem uma meretriz para suas habitações mais tarde, na verdade, naquele instante. Procurou Zaya com os olhos e a encontrou em um canto do salão, sozinha. Ele fora leve demais na noite anterior e por esse motivo ela ainda estava ali, talvez fosse a hora de deixar suas intenções mais claras. Zaya se virou para Áster bem no momento que chegou até ela. Em seus olhos Áster viu as chamas da raiva que ela sentia. — A que devo a honra de sua companhia, alteza? O tom de voz era doce, mas Áster já podia distinguir o veneno que escorria nas palavras. Zaya estava tão comportada e graciosa, nem parecia a fera cheia de dentes afiados que esmurrou o nariz dele na noite anterior. — Quem vê você falando assim, nem imagina que costuma subir em árvores para ver homens pelados. Duas nuvens cor de rosa apareceram nas maçãs do rosto de Zaya. Aquela cor capturou os sentidos de Áster, e ele se perguntou se a pele dela também ficaria daquela cor após um encontro sexual vigoroso. — Eu já disse que não tentava te ver pelado! — Zaya se defendeu, falava baixo, por entre os dentes. — Não? Eu senti seus olhos em mim, feiticeira, admita que você queria ver meu traseiro nu. Ela ficou ainda mais vermelha, se é que era possível. Um vermelho tão atraente quanto as curvas fartas de seus quadris. Ele adorava os quadris dela, imaginou-a montada em cima dele cavalgando-o com loucura até não ter mais forças nas pernas. — Não mude o foco principal da noite passada, você me enganou! — Zaya o acusou enquanto o fulminava com os olhos. — Me fez acreditar que era um guarda do palácio. Por que não me contou que era o príncipe? — E estragar o prazer de ver sua cara de surpresa? — Áster deu um sorriso esperto e viu que estava muito perto de tirá-la do sério. A mulher na sua frente era explosiva e atrevida, uma combinação nem um pouco saudável, mas atrativa como o pecado. Ele desejou mergulhar na piscina de sua inocência e se embebedar. — Você queria me afugentar, queria me deixar com medo para me fazer ir embora. — E se você fosse um pouco esperta, teria ido. — Isso é tudo que pode fazer? — Zaya disse com firmeza. Ao olhar nos olhos dela, Áster teve a certeza de que ela não desistiria. — Acostume-se com a ideia príncipe, esse casamento acontecerá. Para a nossa felicidade, não teremos que nos aguentar o tempo todo, apenas o suficiente para trazer um herdeiro para a coroa. Áster sentiu uma onda interminável de desejo passar por todo o corpo ao se imaginar fazendo um filho com ela. Sim, seria maravilhoso. Satisfatório ao extremo e inigualável. Logo o desejo foi afastado pela frustração quando ele se lembrou que um filho era a última coisa que queria. — Não se engane, você jamais seria mulher o suficiente para carregar o meu filho em seu ventre — zombou dela e deu uma olhada lasciva no corpo de Zaya. — Ainda que eu adorasse passar algumas horas rolando entre lençóis com você, só para isso serviria, e nada mais. Vem de origem duvidosa e é muito provável que seja infértil. Pode ser boa para outras coisas, mas para ser mãe do meu primogênito... você não será nunca. Áster pôde ver que atingiu a vaidade de Zaya com força brutal. Viu o movimento da garganta dela ao engolir em seco, e ela desviou o olhar para o chão. Pensou que talvez Zaya fosse começar a chorar, todas as mulheres faziam isso logo após ele lhes partir o coração. Ela não, Zaya nunca cansava de surpreendê-lo e, naquele momento, aqueles olhos que ele tanto ansiava, continham uma raiva cruel e a única intenção de revidar o golpe. — Você sequer me conhece e solta uma série de presunções sobre mim, mas o que eu poderia esperar de um homem que não fez nenhum esforço para ter tudo que tem? — Seu olhar inclemente deixou Áster paralisado. — Você é mesquinho, presunçoso e cruel, e acredite em mim quando digo que eu adoraria não ter que me casar com você, mas quero ser rainha e, por infelicidade, você está no meu caminho. Áster tentou encontrar palavras para rebater à afronta, mas elas ficaram presas em sua boca. Ele apertou os olhos diante de tamanha petulância. Qualquer pessoa que falasse aquilo para o herdeiro do trono teria a língua arrancada no instante seguinte, mas tudo com aquela feiticeira era diferente. Ele não deveria tocá-la, mas estava além da própria capacidade de autocontrole. Ela ainda tentou se esquivar quando ele ergueu a mão, mas Áster era mais rápido e capturou queixo de Zaya. Ela o encarou furiosa como uma pantera quando ele tocou em seus lábios macios com o polegar, absorvendo-a no tato. Então Áster se aproximou do rosto dela, próximo o bastante para ela pensar que ele a beijaria, mas quando por sua boca escapou um suspiro doce de resistência, ele desviou o caminho para seu ouvido: — Bem-vinda a realeza, minha doçura, você desejará com todas as forças ter ido embora quando eu te dei a oportunidade. EU POSSO FAZER ISSO, POSSO FAZER. Zaya repetiu para si mesma, quando tudo que mais queria era se retirar daquele salão que se tornou pequeno demais. Sentindo o peso de inúmeros olhares sobre ela, observou as portas escancaradas por onde Áster acabara de passar sem se preocupar com o que as pessoas achariam, sem dar a menor importância no quanto ela sentira-se constrangida ao ser abandonada no banquete sediado para celebrar a união dos dois. Como se já não fosse o suficiente ter que passar a noite inteira aturando os olhares arrogantes daquelas pessoas sobre ela, sentia-se uma intrusa no ninho. Com certeza era, Zaya não se identificou com nenhum deles. Uma parte das mulheres só falavam sobre tecelagem e pintura e a outra metade reclamava sempre sobre seus maridos e seus casamentos enfadonhos. O que apenas comprovava a teoria de Zaya de que a vida de uma mulher na realeza era um tédio absoluto. Quando Áster se afastou, saindo do salão sem olhar para trás, Zaya pôde sentir a satisfação das mulheres sobre ela. Estava estampado em suas expressões a arrogância e as palavras que ela sabia que pensavam: o príncipe merece algo muito melhor e faria certo ao descartá-la tão rude, daquela maneira. Eu nunca o perdoarei por me ter feito passar por isso! Pífio... Ficou parada sob o olhar de todos sem conseguir se mover. Até que, para seu grande alívio, alguém se aproximou, fazendo o burburinho de vozes voltar a circular pelo salão. — Bom, não poderão dizer que não foi um banquete memorável. — Seu salvador disse. Era o príncipe mais novo, o único que não fora falar com Zaya até então. Antes do jantar o irmão do meio, Darwish, fora cumprimentá-la. Ele era um tipo perigoso, como ela presumira, e seu charme era incontestável. Ele conseguia deixar uma mulher enrubescida sem ser indecente, apenas com os olhares escrutínios. Mas aquele irmão na sua frente emanava cortesia. Ele deixava as pessoas a vontade. — Muito prazer, sou Ramessés, de longe a pessoa mais sã dessa família. — Ele se curvou, galante. — Sou Zaya. — disse, embora ele já soubesse. — Se você não fugiu até agora, receio que não o fará mais. O que me faz questionar sua sanidade. Algo no sorriso caloroso conseguiu afastar a sombra da raiva e da vergonha que consumia Zaya até poucos instantes. — Você não é o único a questioná-la. O sorriso dele se expandiu chegando aos olhos. — Com o tempo você aprenderá que um jantar com minha família nunca é apenas um jantar. Sempre haverá um escândalo prestes a acontecer, acredite. Ou alguém será pego aos amassos atrás de uma cortina, ou um de meus tios começará um discurso constrangedor que insultará no mínimo metade dos convidados. Zaya esqueceu de onde estava e acabou rindo alto. Os olhos castanhos de Ramessés mostraram uma satisfação plena ao vê-la sorrir, e ela pôde ver que aquela era a real intenção dele ao se aproximar: fazê-la sorrir. Ramessés passou a ser o príncipe preferido de Zaya. — Eu detesto essas reuniões. — Ele continuou. — Então por que as frequenta? — Pela comida, óbvio. — Piscou um olho. — É uma razão muito plausível. Ramessés andou até a mesa onde serviam alguns aperitivos e a puxou com ele com uma mão em suas costas. Zaya gostou do toque dele, não se encolheu e nem a fez sentir-se como se lhe faltasse o fôlego. Era muito agradável. Nada demais, apenas bem-vindo. — Minha mãe mencionou que você veio de um templo de esposas de Rá. Ouço falar desses lugares desde menino, é verdade o que dizem? — perguntou enquanto enchia dois cálices com cerveja e estendia um para ela. — Depende do que você se refere. — Zaya bebericou do seu copo. A bebida era muito forte e ardeu suas narinas. — Dizem que são um paraíso cheio de virgens de todas as partes do mundo. As mulheres se banham ao ar livre, dançam seminuas em volta de fogueiras e compõem canções indecentes sobre marinheiros e heróis de guerra. — O príncipe falava como se vislumbrasse a cena. Zaya riu, o lugar estava tão perto de ser um paraíso quanto ela estava de ser recatada. — As mulheres que são levadas para Astarte estão lá por duas razões: ou foram abandonadas por suas famílias ou foram obrigadas por não terem nenhuma outra opção. Sinto muito por acabar com suas fantasias masculinas, mas não podia estar mais errado. O sorriso afável de Ramessés vacilou um pouco, e ele teve a decência de se mostrar envergonhado. Aquilo era um fato interessante. Zaya nunca viu um homem demonstrar tamanho cavalheirismo, ou vergonha na cara, pelo menos. — Desculpe, eu não podia imaginar — disse, e Zaya viu sinceridade nele. Ela se perguntou se todas aquelas pessoas pensavam daquela maneira. Se achavam que tinham vidas privilegiadas em Astarte e por essa razão ninguém fazia nada para mudar a realidade grotesca do que passavam. — Tudo bem, você não tem culpa. O homem inclinou de leve a cabeça. — Bom, você está aqui agora. Se quiser dançar nua ao redor de uma fogueira ninguém a impedirá. Oura vez ele conseguiu arrancar uma risada dela. Por que seu prometido não podia ser esse príncipe ao invés daquele brutamontes? Seria muito mais fácil estar casada com alguém que a fazia sorrir, além de que ele, como todos os outros irmãos, era muito bonito. Embora fosse mais moço. — Obrigada, alteza. — Para você, sou Ramessés — corrigiu com gentileza. — Ramessés, então. Se tinha alguma possibilidade de se tornar amiga de alguém ali de verdade, com certeza seria dele. Para a felicidade de Zaya, ela não teve que esperar muito mais até poder se ausentar. A própria Zahara a acompanhou até o harém. A mulher estava luminosa, feliz e animada, Zaya não entendia o motivo, por isso se perguntou se a rainha não percebera que a noite fora um completo desastre. — Você foi muito bem, querida. Agora tudo o que resta é a sua regalia de Ísis para Áster. Você fará isso em dois dias, terá um tempo para pensar no que fazer e se preparar. Ainda mais essa. Zaya teria que inventar uma habilidade que não tinha para fazer um homem que detestava se interessar por ela. Deuses! — Boa noite, querida. Que Isis guarde os seus sonhos. — A rainha beijou a testa dela. Quando, enfim, Zaya pôde se refugiar no harém, achando que teria a paz que ansiava, Norvina e Darissa agarraram seus braços, puxaram-na até o tapete de almofadas no centro do harém e a soterraram com perguntas. — O que comeram? — Sobre o que falaram? — Como ele é? — Nos conte tudo! Zaya piscou, débil, pensando sobre a noite que teve. Um bolo doloroso se formou em sua garganta. As palavras de Áster se repetiam em sua cabeça. Ela servia apenas para algumas horas de prazer entre os lençóis, e apenas isso. Apenas isso... — Nós comemos carneiro com legumes, pão e cerveja. Falamos sobre diversos assuntos. E o príncipe é... — Pensou em uma palavra que fosse boa o suficiente para descrever o ordinário. — Bom, ele é um príncipe. A excitação despencou do rosto das duas. — Se é só isso que você tem a dizer sobre seu futuro marido, já posso adivinhar como será seu casamento. — Norvina disse, fazendo Zaya se levantar incomodada com o olhar inquisidor da amiga. — Não há o que falar, é um homem como qualquer outro! Zaya sabia que Áster estava longe de ser um homem como qualquer outro e era isso que mais a matava. Ainda que tentasse detestá-lo, a voz em seu subconsciente insistia em lembrá-la da maneira como Áster mexera com ela na noite anterior. A maneira como a tocara, ele a olhara como se fosse lambê-la inteira. Um arrepio desceu pelo corpo de Zaya, enrijecendo os seus seios, e parou no meio das pernas dela com uma dolorida pulsação. Zaya estremeceu, assustada com o próprio corpo. Nunca sentira nada parecido até conhecê-lo. É tão ultrajante e inadmissível! — Digamos que ele é tudo o que dizem, e é apenas isso que vou dizer. As amigas perceberam que ela não queria mais falar sobre Áster e a respeitaram. Zaya andou para trás de um biombo e começou a se despir das roupas que a faziam se sentir ridícula. Mesmo que a rainha a cobrisse com o tecido mais caro e reluzente, com as joias mais preciosas, de nada serviria, por baixo de tudo sempre restaria alguém que não servia para mais nada além de algumas horas de prazer. Puxou os lençóis de linho sedoso da cama e se deitou ali, bufando em sua amargura. As muitas emoções que teve naquele dia a fizeram adormecer rápido. Zaya acordou no meio da noite, ouvindo o barulho de água sendo agitada. Após escutar por um tempo, percebeu que o som era proveniente dos jardins ao lado do harém. As portas da sacada estavam abertas, e as cortinas voavam devagar com a brisa noturna. Soava como um convite. Antes que percebesse, Zaya colocava os pés no chão frio, tomando cuidado para não acordar Norvina, que dormia do outro lado da cama. Andou até a sacada, forçando os olhos para distinguirem alguma coisa através da penumbra da noite. A silhueta era distinta, mas não demorou para que Zaya reconhecesse o indivíduo. Era Áster. Ele nadava pela água da piscina com habilidade. Os músculos bem trabalhados dos braços e costas do príncipe se contraíam de um jeito muito sensual cada vez que ele dava uma nova braçada. O reflexo da luz da lua em na pele morena dele, fascinou-a e ela soube que não havia nada na terra que fosse mais sedutor do que aquele homem. Áster continuou com seu nado ritmado, ia de uma borda para a outra e repetia, até que parou e mergulhou de súbito, sumindo debaixo d’água. Zaya esperou que ele retornasse em algum ponto da piscina, mas se passaram segundos e Áster não voltou. A água começou a ficar calma, e o medo de que pudesse ter acontecido alguma coisa fez com que ela descesse a escada lateral da varanda e andasse até a piscina. Zaya olhou para a água escura atrás de algum sinal daquele inconsequente, mas foi impossível enxergar qualquer coisa na escuridão. — Áster! — chamou-o em um sussurro, mas não obteve resposta. O desespero bateu forte dentro dela e quando deu a volta para retornar para dentro do harém a fim de chamar por ajuda, deu de cara com uma muralha. Áster estava parado bem atrás dela, olhando-a presunçoso, e a pior parte nem era isso, mas o fato de que estava nu. Nem um paninho sequer. Zaya sentiu o rosto se cobrir de chamas. — Eu sabia que você viria. — O que você está fazendo? — Ela indagou num fiapo de voz. Precisou de todo o esforço do mundo para manter os olhos no rosto dele. Áster deu de ombros, muito confortável com a própria nudez. — Não era isso que você queria noite passada? Me ver nadando nu? — Eu já disse que não era isso... — Não minta para si mesma, se não quisesse, não estaria aqui agora. — Áster a interrompeu, e Zaya o odiou por ele ter uma ponta de razão. Resolveu admitir para si mesma, já que estava tão óbvio. Sim, ela queria conhecer a anatomia de um homem de verdade, e Áster estava ali na frente dela, deixando-a ver à vontade. Ah vamos, eu não sou tão terrível por olhar, sou? Ele seria o marido dela muito em breve, cedo ou tarde Zaya veria tudo aquilo de qualquer maneira, então que fosse cedo, pelo menos saberia o que esperar. Soltando as poucas cordas de sua resistência, ela tirou os olhos do rosto dele e os desceu pelo peitoral bem definido e cheio de gotículas de água. Uma pequena gota atrevida escapou dos cabelos dele, escorreu pelo pescoço grosso, deslizou pelo peito e então pelo abdômen de Adônis, serpenteou pela púbis bem esculpida até chegar nas partes baixas de Áster. Não tinha um pelo sequer, nenhum só. Dá para ver tudo e... deuses! Isso sim que é um cajado. Zaya voltou os olhos para o rosto dele, rápido. Ela sentia toda a pele pinicar de vergonha, entorpecimento, excitação. Mas o que viu nos olhos de Áster conseguiu atingi-la com muito mais força do que a visão do seu corpo escultural. Era a necessidade visceral. Ele a desejava. — Não se sinta envergonhada. As mulheres também buscam saciar os próprios desejos, Zaya. Você não tem desejos? A voz de Áster era sedutora e grave. Logo Zaya se viu capturada por ela. Ele deu um passo para mais perto, rodeando-a como um leão. — Responda a minha pergunta. Zaya não sabia a que tipo de desejos ele se referia. Até o dia anterior, não conseguia pensar em ver um homem nu sem sentir repugnância. Até mesmo naquele momento ela não conseguia olhar direto para ele. — Você não sabe a que me refiro. — Áster constatou o óbvio, e a expressão de deboche no rosto dele a deixou furiosa. Detestava ser tratada como uma tola inocente, mesmo que o fosse. — É óbvio que sei — rebateu, petulante, e ele ergueu uma sobrancelha. — Sabe? — Sei. Mentirosa. O subconsciente de Zaya gritou. Áster deu um passo mais próximo dela, e Zaya se desesperou, olhando de um lado para o outro, atrás de uma rota de fuga. Ele parou a um metro dela e cruzou os braços fortes. — Então me diga um. Zaya ficou dura como uma porta. Minha maldita boca que não consegue se manter em silêncio. — Bom... — balbuciou. — Tem os beijos. — A palavra saiu cheia de vergonha. Ele inclinou a cabeça de lado. — Beijos... — repetiu Áster, com muito mais audácia. Encarando a boca dela com intensidade. — O que mais? E ainda tinha mais? Óbvio que ela sabia que tinha mais, mas não sabia bem o que faltava. Sem perceber, lembrou-se de Ravic. A sensação ruim permeou o estômago de Zaya, e ela decidiu afastá-lo para longe. Não, não podia ser daquela maneira, tudo naquilo parecia errado e grotesco. Pensou um pouco mais. — Existem vários tipos de beijos. Não somente os que se dão na boca. — Ela viu o nó da garganta de Áster subir e descer de maneira sedutora. — Sobre isso você tem razão. Eu poderia enumerar pelo menos dez partes do seu corpo onde poderia beijar. Muito tarde Zaya percebeu que Áster estava perto demais. Tão perto que a alcançou com a mão, destruindo todas as possibilidades de ela fugir. O braço de Áster enlaçou a cintura dela, e Zaya estremeceu inteira em seu eixo quando o corpo nu do príncipe se espremeu contra o dela. A água que o cobria molhou a túnica fina que ela usava, e o vento frio da noite beijou seus mamilos rígidos. A respiração de Áster bateu na testa de Zaya, mas ela não ousou olhar para cima. Encarou a garganta masculina, sentindo o cheiro de pele molhada. O pobre coração de Zaya já não a pertencia quando Áster aproximou o rosto dela e afastou os cabelos da noiva para trás dos ombros. — Eu poderia te beijar aqui. — A voz grossa dele a embriagou, e Zaya derreteu quando a respiração de Áster tocou a pele fria do ombro dela. Ele chegou com a boca muito perto, mas não encostou nela, o que a frustrou bastante. — Poderia te beijar aqui. — Áster estava no pescoço de Zaya, em uma parte atrás da orelha que ela sequer sabia ser tão sensível. Outra vez chegou perto, mas não a beijou de fato. Ela exalou forte em protesto. — Áster. — Ou... — Ele voltou a dizer, descendo a cabeça atrevida na altura dos seios dela. Os mamilos já estavam tão rígidos que formavam pontas na túnica, Zaya os sentia pesados. Carentes. — Eu poderia te beijar aqui, tomá-los em minha boca, mamá-los. Quando o hálito de Áster resvalou contra o mamilo sensível, o corpo dela entrou em chamas. Nunca em toda a vida imaginou algo tão intenso, e tudo nela pulsava e ardia pela ânsia de que ele fizesse o que prometia. De que os tomasse em sua boca e mamasse nela. Entregou-se, apenas se deu para ele, para a indecência que era, e deixou a cabeça pender para trás, concedendo a Áster toda a permissão da qual ele precisava. — Eu poderia, mas não vou. Zaya sentiu uma espécie de dor quando o corpo quente do homem se afastou do dela de súbito. Olhou para Áster em busca de explicação. Ele já estava próximo a borda da piscina, pegou as vestes que estavam jogadas no chão e as vestiu apressado. O olhar de Áster era de júbilo cruel, vendo-a ali, frustrada e perdida com o que acabara de acontecer. — Não é nenhum pouco bom, não é? Desejar com alucinação alguém e não ter seu desejo aplacado. — Ele bateu no peito com fulgor. — Agora eu a peguei em seu próprio feitiço. Zaya franziu o cenho, não fazia a menor ideia do que ele falava. — Você é louco ou o quê? Áster terminou de vestir o saiote. — Sei o porquê você me perseguiu por todos esses anos. Era tudo um plano para me ter de joelhos quando chegasse a hora. Para me deixar tão cego de desejo que eu seria incapaz de me deitar com outra mulher. — Ele era muito específico. — Para me fazer até mesmo aceitar esse casamento. Mas preste bem atenção, você não me terá nunca! Sim, ele é louco. Zaya achou o comportamento de Áster ofensivo e as palavras a magoaram. Ainda mais porque o corpo dela continuava a ansiar pelo toque dele, com certa dor. — Ponha-se no seu lugar principezinho, você pode até ser bom com as mulheres, mas não a ponto de me fazer persegui-lo. Agora mesmo se me fosse dada a chance, eu escolheria qualquer outro a você! Em um piscar de olhos, Áster estava em cima dela, emanando raiva e tensão por toda a pele bronzeada. — Para a sua infelicidade é a mim que você terá, e terei a eternidade para fazê-la se arrepender por ter dito isso. Zaya rosnou de raiva e de indignação, bateu com o pé. — Continue tentando, me mostre seu pior lado. Eu estou muito longe de ir embora — vociferou e deu as costas, estava farta daquele homem. Zaya cruzou o jardim rápido e subiu as escadas laterais em direção ao harém. Ela não devia ter olhado para trás, mas precisava saber se ele ainda estava ali. Contrariando a si mesma, ela se virou e viu que ele se fora. Bufou, irritada por ser tão tola, e voltou para a cama, deitando-se ao lado de Norvina. Se era guerra que Áster queria, então ele procurou no lugar certo. Pois essa era a especialidade de Zaya. — SE EU SOUBESSE QUE VOCÊ ME FARIA de lacaio, teria pedido muito mais do que apenas alguns pedaços de bolo como pagamento. — Ramessés resmungou enquanto fazia um esforço monumental para continuar remando. — Se você soubesse o trabalho que eu tive para contrabandear os pedaços de bolo da cozinha sem que Lorna percebesse, não diria isso. — Áster retorquiu. Ramessés balançou a cabeça, entendia o irmão. Lorna era a cozinheira do palácio desde que eram meninos. Ela tinha as mãos abençoadas, em compensação era tão mortífera quanto uma esfinge. Quando pequeno, Ramessés perdera as contas de quantas vezes fora pego furtando doces, e ela o arrastara para fora da cozinha. Suas orelhas ficavam quentes só de lembrar. — Não acha que está pegando um pouco pesado? — perguntou para Áster, sem fôlego ao empurrar os remos contra a água. A madrugada estava em seu modo mais silencioso, o que tornava o momento perfeito para Áster fazer o que planejava. — Não é mais fácil deixar que ela saiba da sua reputação de libertino? — Ela já sabe — respondeu com tédio. Ramessés parou por um momento e encarou o irmão com as sobrancelhas levantadas, estarrecido. — Interessante — murmurou. — E já tentou agir... você sabe, como você? Áster bufou. — Nada do que fiz a assustou, ela é diferente das outras mulheres. — Já se perguntou os motivos por ela se manter tão resistente? Não acha que ela talvez queira você? Quem dera fosse! — Não me quer. Me chamou de mesquinho e cruel e ainda disse que o único objetivo com o casamento é se tornar rainha. É esse o verdadeiro motivo dela. — A voz de Áster saiu toda amarga e ressentida. Ramessés jogou a cabeça para trás em uma gargalhada. — Ah irmão, agora entendo por que nossa mãe levou tantos meses fora. Buscou pela única mulher na terra que não se curvaria diante de você. Posso ver. Ela é bonita e corajosa, cuide dela com fervor, caso Darwish descubra esse lado de Zaya, você terá um concorrente. Todo o corpo de Áster ficou tenso. Darwish não seria capaz. Não! A não ser que pensasse que Áster não tinha pretensão de fazer de Zaya sua esposa. E era o que acontecia naquele momento. O príncipe logo estava com uma carranca brava. Zaya dissera na cara de Áster que escolheria qualquer outro no lugar dele se tivesse a chance, e ele sabia que se Darwish quisesse, poderia fazer até mesmo uma planta se apaixonar por ele. Áster sentiu medo, mas então se lembrou que não pretendia se casar com ela. Não, não me importo com isso. Repetiu na cabeça como um mantra. — Deixe que ele saiba. — Deu de ombros. — Ainda acho que isso pode ser um pouco demais. E se ela se machucar? Áster maneou com a cabeça. — Estes animais são domesticados e muito bem alimentados. Não quero machucá-la, apenas assustá-la. Amanhã será o dia da regalia de Ísis e depois disso não terei mais outra oportunidade. Nossa mãe já prepara todo o arsenal para esse casamento, não posso perder mais tempo — disse, ignorando a verdade que ecoava em sua cabeça, a verdadeira razão pela a urgência. Ele não podia arriscar, não podia esperar para depois do casamento, porque sabia que se manter lúcido seria impossível. O esforço que Áster teve que fazer para não beijar Zaya na noite anterior o fez perceber isso. Era antinatural, era enlouquecedor e tudo em que a mente de Áster pensava era Zaya. Em estar com ela, em se juntar a ela da maneira mais crua e vulgar possível. O desejo se enterrava sob a pele dele, consumindo-o como fogo. Sequer conseguiu se deitar com a messalina como pretendera ao abandonar o salão na noite anterior. Áster nunca sentiu peso na consciência por nada, e se apavorou de tal maneira que quis descontar a frustração em Zaya. Queria que ela sentisse na pele como era horrível ser escravo da própria paixão. Para a infelicidade de Áster, não sentiu-se muito feliz como imaginou que iria se sentir ao se vingar dela. Dormiu muito mais amargurado e passou a noite rolando entre os lençóis com um desejo que parecia deixar todo o corpo dele em carne viva. Toda vez que Áster via Zaya, a vontade incompressível de possuí-la assumia as rédeas do corpo dele, e estava cada vez pior. Sabia que ela estava ali, sob o mesmo teto que ele, doce e virginal, preparando-se para se entregar para ele de boa vontade. Áster quase sentia falta da época em que ela existia apenas em seus sonhos. Talvez o motivo para sonhar com Zaya durante todos aqueles anos fosse os deuses tentando alertá-lo de que a mulher seria a sua perdição e a sua ruína e, de frente para tão poucas opções, Áster não podia continuar sentado, esperando pela misericórdia divina. Tentou se lembrar a todo momento das palavras que ela dissera. Zaya o trocaria por qualquer outro se tivesse a chance, e Áster se apegou a isso. Ela não queria se casar com ele e ter os seus filhos com o intuito de construir uma família ao lado dele. Ela queria apenas ser a rainha. Não se importava com o restante, muito menos com quem ele passaria as noites, e, por esse motivo, Áster não desistiria. Não lhe restava alternativas, tinha que apelar para algo mais direto. — Não te encanta nada do que ela representa? Ter um casamento, alguém com quem compartilhar a vida e, é claro, ter muitos filhos? Áster olhou para o irmão como se ele tivesse dito a maior das insanidades. Questionou-se se Ramessés já se esquecera de tudo. De como as infâncias deles foram horríveis por estarem sempre à sombra do terrível casamento dos pais. De todas às vezes que desejaram um pai presente, e este estava sempre ocupado com algo mais importante. De todas às vezes que tiveram que assistir a dor da mãe e sua queda em direção à ruína. Casamento para Áster não significava nada além disso, e ele preferia ser esquecido pelos deuses a ter que condenar a si mesmo e a seus filhos ao mesmo destino que o dele e o de seus irmãos. — Isso quer dizer que se nossa mãe aparecer com uma mulher para você amanhã, você se casaria com ela? Ramessés coçou o queixo, pensativo. — Se ela fosse tão interessante quanto Zaya, talvez. Áster sentiu a descrença refletida no próprio rosto. — Então se prepare, ela não descansará até que todos estejamos casados. Ramessés engoliu em seco e no momento que abriria a boca para falar algo, o movimento na margem do lago os fez ficarem em alerta. Logo Áster viu os olhos brilhantes do animal boiarem tranquilos sobre a água calma. Cauteloso. À medida que se aproximava, viu com mais nitidez o couro da carapaça esverdeada e se preparou. Segurou a corda nas mãos, esperou o momento perfeito para enlaçar o pescoço do réptil e puxá- lo com força para dentro do barco. Ele se debateu um pouco, mas Áster era mais forte e já se acostumara caçar os animais desde os quinze anos de idade. O réptil ainda era um filhote, mas já tinha o tamanho suficiente para apavorar mulheres atrevidas. Os homens do faraó treinaram bem aqueles animais, por isso, o que Áster tinha sob o braço não fez muito estardalhaço quando voltaram para o palácio. Por sorte era madrugada e ninguém além dos guardas estavam acordados. Os dois príncipes só tiveram um pouco de dificuldade para carregar o animal até o segundo andar. Ao chegarem lá, Áster se manteve escondido atrás de uma pilastra enquanto Ramessés dispensava os guardas que protegiam a porta do harém. Áster escutou o sinal sonoro que o comparsa fez e andou para o corredor. Com muito esforço para não fazer barulho, colocou o animal para dentro do harém e o liberou da corda no pescoço. Rápido, fechou a porta em seguida. No caminho até os seus aposentos, Ramessés não parava de falar sobre como achava que aquela era uma péssima ideia, mas Áster só conseguia sorrir, com a perfeita certeza de que Zaya iria embora. A família real não costumava tomar o desjejum reunida. Nunca fora um costume. Era raro Kamilah acordar cedo, o faraó, sabiam-se os deuses o que fazia, a rainha ficava em seu cômodo da reclusão. Apenas Ramessés e Darwish, às vezes, reuniam-se com Áster. Mas por aquele ser o dia em que a formosa prometida do príncipe herdeiro faria a apresentação diante dele na tentativa falha de impressioná-lo, Zahara colocou o palácio para trabalhar cedo e preparar tudo para mais tarde. Da maneira como ele previra, a rainha marcara o desjejum em um salão no segundo andar que dava acesso ao corredor que levava ao harém. Ramessés comia rápido, porque sabia que a qualquer minuto o estardalhaço aconteceria. No momento em que Áster bebia um gole do chá, um barulho estrondoso veio de um dos corredores do segundo andar. Darwish, Zahara e Kamilah se levantaram assustados das cadeiras. — Em nome de Amon-Rá, o que foi isso? — perguntou Ramessés, cínico. Áster retirou um damasco de uma tigela de frutas e se escorou na cadeira para apreciar melhor o seu momento de glória. O grito estridente de Zaya ecoou pelo palácio, depois veio o estrondo da porta do harém que foi escancarada e não demorou para que ela, acompanhada de outras duas mulheres, aparecessem correndo na sala de desjejum. — Crocodilo! Há um crocodilo no harém! — Zaya gritou em pânico, sem nem se dar conta dos trajes que cobriam o seu corpo delgado. Ou a falta deles. Áster não calculara que ela apareceria no salão, perante toda a família dele, seminua. Foi atingido com força no peito e perdeu o ar. Nem mesmo o pavor no rosto feminino foi capaz de ofuscar a beleza e delicadeza de Zaya. Os cabelos soltos ao redor do corpo como um véu de fios sedosos e o rosto sonolento ao acabar de acordar, eram insuperáveis. O pior de tudo foi olhar para a camisola translúcida que ela vestia e perceber que era possível ver quase tudo através do pano. A cintura curvilínea, os contornos graciosos dos quadris, os montinhos macios que eram os seios, com as auréolas rosadas dos mamilos pequenos, e o triângulo tentador de pelos no meio das pernas de Zaya. — Que manhã mais abençoada! — disse Darwish, olhando para Zaya, e um desejo de morte cresceu no íntimo de Áster, com sede de sangue. Todos os instintos mais primitivos do príncipe herdeiro declamaram posse sobre ela dali em diante e, sem pensar nas consequências, Áster atravessou a sala em direção a Zaya, envolvendo-a em um abraço que tirou o fôlego dos dois. A PRINCÍPIO, TUDO O QUE ZAYA SENTIU FOI PAVOR. O peito firme pressionando a carne da sua bochecha e os braços fortes ao seu entorno pareciam querer fundi-la ao corpo musculoso de Áster. O cheiro de essência de lírio com canela invadiu o nariz de Zaya, deixando-a inebriada. O ardor de Áster atravessou a pele dela, assoprando o frio do medo para longe, substituindo-o por calor — um calor agradável como o do sol às seis da manhã ou o de uma fogueira em uma noite glacial. Zaya cometeu a loucura de erguer os olhos para o rosto dele, nem mesmo os deuses, ou os curandeiros mais habilidosos, saberiam explicar tudo o que ela sentiu quando foi capturada pelas duas írises verdes e extraordinárias de Áster. Naquele momento, ele não era o príncipe tirano e cínico que ela conhecia a maior parte do tempo. Zaya viu ali dentro o fogo de um homem, e ela era o alvo do desejo mais profundo que ele sentia. — Desculpe atrapalhar o interlúdio do casal, mas você acabou de dizer que havia um crocodilo no harém, Zaya? Kamilah interrompeu o momento, e Zaya se deu conta de que estavam sob os olhares de todos os presentes na sala bem iluminada pelos raios solares que entravam pelas janelas retangulares. Exceto por Darwish, este tinha os olhos presos em Norvina. — Sim, um crocodilo rugoso e cheio de dentes. — Foi Norvina quem respondeu, indiferente ao olhar que o príncipe astuto dava para ela. Darwish soltou um audível riso de escárnio que enfim chamou a atenção da mulher para ele. — Isso é ridículo, os crocodilos ficam muito longe do palácio, nas margens do rio, você deve ter confundido com um gato. Norvina o olhou de cima a baixo com aquele olhar inquisidor que Zaya conhecia muito bem. Darwish acabara de entrar para a lista de desafetos da mulher. — Acho que eu saberia distinguir um gato pequeno de um crocodilo verde e asqueroso. — Rebateu, e Darwish semicerrou os olhos azuis, inclinando a cabeça para estudá-la. — Quem é você mesmo? — Darwish usou um tom desdenhoso. Norvina estalou a língua e virou a cara dissimulada, deixando-o sem resposta. Ele ergueu as sobrancelhas, desafiado pela atitude da mulher. — Essas são Norvina e Darissa, Darwish, elas são irmãs de Zaya — disse a rainha e usou uma sineta para chamar algum funcionário do palácio. Logo um guarda que esperava à porta do salão apareceu no meio da confusão. — Zaid, as moças estão dizendo que há um crocodilo em seus aposentos, você poderia ir até lá para ver isso? — Sim, majestade. O homem se foi dali e, enquanto obedecia a ordem, todos voltaram a ficar em silêncio com os olhares em Zaya e em Áster, que ainda a rodeava com os braços como um maldito polvo. — Será que você poderia me soltar, não preciso de um protetor. — Ela reclamou, incomodada por tê-lo tão perto. O cheiro dele a embriagava. Áster soltou um pouco os músculos, mas não se afastou. Zaya ainda podia sentir a respiração dele se misturar com a dela. — Um protetor talvez não, mas de uma roupa com certeza. Você acabou de se mostrar na frente de meus irmãos, mulher. — Ele parecia revoltado, e só então Zaya se lembrou que trajava roupas de dormir de linho fino. Que tola fui! Usou as mãos para cobrir os seios, mas o rosto queimou por saber que Áster os vira. Ele ainda manteve os olhos irritantes sobre ela, como se tudo que Zaya fizesse fosse mais um motivo para recriminá-la. — Por que você se importa? É tudo o que uma mulher como eu pode te oferecer, não é? — perguntou, decidida a não o deixar intimidá-la. Zaya tirou as mãos dos seios, deixando-os livres. Ela não tinha do que se envergonhar. Se Áster não se dava ao esforço de respeitá-la diante daquelas pessoas, ela também não faria isso por ele. — Cubra-se. — Áster ordenou por entre os dentes. Zaya apenas ergueu o queixo. — É bom que vejam, caso não dê certo com você, já tenho outras duas opções para me manter na realeza. Ela viu com nitidez quando a íris de Áster se dilatou e o fogo do caos queimou ali dentro com ferocidade. — Se você não cobrir, eu mesmo cobrirei. — Ele rosnou, pegou-a pela mão e começou arrastá-la em direção as portas de saída do salão. — O que pensa que está fazendo? — Zaya perguntou em um fiapo de voz, envergonhada com a cena que o maldito criava. — Vou me certificar de que não exista nenhum outro, nunca mais! — respondeu, fazendo um calafrio descer pela coluna dela. Independente do que ele planejava fazer, não parecia que seria de um jeito gentil. Zaya sentiu um desejo crescer em seu baixo ventre e percebeu, com culpa, que desejava que ele o fizesse, que a marcasse com rudeza. Pelos deuses, o que está acontecendo comigo? Ela não podia permitir que aquilo acontecesse sob circunstância nenhuma, começaria a espernear para soltar-se dele quando o guarda retornou correndo feito um louco pelo corredor. — Majestade, é um crocodilo filhote! — berrou o homem, e Kamilah soltou um grito agudo quando o animal apareceu correndo atrás do guarda. — Em nome de todos os deuses! — Ramessés levou uma mão a testa. — Protejam a rainha! — Darwish gritou. Logo uma profusão de outros guardas irromperam pela porta para segurar a mulher e a jogar sobre a mesa, espalhando a louça do desjejum para todos os lados. Antes que Zaya pudesse fazer algo, os braços de Áster a rodearam outra vez, e ele a ergueu com a facilidade de uma pena, carregando-a enquanto corria para refugiá-los sobre uma cadeira. O restante dos ocupantes se espalhou pelo salão para subir nas cadeiras que sobraram enquanto o animal dava voltas pela sala com a bocarra aberta, exibindo os inúmeros dentes pontiagudos e amarelos. — Áster, você disse que esse bicho era domado! — Ramessés gritou em pavor, empunhando uma banana para o bicho como se fosse uma espada. — E era! — Áster respondeu. — Zaid, esses não são os crocodilos treinados do faraó? — Sim, alteza, treinados para atacar! — Eu sabia, eu sabia que isso não daria certo. — Ramessés parecia que desmaiaria a qualquer instante. — Áster, você tem alguma coisa a ver com isso? — Zahara indagou, observando enquanto os guardas tentavam achar uma brecha para capturar o animal. Zaya olhou para o homem que a abraçava, esperando a resposta. — Claro que não! — Ele respondeu rápido, mas no tom de voz que usou, não havia tanta firmeza. — Pois poderia me explicar como um crocodilo filhote saiu do rio ao lado do palácio, entrou pelas nossas portas, ludibriando todos os guardas, e subiu as escadas do segundo andar até chegar no harém? — exigiu Zahara. Áster deu de ombros com uma expressão de falsa inocência. — Talvez esses sejam crocodilos especiais, com asas. A boca de Zaya se abriu, atônita, quando ela se deu conta do que acontecia. Foi ele! Ele! Ele colocou o crocodilo no harém. Olhou para o príncipe cretino e o encontrou encarando-a, desafiando- a a dizer qualquer coisa. Quando ele avisou que faria dos dias dela um martírio, Zaya nunca imaginara que ele fosse capaz de tais coisas. Ela acreditava que Áster a ignoraria, mas aquilo era demais. O homem na sua frente era mais cruel do que ela presumira, e Zaya sentiu-se tão, mas tão, estúpida por, mesmo lá no fundo, tê-lo desejado. — Zaya. — Ela olhou para Zahara quando essa a chamou. O tom de sua voz exigia cautela. Zaya sabia que a rainha estava com medo de que fosse a gota d'água que a levaria para longe dali. Ao olhar no rosto daquele maldito que se dizia príncipe, ela viu que era isso que ele esperava: que ela desistisse. As palavras de Áster se repetiam na cabeça dela, junto com as de seu pai e as de Zafir. Ela não merecia aquele lugar e nunca seria mulher o suficiente para ser a esposa ou para carregar o filho dele no ventre. Zaya passara o dia anterior nervosa por não ter nenhum talento bom o suficiente que demonstrasse que ela era digna de estar ali. Que era digna dele. Tanto Áster, quanto todas aquelas pessoas insistiam em tratá-la, olhar para ela, como se fosse alguém inferior e indesejada, e até mesmo alguém obstinada como ela tinha seus limites. Já que ele insistia tanto em tratá-la de tal maneira, talvez fosse a hora de Zaya começar a agir de acordo com o sangue que corria por suas veias. Assim, ela já sabia o que fazer na apresentação daquela tarde. Virou-se para Áster, determinada, e ainda pôde ver o pavor no olhar dele antes de juntar suas bocas em uma só. Ele estava empedernido e seus lábios não se moveram. Zaya não queria que se movessem, não queria que ele a beijasse. Queria apenas que ele soubesse por meio daquele ato que ela estava muito longe de se deixar ser intimidada. Mas quando Zaya estava prestes a se afastar, farta daquela situação, as mãos de Áster a agarraram na cintura e a boca dele possuiu a dela com lascívia, com vontade, com gana. Agora era ela quem estava dura. Nunca beijara daquela forma, na verdade de forma nenhuma, mas para Zaya sempre fora um toque de lábios e apenas isso. As mãos de Áster queimaram a pele dela quando subiram pelas suas costas e se infiltraram nos cabelos mais sensíveis de sua nuca. Zaya parou de sentir as pernas, precisava de apoio. Ele entendeu o apelo do corpo dela e a segurou, juntando seus corpos de maneira imoral ao agarrá-la pelos quadris. Os lábios de Áster se moveram para abrir os dela. Zaya não sabia o que deveria fazer, por isso deixou que ele a dominasse. Deu abertura e Áster a recompensou com a língua. Ele era incisivo, dominador, e ela sentiu cada fragmento de si, ser amordaçado parte por parte até estar tão entregue que não era mais capaz de lutar. Áster tinha gosto de damasco fresco, e ela nunca imaginou que fosse gostar tanto de ter o sabor de outra pessoa em sua boca. A ideia sempre pareceu tão repugnante, mas, naquele momento, ela só queria se aprofundar mais no beijo, sentir toda extensão do corpo de Áster e fazer parte dele tanto quanto ele fazia dela. Com os olhos fechados, ela podia sentir tudo. E isso é tão... é tão... único. Mas então Zaya se lembrou das razões para o beijo e foi o bastante para trazê-la para a realidade cruel. Ela fez um esforço colossal para se afastar e sentiu o mesmo da parte dele. Não olhou outra vez para Áster enquanto se recompunha. Não queria que ele visse o que fizera com ela e o que a fizera sentir. Eu o detesto e isso não significou nada. Zaya tentou se convencer. — Guarde um pouco para as bodas, irmão. — A voz de Darwish sobressaiu-se. Zaya encarou a garganta grossa do homem que ainda a segurava como se não quisesse deixá-la nunca. Com os braços, ela o repeliu, afastando-se de vez e sentiu quando ele voltou a ser o homem mais rígido que era. — Obrigada pelo presente, meu príncipe. — Ela disse, forçando um tom meloso de voz. Ninguém na sala pareceu entender A reação. Áster a olhou com uma expressão interrogativa, os lábios vermelhos pelo beijo. — O quê? — Ele estava atordoado e ainda um pouco rouco. — Presente? — repetiu Kamilah. — Ele acabou de colocar um crocodilo em seu quarto, e você diz que é um presente?! — Óbvio que sim, afinal os crocodilos representam o deus Sobek, protetor da fertilidade e da gravidez. — Zaya atalhou, olhando com paixão para o rosto embasbacado de Áster. Se ele não tivesse um nariz tão bonito, ela o socaria outra vez. Para quebrar. — Teremos filhos fortes e corajosos — provocou-o mais, passeando com a mão pelo peito dele. Quando Áster entendeu que era a maneira de Zaya demonstrar que ele não vencera, cerrou os olhos e agarrou o punho dela, levando-o aos lábios para beijá-la e mordê-la em forma de retaliação. — Pequena dissimulada. — Áster disse baixo, para que apenas ela o ouvisse. Os dentes do príncipe rasparam a carne do pulso dela fazendo com que a pele de Zaya queimasse e palpitasse. Ela puxou a mão antes que fosse capturada por aquelas carícias. — Grande pífio — sussurrou. Eles se encararam, desafiadores, por segundos tórridos, e Zaya se virou para a plateia que distribuía os olhares cada um para um canto da sala, menos para os dois. Logo os guardas conseguiram imobilizar a fera. Ela desceu da cadeira com graça, nem parecia que estava um verdadeiro caos por dentro. — Agora se me derem licença, eu devo me preparar, mais tarde terei uma apresentação para fazer. Sem dizer mais nada, deu as costas e saiu, mas não antes de ouvir Darwish: — Será que você não pode escolher outra noiva e deixá-la para mim, irmão? Que foi seguido pelo barulho de algo sendo atirado contra a parede. UM FRACASSO ABSOLUTO ERA POUCO para descrever aquele plano. Áster perdeu as rédeas da situação por completo ao bater os olhos em Zaya e tudo foi ladeira abaixo a cada segundo que passava e a tinha nos braços. Ela não era uma mulher comum, e ele não devia tê-la subestimado. De novo. Era a maior arma de Zaya contra ele, a falsa ingenuidade, e Áster não tinha nenhum escudo contra ela. Foi preciso forças para se afastar de Zaya quando tudo que mais queria era transformar o beijo em algo mais cru, mais forte e muito mais prazeroso. A pequena trapaceira escondia uma mulher voluptuosa debaixo de todas aquelas camadas de rabugice. Logo Áster, acostumado a fugir de mulheres e de suas artimanhas sedutoras, deixava-se ser possuído por uma feiticeira de língua afiada e muito, muito doce. Zaya tinha poder sobre ele, Áster seria um tolo se não o reconhecesse. Fosse para deixá-lo furioso com a teimosia e audácia, fosse para deixá-lo sem palavras cada vez que ela o pegava desprevenido com a sensualidade despropositada. Mas era apenas desejo, apenas isso, ele tentava se convencer. Ela era a mulher que o perseguia em seus sonhos, sua fantasia mais profunda, e somente por esse motivo ele a queria com tanta força. Quando chegou a tarde, Áster teve que acompanhar uma donzela mandada pela rainha até o salão externo, onde Zaya daria a ele uma regalia para mostrar diante de todos que o aceitava. Aquele tipo de reunião era uma tradição na família real. Acontecia desde a décima segunda dinastia, com o tataravô de Áster. A grande maioria dos convidados eram formados por mulheres que também faziam parte da corte, algumas eram esposas dos homens mais importantes da realeza, outras eram sacerdotisas ou ocupavam cargos prestigiados dentro do palácio. O objetivo era fazer com que os prometidos criassem mais vínculo, já que naquele meio os casamentos eram formados, em sua maioria, por conveniência. Era raro ver um casal se unindo por outro motivo além da troca de interesses mútuos ou para trazer vantagens para ambas as famílias. O foco principal não era a regalia em si, mas a sensualidade da noiva. Funcionava como uma preliminar para a primeira noite do casal. Áster chegou ao salão iluminado pela luz alaranjada do sol poente. O lugar já estava apinhado de mulheres sentadas nas arquibancadas laterais do local, conversavam e eram servidas de vinho e frutas fatiadas. Quase todas se viraram para o príncipe quando ele andou até o outro extremo do salão. Áster reconheceu alguns rostos, inclusive algumas delas já se aventuraram na cama dele, outras estavam ali apenas para ver se ele seguiria mesmo em frente com o casamento. Não se falava sobre outro assunto dentro do palácio ou na cidade. Ninguém acreditava de fato que Áster levaria o casamento adiante, esperavam que ele expulsasse Zaya a qualquer minuto, por isso ninguém acreditava que ele desse as caras no salão. Os únicos homens ali eram os outros dois príncipes. Pareciam lobos em um galinheiro. Áster rolou os olhos, os irmãos já se saiam muito inconvenientes com seus comentários sobre a prometida dele, em especial Darwish. — Não tinham nada de melhor para fazer esta tarde? — perguntou quando chegou até eles. — Melhor do que ver você arrebatado por Zaya? Não mesmo! — zombou Darwish, deliciando-se com o péssimo humor do irmão. Áster ignorou a impertinência e aceitou uma taça de vinho que um servo estendeu a ele. Precisaria de uma boa dose que o deixasse bêbado para aguentar o restante do dia. — Adoro casamentos. É uma pena que não aconteçam com tanta frequência na nossa família. — Darwish disse. — O último foi o de Kamilah, se é que pode ser comparado a um casamento. — O príncipe persa discorda de você. — Ramessés lembrou rindo, e Darwish o acompanhou. Áster não lembrava desse dia com tanto humor. Kamilah era muito jovem e se casara com um homem que a achava abominável mesmo naquela época. — O que acha que Zaya vai fazer? — indagou Ramessés, coçando o queixo enquanto divagava pelas possibilidades. — Até agora ela não me desapontou em nada. Tenho certeza de que o que quer que ela faça, valerá a pena. — Darwish respondeu, quase ansioso. Áster o olhou de modo reprovador e estava pronto para rosnar uma ofensa quando percebeu que o irmão o analisava, esperando por isso. Queria testá-lo, por sorte percebeu a tempo. Passou a vista pelo salão cheio de mulheres e avistou em uma das extremidades as duas amigas de Zaya que conhecera naquela manhã desastrosa. Uma delas, a que tinha feições suaves e um sorriso gentil, estava claro que era estrangeira. Já a outra, embora muito bonita e peculiar, tinha características hostis demais para alguém tão jovem. Seu olhar empregava duras expressões que pareciam dizer que ela vivera mais coisas que muitos dentro daquele salão. As duas tinham instrumentos nas mãos, um alaúde e uma flauta. — O que sabe sobre aquela irmã de Zaya? — Darwish olhava na mesma direção que o irmão. — Tanto quanto você. — Áster respondeu, bebendo um pouco do vinho. — Ela me intriga. — Darwish olhava para a mulher que se chamava Norvina como se tentasse entendê-la e falhasse. — Há algo de errado. Áster ficou curioso com a reação do irmão. Darwish não se interessava tanto por uma mulher. — Diz isso com base em quê? Ele balançou a cabeça e passou uma mão pelo peito como se quisesse aliviar um incômodo. — Você não entenderia, é apenas algo que sinto quando a olho. Áster observou os olhos penetrantes de Darwish encarando a mulher de pele clara. Ele conhecia aquele olhar, sabia o que vinha depois dele. O irmão era um caçador implacável, quando farejava uma presa não deixava de caçá-la até que a segurasse entre os dentes. — Para o seu próprio bem, esqueça-a. — Áster disse, dando um aperto firme no ombro de Darwish. Ele tirou os olhos da desafortunada logo, desviando-os para as portas do salão por onde a rainha acabara de passar. Todavia Áster conhecia o irmão tão bem quanto a si mesmo, sabia que a última coisa que Darwish faria era esquecer a mulher. A rainha chamou a atenção da plateia agitada para o centro do salão e todos ficaram quietos para ouvi-la. Ela anunciou a entrada da escolhida e não demorou para Zaya passar pelas portas duplas. O burburinho de vozes aumentou, mas foi colocado em segundo plano quando Áster a viu. Ele se perguntou se um dia Zaya pararia de tirar o fôlego de seus pulmões toda vez que ele a olhava e a encontrava muito mais bela. Ela usava trajes que cobriam apenas as partes mais íntimas de seu corpo pequeno e afeminado. A faixa que cobria os seios eram de um tecido amarelo e por cima dela estava um véu da mesma cor, a bunda redonda era protegida por uma saia minúscula adornada com fios de ouro e amarrada em um lado do quadril avantajado. Além de braceletes de ouro, Zaya tinha tornozeleiras que caiam com delicadeza sobre o calcanhar e a deixava tão atraente que Áster se fantasiou possuindo-a apenas com a peça e nada mais. Os cabelos estavam soltos e caiam lisos pelas costas de Zaya, onde descansava uma espécie de casaco médio feito com adornos dourados. Eram penas. Penas de ouro puro em suas costas, formando duas asas majestosas. A pele dela brilhava com óleo, toda lambuzada, o que ativou a perversidade dentro de Áster e foi impossível não pensar nos corpos dos dois unidos e lambuzados, esfregando-se um contra o outro. Era incrível como até mesmo o menor detalhe em Zaya parecia ser feito de propósito para deixá-lo no estado em que estava: tão duro que foi preciso esconder a elevação de seu pênis com as mãos. Áster viu pela expressão temerária no rosto de Zaya que ela se acovardava, ele já conseguia distinguir o vermelho em suas bochechas, era o mesmo que aparecera para ele na noite em que se conheceram. O mesmo que cobrira a face dela quando o avaliou nu duas noites atrás. Bastou um mirar nos olhos dela para ver o receio ser substituído pela determinação, Zaya faria de tudo para provar que era mais forte do que ele, e não existia uma grama de dúvida no corpo dele sobre isso. Zaya estava concentrada em Áster, e ele nela. Tudo se resumia ao momento e aos dois. Ela começou a balançar as mãos e os braços finos em movimentos precisos, e com isso o som do alaúde tomou o lugar. Não era ela que acompanharia a música, seria a música que a acompanharia. Um som rítmico, melodioso e cheio de tensão sensual. Áster se perguntava se ela tinha noção do poder feminino que exercia sobre ele e até mesmo sobre seus irmãos, que assim como o príncipe, não tiravam os olhos dela. Se Zaya tivesse mesmo alguma noção disso não o usaria de maneira tão leviana. Enquanto movia os braços em uma coreografia muito bem ensaiada, seus pés descalços também se moviam, fazendo giros e ajudando-a a ter apoio quando envergava as costas e o olhava de cabeça para baixo. Ela era linda e realizava a fantasia mais secreta dele bem ali, diante de toda aquela gente. Os quadris voluptuosos de Zaya entraram na dança, e a flauta começou a expelir uma melodia encantadora. Muitas mulheres já dançaram para Áster, e ele se contentara com uma cópia do que queria de fato por pensar que nunca poderia tê-la de verdade, mas Zaya estava ali e, assim como em seus sonhos, ele estava rendido a ela. Por ela. Os fios de ouro em volta da saia de Zaya balançavam junto com os movimentos que ela fazia com as ancas, e a cada novo passo, os raios de luz do sol poente refletiam um brilho devasso no óleo da pele dela e nas penas de ouro em suas costas. Ele sabia que naquele momento todos os olhos presentes na sala estavam fixos nos dois, mas não se importou. Áster queria que vissem, que soubessem que ele tomava posse daquela mulher. A dança chegou em seu ápice, Áster sabia, já presenciara o momento inúmeras vezes. O corpo de Zaya estremeceu em um último movimento serpentino e, para o grande final, ela abriu os braços para que o colete em suas costas formasse duas asas douradas esplêndidas, como as da deusa Ísis. E ela era a Ísis dele, sua deusa formosa e encantadora. A música cessara, mas Áster podia ouvir as batidas do próprio coração enfurecidas contra a caixa torácica no mesmo ritmo. E, tão simples como o vento que beijava a sua testa úmida, ele entendeu tudo. Sempre achou que aqueles sonhos eram obras do seu subconsciente, fazendo-o crer que ele sonhava com Zaya, porque ela era a sua fantasia mais oculta, quando, na verdade, tudo era um presságio. Não adiantava fugir ou tentar fazê-la ir embora. Zaya é o meu destino. A UM DIA DO CASAMENTO, ZAYA ESTAVA com os nervos à flor da pele. Não por saber que em questão de algumas horas estaria casada e com novas obrigações sobre os ombros, mas porque Áster sumiu, desapareceu, foi-se pelo ar como poeira. Não era isso que Zaya queria quando planejou dançar na frente dele, pelo contrário, queria deixá-lo escandalizado e furioso para fazê-lo pagar pelo incidente com o crocodilo. Mas à medida que dançava, olhando dentro dos olhos de Áster, ela sentiu algo quente e tenaz se estender entre os dois. No início sentiu-se envergonhada, mas a admiração e o desejo refletidos nos olhos de Áster eram tão dilacerantes que a fizeram sentir-se livre e desinibida. Ela já não dançava para se vingar, ela dançava para ele. Sem perceber. E Zaya sentiu que ele tinha a mesma sensação embriagante da dela pela maneira como se concentrara nos movimentos que ela fazia. Ao final da dança ele piscou aqueles olhos lindos assustados e saiu pelas portas, deixando-a, mais uma vez, para trás. Acontecera há três dias. Três dias sem ter nenhuma resposta. Ela tinha quase certeza de que ele aprontava alguma coisa. Se é que não fora embora. Algo de muito errado acontecia sob aquele teto, ou com aquela gente. A rainha amava os filhos, sobre isso não restavam dúvidas, mas eles quase nunca ficavam na mesma sala por mais que dez minutos. Kamilah desaparecia sempre e ninguém dava falta dela, quanto ao faraó, nem parecia que vivia no palácio. Eram uma família, e ao mesmo tempo não eram. Não agiam como se fossem. Zaya suspeitava que a resistência dos irmãos com relação ao casamento tivesse algo a ver com isso. Toda a cidade estava em polvorosa com o casamento. Além da festa que celebrariam dentro do palácio, a rainha ordenara que liberassem comidas e bebidas para que o povo também festejasse a união dela com Áster. Era estranho ser tão bem acolhida assim. Até alguns dias Zaya limpava esterco em Astarte e, então, as pessoas estavam ansiosas para vê-la e faziam fila para deixar presentes nas escadas do palácio para ela. Na tarde daquele mesmo dia, a rainha a levou para a última etapa da preparação interminável. Zaya evitava pensar muito sobre isso, ter que se livrar dos cabelos seria um pouco difícil, em compensação ela já chegara tão longe, enfrentara o deserto, um príncipe cruel e um crocodilo. Não podia desistir. Foram muitas entradas e saídas da banheira até que terminassem todo o processo de purificação. Primeiro lavaram seu corpo em água morna e introduziram na água pétalas de flores colhidas das margens do Nilo. Segundo Zahara, por aquelas flores nascerem na região mais fértil do rio, ajudariam a preparar o ventre dela para receber um bebê. Enquanto ouvia tudo, Zaya só conseguia sentir-se como um porco que era preparado para o abate. Era apavorante como tudo girava em torno do ventre dela e da rapidez em que ela teria que engravidar. Era uma pressão muito grande, e ela não sabia como sentir-se sobre o assunto. Não devia estar tão ansiosa para a noite de núpcias, era provável que Áster a desprezaria outra uma vez. “Você não vai me ter, nunca.” As palavras dele se repetiam em sua cabeça, e ela não conseguia entender o significado delas, mas era impossível se manter imune ao anseio e nervosismo de saber que pertenceria a ele. Seria dele. O beijo que compartilharam fora tão diferente de tudo que ela já experimentara. Zaya perdera parte da sua inocência cedo demais. Por culpa de Ravic, entendia como funcionava uma relação carnal entre um homem e uma mulher, mas não tinha experiência nenhuma. Se é que isso era possível. Nunca encarou o casamento como algo em que pudesse adquirir algum prazer, não era isso que ela aprendera quando menina. As mulheres da sua família eram quase sempre vendidas ou trocadas por cabras ou algumas moedas de ouro, não tinham tempo de criar uma intimidade antes do casamento, e quantos filhos homens pudessem ter, melhor. Então Zaya conheceu Áster. Seu corpo acendera por ele ainda na noite em que se conheceram e tudo se agravou com o beijo e com os olhares que pareciam ver todos os desejos dela. Zaya não parava de pensar sobre como poderia ser todo o resto, o que Áster seria capaz de fazê-la sentir se ela permitisse. Áster era de fato um homem bonito, para a mais absoluta frustração de Zaya, e tinha músculos por todo o corpo, músculos de um guerreiro e as mãos de um artesão. Leves e precisas em cada toque. Até mesmo um movimento que ele fazia com as sobrancelhas parecia pecaminoso e depravado. Isso não devia ter importância nenhuma para ela, mesmo assim tinha. Não conseguia tirá-lo da cabeça. Após a removerem da água, as donzelas pessoais da rainha a colocaram em uma mesa feita de madeira polida. Zaya pregou os olhos no teto enquanto deixava que elas lambuzassem suas canelas com uma cera quente de abelha e uma efusão de outros líquidos bem cheirosos. — Isso é mesmo necessário? — indagou nervosa ao ver uma das mulheres cobrir a cera na pele dela com um pedaço de tecido grosso, semelhante a linho. Ela já sabia o que estava por vir e sabia que não seria nada agradável. Zahara sorriu para o nervosismo de Zaya e foi até uma bandeja ali perto para encher um cálice de cerveja envelhecida, estendeu-o a ela. — Beba isso, ajudará a aguentar o processo. Zaya pegou a bebida trêmula e virou tudo de um gole. Mal teve tempo de ficar bêbada antes da cera ser puxada, levando seus pelos e alguns pedaços da sua dignidade no caminho. Foram muitos puxões de tecidos e gritos abafados até que a tortura terminasse. Só de pensar que teria que passar pelo processo todo trimestre foi o suficiente para fazê-la cogitar desistir do casamento. Levantou-se da mesa com a ajuda de Zahara e sentiu-se fresca. O vento batia em lugares que nunca bateram antes. As servas da rainha a levaram de volta para a grande banheira de cobre, dessa vez cheia de leite puro até a borda. — Para que serve isso? — perguntou enquanto entrava, convencida de que pessoas ricas tinham costumes absurdos. — O leite é cheio de nutrientes, além de deixar sua pele mais macia e sedosa, ele guarda toda a fertilidade da mãe. — Zahara elucidou à medida que as donzelas adicionavam outras especiarias junto ao leite. Óleos aromáticos, essências de cores exóticas e mais pétalas de flores. Enquanto Zaya marinava no leite como um pedaço de pão velho, duas mulheres puxaram seus cabelos para fora da banheira e ela viu o reflexo da lâmina que uma delas tinha na mão. Respirou fundo e tentou pensar que aquilo era para um bem maior. Quando a mulher empunhou a navalha e segurou uma mecha para começar a cortar, as portas da sala de banho foram arreganhadas e para o total embaraço de Zaya, Áster apareceu por elas. A primeira reação de Zaya foi afundar ainda mais para se esconder dentro do leite. Em nome de Rá, que bela hora para aparecer! Ele estava um pouco vermelho e suado, parecia que correra até ali. Seu peito coberto pela túnica de linho subia e descia e suas feições pareceram se acalmar quando a viu deitada, sendo preparada como um prato especial para o deleite dele. — Áster, você não pode interromper a cerimônia dessa maneira. — Zahara o repreendeu. Ele, por outro lado, continuou andando para dentro do aposento até estar muito próximo da banheira. — Deixem-me a sós com minha noiva — pediu, olhando direto para Zaya, meio encolhida de vergonha. Zahara encarou o filho sem entender, e Zaya lançou um olhar suplicante para a rainha, rogando para que ela não a deixasse sozinha ali com Áster. Ela estava nua, sem nenhum pelo no corpo, e vulnerável. — Se você estiver planejando alguma coisa... — Mãe, por favor. — Áster a cortou impaciente, e Zahara aquiesceu. Antes de se retirar Zahara ainda olhou para Zaya e deu uma singela piscada de olho. Zaya não entendeu, mas também não pensou muito no assunto, sentia-se mais preocupada com o que estava por vir. Zahara fez um sinal para que as outras mulheres a acompanhassem, e saíram de uma a uma. A última fechou as portas da sala ao passar, deixando-os sozinhos. Zaya olhou para os lados, buscando uma rota de fuga caso fosse necessário, mas mesmo que quisesse, não teria coragem de sair dali correndo coberta apenas de leite. Arriscou um olhar para Áster e estremeceu quando viu aquele desejo direcionado a ela, mesmo que quisesse, não poderia mais sair dali, estava cativa das vontades dele. Áster permaneceu de pé por um tempo, encarando-a com as mãos unidas atrás do corpo largo. Com certeza testava a resistência de Zaya diante do escrutínio de seus olhos. — Onde você esteve? — Ela inquiriu, já não conseguia se manter parada sob o intenso olhar. Ele sorriu de lado e até isso a irritou. Por que tem que ser tão encantador? — Sentiu minha falta? — Que espécie de noiva eu seria se não sentisse? Ele inclinou a cabeça. — Pensei sobre algumas coisas. Áster deu uma meia resposta e se agachou próximo a banheira. Apoiou os antebraços na borda, inclinando-se para encará-la mais de perto — sabia que ela era sua refém. — Se procurava uma nova maneira de me fazer desistir, perdeu seu tempo. Eu acabei de passar por uma prova de tortura em que arrancaram pelos do meu corpo de partes que não ouso mencionar. Se eu pude passar por isso, não tem mais nada que você possa fazer que vá me assustar. Zaya viu o nó da garganta dele subir e descer de forma sedutora à medida que o olhar se tornava mais penetrante. Áster molhou os lábios e meneou a cabeça. — Você está me fazendo perder o foco do que vim fazer aqui. — E o que veio fazer aqui? Ele mudou a direção dos olhos. — Quando você chegou em Astarte? Ela franziu a testa, desconfiada. — Por que o interesse repentino em minha vida? — Preciso de algumas respostas e descobri que só você pode me dá- las. Áster não parecia ter más intenções, e ela não viu problema em compartilhar com ele. — Eu tinha onze anos. — Há exatos sete anos. — Ele murmurou, reflexivo. — Você pode me dizer o motivo? Não, isso eu não posso. Zaya nunca diria para ele que fora exilada por ser uma vergonha para a família. Não podia dizer os motivos e todas as razões. Ela preferia que Áster continuasse achando que não passava de uma grosseira, alguém que queria apenas a chance de pertencer a realeza. — Pelo mesmo motivo que as outras mulheres, suponho, somos um fardo para nossas famílias. Zaya viu, através dos olhos dele, que Áster não acreditou nem por um segundo nela. Os lábios rosados dele se espremeram um no outro e a cabeça se inclinou para o lado, espreitando-a como o gato que espera o momento certo para abocanhar o peixe na borda de um riacho. Áster se ergueu e, para a total aflição da mulher, começou a se despir. Ela ainda viu os músculos enfileirados do abdômen antes de desviar o olhar, envergonhada. — O que você está fazendo? — perguntou quase em desespero. — Me juntando a você. — Ele respondeu como se fosse a coisa mais óbvia. Um arrepio quente eriçou os pelos que tinham sobrado de Zaya. — Você não pode, e se a rainha entrar? Ela deu uma olhada desesperada para as portas da sala de banho. — Não será a primeira vez que ela me encontrará em uma situação parecida. — Áster se vangloriou ao se afundar no leite junto com Zaya, que fez uma carranca feia. — Você é um depravado. — A intenção era ofendê-lo, mas surtiu o efeito contrário. — Sim, sou. Pelo menos eu assumo isso, e quanto a você, doçura? Ela engoliu ao sentir os dedos dele resvalarem na lateral da sua coxa direita. O efeito que causou nela foi extasiante. — Eu? Eu não! — Tentou parecer ofendida. — Quer mesmo me convencer de que é uma puritana depois daquela dança? — Um rubor furioso cobriu a cútis de Zaya. — Eu já estive com mulheres o suficiente para dizer com propriedade que você, minha prometida, é tão devassa quanto eu. Precisa apenas de um pequeno empurrão para acordar a fera dentro de você. Zaya queria rebater, mas lá no fundo uma voz intrometida sussurrou que Áster tinha uma ponta de razão. Se ela fosse mesmo tão ingênua, não estaria com o corpo em chamas por estarem naquela situação tão íntima. Ela não gostaria tanto. Sua pele parecia tão sensível pela proximidade e, em seu ventre, ela sentia uma palpitação fogosa. As sensações eram inexplicáveis. Até conhecer Áster, ou até saber sobre ele, ela nunca sentira nada daquilo, mas ele, mesmo que sem intenção, transformava-a em uma mulher que ela se recusava a ser. — Recentemente percebi que mesmo com muitos esforços, sou incapaz de resistir a você. — O impacto da confissão fez Zaya perder o ar. — Pelo visto, eu não sou o mesmo quando toco em você e, pelo que posso presumir, você também sente-se assim. Zaya estalou a língua. — Fale por você — disse na defensiva, e Áster ergueu uma sobrancelha com o semblante convencido que o fazia parecer um cretino e um deus audacioso ao mesmo tempo. — Vai negar? — Eu não sou um animal no cio, alteza, sei muito bem me controlar, ainda mais no que diz respeito a você. Ele cerrou os olhos verdes. Zaya insistia em ferir a vaidade dele, e Áster provaria para ela que era uma mentirosa. — É mesmo? Então você não terá nenhum problema em me repelir se eu quiser a beijar agora, sim? — Você não ousaria... Ela não teve tempo de finalizar a ameaça antes de sentir a mão dele lhe envolver a coxa e Áster puxá-la para o calor do seu corpo nu. No mesmo instante o leite adquiriu um grau a mais, e a aflição dela devia estar nítida no rosto, pois ele deu um sorriso convencido. — Vamos, me afaste — ordenou. Zaya queria acertar a cabeça dele com um porrete, mas seu interior estremeceu quando os olhos de Áster caíram para seus seios expostos molhados de leite. Ele tinha mesmo razão. Uma parte dela era devassa, ao invés de sentir-se envergonhada, sentiu desejo. Quente, abrasador e sufocante. — Me afaste agora, Zaya, ou eu enxugarei o leite dos seus mamilos usando minha língua. A cabeça dela deu voltas só de imaginar algo tão inescrupuloso. Ele tinha tanto poder sobre ela a ponto de fazê-la delirar apenas com uma promessa suja. — Não foi você quem disse que eu nunca o teria? — Ela disse, a voz resfolegante. Áster franziu a testa um pouco, lembrando-se da promessa. — Isso foi antes. — Antes de quê? Ele meneou com a cabeça como se não fosse mais importante. — Tudo que eu preciso é provar uma coisa. Apenas uma coisa. — Sobre o que está falando? — Nós vamos nos beijar de novo. — O coração dela disparou sem freio. — Se mesmo depois disso eu conseguir resistir a você, então continuarei contra o nosso casamento, mas... — Ele a silenciou quando ela estava prestes a dizer como achava aquela proposta ridícula. — Se eu não for capaz de resistir, então me entregarei e não me oporei mais. Zaya o fitou, meio chocada. — Está dizendo que se não conseguir parar o beijo irá se entregar? — Sim. — Sem mais fugas, ou crocodilos, ou promessas de retaliação? — Sim. — Quem me garante que cumprirá com sua palavra? Áster sorriu torto. Era um gesto atrevido que deixava claro que ele pensava em algo indecente. — Se eu não for capaz de resistir, você descobrirá. — Para alguém que era contra o nosso casamento até três dias atrás, você está me saindo muito controverso com esses acordos. Ele perdeu um pouco do semblante pernicioso e se tornou mais sério. — Nesses últimos dias eu me dei conta de que terei muito mais benefícios aceitando nossa união do que me opondo a ela. Zaya não acreditava muito nele, mas também não perderia nada por arriscar. — Muito bem, eu aceito sua proposta — disse e se inclinou, dando- se para ele. — Beije-me. O olhar de Áster se tornou profundo, e ela se preparou, sentindo um milhão de borboletas baterem asas em seu estômago, produzindo um pequeno tornado dentro dela. Áster não esperou muito mais, seus lábios tocaram os dela devagar. A carícia, como da primeira vez, foi leve. Tudo pareceu muito ensaiado e cauteloso, quase temeroso, e Zaya se lembrou que tudo dependia daquele beijo. Ela não podia deixá-lo resistir e menos ainda deixá-lo sair vitorioso. Tomada de uma coragem atípica, Zaya levou as mãos até os ombros de Áster, sentindo a pele dele se arrepiar sob seu toque. Impulsionada por isso, ela passeou pelos músculos do pescoço dele e acariciou com as pontas dos dedos os cabelos de sua nuca, quando Áster suspirou, Zaya cravou as unhas na pele dele e fez um caminho com elas até suas costas. Áster emitiu um rosnado, como o de uma fera manhosa, e suas mãos foram para a cintura dela, onde ele a apertou e a puxou com brusquidão para tomá-la com vontade pela boca, absorvendo-a. Oh! É extraordinário! Ele a penetrou com a língua ousada, e Zaya esmoreceu por inteiro, caindo como uma tola em sua própria armadilha de sedução. — Por que você tem sempre gosto de damasco? — perguntou quando ele livrou a boca dela para a beijar no queixo. — Você não gosta? Zaya negou com a cabeça. — Só quando estou naqueles dias. — Era estranho, mas ela não suportava o cheiro enjoativo da fruta, exceto quando estava em seu período menstrual e agora na boca dele. — Na próxima vez que eu estiver pensando em invadir o seu banho, me lembrarei de não comer. — Não pare, por favor, eu gosto. Áster respirou o ar dela, sentiu-a com as mãos e a sufocou com a boca. Ele não a deixou respirar enquanto bebia dela com a sede de um andarilho. Capturou o delicado lábio inferior para lambê-lo em seguida, chupou-a, sugou a língua dócil e a penetrou com a dele. Umas e outras vezes mais. Zaya estava tão entregue aos carinhos de Áster que se esqueceu de onde estava. De repente já não pertencia a si mesma, e tudo se resumia a aplacar o ardor latente que a revolvia por dentro. Mas, quando estava lá tão cativa das mãos e dos lábios dele, Áster pareceu acordar e a empurrou com rudeza, separando-a do seu corpo. Zaya se encolheu como se ele tivesse a machucado fisicamente. Encarou-o confusa com todos as emoções que duelavam dentro dela. Desejo pungente, ansiedade e rejeição. Ele a fitava aturdido, os lábios inchados e rosados e o peito subia e descia sem parar. Zaya tentou não sentir-se rejeitada, mas era horrível continuar desejando-o com tanta força quando ele fora bem sucedido em seu plano de resistir a ela. A mulher se afastou, voltando a se esconder dentro da banheira. Sentia-se exposta demais, não apenas pelo fato de estar nua. — Bom, você conseguiu. — O orgulho de Zaya estava debilitado e lutava para se regenerar. — Já pode sair. Áster continuou encarando-a, parecia estar com a mente em outro lugar e era ainda pior. — Saia, por favor. Ele ergueu a mão, pedindo silêncio. — Estou tomando a decisão mais importante da minha vida. A intensidade daquele olhar a fez ficar quieta e esperar. O que quer que fosse que ele decidia, Zaya sabia que era importante e que teria influência direta no futuro dela, por isso deu a ele o tempo que precisava. Passaram-se minutos, e ele continuava em silêncio. Se era tão difícil para Áster decidir se queria se casar com ela depois do que acabara de acontecer entre os dois, talvez fosse ela quem tivesse que reconsiderar se valeria a pena. — Chega, Áster, se é tão horrível... — Não. — Ele a cortou com um tom de voz firme. Zaya sentiu uma onda interminável de dor atravessá-la quando pensou que a rejeitava, mas, no instante seguinte, Áster a puxou para o seu colo e a incitou a rodear sua cintura com as coxas. — Sou incapaz de resistir a isso. — Ele delirou quando ela se encaixou com perfeição nele. Áster a olho nos olhos, pertos de um jeito que ela conseguia perceber a auréola azul ao redor das írises dele. — Que os deuses a ajudem, mulher. Apenas não me odeie no futuro, está bem? Zaya se questionou por que o odiaria. Naquele momento em específico ela gostava bastante dele. Áster levou o rosto para pescoço dela e se esfregou nela com abandono. Com a ponta da língua, lambeu o leite que cobria pele de Zaya. Ela fechou os olhos, absorvendo a textura do músculo. — Sou egoísta demais para me privar disso. — Ele assoprou as palavras. Áster começou a viajar com a boca por toda a extensão da pele dela. Desde a orelha ao pescoço, descendo para o colo, deslizando pelo vale entre os seios e fazendo-a jogar a cabeça para trás em êxtase quando tomou um mamilo em sua boca quente. Ele fez um círculo completo ao redor do bico e o chupou, mamando- a. Brincou com a ponta entre os dentes. Testou os limites da noiva. Foi como se ele jogasse óleo nas brasas que ardiam o corpo de Zaya, e elas se transformaram o em labaredas vivas e incandescentes. A mão de Áster envolveu o queixo dela, e Zaya sentiu o cheiro do leite misturado com o dele. Conseguiu embriagá-la muito mais do que a cerveja que bebera instantes atrás. A resistência dela foi subjugada. Zaya foi escravizada pelo próprio prazer, amordaçada, presa. Levou os dedos para a nuca dele e enterrou as unhas na carne com a intenção de marcá-lo e mantê-lo onde estava. Áster gemeu com o mamilo dela na boca, apreciativo, e a sensação que isso causou fez Zaya emitir ela própria um gemido tímido. Um som submisso, volátil, que ela adorou ser capaz de produzir. Aquilo não era ruim como ela pensou que seria. Na verdade, era magnífico. — Áster... — Ela disse o nome dele em uma súplica. — Eu sei, é divino. — Ele arfou em resposta. Mas não era o suficiente e ambos sabiam disso. Ansiavam pelo alívio de uma dor latejante que crescia cada vez mais na carne mais tenra de seus corpos. Ele a empurrou para apoiar as costas na borda da banheira e a ergueu, tirando-a parcialmente para fora do leite e exibindo o corpo feminino para ele. Áster desceu a boca para a barriga dela, esfregou-se, lambeu o leite do umbigo, e desceu mais e mais até estar na vulva de Zaya. O príncipe encarou a pele recém depilada da noiva, e seus olhos verdes se tornaram pretos de lascívia. Zaya deveria se sentir envergonhada, afinal, ele tinha uma visão privilegiada da sua feminilidade, mas ela só queria aplacar a carência que sentia na região e sabia que apenas Áster podia fazer isso por ela. Ele pareceu entender o anseio da alma de Zaya e fez o impensável: passeou com a língua pela linha que dividia a genitália. A pele sensível pela recente depilação se arrepiou. Com os dedos, ele afastou os grandes lábios e sua língua imperiosa abriu caminho para dentro do corpo dela. Zaya deu um pequeno salto com o contato e o leite transbordou da banheira. Jamais imaginei algo tão... — Que combinação deliciosa. — Áster gemeu, degustando do sabor de sua mulher misturado ao leite. Zaya sentia-se úmida, mole, receptiva. Seus quadris ganharam vontade própria, e ela se espremeu contra os lábios dele, esfregando-se devagar para cima e para baixo. Áster exibiu um sorriso cobiçoso e deu aquilo que o corpo dela implorava com descaramento. Suas lambidas se tornaram mais firmes, concentrando-se em um ponto durinho e frágil no topo da vulva de Zaya. Os gemidos inexprimíveis começaram a rasgar a garganta dela. Em algum canto da mente, Zaya ouviu a voz da resistência, sentiu a parte sã se debater, mas não tinha forças o suficiente para lutar e foi silenciada de vez quando Áster a penetrou com um dedo enquanto a chupava voraz. Um rosnado reverberou pelo peito dele. — Em breve seremos um só, querida, e eu farei com que você me deseje aqui todos os dias. Eu quero que me queira. Quero que me deseje com tanta força que não aguentará ficar um só dia sem ter isso. Sem ter nós dois. As investidas do dedo de Áster se tornaram mais velozes, e a sucção firme de sua boca fizeram um furor crescer em algum ponto primordial do corpo de Zaya. Era como ter uma esfera de tensão se expandindo aos poucos até chegar ao limite e explodir em um milhão de cacos, espalhando prazer abrasador pelas suas veias e por cada nervo trêmulo. — Áster! — O nome dele saiu em um gemido de redenção. O dedo de Áster a deixou, junto com a boca, e ele a puxou para beijá- la nos lábios enquanto ela tremia e se recuperava dos últimos espasmos da potente sensação. O beijo ficou mais tenro, mais calmo, menos exigente e mais carinhoso. A parte sã de Zaya tornou a segurar as rédeas de sua razão e, assim como em uma barragem que se rompe, a culpa do prazer que ela sentira a corroeu quase de imediato. “Eu devia saber que você puxaria a ela.” As palavras cruéis do pai de Zaya voltaram a pesar na consciência dela, chicoteando-a e fazendo-a desejar distância do homem que a acariciava com orgulhosa satisfação masculina. Áster tinha razão, tinha mesmo uma parte dela que era promíscua. Era dessa outra parte que Zaya tentara fugir por tantos anos. Ela fora bem- sucedida, até ele aparecer e estragar tudo. Tudo. Sua sanidade, sua inocência e trazendo à tona a pior dela. A culpa é dele. Toda dele! E isso não podia se repetir. Não mais. Zaya não deixaria que se repetisse. Áster se ergueu na banheira, exibindo seu falo ereto sem nenhum pudor, e andou até uma mesa ali próximo, de onde tirou uma toalha e se enxugou rápido. Depois voltou para pegar a túnica, o saiote e se vestiu. Ela só queria mesmo saber o que se passava na cabeça dele. Questionou-se se ele a achava uma mulher indigna. Era muito provável. A maneira como eu me esfreguei nele... Céus! Por que me deixei envolver? Fui tão irresponsável! Áster veio até ela e, quando Zaya foi incapaz de olhar em seu rosto, ele a puxou pelo queixo com gentileza e a obrigou a olhá-lo. — Eu te farei minha esposa. Você viverá com conforto nesse palácio, será preparada até o dia em que se tornará minha rainha. Nenhuma outra mulher tomará o teu lugar. Eu cumpro com o que prometo. A maneira como ele disse aquilo, como se não passasse de uma formalidade, fez com que ela se lembrasse de que era, acima de tudo, um acordo. Um tratado de paz. Ela se deixara ser induzida pelos desejos supérfluos de seu corpo e agora Áster a lembrava disso. Não condizia com a personalidade dela. Zaya nunca fora de se deixar ser manipulada pelas próprias emoções. Ela tinha que se lembrar de quem era, de onde viera. Era isso ou seria engolida pelas próprias frustrações e por aquela coisa inominável que sentia por ele. — Farei o possível para estar à altura de tal posição — falou, tão séria quanto ele. Áster se aproximou mais, e ela lutou contra a vontade que teve de se esquivar quando os dedos dele capturaram uma mecha do cabelo dela, e ele brincou com os fios molhados. — Eles são para mim, não os corte — ordenou, levando a mecha ao nariz. Ela pensou em cortar os cabelos apenas para confrontá-lo. Odiava aquela superioridade no olhar de Áster, odiava que ele conseguisse manipulá-la de acordo com sua vontade. — Você não me diz o que fazer — rebateu, e ele riu com crueldade. — Espere pela noite de núpcias e não só verá que digo, como também descobrirá que adora me obedecer. Vejo você amanhã, feiticeira. Zaya observou as costas largas de Áster se afastarem, furiosa com ele, mas muito mais consigo mesma por saber que, lá no fundo, ele tinha razão. A ÚLTIMA COISA QUE ÁSTER QUERIA ERA ter que condenar alguém a uma vida infeliz ao lado dele. Ele tentou, os deuses eram testemunha do quanto não queria se casar. Após passar os últimos três dias em um conflito interno que destruiu sua mente, ele chegou à conclusão de que não podia continuar lutando contra o que sentia. Se quisesse descobrir todos os mistérios que rondavam sua ligação com Zaya, teria que aceitar seu destino e se curvar diante das exigências do seu nascimento. Ele fora sincero com ela, mais do que já fora com qualquer outra mulher na vida. Pegaria toda a sua artilharia e recuaria, aceitaria o casamento sem retaliação, ele se ajoelharia diante do próprio legado e aceitaria o caminho que os deuses trilhavam para ele. Mas isso não queria dizer que ele não se protegeria. Aceitar o casamento não significava aceitar renunciar aos seus princípios. Ele se casaria, teria uma esposa, mas não construiria uma família. Não podia jamais construi-la, já era terrível o bastante enfiar Zaya na teia de mentiras e na podridão que as paredes daquele palácio escondiam. Era um maldito egoísta por não conseguir se privar de tê-la, seria tudo mais fácil se ele não a desejasse com tanto fervor. Nem mesmo o interlúdio tórrido na banheira diminuiu o desejo de Áster. Apenas inflamou ainda mais a cobiça que ele tinha por ela. Estava com a consciência pesada por omitir seus princípios dela. Zaya era como ele, ambiciosa, teimosa e não hesitava em defender os seus princípios. A diferença entre os dois era que cada um almejava uma coisa distinta. Ela queria uma vida de regalias e o posto de princesa, e ele queria apenas uma solução imediata para seus impasses. Com sorte ela não o culparia por ser incapaz de dar um filho a ela. Casando-se com ela, Áster estaria livre de sua mãe, do conselho, garantiria seu lugar ao lado dos irmãos e teria uma mulher só sua. Talvez ele estivesse mais ansioso com a última parte do que com todo o resto. Zaya seria a única para ele, Áster jamais teria outras esposas, ela quem entreteria os desejos sexuais dele dali em diante, pelo menos esse juramento ele planejava cumprir. E se ela achasse ruim, teria que lidar com isso sozinha, ele não descansaria até suprir o desejo que sentia por ela há sete anos. Em sua última noite de solteiro, Áster escolheu a companhia de duas moças habilidosas em lhe dar prazer, cerveja e solidão. Não estava com paciência para ouvir as provocações de Darwish ou os comentários irritantes de Ramessés. Estava cheio de dúvidas as quais seus irmãos não saberiam solucionar, a maior delas era a de que não sabia se fazia certo ao começar o casamento omitindo sobre seus ideais para a esposa. Encarava a escuridão do quarto, as palavras de sua mãe sussurravam para ele: “Você pode aceitar o casamento e fazer o possível para conquistar sua noiva ou você pode estragar tudo e ir pelo caminho mais difícil.” Mas aquele não podia ser o caminho difícil, era o caminho mais plausível. Áster protegeria Zaya ao se manter afastado, ao poupá-la de sentir o revés de pertencer à realeza. Com o tempo ela o agradeceria, e era nisso que ele se apegava. Ouviu uma batida na porta. — Eu já falei que não quero ser perturbado! A batida se repetiu, e ele praguejou, deixou a cerveja de lado e foi até a porta, pronto para soltar os cães de Anúbis sobre aquela criatura insistente, tal foi sua surpresa ao se deparar com o digníssimo faraó de pé do outro lado, que até engoliu os insultos. Radamés estava sozinho, era apenas ele e a nuvem de soberba que o acompanhava para todos os lados. Fazia tanto tempo que ele não saía de seus aposentos no sul do palácio que sua presença repentina no quarto do filho só podia significar algum mal-agouro. — Pelo que vejo já está se preparando para o dia de amanhã. — Ele disse com acidez ao perceber que o rapaz estava bêbado. Áster não respondeu, só observou enquanto o homem entrava no cômodo tomado pelas sombras e pelo cheiro de vinho derramado. Cada vez que olhava para o progenitor, Áster sentia uma fúria dilaceradora tomar o controle de sua alma. Apenas não conseguia aceitar que o homem conseguisse dormir tranquilo todas as noites sabendo do grande mal que causara a ele e aos irmãos, em especial à sua mãe. Da maneira como os estragou, um a um, até não restar nenhum pingo de esperança em seus corações. Por culpa dele, Áster não podia ter um casamento feliz. — Eu vim até aqui para desejar felicitações. Não poderei assistir à cerimônia, começarei uma viagem amanhã cedo e precisarei me recolher. Isso não devia ter surpreendido Áster, mas uma parte dele, o garoto carente que ele foi uma vez, choramingou dentro do vazio de seu peito. Radamés era o seu pai, mas estava longe de merecer tal posição. Não era à toa que Áster já não o chamava de pai desde tanto tempo, tempo demais. — Alguma viagem importante? — perguntou, fingindo interesse. — Precisam de mim em Mênfis. Como sempre o reinado na frente da família... — Darei suas felicitações para minha noiva. — Áster ditou, desejando que ele se retirasse logo. Radamés o olhou ao ouvi-lo falar de Zaya. — Você a estima — disse, Áster franziu o cenho sem entendê-lo. — Você a chama de "minha" com muita possessividade. Já estive em seu lugar, sei qual é a sensação. Áster apertou os punhos, controlando toda a indignação. Em vinte e sete anos, ele não se lembrava de uma única vez em que o pai tivesse se interessado por sua vida. Por que agora? Logo nesse momento em que minha mente está tão confusa?! O faraó andou até a janela do aposento e cruzou os braços atrás do corpo enquanto admirava a paisagem lá fora. — Meus conselheiros me falaram como você a tratou. As trevas que rondavam Áster tomaram posse do corpo dele, que sentiu-se frio como um cadáver. — De todas as pessoas, você é a última de quem aceitarei um sermão — sibilou, incapaz de controlar tanta raiva. Radamés ergueu as sobrancelhas, surpreso com a atitude do filho. Nunca, em toda a vida, Áster falara com ele daquela maneira. Nem mesmo quando fez Zahara sofrer ou quando vendeu Kamilah para o inimigo por um acordo de paz. O que mais irritava Áster era a capacidade do homem em permanecer indiferente a tudo isso, como se não fosse nada demais. Como se tudo fizesse parte de um plano. Como se todos eles fossem meros adereços em seu joguete. — Como? — O faraó perguntou, olhando mais diretamente para os olhos flamejantes de mágoa do filho. — Quer mesmo me dizer como devo começar meu casamento quando você é o pior modelo de marido possível? Radamés não estava esperando para tal sinceridade, perdeu a postura tranquila e seus olhos escuros ficaram gelados e impiedosos. Encaravam Áster com a expressão de soberano do Egito, a mesma que dava para um infeliz antes de condená-lo à morte. — Você é um moleque. Pode ter o tamanho ou se deitar com quantas mulheres você quiser, mas isso não faz de você um homem. Não faz ideia das coisas que diz, não sabe de nada sobre o meu casamento com Zahara! Um homem poderoso encarou o outro. — O que eu sei é o que eu vejo. O que eu tive que ver ao longo dos anos. O povo adora você, eles te veneram e sobre isso eles tem razão, você é mesmo um excelente rei. Por outro lado, condenou a nossa família. Veja no que nos transformou. — Áster apontou um dedo para o peito. — Kamilah está condenada a um casamento fracassado, Darwish continua a fingir que não escutamos os gritos de seus pesadelos. Ramessés é o menos afetado por ser o mais caçula. Mas eu... — A voz saiu trêmula de ódio e rancor reprimidos. — Eu não poderei nunca ter uma vida normal, porque estou condenado a ocupar o seu lugar nesse trono amaldiçoado. A postura de Áster definhou, e Radamés deu dois passos banzos para trás, atordoado; os olhos confusos, parecia que fora pego por um soco. — Eu não podia imaginar... — balbuciou. — Eu nunca quis... — Poupe-me dessa falsa encenação. — Áster cuspiu as palavras. Radamés soltou um suspiro trêmulo, e Áster sentiu um punho se enterrar em suas entranhas quando os olhos do homem se tornaram vermelhos. — Perdoe-me, filho. Áster recuou, não queria acreditar nas palavras que acabara de ouvir. Cerrou os punhos com tanta força que doeram. Ele não cairia naquelas palavras, não deixaria que Radamés pensasse que poderia cogitar perdoá-lo após todos esses anos, após tudo que fizera. É um miserável por ousar pensar na possibilidade! — Nunca. Nunca perdoarei você. Você nos trocou por ouro e prestígio, e agora é só isso que você tem. As palavras foram cruéis e deram a Áster uma satisfação vitoriosa quando atingiram o faraó bem onde queria, mas esse prazer durou pouco. Radamés encarou o chão, Áster esperava que ele gritasse, que o batesse ou que demonstrasse que se importava pelo menos o suficiente para se explicar. Radamés não fez nada disso, saiu pela porta, deixou-o para trás com todo o ódio corrosivo que o consumia como veneno de dentro para fora. A atitude do pai deu a Áster a plena certeza de que tomava a decisão correta ao manter Zaya fora de sua vida Aquele encontro viera na melhor hora possível. Serviu para deixar o príncipe herdeiro mais firme do que nunca e com a certeza de que nem mesmo ela, ou o desejo que sentia, fariam-no voltar atrás em sua promessa. ZAHARA INSTRUIU QUE ZAYA RETIRASSE o restante do dia para descansar, mas foi quase impossível. Ela estava prestes a se casar. Perguntou-se o que Áster faria se soubesse a verdade do nascimento dela. Zaya tinha certeza de que ele não hesitaria um segundo sequer em dedurá-la. Talvez fizesse como o pai dela e a mandasse para longe como um objeto indesejado e vergonhoso. Zaya estava muito perto de conseguir o que queria, não poderia se arriscar a tanto apenas por se levar por emoções passageiras. A única certeza que tinha era a de que teria que tomar muito cuidado a partir daquele momento. Não podia arriscar que aquelas pessoas soubessem sobre a parte do seu passado que ela ocultava até mesmo de Darissa e Norvina. Seu segredo morreria com ela. Tudo acontecia de maneira desastrosa. Zaya não previu que poderia vir a sentir desejos pelo futuro marido. Era irremediável e nada podia fazer para mudar isso. Ela selara o próprio destino com o príncipe do caos. As duas partes dela duelavam uma contra a outra. A parte sã insistia em dizer que ela não conseguiria manter aquilo preso por muito tempo, enquanto a outra parte tinha certeza disso. Zaya não conseguiria resistir a ele, não depois do que houve naquela banheira. Áster fora tão direto, para ela não restava dúvidas, ele concordara com o casamento, mas não por outra razão além de ceder aos caprichos da própria luxúria. A melhor coisa que Zaya faria seria não deixar que sentimentos confusos se infiltrassem em seu coração. Ela se recriminava cada vez que ouvia passos em um corredor e prendia a respiração pensando que era Áster. Nunca era. Ele não fazia nenhuma questão de estar perto dela, e Zaya devia estar feliz com isso, assim não corriam o risco de nutrir sentimentos que poderiam confundi-los. Não teria um casamento feliz, tampouco um infeliz, era óbvio que não se amavam, mal se suportavam, mas com o tempo. ela encontraria coisas para amar, como seus filhos. Só de estar ali, no palácio, ocupando o lugar de princesa-consorte, era mais do que alguém nascida como ela poderia esperar. E isso deveria bastar. Tinha que bastar. O palácio passou a noite em polvorosa. Zaya podia ouvir os movimentos dos criados, que andavam para lá e para cá, deixando tudo em ordem para a celebração que aconteceria após o conúbio. Quando o céu começou a clarear em seus numerosos tons de azul, Zahara, vestida em trajes reais, foi até o harém buscá-la e levá-la até o quarto andar do palácio. Os trajes de noiva eram muito parecidos com os que Zaya usara no banquete de compromisso, com o acréscimo de que agora uma peruca rodeada de contas douradas e azuis escondiam o seu cabelo. Norvina e Darissa também participaram da cerimônia, foi reconfortante tê-las ali, Zaya sentia que precisaria da presença delas. Em parte, por considerá-las sua família, além disso aquele ainda era o seu casamento, e ela pretendia que fosse o único. Mesmo que nenhum dos noivos quisesse se casar de fato. Uma parte de Zaya ainda temia que Áster não aparecesse, mas o temor foi suprimido pelo alívio quando o avistou parado de frente para a janela panorâmica do observatório que se abria para o horizonte. Ele encarava a paisagem montanhosa com as mãos atrás das costas e o rosto compenetrado. Também estavam ali alguns conselheiros do rei, sacerdotes reais, o escriba do rei, os príncipes e Kamilah. O faraó não estava. Zaya passou por Ramessés, e ele lhe deu uma piscadela encorajadora. Cada irmão beijou com carinho a testa da nova integrante da família antes de Zaya se colocar na frente de Áster. Devagar, ela se permitiu erguer os olhos para ele. Os contornos do belo rosto do príncipe herdeiro estavam rígidos, taciturnos, e ela não conseguiu identificar a sombra em seus olhos. Parecia distante. Áster também tinha uma coroa de ouro sobre a cabeça, com uma grande serpente de Uraeus em riste. A peça dourada combinava com o cobre dos cabelos dele e o deixava poderoso. As roupas eram de tecido fino e bem lavrado, com um peitoral de ouro, faiança azul e os olhos pintados de kohl. Deuses, como é belo! Não era uma beleza terna que inspirava poemas românticos e provocava suspiros em corações juvenis, pelo contrário, era uma beleza óbvia e ostensiva, que causava palpitações e inspirava canções indecentes. Ele já não tinha o semblante despreocupado e galanteador de horas atrás, na verdade, estava muitíssimo parecido com o pai na noite em que Zaya o conhecera, e ela não gostou. Áster suspirou, impaciente, e se voltou para os membros do conselho. — Podemos resolver isso de uma vez? — indagou displicente, e a maneira como ele se referiu a união entre os dois causou um embrulho no estômago de Zaya. O grão-vizir deu um passo à frente, retirando um rolo de papiro do bolso da túnica. Todos ficaram em silêncio quando ele começou a ler o manuscrito: — Declaro diante de todas as testemunhas presentes nesta cerimônia que ao tomar Zaya como esposa, o príncipe Áster, primogênito do faraó Radamés, décimo quinto de sua dinastia, herdeiro imediato ao trono, aceita transformá-la em princesa e em subsequência em rainha-consorte. O filho primogênito dela, será o dele, e a ela serão dados os mesmos direitos que os dele, segundo as leis dos deuses e dos homens. Tudo que Zaya mais queria era poder saber o que se passava pela cabeça de Áster, mas não arriscou olhar para o rosto dele, temia o que poderia encontrar. O vizir voltou a fechar o rolo e dessa vez foi Zahara quem se aproximou. Era possível ver a emoção nos olhos da rainha. Ela primeiro se dirigiu à nora. — Eu peço à deusa Ísis, a primeira das esposas, cujo amor e solicitude nunca falharam, que possa auxiliar Zaya nas tempestades que ão de vir. Peço também que Hathor nunca deixe de abençoar essa união, pois a dama do ocidente protege as mulheres da infertilidade e os homens da impotência. E então se virou para Áster, depositou uma mão afetuosa no rosto do filho. — Que Osíris te inspire a guardar tua mulher com fervor e a amá-la com ardor para manter vivo o sentimento entre vós. Aprenda com os erros passados e os deixe lá, para não trazer para tua casa o mesmo sofrimento que te afligiu outrora. Áster manteve os olhos firmes na mãe, ficou nítido que os dois trocaram uma conversa cheia de significado, e os tirou dela com a mesma impassibilidade na qual Zahara terminou sua bênção. Ele tirou do bolso um objeto delicado e o estendeu à esposa. — Eu te faço minha esposa — disse, a voz desprovida de qualquer emoção. Zaya aceitou a joia, avaliando-a. Era um anel de escaravelho. O bicho tinha as asas fechadas, o corpo era todo feito de ouro, com as asas de turmalina azul e os olhos eram de duas esmeraldas. Um nódulo doloroso surgiu na garganta de Zaya, impedindo-a de falar. O escaravelho era o símbolo do coração e deveria significar que Áster dava o dele a ela, mas ambos sabiam que isso estava muito longe de ser verdade. A joia não passava de uma formalidade, assim como tudo na cerimônia e no matrimônio dos dois. Zaya olhou para a face de Amon-Rá, nascendo no horizonte, banhando seus corpos recém unificados com uma luz quente e afável. Daquele lugar, ela tinha uma vista ampla de Astória e das colinas de areia que a protegiam. Agora Zaya entendia o porquê do local se chamar Palácio da Alvorada. Era o primeiro ponto onde o sol batia ao nascer e o último ao se pôr. Era uma bonita alvorada, e era um belo momento para um casamento. Ela gostaria de tê-lo feito com alguém que quisesse se casar com ela de verdade. Zaya olhou para o então marido, para os olhos verdes que ele tinha, para a expressão empedernida que ele exibia e percebeu que estava na hora de parar de desejar algo que não poderia ter. Certa disso, ela mesma colocou o anel no dedo anelar. Um pouco trêmula, disse as palavras mais fáceis da sua vida: — Tu me fizeste tua esposa. — Selando, dessa maneira, a eterna união entre ambos. Estava feito. Zahara assistia de uma janela no terceiro andar do palácio enquanto os recém-casados eram carregados em uma grande liteira pelas ruas da cidade. Os cidadãos astórianos ansiavam por conhecer a nova princesa e jogar benções e felicitações para o jovem casal. Áster se mantinha soturno, inexpressivo, sem demonstrar reações. Mas ele saíra do ventre dela, e Zahara conhecia o filho o suficiente para afirmar que ele estava no mínimo nervoso. Podia ver o quanto os olhos dele brilhavam toda vez que olhava para a esposa, ou sempre que era preciso que pegasse na mão de Zaya para ajudá-la. Era esse brilho que dava a Zahara a certeza de que não errara ao escolher a noviça para ele. Era ela, sempre fora ela. Zahara estava bastante aliviada, devia dizer. Pensou que teria um pouco mais de dificuldade de juntar os dois, em vista que ambos tinham demônios do passado que ainda os distanciavam, mas ela cumprira com a sua jornada e, daquele momento em diante, tudo estava entregue nas mãos do destino. Quando os recém-casados retornaram para o palácio, o banquete de celebração já estava posto no grande salão. O mesmo salão onde Zahara pegara o filho seminu, rodeado de messalinas em uma orgia muitos meses atrás. Ela tivera que mandar trocar o tapete e a mesa, mas tudo estava impecável como sempre fora. Eles sentaram-se um ao lado do outro na extremidade da mesa de ébano. Áster serviu o primeiro prato para a esposa, e ela encheu a taça de vinho dele, como ditava a tradição. Mesmo nervosa, Zaya não dava o braço a torcer para a nítida apatia de Áster. Zahara podia imaginar o quanto ele estava abalado. Ela entendia o que o casamento representava para o filho, respeitava isso, mas não podia ser diferente. Não desejava para seus filhos a mesma tristeza que a assolava dia após dia. Ele entenderia com o tempo, e somente Zaya podia ajudá-lo a tal, quando chegasse a hora. Por hora, a princesa estava confusa e ainda descobria as próprias ambições, mas quando a compreendesse o poder que tinha sobre o marido, seria capaz de fazê-lo mover montanhas apenas para deixá-la feliz. O banquete se estendeu até a tarde, após o casal foi para a sala do trono para receber as bênçãos de alguns imperadores de cidades vizinhas que foram até Astória apenas para felicitá-los. Quando o céu adquiria a cor laranja do sol poente, Zahara pegou Zaya e a levou para o aposento grande no terceiro andar, onde eles passariam as bodas. Zahara escolhera uma ala afastada e ordenara que os guardas parassem de circular por ali. Ela não sabia o que esperar dos dois, mas a única coisa da qual tinha certeza era da desordem. Não podia arriscar que Zaya fugisse ou que alguém atrapalhasse os dois, caso a consumação da união desse errado. Eles aprenderiam a se resolver como marido e esposa. As donzelas da rainha ajudaram Zaya a se despir das roupas da cerimônia. Levaram-na para uma banheira cheia pela metade, onde assearam a pele da princesa e depois a besuntaram com óleo de cálamo até que ela estivesse tão macia quanto lã. Por fim, colocaram-na dentro de uma camisola de véu vermelho e translúcido e a perfumaram com essências aromáticas. Zahara dispensou as criadas e ela mesma quis cuidar dos cabelos de Zaya. No dia anterior, quando Áster fora até Zaya e lhe deu a expressa ordem de não os cortar, Zahara soube que o filho já estava apaixonado pela mulher que escolhera para ele. Só precisava se dar conta disso, o que era apenas uma questão de tempo. Zahara escovou os cabelos de Zaya e os deixou soltos, caindo com um brilho sedoso pelas costas da nora. Isso fez com que Zahara se recordasse da própria noite de núpcias. As lembranças a traziam tristeza e rancor na mesma medida. Naquela época, ela era tão cheia de sonhos e inocência. Todas as suas fantasias foram arrancadas dela com crueldade, mas não aconteceria o mesmo com Zaya, tudo caminhava de acordo com a profecia. — Há algo que você queira saber? — perguntou ao perceber a exasperação da nora. Zaya estava nervosa, mas não parecia ter algo a ver com as bodas. Era algo além. — Não. Quer dizer, sim. — Ela mordeu o lábio inferior. — E se, por acaso, eu não conseguir conceber... Zahara passou as mãos pelos cabelos bem penteados de Zaya e sorriu. — Não pense demais nisso, se ficar ansiosa, parecerá uma eternidade, vá um degrau de cada vez. — Zaya ainda pareceu cheia de incertezas, mas assentiu. — Agora eu devo ir, Áster chegará logo. Zaya engoliu em seco. Zahara viu em seus olhos o medo do que estava por vir. Desejou poder fazer mais alguma coisa por eles, mas estava além das suas vontades. Apenas orou para que os deuses fizessem o casamento dar certo e se dirigiu para seu próprio aposento. Uma parte da batalha estava vencida, tudo que Zahara poderia ter feito, ela fez. Dependeria de Áster, seu filho decidiria se valia a pena um futuro sozinho e infeliz ou um diferente, em que ele poderia ter o que sempre quisera, mas se recusava a admitir. Zahara esperava que tudo terminasse bem, o futuro de todos os seus filhos dependia do de Áster. Entrou em seu refúgio mais sagrado, pensando que enfim teria um momento de paz depois de tantas semanas atulhada em preocupações. Zahara precisaria de um longo banho e de algumas taças de vinho para se sentir revitalizada, mas estagnou os passos quando viu Radamés parado de costas para o quarto, observando a cidade pela sacada. Seus nervos ficaram aflitos e seu coração definhado pareceu bombear dor líquida pelas veias. Zahara se preparara tanto para esse momento, e não parecera ser o suficiente. Radamés sentiu a presença dela e se virou para a esposa. Zahara teve necessidade de inspirar fundo, nem mesmo a idade conseguira diminuir a beleza dele, parecia apenas favorecê-lo. — Você tem uma bela vista daqui de cima. — Ele disse e caminhou de volta para o quarto. Zahara juntou as pernas e colocou as mãos em frente ao corpo, abaixou de leve a cabeça, adotando uma postura respeitosa. — Meu senhor, acreditei que a essa hora já estaria muito longe em sua viagem. — Por felicidade, o tom de voz de Zahara não transpareceu o tamanho do seu nervosismo. Foram muitos anos de prática até que ela conseguisse esconder com perfeição toda a angústia que sentia quando estava na presença do marido. Ele deu mais alguns passos para dentro do aposento e parou alguns metros longe dela, encarando-a com uma solicitude desmedida. Em doze anos não houve um só dia em que Radamés subiu até aquele lugar. Zahara se perguntava o que ele pretendia, tirando pelos mais de vinte e oito anos de casados, ela aprendera a esperar sempre o pior dele. — Houve uma época em que você me chamava por outros nomes. Zahara levantou a cabeça e o encarou sem entender onde ele almejava chegar com a conversa. — Aconteceu algo? — Resolveu ignorá-lo. — Sim. — Os olhos castanhos-avermelhados de Radamés a perfuraram. — Nos últimos dias ouvi algo que me fez repensar sobre a nossa família. Ela sempre soube que um dia àquela hora chegaria, só não esperava que a pegaria tão de repente. Mesmo que jurasse para si mesma que já não existia mais um pingo de afeto em seu coração pelo marido, Zahara sabia que era mentira. Ela dera tudo a ele, a vida, o corpo e quatro filhos fortes e saudáveis, nem isso fora o suficiente para fazê-lo querê-la. Ou estimá-la o mínimo. — O que quer dizer? Ele olhou para o canto da sala enquanto pensava. — Eu sempre achei que tomava todas as decisões corretas, Zahara, colocando o bem do país à frente do meu, para assim ganhar a admiração dos meus filhos, mas descobri que, na verdade, consegui o contrário. Os nossos filhos me odeiam? Zahara abriu a boca, surpresa com a indagação. — Isso nunca foi importante para você, por que quer saber justo agora? — Até ontem eu não imaginava que era assim. — O que você tem dos seus filhos é o resultado de todas às vezes que foi negligente. Radamés suspirou, ele sabia ser inclemente quando queria ser. Sabia ser amedrontador. Uma vez, no passado, foi essa sua postura de gladiador que a fizera se apaixonar por ele. Naquele momento, quando olhava para o rosto bem esculpido do marido, tudo que Zahara sentia era desprezo e decepção. — Se eu fui negligente, foi porque estava ocupado demais tentando ser um bom rei, um bom exemplo para eles — disse, adquirindo toques de raiva e injúria em seu semblante. — É aí que está o problema. Você poderia ter sido os dois, mas preferiu ser apenas um. Você tem a adoração do seu povo, mas a que importa de fato você não tem, e eu duvido que vá voltar a conquistá-la algum dia. Radamés engoliu em seco, bestificado com a sinceridade nas palavras da esposa. Demorara, mas ele enfim se dera conta de que perdia a única coisa de valor inestimável que tinha, e Zahara não pouparia palavras para fazê-lo lamentar. — E você Zahara? — O corpo dela entrou em alerta quando Radamés pronunciou o seu nome daquela maneira. — Você também me odeia? A pergunta pairou no ar, a resposta era bem óbvia para os dois. — Não vem ao caso. Não são os meus sentimentos que estão em questão aqui. — Ela foi evasiva e deu as costas para ir ao aparador de bebidas, não conseguia ficar parada sob o olhar intenso do cônjuge. — Zara... — E assim, de maneira que ela não pôde impedir, a mão de Radamés envolveu o pulso dela. O toque foi reconhecido pelo corpo de Zahara no mesmo instante, parecia pungente, aterrador, a sensação não era bem-vinda, não mais. Ela se afastou como se lhe causasse agonia. Radamés sentiu também, encarou a própria mão estarrecido e depois a esposa. — Você veio atrás de respostas, eu as dei, agora saia, por favor. — Zahara pediu com a voz trêmula. Ele relutou, era nítido que queria dar continuidade a conversa, mas não havia palavras que fossem fortes o suficiente para curar uma ferida que esteve aberta durante doze anos. Radamés suspirou, resignado e a deixou sozinha. Quando ouviu a porta bater, Zahara andou até a sacada para ver o sol poente no Oeste. Ela construíra uma fortaleza ali para se manter longe de tudo, mas em especial dele, e naquele instante, com apenas uma visita, Radamés causara uma rachadura na parede. Era uma questão de tempo para tudo ruir de vez. AS CORTINAS ACETINADAS DE COR CARMIM E OURO das janelas dançavam com suavidade com o vento da noite tenra. Zaya abraçou os joelhos contra o peito, aquecendo-se e vasculhou com os olhos o quarto preparado para ela e Áster com minúcia. Tudo remetia a luxúria e algo mais íntimo, ou talvez ela achasse isso por saber que dali em diante aquele quarto seria para eles dois, o local para o qual Áster viria para fazê-la sua mulher. A decoração era luxuosa, muitas cortinas, lanternas de vidro vermelho que pendiam acesas no teto e provocavam uma meia luz sensual. O chão estava coberto por um tapete grosso de pele e inúmeras almofadas espalhadas por todos os lados. A cama, onde estava deitada, era alta, com três colchões preenchidos com penas de ganso, e as cobertas pesadas de lã eram brancas, todas elas. Apenas as cortinas ao redor da cama eram da cor vermelho-sangue. Quase não havia móveis, só uma mesa que continha um lavabo de cobre com água limpa e utensílios de higiene. Duas mesas menores dos dois lados da cama, e um bonito toucador em que estavam vários frascos de alabastro contendo óleos aromáticos. A única coisa que se tinha em abundância eram espelhos. Inúmeros. Havia espelhos de cobre por vários lugares, mais perto das paredes. Zaya encarou o próprio reflexo em um deles e viu que o rosto estava um pouco pálido. Ela estava em sua noite de bodas. Nunca pensou que conseguiria chegar tão longe. Evitara pensar por todos os dias e estava prestes a concretizar o casamento, sentia medo. Temor. Quem dera pudesse adiar tudo, mas não lhe cabia mais. Ela tinha a responsabilidade de ter um filho. Seu corpo não era mais só seu, seu marido era quem decidia quando ou como seria útil para ele. Ela foi uma tola por achar que passar por todas as cerimônias seria tão fácil quanto foi para atravessar o deserto. Fez o impossível para ganhar o príncipe, enfrentou os próprios medos e não fraquejou diante dele quando este tentou afugentá-la, e, naquele momento, que só precisava encarar mais um obstáculo, estava inclinada a desistir de tudo. A maneira como Áster agira o dia inteiro não saía da mente de Zaya. Sua expressão muito rude como se ela o condenasse à morte certa. Não tentou fingir felicidade, não falou com ela uma única vez. É tudo tão... nem um pouco romântico. Claro que Zaya não desejava romantismo, casar-se com o príncipe herdeiro nunca se tratou de romantismo, mas se questionou se era tão ruim assim desejar um pouco de simpatia. E estava ali, vestindo uma peça de linho que custava o dobro do valor que seu pai recebeu ao vendê-la para Astarte, perfumada com algo doce e enjoativo, e seu marido não fazia o favor de aparecer nem que fosse para rir dela. Pífio! O tempo passou e o movimento dentro do palácio diminuiu aos poucos, até não restar mais som nenhum além dos assobios do vento lá fora. Ele não virá. Talvez resolvera passar a noite de bodas na companhia de uma mulher diferente, não a dela. Logo Zaya sentiu-se ridícula por ainda esperar por Áster quando estava mais do que claro que ele não apareceria. Sentia-se mortificada só de pensar no que as pessoas falariam pela manhã, quando acordassem e soubessem que os lençóis da cama nupcial continuavam imaculados. Perguntou-se o que diriam dela, quando soubessem que o príncipe preferiu passar a noite em outra companhia. Será tão humilhante! Ela não entendia o porquê a machucava quando já sabia que Áster a rejeitaria. Ele concordou com o casamento, não significava que concordaria com todo o restante. Ele sempre a rejeitaria, Rejeitou-a no início e não seria diferente depois de casados. Praguejando, Zaya soltou os joelhos e se deitou na cama, decidida a não esperar mais por ele. Zaya sentia os pulmões pesados e a garganta doía cada vez que tentava respirar. Olhou para todos os lados e o que encontrou foi uma imensidão de areia e escuridão cercando-a. Sentiu vontade de gritar por socorro, mas nenhum som saiu por sua garganta. Seu pior acontecia: perambulava sozinha no deserto. Abraçou-se na tentativa de se aquecer dos ventos frios que a assolavam. A solidão lhe apertou a garganta como se quisesse matá-la. Escutou silvos ensurdecedores de vento rasteiros e olhou para trás para avistar uma tempestade de areia monstruosa que se formou em um tornado furioso de súbito, marchando em sua direção. Zaya correu para o nada em uma falha tentativa de lutar por sua vida, mas sentia que, de uma maneira ou de outra, aquele era o seu fim. As pernas se tornaram pesadas, o corpo não queria mais obedecer aos comandos de Zaya. Ela queria ficar e enfrentar a força da natureza, mas deixou que a vencesse e caiu, rendendo-se à morte iminente. Foi engolida, arrastada para o meio do tormento, as rajadas de ventos e areia a castigaram na pele. Eram úmidas, fortes e quentes como os golpes de um chicote. O mais curioso era que não doía como esperava, ao invés disso, era bom, prazeroso. Os golpes incessantes de vento, aos poucos se transformaram em afagos. A areia beijou sua pele e acariciou o seu corpo com suavidade, Zaya sentiu uma vibração harmoniosa no fundo do seu ser que se transformou em algo mais firme, ludibrioso. Palpitações cresceram em sua carne e uma pressão em seu baixo ventre a fez abrir os olhos de uma vez. Demorou um tempo até que percebesse onde estava. Zaya sentia a pele úmida, suada, os mamilos estavam rígidos e doloridos e o peito subia e descia furioso, junto com as batidas do seu coração. Sentiu o corpo inteiro em chamas, labaredas de fogo puro lhe lambiam a carne, e ao olhar para baixo, viu cabelos castanhos-acobreados entre suas pernas. Áster estava com a língua tão funda, enterrada no corpo dela, que Zaya sentia a ponta do músculo tocar um gatilho de prazer lá dentro e, pela posição em que se encontrava, com a cintura inclinada para cima, percebeu que não somente aceitava as carícias da língua de Áster, como também se esfregava no rosto dele. Há quanto tempo estamos nisso? Quando ele entrou aqui? Pensou que o homem era depravado demais para a própria saúde dela. Ele conseguia sacudir todas as estruturas do corpo feminino usando apenas a língua profana, e Zaya não conseguiu dizer não. Jogou a cabeça sobre o travesseiro e mordeu o lábio, tão imersa na sensação que não tinha pensamentos suficientes para mais nada. — Áster... — chamou pelo nome dele. Não podia ser assim, ele não podia ser um cretino o dia inteiro, deixá-la esperando na noite de núpcias e tomar posse do corpo dela quando lhe conviesse. — Silêncio. — Ele ordenou ainda com a boca pressionada à carne frágil da mulher. Zaya gemeu uma reclamação. Não podia deixar que a dominasse outra vez. Afastou o quadril do alcance de Áster, e ele exalou o ar dos pulmões, impaciente. Ele não tinha paciência para fragilidade e decoro, queria e derrubaria qualquer obstáculo que se colocasse em sua frente. — Por que demorou tanto? Onde estava? — Ela perguntou, cobrindo-se. Os lábios de Áster estavam vermelhos e inchados. Ele os lambeu, degustando o sabor dela enquanto se levantava carrancudo e a encarava com as mãos na cintura. Zaya ignorou o aperto de desejo que sentiu no baixo-ventre ao vê-lo de pé, também usando um penhoar masculino meio aberto no peito dourado. As coxas poderosas eram visíveis. Ele era tão viril, um macho em sua verdadeira forma. Ela tragou saliva, o olhar que Áster lhe dava era o de um predador impiedoso. — Estava decidindo se vinha. — Ele escolheu ser sincero, deixando claro que de fato a deixou esperar. Zaya trincou os dentes com raiva. — Por que mudou de ideia? Áster tocou no pé dela e a alisou no calcanhar com veneração. — Eu imaginei você aqui, nua, me esperando em nosso leito conjugal e não fui capaz de resistir. Ela puxou a perna para fora do alcance de Áster e se perguntou como ele conseguia dizer algo rude para no instante seguinte a deixar sem palavras. Olhando-a daquela maneira, como se a quisesse com loucura. — Não esperava por você, eu dormia antes de você me...me... — Zaya não conseguiu completar a frase. Áster exibiu um sorriso descarado. — Chupar, é essa a palavra que procura. Não há problema nenhuma em dizê-la para mim, sou o seu marido agora. — Ele voltou a agarrar a perna dela, dessa vez com mais força para que não conseguisse se esquivar de seus carinhos. — E sim, você me esperava, chamava o meu nome durante o sono. Quando te beijei, você se abriu como uma flor de lótus. Tem gosto de carência. A pele dela pulsou com excitação e raiva na mesma medida. — Não te pedi para me beijar, você o fez porque quis. Áster mordeu o peito do pé de Zaya e a olhou enquanto fazia isso. — Tem toda razão, fiz porque quis, porque você é minha, porque eu posso e, em especial, porque você queria tanto quanto eu. Agora nós vamos consumar nosso casamento, porque ambos queremos. Guarde o seu falso pudor para quem precisa dele, doçura. — Eu não sou um objeto do seu capricho. Não ficarei esperando você noite após noite para que venha me agraciar com sua ilustre presença quando achar que bem deve. Áster rolou os olhos e soltou o pé dela. — É o que veremos. Ele desfez o nó das tiras que amarravam o penhoar, e Zaya achou que fosse desmaiar quando a ereção pesada de Áster ficou em riste como uma espada. Ela já o vira duro antes, na verdade, nas duas ocasiões em que o vira nu ele já estava duro para ela, mas agora parecia muito mais colossal. A cabeça larga estava vermelha e lustrosa, parecia doer, derramava um filete de um líquido transparente pelo corpo grosso e escuro. Zaya sentiu a súbita necessidade de fechar as pernas e nunca mais abri-las. — Se dispa para o seu marido, princesa. O comando teve o efeito contrário, ela usou as mãos para fechar ainda mais a roupa ao redor do corpo. Áster não ficou enraivecido diante da rebeldia da jovem esposa, ao invés disso a olhou provocante e levou uma mão até o pênis rijo, acariciando-se de cima a baixo. Os movimentos eram tão precisos e masculinos. Ele assassinava a inocência de Zaya sem piedade nenhuma. — Você não me quer, esposa? Ela balançou a cabeça em negativa, incapaz de desviar o olhar da mão que subia e descia cada vez mais forte e veloz em torno da ereção maciça. — Você não quer me sentir em você? Não quer saber quão magnífico podemos ser juntos? Dessa vez, quando Zaya negou com a cabeça, não foi tão confiante. Áster percebeu e subiu na cama; de joelhos, engatinhou até ela, parou a alguns centímetros de Zaya e sua mão se esticou para puxar a faixa do penhoar que a escondia dele. Ela o observou e não se moveu, tampouco o impediu. Áster afastou o tecido, exibindo a roupa de dormir que Zaya usava e, com a mesma mão, empurrou o tecido até se amontoar nos quadris dela, exibindo parte das coxas e a carne avermelhada onde estava com a boca apenas alguns minutos atrás. — Então, se eu a tocar agora... — Seus dedos deslizaram pela parte interna da coxa dela, fazendo-a estremecer, e ele parou a centímetros do centro pulsante de desejo da esposa. —...você não estará úmida para mim, verdade? Zaya se contraiu quando o dedo dele deslizou pela fenda escorregadia dela. Áster deu um sorriso vitorioso, e ela se odiou por ser tão transparente. — Por que você me quer? Você pode ir se divertir com suas amantes. Foi o que disse que faria, não foi? Ele não gostou nada do que Zaya disse. O rosto de Áster se tornou severo e suas sobrancelhas grossas se juntaram. Aborrecido, ele se afastou um pouco para olhá-la melhor. — É isso que você prefere? Não, não era isso que ela preferia, mas se perguntou o que podia fazer? Zaya não podia arriscar que ele e o desejo irracional que sentia a transformassem em algo que abominava. — Eu apenas quero acabar com isso de uma vez. — Exasperou-se, cansada emocionalmente. O músculo da bochecha de Áster saltou, e ela imaginou que acertara algum ponto sensível do ego do marido, ele não estava mais risonho e nem receptivo. Só muito sombrio. — Tudo bem, faremos isso de uma vez. Encare como mais uma preparação. Só que dessa vez, o leite que colocarei em você será outro. Pelos deuses! — Você me deixa escandalizada. — Ela sussurrou trêmula quando ele a segurou pelas coxas e a encaixou em sua virilha em um único movimento. — Acostume-se, eu sou o príncipe depravado e para sua infelicidade, é tarde demais para fazer a troca. As mãos de Áster desenharam as curvas dos quadris dela e subiram devagar até que os dedos resvalaram a curva de um seio. Ele parou, a mão bem ali, e quando sentiu as batidas desenfreadas do coração de Zaya, encarou-a no fundo dos olhos. Zaya desviou o olhar para um dos espelhos no cômodo em que os via de outro ângulo, mais devasso. Não queria que ele visse o que se passava em sua alma — o quanto sentia-se plena por estar com ele na cama dos dois. Insultado pela displicência da mulher, Áster exalou ar pelas narinas e brincou com a ponta da ereção na umidade de Zaya até que a princesa estivesse inquieta sobre o colchão, movendo os quadris em busca de atrito, desejando em silêncio que ele a tomasse. — Faça. — Ela pediu, encaixando-se nele. Áster fechou os olhos, seu rosto se contorceu em uma agonia sensual. — Você não pode imaginar o quanto ansiei por este momento. Não faça parecer como se não fosse importante. — Ele sibilou, com raiva, e com a mesma brutalidade segurou os dois lados da frágil roupa de dormir e a rasgou do corpo de Zaya, transformando-a em duas. Zaya sentiu o vento da noite raspar sua pele nua, mas não sentiu frio. Áster estava quente o suficiente para derreter ouro. Tal selvageria não a assustou, apenas a deixou mais ansiosa por ele. Áster levou uma mão para a nuca dela e com a outra a agarrou pelo quadril. Deixando-a cativa e obrigando-a a olhar em seus olhos verdes e tempestuosos à medida que seu membro buscava conforto dentro do corpo virginal da esposa. Um choramingo escapou pela garganta de Zaya quando ela o sentiu penetrá-la. Sim, a dor estava lá, mas a causa do seu choramingo era a fraca resistência dela. Não era horrível como esperava. Enquanto a alargava, Áster lambia a garganta dela, chupava-a. Sua língua estalava quando ele a degustava, e Zaya quase não sentiu quando ele atravessou uma barreira frágil dentro do seu corpo. O pênis rijo de Áster estava enterrado até a base no corpo dela. Zaya o sentia tocar um ponto sensível ali dentro e amoleceu nos braços dele, mas permaneceu aferrada aos fios fracos da sua parte sã. — Se você espera se livrar de mim, mandando-me para outras, saiba que eu fiz votos que pretendo cumprir. — Áster murmurou, os olhos brilhavam de prazer e algo mais por estar tão enterrado nela. Ele movimentou os quadris para cima e uma respiração errática denunciou o prazer daquela fricção, mantendo-a presa o tempo inteiro. As estocadas ainda eram rasas e lânguidas, ele a provocava, incitando-a a soltar as rédeas, mas Zaya não faria isso. — Agora você é minha princesa, prisioneira das minhas vontades. Se me obedecer neste leito. eu serei o seu servo. — Ele gemeu ao se permitir ir mais fundo, e um arfar de prazer escapou pelos lábios semiabertos de Zaya. Ela olhou para o espelho, as costas de Áster começavam a brilhar de suor, cada músculo que ele tinha se contraía e relaxava cada vez que ele ia e voltava. Ela desceu os olhos para lá, para onde seus corpos se uniam e percebeu o erro. A visão do membro que subia e aparecia dentro dela, lubrificado com seu próprio prazer, serviu apenas para atiçar as chamas da sua insanidade. Fechou os olhos apertando-os, ainda lutava, ferrenha, contra os instintos errados e se proibiu de sentir prazer. Parecia impossível. Ela lambeu o suor que se formou sobre o lábio superior e apertou os dentes para não gemer. Áster logo percebeu a resistência da esposa e aumentou as estocadas em provocação, tornando-as firmes e fundas. Quando estava prestes a estocar uma última vez, viu que Zaya perderia a batalha, afastou os quadris tirando-o de dentro dela. A fagulha do prazer foi apagada no mesmo instante. Com dificuldade para respirar, Zaya abriu os olhos e encontrou Áster encarando-a com um misto de rejeição e desaforo. Pensou que ele se daria por vencido, mas Áster caiu sobre ela e a pressionou contra o colchão, dizendo com isso que a guerra estava longe de acabar. Ele colocou o peso todo em cima dela, suas peles suadas entraram em contato e Zaya tentou não entrar em desespero com o cheiro do marido alagando seu olfato. Sustentando o peso do corpo nos antebraços, Áster a penetrou fundo uma segunda vez. — Oh! — Um gemido agudo saiu sem que ela pudesse reprimir. — Você vai gozar. — Ele prometeu, decidido. Zaya sentiu um calafrio de antecipação. O tom de voz de Áster e a determinação no olhar, deixaram claro que ele seria inclemente no objetivo de dar prazer a ela. Áster não a deixaria sair da cama se não desse a ele o que queria: a alma fragilizada. Começou a meter com força nela, estimulando-a com os dedos enquanto respirava pela boca. A cama começou a ranger, o calor os abraçou, a pele dos dois ficou sensível e vermelha, o cabelo de Zaya começou a se pregar em suas peles úmidas, o cheiro do que faziam ficou mais forte que o cheiro das velas e do perfume dela. — Por que está fazendo isso? Por que não quer se entregar para mim? Me dê o seu prazer! — Ele exigiu e se tornou ainda mais atroz. Zaya sentia as paredes do seu sexo frágil se contraírem pelo desejo de obedecer ao marido. Ela lutou com todas as forças, mas não suportava mais resistir. Foi sugada para o tornado, ele a tomou em cada fragmento, fazendo-a apertar os dentes para não gritar. — Áster! — gemeu, tateando em busca da mão dele, a única coisa que a prendia na terra no momento do prazer desmesurado. — Pelos deuses... — Ele arfou, olhando para o corpo da esposa que se contorcia em agonia sob o dele. Não aguentou a visão, deu uma última estocada e saiu de dentro de Zaya no último segundo, derramando-se como nunca fizera em cima dos lençóis. A névoa do prazer foi dissipada dos olhos dela, e Zaya sentiu algo afiado atravessar seu coração. Ela recolheu as pernas, fechando-se, sentindo um frio mortífero onde antes existia fogo puro. Mesmo assim não desviou os olhos dele enquanto Áster expelia sua essência fora, deixou que ele visse todo o ressentimento que a corroía pelo que ele fizera. Aos poucos Áster se recuperou, a respiração voltou ao normal e seu rosto voltou a exibir o semblante controlado. Não precisava que ela dissesse nada, ele sabia o porquê de Zaya olhá-lo como se fosse traída. Áster não podia esperar que ela fosse tão inocente a ponto de não saber o que era preciso para engravidar uma mulher. Ele tentou tocá-la para diminuir os estragos, mas Zaya se esquivou como se o toque dele fosse doloroso. — Você me rejeitou. — Ela disse com frieza. Áster não conseguiu sustentar o olhar dela, desceu da cama e começou a se cobrir com o penhoar. — É muito cedo para isso, Zaya. — Com “isso” você quer dizer filhos? Ele apertou os olhos como se não suportasse ouvir a palavra “filhos” sair pelos lábios dela. — Por que tenho que explicar meus motivos para você? — Áster se voltou para ela, começando a ficar furioso. — Porque eu sou sua esposa! — É por ser minha esposa que deveria respeitar as minhas decisões. O seu dever aqui não é me questionar. Ela sentou-se na borda da cama, cobrindo-se com um lençol. — E se eu quiser filhos, Áster? — Isso não está aberto a discussão. A inflexibilidade dele a deixava aflita. Ela se questionou se ele planejara antes mesmo de se casar com ela. Imaginou que sim, que, por isso, concordara de súbito com o matrimônio, porque sabia que não teria filhos com ela. Áster a condenaria ao escárnio público e a solidão, por egoísmo, apenas por que Zaya era mulher. Ela achou que ao se casar com ele, ganharia a liberdade e o poder que sua condição de nascença arrancara de si, pensou que teria tudo que queria, que seria ela própria a fazer suas decisões dali para frente, mas Áster tirou isso dela. — Devo obedecê-lo cegamente só por que sou sua esposa? — Se você está infeliz com isso pode pedir o divórcio! Zaya abriu a boca, encarando-o desacreditada. Desde o dia que o conhecera era a primeira vez que sentia verdadeiro ódio dele. Áster esperava que ela fosse uma esposa obediente, que não o questionasse e o aceitasse em sua cama, mas não estava disposto a ser um marido para ela. Ela não podia permitir que fosse assim pelo simples fato de que queria o que ele a negava e Áster não tinha o direito de tomar dela. Se ele não daria o que ela queria, então Zaya faria o mesmo com ele. — O meu dever como esposa é trazer herdeiros para o reinado. — Engoliu em seco. — Como você não o deseja, não vejo vantagem em continuarmos nossas atividades conjugais. Áster ergueu as sobrancelhas, as mãos na cintura e o maxilar retesado. — Elucide suas palavras — pediu, as pálpebras semicerradas. Zaya lambeu os lábios secos e não se acovardou. Até ficou de pé para que ele visse que a decisão não era uma brincadeira. — Digo que não o quero mais em minha cama enquanto você mantiver sua decisão. — Ela não podia ser mais clara do que isso, as palavras foram o suficiente para fazê-lo entender que ela o dispensara de seus serviços de marido. Toda a aparência de Áster mudou. Em um piscar de olhos era uma massa vermelha de músculos tensos, tendões esticados e veias prestes a explodir. — Você não o fará. — Balançou a cabeça, testando-a. — Sim, farei. — Zaya disse, com tranquilidade. — Não pode fazer. — Áster começava a acreditar que ela falara à sério. — Por que não? — Porque é minha esposa, com mil demônios! Zaya estremeceu com a intensidade da voz dele. — Você está me confundindo, alteza, sou sua esposa e devo obedecer a suas decisões, mas você não pode respeitar as minhas? Ele soltou um som agoniado e começou a andar em círculos pelo quarto. — É diferente, e você sabe disso. — Só é diferente porque afeta os seus interesses ao invés dos meus. — Você não pode me expulsar da sua cama! — Ele explodiu. — Então me impeça! Em uma única passada Áster chegou até ela, segurou-a pelos ombros, e Zaya arfou de susto. O homem amedrontador a olhou com crueldade nos olhos. Ela esperou que ele a machucasse ou que fizesse qualquer coisa que a mostrasse que era uma tola por gostar de sentir o toque dele mesmo quando era rude. — Como queira. — Áster disse. Zaya piscou, mortificada, sem acreditar que ele acabara de desistir sem ao menos lutar. Claro que ele não lutaria por ela, Zaya não tinha nada a oferecer. Áster se acostumara a ter tudo, ouro, devoção, companhia feminina em abundância. Não precisava dela para nada e a maior prova estava ali. — Se você aceita a minha decisão, eu respeito a sua. Se ele esperava que Zaya fosse implorar, não a conhecia direito. Ela sangrava, machucada, mas jamais daria a satisfação de demonstrar isso para Áster. — Se você quer assim — disse, sustentando o olhar dele. Áster suspirou, desceu os olhos para a barriga dela e, depois de alguns segundos de silêncio, sumiu atrás de uma porta que levava ao seu próprio aposento, deixando-a sozinha com toda a amargura e fazendo-a perceber que ele não a beijara nenhuma única vez. AS MUDANÇAS NA VIDA DELA COMEÇARAM na manhã seguinte quando um grupo de mulheres vestidas com batas longas e coloridas entraram no aposento, despertando-a. — Me desculpe, alteza, nós viemos recolher os lençóis. Achamos que estivesse no seu quarto — disse Hagid, evitando olhar direto para o corpo nu de Zaya, meio coberto sobre a cama. — Vocês podem voltar em alguns segundos? — perguntou, ainda sonolenta, tentando se esconder o máximo possível sob o lençol. Zaya podia sentir o peso dos olhares sobre ela, podia até presumir o que pensavam. Estava pelada e sozinha no leito conjugal na manhã de núpcias. Áster não teve a decência nem de buscá-la para tomar o desjejum. As donzelas não disseram nada, saíram do quarto uma a uma e a última fechou a porta ao passar. Ela sentou-se na borda da cama e sentiu a carne corrompida doer entre as pernas. Junto com a dor prazerosa, vieram as memórias da noite anterior. Olhou para a porta por onde o marido sumira algumas horas atrás. Ela não devia ter dormido naquela cama, assim como ele, deveria ter ido para o quarto resignado para ela, mas pensou que talvez Áster pudesse voltar no meio da noite para assaltá-la com a boca quente outra vez, dizendo palavras doces e que mudara de ideia. De tanto esperar, acabou dormindo. Eu sou uma tola. Desceu da cama alta e atravessou a porta de carvalho que dava para o seu quarto pessoal. Diferente do quarto conjugal, este tinha baús altos, exibindo uma extensa aglomeração de tecidos multicoloridos e adereços femininos sobre uma mesa alta com um espelho de cobre bem polido. Ela tocou nos inúmeros braceletes de ouro, nas perucas, nas joias de pescoço, nas joias preciosas e um sorriso involuntário apareceu em seu rosto. Além disso, também tinha um canapé coberto por almofadas e um lavabo mais para o canto. Uma cama confortável bem menor do que a que tinha no aposento conjugal e o melhor: uma janela grande de onde ela tinha a visão das costas de uma das pirâmides de Astória. Zaya imaginava que aquele cômodo era provisório, já que, com o tempo, era provável que seria levada para algum harém onde dividiria o espaço com as concubinas do rei e depois, com as concubinas de Áster. Não esperava que ele fosse se manter fiel depois das palavras ditas na noite anterior. Este pensamento a trouxe uma tristeza profunda, e a felicidade que sentia foi sufocada até que morreu. Ficou de pé, encarando a vista da cidade até que, outra vez, as servas entraram no quarto. Enquanto todas tiravam os panos da cama e os substituíam por outros, Hagid a ajudava a se preparar para o dia. Zaya não estava acostumada a ser tratada com tanta mordomia e, por vezes, ficou bastante incomodada. Ela sabia pentear o próprio cabelo, não era necessário que tivesse tantas mãos para fazer um simples penteado. Elas a vestiram de vermelho, um vestido bem forrado com uma saia pregueada ao redor da cintura e muitos véus que caíam por suas pernas. Pelo visto, a nova posição não a permitia sair do quarto como uma simples mulher. Encheram-na de adereços, nos braços e nas pernas, por fim pintaram os lábios e olhos de Zaya. Quanto ao cabelo, por não o ter cortado, Hagid passou minutos intermináveis em uma trança longa cheia de emaranhados elaborados demais para Zaya compreender. Quando tudo terminou, passara-se uma hora e o estômago de Zaya se revolvia de fome. Ela não aguentaria passar por aquele ritual todos os dias antes de tomar o desjejum. Quando todas as servas começaram a deixar o quarto, Zaya parou Hagid com a mão. — O príncipe Áster já desceu para o desjejum? — O príncipe Áster nunca come suas refeições fora do aposento. — Hagid respondeu com um sorriso gentil. Era o tipo de coisa que ela deveria saber. Eles tiveram poucos dias de noivado, era verdade, mas ele não se interessara por ela nem o suficiente para ter uma conversa sem insultá-la. Zaya percebeu que não sabia nada sobre o marido, nada. Como ela podia estar casada com um homem que não conhecia e que não tinha nenhum interesse em conhecê-la? — Onde devo ir para comer? — Poderemos trazer seu desjejum aqui, alteza. Ela não queria comer sozinha na manhã de núpcias, não tinha nada de mais deprimente do que isso. — Não. Eu quero que levem o desjejum para o salão reservado no harém do segundo andar e que chame Norvina e Darissa para a mesa. Hagid assentiu, saiu logo em seguida para fazer o que a senhora pedira. Zaya precisava de um momento a sós com as irmãs. Norvina e Darissa sempre seriam seu ponto de equilíbrio no meio de toda a confusão. Não demorou muito para que ela se dirigisse até o segundo andar onde encontrou as mulheres sentadas à mesa, já servidas, juntas de Kamilah. Assim que notaram a presença de Zaya, todos os olhares da sala caíram sobre ela. O rosto da princesa enrubesceu por razão nenhuma, e ela pigarreou. — Bom dia — disse e andou até uma cadeira vazia. — Bom dia. — As três mulheres responderam em uníssono e depois veio o silêncio. Zaya capturou uma jarra de suco no centro da mesa e serviu-se. O chilrear dos pássaros no jardim proporcionavam um ambiente pacífico à sala. Começou a tomar o desjejum, sentindo o peso dos três pares de olhos a perfurarem. — Está uma bela manhã hoje — disse Norvina, a fim de começar um assunto para diminuir o clima penoso. — Ah, por favor. — Darissa elevou a voz, revirando os olhos. — Não tenho tempo para essas formalidades. Me diga Zaya, é mais ou menos parecido como os cavalos fazem? O suco voou para fora da boca de Zaya que começou a convulsionar em uma tosse. — Darissa! — Norvina a repreendeu. — Não aja como se não quisesse saber também. — A jovem mulher se defendeu. — Bom, eu estava pensando em a esperar ao menos terminar o desjejum. — Norvina disse, escondendo-se atrás da mesa. — Eu já esperei tempo demais para saber, dezoito anos, não será agora, que tenho a chance, que a deixarei passar. — Quer dizer que vocês não sabem como funciona o emparelhamento entre um homem e uma mulher? — Kamilah perguntou, divertida, enquanto mastigava um damasco. — Emparelhamento? Esse é o nome mais ridículo que já ouvi para se referir ao ato sexual. — Darissa riu. — Mas respondendo a sua pergunta, não. Chegamos em Astarte antes mesmo de descobrirmos nossos próprios desejos, como no templo é proibido a entrada de homens, nós sempre nos questionamos como deveria ser e concluímos que o mais próximo deveria ser como os cavalos fazem. Zaya foi a primeira de nós a descobrir, resta a ela a responsabilidade de nos contar. Mais uma vez, os olhares caíram sobre Zaya, que ainda se recuperava do engasgo anterior. Pelos deuses, como poderei explicar sem morrer de vergonha? Não chegava a ser como os cavalos e ela não sabia como dizer para elas sem deixá-las apavoradas. Não era como idealizara. Não era romântico, ou bonito, ou delicado. Era... humano, muito suado, um tanto pegajoso e cheio de fluidos corporais. Os cheiros eram únicos demais, e a sensação de pertencer a outra pessoa poderia ser um pouco assustadora, ainda assim era bom e inigualável. Viciante. Pelo menos tinha sido para ela. — Zaya? Zaya? — A voz preocupada de Norvina a trouxe de volta para a conversa. Zaya piscou como se despertasse de um sonho. — Sim? — Você ficou calada por uns trinta segundos e de repente ficou muito vermelha. Está tudo bem? — Ela tratou de se recompor, bebendo um gole do suco. — Sim, é que... — Não precisa se explicar. Você deve estar envergonhada. Eu mesma fiquei na manhã das minhas núpcias, eu achava que todos me olhavam como se soubessem que eu não era mais uma menina — disse Kamilah. Ora, isso sim era uma novidade. — Eu não sabia que você era casada. — Zaya observou, olhando para a cunhada com os olhos esbugalhados. Na verdade, ela não sabia quase nada sobre Kamilah. Nos dias que passaram ali, mal a viu pelo palácio, com exceção da noite do jantar de noivado com Áster, quando Zaya a viu sumir, sorrateira, por um corredor do salão. — Estamos aqui há semanas, como não conhecemos seu marido? — perguntou. — Ele é o rei da Pérsia. Tomou o lugar do pai no trono, há poucos meses, e a nova posição exige que fique lá por um tempo. Ele sabe que eu ficaria muito infeliz longe da minha família, por isso me deixou aqui. Assim que tudo normalizar, mandará me buscar. — A princesa dizia enquanto brincava com uma mecha do próprio cabelo. A impressão que Zaya teve foi a de que ela acabara de dizer palavras decoradas. — Seu marido é o rei da Pérsia? O príncipe Aslan? — Darissa indagou, espalmando as mãos na mesa. — Sim. — Kamilah respondeu com um sorriso pequeno. — Isso quer dizer que você foi a princesa egípcia entregue em casamento para o filho do rei Variz como uma oferta de paz? Zaya pôde ver que a pergunta incomodou Kamilah. Ela prensou os lábios volumosos um no outro e encostou as costas no respaldo da cadeira. — Sim, mas assim que nos conhecemos nos apaixonamos. — Parecia na defensiva. — Eu o conhecia, estava noiva do irmão dele, mas Assuero morreu quando o seu povo invadiu minha terra e assassinou meus pais. — A voz de Darissa continha um rancor irreconhecível e seus olhos, tão inocentes, demonstraram uma frieza que Zaya nunca vira nela antes. — Ao que parece você tem muitos motivos para odiar minha família. — Kamilah deu um risinho nervoso, e o ambiente na sala se tornou tão auspicioso quanto um campo de batalha. — É, eu tenho. — Darissa concordou de forma metódica. Zaya encarou Norvina que parecia tão estupefata quanto ela ao ver a aura sombria ao redor de Darissa. Não era a jovem que conheciam, com certeza não. Zaya se levantou, chamando a atenção delas para si. — O que uma princesa faz para passar o tempo nesse palácio? — A tentativa de mudar o ambiente soturno foi bem-sucedida. Kamilah se levantou alegre. — Pensei que nunca perguntaria! Meus dias aqui são um completo enfado. Meus irmãos sempre me excluem de suas atividades por me acharem incapacitada por ser mulher. Agora que tenho amigas, enfim posso fazer algo melhor com meu tempo. Pode parecer que não, mas existem muitas atividades interessantes para se fazer no palácio. A minha preferida é praticar o arco e flecha. — Arco e flecha? Isso parece bom — disse Norvina, mais interessada na ideia do que Zaya esperava. — Onde você costuma ir para praticar? — Zaya indagou, seria bom fazer algo que pudesse distrai-la de pensar em Áster e no que ele estaria fazendo. — Existem alguns pátios próximos dos jardins na ala sul, onde os guardas costumam ir para treinar. Lá tem todos os equipamentos necessários. — Você não acha que eles estarão lá? Kamilah balançou a cabeça em uma negativa. — Não, a maioria dos soldados viajaram com o faraó essa manhã. Os que restaram estão em patrulhas pela cidade, e alguns espalhados pelo palácio. Se não chamarmos atenção, entraremos e sairemos sem que ninguém nos perceba — disse, revelando um lado muito divertido de si mesma que Zaya gostou bastante. Ela se sentiu entusiasmada pela primeira vez em dias. Recusava-se a ser a esposa que Áster esperava que fosse, não ficaria parada, vendo o arrastar dos dias, esperando que ele voltasse e lhe jogasse algumas migalhas de sua atenção. — Bom, está decidido. Vamos praticar o arco e flecha. ÁSTER DEU DOIS PASSOS PARA O LADO enquanto encarava o adversário na sua frente. O homem estava com os dois punhos cerrados em frente ao rosto em posição de defesa. Os dois se analisaram com minúcia, o soldado era o único que restara de pé. O último dos oponentes reagiu com o punho direito direcionado contra o rosto do príncipe, mas Áster escapou do golpe com um desvio e atingiu as costelas do soldado com o cotovelo. O adversário se desequilibrou com a pancada, e o príncipe aproveitou o descuido para derrubá-lo com uma rasteira. O peso morto caiu no chão e não reagiu, permaneceu inerte, ganindo de dor. Áster olhou ao seu redor, sentia os pulmões queimarem e os músculos imploravam por descanso, mas ele não podia parar ou sucumbiria ao desejo alucinado que o consumia por dentro. — Quem é o próximo? — Ninguém reagiu. — Vamos, levantem-se! — gritou a plenos pulmões, mas não surtiu efeito, pelo contrário, os soldados começaram a se retirar do pátio. Uns cambaleando, outros arrastados. O príncipe rangeu os dentes, frustrado. Praguejou e começou a retirar as ataduras das mãos. — O dia começou cedo para alguns. — Darwish entrou na sala de treino, acompanhado de Ramessés. Era só o que me faltava! Tudo que Áster menos precisava era do sarcasmo de Darwish logo pela manhã. Ignorou-o e andou até às margens do pátio onde um servo o esperava com um pano úmido e um recipiente com água. Ele o virou na boca, molhando sua garganta seca e usou o pano para tirar o suor e o pouco de sangue que escorria de um corte no supercílio. — Como me encontraram? Áster quase nunca descia até aquelas salas. Desde que a guerra contra os persas acabara, sua única função era servir de bucha para as lições de reinado do faraó e assim, quem sabe, ser um rei tão magnífico quanto o seu honorável pai o era. — Farejamos o fedor da sua amargura. — Darwish respondeu, chutando uma espada do caminho. Áster olhou para ele por cima do ombro. — Tem certeza de que não o confundiu com o do seu pau? — Para alguém que está em lua de mel, você está me saindo bastante mal-humorado, irmão. — Darwish usou um tom debochado que esquentou o sangue de Áster. — Será que os boatos que circulam os corredores do palácio são verdadeiros? Áster segurou o ímpeto de perguntar quais boatos eram esses, não daria o gostinho para Darwish, mas já imaginava que não demoraria para surgirem. A princesa acordara sozinha no leito conjugal enquanto o príncipe gastava sua energia com os soldados do palácio. — Desde quando vocês dois se transformaram em dois eunucos mexeriqueiros que se enfiam nos assuntos em que não são chamados? — Vale tudo pelo prazer de esfregar na sua cara que você está sendo um idiota — retrucou Darwish. Áster apertou os dentes bem forte e Darwish abriu o sorriso de alguém que sabia que tinha razão. Ninguém com um pingo de sensatez largaria a esposa sozinha na manhã de núpcias. Qualquer homem que tivesse como esposa uma mulher igual a Zaya estaria até aquele momento dedicando-se a ela, beijando os seus pés e agradecendo a maldita sorte que tinha. Apesar disto, Áster era um desgraçado com um destino maldito e não podia se dar ao privilégio. Teve que fazer um esforço sobre-humano para se afastar de Zaya na noite anterior e foi muito pior pela manhã, quando lutou com bravura contra todos os instintos mais primitivos para não ir atrás dela e possuí-la junto aos primeiros raios de sol. Mesmo com os músculos latejando e o corpo doendo em algumas partes, Áster ainda podia senti-la. A sensação estava lá como se marcada com ferro quente em cada parte do seu corpo que esteve em contato com o dela horas atrás. Ele não podia se concentrar demais nisso ou voltaria para o quarto. Então, Áster se empenharia em mostrar que, o que Zaya sentira na noite anterior não fora nem um terço do que ele podia proporcionar e do que estava disposto a ceder, caso ela permitisse. Se sucumbisse à vontade e voltasse para Zaya, significaria que voltava atrás em sua palavra e que concordava com os termos dela. Concordaria em ter os filhos que prometeu ainda criança que nunca teria. Por isso, antes mesmo do sol iluminar Astória, Áster já organizara os soldados para um treino no pátio nos fundos do palácio e depositava todas as suas forças nisso, para evitar ir atrás dela. Ele sentia-se cansado, enfadado, enfraquecido. Já surrara e fora surrado. Mas o desejo ainda estava lá, arranhando-o de dentro para fora, ameaçando rasgá-lo no meio, para ir de encontro à sua esposa. — Eu não digo por você, eu digo por mim, se eu tivesse uma esposa como Zaya, não daria descanso para ela até que um de nós dois desmaiasse de tanto... — Darwish parou de falar assim que as mãos de Áster agarraram pescoço dele. — Ah pronto, agora as princesas vão se matar. — Ramessés revirou os olhos, escapulindo de mansinho para o lado. — Muito cuidado com suas próximas palavras, elas podem ser as últimas. — Áster rosnou muito perto do rosto do irmão. O maldito sorriu lacônico. — Você está tão exaltado... nem parece que há apenas alguns dias, disse que eu lhe faria um favor ao tomá-la para mim. Áster tencionou o maxilar e sentiu vontade de atravessar uma parede com Darwish quando pensou na menor possibilidade de isso ter acontecido. Bateu com um dedo no peito do irmão. — Eu te desafio aqui nesse pátio, me derrote. Era perfeito, Darwish era o oponente ideal. O príncipe era o melhor guerreiro de toda a Astória, e até do Egito. Áster não conhecia um só homem que cruzara o caminho de Darwish e saíra ileso. — Áster, você é o irmão mais velho, mas eu sou mais forte. Me desafiar é o mesmo que implorar por uma surra. — Ele retirou as mãos de Áster do próprio pescoço e o empurrou com pouca força. — Vá se limpar e trate de procurar sua esposa, você deve introduzi-la nos assuntos da nova posição. — Do que está falando? — Áster perguntou, e Darwish o olhou como se fosse um asno. — Pelos deuses, homem, até parece que você não foi treinado sua vida toda para isso. Áster passou uma mão pela testa, por um fio de perder a paciência. — Até ontem, Zaya era apenas uma mulher comum, agora ela é uma princesa e será a rainha. Vocês noivaram por pouquíssimo tempo, tudo que levamos uma vida para aprender, ela terá que lidar de uma única vez. Você precisa prepará-la para o que está por vir. Áster não pensara nisso, estava tão ocupado fugindo dela para se proteger de seus encantos genuínos, que foi um completo negligente. A vida de Zaya virara de cabeça para baixo, e ele não se importou. Assustou-se quando percebeu que sentia remorso. Quase ficou feliz por ter uma desculpa para ficar perto dela, mas duvidava que seria capaz de resistir à tentação daqueles lábios. — Talvez seja melhor que outra pessoa faça isso — disse, aceitando a verdade de que era um covarde. Darwish abriu um sorriso cheio de dentes. — Nesse caso, deve ser alguém que esteja apto para tomar a tarefa. — Ele bateu no peito. — Eu me prontifico. Áster virou a cabeça com tanta força que sentiu o osso estalar. — Você o quê? — Será muito divertido passar um tempo com minha cunhada. — Darwish ficava cada vez mais animado com a ideia. — Eu a apresentarei para cada aposento do palácio, talvez a leve até em um passeio de barco pelo Nilo, talvez ela se sinta inspirada a tomar um banho. — Vou matá-lo! Áster avançou para cima do irmão com o punho fechado, para a infelicidade dele, Darwish era um lutador muito melhor do que Áster e conseguiu desviar do ataque com elegância. O que apenas o enfureceu ainda mais. Áster bufou como um touro enjaulado e avançou para cima de Darwish uma segunda vez com tanta ferocidade que o irmão não pôde mais recuar. Eles deram um encontro que levantou o homem grande do chão, e Áster continuou empurrando-o até que ambos atravessassem a parede fina que separava os dois pátios. A poeira deixou Áster cego e o fez tossir, a dor no ombro quase não o deixou se levantar. Foi tudo tão rápido que passou pelos olhos de Áster como um borrão. Primeiro ouviu o grito de sua esposa, a voz fez o peito dele ficar dolorido pela saudade e Áster se virou na direção de onde ela vinha bem a tempo de ver Zaya empunhando um arco com uma flecha mirada em direção ao peito dele. — Zaya. — Ele sussurrou antes da flecha escapar dos dedos dela. E foi tragado pela escuridão. Primeiro Áster ouviu um som distante como zumbidos de abelhas. Eles foram se aproximando mais e mais, até ele ser capaz de distingui-los. Eram vozes. — Ele está pálido, parece morto — disse uma voz feminina familiar. — Isso porque você não o viu em uma manhã de ressaca. — Era a voz de Ramessés. — O que vamos fazer para acordá-lo? — Aquela voz ele reconheceria até no mais fundo estado de coma. Era ela. — Que tal um beijo? Ouvi dizer que funciona. — Outra voz feminina familiar. — Se ele fosse um homem preso na forma de um sapo, talvez funcionasse. — Darwish respondeu com seu típico deboche. — Que outra solução você tem, espertinho? — A mesma voz feminina voltou a falar e, dado o silêncio de Darwish, Áster presumiu que ele não teve resposta. — É só jogar um balde de água na cara dele, duvido que falhe. — Kamilah se meteu na conversa, e Áster resolveu que já era hora de mostrar que estava desperto. Ele forçou suas pálpebras a se abrirem e viu o rosto de uma deusa. Zaya era tão bonita. A cor vermelha a deixava mesmo deslumbrante e, por mais que ele a achasse impecável naqueles trajes reais, ainda a preferia nua, coberta apenas pelo corpo dele e pelo suor do prazer dos dois. O belo de Zaya rosto parecia aflito, e ela dizia alguma coisa que ele não era capaz de entender. Aos poucos, os rostos dos seus irmãos entraram em seu campo de visão, também o de Norvina, Darissa e Kamilah. — Pelo visto não vai ser necessário, Kam. — Ramessés falou, apontando para Áster, e ele teve certeza de que viu o rosto de Kamilah triste por não poder lhe dar um banho. Áster se ergueu e sentiu um ardor lancinante em seu peito direito. — O que aconteceu? — perguntou, sentindo a cabeça dar voltas. — Zaya disparou em sua direção, e você desmaiou como uma donzela. — Ramessés respondeu, segurando o riso. Então Áster se lembrou. Levou uma mão ao peito, a procura da haste de madeira, mas não encontrou nada ali, só a carne intacta como sempre foi. O que era estranho, sua carne doía de uma forma quase insuportável. Buscou pelos olhos da esposa. — Você atirou em mim. — Áster ainda não acreditava. Zaya apertou os dedos das mãos, nervosa, e se afastou. — Foi um acidente. Áster torceu o maxilar. Ela podia dizer quantas vezes quisesse, mas os dois sabiam que não fora um acidente. Ele olhou nos olhos dela momentos antes de disparar. Do mesmo jeito que olhava nos olhos dela naquele instante e via, ali dentro, o que ela tentava esconder. Áster se levantou, percebendo que a dor no peito nada tinha a ver com um ferimento causado pelo tiro de uma flecha. Ele estava magoado com ela. Muito. Foi doloroso perceber que ela estava disposta a machucá-lo quando ele nunca, jamais, em toda a vida, faria algo que a ferisse. Deu as costas para todos os olhares que o faziam se sentir exposto e andou a longas passadas para fora do pátio. — Áster. Ele ouviu a voz doce chamá-lo, mas não se virou. Enquanto se distanciava, compreendeu o que Darwish tentava fazê-lo enxergar e o peso o desnorteou muito mais do que se fosse mesmo atingido no peito. De todas as armas que enfrentou, o amor foi a pior delas, foi a única que o acertou sem que ele pudesse se defender. ZAYA OBSERVOU ÁSTER SE AFASTAR COM o peso do arrependimento sobre os ombros. Não queria atirar nele, não para causar um ferimento grave, pelo menos. Queria apenas... queria... eu não sei o que queria. Mas se arrependera de verdade. O jeito como Áster a olhou como se ela tivesse partido a confiança dele, era o que mais pesava na consciência de Zaya. Pensou em ir atrás dele, mas o que diria? “Eu atirei em você, sim, mas não sei a razão!” Era ridículo até para ela. — Não o culpe demais. Áster pode ser maduro para algumas questões, mas para outras, nem tanto. Ele nunca soube lidar com os próprios sentimentos. — Darwish se esgueirara pelas bordas do salão até parar ao lado dela. Zaya olhou para o chão com pesar. — Sempre foi assim? O príncipe balançou a cabeça. — Desde que eu o conheço. Ele sempre teve que deixar as próprias vontades de lado para atender as de todo mundo. — Darwish lançou um olhar apaziguador. — Dê tempo ao tempo. Tempo ao tempo... O grande problema era que Zaya não tinha tempo. Achava que as pessoas já comentavam sobre o que houve pela manhã. Era uma questão de tempo até perceberem que Áster não a visitava mais. Precisava gerar uma criança de um homem que insistia em agir como se não fosse casado com ela. Tudo o que mais queria era que Áster a deixasse se aproximar para que pudesse descobrir o que ele escondia por trás de toda aquela prepotência. Os motivos para não querer filhos, para se manter distante da família. Ele era um príncipe e seria um rei um dia, qualquer homem na posição de Áster faria filhos como coelho quando se casasse. Zaya olhou para Darwish e abriu a boca, mas a fechou no segundo seguinte ao perceber que não era por meio do cunhado que queria descobrir sobre o passado de Áster. Desejava ouvir pelos lábios do marido; queria que ele fosse sincero com ela. Depois do episódio com a flecha, ninguém teve mais espírito para atividades. Cada um se dispersou para uma parte do palácio, até mesmo Darissa e Norvina. Pelo visto, ela era a única que não tinha uma função. Foi para o seu aposento e o almoço foi servido lá mesmo. Por algum motivo, ninguém daquela família fazia refeições em conjunto. Algo grande os impedia de aturar a presença uns dos outros por um período longo de tempo, só precisava saber o quê. Quase no final da tarde, Zaya praticava uma melodia na harpa e não ouviu quando Áster entrou em seu aposento. Diferente daquela manhã, ele se banhara, bem limpo e trajando um saiote preso por um cinto de pedras que o cobria até os joelhos, sobre o tronco, uma túnica bem-comportada, com mangas que lhe ocultavam os bíceps. Ele ficava bonito quando se vestia da forma adequada à realeza, os trajes de príncipe lhe davam um porte mais elegante e culto. Seus trajes formais e seus adereços eram feitos com os mesmos materiais dos dela, dourado nos detalhes e de cor vermelha, com adornos de ouro por toda parte. Áster tinha os olhos profundos pintados de kohl. Zaya se assustou ao vê-lo observá-la tão atento enquanto dedilhava a harpa. Uma carranca feia enrijecia o rosto de Áster e a postura severa não a assustava, apenas a deixava com mais vontade de enfrentá-lo. — Está pronta? — O tom rouco da voz dele a capturou. Zaya cobriu os braços para disfarçar o arrepio. — Para quê? — Ela deixou a harpa de lado e se levantou. Ele exalou o ar, impaciente. Sempre estava impaciente com ela. — Fui incumbido de te introduzir nos assuntos internos de sua nova posição. Levarei você por algumas partes importantes e privadas do palácio e direi o que se espera de você daqui para frente. Parecia interessante, ter algo de relevante para fazer naquele palácio gigantesco era tudo que precisava. Também teria um tempo com Áster, quem sabe não arrancava alguma coisa dele sobre a família. Zaya o acompanhou, ele caminhava em silêncio pelas alas do palácio. Cada pessoa que passava pelos dois se inclinava em uma reverência. Ela levaria um tempo para se acostumar, não sabia como retribuir e criava um clima embaraçoso que só acabava quando saía de perto. Já Áster parecia muito confortável, respondia com um aceno de cabeça complacente ou dava um sorriso pequeno. As pessoas gostavam dele, sobretudo as servas mais jovens. Zaya notou os olhares que elas dedicavam ao príncipe, algumas até sorriam, sem dar a menor importância ao fato de que ela estava logo ali. Ele não dava muita importância, já devia estar acostumado também. Áster a levou por inúmeras câmaras de acesso limitado apenas aos homens do conselho. Palacetes. Haréns. Salas de estudos dos sacerdotes. Quando Zaya achava que vira de tudo, ele abria uma nova porta e revelava algo novo e surpreendente. — Todos vocês têm funções dentro do palácio? Áster a olhou pelo extremo do olho quando ela perguntou. Ainda estava irritado, ela podia ver pela maneira como retesava o maxilar, como se mastigasse algo amargo. — Sim, Darwish é o comandante da guarda real. É ele que prepara nossos homens para a guerra caso haja alguma. Faz isso desde os quatorze anos de idade. Era uma idade muito tenra para se ter tanta responsabilidade sobre os ombros. Por isso, ele era tão observador, era um guerreiro nato, estava no sangue de Darwish. — Ramessés se prepara para se tornar meu conselheiro quando eu tomar o lugar de meu pai. — Áster continuou quando eles dobraram em um novo corredor com um teto aberto. — E quanto a você? — Ela perguntou, estava ansiosa para conseguir tirar mais informações dele. Também estava muito incomodada com o olhar duro que ele lhe dava. Não tinha mais brilho, nem devoção. Ele parecia temer olhá-la. — Eu vivo na sombra do meu destino desde que sou um menino, aprendendo tudo que puder para tentar ser um rei tão benevolente quanto o meu pai. — A voz de Áster estava imbuída de sarcasmo. — Você não o acha um bom rei? — Zaya o encarou nos olhos ao fazer a pergunta, eles não podiam mentir para ela. — Um bom rei ele é, o melhor que Astória já teve. Apenas isso. — Ela viu sinceridade no que ele disse. O natural era os filhos terem o pai como um deus, e ver Áster falar de maneira tão rasa sobre o dele a fez perceber que, talvez, o problema que rondava a família fosse esse, o faraó. Por fim pararam frente a uma porta grande de junco entalhado, e ele abriu para deixá-la passar. A sala tinha uma mesa longa com várias cadeiras e, entalhado sobre a mesa, havia um grande mapa. O rio Nilo se encontrava no centro e todas as cidades eram banhadas por ele. Estavam bem desenhadas, com suas pirâmides, e esfinges, e templos. Zaya passou os dedos pelo desenho na madeira, estudando-o. Era glorioso, tinha até mesmo Astarte ali. — Esta é a sala em que o conselho se reúne para tomar decisões importantes. Tudo de relevante é decidido nessas cadeiras, acordos de comércio, ameaças de guerra, inclusive nosso casamento. Ela se virou para ele, Áster estava parado próximo à cabeceira da mesa, com as mãos atrás do corpo. — Então nosso casamento é relevante — disse, sem resistir à alfinetada. — Eu nunca disse que não era. Sim, disse. Quando Áster decidiu que não teria filhos com ela, quando aceitou não ir mais para a cama conjugal, quando cruzou a porta na noite anterior e a deixou sozinha. E quando a abandonou para tomar o desjejum com suas irmãs e Kamilah naquela manhã. — E quanto a mim? O que você espera de mim? Estava claro para os dois que Zaya não se referia apenas a uma função. — O povo precisa conhecer a futura rainha. Eles te admiram porque você é a esposa do príncipe, mas eles precisam te admirar por razões além desta. Para manter a adoração do povo minha mãe costuma fornecer material para as famílias que perdem as casas em época de enchente. Você poderia fazer algo assim. Ele não respondeu o que ela perguntou. Não era o que ele esperava dela, era o que a posição de princesa exigia, o que o povo precisava. Zaya baixou os olhos para o chão, decepcionada. Parecia muito errado fazer uma ação benevolente apenas com a intenção premeditada de ganhar a admiração do povo com isso. Se ela tivesse que fazer alguma coisa, seria genuína e altruísta. — Precisarei de um tempo para pensar — disse, decidida a parar de tentar entrar na cabeça dura de Áster, ele apenas a magoava com sua indiferença. — Tudo bem. Ele andou até a janela aberta, encarando o pôr do sol no horizonte. — Deve ter sido bom crescer aqui. — Zaya falou, sorrindo ao ver um grupo de crianças jogarem pedras nas águas do Nilo. A visão trazia um tipo diferente de paz e compartilhá-lo com Áster carregava um significado mais pesado a tudo. Nessas horas, quando ele apenas se calava ao lado dela, Zaya sentia um lampejo de esperança desabrochar em seu íntimo. Talvez Darwish tivesse razão e tudo o que Áster precisava era de tempo. — Quando se nasce na linha de sucessão ao trono é difícil se ter uma infância normal. — Está dizendo que teve uma infância infeliz? Áster pareceu se dar conta do que acabara de dizer. — Como eu poderia ser infeliz, não é mesmo? Afinal eu sou um príncipe, um homem mesquinho e presunçoso que nunca fez o menor esforço para conquistar nada do que tem. Zaya sentiu as bochechas enrubescerem. Não entendia por que ele tinha a gritante necessidade de afastá-la cada vez que eles tinham um momento bom. — Eu já descobri qual é o seu grande problema. — Ela disse, irritada por Áster ter destruído o único raio de paz que surgiu entre os dois. Ele arqueou uma sobrancelha e a olhou prepotente. — Estou muito interessado em ouvir mais uma de suas suposições sobre mim. Zaya apontou um dedo para o peito dele e o cutucou ali a cada palavra que síia de sua boca: — Quando eu arranho essa armadura de ego envolta de você, você me ataca para se defender. Eu não sou um perigo Áster, eu posso ser uma amiga além de sua esposa. Áster a encarou estarrecido, sem palavras diante da sinceridade dela. Abriu e fechou a boca como um peixe fora d’água, por fim não levou nada do que Zaya disse em consideração. — E quanto a você? — Áster cruzou os braços frente o peito. — Eu? — Sim, os seus segredos, está disposta a abri-los para mim? Zaya desviou o olhar para o chão, balbuciando. — Eu não tenho segredos, você sabe tudo que há para saber sobre mim. — Mentirosa. — Ele deu um passo para frente, e ela um para trás. — Eu tentei, mas não dá para ter uma conversa civilizada com você. Você é um bárbaro. — Eu sou um bárbaro? Você atirou em mim! — Sim, atirei! Mas não queria te ferir, só queria que você pagasse por ter me deixado ontem e por ter me deixado hoje! O peito de Zaya ficou leve quando colocou o que sentia para fora. Áster estava inexpressivo, mas seu olhar denotava toda a sua indignação. — Foi você quem me expulsou, Zaya. Ela deu mais um passo à frente. — Sim, não porque queria que você se fosse... Achei que... apenas achei que isso faria você voltar atrás em sua decisão — confidenciou. Áster suspirou, um silêncio palatável, que fez Zaya desejar correr para longe, caiu sobre eles, mas ela ficou e o enfrentou com toda a sua braveza. E quando achou que Áster diria alguma coisa que mataria de vez sua dignidade, o marido a pegou pela cintura e a castigou com um beijo firme. Zaya primeiro assustou-se com a ferocidade do desejo dele, depois retribuiu tão, ou mais, entregue quanto. O beijo era rude como se os dois brigassem contra a teimosia e descontassem um no outro os problemas que continuavam a afastá-los. Zaya sentiu que era bom estar presa entre os braços de Áster, sentir o quanto ele ansiava por ela. Ser subjugada diante da vontade que ele tinha dela, por tocá-la, por senti-la. Foi tola por achar que poderia resistir. — Você me enfeitiçou louca e ardentemente, mulher. — Áster gemeu contra a boca de Zaya, ergueu-a como uma pena para sentá-la na mesa do conselho e se encaixar entre as pernas dela. Zaya passou a mão pelo peito dele, queria sentir o desenho dos seus músculos na ponta dos dedos. Áster voltou para beijá-la enquanto acariciava os quadris dela, ele gostava mesmo daquela parte do corpo da esposa, as mãos dele eram tão grandes e quentes, conseguiam excitá-la e afagá-la ao mesmo tempo. Ela pôde sentir a necessidade de Áster atravessar sua pele, o que arrancou o restante de sua lucidez. — Eu quero marcá-la de cima a baixo, quero deixá-la vermelha e desgrenhada para que todos saibam que esteve nos meus braços, suspirando de prazer. E que com isso, saibam que você é minha. Quero voltar a entrar em sua carne tenra e enchê-la com meu leite para que você me sinta dentro de você o dia inteiro e se lembre que, independente de qualquer coisa, eu vou voltar para pegar um pouco mais de você. Em nome de Rá, Ísis, Osíris, Seth e todo o panteão egípcio! Ela queria isso também. Queria Áster e tudo que ele estivesse disposto a proporcioná-la. Se alguma vez desejou que seu prometido fosse qualquer outro, estava arrependida. Era Áster. Sempre seria Áster. — Então pegue, pegue até não restar nada em mim e tudo em você. — Zaya suspirou, entregue aos toques dele. Áster rosnou em resposta, meteu o nariz nos cabelos dela e com uma perícia digna de inveja, encontrou a brecha nas vestes que deixavam o sexo dela exposto. Zaya ficou enciumada por ele achar a fresta tão rápido, mas no instante seguinte deu graças aos deuses por ele ser experiente, Áster a tocou no lugar exato para fazê-la gemer. Ela apertou os lábios, sedenta por pressão. Ele sentia prazer em depravá-la, introduziu dois dedos dentro dela devagar. O corpo de Áster estremeceu inteiro quando Zaya apertou os dedos com as paredes do sexo, implorando por contato. Estavam um pouco doloridas, mas não era nada comparado a luxúria que sentia no momento. Tudo nele a deixava a ponto de se liberar. O cheiro de homem limpo, a maneira como as veias das mãos e dos braços saltavam quando ele fazia esforço, o olhar contido, a língua imperiosa. Tudo. Obedecendo ao apelo da esposa, Áster aumentou a intensidade das estocadas. Ia e voltava enquanto roubava os gemidos de Zaya com um beijo molhado. Mordeu o lábio inferior dela, puxando-o para seduzi-la ainda mais. Havia tanta devoção no ato que Zaya se chocou contra um clímax potente que a fez apertar os dedos dos pés. Queria que ele entrasse nela antes que a sensação acabasse, para que ele pudesse sentir o que era capaz de fazer com ela. Desejosa, levou a mão para o membro que marcava o saiote. — Áster... — Ela suspirou o nome dele, desejando sussurrar as palavras silenciosas que surravam seu órgão vital com violência. Mas assim que sentiu o toque dela, tão rápido quanto a beijara, Áster se afastou, deixando-a com uma expressão interrogativa, meio insatisfeita, meio dolorida e muito confusa com a maneira culposa como a olhava. — Volte. — Zaya estendeu a mão para ele, e Áster a encarou por um tempo, parecia tomar outra decisão. Por fim, ele escolheu a que o afastava dela. Áster passou as mãos pelos cabelos que ela acabara de desarrumar. — Eu não mudei de ideia, Zaya. Áster não foi claro e nem objetivo, mas ela entendeu letra por letra. Sentiu um vento gelado apagar a chama do seu coração carente e se fechou, levantando-se da mesa e tentando se recompor. Tentou não sucumbir às lágrimas da recusa que acabara de receber. — É melhor retornarmos para o salão. — Áster disse sem olhar para ela outra vez. Zaya apenas assentiu, não queria falar. Só queria sumir para não ter que olhar para ele nunca mais. A maneira como me abriu e fui rechaçada... Como doeu! Serviu apenas para mostrar a verdade que ela se recusava a ver. A razão por querer as carícias do marido quando Áster deixava evidente a indiferença para com ela. Zaya já não pertencia a si mesma. Sabia disso por querê-lo com tanto fervor, toda vez que Áster ia embora e por não ser capaz de resistir à sua paixão quando ele a tocava. De tanto Áster repetir que ela era dele, o corpo, a mente e o coração de Zaya o aceitaram. Ela se tornou a princesa cativa de Áster, e naquele momento, descobriu que era irreversível. LOGO FARIA POUCO MAIS DE DOIS MESES desde que Zaya deixara Astarte para trás. Virara um hábito para ela acordar com as donzelas entrando no quarto pela manhã. Zaya nunca acordava antes, mesmo que se deitasse cedo, passava muitas horas da noite rolando entre as cobertas da cama com o coração e a cabeça presos em Áster. Não saber o que ele fazia e com quem estava, era como viver o castigo de Hórus. Áster cumpria com a promessa, não voltou a procurá-la. Depois do beijo apaixonado que dividiram, se possível, ficaram ainda mais distantes um do outro. Nas poucas ocasiões em que se encontravam, não sabiam como agir. Mesmo parado ao lado dela, sem dizer uma palavra, Zaya ficava satisfeita, significava que ele não estava por aí se dedicando a uma amante que dava para ele o que ela não aceitava dar. Era óbvio que as pessoas perceberiam a enorme indiferença entre os dois. Zaya sabia que falavam do seu fracasso como esposa, sentia quando deixava uma sala ou toda vez que tinha que fazer as refeições sozinha. Os olhares eram os piores. Antes já a olhavam com pena, aos poucos esses também mudaram — era o mesmo tipo de pena que se tem por um moribundo ou por um cão faminto. Zaya quase nunca saía do quarto por esse motivo. Colocaram a culpa da rejeição do príncipe nela, claro, o problema estava sempre na esposa. Afinal, era a obrigação de Zaya submeter-se a todos os caprichos de Áster, caso contrário, merecia a solidão. No mais leve dos casos. Longe dele, Zaya sentia-se dona de si mesma de novo. Podia fingir que não se importava com o que ele fazia ou que seu coração não ansiava com ardor por cada encontro dos dois. Todas as noites, quando Áster não aparecia no quarto conjugal, a alma dela choramingava por uma aproximação que não existia e nunca existiria entre os dois. Ele deixara claro, e ela tinha que convencer seu tolo coração disso. Passar um tempo na companhia das amigas a fazia se esquecer do caos que estava sua vida. Quando sentavam-se à mesa e comiam, conversando sobre tudo — menos a vida dela — era como se nada tivesse mudado. O desjejum era o único momento que tinha com elas, que agora estavam sempre ocupadas. Darissa se empenhava em se tornar uma das escribas do palácio. Pelo visto, Zahara permitiu que ambas, Darissa e Norvina, escolhessem atividades que ocupassem seu tempo. Darissa era filha de um imperador, tinha conhecimentos muito elevados sobre a escrita e sobre diversos idiomas de outras culturas. Era estranho, já que Zaya sempre a imaginou casada cedo com vários filhos como sempre foi o desejo dela. — Não quero abusar da cordialidade da rainha para sempre. Tenho esses conhecimentos, talvez seja hora de usá-los para algo de relevante. — Foi a resposta de Darissa quando questionada. Zaya não duvidava do potencial da persa, só esperava que ela não criasse muita expectativa em cima disso, já que a posição de escriba exigia extrema confiança por parte do rei e, além de ser um cargo de elevado prestígio, era uma profissão dominada pelo sexo masculino. Seria um desafio grande. Em uma das manhãs em que elas tomavam o desjejum no salão reservado do harém, Darwish entrou na sala exibindo sua boa forma em um saiote de linho trançado, típico dos guerreiros de Astória. Ele tinha todo o lado esquerdo do tronco coberto por tatuagens, o que, de alguma forma, deixava sua imagem ainda mais tentadora. — Eu devia saber que estaria aqui. — Ele disse quando encontrou Ramessés ocupando uma cadeira na mesa. O príncipe mais novo passava nata em uma fatia de pão devagar. — Bom dia, irmão, junte-se a nós. — Ramessés o convidou, dando uma mordida no pão. Darwish passou os olhos pela mesa abarrotada de comida e deu de ombros como se não tivesse nada a perder. Dirigiu-se até uma cadeira vazia, ao lado de Kamilah, na frente de Norvina. — Por que estava à minha procura? — Ramessés perguntou. — Áster é requisitado em Alexandria, viajará ainda essa tarde. Você, como futuro vizir, deve ir ter com ele antes que parta. Zaya dirigiu o olhar para Darwish. — Áster vai viajar? O cunhado a consolou com um olhar afetuoso. — Não se preocupe, uma viagem até Alexandria leva apenas dois dias pelo Nilo, ele estará de volta em cinco ou sete dias. — Ele tentou tranquilizá-la. Ainda assim Zaya sentiu-se triste. A maneira como Áster a excluía de sua vida era doloroso e inaceitável. Ainda mais por ela ver que ele não se importava. Nem um pouco. Nem o bastante para comunicá-la que passaria três dias fora. — Eu preciso falar com você. — Norvina falou pela primeira vez naquela manhã, a questão era que ela falava com Darwish. Ele a olhou com uma leve estranheza, talvez certificando-se de que era com ele que Norvina falava, já que ela, em geral, fingia que ele não existia. Então Darwish abriu um sorriso gatuno. — Só há um assunto que as mulheres gostam de discutir comigo, bonita. — Ele piscou um olho para ela, jogando charme. Qualquer mulher teria ficado vermelha, teria sorrido e piscado. Mas Norvina estava longe de ser qualquer mulher, fez uma cara de nojo impagável. — Eu não estou tão desesperada a esse ponto, bonito — rebateu, o que fez a expressão de Darwish azedar. Ele fez uma carranca afetada. — O que você quer? — Não existia mais nada de amigável na voz de Darwish. — Soube que você é o comandante da guarda. Esse não era o assunto que ele esperava, ninguém na verdade. O príncipe astuto franziu o cenho. — Que interesse uma mulher poderia ter na guarda? Por acaso pensa em se juntar a guarnição? — Ele riu ao supor tal absurdo, e quando Norvina ficou em silêncio, encarando-o como se ele fosse um idiota. Darwish se calou, adotando uma expressão de pavor. — Você não está pensando nisso, está? — A rainha disse que eu poderia escolher qualquer atividade que pudesse me trazer algum lucro. Quero fazer parte da guarda. Darwish ficou em silêncio e logo a sala se encheu com o som de uma gargalhada estrondosa. — Você? Uma mulher, parte da minha guarda? Norvina trincou o maxilar, era difícil vê-la sair da compostura, mas quando acontecia era muito perigoso. Darwish cutucara um vespeiro. — Por que parece uma ideia tão absurda? Acha que não sou capaz de derrubar um homem como você? Ele parou de rir, e Zaya viu o movimento sutil da garganta do cunhado ao engolir em seco. — Ah, por favor! Olhe para você, meu soldado mais magro parece um gladiador em comparação — caçoou dela. Norvina deu um soco na mesa que fez os talheres darem um pequeno salto. Darwish piscou, incrédulo com a atitude. — Ficarei bastante feliz em demonstrar minhas habilidades. Se você não estiver com medo de ser ridicularizado por uma mulher, é claro. O sorriso de Darwish esmoreceu quando ela o provocou. Ele não parecia alguém que se dava a emoções impulsivas, preferia avaliar a situação como um todo, antes de se jogar de cabeça em algo que sabia que tinha grande possibilidade de perder. Norvina não estaria tão confiante de suas habilidades se não tivesse certeza de que poderia, sim, derrotá-lo. Por isso ele estava apreensivo. Darwish deu um sorriso de lado e abrandou o tom de voz. — Você pode fazer um teste. — Ele parecia esconder alguma coisa. — Contanto que eu seja o avaliador. — Eu aceito. — Norvina concordou muito rápido, estava muito confiante de suas habilidades. A postura dela voltou a se tornar pacífica. Zaya estava feliz em vê-la se interessar por alguma coisa, mas não sabia se aquela era uma boa ideia. Ainda mais que Darwish a encarava com um fulgor que indicava que ele estava mais interessado nela do que demonstrava ser interessado por outras pessoas em geral. Enquanto avaliava o comportamento dos dois, Zaya viu pelo extremo do olho uma sombra à sua direita. Era Áster, ele entrara na sala sem ser visto. Ela não sabia dizer há quanto tempo ele os observava, parado próximo à porta. Vestia roupas de viagem, tecidos que cobriam todo o corpo com ombreiras que acentuavam os ombros e desenhavam o torso, seu rosto estava pintado de modo a proteger do sol. Tão lindo que ela suspirou. Ele passou os olhos por cada um dos integrantes e depois pela mesa. — Áster, nos acompanha? — Darwish o percebeu também. Ele mudou a postura quando as cabeças se voltaram para à porta, podia ser imperceptível para os demais ocupantes na mesa, mas Zaya via com clareza. Áster fingia, toda a prepotência e desdém eram fingimento puro. — Agradeço ao convite, mas acho que poderia acabar tendo uma indigestão — respondeu, não olhou para Zaya e nem disse seu nome, mas ela sabia que era uma indireta. — Não se preocupe, o pão é de ótima qualidade, foi trazido de muito longe especialmente para você, não o comer seria uma grande desfeita. — Darwish o informou com ironia. — Como sabe que é de ótima qualidade? Pode ser que acabe não sendo o que esperavam que fosse e me dê uma grande dor de barriga ao invés de me dar o prazer que deveria. Zaya trincou o maxilar. — Talvez o pão não seja apreciado da maneira devida. Talvez precise de uma boca mais habilidosa. Os olhos de Áster caíram sobre ela como raios de uma tempestade. — Espero você do lado de fora — disse e deu as costas, saindo do local. Zaya não tinha obrigação nenhuma de obedecê-lo, mesmo assim ela pediu licença e seguiu para o corredor onde ele a aguardava com o cenho franzido, que a deixava louca e com vontade de acertá-lo com um porrete. — Desde quando você organiza reuniões de desjejum pela manhã? — Áster a cercou. O cheiro dele a inebriou por um instante, era a primeira vez em dias que ficavam tão próximos. — Eu não gosto de fazer minhas refeições sozinha e, por incrível que pareça, há pessoas que apreciam minha companhia. — Ela respondeu ríspida. — Por que me chamou aqui fora? Ainda sério, Áster se lembrou do motivo que o levou até ela. — Quando o meu pai não está no palácio, eu tomo à frente dos negócios mais urgentes. Precisam de mim em Alexandria. Zaya virou o rosto como se pouco lhe importasse. — Desejo uma boa viagem. O músculo da bochecha de Áster saltou. — Você vem comigo, já mandei preparar um pequeno baú com suas roupas. Ela abriu bem os olhos. — Vou? Zaya estava estupefata. Ele a olhou como se isso nunca tivesse sido posto em dúvida. — Óbvio, a não ser que você deseje ficar aqui. — Áster estava inseguro, mas logo pareceu aliviado quando o rosto dela se iluminou com um sorriso alegre. — Eu vou adorar conhecer Alexandria! — Partiremos em uma hora. — Ele a comunicou e se afastou acompanhado por alguns guardas. A VIAGEM ATÉ ALEXANDRIA NÃO SERIA LONGA. Traçando o curso pelo Nilo, sem nenhum imprevisto, eles chegariam em um dia, no crepúsculo da alvorada. A missiva enviada pelo sumo sacerdote exigia a imediata presença de Áster, e quando isso acontecia, não podiam esperar por notícias boas. Zaya parecia muito encantada em viajar na embarcação real. Era o que tinham de mais moderno. Com um longo casco de mil pés e velas do tamanho de uma casa que os levavam com tanta velocidade que quase não sentiam o sacolejar da água. Também havia compartimentos que abrigavam os tripulantes em longas viagens. A embarcação era usada em tempos de guerra para transportar soldados, mas não tinha muita serventia desde que o tratado de paz entrara em vigor. Áster ainda pensava se fora uma decisão sábia levar Zaya com ele, mas cada vez que pensava em separar-se dela, sentia o corpo doente. Se a deixasse para trás, passaria os dias de viagem em agonia e não poderia se concentrar no que quer que o sumo sacerdote tivesse para lhe dizer. Foi estupidez achar que poderia controlar a vontade que sentia de tê- la. Desde que descobrira a real fonte dos seus sentimentos por ela, sentia-se um menino perto da esposa. Ele nunca esteve tão inconstante, preso no dilema de fazer o que era certo ou sucumbir a vontade do seu coração. Aprendeu a ser adulto quando era criança, tomou poucas decisões na vida, as quais nunca voltou atrás, mas as palavras dela o fizeram questionar a própria existência. Não entendia por que ela desejava tanto ter um filho, não era como se fosse essencial para viver. Ela também foi rejeitada pelo pai, de todas as pessoas, devia ser a que mais o apoiaria. Quando estava no ápice do sofrimento, em agonia de desejo por ela, cogitava ter filhos e a concepção de tal fato parecia uma condenação. Não podia, não queria, morreria, mas não os teria, e nem mesmo Zaya o fariam mudar de ideia. Achou que era forte até conhecer a fraqueza de seu coração. Estar no mesmo lugar que Zaya era um sofrimento. Foram semanas conturbadas, as piores noites de sua existência. Jamais achou que fosse se tornar tão dependente de uma mulher e sentia suas veias se encherem com o ácido do seu desejo. Parecia veneno, matando-o de pouco em pouco cada noite que privava o próprio corpo de sentir o calor de Zaya. Áster amaldiçoava seu nascimento, sua posição, seu futuro, tudo que o afastava dela. A cada dia que passava longe de Zaya, percebia que não era tão necessário para ela quanto ela era para ele e ficava mais irritadiço. Áster se perguntava se Zaya não sonhava com ele. Se o corpo dela não pulsava pelo dele. Se ela não acordava no meio da noite com um ardor dilacerante. Para Áster não era possível que ela não tivesse todos esses sentimentos, porque ele os sentia em nível máximo. Vê-la, naquela manhã, em uma mesa de desjejum na companhia dos irmãos dele, deixou-o na borda do enfurecimento. Era a ele quem Zaya deveria desejar, não a Darwish, Ramessés e Kamilah. Até vê-la com eles naquela manhã, Áster não sabia o quanto desejava fazer parte da vida de Zaya. Olhou-a encostada na borda do barco, observando o arrastar das águas com as mãos repousadas sobre à barriga. Ela parecia serena e pacífica. Desejou ir até ela e roubar um pouco da paz que a circulava com a boca, mas não sabia mais se tinha o direito de fazê-lo. Ela o castrou de todas as formas possíveis, e ele a invejava por ser tão fria e decidida. Queria ver até que ponto Zaya conseguia se manter indiferente. Existiam inúmeros quartos desocupados na embarcação, mas Áster a colocou no quarto dele. Estratégico ou suicida, não sabia ainda, mas descobriria ao anoitecer quando entrasse no quartinho para dividir uma cama com ela pela primeira vez desde que a tomou como esposa. A embarcação avançou em direção à noite, e logo toda a iluminação que tinham vinha de tochas e uma fogueira que crepitava no meio do convés. Áster se recolheu cedo, estava ansioso para ficar a sós com Zaya. Comeu tão rápido que sequer saboreou a refeição e ficou decepcionado quando não a encontrou esperando por ele. Ainda devia estar comendo, por isso sentou-se na beira da cama e esperou. Esperou, esperou como um maldito condenado, até perceber que estava em um barco com mais de trinta homens e que sua mulher estava por aí enquanto ele esperava por ela, quando devia ser o contrário. Estava prestes a ir atrás de Zaya para arrastá-la até o quarto quando a porta abriu e ela entrou. Zaya não o viu de primeira, e Áster pôde observá- la. Estava meio despenteada pelo vento, a face corada e suada. Os olhos de mercúrio estavam ávidos e as pálpebras meio caídas. Ela ergueu a perna para dar um passo e o barco sacolejou por causa da água agitada, fazendo-a cambalear para o lado em busca de equilíbrio. Áster quase não acreditou nos próprios olhos, sua mulher estava bêbada. Precisou se embebedar para dormir ao lado dele. Zaya passou os olhos pelo quarto, a iluminação era escassa, mas o espaço era formidável. Quando resolveu colocá-los no mesmo quarto, pensou que o único lugar em que ela não podia fugir dele era em um barco no rio Nilo. Ela, enfim, viu Áster, mas não se deixou intimidar pela carranca dele, deu um soluço e levou a mão à boca. Ele não queria admitir, mas Zaya ficava bela naquele estado. Ainda mais ao sorrir para ele como se estivesse feliz em vê-lo. — Ora, se não é o magnânimo, estupendo, viril príncipe Áster! — Ela deu um pequeno soluço. — Este não é o comportamento de uma rainha — falou, recriminando-a com um tom severo. Primeiro ficara chateado, mas estava impossível permanecer com raiva quando toda a figura de Zaya ficava engraçada, tentando andar pelo quarto, cambaleante. — Por certo uma rainha também não faria isso. — Zaya puxou um fio de roupa que estava em suas costas e a túnica que cobria seu corpo desceu para o chão em um sussurro. Áster salivou, perdido nas curvas do corpo nu da esposa. Os pelos da intimidade dela começavam a crescer, ele os viu e só conseguiu pensar que há muito tempo não fazia amor com ela. Zaya caminhou para ele com um andar sensual, os quadris se remexiam a cada passo. Abandonara de vez a ideia de que era uma coitada e aceitara seu verdadeiro lugar, o de uma mulher poderosa, capaz de fazer o futuro rei do Egito se curvar perante ela. Áster foi assaltado por um arrepio nas costas quando se atreveu a olhar nos olhos de Zaya. A intensidade foi tão forte que desceu para onde mais lhe doía de desejo por ela. Deu-se conta de que não precisava colocá- la em um lugar em que não pudesse fugir, Zaya não queria fugir, queria estar bem onde estava. Ela parou apenas quando estava a um palmo de distância de Áster. Ele sentara-se na borda da cama de modo que os seios dela estavam na altura perfeita do rosto dele. Áster só precisava se curvar e os teria na boca. Ergueu os olhos para o rosto de Zaya enquanto tentava respirar sem ser embriagado pelo cheiro dela misturado com suor e vinho. — Toque-me — ordenou, e ele apertou com força os lençóis para não obedecer. — Você está ébria. Vai se arrepender disso pela manhã — disse, mantendo um controle sobre-humano. Zaya afastou os braços de Áster e montou sobre o corpo dele, uma perna de cada lado da cintura do marido. Ele respirou com sofreguidão, era isso que queria: uma esposa voluptuosa, cheia de desejo para descarregar nele, mas não esperava que seria tão fácil. Áster abriu bem os olhos, não queria acreditar que era ela. Zaya quem o beijava, tocava, deixava-o duro com o contato dos seus corpos. — Você diz que vou me arrepender se fizer isso quando, na verdade, você é o único de nós dois que tem dúvidas — falou e o hálito dela aguçou as papilas gustativas de Áster. Ele salivava como um cão morto de fome. — Por hoje, vou lhe dar apenas este arrependimento. Zaya infiltrou uma mão entre os dois e puxou a bainha do saiote dele, o membro de Áster escapou de seu esconderijo ávido pelo toque dela. Dela e de nenhuma outra. Ele clamava por atrito. Dava para sentir a ânsia de Zaya também, seus movimentos eram certeiros e decididos, havia tanta possessão neles que Áster tremia como se estivesse com frio. Nunca ninguém o quis tanto assim. Ela só teve que se erguer um pouquinho e posicioná-lo na entrada de seu baixo-ventre. Em um golpe, Áster estava dentro dela, alargando-a depois de semanas. Ambos gemeram, ambos precisaram de um tempo para absorver um ao outro. O balanço do barco se tornou mais forte e a chama da única lanterna dentro do quarto sacolejava criando sombras no corpo de Zaya. Áster agarrou as coxas dela e a obrigou a se mover. Zaya era inexperiente, não sabia o que fazer e isso o excitava muito mais. Mexeu um pouco os quadris, movendo-o para a frente e para trás, dando a esposa todo o tempo do mundo. Gostava de vê-la explorá-lo, saboreá-lo, descobrir as vantagens de ser casada com ele. Com um pouco de sorte, ela acharia que as vantagens eram maiores que as desvantagens e esquecia de uma vez por todas a ideia ridícula de se manter longe dele. Zaya se ergueu, tirando-o um pouco de dentro dela e voltou a sentar-se. Enfim achou um movimento gostoso e o repetiu. O quarto parecia apertado, parecia sufocante, Áster não conseguia respirar. Ergueu-se sem sair de dentro dela, pegando-a pelas coxas, e deixou que o saiote deslizasse para o chão ficando tão nu quanto Zaya. Desabou com ela no chão, em cima do tapete, e foi para cima da esposa, tomando o controle para si, ao abocanhar um seio dela — cabia quase todo na boca de Áster. A respiração dele começou a se tornar audível à medida que as enterradas ficavam mais rápidas. Zaya se contorcia embaixo dele, gemia, apertava-o. Ergueu os quadris em direção as estocadas e flexionou a carne com ele dentro. Áster não conseguia pensar em mais nada, a não ser na necessidade de fazê-la feliz. Queria fazê-la tão completa que não precisaria de mais nada além dele. Áster sentiu as paredes dela se contraírem ao redor e soube que Zaya estava prestes a lhe entregar seu prazer, beijou-a, e ela gemeu dentro da boca dele. Ele se contorceu ao receber a tempestade de luxúria, estava fascinado nas feições dela ao gozar, nos lábios semiabertos, no belo corpo todo entregue. Desaguou no oceano de doçura de Zaya e foi absorvido pelo que sentia por ela, perdendo-se em si mesmo e nela. Quando piscou, tudo passara e, ao olhar para baixo, viu que ainda estava dentro de Zaya. Áster sentiu o frio do ambiente tomar o que antes ardia dentro de si, com calor. Olhou para ela, relaxada e letárgica embaixo dele. Não sabia como Zaya fizera aquilo, mas sentiu uma profunda traição rasgá-lo de dentro para fora. Retirou-se dela sem delicadeza e se levantou, procurando por sua roupa. Estava atordoado, e cada vez que se dava conta do que acabara de acontecer, entrava mais em pânico. — Áster. A voz de Zaya o fez parar, ele se virou e ela já estava de pé, olhando- o como se não entendesse nada. Toda a doçura que ele sentiu ao olhar para ela instantes atrás já não existia, só um remorso aterrador. E ela o sentiu, logo se cobriu com a túnica. — Como você fez isso? — perguntou, e Zaya se abraçou para se proteger da frieza que saía do olhar de Áster. — Como fiz o quê? Ele se enfureceu com a dissimulação dela. — Isso! — Apontou para o chão onde tinham feito amor. — Como me enfeitiçou para que eu cedesse ao que você queria? Ao entender o que Áster dizia, a mulher ficou muito séria e soturna. Ele viu que a magoara de alguma maneira, mas não se importou com os sentimentos de Zaya. Áster estava furioso, porque ela o enganara. Em nenhuma circunstância, despejaria sua semente dentro dela. Nunca! — Faça isso, Áster, seja um covarde e coloque sobre mim a responsabilidade pelos seus atos. Áster não sabia o que o deixava mais chocado, Zaya chamá-lo de covarde ou o enfrentar tão, ou mais, furiosa do que ele. — Não me chame de covarde! — esbravejou, a imponência de sua voz não foi o bastante para assustá-la. Zaya já enfrentara coisas muito piores do que ele. — Mas é o que você é. Covarde como meu irmão, que tentou se aproveitar da minha inocência; covarde como meu pai que não pôde suportar a rejeição de minha mãe e descontou em mim; covarde por me castigar por erros do seu passado. Áster sentiu-se um lixo por ela o colocar no mesmo nível que aqueles homens. Sentiu os punhos se fecharem com ódio por saber das razões por Zaya não ter medo de desafiá-lo, por ela lutar com tanto ardor para se casar com ele, enquanto ele agia como um pífio. Ele não a merecia e, naquele momento, pôde ver isto. — Você não me entende, eu não posso ter um filho! Foi tolo por achar por um instante que poderia ser o bastante para ela. — Existe uma diferença entre não poder e não querer, Áster. — Não ter um filho não vai nos tornar menos marido e esposa! Zaya entreabriu os lábios, ultrajada. — Não quero um filho para formalizar nada. — É claro que quer. Você acha que tendo um herdeiro, as chances de perder o reino serão menores. — Eu amo você, Áster. Ele foi atingido bem no peito por aquelas palavras. Não existia nem uma falha no rosto de Zaya, nem uma dúvida, nem um anseio, só a verdade. Então sim, Áster sentiu-se um covarde por não ser capaz de responder como ela merecia. — Mas eu quero um filho. Preciso dele e preciso fazê-lo entender que nem um trauma do seu passado, por mais doloroso que seja, vale a minha felicidade. Ele ficou em silêncio enquanto a encarava trêmulo. Ninguém nunca dissera algo assim para ele. Pensou em como deveria prosseguir, se é que devia... — Se você não pode me dar isso, então não vejo razão para continuarmos nesse casamento. Em um momento Zaya enchera o coração dele de luz para, no momento seguinte, roubar-lhe tudo, deixando-o vazio. Áster piscou, impossibilitado de acreditar no que ouvia. — É uma infelicidade. Eu não posso voltar atrás e desfazer o que aconteceu. Faltam poucas semanas para minhas regras descerem, caso não tenha resultado, e você ainda esteja certo de sua decisão, então eu seguirei minha vida. Está me dizendo que vai me deixar? Áster ficou zonzo e buscou apoio. Arfou em busca de ar, andou até a pequena janela no aposento abafado e puxou um pouco do ar gelado para os pulmões. Quando se virou para bradar e dizer que sob nem uma circunstância ele a deixaria ir embora, Zaya já não estava mais no quarto. Alexandria ficava na costa do Mediterrâneo. Era por meio do mar que os egípcios exportavam seus recursos para as outras cidades do país, e fora lá aonde o faraó pegara uma embarcação dias atrás para visitar Mênfis. A cidade também abrigava um extenso número de sacerdotes, já que os templos mais importantes, os quais guardavam papiros cheios de anotações históricas e gravuras dos antepassados, estavam ali. Eram lá aonde os escribas iam para se formar, também os sunus. Era uma das cinco cidades mais importantes do Egito. Qualquer notícia de uma possível invasão inimiga vinha primeiro de lá e era por isso que nada de bom poderia resultar da ida de Áster até Alexandria. Zaya e Áster chegaram na cidade mal era dia, e o comércio já estava em alvoroço. As ruas estavam atulhadas de pessoas, vendedores de todos os tipos e regiões montavam suas barracas. Eles cruzaram boa parte da cidade em cima de carros de guerra até chegarem em uma parte em que o movimento era tão grande que era impossível cruzar, a não ser a pé. Áster segurou a mão de Zaya para mantê-la por perto, mesmo sentindo a frieza por parte dela, não correria o risco de perdê-la de vista. Passara a noite em claro, preocupado com ela e, quando foi procurá- la, encontrou-a dormindo em uma rede no convés, junto com os outros soldados. Pegou-a no colo e a levou para cama, mas não dormiu ao lado dela, já estavam quase chegando em Alexandria, por isso decidiu ficar acordado. Desde então, não trocaram uma palavra. Foram escoltados por uma dúzia de soldados enquanto atravessavam o restante da cidade até o Templo de Aton. Em um dado momento, Áster sentiu Zaya tensa e a olhou para saber o que houve. Os olhos dela estavam em um tumulto mais à frente. Um grupo de soldados imperiais arrastavam uma menina pelo braço para fora de uma casa, ela aparentava ter dez anos de idade. A garota gritava e berrava, pedindo para que os pais não os deixassem levá-la. — Por favor, não deixe que eles a levem. — Zaya pediu. Áster se assustou com a palidez nos lábios da esposa. Colocou uma mão sobre o rosto dela e a acariciou, tentando acalmá-la. — Ela será levada para cumprir o destino que os pais querem para ela — explicou com suavidade. A princesa balançou a cabeça em negação. — Por favor. — Os olhos dela imploravam. — Não é assunto nosso, Zaya. — Áster foi mais firme, fazendo com que a esposa o olhasse com a mais profunda decepção. Ela tirou a mão dele do rosto dela com repugno e seguiu na frente a passos rígidos. Áster retesou o maxilar e continuou o caminho até que chegassem nas portas de Aton. Uma fila de sacerdotes já esperava o príncipe na entrada do palacete, o mais velho entre eles deu um passo à frente e fez uma reverência quando Áster se aproximou. — Príncipe Áster — cumprimentou-o. — Djoser, essa é minha esposa, princesa Zaya. — Apresentou-a, e Zaya exibiu um sorriso cortês. — Os ventos trouxeram a novidade do seu casamento. Dou-lhes meus mais profundos votos de felicidade. — O homem disse com respeito. — Mandarei que os levem até os aposentos designados para passarem a noite e, então, peço que venha até o meu encontro, alteza. — Não passaremos a noite, pretendo voltar para Astória ainda hoje. Nem por mil barras de ouro passaria mais uma noite ao lado de Zaya em decorrência ao que acontecera entre eles na noite anterior. Só de imaginar que ela podia gerar uma criança no ventre naquele momento, ficava frio como um cadáver. Sentia-se morto como um também. Áster a deixou sob a proteção dos soldados e seguiu Djoser pelo palacete. Assim que chegaram na sala privada, o príncipe herdeiro foi instruído a sentar-se em uma cadeira. — Muito bem, seu bilhete dizia que me esperava com urgência. — Áster começou, direto ao ponto. Djoser anuiu. — Sim, alteza. Eu poderia ter mandado um mensageiro, mas tive medo, o assunto é delicado. — O sumo sacerdote parecia apreensivo, o que apenas consolidou ainda mais as suspeitas de Áster. — Seja direto, Djoser. — Eu temo pela segurança de seu pai. Áster não esboçou reação, já suspeitava que a ida até Alexandria tinha algo a ver com o faraó. — Explique-se. — Há duas semanas o faraó pegou uma embarcação em nosso porto com destino a Mênfis, mas descobri há pouco que Mênfis foi atacada. Este bilhete chegou até nós por meio de um mensageiro mandado pelo imperador da cidade. Áster pegou o rolo de papiro que o sacerdote estendeu e passou, rápido, os olhos pela mensagem desenhada. Os gregos invadiram Mênfis. — O faraó tinha uma frota com nossos melhores soldados. Nesta mensagem, o imperador não menciona nada sobre o terem pegado, ele pode estar em segurança em alguma cidade vizinha. — É no que temos nossa esperança, meu senhor. Com sua permissão, eu gostaria de enviar um de meus homens até Mênfis para verificar se tem como o nosso soberano estar por lá, caso contrário, temo que saiba o que significa. Áster sentiu um calafrio percorrer todo o corpo. Faziam sete anos desde a última guerra contra os persas, que culminou na morte de milhares de inocentes e no casamento precoce de Kamilah. Se os gregos estivessem mesmo com o faraó, ele não queria pensar nas consequências. Seria uma carnificina. — Você fez bem em não ter mandado um mensageiro, ninguém precisa saber disso por hora. Um ataque direto ao faraó alarmaria o povo de maneiras desastrosas. Até termos uma confirmação, mantenha a informação em segredo. O sacerdote concordou. — Levará pelo menos uma semana até que meu mensageiro retorne. — Quando ele o fizer, deve mandá-lo direto até Astória e, dependendo do que ele tiver para dizer, mobilizaremos nossas forças. — Muito bem, alteza. Áster deixou a sala com as mãos trêmulas. Se fosse verdade, e eles tivessem feito o faraó de refém, os deuses abandonaram todos eles. Pensou na última conversa que teve com Radamés e nas palavras que dissera. Áster se perguntou se seria possível que aquele aperto que sentia no peito era o mais puro remorso pelo homem que nunca fez questão de agir como seu pai. Sabia que sim, era. E ter que dar uma notícia como aquela para os irmãos, em especial para sua mãe, arrancaria um pedaço de sua alma. HÁ UM DITADO ROM QUE DIZ que um rato com uma rosa na cabeça continua sendo um rato. Você não pode mudar a natureza das coisas por mais forte que deseje. Impedir Áster de a visitar na cama, não faria com que Zaya conseguisse o que queria, apenas o distanciaria ainda mais. Tampouco insistiria em ter um filho. Tinha esperanças de que, um dia, ele pudesse nutrir algum sentimento de afeto por ela e, quem sabe, o tempo não o faria mudar de ideia. Pensando nisso que ela decidira se entregar para ele no barco. E o marido se perdeu dentro dela, Zaya achou que os deuses ouviram sua prece silenciosa, achou que Áster estava pronto para deixar o passado para trás. Já estava acostumada a lidar com a rejeição, mas não pensou que doeria tanto quando viesse dele. Em um momento, Zaya suspirava de amor, no seguinte, sentiu-se tão cega pela traição que não pôde reprimir as palavras de saírem. Áster precisava saber como ela sentia-se. Sim, no começo quis ter um filho apenas por obrigação. Antes, quando vivia no meio do deserto sem nenhuma perspectiva de vida, a ideia de ter um filho a apavorava, mas depois do casamento algo ficou diferente. Apaixonara-se por ele, era a esposa dele, tinha um lar, uma família, segurança e podia se dar o luxo de ser mãe. Ela queria ser mãe, melhor, queria ser mãe dos filhos de Áster. Nunca teve tanta certeza sobre algo na vida inteira e Zaya não sabia quando descobrira isso. Talvez quando ele se recusara a dar sua semente para ela, então percebeu a verdade mais absoluta do seu ser. Não precisava que fosse naquele momento, mas precisava que fosse um dia. E quando viu, nos olhos dele, a verdade de que ele nunca estaria pronto para dar um filho a ela, percebeu que nunca poderia ser feliz ao lado de Áster. Zaya o amava o bastante para viver com ele sem filhos, mas Áster não a amava o bastante para dar um filho a ela. Ela passou a vida inteira sofrendo e não precisava de mais dor. Achou que ele tomaria uma atitude quando disse que o deixaria, mas Áster só lhe deu as costas como se não tivesse a menor importância. A dor era tão insuportável que ela chorou durante toda a noite. Soluçou na esperança de que ele voltasse e dissesse que nunca a deixaria partir. Mas Áster não voltou. A noite no Egito era fria, mas aquela pareceu muito mais gelada. Nem mesmo as mantas que a cobriam foram capazes de diminuir a solidão que Zaya sentia. O trajeto de volta até Astória foi insone e turbulento. Ao chegarem, Áster desembarcou primeiro e se certificou apenas de colocá-la em um carro de guerra antes de sumir outra vez. Já no Palácio da Alvorada, Zaya subiu direto para os próprios aposentos. Toda a melancolia que sentia se transformou em raiva e ressentimento pelo marido e daquelas pessoas que o transformaram no que era. Zaya não choraria por ele, não mais. Aprendeu muito cedo que lágrimas e autopiedade não diminuíam a dor e muito menos solucionavam problemas, apenas a faziam mais fraca. Se desfez das roupas de viagem e de toda a maquiagem que lhe cobria o rosto, despiu-se, deixando apenas o anel de escaravelho que repousava no dedo. O escaravelho do coração. Ela pensou em tirá-lo também. Assim como o seu matrimônio, aquele anel era uma farsa, mas não foi capaz. Acabou deixando-o ali e vestiu uma túnica simples. Ela se deitou na cama com uma mão sobre a barriga, pensando que o futuro do seu casamento dependia apenas do ser que criava raízes em seu ventre. Passaram-se horas, uma batida na porta a fez se levantar. Abriu-a e se deparou com um servente que lhe trazia uma grande travessa abarrotada de comida. — Leve-a de volta, por favor. Não estou com fome. — Mas senhora, o príncipe Áster insistiu que eu a fizesse comer, disse que vossa alteza não come bem há dois dias. Ela juntou as sobrancelhas. Zaya se perguntou qual era o plano dele. Não precisava fingir que se importava com ela. — Você pode mandar o príncipe Áster atravessar um mar de crocodilos famintos — rosnou. O jovem criado arregalou os olhos e saiu dali rápido como uma flecha. Agora mais essa... Áster a ignorava e esperava que ela agisse como se tudo estivesse bem entre os dois, oferecendo-a uma bandeja de comida. Homens! Zaya voltou para a cama e se permitiu descansar, a sonolência a abrangeu de pouco em pouco até que se entregou a um sono tranquilo. Foram dias pouco agitados em Astória, os cidadãos começavam a se preparar para a época da inundação, e o palácio ajudava fornecendo materiais para a construção de barricadas. Era uma época muito sombria para algumas daquelas pessoas, a lama preta já dominava parte da enseada e tomava posse da cidade aos poucos. Quando não ajudava a distribuir o material para os Astórianos, Zaya mantinha sua rotina. Tomava o desjejum com as amigas e passava o restante do dia estudando ou aprendendo a tocar um instrumento, quase nunca via Áster, e quando via, ele estava acompanhado de algum sacerdote ou vários deles. Ele mandava bandejas de alimentos para ela, e, lá pela quarta vez, Zaya entendeu que era a maneira de Áster de se comunicar com ela. Ele sabia que Zaya gostava de comer damascos em seu período de cólicas, logo, toda vez que ela devolvia a bandeja com o damasco intacto, significava que suas regras não desceram ainda. Nos primeiros dias, Zaya se reprimia de sentir muita esperança com relação a uma gravidez — sabia que ficaria despedaçada caso não estivesse grávida —, mas quando totalizaram duas semanas e suas regras não desceram começou a nutrir a mais pura felicidade. Todos os dias, por uma semana, ela acordou esperando encontrar sangue em seus lençóis, contudo, eles estavam tão brancos quanto neve. Em uma manhã, quando Hagid entrou em seu aposento, Zaya admirava a barriga no espelho. Podia ver uma linda circunferência em seu ventre. A donzela de sorriso sereno estava pronta para começar o ritual matinal de preparação da princesa para o dia. Mesmo reclamando, Zaya começava a se acostumar com aquela vida. — Hoje não precisarei dos seus serviços Hagid — disse, levantando- se e caminhou até o lavatório para molhar o rosto. Dormira a noite inteira e ainda sentia-se cansada. — Perdoe-me alteza, não posso deixá-la sair dessa maneira dos aposentos. Tem que estar apresentável. O que fará se chegar um visitante e encontrar a futura soberana trajando as mesmas roupas dos serviçais? Zaya quase sorriu. Houve uma época que passava o dia com vestes sujas de barro e ninguém se importava. Os tempos mudaram, ela não podia nem sair do quarto descalço sem matar alguém do coração. —Tudo bem, mas não exagere muito. Hagid abriu um sorriso largo e logo usava as mãos habilidosas nos cabelos da princesa. Ignorou o que Zaya pedira e fez um penteado exagerado de tão volumoso. A princesa queria reclamar, mas era bom demais se distrair com Hagid. Quando a donzela a deixou pronta para sair do quarto, Zaya decidiu visitar Zahara. Se estivesse mesmo grávida, era para a rainha quem queria contar primeiro, para que a dissesse como prosseguir a partir dali. Ao chegar nos aposentos da rainha, Zaya bateu na porta e não demorou muito para Zahara abri-la. Ela já não a via faziam seis semanas inteiras e se assustou ao notar que a mulher parecia muito abatida. Os cabelos castanho-acobreados de Zahara não estava tão brilhante como costumava ser, estava opaco, e ela tinha manchas roxas sob os olhos. Além disso, o olhar da rainha estava adoentado. — Zaya, querida. — Zahara a saudou com uma voz tranquila. — Esperava por sua visita. Vamos, entre. Zaya fez o que ela pediu. O santuário estava com a mesma aparência de semanas atrás, tirando o fato que as muitas flores que Zahara cultivava, careciam de água. A princesa notou também alguns materiais estranhos, postos em cima de uma mesa no meio do cômodo, mas não prestou muita atenção neles. A rainha sentou-se em um recamier coberto de almofadas e indicou o outro para que Zaya se acomodasse. — Então, por que veio até mim? A princesa amassou o tecido liso da saia, não sabia por onde começar. — Você já sabia que Áster não desejava ser pai, não é? Zahara aquiesceu devagar, não parecia sentir-se envergonhada por esconder a informação dela. Talvez, se tivesse sido sincera semanas atrás, a decisão de Zaya fosse diferente. Áster era muito mais complicado do que viver em Astarte. — Eu sabia que existia uma razão para ele fugir do casamento, mas imaginei que, depois de casado, fosse mudar de ideia. — Não mudou. — Zaya suspirou, triste. — E duvido que mudará um dia. — Quando criança, o pai de Áster era o seu maior exemplo, Zaya. Antes de ser um faraó, Radamés foi um príncipe, um guerreiro destemido e um pai amoroso. Nosso filho adorava segui-lo como uma sombra. Ela fez uma pausa, e Zaya deixou que tomasse o tempo que precisasse para prosseguir. Imaginava como era difícil dizer aquelas coisas, devia trazer memórias e cicatrizes não curadas. — As mudanças vieram logo após Radamés subir ao trono. Éramos sua maior prioridade e fomos relegados a meros adereços de sua posição. Áster não foi poupado. — Os olhos da rainha se encheram de lágrimas. — Ele teve responsabilidades em suas costas as quais um menino de oito anos não deveria ter. Parte da culpa foi minha e eu a reconheço. Quando tentei remediar, era tarde demais. A admiração que ele sentia pelo pai já se transformara em mágoa. Zahara fungou, aparando algumas lágrimas com o tecido da bata. — A maneira que ele encontrou de se vingar foi jurando nunca se casar, mas eu acredito que, na verdade, ele o faz para se proteger. Áster tem medo de se magoar outra vez, ele acha que assim poupará a esposa e os filhos de odiá-lo também. Para Zaya, era uma estupidez sem tamanho. Áster não era como o pai e não percebia que, ao tentar não copiar Radamés, ia pelo mesmo caminho que ele. Ficou em silêncio, olhando para as feições de Zahara que, mesmo debilitada, ainda eram muito bonitas. — Não sei se tenho forças para lutar contra a teimosia do seu filho. — Eu sei que tem, escolhi você por uma razão, querida. — Zahara olhou no fundo da alma da princesa com os olhos azuis tão claros e transparentes quanto o céu. O interior de Zaya paralisou. — Como? — sussurrou, com medo de que mais alguém pudesse ouvir. Zahara suspirou devagar e, nesse momento, pareceu mais cansada do que nunca. — Não somos tão diferentes quanto você presume, Zaya. — A rainha virou o rosto de forma sugestiva. Zaya seguiu a direção dos olhos da soberana para a mesa, havia pequenas ametistas, de várias cores diferentes, dispostas sobre ela e no tampo brilhava uma pintura. Em uma extremidade havia o sol nascente, um rio, uma árvore frondosa, uma flor e uma serpente. A mesa se dividia em duas e do outro lado era noite, no lugar do sol, via-se a lua e o rio estava seco e a árvore ressecada; a flor pegava fogo e a serpente era uma tumba. As pedras ametistas de diversas cores estavam espalhadas em lugares diferentes por toda a mesa. Zaya sentiu um calafrio na espinha ao reconhecer as figuras, as pedras e olhou para Zahara, assustada. A rainha não disse nada, mas seu olhar era claro como água. — Você? — A pergunta foi curta, mas a resposta estava clara nos olhos azuis da digníssima rainha do Egito. — Você ficaria surpresa com o tanto de coisas escondidas por entre estas paredes de pedra. Atordoada era pouco para descrever como Zaya se sentia. Zahara... uma rom como eu. Quem diria! Como manteve em segredo por tanto tempo? Isso colocava em questão tudo que Zaya entendia sobre essa parte de sua vida. Ela sempre guardou um rancor imensurável do sangue rom que corria em suas veias. Pensava que o motivo do abandono de sua mãe era o modo de vida rom e o que sua genitora acreditava, o que levou Zaya a sofrer nas amarras da rejeição do pai. Mesmo assim, Zahara estava ali. Ela trocara a vida rom, o lar, a terra e a liberdade para ter uma família. Agora tudo fazia mais sentido, ainda mais a razão por Zahara tê-la escolhido. — E se você tiver se enganado? — Zaya nunca teve tanto medo de uma simples resposta. — Eu posso ter me enganado sobre muitas coisas nessa vida, acredite, eu me enganei. Mas sobre você, não. Você foi o meu melhor acerto em anos. — Zahara assegurou e tocou com delicadeza no braço da jovem princesa e, no mesmo instante, seu semblante mudou. Os olhos azuis da rainha correram para Zaya e exprimiram uma clareza indubitável, aterradora. — Nada nessa vida acontece por acaso. — Suspirou. — “Aquilo que separou, é o que vai unir.” — disse a frase como se compreendesse algo. — Agora eu entendo o que as pedras queriam dizer. — Zahara olhou para Zaya com pesar. — Eu sinto muito querida, mas a criança que pensa ter, não existe. Todo o peso contido no tom de voz da rainha fez Zaya sentir como se um punho fosse enterrado em seu estômago. Não havia como Zahara saber da gravidez, nem ela nem Áster disseram para ninguém, mesmo assim a princesa sabia no fundo dos seus ossos que a rainha não se enganara. Zaya se levantou apressada para fugir do olhar de desalento que Zahara dirigia a ela. — Devo ir — disse, e, com as duas mãos sobre o ventre, voltou para o próprio quarto, como se pudesse reverter o que, no fundo, já sabia que era irreversível. AS BATALHAS MAIS EXAUSTIVAS SÃO as que acontecem no silêncio de nós mesmos. Era como Áster estava, exausto. Exausto por sentir tantas coisas ao mesmo tempo e não conseguir colocá-las em palavras. O caos que reinava perante suas emoções durante todos os anos sondava-o naquele momento, procurando uma parede rasa dentro dele para destruir tudo e, enfim, libertar-se. Aprendeu desde pequeno a ter o controle absoluto de tudo, inclusive de suas próprias emoções, então, estava à mercê do tempo, sem saber qual decisão tomar ou direção seguir. Pai, serei pai. Era atordoante. Nada o preparou para isso. Antes pensava não querer, mas entendia que, na verdade, não estava pronto. Como poderia estar? Estavam à beira de uma guerra, e sua esposa o desprezava. As informações que tinha eram o suficiente para iniciar um ataque de retaliação, mas tinha que agir com astúcia, não com as emoções. Já enfrentaram os gregos uma vez no passado, uma batalha sangrenta que lhe dava pesadelos até mesmo nos dias atuais. Eles eram um montante de sádicos sedentos por sangue e poder. Se fosse verdade e estivessem mesmo com o faraó, Áster não queria pensar nas crueldades em que seu pai era submetido. As mínimas hipóteses já lhe davam vontade de levantar o exército e ir para cima dos raptores sem misericórdia. O que o povo diria, caso soubessem que o faraó, o predestinado, protegido pelos deuses, regente de Amon-Rá, fora raptado por meros mortais? Seria o fim de uma era e o caos, enfim, cairia sobre o Egito. Sem fé o ser humano é apenas uma casca vazia, sem rumo. Fé é a única coisa mais forte do que a coragem. A culpa por esconder algo dessa amplitude dos irmãos matava Áster, mas ainda era cedo para contar, e a notícia poderia trazer efeitos desastrosos para a família. Era o que mais o causava raiva e indignação, mesmo que o grandioso faraó Radamés tivesse sempre tratado o sangue do seu sangue como meros enfeites de suas realizações, os chutado para as margens de sua vida de todas as maneiras possíveis, eles ainda estavam ali por ele. Inclusive Áster. É isso que significa ser pai? Padecer na submissão de um sentimento imensurável? Seria a ruína da sua mãe, Áster tinha certeza. Ele sempre se perguntara a razão por Zahara ainda se manter no palácio, mesmo depois de tudo. Achou que era por serem muito crianças e ela não querer abandoná- los, mas, nos dias atuais, entendia a mãe melhor do que ninguém jamais entenderia. Estava em sua pele: em um casamento arruinado e incapaz de dizer adeus para a esposa, por baixo de toda a insegurança e rejeição, ainda existia a esperança. Esse tipo de sentimento, que se instaura no peito e o torna dependente de alguém, sempre o apavorou. Pensar em ser submisso a alguém de corpo e alma a ponto de abrir mão do próprio orgulho e amor- próprio, fazia-o desejar cada vez menos sentir algo semelhante. Por infelicidade, não foi capaz de se proteger quando se deparou com os olhos de Zaya. Era tarde demais, ela já estava ali, em algum lugar muito sombrio da sua alma, agarrada a uma parte de Áster que ele sempre tentava ignorar. E agora também tinha uma criança. Uma criança. Uma parte dela com uma parte dele. Um pequeno ser que enfrentaria cedo ou tarde a dura realidade de ser filho de um homem maldito. Se escapassem da possibilidade de uma guerra, Áster ainda teria que enfrentar Zaya e toda a situação em que se colocara. Não sabia qual das duas possibilidades o apavorava mais. Ela estar grávida ou não estar e decidir deixá-lo. Ele queria tanto que fosse diferente, que pudesse estar feliz pela chegada do filho. Mas sentia um medo que lhe faltava ar nos pulmões, e o medo de repetir a mesma criação que teve o assombrava mais. Áster se dirigiu para o salão de jogos após uma longa conversa sigilosa com o vizir. O mensageiro chegaria em Astória a qualquer momento e tinha que manter todos a postos. Enfim chegara à parte mais difícil, em que teria que contar para os irmãos. Buscaria a melhor maneira de falar. Em meio a uma partida de senet, talvez. Mas ao entrar na sala, encontrou apenas Ramessés ocupado com alguma coisa que lhe parecia desinteressante. Desde que se casara, Áster notou que se tornara cada vez mais costumeiro encontrar seus irmãos em situações como aquela. Em outra época, em tal horário, eles estariam se divertindo em templos de prazer, bebendo e esbaldando-se com a graça de mulheres voluptuosas. Se pudesse, estaria se esbaldando na graça de Zaya. — Lendo manuscritos até esta hora? Por que não está se divertindo com uma messalina? — perguntou ao se aproximar e ver que o irmão mais novo rascunhava algo em uma folha de papiro. — Na realidade, nem a melhor messalina e o mais saboroso tonel de vinho valem todo o mal-estar que sinto pela manhã. — Ramessés não tirou a atenção do que fazia ao responder. — Está me dizendo que prefere passar sua noite quebrando a cabeça com escritas sagradas do que recebendo um beijo caloroso de uma mulher experiente? — Áster indagou enquanto se dirigia para a mesa onde estava uma botelha de cerâmica com vinho. Serviu-se de um cálice. Ramessés o olhou com lucidez. — E você? Prefere ficar aqui em minha companhia enfadonha a ir procurar por sua esposa? Áster fugiu da pergunta, bebendo um gole do vinho. A bebida fermentada se espalhou pelo seu paladar, o sabor era forte. Ele gostava da dormência que ficava na língua, com um pouco de sorte, em algumas horas, todo o seu corpo se encontraria daquela maneira. — Não é porque me casei e não frequento mais essas reuniões, que você e Darwish tem que se privar delas também. Ramessés batucou com os dedos no tampo de madeira da mesa, parecia querer dizer algo, mas buscava cautela. — Para ser franco com você, essa vida regada à álcool e hedonismo nunca me atraiu. Eu gostava de te acompanhar, porque sempre fizemos tudo juntos. Áster endureceu ao ouvir tal revelação. Ramessés nunca dissera isso antes ou sequer dera indícios de que, na verdade, desejava seguir os conselhos de Zahara e sossegar. Perguntou-se como poderia saber ou se sempre esteve ali e ele, Áster, nunca foi capaz de enxergar. Sentiu-se um péssimo irmão. Áster se sentia envergonhado e culpado. Pensar que a culpa pelos irmãos permanecerem sozinhos era dele. Quão imbecil sou? — Darwish também se sente assim? — Levando em conta que agora ele passa a maior parte do tempo preso nos pátios de treino, eu diria que sim. Áster rangeu os dentes, furioso por esconderem a verdade durante tanto tempo. — Por que não me disseram nada disso antes? Ramessés deu de ombros, sentindo-se culpado. — Você nos criou, Áster. Mesmo que o casamento dos nossos pais tenha afetado a todos nós de uma maneira, você foi o afetado direto. Teve que amadurecer rápido demais, e nós dois jamais o deixaríamos sozinho. Áster ficou em silêncio. O desabafo de Ramessés abrira os olhos dele para outras possibilidades. Ele se questionou se estaria errado sobre outras coisas também. Nunca imaginou, nunca pôde cogitar que, na verdade, ele se tornara um atraso na vida dos irmãos. Do contrário, nunca teria se oposto ao casamento, faria por eles, como fez no fim de tudo. Nesse mesmo instante, Darwish entrou na sala. — Bela noite, irmão. — disse, muito pleno, foi direto até o recipiente com vinho para servir-se de uma dose agradável. — Esperava apenas o seu regresso para fazer um comunicado. — Áster falou. Darwish bebericou um pouco da bebida e limpou os cantos da boca com a língua impertinente antes de se virar para o irmão mais velho. — Não vai começar a se lamentar pelo seu casamento de novo, pelos deuses, já está começando a me dar urticária nos ouvidos! Áster fez uma carranca feia. Darwish ergueu as mãos em um gesto de dúvida e sentou-se em uma cadeira próximo a Ramessés. — A razão por terem me chamado em Alexandria foi que nosso pai pode ter sido sequestrado por gregos. Ambos os príncipes se detiveram no que faziam para olhar para Áster. — Como? — Ramessés foi o único que conseguiu falar. — Mênfis foi invadida. Apenas espero o retorno do mensageiro para dar andamento a um ataque — explicou Áster, com poucas palavras. Queria poupar os irmãos de uma preocupação maior que a dele, poderia suportar o fardo sozinho. Ambos ficaram reflexivos. Áster podia imaginar o que se passava nas cabeças deles, sentira-se perdido da mesma forma, quando recebera a notícia em Alexandria. — O fato é que não posso deixar de ir, e Zaya precisará de proteção em minha ausência. Ela pode estar esperando nosso primeiro filho. Darwish andou até ele, no mesmo instante, para um abraço cheio de emoção. — Minhas felicitações, irmão. Que os deuses o abençoem com um menino. Os pensamentos de Áster se dividiram em milhares que passou longe da esposa nos últimos dias, mas não parara para pensar no sexo da criança. Nem uma vez. A verdade era que, para ele, não importava muito, fosse um menino ou uma menina, o bebê sofreria em igual. — Só resta saber qual de nós ficará — disse Ramessés, com um olhar significativo para Áster. O príncipe herdeiro suspirou e deu um passo para o lado. — Pensei que pudesse ficar, Darwish. Esse olhou para o chão, pensativo. Embora nenhum dos três colocassem em palavras, eles sabiam que era apenas uma desculpa para manter Darwish bem longe de um conflito. O príncipe sofrera demais e carregava as cicatrizes dos traumas. Era a maneira de Áster para poupá-lo de mais pesadelos. — Será uma honra cuidar de sua amada e do seu primogênito em sua ausência. Áster respirou mais aliviado. — Você está feliz? — A pergunta veio de Ramessés. Áster não sabia dizer. Talvez sim, estivesse um pouco feliz, mesmo que sua felicidade estivesse camuflada em uma bola densa e intransponível de pavor. — Para ser franco, eu me sinto aterrorizado. Não via a esposa há dias. Dias longos, maçantes e tortuosos. A espera era insuportável, queria tanto ir até Zaya, mas não sabia o que poderia dizer. Não queria piorar a situação. Em todos os dias de distância, ela não fizera o menor esforço de buscá-lo, nem que para atirar um vaso em sua cabeça. — O que você fez quando ela te contou? — Darwish indagou, e Áster trocou o peso de um pé para o outro, envergonhado. — Ah, por favor, não vá me dizer que agiu como costuma agir? Áster alisou as sobrancelhas. — E como eu costumo agir? — Como um idiota. — E de que outra maneira eu deveria agir? Não foi uma pergunta retórica, ele queria mesmo saber. Nem um dos outros dois soube o que dizer, o que deixou claro que não saberiam como agir se estivessem em uma situação parecida. — Tirando pelos vinte e tantos anos que te conheço, eu diria que você falou algo que soou muito horrível, estou certo? — Ramessés indagou e, muito envergonhado, Áster aquiesceu. Ele quis regar o ventre de Zaya com sua semente. Quis fazê-la feliz. Nunca gozara dentro de uma mulher e, enquanto se despejava em sua esposa, pensou que nunca mais poderia ficar sem fazê-lo. Sem a sensação gostosa que era pertencer a ela. Por isso, ficou tão amedrontado, por saber que não conseguiria se deitar com Zaya outra vez sem se perder dentro dela. Lá era seu lugar, onde pertencia. Não se dera conta do quão imbecil era, até ver o olhar no rosto dos irmãos. Darwish levou uma mão ao queixo. — Deixe-me ver se entendi, você pode partir a qualquer instante e está aqui, perdendo sua noite conosco, ao invés de estar com sua esposa que pode estar grávida? Áster se encolheu, dando-se conta de que não era da esposa que deveria ter fugido, mas dos irmãos. Eles mostravam o quão tolo ele era. — Ela não me deseja, se me desejasse, teria vindo até mim. — Áster deixou os ombros caírem, entregando-se a falta que sentia de Zaya e aceitando o peso da verdade que cavava seu peito. Ele não suportava a ideia de ter um casamento semelhante ao dos pais. — Deuses Áster, o que tem de teimoso tem de burro. — Darwish puxou os cabelos da cabeça. — Se eu fosse você, me ajoelharia perante Zaya agora e imploraria pelo seu carinho. Áster sentiu a verdade corroer as paredes do seu ser. Ser casado, estar ao lado de Zaya como um marido, era muito diferente de ter o "seu carinho". Isso ele não tinha. Se tinha alguma chance de conquistá-la, estragara naquela embarcação e, em seguida, ao dar as costas e partir. Zaya podia querê-lo de muitas maneiras, mas não da maneira que a mãe de Áster queria ao pai dele. Zaya nunca esperaria por Áster durante anos, presa em uma torre esquecida pelos deuses. — Receio que o carinho dela é a única coisa que não posso conseguir com ouro, joias e poder — disse, sentindo o amargor da autopiedade na boca. Darwish o olhou de forma cínica por alguns segundos. Áster esperou que ele fosse fazer algum comentário zombeteiro de sua condição lamuriosa, mas o irmão apenas foi até ele e lhe deu um tapa leve no ombro. — Irmão, você, como sempre, demora demais para enxergar o que está a um palmo do seu nariz. Eu vou dizer apenas uma coisa, qualquer mulher teria ido embora depois do crocodilo. Apoiada na mureta mais alta do palácio de Astória, Zahara olhava para o céu noturno. Seus olhos azuis celestes, que costumavam ser tão serenos e tranquilos, refletiam uma agonia genuína. Ela já estava ali há tanto tempo que, se estivesse contado, poderia dizer que derramara tantas lagrimas quanto o número de estrelas que brilhavam no céu acima de sua cabeça. Era uma imensidão delas. Algumas estavam em aglomerações, formando um círculo, um anel, por vezes um animal. Já outras, estavam sozinhas, espalhadas sem ordem pelo manto negro do infinito, destinadas a cintilarem ali no pedaço vasto de existência. Zahara abraçou os próprios joelhos na tentativa de diminuir a angústia que sentia e parecia crescer muito mais a cada segundo. Algo estava errado, muito errado. Era uma sensação inquietante em seu peito como quando se está no meio de uma corrida desgovernada e sabe que, a qualquer instante, ocorrerá uma queda iminente. A sensação ficava cada vez mais profunda, cada vez mais incisiva e lancinante. Mais cedo, pensara que poderia ter algo relacionado com Zaya e Áster, afinal Zahara sempre sentia quando algo estava errado com seus filhos. Embora o casamento de Áster estivesse em uma fase decisiva, não era a causa da sua laceração. Não. O que sentia era muito maior, e ela sentia que a despedaçaria por inteiro quando a corrida chegasse ao final. Pensou na possibilidade de ser algo que envolvesse Radamés. Lá no fundo, nas catacumbas empoeiradas do seu interior, sabia que era Radamés, mas há muito tempo deixara de senti-lo. No dia em que ele decidiu que não era mais parte dela, quando decidiu que o reinado era mais importante que qualquer outra coisa. Uma nova lágrima solitária e pesada caiu pela comissura dos olhos da rainha. Solitária como a estrela afastada que cintilava fraca no Leste. Solitária como ela. Não seja tão tola Zahara, lembre-se quem você é. Você não deve mais chorar por este homem. Era provável que ele era servido por dezenas de mulheres em Mênfis. Radamés sequer se lembrava da patética existência de Zahara, e ela já não sentia nada por ele além da cordialidade de suas posições. Ainda assim, o aperto se tornou presente e significativo na alma dela. Pensou em Zaya, nas coisas que ela deixara a jovem princesa descobrir mais cedo. Assim que batera os olhos nela, no templo de esposas, Zahara soube que era o único raio de esperança. A resposta que esperava dos deuses. Zaya repudiava a parte rom em seu sangue, escondia-a de todos como um segredo sujo, por essa razão, não reconheceu o sangue rom em Zahara logo que se conheceram. A rainha abandonara o próprio povo, mas nunca abandonou os ideais e a fé e, por essa razão, ainda podia sentir a forte ligação com os filhos e com aqueles que prezava. O medo e a segurança a cegavam. Talvez por receio do que Áster acharia, afinal, o povo delas fora perseguido e escravizado por anos. As origens de Zahara nunca foram um problema para Radamés. Ela recordava com amargura do dia em que se apaixonou por ele após Radamés salvá-la de um afogamento no rio que passava ao lado do palácio. Foi uma surpresa para Zahara quando descobriu que a sua afeição era recíproca. Afinal, ele era o príncipe destinado ao trono e poderia escolher qualquer mulher de boa família que assim desejasse, ao invés disso, contrariando a tudo e a todos, escolheu a filha mais nova de uma família de ciganos. Quem poderia duvidar do amor deste homem? Era cruel voltar para essas memórias e perceber que se ela tivesse uma única oportunidade sequer, faria tudo diferente. Zahara nunca teria confiado no brilho falso dos olhos castanho-avermelhados de Radamés. Seus pais a avisaram, previram o sofrimento em seu futuro, alertaram-na, mas ela estava cega demais por ele para se importar. O futuro era inconsistente como as areias do deserto, e ela acreditou que o amor que sentiam um pelo outro poderia prevalecer e mudar o interlúdio. Mas Zahara se enganou, entregara-se de corpo aberto e fora enfiada em uma vida diferente, com costumes diferentes, com a fé diferente. Fez do próprio corpo um templo de adoração para ele e, por ele, teve os filhos que jurou nunca ter. Por causa das escolhas egoístas que fez, seus filhos estavam amaldiçoados. Cada um simbolizava uma parte crucial do matrimônio dela com Radamés. Era o preço que Zahara pagava por ter abandonado suas raízes. Por causa disso, em vida, seus filhos enfrentariam os mesmos obstáculos. Andariam por campos de infelicidade e sofrimento em seus matrimônios e nunca poderiam ser felizes com plenitude, se não fossem capazes de se curvarem diante da redenção. Áster tinha o destino o mais leve dos quatro, ele fora concebido com amor. Zahara estava no auge do sentimento que tinha por Radamés. Por isso Zaya era perfeita, depois de viver uma vida infeliz, tudo que ela tinha para dar era amor, só cabia a Áster aprender a aceitá-lo. Darwish nasceu quando Radamés começou a se afastar, em consequência, começaram as inseguranças e as brigas, então veio a guerra. Darwish já conhecera a mulher que recuperaria seu coração, que cicatrizaria suas dores mais profundas. Porém, assim como na guerra, ele passaria por inúmeras batalhas até conseguir alcançar a felicidade derradeira. Depois veio Kamilah, pobre e doce Kamilah. Quando deu à luz a sua menina, Zahara estava ferida e muito desiludida após perder todas as batalhas contra Radamés, por isso sua filha estava casada com um homem que a odiava. Tinha medo pelo futuro de Kamilah, temia que, no futuro, a filha se transformasse em algo parecido com o que ela se transformara. Apenas o tempo diria o que seria dos dois. Zahara podia afirmar que a discórdia se espalharia em tudo que Kamilah tocasse. Então veio Ramessés, Zahara sentia dor só de imaginar. Se ela pudesse mudar um único destino, seria apenas o dele. Era o único que não podia ver. Ramessés foi concebido com desejo de vingança, com raiva e grosseria. Seu caçula, seu filho mais adorável, atravessaria um caminho de dor. Assim como ela, Ramessés seria traído por aquela que amava, e Zahara não tinha poder para mudar o destino, apenas sentar e assistir os resultados das suas escolhas de vida. Sabedoria é como uma flor de onde a abelha faz o mel e a aranha faz o veneno, cada um de acordo com sua natureza. Apenas o tempo derrubaria o véu da incerteza e revelaria as respostas. A única coisa que Zahara tinha certeza era que, se o casamento de Áster desse certo, significava que havia uma esperança para cada um dos seus outros filhos. E era apenas isso que a fazia continuar de pé: seus filhos precisariam dela e, por eles, ela se manteria forte. A CONSTATAÇÃO QUE ZAYA TEMIA VEIO RÁPIDA e muito dolorosa. Quando acordou na manhã seguinte, seus lençóis estavam manchados de sangue. Uma enorme poça vermelha que simbolizava sua dor cruel. Não sofrera um aborto. O bebê que achei ter, nunca existiu. Para a infelicidade da princesa, o fato não a impediu de sofrer a dor da perda. E como é horrível! Zaya se apegara a ideia de uma criança. Logo ela que nunca desejou ter filhos, sofria pelos sintomas de uma doença que nem mesmo o curandeiro mais habilidoso seria capaz de sanar. Em meio à sua implacável condolência, percebeu que seu inconsciente desejara muito a criança por achar que ela poderia fortalecer sua relação com Áster. Era cruel ver que estava sem filho e perdera o marido também. Com toda certeza, quando Áster descobrisse que não existia bebê, daria graças aos céus e a deixaria partir. Talvez fosse mesmo estéril, como ele dissera. Zaya passou todo o dia enclausurada no quarto, e a noite, quando tudo estava silencioso, decidiu caminhar pelo Palácio da Alvorada. Ela adorava o lugar, não pela opulência ou vida boa que tinha ali, mas pela grande família que ela ganhara e aprendera a amar em tão pouco tempo. Ramessés com sua doçura e sua habilidade de sempre dizer algo que a fazia sentir-se bem; Darwish com sua impertinência que, por vezes, a deixava escandalizada; Kamilah com seu jeito despojado e divertido e até mesmo Zahara, que chegou mais perto de ser uma mãe do que sua própria genitora. Áster deu a ela tudo que sempre quis, uma família, segurança, casou- se com ela quando jurou que nunca o faria. Pensando bem, ele abrira mão de muitas coisas por ela e, talvez, fosse injusto da parte de Zaya exigir uma criança também. Ela parou de andar quando chegou ao jardim que ficava ao lado do harém. Seus pés a levaram para o local onde tudo começara. O lugar estava vazio, assim como na primeira noite em que estivera por lá. Ainda conservava a neblina quase mágica que a atraiu desde o primeiro momento. A lua não estava presente, mas o céu estava esplendoroso e estrelado. Sentou-se na borda da piscina e admirou as estrelas por um tempo até sentir um arrepio na nuca. Não precisou se virar para atestar que Áster estava no jardim com ela. O formigamento, o sufocamento e todas as palpitações que sempre sentia quando ele estava por perto, alertaram-na de que ele fora até ela. Ele sempre vem. Zaya virou um pouco rosto e o viu parado há alguns metros dela, observando-a com as mãos cruzadas atrás do corpo. Seu tronco estava despido, e ele usava um saiote suspenso nos quadris bem modelados. Era a primeira vez que ela o via em dias e quase se esqueceu como era bonito, como o cabelo acobreado dele ficava escuro na luz da noite e os olhos quase azuis. A única coisa que não se esquecia era do quanto o amava. Um aperto tenaz se abateu sobre o peito de Zaya, e ela sentiu a falta dele. Uma imensa falta. Por cima da felicidade em vê-lo, marinava uma mágoa rancorosa. Áster seria o objeto de seu descarrego de culpa, raiva e tudo de ruim que a fazia sofrer. Ele merecia por tê-la largado para que sofresse sozinha pela perda de um filho que nunca existiu. — Veio se certificar de que eu não fugi? — indagou venenosa como uma víbora. Áster deu mais alguns passos até o lado de Zaya. — Você não fugiria. Ela lhe lançou um olhar afiado. — Se eu fosse você, não teria tanta certeza — retalhou, chutando a água que lhe abraçava os pés. — Além do mais, por que você se importa? Desde o primeiro momento em que me conheceu, você quis que eu fosse embora. Eu te pouparia do trabalho. Áster sentou-se com ela, lado a lado, com os pés afundados na água gelada e cristalina. — Isto nunca esteve em questão. Zaya espremeu os lábios para não deixar as lágrimas virem. — Duas almas destinadas a ficarem juntas, sempre encontrarão o caminho de volta uma para a outra. — Áster concluiu. Era tão profundo e tão certo, uma luz acendeu dentro de Zaya como se sua alma atestasse um fato incontestável. — Se não foi para garantir que eu fugira para que você veio? Áster suspirou fundo, parecia reunir uma grande coragem. — Vim pedir perdão por não ter reagido muito bem naquela noite. Eu... eu tenho medo. Muito, na verdade, mas não quero perder você. — Ele viu que Zaya arregalou os olhos. — Por isto, se você permitir, gostaria de fazer diferente. Quero essa criança, quero acabar com nossa distância. Eu sinto sua falta. — Áster expulsou as palavras difíceis e quando terminou, esperou, tenso, pela resposta dela. Zaya o encarou com a boca entreaberta por alguns segundos e, quando ele menos esperava, um soluço agudo saiu por entre os lábios volumosos e quentes dela em um choro. — Doçura. — Ele estendeu um braço para tocá-la, mas Zaya se esquivou, levantando-se e se afastou do alcance dele. — Zaya, qual é o problema? Eu já falei que mudo, por você, eu... — Não se incomode. — Ela o cortou. — Já não há mais criança. Nunca houve. Áster abriu e fechou a boca sem saber o que deveria dizer. Sem compreender a própria dor que crescia no peito aos poucos. Ele se perguntou se seria possível, se sofria mesmo pela perda do filho que, até então, pensava não querer. — Como não? Zaya enxugou as lagrimas do rosto de forma rude. — Apenas nunca existiu, eu me enganei. Achei que estivesse grávida, mas minha regra veio esta manhã. — Ela não conseguia falar sobre o assunto sem iniciar uma nova onda de pesar que a debilitava. — Zaya, sinto muito. — Áster deu um passo para ela, os olhos pesarosos. O tom de voz continha todo um estopim de sentimentos conflituosos. — Poupe-me, não precisa fingir que está triste por pena de mim. Sei que está aliviado. Faça melhor, suma outra vez! Em resposta às palavras dela, Áster avançou, pegou-a em um abraço apertado que não dava brechas para Zaya escapar. Ela ainda lutou um pouco, mas seu corpo e seu coração não queriam batalhar contra ele, queriam se entregar e se aconchegar no calor do marido. Zaya caiu em desamparo sobre ele, agarrando-o com força para que, assim, talvez Áster diminuísse a dor que ela sentia. E funcionou. — Não deixarei que você sinta a perda de nosso filho sozinha. Você é minha metade, minha vida, meu coração, minha alma, minha esposa. De hoje em diante, dividiremos o fardo de nossas dores um com outro. Passaremos por isso juntos. — Áster prometeu, e ela chorou no peito dele, enquanto ele afagava os cabelos que tanto adorava. Os dois sofreram juntos pela perda da criança com os corpos tão grudados. A maneira e o sentimento que Áster dividia com Zaya, era apenas único e íntimo demais. Mais íntimo até do que o sexo que faziam juntos. Era além. Envolvia muito mais do que contato físico. A sensação era magnânima e perfeita, e Zaya quis morar no abraço deles, um lugar que era apenas dos dois. Porém, era pedir demais. Os dois foram atrapalhados pela chegada abrupta do grão-vizir. — Senhor, graças aos deuses que o encontrei. — O homem disse a plenos pulmões, correra para chegar até ali. — Agora não, vizir. — Áster o cortou. — Mas senhor, a situação exige urgência. — Diga qual é — pediu displicente. O homem engoliu em seco e, em seus olhos, Áster viu o prelúdio do caos que se avizinhava. — O mensageiro. Ele retornou. Áster adquiriu uma feição dura e pálida, tornou-se tão gelado quanto a noite fria. Por um tempo longo demais, ficou em silêncio. Então, olhou para o homem e depois para a esposa, tentando decidir qual dos dois assuntos era mais importante. Quando suspirou, ali no verde mais adorável dos olhos de Áster, Zaya viu que perdera. Nunca seria a primeira opção para ele e se afastou com um empurrão. — Vá, já estou acostumada a ser deixada por você. — Ela cruzou os braços e deu as costas, refazendo o caminho para o próprio aposento. Em seu peito, ela teve a esperança de que ele fosse atrás dela, mas o vento trouxe a despedida de Áster. — Espere por mim. — Ele disse e partiu, deixando-a dolorida para se recuperar. Sozinha. Dos seus aposentos, Zahara viu o comboio de guardas reais atravessarem o portão do Palácio da Alvorada. No centro deles, quase imperceptível, viu um rapaz. O garoto usava roupas esfarrapadas, estava muito magro e, em suas feições, lia-se o temor. Mesmo de uma distância tão longa, conseguiu ver o símbolo de um corvo bordado no peito dele e percebeu que se tratava de um mensageiro de Alexandria. Zahara se perguntou o que um mensageiro fazia em Astória, tão de súbito, e por que algo em seu sexto sentido a dizia que não podia ser nada de bom. Vê-lo apenas acionou um mecanismo na cabeça da rainha e logo ela se recordou da viagem de Áster até Alexandria dias atrás. O pedido urgente de que ele comparecesse na cidade logo após a viagem de Radamés. O copo de cerâmica que segurava caiu de suas mãos e se despedaçou pelo chão. Zahara nem se importou, passou por cima dos cacos, abandonou o aposento e correu direto para a sala de reuniões onde sabia que encontraria a informação que precisava. Mesmo do lado de fora da porta, Zahara escutou os burburinhos de vozes exasperadas. Girou a maçaneta e entrou. Todo o conselho estava reunido, o mensageiro sentado mais ao fundo e seus três filhos. A cacofonia era tanta que os homens não perceberam que ela estava ali. — Não sei se você se lembra Áster, sou o comandante da guarda real. Mestre de batalha. Ninguém nesta sala sabe empunhar uma espada como eu. Darwish vociferou para Áster, que sentava-se em uma extremidade com uma mão sobre os olhos. Ele parecia exausto. Zahara desejou tirar todo o peso das preocupações das costas de seu primogênito. — Neste momento, você mais nos atrapalharia do que o contrário. — E você presume que eu fique aqui e deixe que você, Ramessés e meus homens saiam para a batalha sozinho? Há muito tempo Zahara não via o filho do meio tão transtornado. — Darwish, eu não deixarei que você vá! — Áster gritou, decidido, socando a mesa para fechar de vez aquela discussão. — Você fica. — Não vejo razão para ficar, Zaya já não precisa mais de mim. Além disso, ele é o meu pai também. Mereço honrá-lo nesta batalha tanto quanto você. As palavras mal deixaram a boca de Darwish, e as pernas de Zahara perderam a força, ela deslizou para o chão, com a confirmação do que já pressuponha. A dor que já estava em seu peito se expandiu, paralisando todo o corpo da rainha. — Mãe! Zahara escutou a voz de Áster, mas não conseguiu olhar para ele. Não conseguiu fazer mais nada além de sentir a dor insuportável. E ela soube que, em algum lugar muito longe dali, Radamés sentia a mesma dor. A dor não pertencia a ela, mas a ele. Zahara enfim entendeu tudo. Tudo. O choro lhe apertou a garganta e a fez tremer. A angústia que sentia há tantos dias era dele, clamando, pedindo por ela. A rainha sentiu as mãos de alguém que estava por perto a puxarem e foi arrastada para longe de Radamés. A dor ainda estava ali, mas agora podia suportá-la. — Mãe, o que você está sentindo? — Darwish perguntou preocupado, tocando no rosto da mãe. — Onde Radamés está? — A voz da rainha saiu rouca de tanto que ela tentou conter tudo o que sentia. Áster a olhou angustiado, Zahara sabia que o filho tentaria amenizar as coisas para protegê-la. Era sua grande qualidade, ele tomava as dores de todos para si, escondia os acontecimentos e suportava o fardo de tudo sozinho para não ver as pessoas que amava sofrerem. Ele fizera isso quando menino, para poupar os irmãos do caos do casamento dela, e faria com ela naquele momento. — Não me trate como um pedaço de papel, eu sou sua mãe. Já passei por coisas suficientes nessa vida para saber suportar mais isso. Ele ainda relutou, mas suspirou uma redenção. — Não sabemos. Tudo o que descobrimos é que ele foi atraído para uma emboscada. Seu barco foi assaltado logo após chegar em Mênfis. Zahara não conseguia parar de tremer, apesar disso, mais do que nunca, precisava suportar a dor para não sucumbir e despedaçá-la por inteiro. Pensou que Radamés não tinha o direito de fazê-la sentir aquilo. Não depois de tudo que a fizera passar. Ele não tem o direito! Zahara se dirigiu a Darwish. — Áster tem razão, você será melhor aqui. Não mandarei meus três filhos para a guerra — disse, usando o tom indiscutível de uma mãe. Não importava se seu filho fosse o dobro do tamanho dela, Zahara o carregara por nove meses e o expelira para fora do corpo, era mais do que obrigação dele a obedecer. Darwish apertou os punhos, furioso com a intromissão da mãe, mas não disse nada. Deixou a sala pisando firme. Ele ficaria zangado por um tempo, mas era melhor assim. Zahara vira de perto o caos que ele teve que passar nos últimos anos para tentar se livrar dos pesadelos constantes e da culpa que carregava pelo sangue que derramara no passado. Ela não o jogaria aos leões outra vez. Observou-o se afastar até suas costas sumirem atrás da porta e se virou para Áster. Minha corajosa estrela. Ele não merecia nada do que acontecia com eles naquele momento. Foi até ele e tocou em seu rosto. — Meu bravo guerreiro. — Áster fechou os olhos, sentindo o toque cheio de amor de sua mãe. Ele era a razão de Zahara, o motivo principal para tudo. Ainda que sofresse o pesar de suas escolhas, ela nunca se arrependeria de ter dado à luz aos homens mais preciosos e a mulher mais corajosa. Por eles, ela daria tudo, inclusive a própria vida. — Faça o que for preciso, apenas o traga de volta. O filho balançou a cabeça uma vez, afirmativo. Zahara ficou mais aliviada, sabia que Áster cumpriria com a promessa. Deu as costas e andou para fora dali, era a última vez que Radamés afetava a ela e aos filhos dos dois, independente do que acontecesse, quando ele tornasse para casa, Zahara daria um fim ao que tinham. De uma vez por todas. AINDA NA MESMA NOITE, ÁSTER SE PREPAROU PARA PARTIR. Era o pior momento possível para ir. Em seu coração, sofria por ter que abandonar a esposa naquela circunstância delicada, mas não tinha muita escolha. Ignorara a aflição nos últimos dias, mas era incontestável que estava assim: aflito. Aflito, por inteiro, com a noção de que seu pai sofria ou pior. Deuses, que esteja bem. Rogou. Radamés tinha que estar bem. Precisava estar são e lúcido para que pudesse ouvir tudo que Áster lhe diria. À noite, quando tudo já estava pronto para a longa viagem, Áster foi até o quarto para se despedir da esposa. Zaya estava envolvida em um sono tempestuoso. Parecia pequena e adorável no meio da cama grande. O cabelo a envolvia como uma manta e ela usava um penhoar fino de linho amarelo que deixava o corpo nu à mostra, por baixo. Seus lindos e longos cílios negros estavam molhados e a ponta do nariz estava avermelhada. Ela chorara. Áster se deitou ao lado dela e ficou olhando-a por alguns bons minutos. Não podia mensurar o quanto a adorava; o quanto a queria. Talvez fosse por isso que sonhava com ela, porque precisavam um do outro. Seria capaz de tudo para protegê-la. Seria capaz de tudo para fazê-la feliz. Abriria mão do que acreditava, temia e se recusava a aceitar. Naquele momento, às vésperas da partida, ele se arrependia de cada segundo que passara distante dela. De cada momento que tivera a oportunidade de estar com ela e desperdiçara por anseios e sentimentos mal resolvidos. Fora tão demente por saber que ela era seu destino e, mesmo assim, ter lutado contra isso. Pôde ver, tão claro quanto os olhos de mercúrio que ele tanto admirava. Áster não queria acordá-la, mas não podia partir sem senti-la uma última vez. Puxou-a devagar para mais perto e a beijou. Zaya suspirou, não acordou, estava cansada de tanto chorar, mas retribuiu solene o beijo dele com um suspiro sôfrego e abatido. Ele acabaria com todo o sofrimento dela se fosse capaz, mas não tinha tempo. Áster já sentia a falta de Zaya mesmo antes de partir. Seriam meses de distância e saudades, mas tinha que ir, tinha que ir para resolver de vez o passado, só assim poderia se entregar ao futuro. Não demorou muito para que as chuvas da inundação começassem. Três semanas após a partida do príncipe, a primeira delas veio pesada, com trovões e rajadas de vento. Zaya ficava horas observando-as pela janela do aposento conjugal. A pior parte era quando tudo sacolejava pela força de um relâmpago e ela pensava que Áster estava em algum lugar, à mercê da bondade dos deuses. Se não bastasse ter que enfrentar os trovões horripilantes, ainda existia a preocupação e o medo constante. O palácio dispunha de poucos soldados. Estavam em um momento de vulnerabilidade. As orações em volta dos templos eram mais recorrentes, era possível sentir a boa vontade do povo. Eles não sabiam que o faraó estava em perigo, pensavam que os príncipes responderiam a um ataque a Mênfis. Ainda assim, traziam oferendas para os deuses e pediam pela vida dos herdeiros de Astória. Todas as noites enquanto os trovões cortavam o céu e estremeciam todo o palácio, Zaya observava o horizonte pela janela, na esperança de uma luz dourada surgir em algum ponto dali. Minha luz dourada. Agora que já sentia-se quase toda recuperada do luto, conseguia ver que fora injusta e egoísta com o marido e sentia-se muito irritada com ele por ter partido sem se despedir dela. Ela e Áster teriam que encontrar uma solução para seus impasses. Zaya já não podia suportar aquela vida. A perda do bebê, mesmo que sentimental, só serviu para fazê-la enxergar que não estava preparada para ser mãe. Sequer estava pronta para ser uma esposa, menos ainda, uma rainha. Faria uma coisa de cada vez. Primeiro teria que consertar o casamento e, para sua infelicidade, amava o pífio do marido com todo o seu coração. Áster tinha que entender que ela não desistiria dele. Não desistira antes e não o faria naquele momento. Na tentativa de diminuir a aflição, Zaya se distraía com atividades pelo palácio. Passava a maior parte do tempo com Darissa, Norvina e Kamilah, mas até o tempo com elas se tornou exaustivo. As três eram donas de personalidades opostas, e as discussões entre Darissa e Kamilah surgiam pelas razões mais fúteis. Elas não gostavam nem um pouco uma da outra, só se aturavam. O último bate-boca começou por causa de uma palavra persa, Nakhur, Darissa dizia que era a denominação para cavalos que não podem conceber, enquanto Kamilah defendia que era uma camela que não dava leite enquanto não fazem cócegas em seu nariz. Zaya não sabia quem estava certa de fato, mas àquela altura, não se importava mais e a única coisa que queria, de coração, era sossego. — Aí está você! — disse aliviada quando avistou Darwish abandonar o pátio de treino pisando firme. Ele parecia aborrecido. — Algum problema? O príncipe bufou e continuou a se afastar do pátio como se precisasse de distância de lá. Zaya teve que correr para acompanhá-lo. — Sua amiga está se mostrando uma verdadeira flecha no meu traseiro. — Ele disse, passando a mão pelo rosto, exasperado. — Norvina? — Zaya perguntou, quase rindo ao vê-lo tão fora de si. Era a primeiríssima vez que via Darwish fora da pose de observador controlado. — Nunca vi uma mulher que sabe usar tão bem uma espada. — Ele olhou para Zaya. — Por acaso sabe onde ela aprendeu? — Não vá por esse caminho, todos que tentaram descobrir o passado de Norvina, acabaram ferrados de alguma maneira. Era a última coisa que deveria dizer, um lampejo de excitação perpassou pelo azul cobalto dos olhos do príncipe. — Você apenas acabou de deixar tudo mais interessante — disse, raspando o maxilar quadrado com uma unha, de maneira reflexiva. — Por que você me procurava? — Bom, há algo que eu planejo e, neste momento, você é a única pessoa capaz de me dar. Ele cruzou os braços, diminuindo o passo, ressaltando a grossura dos bíceps, e exibiu uma postura orgulhosa. — Eu sabia que essa hora chegaria. — Como? — Você não confia nenhum pouco em meus dons de observador, irmã. Pelo contrário, ela confiava bastante, por isso sempre fugia dele. — Eu já descobri o que quero fazer como minha primeira boa ação. — Estou doido para ouvir, mas antes me diga o porquê de me escolher. Zaya mordeu o lábio inferior. — Áster não me ajudaria, mesmo que estivesse aqui, Ramessés tentaria me convencer a mudar de ideia. Você é o único louco o bastante para me ajudar. Darwish a olhou como se a visse pela primeira vez. — Eu sabia que você era perfeita. — Ele viu as faces dela enrubescerem. — Enfim, me diga o seu plano maléfico, e eu providenciarei o armamento. — Eu quero destruir todos os templos das esposas. Ele ficou em silêncio como se não acreditasse no que ouvira e quando percebeu que Zaya não brincava, olhou-a como se um terceiro olho brotasse na testa da cunhada. — Mudei de ideia, você não é perfeita, é louca. Sabe que isso é impossível, não sabe? — Nada é impossível para a futura rainha do Egito. — Por que não faz outra coisa? Não sei, distribua comida aos pobres ou adote um cachorro, mulher! Isso é demais. — Darwish voltou a andar, dessa vez fugia dela. — Você disse que me ajudaria, Darwish. Eu quero fazer algo de relevante de verdade. Algo que vá mudar a vida de inúmeras pessoas, não apenas de algumas. Ele se abaixou para olhá-la no mesmo nível. — Zaya, esses templos existem há anos, séculos! Você não pode apenas sumir com uma tradição inteira. — Eu não pensei em acabar com tudo de vez, afinal, para muitas mulheres esses templos são a única oportunidade de vida. Eu pensei em melhorá-los. Você não sabe como é horrível viver em um lugar desses, a maioria das mulheres são crianças, meninas descartadas por suas famílias. Darwish arregalou um pouco os olhos. De fato, nem um deles tinha um pingo de noção das coisas terríveis que aconteciam nos templos. — Mas são nesses mesmos templos que mantemos nossa adoração aos deuses. Você quer que os deuses nos abandonem? — E acha que dessa maneira os deuses estão felizes? Colhendo nossas lágrimas de dor e rejeição? Ele suspirou, andou de um lado para o outro e suspirou outra vez. — Eu sou especialista em batalhas, irmã, e posso dizer quando uma batalha está perdida antes mesmo de entrar em campo. Zaya não perderia nada por tentar. Mesmo que não conseguisse, continuaria tentando. Pensou que não adiantava ter tanto poder e riquezas se não poderia usá-los para fazer algo de relevante de verdade. — Você é a única pessoa a quem eu posso recorrer e sei que é o único que me ajudará nisso de fato. Ele meneou a cabeça raspada. — Tudo bem, vou ver o que posso fazer. — Darwish deu o braço a torcer, e a princesa deu o primeiro sorriso genuíno em dias. Por puro instinto, começou a dançar em comemoração. Darwish sorriu. — Não comemore ainda. Será um trabalho de Hórus para você conseguir convencer o conselho disso. — Eu posso ser muito persuasiva. — Sei disso, afinal, você conseguiu colocar arreios em meu irmão mais cabeça dura. Zaya sentiu a felicidade se esvair. Bom, talvez não fosse tão persuasiva assim. Certa noite — quando já totalizavam quatorze semanas desde a partida de Áster —, ao dobrar em um corredor Zaya escutou um burburinho de vozes que vinha ali de perto. A voz feminina era muito familiar aos ouvidos dela, mas era abafada por alguma coisa. Zaya pensou se deveria continuar o caminho ou dar a volta para procurar uma rota alternativa. Após pensar por um segundo, decidiu retornar, não queria ver algo comprometedor ou que não era de sua conta. Porém, a voz feminina soou outra vez, fazendo-a parar no primeiro passo. — Já disse que deve parar de me perseguir, poderiam te emascular se te pegassem! Era Kamilah, ela parecia ofegante como se batalhasse contra algo ou alguém. E se estivesse em perigo? Zaya pensou. — Bom, é um sacrifício que vale a pena. O homem que estava com ela respondeu, resfolegante também. — Pare! — A princesa vociferou e o grito foi seguido de uma puxada de ar e um gemido. Pelos deuses, ela está mesmo em perigo! Sem pensar duas vezes Zaya saiu para o corredor pronta para acertar a cabeça de quem quer que fosse o porco aproveitador, mas a visão que teve a fez endurecer e estagnar no lugar com as mãos para o ar e a boca escancarada. O homem, vestindo o uniforme de soldado, prensava o corpo de Kamilah contra a parede enquanto a atacava, feroz, com a boca. Apesar disso, a princesa não lutava para tentar se desvencilhar, pelo contrário, ela correspondia ao beijo dele em igual lascívia. A maneira como ele a tocava, tão livre e espontâneo, deixou muito claro que não era a primeira vez que aquilo acontecia. O susto fez Zaya ofegar alto o suficiente para chamar a atenção do casal apaixonado. Ela tapou a boca com as mãos na tentativa inútil de segurar o som, mas era tarde demais. Os dois se apartaram de forma rude e olharam para a intrusa. Como não estava mais de costas, Zaya, reconheceu o guarda: era Zaid. O rosto de Kamilah queimava com o vermelho do constrangimento, e ela se apressou para descer as saias do vestido, cobrindo as pernas desnudas. — Zaya... Ela deu um passo à frente para iniciar uma explicação, mas Zaya não queria ouvir nada, apesar de estar bastante confusa, nada daquilo era assunto dela, por isso se afastou dos dois. — Eu não vi nada — disse e se foi dali o mais rápido que pôde. Zaya se questionava sobre a péssima habilidade que tinha de chegar nos cantos em péssima hora. Ela estava certa de que adorava se meter em situações difíceis demais de explicar. Começava a entender o que Zahara queria dizer quando lhe falou que ela não fazia ideia das coisas que aconteciam por trás das paredes do palácio. Pensou se todos daquela família escondiam um segredo, começava a suspeitar que sim. Embora já desconfiasse que Darwish tinha seus mistérios, jamais esperava algo assim de Kamilah. Lembrava-se de todas as vezes em que a cunhada mencionara o casamento. Embora não houvesse muito diálogo, Kamilah insistia em enfatizar que o marido era apaixonado por ela, e ela por ele. Se é assim, por que ela se embrenha por alcovas vazias e divide beijos quentes com Zaid? Nada disso fazia o menor sentido. Na manhã seguinte ao flagrante, como Zaya já esperava, Kamilah bateu em sua porta. Era nítido que se envergonhara, mas, acima de tudo, não demonstrava o menor arrependimento. Trazia uma bandeja com frutas nas mãos, uma desculpa para começar um diálogo. — Você não desceu para tomar desjejum, então tomei a liberdade de trazer alguns aperitivos para você. — Kamilah colocou a bandeja sobre a mesa no centro do cômodo. — Obrigada. — Zaya aquiesceu. A cunhada se virou para ela, entrelaçou as mãos e ficou torcendo os dedos em um silêncio constrangedor. — Sobre ontem... — As duas disseram ao mesmo tempo. Zaya deu um passo para Kamilah, pegou-a pelos ombros e deu um sorriso suave. Para ser sincera, entendia que a princesa poderia estar confusa e não queria forçá-la a nada. — Você não me deve explicações. Vamos apenas esquecer. Estava mesmo disposta a deixar o assunto de lado, se Kamilah concordasse, ela levaria o segredo para o além-túmulo. Apesar disso, Kamilah teria que prometer que pararia de ver Zaid. Zaya não conseguia supor o tanto de coisas horríveis que poderiam vir a acontecer com Kamilah caso fosse pega por alguém que não ela na noite anterior. Kamilah meneou com a cabeça e pegou as mãos dela, as palmas estavam frias, e, somente naquele momento, Zaya viu que a cunhava se esforçava para não chorar. Tremia com violência. — Não, acho que devo falar. Mantenho esse segredo comigo há tanto tempo que talvez seja uma boa hora para ser sincera com alguém. — Kamilah suspirou pesado. Ela não parecia tão jovial e extrovertida, na verdade, parecia que carregar uma carga pesadíssima sobre as costas, o que assustou Zaya, um pouco. — Muito bem, se isso a ajudará. Kamilah soluçou, um soluço desolado de quebrar a alma, e andou até a cama para se sentar na borda dela. — ...não me quer. — Ela sussurrou com dor como se confessasse um segredo terrível, olhando para as mãos pousadas no colo. — Meu marido não me quer, nunca me quis, me repudia. Por isso estou aqui e não ao lado dele. Zaya apertou os lábios de maneira firme. Não esperava por isso, mas se analisasse a situação como um todo, fazia muito sentido. Afinal, que tipo de rei viveria tanto tempo longe da esposa? Qualquer homem que presasse pela própria linhagem desejaria ter filhos. — Eu não entendo. Você é uma das mulheres mais bonitas que já conheci. — Zaya murmurou, o cenho franzido em consternação. Kamilah cobriu o rosto com as mãos. — Aslan culpa minha família pela morte do irmão dele. Odeia meu sangue, minha pele, minha carne, por isso não quer ter filhos comigo. Me chama de adoradora de falsos deuses. As crenças dele são diferentes das nossas, lá eles acreditam em apenas um deus. Um ser que ninguém pode ver! Zaya se lembrou que Darissa mencionara isso certa vez. — Mas ele se casou com você. Ou vai me dizer que ele se casou odiando-a? — Nosso casamento não é como os demais, foi um acordo de paz. A única maneira que meu pai achou na época para unificar as nações e acabar com a guerra que acontecia há anos — explicou em meio a um fungado. Oh! A cada dia Zaya entendia mais os motivos para todos no palácio repudiarem o faraó. Questionou-se que tipo de homem entregava a única filha em casamento para o inimigo. Pensou se ele não teria um pingo de afeição pelos filhos. — Nunca chegamos a consumar nosso casamento. Um dia após a cerimônia Aslan partiu. Foi a última vez que o vi. Já não me lembro de seu rosto, até onde sei, pode estar com qualquer aparência já que na época em que nos casamos ele ainda era um rapaz. — Se o casamento nunca foi consumado, você poderia pedir uma anulação... — Não é tão simples assim, queria que fosse, mas não é. Uma anulação significaria a quebra do acordo de paz. Seria como uma declaração de guerra. — Kamilah respondeu. — Esta é minha sina, é o destino que os deuses querem para mim, e eu o enfrentarei ainda que exija um enorme sacrifício de minha parte. Zaya nunca a vira tão decidida a algo. Era muito triste perceber que Kamilah se acostumara com a ideia distorcida de propósito. Ela era tão adorável, luminosa. Merecia um futuro diferente do que a aguardava. — Me perdoe por ter mentido, eu apenas não queria que vocês sentissem pena de mim. Zaya balançou a cabeça. — Kamilah, a única coisa que sinto, neste momento, é raiva por ser incapaz de te ajudar. Kamilah sorriu e a abraçou com a cabeça apoiada na barriga de Zaya, elas ficaram em silêncio. — Você o ama? — Zaya perguntou depois de um tempo e a princesa ficou imóvel. — Com fervor — soprou como um segredo tão velho quanto o tempo e tão certo quanto a morte. As faces de Zaya começaram a arder de vergonha, porque, de alguma maneira, parecia íntimo demais ouvir aquilo. A força do sentimento de Kamilah chegava a ser palpável. — Perguntei sobre o guarda. — Zaya esclareceu. Kamilah a olhou, também enrubescida, apartou o abraço. Os lábios largos da princesa mais jovem se esticaram em um sorriso descarado e os bonitos olhos castanhos-avermelhados cintilaram como estrelas. — De maneira nenhuma. Ele é divertido, apenas isso. Dava para ver com nitidez os pensamentos indecentes que se passavam pela cabeça de Kamilah. Zaya não entendia como a cunhada podia amar com tanto ardor o marido, mesmo assim conseguir se entregar para outro. Não conseguia fazer isso nem em pensamentos. — Sabe que tem que parar de vê-lo, não é? — A expressão risonha de Kamilah arrefeceu, e ela ficou mais séria. — Podem te decepar o nariz caso descubram a infidelidade. Kamilah estremeceu e se afastou para próximo das janelas por onde corria uma ventania gelada devido ao sereno. — Sei disso, eu já tinha parado de me encontrar com ele, mas é incrível como o homem sabe ser persuasivo. Se é que me entende — disse com uma sobrancelha arqueada. Zaya entendia sim e não conseguiu controlar o riso. A inclinação para a safadeza era de família, pelo visto. A conversa das duas foi interrompida quando a porta do cômodo se escancarou e Darissa apareceu por ela, afoita. — Há uma tropa vindo! — disse solene. Kamilah e Zaya trocaram olhares abismados. E se for Áster? O coração de Zaya se encheu de esperança, e de saudade, e mais. No mesmo instante, elas correram para a sala de recepção do palácio. A notícia se espalhou rápido, quando chegaram na sala, Zahara já estava lá, acompanhada de Darwish e Norvina. Os dois estavam cobertos de suor por alguma razão que Zaya preferiu não saber. — São eles? — Zaya indagou para o cunhado. — Não sabemos ainda. A única notícia que temos é a de que navios atracaram no porto há alguns minutos. — Darwish respondeu, concentrado. Mal terminara de falar, e as portas do grande salão foram abertas por dois guardas que portavam lanças afiadas e pontiagudas. Uma frota de aproximados vinte homens começou a entrar. O barulho dos pés cobertos por armaduras ecoou por todo o salão até o teto alto. Foi apenas depois de ver as vestimentas dos soldados que Zaya soube que não poderia ser Áster, por isso sentiu o coração murchar por dentro. A tropa parou há alguns metros longe dos anfitriões ansiosos, e os soldados com elmos reluzentes pararam em posição de sentido. Um arauto saiu do meio deles e se colocou diante da rainha, ajoelhando-se perante ela, depois se ergueu um pouco. — Vossa majestade, o rei Aslan, da Pérsia! — O homem apresentou o visitante. Aos poucos, os soldados abriram caminho para o homem que estava no centro deles. Zaya podia ver a coroa, um enorme círculo de ouro com pontas como os chifres de um cervo, ornado de pedras brilhosas que ela jamais vira. Os soldados saíram da frente e Zaya pôde vislumbrar Aslan por completo, em toda a sua magnitude valente e incisiva. O homem era alto, grandioso, com uma barba longa e cabelos pretos fascinantes que lhe caíam abaixo da cintura. Era forte, com braços assustadores e pernas tão poderosas quanto. Sua característica mais marcante era a cicatriz no lado esquerdo do rosto, acompanhada de um olhar intenso, inescrupuloso e atrevido. Era nítida a arrogância e a prepotência. Aslan andou a passos rígidos até a frente a eles, o longo manto cor vinho e dourado se arrastava atrás do seu corpanzil. Enquanto ele fazia uma leve reverência diante da rainha, Zaya procurou por Kamilah no mesmo lugar onde estivera minutos atrás, mas ela já não estava ali. Já não estava em lugar nenhum. LOGO APÓS A PEQUENA COMITIVA DE CHEGADA se apresentar, o rei Aslan foi direcionado para uma ala do palácio onde poderia descansar da viagem e levou consigo a frota de soldados barulhentos. Nem era preciso mencionar que a chegada dele fora mais que uma surpresa para todos, já Zaya tinha outra teoria sobre o assunto, uma impronunciável. Darwish foi o primeiro a falar: — O que acha que ele pretende com essa visita? Zahara, como uma boa observadora, vincou a testa. — O mesmo que o lobo faminto faz com a presa indefesa, suponho. — Virou para o filho. — Veio ver se os rumores são verdadeiros, se estamos mesmo a beira de uma guerra. — Ele pode ter vindo por Kamilah, para levá-la. — Zaya se introduziu na conversa, disse o que seu coração desejava que fosse verdade. A tristeza de Kamilah era palatável quando contou sobre o marido que a abandonara. Contudo, o olhar que Zahara e Darwish deram para Zaya, fizeram-na perceber que dissera uma insanidade, e ela se calou. — Pelo bem ou pelo mal, descobriremos as razões de visita ainda esta noite. A rainha se virou para um dos guardas que protegia a entrada do salão. — Sim, majestade? — O guarda perguntou, diligente. — Mande que preparem a sala de banquetes. Acendam as lanternas, limpem os tapetes e lustrem as mesas, separem as melhores louças e peça que tirem o baú do melhor vinho da despensa real. — Zahara disparou ordens enquanto o rapaz balançava a cabeça. — O que está planejando, mãe? Zahara olhou para Darwish como se a resposta fosse óbvia. — Devemos manter nossos amigos por perto, mas os nossos inimigos devemos manter mais perto ainda. Um banquete. Eu darei um banquete de boas-vindas para Aslan. Mesmo tão em cima da hora, cada ordem da rainha fora acatada. Não demorou muito para o palácio se encher de lanternas acesas e o salão de banquete logo foi preparado com a suntuosidade necessária para receber um rei. Se aquela era uma tática de Zahara para abrandar os rumores, dera certo. Nenhum palácio — que estivesse sob a pressão de um ataque iminente de um inimigo — celebraria um banquete tão em cima da hora. Como seria um jantar informal, Zahara mandou que chamassem também Norvina e Darissa para a mesa. Zaya desconfiava que a rainha fizera isso para amenizar o desconforto na mesa de banquete, já que, sem as duas, seriam apenas Zaya, ela e Darwish para receber o rei, visto que Kamilah desaparecera e ninguém esperava que fosse aparecer. Enquanto tudo era disposto, Zaya iniciou uma busca rápida pelo palácio, sem fazer grandes alardes, não queria chamar atenção e, com isso, ter que dizer para Aslan que a sua esposa evaporara no ar como fumaça. Darwish se preocupava com a ideia de que Kamilah, talvez, tivesse fugido, mas Zaya duvidava. A cunhada não era tão tola a esse ponto e não parecia o tipo de mulher que fugia de uma boa briga. De qualquer maneira, tiveram que deixar para procurá-la em outro momento. Como esposa do príncipe herdeiro, Zaya devia estar na sala de banquetes para receber o rei persa junto de Zahara. Ela não entendia nada de trajes formais, por isso deixou que Hagid tomasse conta da situação e gostou do resultado. Fora vestida com uma peça de tecido que se emaranhava em seu corpo, formava um bonito vestido amarelo com fendas nas coxas e aberturas diagonais nas costelas. Além disso, decidiu esconder o cabelo, cobrindo-o com uma peruca curta e preta, cheia de contas douradas e pedrinhas de brilhantes nas pontas. Depois de pintar os olhos com kohl e cobrir os braços com os adereços que compunham seu traje real, Zaya foi acompanhada até a sala de banquete por Zaid. A situação era um tanto desesperadora demais para ela se importar com o desconforto do guarda. Zahara sentava-se no trono, tão bela e magnânima quanto sempre fora. Usava um vestido semelhante ao de Zaya, com faixas de véu translúcido, caindo pelas pernas e de uma cor azul cintilante que se assemelhava ao dos próprios olhos da rainha. Zaya se colocou de pé ao lado do trono, perto de Norvina e Darissa, que também já estavam presentes. Darwish entrou no salão para se juntar a pequena seleção de belas mulheres, parecia tenso, estava assim desde a partida dos irmãos. Ele trocou um breve olhar com Norvina, que desviou a vista antes que o príncipe olhasse para ela, e se colocou ao lado de Zaya. Houve uma esperança de que Kamilah aparecesse ali, por um milagre divino, mas não apareceu. Não demorou muito para Aslan dar o ar de sua graça. Ou de sua prepotência, no caso. O rei usava uma indumentária que se ajustava as pernas, desde as coxas e as panturrilhas, indo até os pés, coberto por botas de couro. Na parte de cima, ele vestia uma túnica que ia até a altura das coxas e um casaco de pele de guepardo que deixava sua aparência ainda mais superior e selvagem. O cabelo estava preso em sua nuca e, na barba, ele fizera uma trança pequena que deixou o rosto muito mais limpo e visível. Era um homem bonito, de fato. Nem a cicatriz conseguia diminuir isso. Emanava poder e dominação a cada passo que dava para mais perto. Ao chegar em até eles, Aslan fez uma reverência cortês e desceu os olhos escuros como o negrume noturno por Zaya. — Você deve ser a esposa do príncipe herdeiro. — Ele se dirigiu a ela, inclinando-se para pegar uma mão da princesa e cobri-la com a dele, áspera e quente. Um calafrio percorreu a barriga de Zaya ao entrar em contato com a pele de Aslan. Um mau presságio, talvez. — Ouvi falar de você. Os rumores de que é tão bela quanto a rainha lhe fazem jus. Zaya percebeu que o elogio não continha nenhuma gentileza. A voz de Aslan era dócil, embora fosse grossa e reverberante como um trovão, seu rosto transmitia nada além de amabilidade, mas seus olhos eram tão negros que a assustavam. Zaya não conseguia desviar o olhar da cicatriz. — Aprecio seu elogio, majestade — disse ela, puxando a mão. Os olhos de Aslan foram para as duas mulheres paradas ao lado de Zaya e se estagnaram em uma delas. O rei da Pérsia cerrou os olhos por um momento. Zaya seguiu a mesma direção para onde Aslan olhava e viu que ele encarava Darissa. A mulher mantinha a cabeça baixa em sinal de respeito. — Darissa? — Aslan disse, incerto. Darissa ergueu a cabeça. Ela não demonstrou surpresa diante do homem, apenas o olhou como se fosse a resposta para a indagação que ele fizera. Em sua preocupação, Zaya sequer associou uma coisa à outra. Lembrou-se das vezes em que Darissa a contou que, antes de ser raptada e arrastada até Astarte, estava noiva do irmão do príncipe herdeiro da Pérsia, mas como fora morto em batalha, se casaria com o irmão que agora era o rei. Este mesmo rei que se encontrava diante delas. — Aslan. — Ela o cumprimentou. Nesse momento Aslan perdeu toda a compostura e, de um jeito que ninguém esperava, escandaloso até, puxou Darissa pelos ombros para mais perto. — Eu achei que você estivesse... achei que estivesse... — E sem mais nem menos a abraçou. Aquilo foi tão estranho para Zaya, presenciavam algo íntimo demais. A princesa se deu conta de que ali estavam duas pessoas que foram atingidas por aqueles que ela considerava sua família, seus aliados. Zahara não estava errada, não era coincidência que o rei da Pérsia estivesse ali. Aslan soltou Darissa, parecia emocionado e não acreditava que via a jovem à sua frente. Sangue do seu sangue. Zaya divagou se, por um acaso, Darissa não tivesse sido raptada, nunca fosse parar em Astarte e não houvesse o acordo de paz entre o Egito e a Pérsia, era provável que, com a morte do primeiro irmão, ela fosse a esposa de Aslan, e não Kamilah. Neste instante, como se esse momento fosse orquestrado por mãos malignas, Kamilah surgiu nas portas do salão. Seus olhos caíram sobre o casal de amigos de infância, seu olhar quebrado deixava claro que ela presenciara o momento. Kamilah já não era nenhuma menina, não deu a volta e saiu correndo. Ao invés disso, colocou sua melhor expressão de falta de interesse e andou pelo longo tapete que levava até o homem. Aslan se afastou de Darissa e encarou cada passo de Kamilah. O olhar do rei da Pérsia mudou — Zaya pôde perceber —, já não era afetuoso como quando ele abraçou Darissa, era tão preto e inexpressivo, quanto minutos atrás, e encaravam sua esposa e rainha andar até ele. Kamilah parou na frente de Aslan e, contrariando qualquer bom senso e amor pela própria vida, não se curvou. Ela o encarou de igual para igual, e Zaya viu nos olhos de Aslan o lampejo do despeito que o causou. Qualquer pessoa mais atenta veria que aquele homem não era do tipo que aceitava muito ser contrariado. — Aslan. — Kamilah o cumprimentou, formal. As mãos unidas na frente do corpo. Ela estava bonita, exuberante, usava um vestido vermelho que a deixava radiante e realçava o tom dos seus olhos. Além de revelar grande parte das costas, o decote nos seios e a lateral externa das pernas. Tinha muita pele bronzeada à mostra. O rei passou os olhos por ela, estudando-a e, por muito pouco, sua face não se contorceu de desgosto. Zaya viu o asco refletido ali. Kamilah tinha razão, ele era muito pior do que presumira. — Agora que Kamilah já está presente, podemos dar início ao jantar. — Zahara interviu e se levantou do trono. Atravessaram as pilastras que dividiam as salas. Zahara ocupou a grande cadeira na cabeceira da mesa e Zaya sentou-se ao lado dela. Darwish se acomodou de frente a Zaya, ao lado de Norvina; Darissa ficou ao lado de Zaya e Kamilah ocupou a cadeira ao lado de Norvina. O rei persa sentou-se no outro extremo da mesa. Zahara balançou uma sineta, autorizando que os serviçais entrassem com as bandejas de comida. Primeiro foi servido o vinho em cálices de ouro, acompanhado de pasta e pão para a entrada. Depois um grande javali assado fora trazido para a mesa, rodeado de uvas roxas e calda de damasco. — Não deixei de notar que os dois são conhecidos um para o outro. — Darwish, inconveniente como era, salientou. Dirigindo-se para Darissa e o rei tirano. — Darissa é persa como eu. — Aslan não fez esforço para esconder. — Eu a vi crescer. Ela estava noiva de meu irmão antes de nossas famílias serem dizimadas por... De súbito, os talheres de ouro e prata pararam de bater nos pratos de cerâmica e um silêncio contíguo fez com que todos ficassem desconfortáveis. — Como veio parar aqui, Issa? — Aslan se dirigiu para Darissa, sem dar a menor importância para o peso do que acabara de dizer. — Logo após a invasão a Valhala, fui levada para um templo de adoração no meio do deserto. Foi onde conheci Zaya, a princesa-consorte. Pelo canto do olho, Zaya viu o rei franzir o nariz em um gesto evidente de desprezo. — Obrigaram-na a servir a falsos deuses? — A voz de Aslan parecia conter um tipo de ódio decrescente. — Falando desta maneira até parece que você se refere a nós como seus inimigos, Aslan. — Zahara chamou atenção do rei e, no mesmo instante, Aslan abrandou a postura. Aprisionando outra vez o rancor, ele se aprumou na cadeira. — Absolutamente — refutou. — Ótimo, não devemos trazer à tona assuntos que já foram resolvidos. Darissa foi acolhida como uma de minhas filhas e está até tentando se tornar uma parlamentar. — Zahara continuou. — Isso é verdade, Issa? A maneira que ele tratava Darissa deixava nítido o apreço e afeto que tinha por ela, mas não era muito respeitoso para um homem casado tratar outra mulher com tanto carinho na frente da própria esposa. Por curiosidade, Zaya olhou para Kamilah. A princesa já virava a terceira taça de vinho desde o início do banquete. — Eu tive que buscar novas ambições para minha vida. — Darissa respondeu, sem jeito. — Bom, agora não precisará mais. Levarei você de volta para Valhala para ocupar seu lugar de nascimento. Foi quase imperceptível, mas Zaya viu quando Kamilah parou a taça no caminho até a boca. Os olhos dela encararam algum ponto invisível no meio da mesa, e Zaya percebeu que algo se rompeu dentro da cunhada. — Agradeço, meu senhor, e por mais que eu deseje voltar para a Pérsia por muitos anos, creio que o meu destino está neste lugar. — Darissa surpreendeu a todos com a resposta. Até mesmo o rei, que torceu o maxilar em contrapartida. — Você mudará de ideia. — Ele disse, entornando o cálice do vinho. Ao colocar a taça na mesa, dirigiu os olhos duros para Zahara. — Não deixei de notar uma diminuição significativa nos reforços da cidade quando cheguei. — É época de inundação, nesse período, nossos soldados são resguardados para dentro do castelo. — Zahara foi rápida na resposta. O rei persa raspou o canto da boca com o polegar. — Os rumores que ouvi foram outros, dizem algo sobre uma cidade que fora saqueada por alguns espartanos. Pelo visto Aslan estava por dentro dos assuntos que abatiam Astória. Poderiam até dizer que era como se ele os vigiasse. Desde que o jantar começara, o rei persa não se dirigira a Kamilah uma única vez. Passaram tantos anos afastados, e quando regressava, ele mostrava mais interesse por outra mulher e por assuntos de guerra do que pela a própria esposa. Nem uma pergunta de cortesia, nada. O que Aslan tinha de bonito, tinha de abominável. — Sim, de fato, há pouco tempo sofremos um pequeno ataque, mas nada que nossas forças não controlaram com facilidade. — Já estive com espartanos. Criaturas sanguinárias, cada homem vale por cinco. Sua guarda deve ser mesmo impenetrável para conseguir lidar com um grupo deles de forma tão fácil. — Eles podem valer por cinco, mas de nada serve se deceparmos suas cabeças primeiro. — Darwish foi curto e certeiro na resposta, causando um súbito mal-estar sobre a mesa. — Você tem razão, mas não deixei de notar a ausência do faraó e do príncipe-herdeiro. — Aslan arqueou uma sobrancelha. — Sua chegada foi inesperada, majestade, se tivesse nos comunicado de suas intenções, eu teria feito meu marido e meu filho esperarem antes de partir para Alexandria para tratar de assuntos sobre o reino. — Mas o faraó devia esperar minha chegada. Ele sabia que eu viria. — O rei disse, levando toda a atenção da mesa para ele. — Sabia? — Zahara perguntou em resposta. Os olhos de Aslan brilharam como fogo na noite quando percebeu que nem Zahara, nem ninguém sabia do que ele falava. — No final do sétimo ano, quando as chuvas começassem a elevar os rios, eu devia vir para levar o que me foi prometido. — Ele repetiu as palavras como se fossem uma memória. A pergunta mais pertinente era evitada. Todos temiam proferi-la pelo medo da resposta. Darwish se inclinou sobre a mesa. — E o que lhe foi prometido? — inquiriu, cauteloso. Aslan abriu um sorriso amedrontador de tão perverso ao dizer: — Kamilah, eu vim para levar Kamilah. — O QUE DISSE? — A voz de Kamilah atravessou a mesa. Fraca, gélida, quase como se não acreditasse no que acabara de ouvir. — Você não deve se dirigir ao seu marido sem que ele lhe dê permissão ou peça sua opinião. — Foi a resposta de Aslan, tão esnobe e rude quanto sua postura. Kamilah se levantou da mesa, empurrando a cadeira muitos centímetros para trás, e encarou o marido como se este fosse a criatura mais detestável e desprezível que já vira. — Kamilah... — Zahara previu que a filha acabara de atingir o seu limite de humilhações por uma noite e chamou o nome dela a fim de evitar que a jovem dissesse algo pelo qual se arrependeria. Kamilah estava irredutível. — Como você já afirmou, eu não sou uma boa esposa, porque nunca estive casada. Eu não sei que tipo de sujeira pretende, mas eu nunca, nunca, vou seguir ou me curvar diante de alguém como você. — Kamilah deu as costas e se pôs a andar para fora do salão, deixando todos em uma situação muito complicada e embaraçosa. O rei persa, ao invés de espumar e cuspir fogo, tinha um sorriso zombeteiro no canto da boca bem alinhada e parecia muito satisfeito com a reação da jovem esposa. Suspirou de forma agradável e se levantou. — Bom, o banquete estava ótimo, agora devo me recolher. — Ele começou a se afastar, mas parou e se virou para Zahara. — Lembre-se que sua filha foi dada a mim como um tratado de paz, tenho manuscritos que comprovam esse fato. Ela não pode escolher aceitar vir comigo ou não, mas, se ela se opor e vocês a protegerem, significará a dissolução do acordo feito anos atrás. Isso implica em guerra, e eu sei que não irão querer mais rivais neste momento. Era uma ameaça explícita. Aslan deu as costas e deixou o salão, pegando a direção oposta a qual Kamilah fora. — Não podemos o deixar ficar com Kamilah. Não sei o que meu pai fez, mas iremos protegê-la, ela já é adulta o suficiente para decidir com quem quer permanecer. — Darwish aferrou no momento em que Aslan sumiu pelas portas do salão de banquetes. Zahara desceu os olhos para a mesa e ficou reflexiva por um momento. — Receio que não esteja em nossas mãos. Deve haver uma razão para Radamés ter feito com que ele a deixasse conosco por sete anos. — E se ele quisesse protegê-la naquela época? — Os olhares na mesa se dirigiram para Zaya. — Protegê-la? — Sim, Kamilah tinha apenas quinze anos, e até onde sei, o príncipe acabara de perder um irmão na guerra, ninguém sabe a quantidade de coisas horríveis que ele poderia tê-la feito passar. — Zaya elucidou, e eles refletiram. Ela até arriscou um olhar para Darissa, de todos ali, a amiga era a única que poderia dar uma opinião bem formada sobre Aslan, já que o conhecia desde pequeno, mas a jovem continuou calada. Quase imperceptível na mesa. — Quem garante que ele não fará nada disso agora? — Darwish indagou. Zaya sentiu um aperto no peito quando não encontrou a resposta. Será que Aslan teria coragem de machucar Kamilah? Seria cruel a ponto de fazê-la pagar por um erro que nunca cometeu? Zaya então se lembrou do olhar que Aslan deu para Kamilah, a maneira como a tratara durante toda a noite e percebeu que o ódio ia muito além disso. Causar dor física a Kamilah seria muito fácil para ele. Se fosse assim, ele apenas a levaria dali, sem se preocupar em comparecer àquele jantar. Pelos deuses! Zaya se perguntou se ele sabia, se suspeitava da infidelidade de Kamilah. Seria uma maneira muito perspicaz de se livrar de um casamento forçado e, ainda, ele se vingaria pela morte do irmão, condenando Kamilah à morte por adultério. — Preciso conversar com Kamilah. — Zaya disse ao se levantar e sair a passos rápidos atrás da cunhada. Encontrou-a no lugar mais improvável, mas o mais propício para a ocasião: nos pátios de treinamento. Kamilah empunhava um arco e flecha e mirava nos sacos de feno. Zaya se aproximou devagar, tomando a cautela de fazer notar sua presença até estar ao lado da cunhada e observou a fúria e o peso do que Kamilah sentia ao mirar e soltar a flecha. — Se você está aqui, é porque chegou à conclusão óbvia. — Ela disse, pegando uma outra flecha para ajustá-la na corda do arco e mirá-la, sem olhar para Zaya. — Tenho medo por você. — Zaya choramingou, sentia os olhos se encherem de lágrimas de piedade. — Não tenha, eu sempre soube que a hora chegaria e me coloquei nesta situação mesmo sabendo dos riscos. Se a intenção de Kamilah era acalmá-la, fracassou. Zaya a pegou pelo braço. — Se quiser, posso te ajudar a fugir. Você poderia viver em um templo de esposas, nunca seria encontrada, seus irmãos me ajudariam, tenho certeza. Kamilah puxou o braço e riu sem emoção ao menear a cabeça. — Eu nunca faria isso, nunca colocaria a vida do meu povo em risco. Tudo que Aslan quer é um pequeno motivo para começar uma nova guerra. Às vezes, nossas responsabilidades são maiores do que os desejos do nosso coração. — Como você pode estar tão calma diante do futuro que te aguarda? — Não estou calma, estou em sofrimento, meu coração sangra, mas é este o preço. — Kamilah foi até o saco de feno alvejado de flechas e o substituiu por outro. Voltou para a posição inicial e se preparou para uma nova seção de tiros. — Há mulheres que nasceram para serem amadas, para terem muitos filhos e um marido que as adoram. Você é uma delas, Zaya. — Ela puxou a corda com o engaste da flecha entre os dedos. — E há mulheres com outros propósitos de vida, que precisam sacrificar a própria felicidade por um bem maior. — Soltou a flecha e se virou para olhar para Zaya pela primeira vez. A princesa consorte viu o tamanho do sofrimento contido no castanho-avermelhado dos olhos da cunhada. — Se eu tiver que dar a minha felicidade, meus sonhos e meus desejos mais secretos em troca da paz de saber que meus irmãos estarão felizes e seguros, eu o farei. Não podia ser daquela forma, Zaya não podia aceitar que fosse daquela forma. Logo ela, que almejara tanto a liberdade, ver uma mulher presa a um destino muito pior do que a morte era, apenas, aterrador demais. Sentia-se invalida, sem propósito, sentia a fúria da injustiça chicotear suas costas. Estava prestes a tentar persuadir Kamilah quando ouviram o que pareciam ser os portões de Alvorada se abrirem. Ambas olharam para a mesma direção, tiveram o mesmo pensamento e correram para a janela mais próxima para ver os portões do palácio. E lá estava a guarda real. Os homens formavam um cerco e, no meio deles, Zaya viu Áster. O coração dela se encheu de luz e alívio, todos os sentimentos eram fortes demais para compreender e separar. Olhou para o rosto de Áster depois de mais de três meses longos e tortuosos. Pela escuridão dos olhos dele, Zaya sentiu um mal-agouro. Naquele mesmo momento, cinco homens saíram de um carro de guerra, pareciam carregar com dificuldade algo muito pesado e inanimado. Apenas ao estreitar os olhos, Zaya reconheceu o que era. Mais precisamente quem era. O faraó. AS MÃOS DE ÁSTER TREMIAM. O coração batia contra o peito como um malho em uma espada em brasa e, no meio de toda a confusão mental em que se encontrava, observou o pai ser examinado pelo curandeiro sem poder fazer alguma coisa. Sentia-se impotente diante da visão de vulnerabilidade do faraó. Era cruel querer fazer alguma coisa e não ser capaz. Ao lado dele, estavam Ramessés, Darwish e Kamilah, todos em um silêncio temerário. Os quatro irmãos partilhavam do mesmo sentimento de angústia e desolação pela aparência do homem muito debilitado, jazendo sobre a cama. Mesmo naquele momento, sabendo que o faraó estava em segurança, Áster não sentia que cumprira a promessa que fizera para sua mãe. Evitava o olhar dos irmãos a qualquer custo, evitava ainda mais o olhar dela. Não queria aceitar, e não aceitaria, que aquele era o fim. Do mesmo jeito que não aceitara quando, depois de um mês e meio viajando pelo mar agitado, chegaram em Mênfis e encontraram a cidade toda destruída, afundada em lamentos e sangue. Eles se prepararam para uma batalha, mas não foi necessário, os espartanos já não estavam mais lá. Abandonaram um rastro de morte, uma pilha de corpos e a cabeça do imperador de Mênfis pendurada na ponta de uma estaca logo na entrada do palacete. Quando Áster entrou na casa do imperador, já esperava pelo pior. Encontrou o faraó amarrado a uma pilastra, desacordado, debilitado. Àquela altura, jamais esperou encontrá-lo com vida, por isso, não foi capaz de descrever o alívio que sentiu. Os dias que passaram e, na viagem de volta, teve a esperança de que Radamés poderia acordar, mas isso não aconteceu. Estava vivo, mas respirava muito fraco, era como se não tivesse vida de fato. E naquele momento mais do que nunca, Áster orou para os deuses pela vida do seu genitor. Radamés não podia morrer, eles tinham assuntos pendentes. Áster precisava dizer tantas coisas, esclarecer tantas coisas. Ele não pode partir agora, não podia! Áster não aceitaria aquele fim. Foram muitas horas de desespero. Uma fila de sacerdotes, curandeiros, magos, feiticeiros e todo tipo de gente foi até o palácio examinar o faraó, e nenhum tratamento parecia surtir efeito. Mesmo desacordado, eles o alimentaram com sumos de especiarias fortes e vários líquidos, mas Radamés prosseguia sem dar sinal de que ainda tinha consciência. Lá pelo terceiro dia, Darwish começou a olhar para Áster de um jeito diferente, como se aceitasse o impensável. — Áster... — Darwish o chamou, um tom de voz dizia tudo. Áster não se moveu, apenas balançou a cabeça em negação e, ainda olhando para a figura pálida de seu progenitor, ordenou: — Saiam todos, nos deixem sozinhos. Darwish ainda relutou, mas decidiu acatar a ordem do irmão. Saiu e levou consigo os curandeiros e serviçais que zanzavam pelo cômodo a modo de se fazerem úteis. A porta se fechou e Áster soube que estava sozinho com o pai. Sentou-se na borda da cama e deixou que as lágrimas viessem, pesadas e inaceitáveis da despedida, da tristeza, de toda a raiva e rancor que se acumulou nos anos passados. Não suportava o fato de que ainda implorava pela aprovação do pai, mas era assim que sentia-se. Mesmo naquele momento, queria ouvir dos lábios de Radamés a mais sincera afeição. — Eu sei que não fui o filho mais compreensivo. Quando cresci o bastante para entender o que se passava entre você e minha mãe, não falei como me sentia, não disse como isto me incomodava e deixei que todo o meu ódio criasse um monstro na minha cabeça. Acho que no caminho, acabei colocando meus irmãos contra você também. Agora posso ver com clareza. Tudo piorou quando você permitiu que Darwish fosse para a guerra tão novo e deu Kamilah para aquele rei tirano. Eu esperava que você agisse como nosso pai, que pensasse na nossa segurança, que nos protegesse e dissesse que ficaria tudo bem. Mas nos últimos tempos descobri que falar ajuda, que guardar algo assim pode me transformar em alguém amargurado e eu não quero isso. Agora eu tenho Zaya e, por ela e pelos filhos que desejo ter com ela, eu quero ser diferente. — Áster parou quando um soluço alto o despedaçou inteiro. — Então, aqui vai a verdade: o senhor me decepcionou muito. Desculpe ter demorado tanto tempo para dizer isso. Ele ainda fitou o rosto apático do pai por um tempo, esperando por um sinal de que o ouvira, mas isto não aconteceu. Áster então limpou o rosto e se levantou, aceitando de vez que era o fim. Daria permissão para que começassem o embalsamento e enfrentaria os olhos de sua família. Passariam por mais uma provação, só que, desta vez, seria mais fácil: eles o fariam juntos. Fariam como uma família. Ergueu a mão para puxar a maçaneta e a parou no ar ao ouvir a voz rouca do pai. — Áster... Duro, estarrecido e incrédulo, Áster se virou. Os olhos do pai estavam abertos, e Radamés olhava para o filho com uma emoção pura refletida em todo o rosto. Áster não foi capaz de dizer nada além da única palavra que resumia todo alívio, dor, mágoa, rancor e medo que sentiu quando pensou que o perdera para sempre. — Pai. Eles trocaram um olhar mútuo, e Radamés tentou se erguer com um pouco de esforço. — Preciso de água. — Áster encheu um copo para ele e o ajudou a beber. — Parece que eu fui abraçado por Apófise. Áster riu, feliz que o pai tivesse humor suficiente para fazer um comentário jocoso. — Você esteve desacordado por muitos dias. Radamés pareceu forçar a mente a trazer as memórias do que vivera e, aos poucos, seus olhos se clarearam. Ele adquiriu um semblante muito preocupado e as manchas roxas abaixo dos olhos ficaram ainda mais intensas. — Sim, agora eu me recordo. Foi uma emboscada, desde o primeiro momento. O chamado até Mênfis, tudo. Assim que atracamos no porto, fomos sitiados por soldados espartanos. — Radamés levou uma mão à cabeça como se sentisse dor na têmpora, massageou a região. — Eles eram muitos, massacraram meus homens, a cidade já estava destruída. Eles não queriam me matar, acredite, podiam ter feito. — E o que acha que eles queriam de fato? — Uma mulher. — Radamés respondeu, parecia vagar por lembranças não muito boas. — Eles repetiam muito isso, uma princesa. — Uma princesa? — Sim, uma princesa fugitiva. Eles tinham a certeza de que ela estava sob a proteção de nossas terras. — Isso não faz muito sentido. Uma grega entre nós? Quem protegeria alguém dessa laia? Radamés sacudiu os ombros como resposta. — Não sei, como também não sei o motivo de me deixarem com vida. A única coisa que posso dizer é que, enquanto estava entre a vida e a morte, tudo que eu desejava era a oportunidade de ver vocês uma última vez, meus filhos e... Zahara. Foi quando percebi que vocês eram tudo que mais me importava. Tudo. Acima do reino, riquezas, acima do povo. — Radamés suspirou fundo, mas até o gesto parecia difícil. — Não há muitas justificativas para o que fiz, filho, admito, mas eu acreditei de verdade que fazia o melhor para vocês. Áster meneou com a cabeça. — Isso já não é importante. — Sim, é. Eu quero me desculpar, preciso me desculpar. — A alma de Radamés se atormentava, era perceptível. Áster não precisava ouvir nada, mas, se para ter paz, o pai precisava dizer aquelas palavras, tudo bem para ele. — Cada uma das minhas atitudes e escolhas interferiram e moldaram o que vocês são hoje, e eu reconheço isso. Pensei que fazia o bem quando, na verdade, fazia o mal. Agora eu vejo. Desperdicei tudo que eu tinha por esconder meus sentimentos e por tirar conclusões precipitadas. Agora eu pretendo recuperar o meu tesouro. — Ele olhou para a janela onde o breu da noite dominava o céu. — Não faça como eu, não deixe que conclusões absurdas e falta de diálogo condenem seu casamento. Áster sentiu uma emoção nova brotar no peito. Nunca pensou ouvir aquilo pela boca do pai e percebeu que, mais do que nunca, ele tinha razão. Áster fora tão tolo com seus anseios e suas dúvidas. Ele sentira falta de Zaya por cada hora de cada dia que passou longe dela, mas chegara há três dias e não nem pensara em ir atrás dela para lhe dizer isso. Era um péssimo marido e um amigo pior ainda. Se queria que a esposa o amasse, também tinha que mudar. Rápido. — Corra, vá até ela. Não perca tempo comigo. — Radamés disse como se soubesse o que o filho sentia. Áster abriu um grande sorriso, e em suas veias cresceu um ímpeto de ansiedade por vê-la. Antes de ir, ele ainda tinha um assunto pendente com Radamés, algo que se puniu por todos as longas semanas. Ele se virou uma última vez para o pai, que tinha as expressões muito serenas e suaves. — Eu perdoo você, pai — disse de todo o coração e viu o rosto do patriarca brilhar emocionado. Sentia que deixara todo o passado dentro daquele quarto. Para sempre. Assim que fechou a porta e se virou, deparou-se com os irmãos e sua mãe. Eles acampavam do lado de fora do quarto há três dias, esperando por uma notícia. Áster olhou cada um dos rostos apreensivos e quando sorriu, deixando claro que tudo estava bem, todos se dividiram entre risadas e um choro desconsolado. Darwish abraçou Ramessés, e Kamilah se enfiou entre eles. Zahara, por outro lado, deu as costas e começou a se distanciar dali. Áster entendia que mesmo que tivesse perdoado o pai, ainda existiam muitas barreiras que Radamés precisaria destruir para reconquistar seus irmãos e, acima de tudo, sua mãe. O pai dele teria uma longa estrada pela frente Os irmãos se atrapalharam para entrar no quarto, e Áster andou até o terceiro andar, para o aposento que dividia com a esposa. Primeiro foi até o quarto dela, mas Zaya não estava. Desapontado, atravessou o quarto conjugal em direção ao próprio quarto. Gostava do lugar, fora ali onde ele a tornara sua. Mandaria que trouxessem as coisas dos dois para o aposento no mesmo instante, mandaria que trouxessem comida e bebida também. Assim que encontrasse com sua mulher, ia lembrá-la do quão pervertido era. Dali em diante, não passaria mais uma noite distante de Zaya. Mandaria que chamassem Hagid para que a donzela lhe dissesse o paradeiro da sua mulher, mas não foi necessário. Assim que entrou no quarto, Áster encontrou Zaya lá. Ela terminava de pentear os longos cabelos pretos junto ao espelho. Usava um vestido de dormir azul que combinava muito com o tom bronzeado de sua pele. Ele se escorou na lateral da porta e ficou contente por poder observá-la tão entretida. Era um tipo de imagem que ele se sentia privilegiado por poder testemunhar. Entendia o porquê de Zaya ser sua metade, tudo que ela era, tudo que representava, era tudo que faltava nele e vice-versa. Áster foi tão burro, achou que as soluções para suas feridas eram se manter sozinho, quando, na verdade, era o contrário. Não percebera, ou não quisera aceitar, tudo que sentia quando tocava Zaya ou quando estava perto dela. Amou-a antes mesmo de conhecê-la, amava-a naquele momento e a amaria para a eternidade. Ela colocou a escova no toucador e se virou para se deitar. Sobressaltou-se ao vê-lo parado olhando-a de forma tão intensa. Levou uma mão ao coração. — Você me assustou — suspirou. Áster começou a andar até ela. — Me perdoe, não foi minha intenção. Zaya o olhou se aproximar, apreensiva. Talvez sentisse toda a necessidade do esposo por ela. Áster parou quando chegou perto o suficiente para capturar uma mecha do cabelo de ébano entre os dedos. — Tomei a liberdade de dormir no seu quarto desde que chegou, espero que não se incomode. — Ela disse, e ele sentiu vontade de sorrir. Se ela soubesse o quanto Áster adorou encontrá-la ali, jamais deixaria aquele quarto. — De maneira nenhuma. — falou, afastou o cabelo de Zaya do ombro e levou o nariz para o pescoço delgado, depositando os lábios em cima da veia que pulsava. — Como está o faraó? Áster podia sentir como estava nervosa na voz dela. — Bem, mas não quero falar sobre ele agora — disse, dando uma pequena mordida na curvatura do pescoço feminino. Zaya deu um saltinho. — Deve estar cansado depois de tantos dias sem dormir. Venha, vamos para a cama. — Ela disse, puxando-o pelos braços. Sim, a cama seria muito útil nas próximas horas. Mas não para dormir. Áster nunca se sentiu tão forte e vivo como naquele momento, como se virilidade pura percorresse suas veias no lugar do sangue. Deixou que Zaya o sentasse na cama, e ela parou, olhando para ele sem saber o que fazer a seguir. — Você deve tirar minha roupa, esposa. — Ele disse e adorou muitíssimo quando as nuvens cor de rosa surgiram nas bochechas dela. — Você não pode fazer isso por conta própria? — Zaya perguntou, embaraçada. Áster forçou uma careta de dor. — Não estou me sentindo muito bem, acho que vou desmaiar. — Levou uma mão à cabeça e deixou que o corpo tombasse para trás. — Áster! Zaya subiu na cama desesperada, inclinando-se sobre o corpo robusto para tocar a testa quente de Áster. Foi surpreendida quando o grande trapaceiro a agarrou pela cintura e girou os corpos dos dois na cama grande, ficando em cima dela. — Oh, isso não vale. É trapaça. — Ela demandou, ultrajada pelo golpe baixo do marido. Áster exibiu uma fileira de dentes perfeitos ao sorrir. — Trapaça é o meu segundo nome, Feiticeira. — Ele disse audacioso. Zaya se lembrou da vez em que ele soltou um crocodilo no harém dela e isso pareceu tão engraçado. Eles riram juntos por alguns momentos, até as risadas cessaram e um clima intenso rodeá-los. Áster ergueu os olhos verde-oliva para os de mercúrio da mulher e desenhou com a ponta do indicador a curva macia dos lábios dela. — Eu quero começar uma jornada com você. Ela piscou, tentando assimilar o que Áster dizia. — Uma jornada? — Não esse tipo de jornada, quero dizer, uma jornada de vida. Quero ser o melhor marido que você poderia ter, quero ser diferente. Eu preciso ser diferente. Por você, por nós e, em especial, pelos filhos que vamos ter. Zaya descansou a cabeça no peito dele. — Tudo bem, Áster, eu não me importo de não ter filhos. Filhos devem ser uma dádiva, não uma missão a ser cumprida. Ele se apoiou nos cotovelos para olhá-la. — É por isso que eu quero tê-los, porque não consigo mais me imaginar no futuro sem um monte de criancinhas barulhentas com cabelos pretos e olhos de mercúrio. — Ela se emocionou. — Além disso, você precisa realizar minha fantasia de dormir com uma grávida. Zaya deu um tapa leve no braço dele. — Você é um pervertido. Ele sorriu e a beijou na testa. — Você vai ter que ter paciência comigo, Zaya. O que temos é muito diferente para mim e tenho certeza de que ainda vou errar muito antes de acertar. — Você tem sorte que se casou com a mulher mais paciente de todo o Egito. — Pobre miserável! — Miserável posso até ser, mas pobre não, agora sou uma princesa e, um dia, serei dona de todo este palácio. — Neste momento, você é dona de todo este corpo, o que acha de esbanjá-lo um pouco? Zaya sorriu, completa e feliz, e o beijou com todo amor e desejo que sentia. — Abrace minha cintura com suas coxas. — Áster pediu, com a voz rouca. Zaya o atendeu com urgência, e seu príncipe dourado voltou a possui-la com a boca. Ela se esbaldou no sabor único e embriagante de Áster. Ele a consumiu, inspirou-a, absorveu-a e a chupou de um jeito que nunca fizera antes, e ela sabia que o gesto tinha nome, era saudade. Áster conseguiu fazer com que o frio que ela sentia se convertesse em fogo. Seu toque era tão exigente e a vontade que ela sentia era de se desfazer neste desejo, sufocar a saudade que a matava. A sensação era sufocante, e o peito dela parecia não ser capaz de suportar todas as emoções que o momento a trazia. Quando ele a penetrou com sua língua audaciosa, Zaya sentiu-se flutuar, naquele momento, Áster era a única razão para ela estar segura no mundo, e ela não queria que ele a soltasse nunca mais. E Áster não faria, não mesmo. Zaya sentiu as costas se afundarem nas penas macias do colchão e, quando ele se afastou para despi-la da manta fina que a cobria, Zaya aproveitou para apreciá-lo. Viril. Sim. Ele era perfeito e, pela primeira vez na vida, ela se permitiu desejá-lo com toda a sua ganância, seus anseios, sua luxúria. Sem sentir culpa, ou pesar, ou se prender a uma ideia. Ficou nua, ela sentia-se nua, não somente por fora. Áster acariciou a coxa dela, beijando-a em cada parte de pele que conseguia alcançar, e Zaya sentiu-se acolhida quando ele a cobriu com o corpo. Sentiu-se molhada, e seu ventre estremeceu de ansiedade por tê-lo fundo dentro dela. As mãos dele capturaram a cintura fina de Zaya com brusquidão, e Áster a girou na cama com facilidade, grudando as costas dela contra o próprio peito. Zaya olhou para baixo, para onde a mão dele a agarrava no seio de maneira exigente. A outra mão permaneceu sobre o quadril dela, deixando- a imóvel. Áster a puxou para trás, encaixando-a de um jeito imoral em cada curva de próprio corpo. O coração de Zaya disparou quando sentiu o contorno da ereção dele se espremer contra o traseiro dela. Ele afastou o cabelo da esposa para o lado e a respiração dele raspou o pescoço de Zaya antes dos seus lábios molhados encontrarem com a nuca feminina. — Minha. — Ele rosnou, e ela arfou, capturada pela sensação indescritível. Ele a beijou naquele pedaço de pele sensível com tanta gana, que Zaya sentiu-se escorregar de prazer antecipado. Áster a empurrou com delicadeza para frente, fazendo com que ela caísse com o tronco na cama. Zaya sentiu o corpo inteiro incendiar quando percebeu que ele pretendia possuí-la como um animal. Os dedos dele passearam pelas costas nuas da esposa, arranhando com suavidade, e pararam na lateral dos quadris de Zaya. — Erga seus olhos, amor, olhe para mim. — Áster pediu e devagar ela o fez, deparando-se com a imagem dos dois refletida em um espelho de cobre que pendia em uma extremidade do cômodo. A visão do marido parado atrás dela, pronto para proclamá-la dele de todas as maneiras existentes, depravadas e não depravadas, encheu-a de um prazer inominável. Os olhos dos dois se encontraram através do espelho e Zaya sorriu de maneira devassa. Este príncipe foi feito para mim. Em cada medida e proporção. Foi incapaz de tirar os olhos dos de Áster à medida que ele atacava o sexo frágil dela, penetrando-a rápida e saborosamente. Zaya se derreteu com o olhar de desejo puro e doloroso quando Áster olhou para a junção de seus corpos e começou a recuar. Primeiro as arremetidas foram curtas, e ela ainda sentia um incômodo, mas foi irrelevante quando os golpes do pênis de Áster se tornaram rápidos contra as paredes do sexo dócil de Zaya. Ela ia de encontro ao delírio. O rosto de dela exprimiu um abandono sensual inclemente e isso a fez se sentir feminina e desejada. Através do espelho, Zaya viu suas peles unidas e viu os músculos do corpo masculino contrair de forma deliciosa quando Áster deslizou para se juntar a ela uma vez mais. Levariam anos e Zaya não se acostumaria com toda a beleza dele. A posição a proporcionava um pico de prazer mais elevado e ela o sentiu tocar em um ponto crucial do seu regozijo final. Áster a ergueu e a prendeu nos músculos de seu corpo robusto ao aumentar a profundidade de suas invasões. A virilha dele batia furiosa contra o traseiro de Zaya, e ela não teve outra saída a não ser se entregar, deixando-o levá-la para o lugar secreto que somente eles conheciam. Zaya sentiu-se perder o controle, e ele engoliu o grito de prazer quando ela chegou no ápice, gozando dolorida. Áster veio logo depois dela, plantando sua semente bem fundo no ventre feminino, pulsando de forma proposital para que ela o sentisse. Mal Zaya pôde descansar do orgasmo potente, ele começou tudo de novo. Foram momentos de amor suado e sincero. Lá pela quinta ou sexta vez, ela perdera a conta, os dois caíram na cama, exaustos, vermelhos e satisfeitos um com o outro. Áster espalhou beijos calorosos pelo colo dela enquanto normalizavam a respiração. Zaya acariciou os cabelos úmidos do marido, e os dois ficaram em silêncio enquanto observavam o dia tomar o lugar da noite. Antes que o sol nascesse, ela adormecera no ombro dele, sentindo-se segura, protegida e amada. Muito amada. Naquele momento, mais do que nunca, Áster se sentiu um homem de muita sorte apenas por ser quem era. O GRANDE APOSENTO ESTAVA ILUMINADO PELOS raios solares que se infiltravam pelas persianas das janelas da grande sacada. Zahara olhou ao redor em todo aquele lugar suntuoso, fazia tanto tempo desde a última vez que estivera ali, que se esquecera dos detalhes da decoração. Nunca gostou muito daquele quarto, algo nos adornos dourados e em toda a extravagância a deixavam incomodada. E o detestava muito mais pelas milhares de coisas que representava. Mais para dentro, a suntuosidade ficava ainda mais evidente. Além das cortinas de linho longas e adornadas com bordados de ouro e o grande tapete do mesmo material, havia uma cama gigantesca, cheia de colchões e lençóis e um bonito dossel sustentado por um pano vermelho preso ao teto. Em cima da cama, deitado de maneira confortável, meio sentado, estava Radamés, encarando-a. Depois de muito anos ele ainda conseguia fazê-la enrubescer ao pegá-la avaliando os detalhes do quarto que um dia fora o palco do amor dos dois. Já não era nada além uma memória dolorosa e indesejada para ela. Zahara deixou todos os pensamentos para trás e andou mais para perto da cama. Trazia de volta toda a raiva que sentira nas últimas semanas, pelo medo que ele a fez sentir. Em especial, por saber que ainda existia uma ligação entre os dois. Ela achara que o sentimento se esvaíra há muitos anos, como o amor que sentia por ele. Isto a deixava consternada, porque a ligação existia apenas entre pessoas que se queriam de forma mútua, o que não existia mais entre ela e Radamés. Eles não se suportavam nem o suficiente para fingir um relacionamento pelos filhos. Quinze dias após despertar, Radamés a chamou até os seus aposentos. Com que intuito, Zahara não sabia, mas se preparara para qualquer coisa. Juntou as mãos na frente do corpo, criando um escudo, e o avaliou deitado. Já estava mais revigorado, era visível, claro, ainda não parecia o homem robusto e imponente que deixou o palácio muitos meses atrás. A idade mostrava as características nos traços masculinos. A barba, por exemplo, que ele nunca deixava crescer, agora lhe cobria maxilar e queixo com fios meio grisalhos. Além disso, sem todas as peças que compunham o traje de faraó, era possível ver o homem humilde com quem ela se casara. Sim, verdade. Agora ele a lembrava muitíssimo o homem por quem se apaixonara. Inclusive o olhar que ele dava para ela naquele momento. Radamés usava uma bata com um saiote e apenas isso. O peito musculoso exposto e a barriga também. — Como se sente? — Zahara perguntou por formalidade. Radamés suspirou, parecia agraciado com a demonstração de preocupação dela. — Feliz por estar de volta em minha casa. Zahara ficou em silêncio outra vez, enquanto ele a perfurava com os olhos que pareciam querer dizer um milhão de coisas que ela não sabia se estava interessada em ouvir. Ela abriu a boca para lhe fazer outra pergunta, mas ele foi mais rápido: — Você me sentiu. Não era uma pergunta, era uma afirmação. Ela fechou a boca, sem saber o que poderia dizer para justificar o que sentira. Mesmo que tentasse, não conseguia enganar Radamés. Eram vinte e oito anos de convivência. Antes de tudo ruir, ficaram juntos por longos dez anos, era tempo o suficiente para se conhecer uma pessoa. Era tempo suficiente para muita coisa. Zahara se deu conta que esteve ao lado daquele homem por tempo demais de sua vida, vivendo por ele, para ele e para os filhos dele, deixando-se de lado. Nunca passou pela cabeça dela a hipótese de satisfazer-se com outros homens, mesmo sabendo que poderia, e tendo artifícios para tal. Ela sempre se perguntou por que Radamés nunca buscou uma segunda esposa, já que não a procurava mais como mulher. E agora ela se questionou outra vez, por quê. Por que ela tinha que ser tão fiel às promessas que fez para ele, quando ele nunca fez a menor questão de fazer o mesmo por ela. — Sim, senti. Mas não se engane, não foi porque existe qualquer sentimento nobre em mim por você, mas porque você ainda é o pai dos meus filhos, e com todas as coisas que você fez para eles, sei que sofreriam se você morresse. O rosto dele não se moveu um centímetro com a resposta afiada. — Mentira — afirmou, e ela juntou as sobrancelhas finas e bem- feitas, aborrecida. — Como? — Você está mentindo e sabe disso. — Radamés teve a ousadia de repetir. Ele presumia que havia outra razão para ela ter sentido a ligação dos dois. Que existia outra razão para que Zahara estivesse aliviada pelo retorno dele. Isso é tão... ultrajante! — Por que eu mentiria, Radamés? — Zahara o olhou, astuciosa. — Porque eu sinto o mesmo que você, não esqueça disso, Zara. — Ela sentiu como se ele batesse em seu rosto ao pronunciar o apelido carinhoso. — Você sabe disto e, por esta razão, está na defensiva. Zahara deu um passo temerário para trás, furiosa, sem saber o porquê. Radamés não tinha dito nada insultante, assim pensava. Ela não ficaria ali, perdendo mais um tempo da vida com ele. Girou sobre os calcanhares, pronta para sair do aposento, mas Radamés voltou a falar, fazendo-a parar no lugar. — Todos os dias que passei nas mãos daqueles homens me fizeram perceber muitas coisas. A maior delas é que sou tão vulnerável e suscetível a morte quanto o lavrador que colhe o centeio no campo debaixo do sol escaldante. — Onde está querendo chegar? — Ela indagou sem se virar. — Eu percebi também que na minha trajetória para ser um bom governante, acabei me tornando algo abominável para a minha própria família. Isso me pegou desarmado, de fato. Acreditei que era um bom pai. Então Zahara se virou, trêmula de indignação. — Um bom pai? Não me faça enumerar todas as coisas que você fez para os nossos filhos. Radamés não se abalou diante do descontrole e desprezo nítido nas feições dela. — Todas as minhas decisões sobre nossos filhos, cada uma delas, teve uma razão. Uma razão muito maior do que apenas o meu amor de pai. Eu poderia dizê-las agora, poderia dizer o porquê permiti que Darwish fosse para a guerra tão jovem, o porquê acordei com o marido de Kamilah para que a deixasse aqui, abandonada. Não acertei em todos, eu assumo. Áster... — Ele engoliu em seco ao falar do primogênito. — Pensei que fazia o correto ao 1anda-lo acreditar que o reino e o bem-estar do povo estava acima de qualquer coisa. — Como pode ver, você se enganou. — Sim, me enganei. E ao me dar conta disto, pensei em que mais coisas eu me enganara. — Os olhos de Radamés voltaram a pesar com uma emoção ilegível. Eles pareciam enxergar Zahara de verdade. Não apenas sua carcaça mortal, mas a alma que ela escondia em seu íntimo. — Eu me enganei sobre você, Zara. Ela soltou o ar para fora da boca com escárnio. — No que, para ser exato? Quando decidiu que eu não servia mais para ter os seus filhos ou quando viu que eu não seria jovem para a eternidade como as mulheres com quem se diverte no seu harém? Zahara nem acreditava no que dissera. Nunca, em todos os anos que passaram juntos, ela afrontara Radamés daquela maneira. Qualquer outro homem mandaria a chicotear, mas ele não, ele se ergueu e se levantou da cama. Mesmo mais magro, Radamés era assustador e mais forte do que ela. — Fiz muitas coisas erradas e as assumo, mas não é assunto para este momento. Ela sentiu um nódulo que a impedia de respirar se alojar na garganta. — Anos atrás eu vi o seu sofrimento, vi o quanto você odiava quando eu tinha que resolver as questões sobre o reinado, vi que você estava arrependida por ter largado o seu povo para viver ao meu lado, e eu... — Radamés fez uma pausa como se desejasse voltar no passado, para aquelas memórias, para fazer tudo diferente. —... eu pensei que seria melhor para você se eu me afastasse. Me mantive longe, mas não pude 1anda-la voltar para o seu povo, porque fui egoísta demais para abrir mão de você. Zahara estava trêmula, ergueu um dedo no ar. — Por todos esses anos, eu sofri porque você decidiu por nós dois que era melhor me rejeitar do que agir como meu maldito marido? — Eu pensei que fazia algo que você queria! — Não, você apenas arranjou a desculpa perfeita para desistir do nosso casamento. — Zahara retrucou, controlando a vontade de bater em Radamés, de descontar todos esses malditos anos que passou achando que ele a rejeitava por não a querer mais, por ter se arrependido de se casar com ela quando poderia ter aproveitado uma vida regada pelos privilégios da solteirice. — Eu estava errado, agora sei. Você também não fez nenhum esforço para provar o contrário, ao invés disto, você pegou suas coisas e se instalou naquele mausoléu no quarto andar. Para mim foi uma mensagem clara de que você já não me queria! — Ele se defendeu. — E você foi ótimo em demonstrar como estava infeliz. — Zahara foi sarcástica, e Radamés levou uma mão a cabeça, frustrado. — Por muitos anos eu me perguntei o porquê de você permanecer aqui, já que eu acreditava que tudo que você queria era voltar para o seu antigo modo de vida. Ouvi rumores sobre os rons, acreditava que eram incapazes de permanecer parados em um só lugar pelo resto de suas vidas. Eu achei que você ficou por nossos filhos, mas, naquela noite, a noite em que visitei seus aposentos antes de viajar, eu vi nos seus olhos um brilho doloroso e comecei a me questionar se talvez você poderia... se poderia sentir algo por mim. Zahara não disse nada, a cabeça ainda tentava assimilar tudo que ouvira. Todos aqueles anos vivendo de tal maneira, tudo por conclusões precipitadas de Radamés. É tão inacreditável e inaceitável! — Foi somente quando eu senti nossa ligação que eu soube. — Você está enganado. — Zahara foi direta, e ele engoliu em seco. — Nada do que foi dito agora mudará os últimos anos da minha vida. Você não pode esperar que eu volte a confiar e amar você apenas me dizendo essas coisas. A maneira como você destruiu nossa família me fez sentir apenas nojo de você, e não tem nada que mude isso. Um resfolego escapou pelos lábios de Radamés, mas ele apenas a olhou. Firme, dolorido e vulnerável de um jeito que Zahara não o via em muito tempo. — Eu sei que apenas minhas palavras não bastam e, por essa razão, tomarei atitudes. Aliás já estou tomando a primeira delas e você saberá dentro de alguns meses. Zahara meneou a cabeça. — É uma pena. Em alguns meses eu já não estarei aqui para ver, antes mesmo de você voltar, eu já tomara a decisão de ir embora deste palácio. Naquela hora Radamés deu um passo à frente tão rápido que Zahara não teve tempo de se esquivar. Em poucos segundos, ela estava nos braços dele, com o coração batendo na garganta. — Eu não a deixarei ir. Ainda mais sabendo que, mesmo que seco e debilitado, seu coração ainda bate por mim, Zahara. Ela não se moveu, tinha medo de fazê-lo e o contato com o corpo de Radamés despertar algo nela. Era como tentar impedir o tempo, impossível e inútil. Zahara podia sentir o corpo despertar aos poucos, em cada ponto, em cada encontro e cada membro, como as estrelas que cintilavam sem ordem, queimando em dor e agonia. — Foi por deixar você livre para ir que eu quase perdi tudo, desta vez, farei diferente. — Radamés assinalou e, assim, tão de repente quanto a pegara, ele a beijou. Foi uma surpresa inédita receber os lábios de Radamés depois de tantos anos. Assim como a beijara da primeira vez, o corpo de Zahara despertou, e ela viu faíscas. Visitou o paraíso e o limbo de uma única vez. Enfrentou seu demônio e sucumbiu ao desejo mais secreto do seu coração semimorto. Por um momento curto, quase uma epifania, ela foi, mais uma vez, uma garotinha indefesa salva de um lago, e ele o seu príncipe salvador. Tão rápido quanto o sentimento veio, ele foi embora, e logo Zahara era a rainha do Egito, e Radamés o faraó. Não é certo. Não! Não pode ser tão simples assim. Zahara o empurrou, separando-se de Radamés com êxito e se assustou quando o corpo inteiro dela tremeu pela ânsia de tê-lo tão perto outra vez. Olhou-o assustada, e ele apenas ostentou um pequeno sorriso convencido, sentia o mesmo que ela. Aquele era um teste, e ela fracassara de forma vergonhosa. — Tente me impedir. — Zahara cuspiu as palavras, desafiando-o, e se moveu para sair o mais depressa do aposento. Com a vista turva e a cabeça dando voltas, Zahara ainda foi capaz de ouvir a última frase de Radamés antes de sair pela porta: — Eu não precisarei tentar. ● Alguns meses mais tarde... ●
ASSIM QUE PÔS OS PÉS NA SOLEIRA DA porta de entrada,
Áster ouviu os gritos de dor de Zaya e correu palácio adentro, em busca da esposa. Subiu escada acima e andou direto para o quarto no terceiro andar, onde os seus irmãos aguardavam em expectativa no corredor. — Pelos deuses, até que enfim chegou. Fui ameaçado de morte! — disse Ramessés, em direção a ele. — Eu vim o mais rápido que pude. — Áster disse, nervoso, secando as mãos suadas no saiote. — Não foi o suficiente. Ela está furiosa com você, se recusa a parir sem sua presença — disse Darwish. No mesmo instante, um grito de Zaya atravessou a parede, fazendo um arrepio doloroso varrer a pele de Áster e se concentrar em seu estômago. A porta do quarto foi aberta e uma Norvina meio eufórica passou por ela. — Até que enfim está aqui! Venha, entre logo antes que ela derrube este palácio sobre nossas cabeças — disse, empurrando-o para dentro do cômodo abafado. Meia dúzia de criadas andavam para lá e para cá, buscando toalhas e emergindo-as em bacias de água morna, enquanto as outras limpavam a testa e o meio das pernas muito abertas de Zaya, que transpirava, deitada na cama. O cheiro de sangue e suor estava por toda a parte. Áster achou que fosse desmaiar. Zaya chorava e apertava os dentes, segurando nos travesseiros com força. Seus gritos eram monstruosos enquanto a parteira tentava dialogar com ela, mas Zaya não ouvia nada do que a mulher lhe dizia e só gritava. Tremente, Áster andou até a esposa, que até então não notara que ele estava ali. Algumas criadas deram espaço para ele passar, e o príncipe se colocou ao lado dela na cama. — Minha doçura — disse com carinho, e logo Zaya olhou para ele. Os olhos de mercúrio continham milhares de emoções. Lamento, alívio, ternura. Ele não saberia dizer qual era mais forte, mas estavam todas direcionadas a ele. — Áster, que bela hora para sair em viagem, se não tivesse me partindo em duas de tanta dor, eu te dispararia uma segunda flecha e, desta vez, apontaria para acertar. — Ela disse, com os dentes muito apertados. Áster tirou o manto de viagem e se precipitou por trás dela, sentando- se, acolhendo-a no meio das pernas, envolvendo-a com os braços. Sim, ele fora um pífio, como ela gostava de chamá-lo, por ter demorado tanto. Os últimos meses foram difíceis. Com a partida de Kamilah e da iminente partida de Zahara, a família se desintegrava. Áster estava desolado e envolvido em tristeza, até que descobriu que Zaya estava grávida. Grávida! Quem diria que poderia fazê-lo tão feliz com a notícia de que ele seria responsável por mais de uma vida. Seria um desastre absoluto. — Estou aqui agora — disse contra a orelha dela, saboreando o suor dos cabelos de Zaya em seus lábios. Zaya soltou a respiração e se aninhou contra o peito dele. — Alteza, se não começarmos agora, irá pôr em risco a vida da criança — alertou a parteira. Áster tremeu com essa possibilidade. — Como combinamos, meu lótus, vamos fazer isso juntos. — Áster disse e Zaya concordou sem dizer uma palavra, colocando as mãos sobre a grande barriga nua. — Preciso que respire fundo e faça o máximo de força que puder. Obedecendo sua ordem, Zaya respirou fundo e logo fazia força enquanto ele a ajudava, empurrando o bebê para fora. Ela apertava os dentes e parecia esgotada, estava vermelha, suada, nua e gritando como uma harpia, ainda assim era a mulher mais linda que Áster já vira. Ele deu um tempo para Zaya recuperar as forças, e logo empurravam outra vez, juntos. Ele respirava fundo quando ela respirava, fazia força quando ela fazia, sentia o cansaço dela como se fosse em seu corpo, e quando ela gritava de dor, ele se contorcia como se fosse nele. Todos no quarto assistiam a eles em silêncio, ajudando a parteira que estava aos pés da princesa e murmurava instruções com uma voz calma. Darissa e Norvina estavam ao lado do curandeiro, com os olhos marejados e um sorriso. Áster não entendia como podiam sorrir como se aquilo tudo fosse lindo quando ele estava com os nervos à flor da pele. — Eu estou vendo a cabeça! — anunciou a mulher com a voz animada. — Vamos Zaya, empurre. — Áster encorajou a esposa com a voz cheia de emoção, e ela o fez, empurrando uma última vez com toda a força que ainda tinha, até soltar a respiração com um sôfrego alívio. O choro do bebê invadiu o quarto. A emoção fez Áster cambalear e seus olhos se encheram de lágrimas de felicidade, beijou o rosto da mulher com um sorriso, os dois exaustos, olhando a pequena figura que berrava nas mãos da parteira. — É um menino — anunciou a parteira. Zaya soluçou, agarrando a mão do marido que também sorria. O bebê foi entregue para Norvina, que pegou o sobrinho com carinho e o levou para limpá-lo e envolvê-lo em ataduras. Zaya descansou contra o peito de Áster e acariciou o dorso da mão dele com o dedo. Ele nada disse, apenas apreciou a presença da esposa até que ela se encolheu e apertou os dentes, segurando um grito. — Zaya, o que está sentindo? — Áster indagou, preocupado, e percebeu que a parteira se colocava entre as pernas dela outra vez. A mulher soltou um assobio de surpresa. — Pelos deuses, tem outro! — disse alarmada e todos no quarto abriram os olhos de espanto. — O quê? — disseram em uníssono. Até mesmo Darwish e Ramessés do outro lado da porta. — Pelo visto, é — disse a parteira, preparando-se para a chegada do segundo bebê. — Que Amon-Rá me ajude! — falou Áster, olhando para Zaya que também estava abismada. Ele tentou se segurar, mas foi incapaz de não rir. Pediu apenas um bebê, e aquela mulher teimosa, mais uma vez, surpreendia-o dando a ele dois de uma única vez. Ainda atordoado, ele voltou a ajudá-la. Levou apenas uma mão, a outra estava unida a dela. Zaya voltou a fazer força, desta vez, pareceu mais fácil. Ela estava radiante, brilhava e, para o completo assombro do príncipe, logo o segundo bebê chorava com uma força surpreendente. Sem saber o que dizer, Áster encarou a segunda criança sentindo algo próximo da realização eterna tomar posse do seu corpo. — É uma benção! Outro menino — comemorou a parteira, entregando a segunda criança a Darissa. A mulher examinou outra vez entre as pernas da princesa, só para garantir que não viria um terceiro. — Acho bom você não encontrar outro bebê aí. Eu me sinto como uma porca parideira. — Zaya falou e todos no aposento riram. — Não, pode descansar, alteza. — A mulher a tranquilizou. Zaya respirou tranquila contra o peito do marido, desfaleceu de cansaço. Enquanto preparavam as crianças para a primeira alimentação, Áster pediu que preparassem um banho morno para a esposa. Enrolou sua figura exausta em um lençol limpo e a levou para o aposento conjugal dos dois. Ele fez questão de banhá-la sozinho, lavando o cabelo adorável de Zaya com calma, os braços, a pele. Estava tão grato com ela por ter lhe presenteado com dois bebês homens que não conseguia deixar de adorá-la. — Como devemos chamá-los? — perguntou enquanto a enxugava. Em todos os meses que esteve grávida, eles pensaram em alguns nomes. Foi uma briga generalizada, porque todos da família tinham um palpite e ninguém parecia chegar em uma concordância. Zaya, então, decidiu deixar para última hora, daria o nome do filho quando olhasse em seu rostinho. E, naquele momento, como se escolher o nome de um já não fosse difícil o bastante, eles teriam que encolher de dois. — Eu estava pensando em um nome forte, com algum significado. Áster a ajudou a andar até o biombo, em que colocou uma camisola que poderia ser aberta com facilidade na hora de amamentar. — Que tal Aton e Bakari? — sugeriu. Zaya o olhou como se ele tivesse dito a maior burrice da vida. — Amon-Rá me livre, não quero que nossos filhos nos odeiem — disse, e Áster entortou um pouco a boca. — Tá bom, e o que você tem em mente? — Eu pensei que poderíamos contar de um até três e dizer o primeiro nome que nos vier à cabeça. Ele arqueou uma sobrancelha. — É por isso que eu amo você, minha flor de lótus, sua praticidade é apaixonante. — Áster disse, e ela sorriu exaurida. — No três, então? Ele assentiu. — Um... — Dois... Três. — Asten. — Orion. Eles se encararam, avaliando os nomes que disseram. Era um tanto curioso. Não eram feios, mas diferentes, quase poéticos se fossem parar para pensar. — Orion? — Áster repetiu. — Sim. — Zaya assentiu devagar, muito pensativa. — Era um nome de um gigante de um conto que minha mãe me contava, é uma das poucas coisas que lembro dela. Áster tocou com gentileza na cintura dela e a beijou na testa de maneira cálida. — Me fale sobre isso. — No conto dizia que ele era um gigante caçador e que foi posto pelo deus Amon-Rá entre as estrelas em forma de constelação. Áster sorriu. De um jeito peculiar os nomes se completavam. Não podia ser mais perfeito. — Muito bem, serão Orion e Asten. Nossa estrela e constelação — disse por fim, ajudando-a a se deitar. — Está decretado, nossos filhos vão nos odiar para sempre. Zaya deu uma risada baixa. Algo que a fez se desmanchar por dentro de amor por ela. Seus olhos se encontraram e o sorriso arrefeceu. Áster beijou a mão dela, tentando dizer com aquilo que tudo ficaria bem. Pouco depois, seus bebês estavam ali. Ambos estavam sentados, lado a lado na cama, conhecendo seus filhos, aqueles pequenos seres humanos compostos por metade dele e dela, como a família que Zaya sempre sonhou em ter.
● Mais alguns meses depois... ●
As portas do grande salão foram abertas e Zaya passou correndo por
elas, acompanhada de Áster e dos pequenos gêmeos Asten e Orion que vinham dormindo, confortáveis, deitados um em cada braço do pai, com as cabecinhas castanho-acobreadas repousadas nos ombros grandes do homem. Áster reclamava sempre da facilidade dos gêmeos em pegar no sono em cima dele. Começou a achar que os meninos puxaram uma ponta da personalidade de Ramessés, tudo que faziam era comer, resmungar e, quando lhe convinham, usavam os braços dele como leito. Colocaram-se em seus lugares no salão apinhado. Todos os homens do conselho estavam lá, alguns imperadores de países vizinhos, os sacerdotes também e os irmãos de Áster. Por algum motivo, que ninguém sabia, o faraó convocou uma reunião para dar um anúncio importante. Todos olharam para eles enquanto entravam, Zaya ainda estava meio descabelada e tentava colocar as roupas no lugar. Ela fora o motivo do atraso dos dois. A culpa era toda dela. Estava tão irresistível desde que tivera os gêmeos, que Áster não conseguia manter as mãos longe dela. Não perdia uma oportunidade de encurralar a esposa em alguma sala vazia e foi o que fez, quando a viu entrar nos aposentos dele, vestida como uma deusa, com aqueles quadris balançando, voluptuosos, e aquela expressão serena que deixava ele duro, feito uma rocha. Seu pai e seu comunicado importante podiam esperar. Quarenta minutos depois, eles corriam em direção ao salão e todos os encaravam sabendo o que eles fizeram. Áster adorou ver o tom rosado da vergonha no rosto da esposa e o desejo voltou com força. Estava ansioso para se enfiar em alguma alcova vazia com ela. Céus, que esse comunicado seja rápido! — Desculpem nosso atraso — disse para o pai, que balançou a cabeça em uma risada como se entendesse o filho com perfeição. O faraó se virou para a plateia. A relação dos dois evoluíra muito nos últimos meses, claro que a intimidade de pai e filho precisaria ser construída com os anos, mas Áster estava feliz por, mesmo depois de muito tempo, o pai se dedicar outra vez a família. Era raro fazerem uma refeição separados, embora a ausência de Zahara e Kamilah fizessem uma falta absurda. Até mesmo saíam para caçar juntos. Inclusive, Radamés aceitou muito bem a proposta de Zaya sobre um novo método de organização dos templos de esposas e deixou que ela, sozinha, encarregasse deles. Zaya era brilhante, determinada. Seria uma excelente rainha. Quem sabe até melhor do que Áster seria um rei. Ela estava mais do que feliz em carregar o fardo do reinado junto com ele. Governaria ao lado de Áster, não para ele. Seria sempre sua mão direita e o impediria de tomar decisões idiotas. Embora dissera que tomar decisões idiotas era inevitável se tratando de Áster. O príncipe deu uma olhada para Asten quando este soltou uma baixa risada em meio ao sono. O menino encharcava toda a sua vestimenta com baba, uma pequena bolha de cuspe se formara na boquinha pequena e rosada. Independente do que estivesse sonhando, devia ser muito bom. Eles eram adoráveis, os dois, embora colocassem Áster em situações embaraçosas, ele não conseguia deixar de admirá-los. Amava-os tanto. Tinham puxado os olhos de mercúrio de Zaya e a cor dos cabelos dele. Uma combinação extraordinária. O faraó se levantou do trono. Já recuperara todas as forças e a fisionomia de guerreiro que sempre teve. Ele passou o olhar por cada um dos rostos, procurando por aquele que mais lhe era familiar e o que mais desejava ver, mas não estava ali. Ela não estava ali e nem iria, já não ocupava o lado dele como rainha consorte há muitos meses. — Meus companheiros de reinado, vizinhos de terras aliadas e família. — A voz dele ecoava pelo salão de teto alto. — Hoje fazem exatos vinte e dois anos que ocupo a posição de governante do Egito. Em muitos anos da minha vida, eu conquistei muita coisa, fiz história em Astória e, hoje, posso descansar tranquilo, sei que meu povo vive bem e feliz. Fez uma pausa, pensativo e todos permaneceram em um silêncio de expectativa. — Agora, aos quarenta e oito anos, colecionando uma vasta reputação de vitórias e um tesouro que durará inúmeras gerações, qualquer um poderia dizer que eu tive um bom reinado, já conquistei tudo que podia alcançar e, por um tempo, acreditei nisso também. Entretanto, nos últimos tempos percebi uma grande lacuna na minha vida, algo insubstituível e que nem mesmo todas as minhas vitórias e conquistas chegariam a se equiparar. O burburinho de vozes começou a circular pelo salão. Áster deu um passo à frente, já suspeitando do que o pai estava prestes a fazer. — Portanto, meus queridos. — Radamés disse com a maior serenidade do mundo. — Eu me retiro hoje do trono, passando-o para as mãos competentes do meu filho primogênito. Todos os olhares se voltaram para Áster, mas ele só conseguia encarar ao pai, não acreditava que ele abria mão do trono por ela, por sua mãe. Seu coração se encheu do mais profundo orgulho pelo homem na sua frente. Nunca o admirou tanto. Radamés estendeu a mão para o filho. Áster a aceitou, segurando Asten com um braço, Orion com outro e, de um jeito quase impossível, pegou na mão de Zaya para levá-la com ele. Ela ainda relutou, mas ele não faria aquilo sem ela. Nem sabia se conseguiria. Zaya pareceu entendê-lo e o seguiu mesmo com o rosto vermelho por ter tantos olhos sobre ela. Já em cima do altar em que ficava o trono, Radamés o recebeu com um abraço rápido e retirou a coroa da própria cabeça para colocá-la sobre a dele. A coroa vestiu Áster com graça e ninguém tinha dúvidas de que o príncipe nascera para ocupar aquele lugar. Radamés, muito orgulhoso, virou-se para a plateia que testemunhava um dia histórico e gritou: — Saúdem o faraó Áster e sua rainha Zaya! 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